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Resumo:
Este artigo analisa comparativamente duas produções artísticas
recentes que tratam do tema do trabalho doméstico no Brasil: o filme
“Que horas ela volta?” e o clipe “Boa esperança”, com Emicida. O
texto interpreta o papel e os significados da tomada de consciência e
da ação transformadora em uma e outra obra e avalia a importância
das mesmas para a compreensão das manifestações de luta de classes
no Brasil contemporâneo.
Palavras-chave: trabalho doméstico; cinema; rap (rhyme and poetry).
*
MURILO LEAL PEREIRA NETO é Mestre e Doutor em História pela FFLCH – USP.
**
SILVIA BEATRIZ ADOUE é Professora da Escola Nacional Florestan Fernandes, Mestre
em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (2001) e Doutora em Letras pela
FFLCH-USP.
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desvelamento e na denúncia implacável
da forma como estas duas ordens de
conflitos se cruzam e associam na
unidade doméstica, resultando no
ocultamento e naturalização da
exploração. Mas sua qualidade também
está na exposição de um processo de
superação desta condição.
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sofrimento e isolamento (“Por mais que a mãe. Val mal é vista e ouvida quando
você corra, irmão/Pra sua guerra vão se apresenta em sua humanidade: tem
nem se lixar/Esse é o xis da questão/Já dificuldade para conversar com a
viu eles chorar pela cor do orixá?”) à patroa, sempre ocupada, sobre a
rebelião (“Noiz quer ser dono do chegada de sua filha e estes breves
circo/cansamos da vida de palhaço”) diálogos são invariavelmente
pelo despertar da memória social sobre concluídos com o restabelecimento da
o passado da escravidão e da hierarquia patrão-empregado: “deixou a
consciência sobre as permanências e lasanha lá?”, “chega cedo segunda,
paralelismos entre esse passado e o lembra que tem o jantar do meu
presente: “E os camburão o que aniversário”, “não esquece do bolo
são?/Negreiros a retraficar/Favela ainda mousse, receita dupla”. A cena em que
é senzala, Jão!”. Val serve os convivas no jantar de
aniversário de Bárbara é aterradora: a
O filme de Anna Muylaert traça com câmara vai acompanhando a
sutileza o quadro da exploração, da perambulação da empregada com a
humilhação e da negação da bandeja na mão entre os grupos e
humanidade da empregada no recesso ninguém lhe dirige um olhar nem uma
do lar de uma família burguesa. A palavra de agradecimento. Apenas os
despretensão e leveza com que essas jovens reunidos em uma mesa, brincam
situações são tratadas mostra-se com ela. Os empregados estão na
perfeitamente adequada à finalidade de condição dos animais domésticos e
revelar os modos cotidianos como as pertencem, pelas suas disposições
diferenças de riqueza e de poder se afetivas e cognitivas, ao universo das
conservam e legitimam pelas relações crianças e adolescentes. Para os jovens,
pessoais e pela afetividade. O núcleo por sua vez, tornar-se adulto em uma
familiar composto por pai/mãe/filho é família burguesa significará,
sustentado por uma equipe de necessariamente, romper os laços com o
empregados: motorista, jardineiro, mundo dos empregados.
cozinheira, faxineira, que compartilham
as refeições em uma pequena mesa da No eixo das relações familiares, Anna
cozinha, junto com a cachorra Meg, Muylaert parece sugerir que, se por um
mais bem tratada do que todos. Os lado a “terceirização” da função
empregados, na verdade, estão abaixo materna à empregada a enreda na trama
da condição dos cães, como se verá. da exploração “adocicada”, por outro
lado, aliena funções essenciais à
Embora a patroa Bárbara declare para vitalidade da família burguesa,
Val: “Poxa, você é praticamente da esvaziando as relações de intensidade
família, você me ajudou a criar o afetiva e tornando-as irremediavelmente
Fabinho”, não causa, claro, incômodo dissimuladas e postiças. Tal condição é
algum que Val passe os dias em um representada pela cena em que a família
quartinho no qual, quando as janelas está reunida à mesa, cada um mexendo
estão abertas, é infestado por mosquitos em seu próprio celular, alheio à
e, quando estão fechadas, sufoca-se de presença dos demais. A primeira cena
calor. Gesto de grande generosidade, do filme já põe toda a questão: Val
assim apresentado por Bárbara e brinca na piscina com Fabinho tratando-
recebido por Val, é a compra de um o com afeto de mãe. Em seguida
colchão novo para que, no quarto já aparece ao telefone com Jéssica, que
apertado, Jéssica passe alguns dias com ainda está em Pernambuco, de quem se
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despede dizendo: “Eu lhe amo!” tendência, uma trend setter” e pede que
Fabinho se aproxima e pergunta ela defina “o que é estilo”. A resposta
enciumado: “Quem você disse que não podia ser mais banal: “Gente, estilo
ama?”. Em seguida, pergunta pela mãe: não tem segredo, não tem o que
“A que horas ela volta?” Val abraça inventar. Estilo é você se conhecer, se
Fabinho com carinho: “Sei não...” A assumir, né? Por isso eu acredito que
condição necessária para que Fabinho estilo é ser quem você é”. Ao que o
tenha carinho de mãe à disposição 24 repórter responde extasiado:
horas por dia e que Bárbara possa “Maravilha! Você é mesmo Bárbara!”.
trabalhar é que a maternidade de Val
Finalmente, Fabinho, mesmo com todo
seja amputada, mas a ausência de
apoio material e afetivo, não consegue
relações afetivas verdadeiras entre pai,
passar da primeira fase do vestibular da
mãe e filho amputa energia vital à
Fuvest. Fica desolado e não compreende
família. A diferença é que a família
o que aconteceu, principalmente porque
burguesa está confortável na situação e
Jéssica obtém uma pontuação elevada.
beneficia-se com o ocultamento da
Como prêmio, vai estudar inglês por
verdade, ao passo que a família
seis meses na Austrália.
subalterna está dilacerada e, para
reconstituir-se, necessita romper com Tudo começa a mudar com a chegada
aquelas relações. de Jéssica. O quartinho de empregada, a
pequena senzala de Val, é o primeiro
Delineia-se uma posição de fragilidade alvo da indignação da moça, já no
afetiva e psicológica da família percurso do aeroporto para a casa dos
burguesa, incapaz de agregar e patrões: “Tu mora no quartinho dos
promover uma ordem legítima. Trata-se fundos da casa deles? Pelo amor de
de um grupo que vive do rentismo e não Deus, não tô acreditando nisso não! Tá
de qualquer atividade produtiva ou me levando para a casa dos outros?” Ao
criativa, como José Carlos revela à ser apresentada à família, Jéssica
Jéssica em seu ateliê. Ele herdara declara seu desejo de fazer Arquitetura
fortuna do pai “que trabalhou muito”. na FAU – o que, causa indisfarçável
“Aqui todo mundo dança, mas sou eu mal estar. A filha da empregada não
que ponho a música”. Falta a este deveria sequer sonhar em ser arquiteta e
homem energia para acordar de manhã, muito menos tentar. Jéssica esclarece
para pintar seus quadros, atividade que que não teve um bom estudo formal - ao
abandonou sem saber explicar porque, e que Bárbara responde: “Tadinha...” -
para opor-se à esposa em qualquer mas que trabalhara com os tios
situação. É atraído pela juventude e empreiteiros, dispondo, assim, de
vigor de Jéssica e, em uma cena conhecimento prático. Informa, ainda,
patética, ajoelha-se para pedi-la em que um professor de História mudara a
casamento, arrependendo-se e recuando sua cabeça e que acredita “que a
logo em seguida. arquitetura é um instrumento de
mudança social”, para a estupefação da
Bárbara, por sua vez, esta falsa mulher
família, especialmente de Bárbara, que
independente, é ridicularizada na cena
comenta num muxoxo: “Tá vendo? O
em que aparece atuando
país está mudando mesmo...”.
profissionalmente: no dia de seu
aniversário é entrevistada em casa por Segue-se uma série de cenas em que
uma equipe de televisão. O repórter a Jéssica desafia a ordem doméstica,
apresenta como uma “mulher que dita confrontado-se com a mãe e a patroa. A
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primeira tenta transmitir-lhe os códigos mundo, que nem lhe parece um
não escritos que sustentam a hierarquia conhecimento, mas a realidade pura e
natural das coisas e abomina o simples das coisas, em oposição à qual
comportamento da filha como coisa “de tudo é loucura, vai sendo posto à prova
doida, não tem noção de nada!”. A pelo comportamento e ideias de Jéssica,
segunda espera que Jéssica se alinhe que, por exemplo, comenta: “Não sei
naturalmente e obedeça à mãe, aonde é que tu aprendeu essas coisas,
transmissora dos valores dos patrões e fica falando ‘Ah, não pode isso, não
da ordem. Quando percebe seu pode aquilo’. Estava escrito em livro?
insucesso, exerce o poder para Como é que é? Quem te ensinou?”. Val
restabelecer as distâncias e confinar responde: “Isso aí não precisa explicar
Jéssica ao mundo dos empregados. não, a pessoa já nasce sabendo, o que
pode, o que que não pode, tu parece que
As lições de Val são muitas: “Não é é outro planeta!”. E Jéssica replica: “Tô
Bárbara, é dona Bárbara”, “E tu não sabendo! Já nasce sabendo...”.
pode sentar na mesa deles não, rapaz!
Onde já se viu filha de empregada Os embates na casa chegam ao extremo
sentar na mesa dos patrões?”. Val é depois que Jéssica é empurrada na
defensora aguerrida do direito exclusivo piscina por Fabinho e seu amigo
de Fabinho ao seu sorvete de chocolate Caveira e a primeira tentativa de Val e
com amêndoas, mesmo quando José Jéssica alugarem “um quartinho no
Carlos, o pai, magnânimo, diz que “tudo Campo Limpo” fracassa. O retorno das
aqui é nosso”, inclusive de Jéssica. Val duas à casa provoca profundo
não se deixa levar pelas aparências: desconforto em Bárbara e desencadeia
“Quando eles oferecem alguma coisa uma série de ações agressivas. É
que é deles é por educação, porque eles requintadamente humilhante o
têm certeza que a gente vai dizer não”. comentário dirigido em inglês ao
“Se for para tomar sorvete, é desse, que marido na frente de Val, ao saber da
é o nosso” – um sorvete Kibon, mais notícia: “Her gracious little daugther is
barato. E as lições continuam: “Não vá back!”. Em seguida, Bárbara (terá o
olhando para esta piscina não! Que isso nome da personagem sido escolhido ao
aí não é para o teu bico não!”. acaso ou faria alusão à barbárie de
classe no trato com os subalternos?)
A presença e as atitudes de Jéssica, mente alegando que uma amiga virá
porém, obrigam Val a ver as coisas de visitá-los em breve e ocupará o quarto
outra forma. Muito educadamente os de hóspedes, determinando, portanto,
cômodos da casa são todos apresentados que Jéssica passe a dormir com a mãe.
à nova hóspede. Ao constatar a Informa também que fora encontrado
existência de um quarto de hóspedes um rato na piscina, que estava sendo
vazio (“mais uma suíte!”), a moça esvaziada e desinfetada. No quarto de
mostra-se interessada em ocupá-lo, empregadas, a moça chama novamente
interesse percebido por José Carlos, por a mãe à consciência: “Sinceramente,
sua vez interessado na própria moça, não sei como você aguenta”. Val:
que lhe oferece o cômodo. A cena “Como é que eu aguento o que?”
revela a crueldade das desigualdades Jéssica: “Ser tratada desse jeito, como
sociais: a suíte vazia e a empregada na cidadã de segunda classe. Isso aqui é
senzala. Val protesta, mas a concessão pior do que a Índia”. Val: “Não vem
está feita – temporariamente. O com essas conversas difíceis, esse
conhecimento que Val construiu do negócio de Índia não, que tu é que é
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metida, isso é que tu é”. Jéssica: “Isso reprovado na primeira fase do
tudo é muito escroto, isto sim”. vestibular. Jéssica não teve uma boa
escola, mas aprendeu na prática com os
A humilhação de ter sido comparada a
tios empreiteiros. Não apenas já não é
um rato é percebida por Jéssica e por
virgem, como é mãe. E prepara-se para
mais ninguém. Em conversa com
o vestibular estudando com afinco, mas
Fabinho à beira da piscina, ela pergunta:
também não admitindo humilhações e
“Tu acha que eu sou um rato?”. A
saindo da casa de Bárbara em baixo de
denúncia da violência simbólica vai
chuva forte na véspera do exame, sem
ainda mais longe na cena em que Val,
destino certo: “Eu dou um jeito, não
Jéssica e a cadela Meg estão na cozinha
tenho medo de chuva!”. Representa a
e Val enxota Meg comentando: “Ela
rebeldia, a denúncia da barbaridade
está com uma catinga, que ela cai na
contida nos preceitos de uma ordem
piscina e não seca direito”. Assim,
cuja racionalidade é a manutenção
sugere-se que a família não sente
egoísta da concentração dos privilégios,
aversão de compartilhar a piscina com a
do dinheiro e do poder – a piscina, o
cadela, mas sim com a filha da
sorvete de chocolate com amêndoas, o
empregada.
quarto de hóspedes. Representa, ainda, a
Os conflitos chegam ao paroxismo força conferida pelo domínio da palavra
quando Bárbara flagra Jéssica se – assim como no rap. O que parece
servindo do sorvete do filho: “Por isso estar em jogo são os limites da
que o sorvete do Fabinho acaba!”. Em “revolução dentro da ordem”: a
seguida, Bárbara tem uma conversa com possibilidade de um certo grau de
Val. Neste diálogo, fica claro o que está democratização do acesso à educação e
em jogo: “Ô Val, pode não parece, mas aos direitos encontra uma reação que
esta casa ainda é minha”, e é pela dureza e egoísmo evoca a noção de
estabelecido um apartheid: Jéssica deve “autocracia burguesa”. O que Jéssica
manter-se da porta da cozinha para simboliza e representa se insinua na
dentro. cena em que Val recolhe seus objetos
do quarto de hóspedes e folheia o livro
Toda esta sequencia de embates deixa que a filha encontrara na estante de José
claro que Jéssica representa muito mais Carlos e pedira emprestado,
do que a via da ascensão social pelo comentando que sempre quisera lê-lo.
estudo. Representa um novo Nordeste, Trata-se de Viva o Povo Brasileiro, de
que já perdeu o encantamento pelo “Sul João Ubaldo Ribeiro.
Maravilha” e busca seu caminho
histórico, inclusive votando Se bem que o filme de Anna Muylaert
majoritariamente por mudanças sociais; apresenta as mudanças impulsionadas
representa uma nova geração, com mais pelo incentivo ao consumo durante os
acesso aos estudos e à consciência três últimos governos do Partido dos
política; representa a força da mulher Trabalhadores, assim como as políticas
trabalhadora e do povo brasileiro em de expansão do ensino superior, a
ascensão, porque mais ligado à vida diretora não faz uma exaltação acrítica
concreta e às atividades produtivas. É do projeto governamental. Por um lado,
isto que a Diretora parece sugerir deixa entrever as possibilidades
quando comparamos os dois filhos de escassas de desfrute dessa ampliação do
Val: o filho postiço e a filha natural. O consumo: a Val, no seu ínfimo
primeiro, sempre paparicado, não quartinho, acumula eletrodomésticos de
consegue iniciar sua vida sexual e é última geração que não consegue
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desempacotar. Enquanto o acesso à filme se completa com o samba
moradia depende do abandono da bossanovista da Banda Eddie,
profissão que exige presença e apresentado enquanto passam os
disponibilidade 24 horas por dia na créditos finais. Eis aqui a letra: “Essa
residência dos empregadores. Por outro trouxa não é sua- Deixa essa vassoura e
lado, e mesmo havendo caminhos para vem depressa/Vem para o que te
o acesso ao ensino superior privado, interessa/Em teu mundo funcionar/Solta
como o FIES (programa de crédito esse cabelo e te alegra/Quando é que a
educativo), o PROUNI (vagas nas gente erra/Vendo a vida melhorar?/Olha
universidades privadas com renúncia o mundo inteiro está com pressa/Vem
fiscal) e, ainda, para o acesso ao ensino ter o que te interessa/Vem prá junto do
superior público, com a expansão das gostar/Deita, conta tudo que te
universidades federais, Jéssica escolhe o faça/Uma pessoa mais sensata/Vem
caminho mais difícil, que é o de prestar comigo levantar/Solta esse cabelo e te
vestibular na Faculdade de Arquitetura alegra/Quando é que a gente erra/Tendo
e Urbanismo da USP, espaço o mundo melhorar?/E larga que essa
“reservado” para os filhos da elite. Ela trouxa não é sua/Vem cuidar da roupa
“disputa”, num sentido concreto e tua/Tão bonita de usar”. Trata-se,
simbólico, o espaço público do qual a portanto, da possibilidade de
elite fez seu espaço particular. recuperação da dignidade, da
humanidade da empregada subalterna,
Dentre os feitos de Jéssica, mais não apenas pelo estudo, portanto, pelo
importante do que o sucesso na primeira esforço por uma afirmação dentro das
fase do vestibular são as mudanças que regras do jogo, mas também pela
provoca na mãe: Val entra na piscina, rebeldia negativa e positiva. A
ainda semiesvaziada e caminha na água probabilidade de Jéssica não repetir a
com a calça arregaçada. Telefona para a história de Val é a revolução possível
filha, fala de seu orgulho por ela e nas condições dadas, uma revolução
informa que está dentro da piscina dos feita por mulheres do povo.
patrões, em que nunca entrara. Pede
demissão do emprego e, na sublime No clipe Boa Esperança vemos,
cena final, serve o café no conjunto de também, a empregada fazendo a
xícaras que dera de presente para refeição com os cães, vemos também a
Bárbara e tomara de volta: “Eu roubei cena do retratinho do filho ausente
de Dona Bárbara”. Será demais guardado na carteira, vemos os códigos
enxergar neste “roubo” uma ação de de conduta dos empregados sendo
legitimidade equivalente à impostos e compreendidos com um
“expropriação dos expropriadores”? simples olhar, na cena em que a patroa
Afinal, Val recupera aquilo que havia determina que a empregada negra use
dado à Bárbara voluntariamente depois uma touca prendendo suas tranças para
de tomar consciência de que “pertencer servir à mesa. Vemos, ainda, assim
à família” da patroa não era bem o que como José Carlos fizera com Jéssica, o
acreditava ser. O gesto de “roubar” as patrão falar coisas ao ouvido da
xícaras para uma “ocasião especial” empregada, um convite ou proposta
para ela, Val, e não para Bárbara, como sexual. Também aparece o exercício do
estava previsto, simboliza a apropriação poder de classe no controle dos corpos e
dos recursos para iniciar sua “nova dos gestos – quando a patroa esfrega o
vida”, mais humana, mais verdadeira, batom da boca da empregada com o
com a filha e o neto. A “mensagem” do guardanapo. Segue-se a rebelião em que
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a ordem simplesmente é virada de sentido de ameaça, de uma teatralização
ponta-cabeça, como nas jacqueries da violência. A letra, as imagens e a fala
medievais e a única motivação parece dos jornalistas ao final parecem
ser a vingança e a destruição: os combinar-se para dizer: não haverá
empregados usam o casaco de pele dos direitos sem luta e sem a mobilização
patrões, fumam seus charutos, queimam do ódio dos oprimidos, principalmente
suas roupas e ficam com suas mulheres. da população negra. A tomada de
A polícia invade o local fortemente consciência sobre as raízes africanas e
armada, enquanto os rebeldes sobre a história dos afrodescendentes no
comemoram seu feito no terraço da Brasil é momento fundamental para a
mansão, em cena que evoca as rebeliões mudança.
nos presídios. Tudo parece esgotar-se na Ambas as obras colocam na ordem do
defesa da legitimidade da vingança, da
dia o nó da dominação de classe, de
explosão do ódio da população negra gênero e racial. Este nó é crucial no
oprimida, explorada e humilhada. A
capitalismo dependente, uma vez que
mensagem ganha outro significado, associa a exploração do trabalho
porém, quando, ao final, as vozes
produtivo e reprodutivo. O trabalho
sobrepostas de locutores de vários reprodutivo e de serviços está no cerne
jornais noticiam a rebelião:
do assunto que nos ocupa: o trabalho
- “Empregadas domésticas de uma doméstico pago, mal pago e não pago.
mansão se rebelaram e fizeram seus Ele está na base da superexploração,
patrões de reféns hoje à tarde...”. garantindo uma grande reserva de força
- “Segundo relatos de vizinhos, a de trabalho, seja na forma de população
rebelião começou na hora do excedente, seja na forma de exército de
almoço e se estendeu durante toda a reserva. Assim, direta ou indiretamente,
tarde...” . favorece o arrocho salarial e cria força
- “Informações preliminares dão de trabalho disponível para o setor
conta de que casos simultâneos terceirizado da economia, permitindo ao
estão ocorrendo em oito estados do capital lucros extraordinários em vários
país...” . ramos da economia.
- “Entre as reivindicações estão É significativo que a luta de classes no
mais respeito, dignidade e melhores Brasil de hoje apareça em filmes que
condições de trabalho...” . tratam de conflitos de empregados
- “As empregadas que deram domésticos, do setor de serviços. A
origem ao motim não foram configuração das classes trabalhadoras
encontradas pela política e estão brasileiras mudou. Em um Brasil em
foragidas...” . que o peso e a concentração operária
- “Apesar do susto, não há registro muito se reduziu em relação ao que foi
de feridos graves...” . até os anos 1980, o cinema nos ajuda a
decifrar a gramática das novas formas e
O “programa” sugerido, portanto, é
possibilidades da luta de classes.
também o da “revolução dentro da
ordem” (mais respeito, dignidade e
melhores condições de trabalho), com o Recebido em 2015-10-30
recurso, porém, à contraviolência dos Publicado em 2016-05-16
oprimidos, à ação coletiva, mais com o
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