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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

THAYS ALMEIDA MONTICELLI

“EU NÃO TRATO EMPREGADA COMO EMPREGADA”:


EMPREGADORAS E O DESAFIO DO TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO

CURITIBA
2017
THAYS ALMEIDA MONTICELLI

“EU NÃO TRATO EMPREGADA COMO EMPREGADA”: EMPREGADORAS E O


DESAFIO DO TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO

Tese apresentada como requisito parcial à obtenção de grau de


Doutora em Sociologia, Programa de Pós-graduação em Sociologia,
Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Profa. Dra. Marlene Tamanini.

CURITIBA
2017
THAYS ALMEIDA MONTICELLI

“EU NÃO TRATO EMPREGADA COMO EMPREGADA”: EMPREGADORAS E O


DESAFIO DO TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO

Tese aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutora no Curso de Pós-
Graduação em Sociologia, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do
Paraná, pela seguinte banca examinadora:

Orientadora: Profª. Dra. Marlene Tamanini


Universidade Federal do Paraná- PR

Profª. Dra. Jurema Gorski Brites


Universidade Federal de Santa Maria-RS

Profª. Dra.Sônia Roncador


The University of Texas at Austin -TX

Profª. Dra. Beatriz Polidori Zechlinsk


Pontíficia Universidade Católica do Paraná- PUCPR

Profª. Dra. Siomara Aparecida Marques


Universidade Federal da Fronteira Sul –SC

Suplente: Prof. Dr. Pedro Rodolfo Bodê de Moraes


Universidade Federal do Paraná -PR

Curitiba, 30 de março de 2017


AGRADECIMENTOS

O processo que se encerra aqui expande-se para além dos quatro anos de doutorado que
pude cursar na Universidade Federal do Paraná -PR. Há exatamente 10 anos eu me inscrevia na
faculdade de Ciências Sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora-MG, e durante todo esse
percurso eu pude contar com um ensino superior gratuito, de qualidade e com financiamento para
participar de bolsas de iniciação científica, para realizar dois anos de pesquisa durante o mestrado
e quatro anos de doutorado, com período sanduíche de um ano nos Estados Unidos. Eu,
primeiramente, agradeço aos esforços do governo Lula (2003-2012) e Dilma (2011-2016) ao
promover uma educação ampla, inclusiva e com diversos incentivos. Eu pude me dedicar
exclusivamente aos meus estudos, por 10 anos, porque tive as bases financeiras e políticas para
isso. (Fora Temer!).

Eu sou imensamente grata a oportunidade de trabalhar com professoras que além de


lecionar e me orientar, são uma inspiração para a vida. Muito obrigada Professora Marlene
Tamanini, que há anos vem acompanhando o desenvolvimento das ideias, da pesquisa e dos meus
processo pessoais. Um longo caminho de encontros, desencontros, debates, insistências e
paciência.

Agradeço também a Professora Jurema Brites, que além de me abrir e apresentar o caminho
do campo, sempre esteve presente por meio de suas obras, reflexões e oportunidades de
trabalharmos juntas. Eu não posso deixar de agradecer as imensas contribuições da Professora
Sônia Roncador, que calorosamente me recebeu por um ano na Universidade do Texas em Austin,
me incentivando e potencializando as reflexões teóricas da tese. Professora Miriam Adelman, que
acompanhou todo meu percurso, muito obrigada por me encorajar a ir além sempre!

Os açucares e afetos são a base que sustentaram a pesquisadora e essa pesquisa durante
anos. Não há palavras suficientes para agradecer as amigas que estiveram comigo em cada
momento de dificuldade, de alegria, escutando, sorrindo e chorando juntas. Carolina Ribeiro, você
que pegou na minha mão, arrumou as malas junto comigo, leu meu texto, releu e me apoiou sempre
em um afeto incondicional, obrigadíssima! Ana Maria Palma, que lindeza é ter você
compartilhando cada diálogo e reflexão comigo, às danças, ao carnaval, aos jogos de futebol e à
essa amizade doce, um brinde! E Giovana Sanchez, o presente de Austin para a vida, muito
obrigada, do fundo do coração, por estarmos juntas e sustentando essa linda amizade e
companheirismo (mesmo com insistentes milhões de quilômetros entre nós), contar com seu apoio,
ajuda, carinho e força foi imprescindível! Queridas, vocês são preciosas!

Os afetos admiráveis da Carol, Aline e Mari! O obrigadíssimo para a Claúdia, com quem
pude dividir bem mais que um quarto e para o Cláudio, Leo, Diego e Lucia que me deram tanto
suporte! Que muitos outros encontros venham por aí! À todas estudantes do Núcleo de Estudos de
Gênero da UFPR, muito obrigada pelo companheirismo na luta e na resistência em realizar nossas
pesquisas em um espaço sociológico tão fechado e marcado por machismos de diversas ordens.
Vocês seguem inspirando! E muito obrigada aos queridíssimos amigos e amigas do Departamento
de Espanhol e Português da Universidade do Texas- Austin, eu sempre serei grata pela maneira
como me acolheram e receberam.

A minha família querida, que sempre me deu força e apoio incondicional. Bárbara, João,
Vó Santinha, Daniel, Alice e Fran...muito obrigada mesmo! Estamos juntos!

Por último, eu gostaria de agradecer a todas as patroas com que eu fiz essa pesquisa, não
somente as entrevistadas, mas todas as mulheres que me cercam e que, de alguma forma,
compartilharam seus desejos, ânsias, expectativas e frustrações comigo. Eu espero que um dia,
todas nós, possamos ter um lar onde a igualdade seja uma realidade.
“Triste louca ou má”
Será qualificada
Ela quem recusar
Seguir receita tal

A receita cultural
Do marido, da família
“Cuida, cuida da rotina”

Só mesmo rejeita
Bem conhecida receita
Quem não sem dores
Aceita que tudo deve mudar

Que um homem não te define


Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar

Que um homem não te define


Sua casa não te define
Sua carne não te define

Ela desatinou
Desatou nós
Vai viver só

Eu não me vejo na palavra


Fêmea: Alvo de caça
Conformada vítima

Prefiro queimar o mapa


Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar

E um homem não me define


Minha casa não me define
Minha carne não me define
Eu sou meu próprio lar

Ela desatinou
Desatou nós
Vai viver só

Triste, Louca ou Má- Francisco, El Hombre


RESUMO

Essa tese é o resultado da pesquisa realizada entre os anos de 2013 a 2017, visando compreender
um quadro de ilegalidade nos contratos que envolvem o trabalho doméstico remunerado, mantendo
um grande número de mulheres sem a garantia de seus direitos trabalhistas. Para isso, foi traçado
como linha empírica da pesquisa tomar o conjunto cultural que envolve o ambiente doméstico,
percebido como um importante lócus analítico que pudesse envolver os aspectos de
reconhecibilidade legislativos. O principal objetivo desse trabalho é analisar as configurações,
reconfigurações e/ou reiterações da “cultura doméstica” nos seus pressupostos ligados as
representações, símbolos e compreensões do que é considerado a “casa ideal” para as
empregadoras de trabalhadoras domésticas remuneradas, assim como suas práticas cotidianas
domésticas. E compreender como essas práticas, lógicas, pensamentos e discursos constroem
subjetividades e expectativas, embasando as negociações cotidianas e contratuais entre patroas e
trabalhadoras. De acordo com a pesquisa de campo realizada com patroas na cidade de Curitiba-
PR, assim como as análises das pesquisas sobre o tema, obras literárias, manuais, revistas, filmes
e documentários podemos perceber como a “cultura doméstica” pauta um complexo jogo de
negociações que envolvem poderes, posições, afetos, intimidades, doações, gratidão e
necessidades que se interpõem nos acordos contratuais de trabalhadoras domésticas remuneradas,
fazendo outros sentidos para além da legislação e que reproduz diversas desigualdades.

Palavras-Chave: Patroas; Empregadoras; Empregadores; Trabalho Doméstico Remunerado; PEC


das Domésticas; Negociações.
ABSTRACT

This dissertation is the result of research conducted between 2013 and 2017, aiming to understand
the illegality in contracts involving paid domestic work, keeping a large number of women without
their labor rights. It was developed a line of research through domestic cultural issues, being
perceived as an important analytical locus that could involve aspects of legislative recognition.
The main objective of this dissertation is to analyze the configurations, reconfigurations and
reiterations of the “domestic culture”, in its assumptions related to representations, symbols and
understandings about what is considered "ideal home" for the employers of paid domestic workers,
as well as their daily practices; and also understand the connection between practices, logics,
thoughts, discourse and subjectivities and expectations, underpinning daily and contractual
negotiations among patroas and workers. According to the research field in Curitiba-PR, as well
as analyzes of researches, literature, manuals, magazines, movies and documentaries, we can see
how the “domestic culture” establish a complex negotiation that involve powers, positions,
affections, intimacies, donations, gratitude and demands; and all of this issues are interposed in
paid domestic work contractual agreements, making other meanings beyond legislation and
reproducing inequalities.

Key-words: Employers; Paid Domestic Work; Domestic Legislation; Negotiations.


RESUMÉ

Cette thèse est le résultat de recherches menées entre les années 2013-2017, pour comprendre
l'illégalité concernant le travail domestique, la tenue d'un grand nombre de femmes sans la garantie
de leurs droits du travail. Pour cela, il a été tracée la ligne de la recherche prend l'ensemble culturel
qui implique l'environnement familial, être perçu comme un locus analytique important qui
pourrait impliquer les aspects de reconnaissabilité législatif. L'objectif principal de cette étude est
d'analyser les paramètres, les reconfigurations et réitérations de la “culture domestique” dans leurs
représentations, symboles et la compréhension de ce qui est considéré comme la «maison idéale»
pour les employeurs de travailleurs domestiques rémunérés, ainsi que leur pratiques quotidiennes
domestiques. Et comprendre le lien de la façon dont ces pratiques, la logique, les pensées et les
discours construisent des subjectivités et des attentes, fondant tous les jours et les négociations
contractuelles entre les patroas et les travailleurs. Selon entretiens avec employant dans la ville de
Curitiba-PR, ainsi que l'analyse de recherches, littérature, livres, magazines, films et
documentaires, nous pouvons voir comment l'ordre du jour "culture domestique" un jeu complexe
négociations impliquant les pouvoirs, les positions, l'affection, l'intimité, les dons, la gratitude et
les besoins qui se tiennent dans les dispositions contractuelles des travailleurs domestiques
rémunérés, ce qui rend les autres sens au-delà de la législation et reproduit de nombreuses
inégalités.

Mots-clés: Employant; Travail Domestique Rémunéré; Droits du Travail; Négociations.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Quadrinho Sobre O Trabalho Doméstico E Lucro 81


Figura 2 - Planta De Um Apartamento Com “Quarto Reversível” 108
Figura 3 - Lucimar E A Mãe De Luís Felipe Ainda Crianças 125
Figura 4- Lucimar Na Cozinha E A Mãe De Luís Felipe (Sua Patroa) 126
Figura 5 - Capa Da Revista Veja Sobre A “Pec Das Domésticas” 135
Figura 6 - Post De Alyne Em Seu Blog (Coisas Da Alyne) Sobre Os Produtos De Limpeza Usados
Na Lavagem Do Banheiro. 157
Figura 7 - Casal Leva Babá Em Protesto 209

Quadro 1 - Dados Gerais E Socioeconômicos Das Empregadoras 52


Quadro 2 - Taxas De Pagamento Com A “Pec Das Domésticas” Para Empregadores 202
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 13
1 DISCURSOS, CONTEXTO E O TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO:
APRESENTANDO OS APORTES CONCEITUAIS, A METODOLOGIA E AS
POSICIONALIDADES ......................................................................................................... 19

1.1 CULTURA DOMÉSTICA: COMO PENSAR? ..................................................................... 27

1.1.1 Considerações e Percepções Históricas sobre a “Cultura Doméstica” ......................... 27


1.1.2 Configurações e Reconfigurações da “Cultura Doméstica” .......................................... 33

1.2 METODOLOGIA: POSIÇÕES E APRESENTAÇÕES DO CAMPO .................................. 37

1.2.1 O Trabalho de Campo e a Pesquisadora ......................................................................... 38


1.2.2 As Entrevistas ..................................................................................................................... 45
1.2.3 Análise Socioeconômica das patroas entrevistadas ........................................................ 53
1.2.4 As Obras ............................................................................................................................. 61

2 VOZES DISSIDENTES, PRÁTICAS CONVERSADORAS: AS ANÁLISES E AS


PRODUÇÕES SOBRE O TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO NOS ANOS 70
E 80 .......................................................................................................................................... 64

2.1 O CONTEXTO DA RUPTURA: O FEMINISMO E SEU CARÁTER HIBRIDO POLÍTICO


............................................................................................................................................... 66

2.1.1 As Patroas da Década de 70 e 80 – entrada no mercado de trabalho, poder aquisitivo e


desigualdade ................................................................................................................................ 72

2.2 A CONTINUIDADE: O FEMINISMO E SEU CARÁTER CONSERVADOR DOS ANOS 70


E 80 ........................................................................................................................................ 86

3 PENSANDO A DIFERENÇA E A DESIGUALDADE: OS MINUCIOSOS TRABALHOS


DAS DÉCADAS DE 90 E 2000 .................................................................................................. 90

3.1 DELIMITANDO OS ESPAÇOS E AS DIFERENÇAS: AS PATROAS REIVINDICAM O


SEU LUGAR ......................................................................................................................... 94
3.2 AS DIFERENÇAS SÃO ANALISADAS DIFERENCIALMENTE ................................... 109
4 VOZES QUE ECOAM: AS PRODUÇÕES DECOLONIAIS CONTEMPORÂNEAS .. 112

4.1 QUEM FALA E QUEM ESCUTA....................................................................................... 115


4.2 TEM UM RATO NA PISCINA ........................................................................................... 121
4.3 AGORA VAMOS TER QUE LAVAR OS PRATOS? ........................................................ 134

5 “NOVAS” PRÁTICAS, “NOVOS” DISCURSOS E AS EXPECTATIVAS SOBRE O


TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO: AS RECONFIGURAÇÕES DA
“CULTURA DOMÉSTICA” .............................................................................................. 137

5.1 AS PATROAS E SUAS CASAS: POSIÇÕES, NEGOCIAÇÕES E VIDA COTIDIANA . 138


5.2 “EU NÃO TRATO EMPREGADA COMO EMPREGADA” – AS RECONFIGURAÇÕES
DA CONVIVÊNCIA COM A TRABALHADORA DOMÉSTICA REMUNERADA ..... 149

5.2.1 Limpeza e Alimentação: Como Fazer e Quem Pode Comer........................................ 151

5.3 “EU NÃO GOSTO DE MANDAR, EU NÃO QUERO FICAR FALANDO” – A


AUTONOMIA DA TRABALHADORA COMO PONTO DE RECONFIGURAÇÃO DA
“CULTURA DOMÉSTICA” ............................................................................................... 165

6 O TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO NA MIRA DOS DIREITOS


TRABALHISTAS: AS FACETAS DAS RECONFIGURAÇÕES E REITERAÇÕES DA
“CULTURA DOMÉSTICA” .............................................................................................. 174

6.1 A LUTA POR DIREITOS TRABALHISTAS: RESISTÊNCIAS, EMANCIPAÇÃO


POLÍTICA, ACORDOS E NEGOCIAÇÕES ..................................................................... 175
6.2 DIREITOS TRABALHISTAS, AFETOS E NOSTALGIA ................................................. 181

6.2.1 Doações, Roubos e Direitos Trabalhistas ....................................................................... 188


6.2.2 Vida Cotidiana e Direitos Trabalhistas.......................................................................... 201

6.3 AFETO, DIREITOS E A DESIGUALDADE NA VIDA COTIDIANA ............................. 208

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 216


REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 221
13

INTRODUÇÃO

Essa tese se concretiza através de um longo caminho de encontros e desencontros com o


tema, com as teorias e com os meus próprios limites políticos enquanto pesquisadora e feminista,
exigindo reposicionamentos, desconstruções, reformulação do projeto de pesquisa e do próprio
olhar sociológico relativo ao trabalho doméstico remunerado.
Cheguei ao doutorado, depois de uma longa trajetória realizando pesquisas sobre o tema1,
com um projeto inicial que tinha como objetivo fazer uma análise minuciosa sobre os mais de 40
anos de produção e pesquisa acadêmica em relação ao trabalho doméstico remunerado no Brasil,
visibilizando assim obras e escritoras que eram marginalizadas e ressaltando seus contextos, bases
epistêmicas e construções políticas, para mostrar como e onde essa produção foi construída e seus
possíveis limites frente a essa complexa relação trabalhista que envolve aspectos de ilegalidade
legislativa, emoções, afetos, desigualdades de classe e étnico-raciais; compreendo que a análise
dessas obras foi um importante lócus interpretativo das posicionalidades sociológicas e do
movimento feminista perante o trabalho doméstico remunerado.
O exercício de seleção e análise das obras e pesquisas acadêmicas, investigação
contextual e identificação de outras produções culturais que envolviam o tema, como na literatura,
peças teatrais, documentários, filmes, manuais escritos por donas-de-casa me fez visualizar outras
posicionalidades, discursos e compreensões sobre o trabalho doméstico remunerado. Em um
momento inicial, tive a mesma sensação descrita por Antônio Flávio Pierucci em seu livro “Ciladas
da Diferença” (1990), uma desagradável surpresa em perceber que o discurso conservador pouco
se alterou ou modificou ao longo do tempo no Brasil. Pierucci (1990) faz uma comparação entre
os discursos proferidos pela população que se declarava de direita nos anos 80 no país com o
discurso predominante do homem inglês de 1940, mostrando suas incríveis similaridades. No meu
caso, algumas palavras, expressões, pensamentos, ações das patroas dos anos 60,70,80 e 90,
extraídas dessas produções culturais e pesquisas acadêmicas, eram idênticas aos das empregadoras
contemporâneas, principalmente nos contextos onde a categoria profissional de trabalhadoras

1
O tema já vem sendo meu objeto de pesquisa desde que recebi uma bolsa de iniciação científica, no ano de 2009,
ainda na graduação, para trabalhar em uma pesquisa com as trajetórias das militantes dos Sindicatos de
Trabalhadoras Domésticas, coordenado pela Professora Jurema Brites. Depois, realizei uma pesquisa sobre as novas
configurações trabalhistas e afetivas entre as diaristas durante o mestrado, na Universidade Federal do Paraná com o
nome “Diaristas, Afeto e Escolhas: Ressignificações no Trabalho Doméstico Remunerado” (2013).
14

domésticas remuneradas conquistava garantias de direitos, o que era visto como algo totalmente
desproporcional frente a “falta” de profissionalismo das trabalhadoras domésticas remuneradas.
Essa realidade se mostrou um tanto quanto surpreendente para mim, uma vez que as
transformações e as reconfigurações em relação ao trabalho doméstico, à família e,
consequentemente, ao trabalho doméstico remunerado tem se mostrado em uma maneira mais
dinâmica, com uma marcante inserção das mulheres no mercado formal de trabalho, em que os
aparatos legislativos e de direitos para a categoria profissional se tornaram amplos e igualitários,
além de críticas cada vez mais contundentes sobre a maneira como este trabalho é estabelecido no
país, ocupando cada vez mais espaço nas mídias e imprensa, nesse contexto ainda soma-se
contratações que já não estabeleciam vínculos cotidianos, como por exemplo, o aumento de
diaristas nesse setor. Perante esse cenário que se apresenta com características legislativas
modernas, relações trabalhistas com vínculos que não se baseiam totalmente em dependências e
obediências e as novas configurações familiares, tanto o discurso e práticas advindas dessas
patroas, como o baixo número de contratações legais estabelecidas no país (30% das trabalhadoras)
mostravam uma faceta conservadora em relação ao trabalho doméstico remunerado no Brasil, que
reproduziam hierarquias e desigualdades.
Assim, no processo reflexivo desses discursos, práticas, expectativas e desejos das
patroas, como nos dados estatísticos relacionados a essa categoria profissional, eu tive como
hipótese que há uma “cultura doméstica” no Brasil. Essa “cultura doméstica” estabeleceria tanto
as práticas cotidianas dos lares, os pressupostos de intimidade e cuidados, quanto a própria
compreensão de direitos trabalhistas. Essa “cultura doméstica” é intrinsicamente formada nas
relações de poder familiares, da divisão sexual do trabalho e constitui subjetividades e
posicionalidades da patroa e da trabalhadora, construída nas interações da vida cotidiana e
carregando em si as falsas dicotomias instituídas entre público e privado. Essa cultura que permeia
as relações com o doméstico estaria diretamente conectada com as percepções e reconhecimentos
legislativos, pautando as negociações entre patroas e trabalhadoras em uma complexa rede
meritocrática, da qual interpõem-se afetos, doações, lealdade e dependências.
Apreendendo então que a “cultura doméstica” estaria conectada com as dificuldades de
estabelecer um contrato formal de trabalho nessas relações empregatícias, mantendo o baixo
número de trabalhadoras que acessam de fato seus diretos, essa tese tem como pergunta central
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compreender por quais razões uma legislação trabalhista tão abrangente em direitos não consegue
adentrar de fato as lógicas cotidianas domésticas?
De tal modo, o principal objetivo dessa tese é analisar a “cultura doméstica” nos seus
pressupostos ligados as representações, símbolos e compreensões do que é considerado a “casa
ideal” para as empregadoras de trabalhadoras domésticas remuneradas, assim como suas práticas
cotidianas domésticas. Busco então visualizar como essas práticas, lógicas, pensamentos e
discursos constroem subjetividades e expectativas, embasando as negociações cotidianas e
contratuais entre patroas e trabalhadoras e como se conectam com os pressupostos de
reconhecibilidade dos direitos trabalhistas.
Para realizar tal pesquisa, três objetivos específicos foram formulados para assim cumprir
com as exigências do caminho empírico e do objetivo central da tese: 1- Analisar as narrativas,
discursos, práticas e lógicas das empregadoras em relação ao trabalho doméstico, maternidade,
casamento e responsabilidades enquanto trabalhadoras inseridas no mercado de trabalho formal,
para assim visualizar suas compreensões, posicionalidades e subjetividades frente as demandas
exigidas entre as esferas públicas e privadas, e como estas afetam suas percepções e exigências de
como deve ser e estar o “lar”; 2- Analisar os discursos, exigências, desejos e expectativas das
empregadoras em relação ao trabalho doméstico remunerado e a trabalhadora doméstica
remunerada, para podermos compreender como as práticas e lógicas cotidianas podem estar
conectadas com a falta de reconhecibilidade dos direitos trabalhistas desta categoria. 3- Analisar
as percepções das empregadoras em relação a ampliação dos diretos trabalhistas recentemente
aprovados para a categoria de trabalhadoras domésticas remuneradas, para compreender tanto os
desafios, empecilhos para contratação legal, como para visualizarmos se esta passa por
negociações de ordem subjetivas e afetivas.
A conceptualização epistemológica e metodológica da construção empírica dessa
pesquisa, assim como os meus posicionamentos frente ao campo, a maneira como ele me afetou e
foi afetado pelas minhas percepções políticas estão no primeiro capítulo intitulado: “Discursos,
Contexto e o Trabalho Doméstico Remunerado: Apresentando os Aportes Conceituais, A
Metodologia e as Posicionalidades”. Essa tese parte de dois materiais distintos de análise:
entrevistas semi-estruturadas com 15 empregadoras na cidade de Curitiba-PR durante o ano de
2015, que possibilitou visualizarmos as demandas e necessidades que a vida prática cotidiana
residencial e familiar exige, suas compreensões sobre a nova legislação trabalhista para as
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trabalhadoras domésticas remuneradas e seus pontos de vista e expectativas sobre o que


consideram a contratação de um trabalho de qualidade para suas casas. Nesse capítulo também
apresento os dados socioeconômicos, perfil e singularidades das patroas entrevistadas. O outro
material utilizado na tese é a análise das pesquisas realizadas sobre o tema no Brasil, assim como
a literatura, manuais, filmes e novelas que abordam o tema desde a década de 70 no país. A análise
dessas obras se justifica para além de uma revisão de literatura, porque foram extraídos verdadeiros
conteúdos empíricos que nos possibilitaram fazer conexões e conclusões analíticas em referência
as configurações e reconfigurações da “cultura doméstica”.
Assim, seguem-se três capítulos de análise sobre o comportamento e práticas das
empregadoras e suas expectativas em relação ao trabalho doméstico remunerado através da revisão
das obras acadêmicas sobre o tema, de manuais, livros, documentários, novela e filmes desde os
anos 70. Nesses três capítulos, foi tomado como uma corrente norteadora de investigação as
práticas cotidianas no ambiente residencial que instituem uma representação do que seja uma
limpeza, cuidado e preparação de alimentos de qualidade e das características que uma
trabalhadora doméstica remunerada deveria ter e ser para servir e trabalhar em uma casa, de acordo
com as empregadoras. Assim, busquei retirar os dados e entrelinhas onde foi possível perceber as
concepções do fazer doméstico pelas patroas, principalmente frente a um contexto de mudanças
legislativas, compreendendo assim as configurações e reconfigurações da “cultura doméstica”.
Desse modo, o segundo capítulo da tese “Vozes Dissidentes, Práticas Conversadoras: As
Análises e as Produções sobre o Trabalho Doméstico Remunerado nos anos 70 e 80” traz as
narrativas, dados empíricos e pontos de vistas das empregadoras de trabalhadoras domésticas
remuneradas, extraídas tanto das obras produzidas pelas pesquisadoras quanto por diversos
manuais domésticos escritos por donas-de-casa, que tinham por objetivo facilitar a vida de jovens
mulheres casadas da classe média brasileira no período, demostrando os aspectos de configuração
e reconfiguração da “cultura doméstica”. Juntamente com essas narrativas, é feito uma
apresentação da entrada de uma nova maneira de pensar as relações de exploração e trabalho e
uma releitura do marxismo, unindo esse conteúdo ao contexto político social que o país passava –
final da ditadura militar – e como os movimentos de mulheres e feministas estavam começando a
se articular com essas novas concepções políticas e teóricas. Essas obras pioneiras forjaram a
entrada de novas percepções sobre o processo de fazer ciência nas Ciências Sociais no Brasil,
abrindo espaço para um campo analítico maior, reflexivo e não objetivista, mas que por outro lado
17

mostrava uma faceta conservadora que não conseguiu romper com estruturas violentas de
desigualdades estabelecidas nas relações entre empregadoras e trabalhadoras domésticas
remuneradas. Apresentar como as críticas foram instituídas ao tema é também compreender os
limites que estas possuem.
Já o terceiro capítulo “Pensando a Diferença e a Desigualdade: Os Minuciosos Trabalhos
das Décadas de 90 e 2000” traz etnografias que relatam os detalhes das relações e interações entre
empregadoras e trabalhadoras domésticas remuneradas, que permitiu a essa pesquisa encontrar
minúcias nos discursos e nas práticas das empregadoras que produziam e reproduziam
diferenciações e hierarquizações. Essas etnografias foram fundantes de novos espaços de escuta e
de percepções sobre a subalternidade, pautadas pelos discursos e por teorias que assinalavam a
diferença entre sujeitos, posicionalidades e contextos. Um debate extremamente enriquecedor e
que conta com detalhes etnográficos preciosos que nos mostraram as minucias da “cultura
doméstica”.
O quarto capítulo denominado “Vozes que Ecoam: As Produções Decolonais
Contemporâneas” buscou, através de produções culturais midiáticas de grande repercussão e das
pesquisas sobre o tema, compreender tanto o contexto de mudanças econômicas e de estruturas
políticas para as trabalhadoras domésticas remuneradas, como o discurso das empregadoras frente
a essas modificações no cenário do trabalho doméstico remunerado no país. Podemos perceber
nesse momento que o principal objetivo das obras acadêmicas e produções midiáticas era dar voz
às camadas mais subordinadas dessa relação, compreender suas lógicas e estratégias, saindo do
lugar coadjuvante para se tornarem protagonistas. As discussões étnico-raciais começam a tomar
outra forma, mas ainda de modo liminar. O que nos pareceu claro então, foi uma resistência da
classe empregadora em assimilar essas mudanças, o que tem ocasionado em conflitos, consensos
e negociações nas residências brasileiras. Nesse aspecto, trazemos nesse capítulo as
reconfigurações da “cultura doméstica” no contexto “moderno” e contemporâneo.
Seguindo com essa mesma lógica, o quinto capítulo intitulado “Novas” Práticas, “Novos”
Discursos e as Expectativas sobre o Trabalho Doméstico Remunerado: As Reconfigurações da
“Cultura Doméstica”, traz as narrativas, discursos e práticas das empregadoras entrevistadas na
pesquisa no ano de 2015 em Curitiba-PR. O lócus analítico foi compreender as percepções que
essas mulheres tinham sobre suas posições enquanto esposas, mães e gerenciadoras do lar – isso
inclui as exigências em relação ao trabalho doméstico remunerado. Igualmente nesse capítulo é
18

feita uma análise das percepções cotidianas domésticas sobre a vida dessas patroas frente as
demandas como cozinha, limpeza e educação dos filhos e filhas. As reconfigurações da “cultura
doméstica” são demostradas por meio de discursos “modernos” de como uma trabalhadora
doméstica remunerada deve ser tratada, posicionada e como devem ser os serviços prestados por
estas para seu pleno reconhecimento. Assim, percebe-se que muitos dos pressupostos de
diferenciações e hierarquizações se mantem por meio de representações e símbolos, não rompendo
com as desigualdades estruturantes do trabalho doméstico remunerado.
O último capítulo, denominado “O Trabalho Doméstico Remunerado na Mira dos
Direitos Trabalhistas: As Facetas das Reconfigurações e Reiterações da “Cultura Doméstica” vem
justamente mostrar como a “cultura doméstica” está conectada com os pressupostos de
reconhecibilidade dos direitos trabalhistas para essa categoria profissional. Por meio da análise das
narrativas das patroas entrevistadas nessa pesquisa, podemos perceber que parâmetros
meritocráticos são formados através das bases da “cultura doméstica”, que entrelaça em uma
complexa rede de afetos, doações, roubos, fidelidade, emoções e sentimentos compartilhados
dentro de um lar. O baixo número de contratações formais estabelecidas passa também por
questões subjetivas e negociações para além da legislação, fazendo outros sentidos na vida de
trabalhadoras e patroas e reconfigurando desigualdades sociais, econômicas, étnico-raciais em
uma relação fundamentalmente de gênero.
Apresento então “Eu não Trato Empregada como Empregada: As Empregadoras e os
Desafios do Trabalho Doméstico Remunerado”, frase que inclusive escutei diversas vezes nas
entrevistas realizadas, como uma complexa rede analítica que buscou compreender os desafios que
as empregadoras enumeram para que as relações sejam harmoniosamente estabelecidas,
embasadas por uma potente “cultura doméstica”.
19

1 DISCURSOS, CONTEXTO E O TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO:


APRESENTANDO OS APORTES CONCEITUAIS, A METODOLOGIA E AS
POSICIONALIDADES

“Ha, cada vez mais grave, entre nós, a crise dos bons
criados. É uma crise como outra qualquer, e terrivel para
quem precisa conservar uma linha social na sua residencia.
Não ha servidores domesticos nem mesmo regulares. Os
cozinheiros são atrozes, as cozinheiras indescreptiveis, os
copeiros ignoram por completo seu officio, as damas de
companhia, as mucamas, as criadas de quarto não têm
qualificativos quanto ao cumprimento de sua obrigação.
Ha, porem, mais. Cozinheiras e cozinheiros são bêbados e
ladrões, copeiros são gatudos, denunciadores, criminosos
vulgares, a criadagem feminina participa de todos os
vicios e de todos os desequilíbrios”. – João do Rio, 19112.

No dia 25 de Março de 2015 aconteceu na cidade do Rio de Janeiro um curso de


Atualização para Secretárias do Lar. A organizadora do evento, Lisa Mackey3, envolveu-se em
uma polêmica midiática ao dar uma entrevista para Cleo Guimarães – colunista do Jornal OGlobo
– ao responder algumas questões sobre os objetivos propostos pelo curso, dizendo: “as empregadas
perderam a noção do limite. Teve uma que pedi para chegar 7h30 e botar a mesa do café. Ela disse
para mim: eu não! Imagina se eu vou botar mesa de café para madame! Essa falta de limite foi
muito lembrada também na pesquisa que fiz”. (GUIMARÃES,2015, n.p).
Lisa Mackey fez uma pesquisa com 150 patroas entre 35 e 45 anos para mapear as
principais demandas que envolviam “falhas” das trabalhadoras domésticas remuneradas, entre
essas falhas ela listava, por exemplo, “empregada que pendura pano de prato no ombro, que fala
muito no celular e depois diz que não deu tempo de passar a roupa, que se recusa a usar touca e
uniforme ou que ficam falando das tragédias dos lugares onde moram”. (GUIMARÃES,2015, n.p).
O curso de Atualização para Secretárias do Lar tinha o custo de R$550,00, duração de seis horas

2
Rio, João. Vida Vertiginosa. Rio de Janeiro: H. Garnier. 1911. 360 p.
3
Lisa Mackey é uma mulher jovem, aparenta ter trinta e cinco anos, mora no Rio de Janeiro, mas é natural de Rio
Claro (cidade do interior do Rio de Janeiro). Ela é branca, cabelos longos e castanhos, é casada e tem dois filhos
pequenos (um deles nasceu perto do curso ofertado por ela). Trabalha em uma empresa de assessoria e compartilha
de uma vida de classe média alta. Informações retiradas de: <https://www.facebook.com/lisa.mackey.184?fref=ts>
20

e apresentava como principais temas abordados: horário, vestimenta, cuidados pessoais, cuidados
com utensílios, higiene na cozinha e no banheiro, uso de produtos de limpeza, limpeza em geral
(cantos, estantes altas e detalhes), uso de telefone, música e demais comportamentos enquanto
trabalha, organização de geladeira, de armários de cozinha e despensa, dicas para variar o cardápio.
Essa qualificação profissional era necessária, de acordo com Lisa Mackey, porque havia uma
incompatibilidade entre o comportamento de trabalhadoras domésticas remuneradas dentro de seu
ambiente de trabalho com as ordens, desejos e expectativas de suas empregadoras4.
A polêmica nas redes sociais foi gerada especialmente porque o conteúdo desenvolvido
no curso e as declarações da organizadora denotavam perspectivas muito conservadoras,
mostrando-se deslocada em um contexto de mudanças no trabalho doméstico remunerado. É
importante lembrar que o país aprovou em 2013 a Proposta de Emenda Constitucional 478/10,
estabelecendo igualdade de direitos trabalhistas para essa categoria profissional, garantindo para
uma grande parcela de mulheres direitos básicos que combatem diretamente opressões que se
vinculavam a este tipo de trabalho no país, tornando-se um dos poucos países do mundo que
ratificaram a Convenção 189 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e um dos mais
avançados em termos de direitos da América Latina.
De fato, algumas mudanças tornaram-se notórias ao longo dos últimos anos no Brasil,
como por exemplo, a intensa diminuição de trabalhadoras que moram junto à família empregadora,
de jovens que adentram a essa categoria profissional e um pequeno aumento no número de
contratos legalmente firmados entre empregadoras e trabalhadoras. (FRAGA, 2016). Essa
realidade de significativas mudanças também foi igualmente analisada na pesquisa de mestrado
realizada no ano de 2012 em Curitiba-PR, em que se mostrou evidente novas formas de pensar os
contextos estruturais, contratuais e de vinculações afetivas das diaristas com suas patroas, assim
como as estratégias e agências dessas mulheres frente a diversas formas de desigualdades
encontradas em seu cotidiano. (MONTICELLI, 2013). Realidade não muito distante da resposta
que Lisa Mackey escutou, de uma trabalhadora doméstica remunerada, ao ser exigida servir o café
da manhã para a família empregadora. Soma-se ainda a esse contexto uma intensa discussão sobre

4
Estamos assumindo o universo dos empregadores no feminino por duas razões: primeiro que a toda a pesquisa de
campo realizada para a tese foi desenvolvida com mulheres empregadoras, mesmo quando essas eram casadas se
colocavam como as principais responsáveis pela comunicação com a trabalhadora doméstica remunerada. Segundo,
porque assumimos que essa realidade apontada pela pesquisa de campo não é singular, ela se faz presente em quase
todo o território nacional, nos mostrando como o ambiente privado ainda é massivamente feminino.
21

a maneira como o trabalho doméstico remunerado é estruturado no Brasil através de filmes,


documentários, novelas, revistas, jornais, conversas cotidianas, etc. Como analisa Fraga (2016), o
tema estava “na boca do povo”, seja na articulação de ideias sobre as dificuldades que os
empregadores encontrariam com a nova legislação, seja nas denúncias e críticas sobre explorações
sofridas dentro das residências brasileiras5 - o que fez causar ainda mais repercussão o conteúdo
do curso profissionalizante de Atualização para Secretárias do Lar.
Mas, “para ser empregada doméstica é necessário curso profissionalizante?”, uma questão
já discutida por Oliveira (2007) e que traz em sua complexidade tanto uma instrumentalização da
esfera doméstica, que exige técnicas específicas para realizar as tarefas demandadas, posições e
qualificações que estabelecem valores e méritos, como também transparece julgamentos e
estereótipos ao interrogar os saberes produzidos por mulheres6, em sua grande maioria negras e
pertencentes às periferias brasileiras, mostrando a visceral desigualdade de classe.
As práticas que envolvem e concretizam os discursos do profissionalismo estão
diretamente ligadas ao um sistema de classificação pelo mérito da ocupação. (BARBOSA, 1998).
Nesse sentido, o profissionalismo é visto pelo compartilhamento de sentimentos advindos das
noções de meritocracia, expertise e autonomia, criando uma performatividade do comportamento
trabalhista e trazendo mecanismos que comparam, julgam, diferenciam, classificam e estimulam
resultados. (BONELLI, 2005); (BALL, 2005). Ademais, o discurso da profissionalização no
trabalho doméstico remunerado se complexifica ao exercer diferentes posições políticas dentro do
complexo jogo contratual entre patrões, trabalhadoras e o Estado e reflete seus interesses na
construção e manutenção do que tenho chamado “cultura doméstica” – elemento essencial para
pensar as configurações e reconfigurações de práticas, representações e posicionalidades nessa
relação empregatícia. Ao descortinar esses discursos podemos perceber os desafios e interesses de
cada uma das partes.
Pelo lado das trabalhadoras domésticas remuneradas, principalmente pelas sindicalistas
da categoria, o discurso do profissionalismo é utilizado como meio para acessar os meios da

5
Um exemplo é a página no facebook intitulada “Eu Empregada Doméstica” criado em 2015 por Joyce Fernandes
(feminista negra, professora de história e ex-trabalhadora doméstica remunerada), somando mais de 138 mil pessoas
seguidoras de seus posts. A página conta com relatos e denúncias feitas diretamente por trabalhadoras domésticas
remuneradas. Disponível: <https://www.facebook.com/euempregadadomestica/?fref=ts> Acesso: 04 de mar. 2017.
6
Muitos estereótipos são criados ao pensar que a casa dos patrões contém tecnologias e objetos que essas mulheres
não sabem manejar. Quadro que já foi questionado nos últimos anos com o considerável aumento do poder de
consumo pelas classes populares, e empiricamente observado como essas tecnologias fazem parte da vida cotidiana
de trabalhadoras domésticas remuneradas. (MONTICELLI, 2013).
22

conquista dos direitos trabalhistas. O complexo sistema entre o mundo público e privado atingiu
diretamente a construção da legislação para essas trabalhadoras, sendo que diversos direitos não
foram instituídos pelo Estado por se ampararem no discurso que dentro dos lares não haveria
geração de lucros e trabalho produtivo, diferenciando-se enormemente dos espaços da fábrica ou
de trabalhos na esfera pública. O caráter “profissional” do trabalho doméstico remunerado não era
devidamente instituído através da legislação trabalhista brasileira, marginalizando uma imensa
gama de trabalhadoras do acesso a cidadania e à proteção trabalhista.
Assim, desde a formação das primeiras Associações de trabalhadoras domésticas
remuneradas até nos congressos sindicais atuais, apoiados por institutos internacionais como OIT
e ONU Mulheres, a tônica da profissionalização é compreendida como a chave para as
reivindicações trabalhistas e como discurso predominante para separar as relações afetivas e
familistas das contratuais, regidas por uma consciência de classe. Para muitas dessas ativistas, o
caráter profissional está vinculado a percepção que a trabalhadora não se vê como membro da
família da patroa, conseguindo estabelecer uma relação mais “distanciada” em termos afetivos – e
até mesmo físicos, ao não morar mais na mesma casa que os empregadores - dando espaço para
sua verdadeira consciência de classe e reivindicando seus direitos trabalhistas. (BERNADINO
COSTA, 2007).

Tinha doméstica que dizia assim, que reclamava porque quase não fazia parte da
família...aquela que estava há tanto tempo na casa, ela queria fazer parte da família. [...]
Dentro de uma família tem todos os problemas, tem problema afetivo, tem problemas de
tudo, mas não tem problema de classe. Quem leva o problema de classe é a empregada.
[...] E se a empregada doméstica tiver com mais consciência dessa classe, ela nunca diria
que queria ser da família...isso tem caído muito. [...] Esse afetivo dificulta muito na luta...
(CARVALHO, Lenira. 2007. apud BERNADINO COSTA, 2007, p. 136).

O “profissionalismo” então é fundante de processos de lutas políticas institucionais, de


empoderamento enquanto trabalhadoras (sabendo colocar limites nas explorações diárias e nas
relações afetivas), o caminho para sair de um quadro marginalizado pela sociedade e o meio para
a conquista do reconhecimento estatal. É importante lembrar que o Estado foi paulatinamente
incorporando direitos frente às diversas pressões advindas dos movimentos sociais, principalmente
dos sindicatos da categoria em uma longa jornada para estabelecer e reconhecer esse trabalho como
uma profissão regulamentada, conseguindo a sua plenitude em direitos somente em 2013.
23

(BERNADINO COSTA, 2007). Nota-se também que essa resistência por parte do Estado em
garantir igualdade de direitos trabalhistas advinha em partes da classe empregadora, reivindicando
alto custo nas contratações e, consequentemente, iminências de demissões em grande escala.
(MONTICELLI, 2013). Além disso, quando a lógica das relações contratuais do mundo
empresarial adentram as casas e o cotidiano das famílias brasileiras, há sempre discursos que
auferem uma desproporcionalidade entre os direitos garantidos e trabalhos oferecidos pelas
trabalhadoras domésticas remuneradas, resultando nos discursos da “crise” do trabalho doméstico
no país.
Em sua tese de doutorado, Fraga (2016) observa que o Estado brasileiro ao adotar um
modelo familista de pensar as políticas do cuidado, pouco investiu efetivamente para que essas
concepções e trabalhos saíssem da lógica da divisão sexual do trabalho, responsabilizando
famílias, principalmente mulheres, das exigências e demandas desse setor. Ademais, a esfera
privada de serviços para o cuidado não é ampla no país, tornando muito difícil o processo de
“desfamilirização” e regulamentação estatal, ou seja, o Estado brasileiro não se responsabilizou
por essas políticas públicas, foi utilizado como um mecanismo de resistência da classe
empregadora e somente regulamentou uma das esferas desse amplo mercado do cuidado – o
trabalho doméstico remunerado – através de pressões e reivindicações de diversas instituições
nacionais e internacionais e por um longo processo de luta das sindicalistas da categoria, não
compreendendo o seu caráter “profissional” durante anos. As mudanças institucionais foram
recentes no Brasil, e foram possíveis graças à um contexto de crescimento econômico, do aumento
de contratos de diaristas (que não são comtempladas pela nova legislação trabalhista) e por uma
sensibilidade política que estava conectada com as discussões internacionais sobre as
configurações desse trabalho.

Durante os anos 2000, esses direitos alcançaram ampliação. Nos mandatos de Lula (2003-
2010), as alterações legais foram mais significativas, e a forma de tratar o assunto mudou.
O governo Lula trouxe como inovação uma institucionalização do tema do serviço
doméstico, consolidando uma articulação institucional que envolveu a SEPPIR e a SPM
e vários atores governamentais e não governamentais. [...] Portanto, com a Emenda
Constitucional nº. 72, de abril de 2013, e a Lei Complementar nº. 150, de junho de 2015,
os empregados domésticos foram equiparados aos demais trabalhadores urbanos e rurais.
Os fatores que podem explicar por que essa equiparação tornou-se possível apenas nos
anos 2010, e não anteriormente, são o protagonismo da mobilização política das
trabalhadoras domésticas, e a expansão de suas formas organizativas; a cooperação de
atores sociais diversificados, locais, nacionais e mundiais; a existência de um governo
que procurou institucionalizar o tema do serviço doméstico; o efeito catalisador da
aprovação da Convenção nº. 189 da OIT; o momento econômico de menor desemprego e
24

maiores possibilidades em outras atividades; e o crescimento do número de diaristas em


relação ao de mensalistas. (FRAGA, 2016, p.195).

Diante desse cenário, vimos emergir, mais uma vez, discursos, cursos e práticas
resistentes às conquistas concretizadas. Um claro exemplo é a coluna de Danuza Leão, escrita logo
após a aprovação da nova legislação para a Folha de São Paulo, reportando-se a dificuldade de
encontrar caminhos para organizar novos horários de trabalho, dizendo que “quando veio a PEC,
a dona da casa - que não suporta a ideia de ter um livro de ponto em casa, e ao mesmo tempo quer
ter o direito de pedir um chá às 10h da noite-, fez as contas com o contador, soube o quanto lhe
custaria pagar as horas extras e chamou as duas (empregadas) para conversar” (LEÃO, 2013, n.p).
De acordo com a colunista, as partes chegaram a um acordo em comum sem o pagamento das
horas extras, preservando assim o direito da empregadora de ser servida às 10 da noite e realizando
uma crítica ao Estado por interferir tanto nas lógicas domésticas.
Nessa mesma lógica, emergem os discursos de profissionalismo por parte das patroas que
se conectam com o que tenho chamado de “cultura doméstica”, como exemplo, as percepções de
Lisa Mackey proferidas em seu curso ao pensar formas específicas sobre organização, limpeza,
culinária e as posicionalidades da trabalhadora em relação a vestuário, comportamentos, práticas
e os espaços por onde esta pode transitar. Esses aspectos são justamente o que tenho tentado
decodificar como elementos de uma “cultura doméstica” que permeia e estabelece as formas de
pensar o espaço residencial, construindo subjetividades das patroas e trabalhadoras e sendo mais
um elemento de negociações nas complexas relações entre afetos, direitos, intimidades, doações,
etc. Nesse sentido, o discurso do “profissionalismo” vem exigir comportamentos específicos que
se conectam com as posições e o exercício do poder. A “atualização” prometida pelo curso de Lisa
Mackey não tinha como objetivo “modernizar” ou “renovar” a relação entre trabalhadoras
domésticas remuneradas e suas patroas, ou muito menos promover uma inclusão de novas
tecnologias e novas práticas de trabalho, muito pelo contrário, a idealização do curso era
justamente “lembrar” a trabalhadora doméstica remunerada de como organizar uma despensa,
limpar os cantos dos armários mais altos, manter uma geladeira limpa e chegar na hora para servir
o café da manhã antes de seus patrões levantarem, remetendo a uma narrativa nostálgica 7 das

7
É importante lembramos que a nostalgia é um dos sentimentos, compartilhados socialmente, que nos mostram mais
as concepções do presente do que necessariamente do passado. Ao sentir falta de alguma estrutura social antiga,
estamos apresentando uma insatisfação ao presente. Ver Freeman (2015).
25

formas de trabalho e mostrando claramente como algumas práticas, lógicas e discursos fazem-se
presentes tanto na realidade cotidiana doméstica das empregadoras, como compõem um
imaginário sobre o profissionalismo e a eficiência em relação ao comportamento e aos serviços
prestados pelas trabalhadoras domésticas remuneradas.
No discurso proferido pelas patroas, a profissionalização exerce um caráter de reprodução
de suas próprias necessidades, desejos e expectativas, assume-se que a trabalhadora doméstica
remunerada precisa “cuidar da casa como se fosse dela”, além de saber servir eficientemente. O
tão almejado e desejado “profissionalismo” exigido das trabalhadoras é a tradução de um caráter
conservador, que molda e exige comportamentos trabalhistas e morais, uma “boa profissional” é
aquela que sabe servir bem, que obedece as regras da casa, que conhece muito bem os gostos de
seus empregadores, que sabe os horários e as dinâmicas dos integrantes da família e sabe se
adequar a eles, que deixa a casa impecavelmente limpa e organizada, além de apresentar um amplo
cardápio culinário, sempre sendo fiel e “sabendo o seu devido lugar”, sendo discreta, silenciosa,
autônoma, polivalente.
Essa mesma perspectiva foi analisada na etnografia realizada por Emanuela Oliveira
(2007), em agências de emprego destinadas exclusivamente para as trabalhadoras domésticas
remuneradas, que ofereciam cursos de treinamento e aperfeiçoamento profissional. Esses cursos
se mostraram como verdadeiros exemplos de “modelagem” do corpo e de posições de sujeito da
trabalhadora através de aulas de boas maneiras, como servir adequadamente uma mesa, como deve
ser utilizado o uniforme, além de estabelecer como devem estar os cabelos e as unhas. Esses cursos
eram marcados em um contexto de desigualdades de gênero, onde havia um processo de
disciplinarização, que se estendia às regras e comportamentos desejados pelas empregadoras até
um caminho de sucesso de reconhecimento da atividade profissional.

Desta maneira, se constitui um esforço de construção da imagem da empregada


“profissional” em oposição à empregada “quebra-galho”. Coloca-se que a “profissional”
não deve se limitar a cumprir ordens, ela tem que fazer uma casa funcionar sem a
necessidade de uma supervisão constante”. A postura “profissional” é ainda atrelada ao
fato de se, principalmente, acatar a determinação dos empregadores. [...] “Se tiver que
comer arroz e ovo vai ter que comer sim! Se quiser comer filé traga de casa porque patrões
não tem obrigação nenhuma de te sustentar”. É assim que da mesma maneira em que se
postula como tarefa da trabalhadora a elaboração de um cardápio rico e variado para seus
patrões, se afirma que a comida desta tem que ser separada e diferente da dos
empregadores. (OLIVEIRA, 2007, p.69 e 70).
26

Assim, esses cursos de “profissionalização” tem como ideal a manutenção de práticas


trabalhistas pautadas e embasadas em pressupostos “servis”8. É importante lembrar que esses
discursos tornam-se ainda mais frequentes frente a quadros de mudanças legislativas para
trabalhadoras domésticas remuneradas, pois as patroas se comportam como consumidoras de um
serviço, pagam por direitos e querem receber “o melhor” – nota-se que o “melhor” destina-se as
práticas que mantêm certos pressupostos privilegiados de servilismo. Como bem apontam Brites
e Fraga (2014), as mais expressivas mudanças no trabalho doméstico remunerado atualmente estão
relacionadas aos novos padrões de comportamentos, limites e trabalhos oferecidos pelas
trabalhadoras, que não contempla um desejo de servilismo da classe empregadora, impulsionando
também uma falsa narrativa sobre um possível desaparecimento dessa categoria profissional no
país – dado desmistificado nas análises estatísticas. Assim, percebe-se a compreensão do trabalho
doméstico e a maneira como ele deve ser realizado é embasado por características conservadoras,
que moldam a percepção das patroas sobre a casa, cuidados e organização doméstica. A
“profissionalização” desejada pelas patroas então nada contempla formas de emancipação política
e ofertas trabalhistas bem limitadas e especializadas da parte das trabalhadoras, o
“profissionalismo” é a linguagem utilizada para buscar trabalhadoras que as sirvam, limpem e
organizem suas casas de acordo com pressupostos servilistas, que muitas vezes se conectam com
práticas discriminatórias e desiguais.
São justamente esses discursos, práticas, lógicas, símbolos e representações que fazem
parte da “cultura doméstica” da qual tenho por objetivo analisar, compreender como se conectam
com as construções de subjetividades de patroas e trabalhadoras e como se interpõe nas
negociações de direitos, considerando outros aspectos que igualmente se fazem presentes nessa
relação trabalhista como os afetos, as intimidades, cuidados, doações, etc. A “cultura doméstica”
é intrinsicamente formada nas relações de poder familiares, da divisão sexual do trabalho e
constitui importantes posicionalidades que diferenciam e mantem hierarquias.

8
É importante dizer que não parto do pressuposto que as trabalhadoras domésticas remuneradas são servis ou que
não apresentam políticas, estratégias e agências cotidianas para minimizar as diversas desigualdades sociais, raciais,
de gênero e de invizibilização de seus saberes – tópicos já profundamente analisados e empiricamente observados.
Essa pesquisa se fundamenta compreendendo que verdadeiras mudanças ocorreram nos últimos anos no país em
relação a esse trabalho, inclusive no sentido das diversas possibilidades de dizer “não” aos diferentes abusos
trabalhistas exigidos. (MONTICELLI, 2015).
27

1.1 CULTURA DOMÉSTICA: COMO PENSAR?

O que tenho traçado como caminho de análise, para compreender as dificuldades


encontradas pelas empregadoras no cumprimento das determinações legais, ao contratar uma
trabalhadora doméstica remunerada é que existe uma “cultura doméstica” no Brasil, e esta está
diretamente ligada com os pressupostos de reconhecibilidade construídos em relação aos direitos
trabalhistas conquistados recentemente. A “cultura doméstica” é explicitada nas representações,
símbolos e posicionalidades que constroem as noções do que seja uma casa bem limpa e
organizada, uma comida bem feita, uma mesa bem servida, banheiro impecavelmente limpo e
desinfetado, uma roupa perfeitamente lavada e passada, quintal sem sujeiras, tirar o pó de
absolutamente todos os móveis e cantinhos, quartos discretamente cheirosos e organizados, além
de posicionar os sujeitos em determinados e hierarquizados espaços da casa e exigir
comportamentos, práticas e posturas morais e controle dos corpos.
Durante toda a tese eu investigo como é instituída a “cultura doméstica” através da revisão
de literatura sobre o tema, análises de manuais, livros, filmes e documentários, além de explorar o
conteúdo desse conceito juntamente com as questões sobre a legislação em entrevista com patroas
na cidade de Curitiba-PR. Esses dados são detalhadamente descritos logo na metodologia, porém
já é possível traçar nesse momento algumas teorias, descrições e evidências da “cultura doméstica”
e como ela constitui subjetividades e se entrelaça nas relações de poder por meio das obras de
Kofes (2000), Freyre (1936), Telles (2011), Marins (2006), Roncador (2008), Ray e Qayum
(2009), etc. Essas obras nos mostram pontos, considerações, revisões e percepções sobre uma
construção que separa mundo público e privado, tendo como consequências estereótipos que se
vinculam a vida cotidiana, políticas e as tensas relações desiguais de classe, étnico-raciais e de
gênero.

1.1.1 Considerações e Percepções Históricas sobre a “Cultura Doméstica”

Alguns aspectos da configuração da “cultura doméstica” podem ser percebidos através de


reflexões e análises sobre período escravocrata que o país instaurou, por mais de três séculos, e
que teve uma exploração do âmbito doméstico pautada na força de trabalho escrava, assumindo
pressupostos servis, violências e racismo. Como bem demostra Telles (2011), as heranças da
28

escravidão são notórias no trabalho doméstico remunerado, principalmente quando analisadas em


um contexto pós-abolição, em que a economia era pouco diversificada. De acordo com a autora,
mulheres, imigrantes e principalmente negras e ex-escravas se ocupavam nesse trabalho, que
rapidamente se estruturou pelos baixos salários, sendo percebido como desqualificado e pouco
reconhecido. A liberdade dessas mulheres ainda era negociada de acordo com as vontades e
desejos de barões e da classe média (comerciantes, fazendeiros, donos hotéis, coronéis,
funcionários públicos, profissionais liberais, viúvas e remediadas), além de serem controladas
pelas exigências das Posturas Municipais sobre “Criados e Amas de Leite” de 1886. Telles (2011),
ao reconstituir o cotidiano nas cozinhas, lavagem e o engomado das roupas, limpeza e
amamentação, mostra as tensões dessa relação no âmbito doméstico, nas ruas e várzeas. Esse
ponto, inclusive, é um dos mais importantes para compreendermos a “cultura doméstica”.
Nos primeiros anos de República no país, pós-abolição, o projeto de modernização e
urbanização passava, necessariamente, por um processo de saneamento básico, limpeza das vias
públicas e reforma dos portos9. Nesse momento, a população mais pobre foi o alvo de violências
estatais por meio de demolições de casarões, cortiços, uma fiscalização apurada dos meios de
lavagens de roupas, além da imposição coerciva das vacinas. (SEVCENKO, 2006). A rua era
compreendida como suja, que trazia e transmitia doenças, as aglomerações e as formações das
primeiras “multidões” traziam novas configurações para a realidade das cidades, e o controle em
relação a população negra, livre, sem trabalho e vista como portadora da instabilidade sanitária
passa ser uma prioridades das políticas públicas. A população negra era percebida como “incapaz”
de se organizar, trabalhar e ter uma vida produtiva sem a supervisão do branco. (SCHWARCZ,
1993). E a homogeneização que tomava conta dos discursos, que negava a diversidade, foi uma
intenção política clara do período. (WISSENBACH, 2006).
A segregação e limpeza das vias públicas se entendia também para a “purificação” dos
bairros, principalmente nas cidades do Rio de Janeiro-RJ e São Paulo- SP, em que a vizinhança
deveria ser construída por iguais, “harmonizando-se as vizinhanças facilitava-se o conhecimento
da fisiologia urbana – e das múltiplas “disfunções” geradas nas clivagens sociais, altamente
tensionadas nas capitais brasileiras[...]”. (MARINS, 2006, p. 136). O processo de segregação era
pautado pelas políticas públicas, não somente destruindo cortiços, casarões e intensificando o

9
O projeto urbanista no Rio de Janeiro era chefiado por Lauro Muller, Oswaldo Cruz e Pereira Passos, que
receberam poderes ilimitados para realizar as mudanças necessárias.
29

processo de formação das primeiras favelas, como através da “limpeza” social dos bairros mais
abastados. (MARINS, 2006).
O que muitas vezes perde-se na compreensão desse momento, é pensar que a casa, ou seja
o doméstico, fazia uma contraposição à rua. O que na verdade se mostra, é que a lógica da rua e
das políticas públicas instauradas no período republicano se institui igualmente nos lares das
famílias brasileiras que pertenciam às elites, fazendo que as noções de limpeza, organização
espacial doméstica e intimidade fossem construídas também pelos parâmetros sanitaristas e
segregacionistas.

A marcante diferenciação dos espaços privados praticada pelas elites em suas próprias
residências pode representar um protótipo das distinções espaciais, da “ordem” que
desejavam disseminar por toda a cidade. Sua escala progressiva pode ser traçada dos
diferentes cômodos entre si ao contraste de habitação com terreno ajardinado, passando
pelos recuos com os vizinhos do bairro, chegando até o zoneamento social dos próprios
bairros da capital. A normatização do privado acabava, pois, entrelaçando-se com a
própria configuração dos espaços “públicos”. (MARINS, 2006, p. 178).

Se a arquitetura e organização espacial doméstica passa por essa regulamentação, as


práticas internas de como limpar, lavar, arrumar e se posicionar na casa também são alvos desse
modelo instaurado. Exigia- se então, das trabalhadoras domésticas remuneradas, um esforço
altíssimo para que se cumprisse com essas determinações do que fora considerado limpo, além da
constante vigilância de seus corpos, caracterizando cheiros, dentes, unhas, cabelo nesse quadro e
posicionando-as nos espaços segregados da casa, para não transmitir as sujeiras, doenças e demais
“asquerosidades” que poderiam ser contagiosas. (TELLES, 2011). Ainda nesse espaço, é
importante lembrar o que nos aponta Schwarcz (2012), “numa sociedade marcada historicamente
pela desigualdade e separada pela distância de padrões confortáveis à consolidação da democracia,
sobretudo no nível do mundo, da vida e da sociedade civil, a cor se estabelece no cotidiano e o
racismo se afirma basicamente de forma privada”. (SCHWARCZ, 2012, p. 66). Assim, os espaços
foram construídos e suas instabilidades também, para preservar o foco privilegiado, disciplinado
e regulado das elites brasileiras. (MARINS, 2006).
Em alguns casos, essa regulamentação estendia-se aos utensílios domésticos e móveis que
poderiam ser usados, principalmente nas casas das periferias. Marins (2006) nos mostra que
juntamente com a construção de casas, estipulava-se a compra do que deveria ser usado dentro das
30

residências por essas famílias, em uma clara demonstração das determinações púbicas sobre a vida
privada, e a institucionalização de que as camadas mais pobres da população brasileira precisavam
da tutela estatal nos mais detalhados aspectos da vida, controlando-as, estereotipando-as e
mantendo suas posições de poder.

Em casos extremos, a intenção disciplinadora alcançava minúcias do próprio interior das


residências construídas pelos institutos. [...] Assegurava-se dessa forma a padronização
sanitária e de “conforto” já estabelecida nas sugestões técnicas do Ministério do Trabalho
aos IAPS, que deviam nortear o convívio nas novas moradias: “Além de assistência
social, que deveria acompanha-los por muitos anos [...] razões econômicas, razões de
higiene [...] levam-nos [...] a pleitear que dê a casa e, com ela, os móveis e os utensílios,
de um modo geral. Baterias de alumínio, aparelhos de boa louça, talheres de bom material,
toalhas e lençóis de bom pano, tudo será acessível, se comprado em grande quantidade,
será higiênico, se fácil de lavar, será humano se der ao pobre a alegria de viver num
ambiente são e confortável”. (MARINS, 2006, p. 206).

Nesse sentido, forma-se uma regulamentação sobre a vida privada e a maneira como ela
deve ser organizada e limpa de acordo com os pressupostos de higiene pautados nas políticas
republicanas. Se por um lado essa reforma sanitária era uma emergência enquanto estrutura urbana
e uma questão de saúde pública, ela foi igualmente usada como um mecanismo de controle social,
regulamentação de corpos, mantendo posições hierárquicas de poder e estabelecendo
desigualdades. E uma das formas mais eficientes de gerir esse controle é por meio das práticas
cotidianas domésticas. É importante lembrar que ainda nessa formação cultural doméstica, soma-
se uma postura culinária muito embasada na força de trabalho escrava, pratos que levavam horas
para serem preparados, doces e compotas que precisavam de constante supervisão e minúcias
gastronômicas que só eram possíveis porque haviam mulheres trabalhando durante todo o dia na
cozinha. (FREYRE, 1936). É claro que com as políticas republicanas a relação com a comida
também passa a se complexificar, exigindo ainda mais vigilância e regulamentação por parte da
dona-de-casa. Inclusive, a própria figura da mulher, mãe, esposa e dona-de-casa passa a ser uma
ferramenta desse contexto político.
Como mostra Roncador (2008), por meio da análise da literatura de Julia Lopes de
Almeida, os primeiros anos do período republicano intensificaram o papel da dona-de-casa,
enobrecendo a maternidade como uma forma de “cuidar do futuro da nação”, sendo essa mulher a
guardiã da organização impecável da casa, mantendo-a limpa e longe da “sujeira” trazida das ruas.
Houve então um incentivo acentuado de uma promoção e de um protagonismo da mulher enquanto
31

dona-de-casa, guardiã do lar burguês, sendo utilizada como um dos mecanismos higienistas e
sanitaristas. A mulher foi “promovida” à mãe e auxiliar médica, tomando outras posições de poder
tanto dentro da própria estrutura familiar, como socialmente ao sair do enclausuramento colonial
e podendo se expor em outros espaços. (RONCADOR, 2008).
É importante notar que é nesse momento que o trabalho doméstico passa a ser
“remunerado” no país, pois antes as residência eram servidas pela força de trabalho escrava. As
donas-de-casa então precisam lidar com as agitadas mudanças urbanas, e com a “criada” que já
não morava mais na mesma casa, “livre nas ruas” e ainda “gratificada”, trazendo todos as
contaminações possíveis e necessitando da sua mais alta vigilância, para acabar com as
“incompetências”, “desobediências” e “preguiça” da criadagem (RONCADOR, 2008).

A princípio associado ao conforto e à prosperidade, o empregado passou a ser visto como


um signo de contaminação. Era comum o medo dos patrões que se viam ameaçados pelo
contágio de doenças (a febre amarela, a cólera, a sífilis, a varíola, a febre tifoide) trazidas
das ruas, ou melhor, dos cortiços onde passara a habitar parte da sua criadagem. Era
também recorrente o medo da violência e da desonestidade, as quais, para as elites
brasileiras, eram mero reflexo da condição social e racial da maioria de seus serventes.
Julia Lopes não hesita em reforçar esse medo, ou histeria burguesa, e assim iguala a patroa
brasileira a uma verdadeira “santa” ou “martyr”. (ALMEIDA, 1906, p.64) por ter de
“viver em baixo das mesmas telhas com uma inimiga [a empregada] que faz tudo que
pode para atormentar as nossas horas”. Segundo Almeida, a empregada doméstica é, no
Brasil republicano, uma “praga”, cuja “estupidez ignorância, preguiça ou má vontade”
podem de fato levar “muita gente boa” [...] ao desejo de fugir d’esta vida para outra, onde
não seja preciso comer feijão queimado, roastbeef absolutamente crú, e onde o furto e a
incuria não tenham o mesmo impudor nem os mesmos assomos”. (RONCADOR, 2008,
p.18-19).

De acordo com Graham (1992), as criadas “porta-adentro” tinham até certa preferência
nesse período, justamente pela facilidade do controle constante. Essa preferência era embasada por
motivos higienistas, mas também pelos cuidados e dedicações que essas mulheres faziam para a
família, sentindo-se muitas vezes pertencentes a ela. Os relacionamentos afetivos e de cuidados
que essas criadas estabeleciam com a família, principalmente com as crianças da casa, não fazem
parte apenas de uma narrativa romantizada sobre o período escravocrata e pós-abolição. Essas
relações eram de fato formadas, e muitas vezes eram as bases para que proteções e benefícios
fossem constituídos. No entanto, o tratamento hierárquico e as constantes vigilâncias também eram
intensificados para as criadas que estavam permanentemente nas casas das famílias que a
contratava – relações de afetividades, cuidados, amor e carinhos constantemente observados e, de
certa forma, gratificados. (GRAHAM, 1992). Ao descrever as noções de proteção e obediência,
32

Graham (1992) demonstra também que as proteções sociais estavam estritamente ligadas ao
reconhecimento trabalhista de seus patrões: a criada ganha alimentação, abrigo, roupa, remédio,
algumas vezes até a alforria em troca de sua obediência e dedicação aos serviços domésticos e à
família. Essas relações não se restringiam apenas aos sujeitos diretamente envolvidos, pois muitas
vezes, as noções de obediência eram passadas para seus filhos que também se mantinham em um
laço de dependência com essa família. De acordo com Bernadino-Costa (2000), a lógica entre
proteção e obediência acabou por marcar uma estrutura político-cultural da sociedade brasileira,
caracterizada pela desigualdade social e dependência, onde esses arranjos ainda fazem certos
sentidos. (BERNADINO COSTA, 2000). Não podemos deixar de apontar que o período de
escravidão no Brasil moldou políticas, estruturas econômicas e a organização doméstica, trazendo
outros aspectos para os processos de socialização e para as noções de privacidade. (SEVCENKO,
2006).

[...] as práticas da colonização e os efeitos da escravidão deixaram marcas indeléveis em


todos os níveis das relações sociais no Brasil. Enfocar o âmbito da vida privada nesse
contexto exige atenção especial para os modos pelos quais são as tensões entre os vários
estratos da sociedade, tensões essas reforçadas pela dupla carga opressiva do estatuto
colonial e da ordem escravista ou sua herança, que definem ulteriormente como cada
grupo ou indivíduo irá construir os sentidos que articulam suas experiências íntimas.
(SEVCENKO, 2006, p.28).

A privacidade e a intimidade foram moldadas por essas estruturas políticas e econômicas.


Enquanto as classes populares formavam sua noção de privacidade muito mais ligada a
sobrevivência do que à domesticidade, ampliando as redes sociais, as socializações e celebrações
religiosas e culturais, “noção que muitas vezes levava a ser recomposto no espaço público o que
havia sido desarticulado com o domínio escravista, reequacionando o que era tradicionalmente
colocado nos limites de quatro paredes”. (WISSENBACH, 2006, p.130). No outro lado, as classes
mais abastadas e a elite tinham suas privacidades e intimidades incentivadas, desde que estivessem
de acordo com as políticas da esfera pública. Assim, enquanto a privacidade e intimidade para os
grupos populares se fazia nas ruas, a das elites eram formadas através das estruturas estipuladas
pelas políticas destinadas a esfera pública. (WISSENBACH, 2006). A dicotomia entre público e
privado então só aparece como uma criação imaginária social para separar e segregar grupos,
especialmente mulheres pertencentes a elite, dos domínios fora das residências.
33

Assim, compreendo que a “cultura doméstica” partilhada na sociedade brasileira se


reporta, por vezes, a pressupostos similares aos desenvolvidos no período pós-abolição, mas de
formas reconfiguradas e/ou reiteradas de acordo com as mudanças e transformações urbanas,
políticas, culturais que ao longo dos anos vem nos mostrando diversos aspectos em relação ao
trabalho doméstico remunerado. De tal modo, acredito que a falsa dicotomia entre público e
privado, as estratégias de vigilância e as exigências e controles da limpeza, organização e cuidados
são características fortemente conectadas com as percepções subjetivas das patroas sobre suas
casas e consequentemente sobre o trabalho doméstico remunerado.

1.1.2 Configurações e Reconfigurações da “Cultura Doméstica”

Como já anunciado anteriormente, as configurações do trabalho doméstico remunerado


vem sofrendo transformações ao longo dos anos em termos de ampliação de direitos trabalhistas,
novas possibilidades de contratações por meio de diaristas, “envelhecimento” dessa categoria
(cada vez menos jovens adentram a essa profissão) e drástica diminuição de trabalhadoras que
residem na mesma casa da qual trabalham são alguns exemplos desse novo cenário que emerge
nessas relações empregatícias. A despeito dessas reconfigurações, os dados estatísticos sobre essa
categoria profissional no Brasil em relação aos pressupostos de reconhecibilidade de direitos ainda
nos apresentam um quadro complexo de análise, pois o país atualmente conta com mais de 6
milhões de mulheres inseridas no trabalho doméstico remunerado em condições trabalhistas
precárias, onde 70% destas não tem seus direitos garantidos e 40,5% ganham menos de um salário
mínimo. (PNAD, 2012). O Estado continua fazendo pouco para que essa estrutura se modifique,
não procurando criar políticas que incentivem ou fiscalizem as contratações de trabalhadoras
domésticas remuneradas, e a classe empregadora continua com grandes dificuldades para o
reconhecimento legal trabalhista. Mas afinal, por que? Por que as exigências de uma postura
“profissional” – como idealizado no curso de Lisa Mackey - frente aos avanços da legislação
trabalhista, inseridas em um contexto de extrema irregularidade dos direitos? Quais são os desafios
que as patroas enumeram para realizar essa contratação legal?
O discurso patronal, de acordo com a linha empírica levantada nessa tese, é construído
através de representações e símbolos conservadores sobre a organização e limpeza,
posicionalidades da trabalhadora, assim como algumas percepções sobre a sua imagem, corpo e
34

posturas. Representações que também se vinculam as intimidades, afetos e cuidados e que estão
diretamente conectadas com as negociações que envolvem os direitos trabalhistas. Esses discursos
aparecem reiterados e reconfigurados nessas novas dinâmicas que se apresentam em um mundo
“moderno”, onde as mulheres ocupam cada vez mais o mercado formal de trabalho, inseridas em
um contexto onde o mercado alimentício é mais prático e rápido e no qual as estruturas da
tradicional familiar nuclear são questionados por diversos meios.
Para pensar então como esses discursos são mantidos e reconfigurados nessas “novas”
relações empregatícias, me inspiro na obra de Suely Kofes (2000) “Mulher, Mulheres: Identidade,
Diferença e Desigualdade na Relação entre Patroas e Empregadas Domésticas”, onde a autora traz
a compreensão do doméstico, por meio de uma teorização estruturalista, como algo que define a
categoria mulher através dos atributos de feminilidade e dos papéis e funções relacionados à
família. A mulher, nesse espaço assume posições de “[...] mãe em relação aos filhos, esposa em
relação ao marido e dona-de-casa (atividades de funcionamento da unidade doméstica como
residência e sua representação em várias instancias sociais). Doméstico que pressupõe idealmente,
que estas posições, papéis e funções combinados (considerando-se um padrão monogâmico),
sejam atribuídos a uma mulher a cada geração. (KOFES, 2001, p.42). Assim, Kofes (2000) percebe
que a interação entre “patroas e empregadas” é permeada por essa constituição do sujeito e da
identidade “mulher” formada pelo doméstico, intensificando as práticas de diferenciações para que
a trabalhadora doméstica remunerada não assuma a identidade da patroa nesse espaço estruturado
e dominado pela “dona da casa”, tornando complexas as relações de trabalho e, consequentemente,
os aspectos de reconhecimento dos sujeitos.
Assim, eu acredito que além do “doméstico” ser um espaço de posições de poder, do qual
as mulheres assumem posições e constroem suas subjetividades enquanto esposas, mães e donas-
de-casa, é também o lugar onde elas precisam nutrir o seu papel de “gerenciadora do lar” – isso
inclui como saber “mandar” na trabalhadora doméstica remunerada. O “gerenciamento do lar” é
pautado por noções e compreensões de limpeza, culinária e organização bem específicas, que são
ao mesmo tempo compartilhadas socialmente e instituídas por idealizações biomédicas de higiene,
como passam pelas percepções individuais, de cada patroa, de como deve ser e estar a sua casa e
sua intimidade. Essa “cultura doméstica” molda o que é exigido de uma trabalhadora doméstica
remunerada.
35

Nesse sentido, compreendo que as exigências sobre os parâmetros do que seja uma boa
limpeza, boa organização, comida bem preparada e por fim uma “boa” trabalhadora doméstica
remunerada são mecanismos de acesso ao poder, e que essas exigências - muitas vezes chamadas
de “cricris” – são parte de uma construção subjetiva das patroas em relação ao seu exercício de
poder e a administração de suas necessidades, pautando elementos meritocráticos em relação aos
direitos trabalhistas. Isso significa dizer que são por meio dessas exigências que transparece uma
ideia de desproporcionalidade entre o que elas precisam pagar enquanto empregadoras, do que lhes
é ofertado em termos de qualidade de serviço – não reconhecendo de fato as bases legais que
protegem essas trabalhadoras.
A reflexividade de um “conceito” que permeia uma cultura do doméstico, também advém
da obra de Ray e Qayum (2009), onde as autoras pensam o trabalho doméstico remunerado na
Índia através das concepções sobre domesticidade, classe e modernidade. Ao trazerem a percepção
de que a servidão era normalizada ao tal ponto que era virtualmente impossível imaginar a vida
sem ela, Ray e Qayum (2009) desenvolvem o conceito de cultura da servidão10, que se define como
aquela em que as relações sociais de dominação/subordinação, dependência e desigualdade são
normalizadas e permanecem tanto na esfera doméstica quanto na pública. A cultura da servidão
também estrutura os sentimentos associados com instituições e relações da servidão doméstica,
produzidas pela confluência das condições materiais históricas e da organização social
predominante, geradas em uma dialética da dependência e do poder, onde a desigualdade aparece
como fundamental nessas relações e a subjetividade formada e informada pelo outro nas interações
cotidianas.
De acordo ainda com Ray e Qayum (2009), havia na Índia discursos contraditórios sobre
práticas “feudalistas” e “modernas”, como se a contratação de uma trabalhadora doméstica
remunerada não fizesse parte de um mundo contemporâneo moderno, pós feminista e democrático.
O que as autoras nos dizem é que essas contratações são partes constituintes de um capitalismo
desenvolvimentista, compreendendo então que as práticas servis estavam inseridas nas lógicas

10
As autoras justificam o uso da palavra cultura ao se referir as interconecções da consciência, prática
necessariamente engloba as dimensões de poder. Já o conceito de servidão de baseia nas formas de persistência,
dependência e submissão nas relações do trabalho doméstico remunerado. Elas fazem um nexo das relações de
servidão domésticas como uma instituição e não como uma categoria ocupacional. E por normatização elas trazem
que as relações sociais legitimadas ideologicamente como dominação, dependência e desigualdade não são somente
toleradas, mas aceitas, além de reproduzidas nas práticas e na interação social da vida cotidiana.
36

“atualizadas” do trabalho doméstico remunerado, por meio de uma visão não linear e teleológica
da história.
É por meio dessa concepção que as autoras compreendem como muitos mecanismos da
cultura da servidão se mantinham nos discursos dos empregadores indianos. Mesmo que gerações
mais velhas de empregadores usassem uma retórica do amor para descrever essas relações
empregatícias, utilizando-se da máxima “faz parte da família” e que entre os empregadores mais
jovens havia um desejo de contratos mais formais e relações mais distanciadas em termos afetivos,
a cultura da servidão preserva “confrontos” diários entre as reciprocidades e o sentimento de
justiça, gerando laços desiguais de dependência. (RAY; QAYUM, 2009).
Dessa mesma forma, penso também que existe uma base servilista na “cultura doméstica”
brasileira, que reitera e reconfigura representações, símbolos e posicionalidades entre patroas e
trabalhadoras construídas na interação cotidiana. E mais que isso, dita como deve ser estabelecido
minuciosamente a limpeza, a organização, o que é considerado uma mesa bem servida, como a
comida deve ser preparada, como é um banheiro bem lavado, gavetas perfeitamente organizadas,
pó e poeiras retiradas de todos os cantinhos e móveis (mesmo aqueles não utilizados), cama bem
posta, roupa lavada e impecavelmente passada, os cuidados e afetos com as crianças e com os
membros da família, a necessidade de conhecer os horários e a funcionalidade cotidiana de cada
um. São nas minucias que essa base servilista se apresenta, não rompendo com as desigualdades
que se instauram nessas relações e produzindo, como diz Ray e Qayum (2009), falta de
reciprocidades, sentimentos como raiva e decepção, além de não produzir laços menos
dependentes nas interações entre patroas e trabalhadoras.
Assim, para cumprir com o objetivo de analisar por meio de uma cultura que permeia o
doméstico aspectos que nos conectam com as dificuldades de estabelecer contratos formais e
parâmetros de reconhecibilidade, eu realizei uma detalhada análise sobre as reconfigurações da
“cultura doméstica” tanto na revisão bibliográfica, nos manuais domésticos, em filmes e
documentários; como nas entrevistas com 15 patroas na cidade de Curitiba-PR no ano de 2015.
Segue-se portanto a metodologia, o campo de pesquisa entre as obras citadas e entrevistas
realizadas, assim como a análise socioeconômica do perfil das entrevistadas para situar e
posicionar os discursos, representações e símbolos do que tenho chamado de “cultura doméstica”.
37

1.2 METODOLOGIA: POSIÇÕES E APRESENTAÇÕES DO CAMPO

Essa tese tem como princípio metodológico a pesquisa qualitativa, que visa
primordialmente interpretar as ações dos sujeitos, seus significados e lógicas em seus determinados
contextos sociais, econômicos e políticos. (LINCOLN; GUBA, 2006). A pesquisa qualitativa e sua
episteme, vai além de possibilitar ao pesquisador uma interpretação social por meio da observação,
extração e interpretação de narrativas, documentos, biografias, entrevistas, filmes, mídias, etc.,
pois garante ao pesquisador um processo criativo, que sustenta suas variadas formas de chegar e
se aproximar dos sujeitos e objetos, dos processos de coleta de dados e das análises resultantes
destes. Assim, o método qualitativo também situa o pesquisador frente a todo processo de pesquisa,
na escolha do tema, na interação com o campo de pesquisa e nas interpretações sobre o material
levantado, ou seja, parte-se do pressuposto que a construção empírica não é provida de
neutralidades. (OLESEN, 2006).
A ruptura dessa concepção sobre uma suposta neutralidade científica foi uma das grandes
contribuições das epistemologias feministas, que forçaram o reconhecimento que a ciência
moderna era construída através de um olhar masculino sobre as Ciências Sociais, implicando em
verdadeiros silenciamentos e invisibilidades dos processos históricos, de agenciamentos,
protagonismos, opressões e desigualdades das mulheres. Para além disso, a epistemologia
feminista também desconstrói dualismos excludentes e exaustivos produzidos por essa
cientificidade moderna: “racional e irracional”, “ativo e passivo”, “pensamento e sentimento”,
“razão e emoção”, “natureza e cultura”, “objetivo e subjetivo”, “público e privado”. Dicotomias
que apenas estabeleciam estereótipos e limitam as formas de pensar as relações sociais e a própria
produção do conhecimento. (MAFFIA,2002).
Talvez uma síntese dessas dicotomias seria a insistência em separar emoções,
sentimentos, reflexividade das concepções de racionalidade, pragmatismo e imparcialidade,
esquecendo-se, como já há muito tempo Jaggar (1988) nos apontou, que próprio conceito de
emoção é uma construção histórica, social e que influencia a maneira de olhamos para nós mesmos
e olharmos para os outros. (GIFFIN, 2006). Isso significa dizer, no contexto da produção empírica,
que a maneira que um pesquisador se situa frente a sua pesquisa, ao trabalho de campo e análise
também refletem seus posicionamentos elaborados no afetar-se, nas emoções e nas escolhas, o que
claramente indica os princípios e subjetividades durante todo o processo.
38

Situo-me exatamente nos conceitos e rupturas da epistemologia feminista, levando em


consideração não somente a interferência do pesquisador na construção de sua pesquisa, como
também que as próprias dinâmicas sociais consolidadas durante a inserção no campo interferem
sobre suas subjetividades e olhares. Contudo, não parto de uma compreensão ingênua e
romantizada que as interações entre o pesquisador e seu campo são harmoniosamente construídas
por uma parceria entre ideologias, desejos políticos e a comunhão de um entendimento sobre o
que é a ciência e seus desdobramentos. Esse campo é sempre marcado por intersubjetividades, por
cambiantes convicções, contradições e posturas políticas que causam ruídos nessa interação e na
própria interpretação sociológica. Nesse sentido, acredito que tentar refletir sobre a minha posição
e fazer um exercício de politizá-lo, como sugere Costa (2002), no sentido de mostrar os pontos
onde ainda não chego, os silenciamentos produzidos por essa posiocionalidade seja uma forma de
explicitar os desfechos empíricos bem-sucedidos, bem como aqueles que ainda refletem
interrogações e limites dessa pesquisa.

1.2.1 O Trabalho de Campo e a Pesquisadora

Qual é o significado de ser branca no contexto étnico-racial brasileiro? O que significa


ser branca no contexto de Curitiba? O que significa ser branca no contexto de uma pesquisa
sociológica? O que é ser branca no campo de pesquisa? O que é ser branca e falar sobre brancas?
O que é ser branca e criticar outras mulheres brancas? O que é ser branca e falar sobre trabalho
doméstico remunerado no Brasil? O que é ser branca e estar politicamente situada em ativismo
político progressista? O que é ser uma feminista branca? O que é ser uma feminista branca
produzindo uma pesquisa sobre mulheres brancas? O que significa ser branca e escutar o ponto de
vista de mulheres negras? O que é ser branca e tentar politizar-se contra o racismo? O que é ser
branca e se reconhecer como tal?
Essas questões não são necessariamente respondidas nessa tese e nem, ao menos, tentarão
ser. Essas perguntas são os nós de posicionalidades que eu, enquanto pesquisadora, me debati
durante todo o processo dessa pesquisa e que vem me pressionando para tentar me situar em algum
lugar entre o fazer sociológico, a crítica feminista e as subjetividades construídas nesses espaços
enquanto uma mulher branca, magra, universitária, classe média, heterossexual e que advém de
uma família nuclear tradicional.
39

Trazer essas minhas categorias de pocionalidades é tentar superar o desafio das diferenças
articuladas nos interstícios. De acordo com Costa (2002), para a superação desses desafios é
necessário empregarmos métodos críticos, que façam análises complexas, engajamento e foco
local. A autora traz o conceito de “lugar” como essencial, cartografar lugares, principalmente
aqueles “in-between”, pode fornecer ao pesquisador as “ferramentas necessárias para uma melhor
apreensão dos processos através dos quais as diferenças são criadas, ao invés do reconhecimento
e consolidação de identidades discretas e primordiais”. (COSTA, 2002, p.83)

[...] ao invés de dispormos uma categoria paralelamente às outras ao projetar cartografias


do indivíduo, seria melhor se considerássemos uma intersecção muito movimentada, na
qual vários vetores de diferença estão em constante sobreposição, deslocando uns aos
outros, abrindo espaços intermediários (in-between spaces) ou interstícios nos quais o
sujeito se posiciona, não importando quão provisoriamente. Contudo, em termos dos
discursos da diferença, faz-se necessário enfatizar que esses interstícios não devem
continuar sendo percebidos apenas como espaços ontológicos, abstrações
desconstrucionistas ou sinais da diferença pura. Sem dúvida, eles também são o produto,
o material e os efeitos simbólicos de desequilíbrios históricos. (COSTA, 2006, p.81).

Sabendo então desses interstícios ou os espaços chamados “in-between”, onde diversas


autoras estão analisando e situando identidades mais hibridas, temos então que encontrar uma
linguagem ou discurso apropriado que seja capaz de trazer a representatividade, ou ao mesmo
simbolizar, as posições e experiências múltiplas e conflitantes dos sujeitos. Os debates relativos a
“localização” do conhecimento produzido revelam os loci de enunciação e formam a construção
desse conhecimento e dos “outros”, através da inscrição (tanto do observador quanto do
observado) cultural, política, de gênero, classe, raça, etc.. (COSTA, 2006). Essa preocupação não
é nova no feminismo, sendo parte de uma longa herança advinda das tradições hermenêuticas nas
Ciências Sociais. Assim, as teorias pós-modernas, que visam a desconstrução, nos trazem a noção
de que somos sujeitos que ocupam diferentes lugares - privilegiados e de opressão - e que a
narrativa é constituída por esses específicos pontos de vista, que na compreensão de Costa (2002),
se faz tanto no sentido literal quanto metafórico, da localização geográfica, política, mental e
imaginada.
Tomando esses caminho como norteador das minhas reflexões no campo, ainda tenho
como compreensão metodológica o posicionamento do meu campo de pesquisa. Como já apontado
por Minayo e Guerrieiro (2014), o processo reflexivo do pesquisar é parte permanente dos afetos
estabelecidos entre campo, sujeitos, objetos contextos. Refletir sobre todas essas ações, observar
40

a si mesmo e aos comportamento no campo é também um processo ético frente ao tema, ao campo
e aos sujeitos estudados na pesquisa.(MINAYO; GUERRIEIRO, 2014).
Assim, o reconhecimento do meu corpo, da minha história, da minha atual posição de
classe e da minha cor veio, também, através das interações com os sujeitos nos diversos campos
de pesquisa que já realizei ao longo da minha trajetória acadêmica, especialmente o campo de
pesquisa do doutorado. Entre as pesquisas que já fiz, desde pequenas inserções no campo ainda na
graduação, as viagens pela bolsa de iniciação científica e a pesquisa com as diaristas durante o
mestrado, a entrada no campo para a tese foi a mais acessível, rápida e fluída que já tive. Quando
decidi fazer uma investigação a partir do ponto de vista das patroas achei que encontrá-las e
contatá-las seria, no mínimo, dispendioso. Isso porque eu não tinha uma ampla rede de amigos
situados na cidade de Curitiba, e esses poucos amigos não tinham uma contratação mensal e formal
de uma trabalhadora doméstica remunerada, o que poderia limitar o acesso a essas informantes.
Assim, meu primeiro passo foi enviar mensagens, e-mails e recados para todas as minhas
amigas e colegas da Universidade, da aula de inglês, do salão que frequentava, do prédio onde já
havia morado, ou seja, todas as mulheres da minha limitada rede pessoal em Curitiba-PR. Na
mensagem eu falava que gostaria de fazer uma pesquisa sobre o trabalho doméstico remunerado,
do ponto de vista das patroas, sobre a nova legislação vigente e as dificuldades encontradas nessas
contratações trabalhistas - nada além disso. Minhas amigas e colegas me colocaram em contato
com suas amigas e colegas de trabalho, e em menos de três dias eu já tinha quatro entrevistas
agendadas. E em cada entrevista eu perguntava para a entrevistada se ela conhecia mais alguém
para me indicar, pois precisaria de mais contatos. E essas mulheres me indicaram suas amigas,
irmãs, colegas de trabalho, cunhadas, sogras, etc., algumas vezes elas telefonavam para os seus
contatos na minha frente e marcavam a entrevista para mim, outras me levaram com seus carros
na casa de amigas e outras insistiam em dizer “você tem que entrevistar a minha irmã, ela vai te
dizer várias coisas boas, porque ela já teve muita empregada”. Assim, eu realizei quinze entrevistas
em dez dias.
Essas entrevistas foram marcadas no horário e no local estipulado por elas, na maior parte
das vezes me recebiam em suas casas à tarde, quando a trabalhadora doméstica remunerada já
havia terminado o trabalho. Outras entrevistas foram marcadas em espaços públicos como casas
de chá ou na Universidade, ou ainda na casa de outra pessoa da família. Elas sempre cuidavam
para que a entrevista não acontecesse no mesmo espaço ou no mesmo horário onde a trabalhadora
41

estaria, “assim a gente fica mais livre para conversar, daí” – como me disse uma das entrevistadas.
Eu fui muito bem recebida em todas as casas e encontros que tive com essas mulheres, sempre me
acolhendo, servindo cafés, se disponibilizando em me ajudar, eram muito simpáticas, não se
sentiram retraídas ou constrangidas de me responder as perguntas, estavam acessíveis para a
pesquisa.
Essa facilidade de encontrá-las, conversar, escutar e realizar a entrevista deu-se porque
houve aspectos de reconhecibilidade na nossa relação, eram duas mulheres que partilhavam de um
mesmo mundo através da classe social, cor e gênero. Mesmo quando essas eram bem mais velhas
que eu, ainda havia um reconhecimento familiar, eu poderia perfeitamente compartilhar dos
espaços porque tinha características de suas filhas e netas. Os aspectos de reconhecibilidade já
foram amplamente discutidos e desconstruídos por Butler (2010) em seu livro “Marcos de Guerra:
Las Vidas Lloradas”. A autora nos lembra que as normas, organizações sociais e políticas tem se
desenvolvido historicamente para marcar a ontologia dos sujeitos, isto é, estes constituem-se por
meio de normas que, em sua reiteração, produzem e trocam os termos mediante aos quais se
reconhecem. Essas condições normativas para a produção do sujeito geram uma ontologia
historicamente contingente, tal que nossa capacidade de discernir e de nomear o “ser” do sujeito
depende de umas normas que facilitam este reconhecimento segundo operações mais amplas de
poder. Se o reconhecimento caracteriza um ato, uma política ou mesmo um cenário entre sujeitos,
então a “reconhecibilidade” caracterizará as condições mais gerais que preparam e modelam o
sujeito para o reconhecimento; os termos, as convenções e as normas gerais atuam a sua própria
maneira, fazendo com que um ser humano se converta em seu sujeito reconhecível, mesmo que
sem falibilidade ou sem resultados antecipados. Estas categorias, convenções e normas que
preparam ou estabelecem um sujeito para o reconhecimento, que induzem a um sujeito de este
gênero, procedem e fazem possível o ato de reconhecimento propriamente dito. (BUTLER, 2010).
Isso significa dizer que se elas me reconheceram, é porque eu era reconhecível. Algumas
frases foram insistentemente faladas para mim nas entrevistas, como por exemplo, “você sabe bem
como é”, “você já deve ter passado por isso”, “você sabe, né?”. E este reconhecimento no campo,
na análise das obras, manuais, no olhar atento das produções midiáticas, nas conversas entre
amigas, etc. me fez ter um posicionamento ambíguo frente a essa pesquisa: o que eu desejaria ser
e o que de fato eu sou. Eu não posso negar que o campo só se construiu nesses harmoniosos termos
42

porque além de ser branca, eu possuo características, marcos, pontos de interpretações corporais
de uma patroa. E é claro que eu não gostaria de ter me reconhecido nessa posição.
Um sentimento que pode parecer um tanto quanto ingênuo frente a realidade explicita,
mas que mexe exatamente nas minhas compreensões e posições políticas, nos meus
enfrentamentos e posições de mundo, na minha própria construção subjetiva enquanto sujeito. Eu
não gostaria de ter me reconhecido nessa posição porque há anos venho criticando, apontando,
julgando, ficando com raiva e indignada com alguns posicionamentos advindos de empregadoras
e de alguns setores da classe média. E todos esses sentimentos não foram minimizados ao longo
da pesquisa, ou ao menos, percebidos com outros olhares, o que se reflete perceptível na maneira
como eu escrevi o texto, nas ênfases a determinados detalhes e na própria análise do campo.
Assim como Crapanzano (1986), em sua etnografia na África do Sul, durante o apartheid,
ao pesquisar o discurso dos brancos, como essas pessoas entendiam a si mesmas, suas palavras,
percepções sobre o passado, futuro, sobre limites e possibilidades e como esses discursos estavam
estritamente ligados com as práticas discriminatórias extremas da segregação, mas também
configuravam práticas cotidianas que interferiam drasticamente na vida dos não brancos, se
posiciona frente a esse grupo estudado e a relação com o sistema político, com as palavras racistas
e descriminações profundas de uma forma não neutra, passando por momentos reflexivos e
etnografando em uma posição política clara sobre isso.

I did not come to South Africa as a neutral observer. I came morally and politically
outraged at the brute, unmediated legislation of human inferiority. […] I was horrified by
the depths to which humans will sink to preserve their trivial privilege and disgusted by
the accommodations that others, outsiders, make with such humans their privilege. I
indulged myself in my horror and disgust and learned later that my indulgence was itself
a symptom of the “system”. […] I had spent months in shanty towns, in expensive
countries, with people who earn less in a year than I have spent on taxis in a week. So, I
could cast myself as a cynic. I had read, I had heard, I had witnessed, from a distance.
(CRAPANZANO, 1986, p.23-24)11.

11
Eu não vim para a África do Sul como um observador neutro. Eu vim moralmente e politicamente indignado com
a brutal, não mediada legislação de inferioridade humana. Eu fiquei horrorizado com as profundezas em que os
humanos se afundam para preservar seus triviais privilégios e revoltado pelas acomodações que os outros, estranhos,
faziam para que esses humanos tivessem privilégio. Entreguei-me ao meu horror e a revolta e aprendi mais tarde que
a minha indulgência era um sintoma do "sistema". [...] Eu estive por meses em favelas, em países caros, com
pessoas que ganham menos em um ano do que eu gastei em táxis em uma semana. Então, eu poderia me lançar
como um sínico. Eu li, ouvi, testemunhei de uma distância. (tradução livre).
43

A obra de Crapanzano (1986) ainda nos possibilita refletir sobre as múltiplas


poscionalidades que uma pesquisa exige, desde estes múltiplos lugares pode-se fazer parte de
certos grupos étnico-raciais, de orientação sexual, classe, posições geográficas, etc. e não realizar
pesquisas sobre a realidade da qual vivem, ao mesmo tempo que pode-se ser parte constituintes
destes e empreender uma pesquisa sobre essa realidade, ou, como no meu caso, fazer parte dele e
não se identificar com o discurso dominante do grupo.
Eu ainda contínuo com críticas profundas a maneira como o trabalho doméstico
remunerado é estabelecido no país, nas instituições que ainda limitam o reconhecimento pleno e
legal dos direitos trabalhistas e das formulações e práticas cotidianas sobre esse trabalho advindos
da classe empregadora, mesmo inserida nela de uma certa forma. Frente a essa constatação, me
questionei sobre os métodos da crítica cultural, “research activism” e as essencializações e
posições do pesquisador no campo, como bem aponta Hele (2005). Em seus questionamentos em
relação a sua posição de antropólogo e de outros colegas nas pesquisas sobre direitos territoriais
indígenas na Nicarágua, Hele (2005) vai nos mostrando como muitas vezes o “essencialismo
étnico” é usado como estratégico, como os “conhecimentos situados” podem se tornar armas
políticas e como alguns pesquisadores e ativistas usam o “sistema para atacar o sistema”, assim
como muitos acadêmicos usam a legitimidade científica para defender suas pesquisas. De tal
modo, me questionei como poderia usar a minha identidade e posicionalidade na pesquisa que
também abarcassem as minhas concepções políticas.
Portanto, utilizei do meu espaço privilegiado de escuta para evidenciar como ainda certas
estruturas de poder são mantidas nas práticas cotidianas domésticas, tanto em relação as
desigualdades que as próprias empregadoras passam em suas residências, como as que elas
mesmas reproduzem na interação e contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada. Esse
posicionamento frente ao campo de pesquisa não é para me livrar de culpas, e nem uma forma de
presumir que eu estaria “ajudando” o grupo “subalterno dessa relação”. O reconhecimento da
minha identidade e posicionalidade na pesquisa é justamente para mostrar o lugar de onde falo, os
limites impostos por essas características e os sujeitos silenciados nesse processo.
O reconhecimento de que eu tinha acesso a lugares e espaços privilegiados, que eu possuía
características que posicionavam a minha identidade em pontos de poder e, algumas vezes, de
opressão me fez questionar mais incisivamente as relações raciais. É claro que enquanto feminista
não deixei de notar as desigualdades que ainda perpassam a vida dessas mulheres. De toda forma,
44

o que se mostrou uma questão insistentemente incomoda para mim foram as relações étnico-raciais
nesse campo de pesquisa.
É importante dizer que não parto do pressuposto que ser branca é uma condição pré-
existente para contratar uma trabalhadora doméstica remunerada, e que não existam outros arranjos
nessas relações de trabalho constituídas por outras lógicas étnico-raciais. Inclusive, a cidade de
Curitiba é uma das que melhor nos permitem ver as variações dessa lógica, pois em muitos casos,
as empregadoras relatavam a contratação de uma trabalhadora “alemã”, “polaca”, “sudaca”, o que
não as livravam de comentários e termos racistas em relação a esses outros grupos. Mas, o que foi
se tornando evidente ao longo da pesquisa para mim – tanto na realização das entrevistas como na
análise das obras – é que as desigualdades étnico-raciais são um dos pontos chaves para tentar
compreender esse trabalho no país, seja por ser parte de uma cultura doméstica que preserva a
necessidade da contratação, seja pelos acessos de posições e hierarquizações construídos pelas
diferenças étnico-raciais. O que não posso deixar de dizer é que ser branca, nessa pesquisa, foi um
condicionante para moldar e influenciar o campo de pesquisa e consequentemente a pesquisadora.
Assim, assumindo esse espaço, sentimento e afeto do lugar liminar, do estar reconhecida
entre a classe empregadora, mas não querer ser uma patroa, de escutar posicionamentos políticos
que lhes parecem justos, mas identificar as opressões nessas entrelinhas discursivas, da
liminaridade de um feminismo “branco”, de posições acadêmicas, de estar em uma cidade que
preserva historicamente um conservadorismo nas suas instituições que realizei essa pesquisa, na
fronteira e na interação afetiva comigo mesma e com o tema.
Passo então a descrever a técnica de entrevista semiestruturada realizada com 15
empregadoras na cidade Curitiba-PR no ano de 2015, assim como apresento um quadro
socioeconômico destas para visualizarmos as características como composição familiar, inserção
no mercado formal de trabalho, renda, idade, escolaridade para mostrar como essas mulheres se
posicionam frente as dicotomias público e privado, e perante as relações do trabalho doméstico
remunerado. A apresentação do perfil destas se faz importante para localizar por onde essas
narrativas são construídas e por quais espaços a “cultura doméstica” se coloca.
45

1.2.2 As Entrevistas

A técnica de entrevistas semiestruturadas foi utilizada nessa pesquisa para alcançar o


objetivo de buscar as representações e reconfigurações da cultura doméstica, assim como escutar
as demandas e necessidades enumeradas pelas patroas e suas percepções sobre a legislação
vigente.
Como uma maneira de apreender o ponto de vista dos sujeitos, a entrevista
semiestruturada nos possibilita ir além das percepções individuais, nos mostrando informações e
lógicas de grupos, instituições e da própria conjuntura social. (POUPART, 2008). Para isso, foi
elaborado um questionário com vinte perguntas que direcionavam as respostas sobre a constituição
do olhar da patroa sobre a sua casa, suas percepções de eficiência, suas histórias em relação as
trabalhadoras domésticas remuneradas (se quando crianças tiveram babás, quando foi necessário
fazer a primeira contratação em suas vidas adultas, por exemplo) suas mais marcantes experiências
com essa relação trabalhista, expectativas, emoções, desejos, compreensões de falhas,
profissionalismo, afetividades, e por último, perguntas que se reportavam a legislação vigente
atual, suas percepções, interpretações, desafios de implementação e as consequências que esse
novo aporte legal gerou nessas relações empregatícias.
É importante dizer que doze patroas entrevistadas tinham uma trabalhadora doméstica
remunerada mensal em suas casas, ou seja, uma trabalhadora que convivia diretamente com a
família empregadora. No entanto, três dessas empregadoras tinham recém trocado o vínculo
empregatício por uma diarista, pois de acordo com elas, a relação com a nova lei dificultou
enormemente esse contrato mensal. Como esses três casos tinham ocorrido recentemente, e eu
pude observar por meio dessas entrevistas as lógicas das empregadoras sobre a legislação, as
mantive como uma importante fonte empírica narrativa, pois demostram o processo de mudança
da dinâmica doméstica, as emoções frente a isso e as percepções sobre como a nova lei interferiu
em suas vidas.
Por mais que a entrevista tinha um roteiro semiestruturado, eu sempre tentava deixá-la
correr da forma mais natural e informal possível, assim quando elas começavam a falar de outros
aspectos vinculados à essas relações empregatícias eu deixava a narrativa fluir normalmente, sem
estar totalmente presa ao questionário. Foi justamente por essa liberdade na entrevista, e por muitas
vezes, elas parecerem mais um bate papo corriqueiro, foi possível perceber e compreender aspectos
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da subjetividades dessas patroas referentes ao casamento, educação dos filhos, “construção do lar”,
suas percepções de si mesmas frente as demandas de trabalho domésticas e públicas, suas
satisfações e conceitos de liberdade. Esses outros aspectos foram igualmente importantes para a
compreensão de como a cultura doméstica foi instituída e é reproduzida por essas mulheres.
Depois do material coletado, as entrevistas foram transcritas em sua forma literal,
respeitando silêncios, sorrisos, gargalhadas, expressões, pausas, intervenções, tudo que aconteceu
durante o tempo que estávamos falando sem nenhum tipo de modificação, alteração ou edição.
Assim, preservamos os significados e os sentidos das ações por meio da narrativa e análise dos
dados, como bem aponta Deslauriers (2008). A única modificação realizada na pesquisa foi a troca
dos nomes reais dessas mulheres, dos membros de suas famílias e das trabalhadoras domésticas
remuneradas por nomes fictícios, preservando a confidencialidade e identidade das informantes.
A interpretação desses dados e das entrevistas foi realizada na percepção, observação e
compreensão dos significados e sentidos que essas mulheres constituíam em suas vidas em relação
aos objetivos proposto. Eu busquei as entrelinhas subjetivas e descrições práticas e lógicas das
empregadoras em relação as demandas de uma casa, ao trabalho doméstico remunerado e a
ampliação de direitos trabalhistas destas. Esse conteúdo foi analisado por uma interposta base
teórica que considera a crítica feminista sobre as representações domésticas, a divisão sexual do
trabalho, teorias sobre emoções, visualizando as desigualdades de classe e étnico-raciais marcadas
em contexto de desigualdade de gênero.
Outro ponto a ser ressaltado do processo do campo é que juntamente com a entrevista foi
aplicado um questionário socioeconômico, para identificar dados como idade, tamanho da família,
escolaridade, profissão, carga horária, remuneração salarial da entrevistada, e renda mensal
familiar (incluindo o salário de outros integrantes da casa). A aplicação desse questionário foi
relevante para identificarmos as características econômicas dessas empregadoras.

Segue-se então a descrição dessas empregadoras e os dados socioeconômicos.

Patroas:

Tereza (entrevista 1): Tereza tem 40 anos, está vivendo o seu segundo casamento, possui um
filho adulto que está na Universidade Federal do Paraná cursando faculdade de engenharia e uma
menina de 12 anos. É curitibana e vive na cidade, já morou no Rio de Janeiro por 5 anos. Ela está
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terminando estágio do curso de Ensino Superior em Nutrição. Ela também trabalha em um salão
com depilação e possui uma renda em torno de 1 a 4 salários mínimos (788,00 a 3.152,00 reais).
A renda familiar, agregando o salário do marido, chega de 10 a 13 salários mínimos (7.888,00 a
12.620,00 reais). Tereza é branca, cabelos escuros e curtos, fez a entrevista em sua casa, no meio
da tarde em um dia que a trabalhadora doméstica remunerada tinha faltado. Ela usava roupas
brancas, pois tinha saído do estágio. Tereza mora em uma casa no Xaxim. Sua casa não é muito
grande, contém três quartos, uma cozinha, uma sala, um grande quintal com churrasqueira. A
família possui dois carros.

Júlia (entrevista 2): Júlia tem 62 anos, é casada há mais de 30 anos. Ela é nascida em Curitiba e
possui o Ensino Médio completo. Em sua casa moram além do marido, uma filha e um neto (mas
a outra filha e netos vão almoçar diariamente em sua casa). A filha é aluna de pós-graduação na
Universidade Federal do Paraná. Júlia não trabalha no mercado formal de trabalho, então não
possui uma renda própria. A renda familiar de sua casa é em torno de 18 a 21 salários mínimos
(14.972,00 a 16.548,00). Júlia é branca. Nós fizemos a entrevista em uma casa de chá, em uma
trade fria, no bairro Mercês, ela tinha acabado de sair da aula de dança e vestia roupas de ginastica,
no final da entrevista ela me deu carona em seu carro até o centro da cidade. Júlia mora perto do
Parque Barigui.

Patrícia (entrevista 3): Patrícia tem 68 anos, é divorciada e mora na mesma casa da mãe que na
época estava com 94 anos. Ela é formada em odontologia e trabalhou por muitos anos na área, hoje
é aposentada. Possui três filhos, que já são todos casados e moram em suas residências. A sua
renda é em torno de 4 a 7 salários mínimos (3.152,00 a 5.516,00 reais) e a renda familiar é entre
16 a 19 salários mínimos (12.680,00 a 14.972,00 reais). Patrícia é branca. A entrevista foi realizada
na sua casa, pela manhã, a trabalhadora doméstica remunerada estava presente na casa, mas não
perto da sala onde foi realizada a entrevista. A casa de Patrícia fica no bairro Água Verde. Sua
casa é antiga, muito grande, com jardim, garagem e quintal. Não pude saber como era o restante
da casa, pois me recebeu na sala de visitas e ficamos por lá.

Flávia (entrevista 4): Flávia tem 38 anos, casada e possui um filho de sete anos e uma filhinha
recém nascida. Ela nasceu em Curitiba. É formada em Farmácia e possui uma renda de
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aproximadamente 1 a 4 salários mínimos (788,00 a 3.152,00) e a renda familiar é de mais de 21


salários mínimos (mais de 16.548,00 reais). Flávia advém de uma família asiática. Nós fizemos a
entrevista em sua casa, no final da tarde quando a trabalhadora doméstica remunerada já havia ido
embora. A entrevista foi realizada na cozinha de sua casa, de uma maneira bem informal e tomando
um cafezinho. Ela usava calça jeans, camisa e uma sapatilha. Sua casa se localiza no Pilarzinho, é
grande, nova, dois andares, com uma decoração moderna. A parte inferior da casa – a que pude
conhecer – tinha uma cozinha bem equipada e pequena, uma sala de jantar e uma sala de televisão.

Mônica (entrevista 5): Mônica tem 37 anos, é casada e possui uma filha de nove anos. É nascida
em São Paulo e mora na cidade há muitos anos. É pós-graduada e trabalha como professora
universitária, sua renda mensal é de 10 a 13 salários mínimos (7.888,00 a 10.244,00 reais) e a
renda familiar mensal é de 16 a 19 salário mínimos (12.680,00 a 14.972,01 reais). Ela é branca. A
entrevista foi realizada em uma sala na Universidade Federal do Paraná pela manhã, pois ela
precisava resolver algumas coisas no centro da cidade e pode ir até o prédio e me dar uma
entrevista. Mônica vive em um sobrado no bairro Abranches.

Leila (entrevista 6): tem 64 anos, casada, nascida em Curitiba e possui uma filha que já não mora
mais com ela. Ela é formada em pedagogia e trabalha na área, sua renda mensal está entre 4 a 7
salários mínimos (5.516,00 a 7.888,00 reais) e a renda familiar era de mais de 21 salário mínimos
(16.548,00 reais). Leila é branca. A entrevista foi realizada em sua casa no bairro Pilarzinho, no
final da tarde, no dia que a trabalhadora doméstica remunerada faltou. Leila tinha uma casa de dois
andares, com quintal, jardim, cozinha, sala de televisão, lavabo, dois quartos e uma suíte.

Dinorá (entrevista 7): Dinorá tem 80 anos, é viúva e possui três filhas e um filho que ainda mora
com ela. Dinorá não é brasileira e veio da Europa quando se casou, há 60 anos. Ela possui Ensino
Superior completo, mas nunca trabalhou na área. Hoje vive com a aposentadoria do seu marido,
mas não quis me dizer aproximadamente quanto era pois tinha receio que os dados dessa pesquisa
cruzassem os declarados para a Receita Federal. Dinorá é branca, cabelos grisalhos e curtos.
Apesar de ser a entrevistada mais velha, ela tinha uma vida muito agitada, independente e fazia
muitas coisas sozinhas, não tendo comprometimentos físicos ou alguma doença que pudesse a
deixar mais limitada. A entrevista foi realizada em seu apartamento, no bairro Batel. O
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apartamento de Dinorá era muito grande, contendo diversas salas, quartos e uma cozinha muito
espaçosa. Não pude conhecer todo o apartamento, pois ficamos mais na sala de leitura, do qual era
impecavelmente decorada.

Nara (entrevista 8): Nara tem 59 anos, é casada e possui um filho que já é casado e mora em outra
residência, e uma filha adulta que mora com ela. Ela é nascida no interior do Estado e mora na
cidade há muitos anos. É formada em Direito e trabalhou durante muitos anos na área, hoje é
aposentada e tem uma renda entre 7 a 10 salário mínimos (5.516,00 a 7.888,00 reais). A renda
familiar mensal é de 16 a 19 salários mínimos (12.680,00 a 14.972,00 reais). Nara é branca, cabelos
escuros e curtos. A entrevista foi realizada em seu apartamento no bairro Água Verde. Seu
apartamento possui três quartos, sendo um deles suíte, sala de televisão, sala de visitas e uma
cozinha ampla.

Helena (entrevista 9): Helena tem 34 anos, casada e não possui filhos. Ela nasceu em Curitiba e
sempre morou na cidade. Ela possui duas graduações e uma pós-graduação, trabalha para o Estado
do Paraná e tem uma renda de aproximadamente 4 a 7 salários mínimos (5.516,00 a 7.888,00
reais). A renda familiar é de mais de 21 salários mínimos (16.548,00 reais). Helena é branca,
cabelos escuros e compridos. A entrevista foi realizada pela manhã no seu local de trabalho,
quando ela teve um intervalo entre os horários de atendimento. Ela mora em um apartamento no
bairro Alto da XV.

Marcela (entrevista 10): Marcela tem 38 anos, casada, nascida em São Paulo e tinha se mudado
recentemente para Curitiba, tem um filho de oito anos. Ela tinha Ensino Superior Completo, mas
não trabalhava na área. Ela administrava cursos de depilação e ganhava entre 1 a 4 salários
mínimos (788,00 a 3.152,00 reais) realizando esse trabalho, e a renda familiar é de mais de 21
salários mínimos (mais de 16.548,00 reais). Marcela é branca, cabelos bem escuros e compridos.
A entrevista foi realizada na escola de inglês de seu filho, pois ela teria esse tempo livre e me cedeu
a entrevista enquanto a aula terminava. A escola de inglês ficava no bairro Santa Cecília.

Angélica (entrevista 11): Angélica tem 40 anos, solteira (estado civil), mora com o marido e com
a filha de nove anos, ela também tem outro filho adulto que já não mora com a família. Ela é do
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Interior do Paraná, morou por 10 anos em Curitiba e iria voltar para o interior do Estado em
algumas semanas. Ela completou o Ensino Médio e trabalhava como consultora de uma empresa
de cartão de crédito. Sua renda é em torno de 1 a 4 salários mínimos (788,00 a 3.152,00 reais), e a
renda familiar estava em torno de 10 a 13 salário mínimos (7.888,00 a 10.244,00 reais). Angélica
é branca, loira e cabelos compridos. A entrevista foi realizada em sua casa no bairro Xaxim. O
sobrado em que morava tinha dois andares, três quartos, cozinha, sala de televisão, dois banheiros
e garagem.

Rita (entrevista 12): tem 54 anos, casada, curitibana, e mora somente com o marido atualmente.
Ela tem duas filhas que já são casadas e moram em outras residências. Ela tem o Ensino Médio
completo e atualmente não está no mercado formal de trabalho, não possuindo renda própria. A
renda familiar ultrapassa 21 salários mínimos (16.548,00 reais). Rita é branca, loira e cabelos
curtos. A entrevista foi realizada em sua casa, durante o início da tarde, na presença da trabalhadora
doméstica remunerada. A casa se localiza no bairro Abranches. Sua casa tinha sala de visitas, sala
de televisão, sala de jantar, cozinha, dois quartos e uma suíte.

Claúdia (entrevista 13): Claúdia tem 59 anos, casada. Ela tem duas filhas adultas, já casadas e
que não moram mais com ela. Ela é pós-graduada e trabalha em seu escritório até hoje, porém
apenas meio período. Sua renda mensal está em torno de 7 a 10 salários mínimos (5.516,00 a
7.888,00 reais), e a renda familiar é de mais de 21 salários mínimos (16.548,00). Ela é branca,
loira, cabelos curtos. A entrevista foi realizada na casa de sua mãe, pois ela precisava acompanha-
la durante a tarde e me cedeu a entrevista. A sua casa fica localizada no bairro Água Verde. A todo
tempo ela me dizia que a sua casa era maior que a casa onde estávamos fazendo a entrevista, o que
me pareceu realmente grandiosa.

Rosa (entrevista 14): tem 55 anos, casada. Ela tem um filho mais velho que já é casado e mora
em outra casa, e uma filha que reside com ela e é aluna de pós-graduação da Universidade Federal
do Paraná. Rosa é formada em administração e tem uma pequena empresa, sua renda mensal é de
aproximadamente de 1 a 4 salários mínimos (788,00 a 3.152,00 reais) e a renda familiar é de 10 a
13 salários (7.888,00 a 10.244,00 reais). Rosa é branca. A entrevista foi realizada em sua casa no
bairro Xaxim. A sua casa não é nova, porém muito espaçosa e com vários cômodos. Eu não pude
51

conhecer a casa porque o seu marido estava trabalhando em um dos cômodos, assim ficamos
apenas na cozinha.

Verônica (entrevista 15): Verônica tem 42 anos, divorciada e vive sozinha, pois os dois filhos já
residem em outras casas. Ela nasceu no interior do Paraná e mora em Curitiba há muitos anos.
Tem o Ensino Médio completo, trabalha como professora e tem uma renda de aproximadamente
7 a 10 salários mínimos (5.516,00 a 7.888,00 reais). Verônica é branca. A entrevista foi realizada
em seu apartamento no bairro Água Verde. O seu apartamento possuía dois quartos, uma suíte,
banheiro, cozinha, sala de televisão e sala de jantar.
Obs.: o salário mínimo estipulado pelo Governo Federal em 2015 era de R$788,00.

Todos esses dados são melhor visualizados na tabela a seguir.


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QUADRO 1 - DADOS GERAIS E SOCIOECONÔMICOS DAS EMPREGADORAS


Nome Cor Idade Estado Civil Lugar nascimento Escolaridade Membros residentes Renda mensal patroa Renda Familiar Mensal
4: um filho, filha e 1 a 4 salários (788.00 a 10 a 13 salários (7888.01 a
Tereza Branca 40 anos casada Curitiba Ensino Médio
marido. 3152.00 12620.00)
4: ela, maido, filha e o 18 a 21 salários (14972.01
Júlia Branca 62 anos casada Curitiba Ensino Médio 0
neto a 16548.01)
Ensino Superior/ 4 a 7 salários (3152.01 16 a 19 salários (12680.01
Patrícia Branca 68 anos divorciada Curitiba 2: ela e a mãe
Odontologia a 5516.01) a14972.01).
4: marido, filho e filha 1 a 4 salários (788.00 a Mais de 21 salários
Flávia Amarela 38 anos casada Curitiba Ensino Superior
recem nascida 3152.00) (16548.01)
10 a 13 salários 16 a 19 salários (12680.01
Mônica Branca 37 anos casada São Paulo Pós Graduação 3: marido, ela e filha
(7888.00 a 10244.00) a14972.01).
7 a 10 salários Mais de 21 salários
Claúdia Branca 59 anos casada Curitiba Pós Graduação 4: marido e duas filhas
(5516.01 a7888.00) (16548.01)
Dinorá Branca 80 anos viúva Extrangeira Ensino Superior 2: ela e um filho não quis dizer
7 a 10 salários 16 a 19 salários (12680.01
Nara Branca 59 anos casada Interior do Paraná Ensino superior 3: ela, marido e filha
(5516.01 a7888.00) a14972.01).
4 a 7 salários (3152.01 Mais de 21 salários
Helena Branca 34 anos casada Curitiba Pós Graduação 2: marido
a 5516.01) (16548.01)
1 a 4 salários (788.00 a Mais de 21 salários
Marcela Branca 38 anos casada São Paulo Ensino Superior 3: marido e filho
3152.00) (16548.01)
1 a 4 salários (788.00 a 10 a 13 salários (7888.00 a
Angélica Branca 40 anos solteira Interior do Paraná Ensino Médio 3: marido e filha
3152.00 10244.00)
Mais de 21 salários
Rita Branca 54 anos casada Curitiba Ensino Médio 2: ela e o marido 0
(16548.01)
4 a 7 salários (3152.01 16 a 19 salários (12680.01
Leila Branca 64 anos casada Curitiba Ensino Superior 2: ela e o marido
a 5516.01) a14972.01).
1 a 4 salários (788.00 a 10 a 13 salários (7888.00 a
Rosa Branca 55 anos casada Curitiba Ensino Superior 3: marido e filha
3152.00 10244.00)
7 a 10 salários
Vêronica Branca 42 anos divorciada Interior do Paraná Ensino Médio mora sozinha 0
(5516.01 a7888.00)

FONTE: Monticelli, Thays. 2016.


53

1.2.3 Análise Socioeconômica das patroas entrevistadas

Em relação aos dados apresentados, podemos traçar um perfil socioeconômico sobre as


patroas entrevistadas, assim como expor o contexto no qual essa pesquisa foi realizada. Nota-se
que há diferenciações regionais no Brasil que precisam ser evidenciadas nas pesquisas
sociológicas, para que as análises possam contribuir com as especificidades e características que
moldam diferentes realidades sociais.
De acordo com Monçores (2014), em sua pesquisa com os dados da POF (Pesquisa de
Orçamentos Familiares) de 2009, 17% das famílias brasileiras contam com a contratação de uma
trabalhadora doméstica remunerada. Entre essas 10.101.047 famílias, há 8,9 milhões de
empregadoras (patroas) no Brasil, sendo que 72,15% se declararam brancas, 26,5% de declararam
pretas ou pardas. Esses dados eram proporcionalmente opostos aos dados relativos as trabalhadoras
domésticas remuneradas, pois 61,2% se declaravam pretas ou pardas e 37,6% se declaravam
brancas. “Entre as mulheres negras, esta proporção chegava a 24,8%. Isto significa que quase uma
a cada quatro mulheres pretas ou pardas ocupadas no Brasil era empregada doméstica no período
em que a pesquisa foi a campo.” (MONÇORES, 2014, p.54) – ainda soma-se a esse quadro, que
23% das filhas das trabalhadoras domésticas remuneradas também estavam ocupadas nessa mesma
profissão.
Monçores (2014) nos mostra também que 57, 6% das contratantes de uma trabalhadora
doméstica remunerada estavam inseridas no mercado formal de trabalho, ocupando
majoritariamente o serviço público (32%), seguido por trabalho por conta própria (23,9%). As
famílias empregadoras tinham renda maior de R$2.305,32 e as mulheres ganhavam em média
R$960,42. 35% das empregadoras eram a referência financeira familiar e 64% era o cônjuge. Ao
comparar esses dados de rendimento mensal com as das trabalhadoras domésticas remuneradas
(que ganhavam em média R$423,99), a autora conclui que “em janeiro de 2009, as empregadoras
auferiam rendimentos em média 443,7% maiores do que aqueles observados para as empregadas
domésticas, e 140,0% mais elevados do que a média das mulheres ocupadas acima de 25 anos.”
(MONÇORES, 2014, p. 56).
Ainda de acordo com a pesquisadora, essas empregadoras tinham em média 10,6 anos de
escolaridade, 53% tinham mais de 45 anos, 25,3% mais de 60 e apenas 12% tinham menos de 29
anos, nos apontando que as mulheres mais jovens não são as principais contrates no país, sendo
54

esse trabalho mais acessado a partir do momento em que se casavam ou tinham filhos. 52% das
famílias que contratavam uma trabalhadora doméstica remunerada eram biparentais, sendo que
20,4% dessas famílias eram casais sem filhos, 13,4% das famílias eram chefiadas por mulheres,
9% eram chefiados por homens e 13,85 não tinham filhos. Apenas 2% eram chefiados por homens
que viviam com seus filhos. (MONÇORES, 2014). Uma curiosidade encontrada por Monçores
(2014) era que, proporcionalmente, as famílias que mais contratavam uma trabalhadora doméstica
remunerada não tinham filhos, evidenciando um aspecto de maior renda (57% a mais que os casais
com filhos) e menor gasto em despesas familiares, podendo assim contar com essa contratação.
Concluindo, a autora (2014) nos remete a uma análise de classe fundamentada no dado que
85,7% das famílias empregadoras se situavam entre os mais ricos, na tabela de distribuição, do
Brasil. Claramente as trabalhadoras domésticas remuneradas ocupavam o quinto mais pobre dessa
mesma tabela. Ainda de acordo com Elisa Monçores (2014), havia diferentes concentrações do
número de contratações de trabalhadoras domésticas remuneradas em cada região do Brasil. A
região que tinha o menor número era o Norte (12,4%), Nordeste (13%), seguido do Centro Oeste
(17,4%), Sudeste (19,3%) e por último a região o Sul (22,1%) com o maior número de
contratações.
Na pesquisa de mestrado realizada por mim em 2013, foi possível perceber de acordo com
os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2012, que a região Sul já
apresentava particularidades em relação ao trabalho doméstico remunerado diferenciadas do
restante do país. 35% dessas trabalhadoras recebiam entre 1 a 2 salários mínimos, média maior
que a do Brasil, mas que ainda preservava 58,6% com salários abaixo do estipulado pelo Governo
Federal e apenas 33% tinham carteira de trabalho assinada. A principal diferença talvez seja em
relação a conjuntura étnico-racial. Das 910.446 mil mulheres trabalhadoras domésticas
remuneradas da região Sul, 65,29% se declararam brancas e apenas 29,15% se declararam pretas
ou pardas. Essa mesma proporção se aplicava ao Estado do Paraná, onde 60,09% se declararam
brancas e 35,09% à cores preta ou parda. Lógica igualmente reproduzida na Região Metropolitana
de Curitiba, onde a maioria dessas trabalhadoras se consideram brancas, o que equivale a 59,73%
das 107.546 mil trabalhadoras na cidade e 32,76% que se consideram negras. Ainda nesse
contexto, 46% recebiam de 1 a 2 salários mínimos, média maior que a nacional e que do Estado
do Paraná, a Região Metropolitana de Curitiba ainda contava com 41% de trabalhadoras com seus
direitos trabalhistas garantidos pela carteira de trabalho assinada. (MONTICELLI, 2013).
55

Nesse aspecto, temos um desafio a ser evidenciado. Falar sobre o trabalho doméstico
remunerado no contexto da região Sul do Brasil, mais especificamente a capital do Estado do
Paraná – Curitiba, é falar de um trabalho doméstico remunerado “branco” e com um número de
contratações legais superior à média nacional. Esse dado poderia contradizer toda uma articulação
teórica e metodológica dos meus objetivos, e dos meus posicionamentos perante o campo de
pesquisa. No entanto, o que venho acompanhando é que a “cultura doméstica” está embasada em
diversos pressupostos de diferenciações e hierarquizações, moldando comportamentos, práticas e
formação de um imaginário doméstico e, consequentemente, dos símbolos, lugares, espaços e
performances que uma trabalhadora doméstica remunerada precisa estar e ser. Mas é justamente
nesse contexto, onde não há as mesmas similaridades com outras regiões brasileiras, que podemos
perceber também outras minucias da composição e reconfiguração da “cultura doméstica”, pois
mesmo em um contexto “diferente”, muitas reproduções da “cultura doméstica” foram observadas
nas entrevistas realizadas em Curitiba- PR sobre a limpeza, organização, cuidados e intimidades .
As formas discriminatórias e de diferenciações estão pautadas por relações de poder domésticas,
para manter e reproduzir aspectos das desigualdades nas formas de interação cotidiana. Nesse
sentido, as expressões e conotações de cunho racista que escutei nas entrevistas vem nos apontar
que este é um importante ponto para estabelecer diferenciações e manter as relações hierárquicas
de poder, mesmo quando se tratava de interações entre pessoas brancas. De toda forma, faz-se
necessário apresentar um pouco do contexto curitibano e suas particularidades.
Construída como a imagem de um “Brasil diferente”, Curitiba-PR tem em sua formação,
tanto geográfica quanto ideológica, o processo de imigração como característica fundante de seus
processos econômicos, políticos e culturais. De acordo com Oliveira (2007), a cidade utilizou de
três pontos chaves primordiais para se ancorar em uma identidade nada parecida com a
“brasileira”, primeiramente porque não se institui na região a clássica sociedade luso-brasileira
através das relações senhoriais, da monocultura de exportação e dos grades latifúndios. O segundo
ponto é um economia pautada por preceitos capitalistas, até mesmo nos tempos coloniais, por meio
das indústrias, do mate e da madeira. E por último, a ideia da forte presença do imigrante europeu,
propiciando características mais culturais diferenciadas do restante do país, que teria modificado
drasticamente o perfil da população. (OLIVEIRA, 2007). A marginalização da cultura negra
também tem seus preceitos advindos dessa formação ideológica e política, já que, de fato, grande
parte da mão de obra escrava paranaense foi vendida para os cafeicultores paulistas, e que
56

houveram políticas que não incentivavam a compra de escravos, como por exemplo, em 1861 que
a câmara de Curitiba proibiu que escravos trabalhassem no comercio da cidade, propiciando a
contratação de trabalhadores imigrantes. “As imagens em torno do caráter benéfico do “imigrante
trabalhador” em oposição ao escravo em vias de “desaparecimento” surgem neste momento e, em
1872, a população imigrante residindo em Curitiba já era de 1.339 indivíduos ou 11% do total”.
(OLIVEIRA, 2007, p.2). Entre 1829-1911 a cidade recebeu 85.537 imigrantes advindos da
Alemanha, Polônia e Russia (alemães do Voga). (OLIVEIRA, 2007).
Utilizando então desse processo de formação, os paranistas nos primeiros anos do século
XIX, utilizam desses símbolos para pensar a identidade do povo paranaense e vinculá-lo a uma
ideia de pertencimento à região, usando também o clima mais frio e montanhoso para uma maior
associação com a Europa. O “mito” de uma cidade “diferente” se propaga ao longo da história e é
plenamente vista nas expressões culturais, planejamento urbano e administração pública, por
exemplo. (OLIVEIRA, 2007). O que é importante salientar é que a cidade teve como construção
ideológica que a europeização da região era uma característica a se vangloriar, pois se diferenciava
de um Brasil negro, desorganizado, sujo e violento. Se distinguindo então economicamente,
politicamente e culturalmente pelas mãos do imigrante trabalhador branco. (OLIVEIRA, 2007).
Essa lógica é reproduzida até os dias de hoje, em que a sociedade curitibana preserva em seus
pontos turísticos, narrativas e compreensões regionais um espaço que não foi “contaminado” pela
população e cultura negra, pelas desorganizações lusitanas e por um “tropicalismo” brasileiro.
(BODÊ DE MORAES; SOUZA, 1999).
À despeito dessa elitização política ideológica, Curitiba também preserva características
muito semelhantes ao restante do Brasil, principalmente quando adentramos os lares e as
residências de sua população. Na pesquisa de campo realizada com as patroas, percebe-se que as
questões relativas a divisão sexual do trabalho, as posições e papéis de cada membro da família e
as posições de poder resultantes desses processos em nada se assemelha ao mundo mais “moderno”
ou “europeizado” – onde concepções mais igualitárias em relação as responsabilidades domésticas
são pensadas e compartilhadas por outras formas e políticas. A família tradicional heteronormativa
foi um quadro constante que se apresentou ao longo da pesquisa, nos trazendo importantes pontos
reflexivos sobre as reconfigurações da “cultura doméstica” em relação as suas compreensões e
subjetividades enquanto esposas, mães e administradoras de um lar.
57

A primeira questão que ficou explicita nos dados socioeconômicos foram as diferenças
salariais entre as mulheres (esposas) e os homens (maridos) das casas pesquisadas. Os homens
eram detentores, em média, de 70% da renda familiar, enquanto as mulheres ganhavam em torno
de 30%. Em algumas casas, as mulheres não chegavam a ganhar nem 15% do salário do marido,
nos mostrando uma desigualdade estrutural econômica, que se une a dupla jornada de trabalho –
ao serem as responsáveis pelas demandas domésticas – e que reproduz desigualdades dentro do
espaço residencial. Das 15 patroas entrevistadas, 2 não estavam empregadas no mercado formal
de trabalho e não assinalam nenhum rendimento no questionário aplicado, 5 ganhavam em torno
de 1-4 salários mínimos (788,00 a 3.152,00 reais), 3 ganhavam entre 4-7 salários mínimos
(3.152,00 a 5.516,00 reais), 3 ganhavam entre 7-10 salários (5.516,00 a 7.888,00 reais), 1
ganhavam 10-13 salários (7.888,00 a 10.244,00 reais) e uma delas não quis responder essa parte
do questionário. Como o questionário agrupou os dados salarias em três níveis, tomei, como
hipótese, o valor mais alto de cada grupo e fiz uma média em relação à renda familiar e de seus
maridos, levando em consideração também os valores mais altos de cada grupo. Assim, as
mulheres tinham em média um salário de R$6.698,00 e os homens tinham um salário médio de
10.638,00. A renda familiar média era de R$14.548,00.
58

GRÁFICO 1 - RELAÇÃO SALARIAL ENTRE HOMENS E MULHERES NAS FAMÍLIAS PESQUISADAS


25000

20000

15000

10000

5000

Salario Mulher Salario Homem

FONTE: MONTICELLI, Thays. 2016.


59

GRÁFICO 2 - PROPORÇÃO DO SALÁRIO DAS MULHERES E DOS HOMENS EM RELAÇÃO A RENDA


FAMILIAR TOTAL

30%

70%

mulher homem

FONTE: MONTICELLI, Thays. 2016.

Como visto a maior parte dessas mulheres é casada (11), 2 são divorciadas, 1 solteira e 1
viúva. Das 15 entrevistadas, 14 eram brancas e 1 era amarela (asiática). Apenas 1 entre as 15 não
tinha filhos. Dessa forma temos como característica predominante famílias com filhos, em média
2 filhos por casal. 10 patroas dentre as entrevistadas moravam com seus maridos e filhos, 4
moravam somente com o marido (filhos já haviam se casado) e 1 morava sozinha. A maior parte
delas tinham em torno de 30-40 anos (6), 3 tinham entre 40-50, 2 entre 50-60 e 4 com mais de 60
anos. Isso nos mostra que o quadro investigado contava com empregadoras mais velhas, sendo que
nenhuma tinha menos de 30 anos, revelando como essa contratação se torna mais frequente a partir
do momento em que elas tem filhos – dado melhor trabalhado no capítulo 5.
Em relação a escolaridade as empregadoras tinham alto nível educacional, 3 eram pós-
graduadas, 7 tinham o Ensino Superior completo e 5 delas possuíam o Ensino Médio. Dado muito
semelhante com os coletados por Monçores (2014). São também a maioria curitibana (9), 3 eram
do interior do Paraná, 1 do estado de São Paulo e outra estrangeira.
Portanto, temos como quadro predominante, das entrevistadas nessa pesquisa, mulheres
brancas, que trabalham no mercado formal de trabalho ganhando em média R$6.698,00, casadas,
com filhos, naturais da capital paranaense, entre 30-40 anos, com Ensino Superior completo e
moradoras de bairros com maiores rendimentos econômicos da cidade – de acordo com a Prefeitura
60

Municipal de Curitiba-PR. Além dessas características, todas elas tinham em comum o fato de
contratarem uma trabalhadora doméstica remunerada.
Apresentamos então um quadro de mulheres empregadoras, que tem dupla jornada de
trabalho, pertencentes à núcleos tradicionais familiares – marido, esposa e filhos. O que foi
evidente na pesquisa é que essas mulheres estão inseridas em desigualdade econômica no mercado
formal, não tendo igualdade salarial com seus cônjuges e não sendo as principais responsáveis pelo
orçamento familiar. Essas mulheres também estão igualmente inseridas nos processos de
desigualdade fundados pela divisão sexual do trabalho, pois são as responsáveis pelas manutenção
e organização da casa – e muitas vezes não pensavam em mudar essa estrutura – sendo as principais
agentes do trabalho doméstico e dos cuidados familiares não remunerados. Como já afirmado
anteriormente, essas mulheres compartilham a ideia de que a casa é o espaço onde elas podem
administrar, se posicionar e se organizar enquanto esposas, mães e patroas. E esse espaço permite
que elas construam suas subjetividades e seu exercício na relação de poder, embasados pelo o que
tenho chamado de “cultura doméstica”.
Como bem enfatiza Zelizier (2010), as negociações interpessoais nas relações onde se
“compra” o trabalho doméstico e do cuidado, são também alvos de negociações das posições dos
sujeitos dentro desse espaço, especialmente, o doméstico. Compreender como diferenciar os
sujeitos, os afetos, as posições, o espaço é marcar quem é quem e o que se pode ser feito por cada
um, e, para cada um dessa família, envolvendo aspectos culturais de persuasões e negociações das
desigualdades dessa relação.

The problem is not simply that people dumbly accept false beliefs. People who give and
receive personal care in intimate settings are actually negotiating definitions of their social
relations in a rapidly changing world. Every where and always intimates create forms of
economic interchange that simultaneously accomplish shared tasks, reproduce their
relations, and distinguish those relations from others with which they might become
confused: Are you my mother, my sister, my daughter, my nurse, my maid, or my best
friend? Each has its own distinctive array of economic interchanges. In each case, people
draw on available cultural models, and they use power and persuasion to negotiate
unequal social relations. Paid care in intimate settings raises the fundamental questions:
Who are we, and what do we owe each other? (ZELIZIER, 2010, p.277)12.

12
O problema não é simplesmente que as pessoas aceitam silenciosamente falsas crenças. Pessoas que dão e
recebem cuidados pessoais em ambientes íntimos, estão realmente negociando definições de suas relações sociais
em um mundo em rápida mudança. Sempre e em todos os lugares as intimidades criam formas de intercâmbio
econômico que simultaneamente cumprem tarefas compartilhadas, reproduzem suas relações e distinguem as
relações de outras com as quais podem se tornar confusas: Você é minha mãe, minha irmã, minha filha, minha
enfermeira, minha empregada ou minha melhor amiga? Cada um tem sua própria gama distintiva de intercâmbios
61

Partindo dessa ideia, acredito que a “cultura doméstica” molda as percepções para as
negociações que ocorrem entre patroas e trabalhadoras domésticas remuneradas. As negociações
são tanto de ordem organizacional da casa, os parâmetros de limpeza, a maneira de preparar a
comida e as exigências particulares das representações de como deve estar estabelecido o lar, assim
como as interações com os filhos e filhas dessas mulheres. Todas essas negociações interferem nos
pressupostos de cuidado, afeto e intimidade de cada residência. E mais que isso, interferem
também nas negociações de direitos e do cumprimento da legislação trabalhista vigente.
A negociação dos direitos passa pelas necessidades de cada empregadora, fazendo com que
em “cada casa houvesse uma lei”. O que se mostrou também pertinente como um parâmetro de
negociação, é se essas trabalhadoras estavam cumprindo com todas as suas obrigações enquanto
trabalhadoras – obrigações que são, de acordo com essa pesquisa, pautados pela “cultura
doméstica”. Assim, as negociações de direitos ainda passam por categorias de “merecimento”, por
subjetividades construídas nessas relações de poder.
Para seguir com a investigação proposta, eu busquei em diversas obras como a “cultura
doméstica” é percebida, representada e simbolizada. Dessa forma, as obras analisadas foram de
demasiada importância, pois através delas tracei conexões com as realidades da pesquisa de
campo, e mais que isso, foi por meio da análise das entrelinhas desse material que compreendi por
quais noções e bases essas patroas se posicionavam e buscam posicionar, exigir e negociar com a
trabalhadora doméstica remunerada contratada. Apresento então como essas obras foram
coletadas, secionadas e analisadas.

1.2.4 As Obras

Normalmente a revisão de literatura de uma tese se faz como uma parte constituinte desta,
não tendo por objetivo uma análise central a ser aprofundada. No entanto, como exposto na
introdução, eu tive como um projeto inicial de pesquisa compreender os mais de quarenta anos de
produção acadêmica sobre o trabalho doméstico remunerado no Brasil, abarcando também os

econômicos. Em cada caso, as pessoas se baseiam em modelos culturais disponíveis e usam poder e persuasão para
negociar relações sociais desiguais. O pagamento pelos cuidados em ambientes íntimos levanta as questões
fundamentais: Quem somos nós, e o que devemos uns aos outros? (tradução livre).
62

contextos políticos, sociais e culturais desses períodos, assim como a apreensão das metodologias
e epistemologias construídas em cada momento. E durante uma grande parte do tempo dedicado
ao doutorado eu investi nessa pesquisa, agregando além das pesquisas acadêmicas outros materiais
que pudessem me ajudar a observar a conjuntura que estava ao redor dessas produções acadêmicas.
Esses materiais são constituídos por manuais domésticos, livros literários, ficção, documentários,
filmes, novelas e reportagens de jornais e revistas.
Quando os objetivos dessa tese foram novamente redefinidos, eu tinha em mãos um vasto
e rico material que me possibilitava evidenciar os pontos de vista das empregadoras, as análises já
realizadas sobre estas, os processos da construção das pesquisas acadêmicas, assim como as
críticas e limites estabelecidos em cada momento. E foi através da minuciosa leitura de todo esse
conjunto que eu pude compreender que existia uma maneira e um “molde” do fazer doméstico,
das representações sobre a casa, a limpeza, organização e funcionalidade da mesma, assim como
um ideal de contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada, que exigia não somente uma
clara definição da execução das tarefas, mas também de seus corpos, higiene e posições – o que
tenho chamado de “cultura doméstica”.
Dessa forma, a análise desse material vai além de uma revisão de literatura que
tradicionalmente é feita nos meios acadêmicos. Esses dados se tornaram uma fonte da minha
pesquisa na qual eu posso compreender por quais esferas o trabalho doméstico remunerado foi
constituído pelas empregadoras, e como esses aspectos são historicamente fundantes de uma
cultura doméstica, que ainda se faz igualmente presente nas representações, desejos, expectativas,
frustrações e resistências das empregadoras entrevistas em 2015. Como bem nos aponta Godoy
(1995), a pesquisa qualitativa não possui moldes estritamente fechados, possibilitando ao
pesquisador um espaço de criatividade e imaginação na própria investigação do tema. Assim,
apresento em três capítulos esses conteúdos como partes de uma composição analítica geral da
tese.
Esse conjunto de obras foi pensando, observado e separado por décadas. O objetivo da
separação temporal se justifica pela tentativa de encontrar os aspectos contextuais que giravam em
torno das conquistas de direitos legislativos para as trabalhadoras domésticas remuneradas, e a
compreensão da conjuntura analítica desse contexto, ou seja, o material foi esquematizado para
evidenciar as representações do doméstico pelo ponto de vista das empregadoras, e como esse
conteúdo foi analisado e criticado pelas ciências sociais em cada período. A crítica sociológica
63

realizada nesses momentos mostravam também seus próprios limites empíricos e políticos, o que
evidentemente nos despontou o porquê elas não foram suficientemente fortes para romper com os
pressupostos de servilismo no trabalho doméstico remunerado.
Depois da separação temporal, esse material foi analisado através da técnica de análise de
conteúdo. A proposta de uma análise de conteúdo “documental” é extrair os significados, símbolos
e repetições de padrões observados nos diversos materiais coletados, além dos aspectos estruturais
que também o formam. (GODOY, 1995). A interpretação sociológica desses dados envolveu uma
visão holística dos fenômenos coletados, demostrando a complexidade dos conteúdos, sua
historicidade, estrutura e dinamismos. Esse material é analisado também pela mesma base teórica
já apontada anteriormente, pelas críticas feministas e por uma sociologia que visa interpretação da
subjetividades, emoções, relações de classe e ético-raciais.
Os capítulos seguintes nos mostram então a produção científica sobre o trabalhado
doméstico remunerado no país, começando pela década de 70 e fechando com as obras mais
contemporâneas. Nesse processo de análise se evidencia os objetivos da tese, a tentativa de mostrar
quais são as características que vem se reconfigurando em relação a uma “cultura doméstica”
através das narrativas, percepções, discursos, posicionalidades das patroas sobre si mesmas no
ambiente residencial e em relação ao trabalho doméstico remuenrado, assim como as diversas
violências que também são constituidoras dessas relações empregatícias. Em cada um desses
capítulos também é feita uma interpretação das posições teóricas e seus limites, mostrando como
os silenciamentos críticos também influenciam que determinadas desigualdades e formas de
reproduzi-las sejam mantidas.
64

2 VOZES DISSIDENTES, PRÁTICAS CONVERSADORAS: AS ANÁLISES E AS


PRODUÇÕES SOBRE O TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO NOS ANOS 70 E
80

Não tenho preconceito, mas as babás não necessariamente


são pessoas extremamente educadas. Infelizmente, nem
todas as classes têm acesso à mesma educação. Elas não
necessariamente vão puxar a descarga ou deixar o banheiro
limpo. Não é nada contra as babás. É questão de ordem e
disciplina. – Sócia do Country Club de Ipanema-RJ,
201613.

A revisão de literatura proposta nesse capítulo tem como objetivo apresentar as


características que permeavam o trabalho doméstico remunerado durante os anos 70 e 80, para isso
buscamos as narrativas, pontos de vistas e dados das empregadoras nas pesquisas realizadas nesse
período. É importante lembrar que essas são as primeiras pesquisas realizadas sobre o tema no
Brasil e advêm de um processo epistemológico de rompimento de se pensar e fazer ciência, mais
precisamente situados nos questionamentos feministas marxistas no país. Nesse contexto as
pesquisadoras fundamentavam suas pesquisas em relação à condição operária feminina, nas
denúncias da opressão do patriarcado e, posteriormente, amparadas pelas noções da divisão sexual
do trabalho. (BRITES, 2013).
Ao questionar essas opressões, essas pesquisadoras buscaram pressionar as teorias
clássicas para reconhecer as explorações das mulheres no mundo do trabalho – tanto no âmbito
doméstico, quanto fora dele - criticando a sua desvalorização em termos econômicos e sociais.
Esse contexto foi importante, pois marcou o início de um novo olhar para o trabalho realizado por
mulheres no país, em que as autoras se dedicaram a buscar na história e nas estruturas sociais e
políticas as características desiguais que cercavam o trabalho doméstico e o trabalho doméstico
remunerado, forçando a entrada de uma postura crítica em relação aos modos como as Ciências

13
BOERE, Natália; LIMA, Ludimilla. JornalOGlobo. Placa em Banheiro do Country Club informa que babás não
podem entrar. Disponível em< http://oglobo.globo.com/rio/placa-em-banheiro-do-country-club-informa-que-babas-
nao-podem-entrar-19372359> Acesso: 14 jun.2016.
65

Sociais interpretavam as opressões no mundo do trabalho. (SORJ, 2000). Esse campo de estudo
também nos apresenta outras particularidades políticas, pois os processos de vinculações com os
movimentos de trabalhadoras domésticas remuneradas sempre estive presentes nessa área. As
primeiras autoras do movimento feminista que adentraram a Academia deixaram uma “herança”
de comprometimento político, essa conexão foi inicialmente formada em um contexto de
organização política do movimento de mulheres por toda a América Latina e perpetuou em muitos
projetos, lutas e principalmente na tentativa de abrir o espaço acadêmico para as vozes e saberes
dessas trabalhadoras, procurando construir um diálogo com uma sociologia tradicional, que se
mostra tantas vezes dura a determinados temas, e estabelecer interconexões e diálogos a partir do
que foi negado, marginalizado e silenciado neste processo de fazer ciência, contribuindo para que
novas reflexões sejam possíveis e evidenciadas nas teorias sociológicas.
Igualmente nesse capítulo tomamos como um importante e central foco de análise os
dados, interpretações, pontos de vistas e narrativas das patroas, tanto por meio das pesquisas
realizadas no período, como pelas produções literárias realizadas por donas-de-casa frente ao
avanço de direitos para as trabalhadoras domésticas remuneradas em 1972. Fraga (2016) nos
mostra que a Lei nº. 5.859 de 1972, no governo ditatorial de Médici, foi um dos mais importantes
marcos na construção de direitos para as trabalhadoras domésticas remuneradas, sendo, de fato, a
primeira vez que elabora-se proteções e direitos trabalhistas para essa categoria profissional; tendo
como direitos garantidos a assinatura da carteira de trabalho, férias anuais remuneradas e direito à
previdência social, “essa aprovação levou a uma grande ebulição pública do tema [...] modificando
as regras nas quais estavam anteriormente assentadas as relações de trabalho que permitiam a
muitas famílias a articulação entre produção e reprodução”. (FRAGA, 2016, p.107). Nesse sentido
as famílias empregadoras deparam-se com o primeiro desafio no comprimento da legislação, e são
forçadas a pensar essa relação empregatícia por outras formas, transparecendo muitas vezes as
resistências em modificá-las. É muito importante notarmos que muitas práticas e discursos
defendidos nos anos 70 e 80 ainda estão presentes na realidade contemporânea brasileira, o que
nos traz elementos de conexão com as contínuas constituições das diferenças e de uma assistência
emocional produzida e reproduzida dialeticamente nessas relações empregatícias. (RAY;
QAYUM, 2009). São por meio desses discursos, práticas e analises que podemos ver as
reconfigurações da “cultura doméstica”.
66

2.1 O CONTEXTO DA RUPTURA: O FEMINISMO E SEU CARÁTER HIBRIDO POLÍTICO

As primeiras análises sobre o trabalho doméstico remunerado surgem alocadas nas


vertentes da Sociologia do Trabalho, que era um dos principais e mais importantes lócus de
interpretação da sociedade para essa área no Brasil, compreendida como central durante as décadas
de quarenta a sessenta pela Sociologia. Os direitos e deveres, identidades e sociabilidades,
comportamento político e até a família eram analisados pela chave interpretativa das relações de
trabalho. A ideia que a economia estava diretamente ligada às características da vida social tinha
como base teórica os clássicos das Ciências Sociais – Durkheim, Weber e Marx. E sem dúvida, a
corrente marxista foi uma das que mais perdurou nas análises feitas posteriormente, indicando a
posição do trabalhador dentro do processo produtivo como organizador da estrutura social, as
dinâmicas sociais eram compreendidas em torno da exploração nas relações de trabalho e o
desenvolvimento estava ligado à racionalidade capitalista industrial. (SORJ, 2000). Como
argumenta Sorj (2000), para os marxistas

a criação do mercado de trabalho dependeria não apenas do desenvolvimento tecnológico,


mas também da acumulação prévia de riqueza e de recursos produtivos, bem como da
proletarização de amplos grupos sociais.[...] os marxistas enfatizam a consciência de
classe, a consciência coletiva do interesse de classe que emerge mais ou menos
naturalmente das relações naturais de produção. A aglomeração de grandes contingentes
de trabalhadores em grandes estabelecimentos industriais, com uma detalhada divisão do
trabalho, e a crescente homogeneização da força de trabalho intraindústrias produziriam
o principal ator coletivo da sociedade capitalista. Embora os marxistas hoje adotem uma
visão menos determinista e mais interativa da relação entre economia e consciência, eles
ainda sustentam que a percepção dos interesses é poderosamente moldada pelo contexto
estrutural da economia. (SORJ, 2000, p.27).

A Sociologia do Trabalho então tinha como uma concepção fundamental essa


racionalidade que regularia e organizaria as relações de trabalho na indústria e o campo de ação
dos atores envolvidos nos processos de exploração, fazendo com que a relação salarial se tornasse
o ponto de referência analítico em relação aos demais aspectos da sociedade, como a família,
política, religião, sistema moral, cultural, etc. Dessa forma, é claro que a Sociologia do Trabalho
se empenhou em compreender o campo empírico do trabalho remunerado, assalariado, em tempo
integral e da grande indústria, não fazendo referência alguma ao mundo doméstico. (SORJ, 2000).
67

Essa corrente teórica se torna ainda mais forte durante os anos setenta e oitenta, já que a
conexão entre uma Sociologia de “esquerda” – formada desde os anos 60 pelos cursos de Ciências
Sociais no Brasil- com os movimentos sindicalistas e operários e as lutas contra a Ditadura Militar
fizeram com que o campo da militância acadêmica e política se tornassem cada vez mais hibrido:
professores e professoras foram depostos de seus cargos, aulas confiscadas, ao mesmo tempo que
publicações sobre partidos políticos de esquerda se estabeleciam, a própria constituição de alguns
partidos políticos com verdadeiros apoios de cientistas sociais e os processos de democratização
foram se ampliando nos debates acadêmicos e nas forças políticas populares. (RODRIGUES,
2010).
Por mais que esses movimentos políticos pudessem ser compreendidos como
progressistas naquele momento, é importante lembrar que eles eram excludentes tanto em termos
de militância política, como na entrada de novas perspectivas analíticas para o mundo do trabalho
– principalmente quando se tratava da inclusão das mulheres e da força laboral feminina. Do lado
da militância, as mulheres que já estavam inseridas na luta armada contra a Ditadura Militar, desde
a década de sessenta, passaram por experiências significativamente emancipadoras ao se
depararem com posições ditas “masculinas” na forma de fazer política, mas totalmente retóricas
quando se tratava da igualdade entre os sexos de fato; ainda soma-se a esse contexto práticas de
repressão e tortura essencialmente diferenciadas para os corpos femininos, as atingindo também
pelas manipulações sobre maternidade e sexualidade. (SARTI, 2004). Já pelo lado das construções
analíticas dentro da Universidade, podemos dizer que o pensamento marxista não contemplava as
imensas desigualdades entre mulheres e homens no mundo do trabalho, incluindo todos nos
conceitos de “classes” como uma massa homogênea fruto das explorações, fazendo com que o
conceito de “trabalho produtivo” deixasse de fora os trabalhos realizados por mulheres na esfera
privada; além de estarem ancorados em uma epistemologia objetivista que compreende a
neutralidade como fundamental no processo de se fazer ciência. (SANDERBERG, 2002).
Esses estudos eram fundamentados pela tríade ‘modernidade, racionalidade e ciência’ - a
grande empreitada Iluminista, que definiu a ciência e a modernidade pelos pressupostos da
“racionalidade” e da “verdade”14. “As ciências sociais, durante décadas, invocaram a chancela da

14
Não podemos descartar que dentro do próprio marxismo houveram críticas em relação à ciência moderna, Lukács,
por exemplo, aponta os equívocos de uma “ciência burguesa” trazendo o materialismo dialético como um método
científico válido; e a Escola de Frankfurt compreendia uma “nova forma de dominação” que a racionalidade obtém
nessas formas de pensamento. (MAIA, 2013).
68

objetividade como pilar de garantia da produção de discursos científicos independentes,


fidedignos, verdadeiros e universais.” (NEVES, 2005, p 408). Essas realidades: acadêmica e
política produziram verdadeiras lacunas nas interpretações críticas sociais, não se referindo e não
evidenciando as grandes diferenças estruturais que se impunham aos sujeitos.
A ruptura desses quadros só começará no final da década de setenta no Brasil, e um dos
seus principais articuladores críticos foi o movimento feminista. Nesse contexto15 o movimento
feminista estava articulado e tomava outras direções, impulsionado principalmente, por dois
fatores. O primeiro diz respeito à conquista de direitos e as pressões que os movimentos feministas
europeus e norte-americanos tinham ganhado, fazendo com que a ONU (Organização das Nações
Unidas) direcionasse seus ideais e procurasse debates acerca da real condição das mulheres no
mundo em 1975 (Ano Internacional da Mulher). A ressonância dessa onda de discussões no Brasil
ajudou na legitimação das lutas que alguns grupos de mulheres organizavam, saindo de uma cena
política oculta e ocupando espaços públicos abertamente. (RAGO, 1996). O segundo fator, como
já apontado anteriormente, foi a incorporação ideológica das lutas políticas contra a Ditadura
Militar na constituição indentitária do feminismo dos anos setenta16, assim as bases marxistas não
foram excluídas da pauta política e sim revistas para incorporar as desigualdades entre os sexos.
Cabe ressaltar também que esse momento teve outras particularidades que moldaram o
movimento feminista em termos de avanços de luta e de formação, como o apoio da Igreja
Católica, que ancorada pela Teologia da Libertação esteve articulada contra o período ditatorial e
consequentemente apoiava os movimentos sociais e de trabalhadores que surgiam no período. A
Igreja Católica durante os anos setenta e oitenta ajudou na formação, cedendo espaços coletivos e
incentivando a criação de grupos populares de mulheres que se reuniam para refletir, debater e
institucionalizar demandas relativas ao Estado, exigindo garantias do bem-estar-social,
reivindicações políticas de infraestrutura urbana e de experiências concretas advindas das famílias
das periferias urbanas. (BERNADINO COSTA, 2007). Esse lado foi absolutamente enriquecedor
para o movimento feminista naquele momento, principalmente porque estavam fundadas em lutas

15
É importante lembrar do movimento sufragista do início do Século XX no país, além de outros pequenos
movimentos e publicações feministas que se estabeleceram antes da década de 70. (RAGO, 1996).
16
As próprias organizações e reuniões promovidas pelas feministas foram alvo de investigação do DOPS
(Departamento de Ordem Política e Social), Rose Marie Murato foi chamada oito vezes para dar explicações por um
evento promovido em 1972, por exemplo. (PINTO, 2003).
69

pautadas pelo marxismo, o que garantia a possibilidade de dialogar com as trabalhadoras –


percebidas como principais portadoras da “Revolução Social”. (RAGO, 1996).
Por outro lado, a Igreja não garantiu ao movimento feminista um espaço abrangente e
muito menos aberto para discutir temas como o aborto, a sexualidade e o planejamento familiar,
focando mais nas estruturas patriarcais da dicotomia mundo público/privado e na divisão sexual
do trabalho. (SARTI, 2004). Esse apoio da Igreja acaba gerando uma faceta conservadora para o
movimento feminista no Brasil, assegurando-se na proliferação de grupos de mulheres ligados a
maternidade, com demandas relativas à saúde, cuidado, escolaridade e trabalho. (ALVAREZ,
1990). Como bem argumenta Alvarez (1990), a própria Ditadura Militar utilizou desses símbolos
para manter a mulher como peça fundamental da família brasileira, garantindo o “futuro do Brasil”
por meio da educação dos filhos e mantendo-as em posições e representações fixas do mundo
doméstico. Essa realidade conservadora do feminismo, que se apresentava nas vozes e ações de
mulheres brancas e pertencentes à classe-média, ainda produziu importantes desdobramentos em
relação às demandas de direitos das trabalhadoras domésticas remuneradas, o que veremos mais
adiante. O que é importante salientar é que a pauta feminista nessa conjuntura estava
majoritariamente voltada para as discussões do mundo doméstico e para as mulheres que
começaram adentrar as indústrias no Brasil.
É neste contexto e com esta perspectiva que o movimento feminista também adentra as
Universidades brasileiras, questionando primeiramente a inserção feminina no mundo do trabalho
industrial e posteriormente o próprio conceito de trabalho para a Sociologia, incluindo o trabalho
doméstico como fonte de análise sociológica, econômica e cultural, fazendo uma crítica à
separação da Sociologia do Trabalho da Sociologia da Família, rompendo com paradigmas
epistemológicos e questionando os limites impostos pela teoria marxista . (HIRATA, 2002). As
primeiras escritoras, como por exemplo Elizabeth Lobo, Hildete Pereira de Melo, Eva Blay, Maria
Lygia Quartim de Moraes, Norma Telles, Tania Navarro Swain, entre outras, forçaram uma ruptura
no pensamento universalizador, questionando uma suposta harmonia do mundo público e privado,
entre os sexos, sobre o matrimônio e maternidade. As tarefas que eram vinculadas aos “atributos
femininos” como passar, lavar, cozinhar, limpar, varrer, cuidar e outras atividades domésticas
foram pressionadas a ser consideradas igualmente uma forma de trabalho não remunerado, embora
o trabalho remunerado (nas grandes corporações e indústrias) fosse - e ainda é - mais valorizado.
(SORJ, 2000). As teorias utilizadas pelas primeiras autoras também estavam embasadas em uma
70

perspectiva marxista, mas que pressionava as teorias clássicas e tentavam inserir novos pontos nas
discussões sociológicas. (BRITES, 2013).
As obras pioneiras sobre o tema trabalho doméstico remunerado nas Ciências Sociais
estão exatamente incluídas nesse momento, Alda Britto da Motta com a obra “Visão de Mundo da
Empregada Doméstica: Um Estudo de Caso” (1977), Heleieth Saffioti - “Emprego Doméstico e
Capitalismo”(1978) e Zaíra Ary Farias “Domesticidade: “Cativeiro Feminino”? (1983). Essas
autoras investigaram contextos distintos do Brasil, como Salvador-BA, Araraquara-SP e Fortaleza-
CE respectivamente, e encontraram diversas formas de desigualdade nas relações empregatícias
entre patrões e trabalhadoras. Estas obras demonstravam como estas trabalhadoras foram excluídas
do processo industrial, e consequentemente de melhores condições empregatícias de direitos e
renda, além de abordarem uma estrutura econômica desenvolvimentista que o país passava. As
análises resultantes dos quadros empíricos investigados continham também uma forte crítica a
maneira como o trabalho doméstico remunerado era estabelecido no país naquele contexto, ainda
via-se muitas criadas da casa, salários muito baixos, trabalho intensivo sem descanso semanal e as
péssimas condições de vida quando estas mulheres moravam junto a família empregadora. Um
exemplo mais claro é a obra de Motta (1977) no conjunto residencial, de classe média chamado
“Todos os Santos”, onde a autora evidencia claramente as percepções e a vida cotidiana das
trabalhadoras domésticas remuneradas. Sua análise estava embasada pelas noções marxistas de
classe social e por um feminismo que se propunha a rever as teorias vigentes, tentando incorporar
as desigualdades entre os sexos pela chave interpretativa marxista. Podemos visualizar pela obra
da autora uma análise contextual estatística sobre as características socioeconômicas das
trabalhadoras, análises sobre salários e renda, sobre representações, consumo e a pobreza que
circundavam a realidade dessas trabalhadoras.
Apesar de Motta (1977) e outras autoras mostrarem números e condições trabalhistas
assustadoras naquele período, enfatizando as desigualdades profundas vividas pelas trabalhadoras
domésticas remuneradas, o caminho percorrido para realizar essas pesquisas não foi o mais fácil,
elas tiveram resistência em relação a essa crítica dentro das próprias Universidades, e em alguns
casos, dentro do próprio movimento de mulheres. É importante ressaltar que a inserção das
mulheres na carreira docente universitária e a sua permanência no ambiente acadêmico não se faz
por processos igualitários, ao tratar de temas relacionados às perspectivas feministas e de gênero,
esses processos tornam-se ainda mais complexos. (MAFFIA, 2002). Dentro das Universidades,
71

por exemplo, elas foram acusadas de fazer uma sub-sociologia, alegando que a causa feminista era
menor em relação às desigualdades de classe e ao autoritarismo na sociedade brasileira, que era o
principal foco das lutas políticas e sindicais do período (SARTI, 2004). Enquanto isso, o
movimento de mulheres também não foi inicialmente apoiador das críticas em relação ao trabalho
doméstico remunerado, seja porque parte destas militantes possuíam tais relações trabalhistas
dentro de suas próprias casas17; seja pelo fato que a maior parte destas militantes ainda se situava
em um posicionamento hibrido político, entre a causa feminista e as lutas pelo final da Ditadura
Militar. (SARTI, 2004). Dessa forma, a crítica ao trabalho doméstico remunerado assume um lugar
liminar nestas estruturas políticas e acadêmicas no Brasil18, mesmo estando inserida nos estudos
sobre as populações subalternas surgidas dos limites impostos pela ortodoxia marxista.
Contudo, esse limite teórico não foi o principal alvo de rompimento nesse contexto. As
obras publicadas nesse momento, por exemplo, estavam inseridas na lógica marxista, dialogavam
com análises sobre o desenvolvimento econômico do país, mas persistiam na elaboração empírica
da inclusão das mulheres em um mercado de trabalho que passava por significativas
transformações. Essas pesquisas então não tinham como principal objetivo compreender as
lógicas, percepções e narrativas das trabalhadoras domésticas remuneradas, mas focavam nas
análises das estruturas de desigualdade que reproduziam essa realidade social. Assim, as autoras
também trazem em suas obras dados e realidades das donas-de-casa e das empregadoras para
responder seus objetivos de pesquisa, inclusive para evidenciar as múltiplas formas de trabalho e
opressões que ocorriam dentro do âmbito privado, o que é elucidado a seguir.

17
Como podemos ver por exemplo, no prefácio do livro “A Aventura de Ser Dona de Casa (dona de casa x
empregada)” publicado em 1975 escrito por Romy Medeiros da Fonseca (presidente do Conselho Nacional de
Mulheres do Brasil) criticando a reforma de leis trabalhistas propostas pela categoria de domésticas naquele
momento.
18
Essa experiência foi narrada por Motta durante a abertura do XVI Congresso Brasileiro de Sociologia (SBS), que
ocorreu em Salvador-BA entre os dias 10 a 13 de setembro de 2013, quando a autora foi homenageada por toda sua
carreira e obra. Quando foi agradecer a Sociedade Brasileira de Sociologia pelo reconhecimento de sua trajetória
acadêmica, ela não poupou em relatar todas as críticas e desafios que encontrou dentro da própria Universidade em
relação ao seu tema de pesquisa, como por exemplo, a falta de entendimento de seus professores sobre as categoria
analíticas utilizadas, o que resultou em deboches e desconfianças teóricas. Além de sua insistência em permanecer
usando um viés analítico feminista e não somente marxista sobre estas relações de trabalho, o que gerou uma
permanente desvalorização deste tema em relação aos de seus colegas. Do mesmo modo, Saffioti faz um
agradecimento especial em seu livro ao Professor Willian Saad Hossne, pela sua sensibilidade em compreender os
estudos de tema que não estava “na moda” no período, possibilitando o financiamento da sua pesquisa e a
publicação posteriormente.
72

2.1.1 As Patroas da Década de 70 e 80 – entrada no mercado de trabalho, poder aquisitivo e


desigualdade

O mercado de trabalho, durante a década de setenta e oitenta, no Brasil teve como uma
de suas principais características a entrada de mulheres pertencentes a classe média no setor formal
trabalhista. (BRUSCHINI, 1994). Essa característica foi justificada, por grande parte dos estudos
do tema, pelo processo de deterioração dos salários dos trabalhadores, obrigando as famílias a
buscarem outras alternativas de renda. Mas podemos visualizar outros fatores que interfeririam
nesse processo, como por exemplo, o nível de consumo gerado pelas famílias brasileiras que
acabou redefinindo o próprio conceito de necessidade econômica, além das pressões advindas dos
movimentos de mulheres e feministas.
Contudo, esse mercado de trabalho formou-se intrinsecamente diferente para homens e
mulheres, sobretudo quando se pensava em remunerações salariais, direitos e posições trabalhistas.
Essas diferenças se consolidavam através da concepção que o trabalho da mulher era secundário e
apenas ajudaria no orçamento doméstico, pois as concepções da família nuclear colocavam o
homem como principal provedor que deve manter e sustentar todos os habitantes da casa, assim
como a mulher deve se responsabilizar pela estrutura doméstica. Portanto não só o mercado de
trabalho se constituiu por essa lógica, reconhecendo o trabalho do homem como mais importante
e central e consequentemente investindo mais nas carreiras e espaços masculinos, como não impôs
outra lógica de organização doméstica – as mulheres, mesmo inseridas no mercado de trabalho,
ainda eram compreendidas como as principais e únicas responsáveis pelos trabalhos gerados no
ambiente privado. (ABRAMO, 2007).
Esse contexto obrigou que os estudos sobre o trabalho doméstico remunerado fossem
analisados de uma forma secundária, pois a preocupação empírica inicial era compreender a saída
das mulheres pertencentes a classe média do ambiente doméstico para se empregarem nos espaços
públicos. Consequentemente essa realidade levou as pesquisadoras a olharem para o trabalho
doméstico remunerado, no objetivo de compreender como a dinâmica do mundo doméstico era
mantida sem a sua principal provedora. Assim, esses primeiros estudos nos apresentam como um
problema geral a divisão sexual do trabalho e consequentemente as características relativas às
contratações de trabalhadoras domésticas remuneradas. Podemos visualizar nessas obras então as
73

particularidades que envolviam todas essas características, abrindo espaços também para os
universos das donas-de-casa e patroas.
No livro publicado em 1978 por Saffioti, “Emprego Doméstico e Capitalismo”, todos os
aspectos mencionados acima foram contemplados. Ao se deparar com as estatísticas apresentadas
pela PEA (População Economicamente Ativa), a autora nos descreve o abismo que existia entre a
força laboral masculina e feminina e nos reporta a precariedade dos trabalhos que as mulheres
estavam inseridas, pois das seis milhões de trabalhadoras registradas no censo de 1970 mais da
metade estavam concentradas em 3 ocupações: 27% trabalhadoras domésticas remuneradas, 18%
trabalhadoras de enxada e 8 % professoras primarias. Assim, o emprego doméstico era a ocupação
que mais absorvia mão-de-obra feminina no país. (SAFFIOTI, 1978). Sendo esse o fato, a autora
tem como principal objetivo da pesquisa tentar compreender de maneira mais ampla as relações
que envolviam o trabalho doméstico remunerado através da interação “trabalhadora-
empregadora”. A pesquisa foi conduzida através de entrevistas e aplicando questionários para
patroas, trabalhadoras domésticas remuneradas e donas-de-casa - que foram pensadas em suas
“potencialidades” em ser uma futura empregadora.
Saffioti (1978) faz uma exploração minuciosa do universo doméstico ao separar essas três
ocupações entre mulheres: donas-de-casa, patroas e trabalhadoras. As donas-de-casa são
apresentadas através de dados relativos a situação socioeconômica, estilo de vida e visão de
mundo, o que possibilitou a autora compreender os mecanismos culturais e sociais que estavam
impregnados nas percepções sobre o trabalho e economias domésticas, representações do feminino
e posições de classe. As donas-de-casa eram majoritariamente casadas (81%), tinham em média
quatro filhos e a renda familiar mensal estava em torno de 686 cruzeiros, mantida por apenas um
membro da família – o marido. Algumas dessas donas-de-casa trabalhavam fora no setor terciário
(11%), outra parcela pequena dessas mulheres (7%) faziam “trabalhos para fora”, ou seja,
garantiam uma renda a mais para a família através da costura, bordados, culinária, etc. e 81%
dedicavam-se exclusivamente ao próprio lar. O nível educacional dessas mulheres era muito baixo,
16% das donas-de casa eram analfabetas e 29% tinham o primário incompleto, o que trazia
dificuldades na inserção no mercado de trabalho. Inclusive, um dado interessante trazido pela
pesquisa diz que 34% delas já haviam se empregado como trabalhadoras domésticas remuneradas
no passado. Essas famílias eram basicamente da classe trabalhadora, 67% dos maridos eram
74

assalariados e se empregavam nas indústrias ou estavam em um “estrato social inferior”19. Em


relação a esse aspecto, a autora enfatiza que muitas das mulheres que trabalhavam diziam que o
faziam por necessidade econômica, e não por um processo de satisfação e independência
individual, assim como muitas pararam de trabalhar assim que se casaram.
As taxas de consumo também foram significativamente abordadas pela autora, a maior
parte das residências possuía geladeira, televisão e uma nutrição cotidiana satisfatória (tinham
acesso a carnes, verduras e frutas regularmente), essas mulheres frequentavam o cinema, e tinham
o hábito de ler revistas femininas e quadrinhos.
O que mais chama atenção sobre a análise realizada por Saffioti (1978) sobre as donas-
de-casa diz respeito ao fato que elas poderiam ser futuras empregadoras, ou em suas próprias
palavras “patroas em potencial”, já que a maioria delas contratariam uma trabalhadora doméstica
remunerada se tivessem condições financeiras. Juntando esse fato com a massiva entrada de
mulheres no mercado de trabalho brasileiro, a autora nos apresenta uma interpretação de que esses
vínculos trabalhistas seriam cada vez mais frequentes. Em relação a isso, ela procura compreender
se essas relações estariam pautadas por outras lógicas que as vigentes na época, questionando-as
sobre alguns aspectos hipoteticamente. Contudo, os dados não mostravam uma visão de mundo
diferenciada das classes mais altas: muitas dessas donas-de-casa (71%) não admitiriam que a
trabalhadora sentasse junto a mesa nas refeições, exigiriam o uniforme, não deixariam assistir
televisão ao lado da família, conheciam a obrigatoriedade da lei (Lei 5.859 de 1972) mas não havia
o reconhecimento do trabalho, dariam menos de vinte dias de férias e, de acordo com Saffioti,
manteriam o caráter paternalista20 que existia nessas relações trabalhistas.
Nesse sentido podemos visualizar o que venho delineando ao longo da pesquisa,
representações e posições formados a partir de uma cultura doméstica que moldam as práticas,
percepções e até o imaginário sobre o doméstico e, consequentemente, sobre as “condutas típicas”
que uma patroa deve abordar.

19
O “estrato social inferior” era compreendido como aqueles que se empregavam como empregados domésticos,
trabalhadores não qualificados rurais e urbanos, militares de categoria mais baixas – como diz Saffioti (1978).
20
O caráter paternalista da dominação exercida pela patroa sobre a empregada aparece até mesmo entre as patroas
potenciais com passado de empregadas domésticas. Sua experiência anterior, ao invés de servir como trunfo na
organização da categoria ocupacional para a reivindicação de melhores salários, menor jornada de trabalho e
relações racionais de trabalho, ressocializou-as para a assunção de papéis próprio dos dominadores a tal ponto que
elas acabaram por identificar-se com a ideologia dominante. Tão logo as condições econômicas o permitam, estão
prontas a assumir as condutas típicas dos dominadores”. (SAFFIOTI, 1978, p. 182) .
75

Essas “condutas típicas” que Saffioti (1978) se reporta diz respeito aos dados coletados e
analisados sobre as 148 patroas entrevistadas em sua pesquisa. A autora conta com narrativas e
relatos dessas empregadoras, além de expor dados socioeconômicos sobre essas famílias. O
primeiro fator que estava relacionado à contratação de trabalhadoras domésticas remuneradas era
o poder aquisitivo, todas as mulheres que tinham uma renda superior a oito salários mínimos na
época contavam com essa contratação dentro de casa, e a maioria delas o fizeram assim que se
casaram (35%). Saffioti (1978) ainda aponta as características relativas à servilidade que estavam
muito presentes, como por exemplo, 15% dessas patroas mantinham uma trabalhadora residindo
com elas, 68% não registraram as trabalhadoras na previdência social e 23% não davam o descanso
semanal durante o final de semana. Na concepção de Saffioti (1978) o trabalho doméstico
remunerado preservava todas essas características, em parte, porque não estava estruturado de
acordo com os moldes capitalistas, mantendo comportamentos em relação a carga horária, salários,
faltas das trabalhadoras, etc. por lógicas que não traziam o caráter profissional a essa ocupação.
Nesse sentido, Saffioti (1978) acreditava que a informalidade contratual e a ausência de direitos
trabalhistas eram os fatores que propiciavam uma profunda desigualdade de classe, confiando que
os processos mais “racionais” do contratualismo exigiriam novos comportamentos entre
empregadoras e trabalhadoras.
Nos relatos colhidos no campo de pesquisa, a autora também aponta a insatisfação que
muitas patroas diziam sobre a maneira como o trabalho doméstico era executado em suas casas,
falando regularmente que “já não haviam mais trabalhadoras boas”, muitas delas já não cumpriam
com eficiência o trabalho e nem se reportavam a elas como deveriam. Diante disso, Saffioti (1978)
traz os seguintes dados compreendidos como fundamentais de uma boa trabalhadora para as
patroas naquele momento: higiene pessoal, eficiência, capacidade da trabalhadora de atuar como
amiga da patroa (isso significava obedecer as ordens), honestidade, boas maneiras, ser confiante,
trabalhadeira, pontual, que saiba lidar com as crianças, bem humorada, cumpridora de seus deveres
e econômica. A honestidade estava ligada a casos de roubo, faltas sem motivo justo e “de fazer
cera” no serviço. Havia muito estereótipo de “malandragem” sobre essas mulheres nas narrativas
das patroas, inclusive muitas delas reportavam a dificuldade de ter uma contratação longa, pois as
trocas durante o ano eram frequentes (32% das trabalhadoras ficavam menos de 1 ano nas
residências, 18% de 1 a 2 anos). Como nos aponta Schwarcz (2012), esses estereótipos
relacionados a honestidade, falta de habilidade para o trabalho e constantes tentativas de burlar o
76

serviço ou enganar a patroa advinha de uma construção imaginária, principalmente nos primeiros
anos pós-abolição, que de que os negros não conseguiriam se adaptar ao trabalho livre sem a
supervisão constante do branco. Aqui, mais uma vez vemos reconfigurações da cultura doméstica,
que mesmo inserida no contexto dos anos setenta e oitenta preserva as configurações servilistas já
apontadas anteriormente e produziam realidades violentas no âmbito doméstico.
Ainda de acordo com a pesquisa de Saffioti (1978), 41% das patroas acreditavam que as
trabalhadoras não queriam trabalhar em suas casas por baixo salário, 21,5% porque entendiam que
essas mulheres achavam a profissão humilhante, e 19% por “implicância com a patroa”. Esses
dados batiam de frente com os já coletados das trabalhadoras domésticas remuneradas, fazendo
com que a autora percebesse que as relações estabelecidas entre empregadoras e trabalhadoras
eram o vínculo fundamental que as deixavam ou não permanecer trabalhando em uma determinada
residência21. Essas relações afetivas eram vistas pela autora pelo seu lado ambíguo, tanto da
opressão quanto da harmonia que poderia ser estabelecida.

O caráter afetivo assumido por estas relações se, por um lado, funciona como fator de
retenção da empregada em um determinado emprego, funciona, também, por outro lado,
como fator de insatisfação, conduzindo à busca de uma nova família empregadora.
Embora, como já se viu, o nível salarial de certos empregos de doméstica possa induzir
um determinado número de empregadas a abandonar situações empregatícias prévias, este
fator aparece em pequena escala como determinante. O bom relacionamento entre a
empregada e a família empregadora apresenta peso muito maior, determinando, em ampla
escala, a permanência de uma empregada junto a uma família ou a sua mobilidade.
(SAFIOTTI, 1978, p.152).

A pesquisa publicada por Saffioti (1978) então já nos mostrava os caminhos e lógicas que
muitas das empregadoras instituíam dentro de suas próprias casas. Muitos dos aspectos de
identificações e diferenciações educacionais, sociais e culturais foram abordados através dos dados
estatísticos, contudo, o que nos parece mais evidente é que a contratação de uma trabalhadora
doméstica remunerada estava estritamente ligada às concepções de classe social – todas as famílias
com maiores rendas estabeleciam esse vínculo trabalhista e as famílias de classe trabalhadora
começariam e desejariam ter essa relação de trabalho a partir do momento que a situação financeira
melhorasse, ou seja, “ter” uma trabalhadora doméstica remunerada era essencialmente poder se

21
Na pesquisa de campo realizada em Curitiba-PR em 2012 sobre as relações afetivas entre diaristas e empregadores
pudemos constatar que esse dado não se modificou muito ao longo dos anos, as relações de confiança, amizade,
respeito e reciprocidade ainda são fortes elementos de sustentabilidade nessas relações empregatícias, mesmo
quando estão em contratos “mais modernos” e com “menos vínculos”. (MONTICELLI, 2013).
77

caracterizar como pertencente a uma classe dominante. Sem dúvida também, as concepções sobre
a divisão sexual do trabalho foram enfaticamente detalhadas em toda a obra, desde os componentes
de valores de trabalhos realizados por homens e mulheres, a concepção do trabalho feminino fora
de casa, como a não realização de trabalhos domésticos pelo restante da família, sobrecarregando
imensamente a mulher e a “confinando” dentro de casa. A obra de Saffioti (1978) nos mostra as
diversas camadas de desigualdades e opressões inseridas no ambiente privado: entre homens e
mulheres e entre mulheres. O caminho metodológico e analítico, muito baseado nas concepções
marxistas sobre o capitalismo e o patriarcado, não permitia que as narrativas e relatos fossem
apresentados com mais ênfase, mas nem por isso a obra deixa de nos instigar e abrir novas
possibilidades interpretativas no mundo do trabalho.
Assim como a obra de Saffioti, podemos contar com a pesquisa realizada por Zaíra Ary
Farias (1983), uma das que mais enfaticamente aborda o universo das lógicas contratuais sobre o
trabalho doméstico remunerado, pois seu principal foco de pesquisa era compreender em que
medida a “liberação” econômica de algumas mulheres é possível às custas da contratação de uma
trabalhadora doméstica remunerada, e quais as representações ideológicas sobre o lugar social
dessas. Para isso, ela entrevistou 47 patroas e 200 trabalhadoras domésticas remuneradas em
Fortaleza no final da década de setenta.
Essas patroas eram em sua maioria nascidas na capital cearense, tinham mais de 40 anos,
eram casadas, tinham filhos, possuíam curso superior e 70% estavam empregadas no mercado de
trabalho. Apesar de não explorar o bastante as questões étnico-raciais entre empregadoras e
trabalhadoras domésticas remuneradas, a autora é a única nesse período que faz uma análise
conectando o processo escravocrata que o país passou com a situação econômica, política e cultural
que estava ao redor desse trabalho no Brasil, muitas vezes apontando declarações racistas das
patroas entrevistadas. Farias (1983) é que mais explora o ponto de vista das empregadoras, suas
declarações e narrativas através de um posicionamento muito crítico. De acordo com ela muitas
dessas patroas consideravam “o emprego doméstico um trabalho normal para aquelas pessoas [...]
socialmente fracas [...], “sem cultura”, “vindas do interior”, enfim pobres e assim sendo, úteis a
pessoa de outra condição social". (FARIAS, 1983, p.58). O discurso classista e racista dessas
mulheres é visualizado em toda obra.
Essa pesquisa também nos possibilita visualizarmos análises teóricas mais extensas,
primeiramente partindo da ideia que o trabalho doméstico remunerado estava incluído nas lógicas
78

excludentes do desenvolvimento econômico durante a década de setenta, teoria que estava


totalmente em voga durante esse momento na Sociologia. O modelo de desenvolvimento que o
país passava teria, na década de sessenta e setenta, acentuado as características de desigualdade
através da concentração de renda. E, nesse contexto, o trabalho doméstico remunerado seria um
subemprego feminino crônico, fazendo com que Farias (1983) tivesse um diálogo estreito com a
teoria de Pedro Demo. Partindo da análise econômica, a autora passa a compreender as lógicas
domésticas pelas teorias da divisão sexual do trabalho, trazendo uma elaborada e esmiuçada
composição teórica para entender a “domesticidade” que “prendia” as mulheres, de uma forma tão
intensa, ao mundo privado sem qualquer tipo de compartilhamento do trabalho em si e de uma
ideologia que poderia mudar esse cenário, inclusive entre as próprias mulheres. Nesse sentido, ela
coloca como um questionamento para as entrevistadas as suas próprias percepções relacionadas
ao trabalho fora de casa, e assim como já relatado por Saffioti (1978), as respostas foram em sua
maioria negativas, alegando que o faziam por necessidades financeiras e não por realização
pessoal. Muito comprometida em entender as complexidades do interior de uma casa, a autora
ainda aborda a participação dos maridos nas tarefas domésticas e nos apresenta o seguinte quadro:
43% dos maridos não faziam nada e 45% ajudavam em alguma coisa, de vez em quando,
apresentados assim em ordem crescente: faziam compras, cuidavam dos filhos, cozinhavam,
lavavam louça, abatiam galinhas, lavava o banheiro, enceravam o chão, cuidavam da eletricidade,
jardim e carpintaria (tarefa de homem). Questionadas se essa relação deveria mudar, 53% das
entrevistadas disse que depende (porque homem é muito desajeitado com as coisas da casa) e 39%
disse que sim, que essa lógica deveria mudar, principalmente se não tivesse uma trabalhadora
doméstica remunerada. A relação com esse vínculo trabalhista era tão forte, que 78% das patroas
achavam imprescindível ter uma trabalhadora doméstica remunerada para manter o bom
relacionamento dentro de seus lares.

Efetivamente essas donas-de-casa não carregam todo o fardo pesado e empobrecedor das
tarefas realizadas na esfera doméstica, que produz canseiras, isolamento do resto da
sociedade, sentimentos de impotência e de inferioridade, conforme o que transparece, em
geral, dos depoimentos colhidos (das patroas e das empregadas). Quando podem, elas
dividem com/ou repassam a sua carga de trabalhos domésticos para as “empregadas”.
Este fato – existirem empregadas domésticas, mulheres reserva (migrantes, pobres e
algumas vezes de cor) – a nosso ver, explica, em parte, o anestesiamento de possíveis
queixas e questionamentos que seriam esperáveis pela própria natureza da situação
concreta vivida pelas donas-de-casa em geral. (FARIAS, 1983, p.103).
79

Diante desse fato, Farias (1983) compreende que as relações entre patroas e trabalhadoras
domésticas remuneradas são pautadas pela dominação-subordinação. Totalmente embasada no
conceito weberiano de “poder senhorial”, ela traça alguns fundamentos por meio das declarações,
posições de classe e estruturas sociais que vinculariam a trabalhadora doméstica remunerada de
uma forma subordinada naquela relação, trazendo, como exemplo, a falta de um contrato formal
aos moldes dos direitos trabalhistas, pois tudo passava pelo “acordo verbal” com a patroa, inclusive
as folgas, deixando com que a “força da palavra” sempre estivesse com os mais poderosos,
estabelecendo consequentemente diversas desigualdades. Aqui Farias (1983) se aproxima da ideia
de Saffioti (1978), compreendo que as relações desiguais seriam sanadas pelas lógicas mercantis
e contratuais, que o caráter do profissionalismo acabaria com as dinâmicas cotidianas de
subordinação. Farias (1983) ainda denomina, dentro dessa lógica conceitual, um “código patronal”
das regras de dominação exercidas pelas patroas listando 10 princípios fundamentais que uma
trabalhadora doméstica remunerada deveria ter, de acordo com as perspectivas das patroas: saber
trabalhar e saber bem, saber ler e escrever, ser limpa, calma, delicada e bem humorada, ser humana,
saber respeitar e ser amiga (pessoa da família), ser delicada, cuidadosa e responsável, ser fiel, leal
e honesta, não ser atrevida malcriada e respondona, ser humilde e discreta (reconhece o seu lugar),
ser “direitas”, caseiras e tímidas (não fazer amizades com colegas).

Devido à convicção de “superioridade” (e, portanto, presunção de poder), espera-se dos


“inferiores” dependentes – obediência, lealdade, “fidelidade”, em suma subserviência. As
desigualdades sociais favorecem o desenvolvimento de uma “lógica” da dominação nos
detentores de poder econômico, por menor que ele seja. Essa “lógica” da dominação
vigora por exemplo, muitas vezes, nas relações quase sempre autoritárias entre marido e
mulher, entre pais e filhos e entre patroas e empregadas.(...) As patroas da nossa pesquisa
– donas-de-casa de classe média, em Fortaleza – não pareceu questionar o modelo de
sociedade em que vivemos e muito menos o lugar masculino e feminino dentro dela. É
mais fácil transferir o seu problema- trabalho doméstico desvalorizado, associado a
aprisionamento dentro de casa e consequentemente alienação da produção e da política
(participação no movimento da cidade) – para outras mulheres ainda mais excluídas do
que elas da vida social”. (FARIAS, 1983, p.116 e123).

A pesquisa realizada por Farias (1983) e sua análise dos dados nos oferece mais elementos
para pensar a cultura doméstica, não somente apontando as características servilistas reproduzidas
na interação entre patroas e trabalhadoras domésticas remuneradas, como também evidenciando
como o trabalho doméstico em si nunca foi de fato valorizado pelas mulheres empregadoras,
80

reforçando o reconhecimento de um trabalho degradante e que precisa ser realizado por pessoas
“inferiores”.
As duas obras suscintamente apresentadas, de Saffioti (1978) e Farias (1983), nos
mostram questões muito importantes para compreender como o universo doméstico era estruturado
naquele momento, principalmente ao contemplar os pontos de vistas das mulheres que estavam
totalmente inseridas e reconhecidas nesse espaço. Havia uma preocupação de não entender
somente os aspectos econômicos e culturais das classes sociais mais altas, pois esses estudos
estavam comprometidos também em apresentar as reproduções que as classes trabalhadoras faziam
em relação ao trabalho doméstico remunerado, nos apontando as dinâmicas do mercado de
trabalho e as permanências ideológicas sobre família. O discurso e as teorias da divisão sexual do
trabalho estavam presentes nessas obras, com posicionamentos muito críticos sobre as
desigualdades geradas por essa dinâmica fechada dos papeis de homens e mulheres dentro do
ambiente privado. É importante lembrarmos que essa crítica também estava em muitos espaços de
reflexões sociais, para além dos textos e pesquisas acadêmicas, muitos folhetins, cadernos
populares e diálogos foram estabelecidos na década de sessenta e setenta, como nos movimentos
de mulheres, entre grupos feministas e nas pastorais da Igreja Católica.
A incorporação das noções relativas a divisão sexual do trabalho pela Igreja era realmente
muito forte, as Campanhas da Fraternidade estavam voltadas para as temáticas do mundo do
trabalho, da família e da mulher22, assim como as políticas de base eclesiais produziam materiais
didáticos, debates e reflexões sobre a exploração da mulher no âmbito doméstico, a incorporação
desse trabalho no sistema capitalista e a percepção que os outros integrantes da casa também eram
responsáveis pela manutenção do lar. Um claro exemplo desse contexto é livro “Meu Nome é
Mulher: Temas para Debate” (1990), uma coletânea com 10 textos base para conversas em grupos,
que foram escritos essencialmente por sociólogas, psicólogas e educadoras da USP (Universidade
de São Paulo), e continha um conteúdo para descontruir esse padrão instaurado. Essas produções
paralelas essencialmente caracterizavam o contexto hibrido dos anos setenta, nos mostrado a
interface do argumento feminista e marxista nos espaços não acadêmicos. Esses cadernos
populares, revistas em quadrinhos, ilustrações e textos foram pensados e usados em reuniões

22
A Campanhas da Fraternidade nos anos de 1976, 1977, 1978, 1983 e 1990 foram respectivamente: Fraternidade e
Comunidade – Caminhar Juntos/ Fraternidade na Família- Comece em sua Casa/ Fraternidade no Mundo do
Trabalho – Trabalho e Justiça para Todos/ Fraternidade e Violência – Fraternidade Sim, Violência Não (que falava
da violência doméstica)/ Fraternidade e a Mulher – Mulher e Homem: Imagens de Deus.
81

propostas para a classe trabalhadora, comunidades de bairro, tentando fazer uma conscientização
de base (ver anexo1). (VIEZZER, 1990).

FIGURA 1 - QUADRINHO SOBRE O TRABALHO DOMÉSTICO E LUCRO

FONTE: “A Nossa História 1: O Trabalho da Dona de Casa”. Associação das Donas de Casa. 1982

Apesar do compartilhamento dessas teorias em outros ambientes de formação política,


podemos perceber que essas transformações propostas não adentraram as lógicas domésticas,
como mesmo Saffioti (1978), Farias (1983) e Motta (1977) nos exemplificam através da
incorporação de que o trabalho fora de casa não estava ligado ao discurso de emancipação
82

profissional e financeiro das mulheres, que homens e filhos não se sentiam responsáveis e não
promoviam ações relacionadas ao trabalho doméstico e que a mulher só estava liberada de duas
jornadas de trabalho - fora e dentro de casa - quando contratava outra mulher para realizá-lo. Essas
obras adentram e enfatizam essa exploração da força de trabalho feminina advinda das classes
mais baixas, mostrando as explorações trabalhistas, econômicas e jurídicas e as constantes práticas
de diferenciações que ocorriam entre essas duas mulheres de distintas classes, mantendo a
trabalhadora em posições subordinadas e inferiores. As posições subalternas entendidas pelas
autoras podem ser perfeitamente visualizadas quando as patroas relatam problemas em encontrar
uma profissional “das antigas” e na descrição da trabalhadora perfeita, que deveria ser eficiente,
sem vontades e desejos próprios, que soubesse se adequar aos tempos e dinâmicas dos patrões e
que ocupasse um lugar naquela casa, mas não no seio daquela família.
As vozes dessas patroas não ecoavam somente nessas pesquisas acadêmicas, o período
trazido aqui ainda contava com inúmeros manuais escritos por donas-de-casa de classe média alta,
com o objetivo de ajudar patroas a lidar com essa “peça” dentro de casa. Diante da Lei 5.859 de
1972, o discurso da falta de profissionalização das trabalhadoras domésticas remuneradas em
relação aos direitos adquiridos era percebido como desproporcional, assim Tania Kauffman (1975)
pensa que sua “experiência de trinta e cinco anos de “luta” com empregadas poderia ser útil às
jovens donas-de-casa que se iniciam e àquelas que, mesmo experientes, se defrontam
frequentemente com dificuldades domésticas permanecendo escravizadas ao problema
empregada, sem tempo para viver.” (KAUFMANN, 1975, p.19 e 20).
O manual chamado “A Aventura de Ser Dona-de-Casa: dona-de-casa x empregada”
(1975) partilha da mesma ideia que as patroas investigadas por Farias (1983), que o trabalho
doméstico é humilhante, traz muita sobrecarga de trabalho e pouco reconhecimento, atingindo-as
emocionalmente e tornando-as mulheres cansadas e deprimidas. Assim, Kaufmann (1975) deseja
contribuir para amenizar uma situação que escraviza a mulher “[...] deixando-a nervosa ou
submersa em tarefas que pode delegar a outrem, para dedicar-se a trabalhos que contribuam para
o seu progresso material e intelectual.” (KAUFMANN, 1975, p.23). Ao estabelecer uma lista
primordial para encontrar a trabalhadora perfeita, ela pede para as futuras donas-de-casa
examinarem bem a aparência dessa candidata, sua pele, corpo (magras, bonitas e gordas demais
costumavam a dar problemas), saber se moravam suficientemente longe para não incomodar a
família com assuntos pessoais, já deixar estabelecido o uso do uniforme e informar o horário do
83

jantar para ela se programar melhor, caso desejasse estudar a noite. Logo após a contratação, o
trabalho de “treinar” uma trabalhadora também necessitava de muita atenção, paciência nos
primeiros dias, palavras no diminutivo sempre soavam como mais afetivas e mostrar para a
trabalhadora como a casa funcionava (horários dos membros da família) e quanto os móveis, peças
e roupas custaram era muito eficiente para que ela tomasse mais cuidado com a casa. E as donas-
de-casa deviam lembrar que a correção dos erros das trabalhadoras domésticas remuneradas
precisavam ser suaves e persistentes para chegar ao ideal, pois a relação afetiva com essa deve
estar presente, mas ao mesmo tempo distante para não trazer problemas alheios a casa. Se tudo
isso não der certo, Kaufmann (1975) ainda dá dicas de como despedir uma trabalhadora doméstica
remunerada e como não ser despedida por ela. Por último, mas não menos importante, a autora do
manual alerta para os frequentes roubos ocorridos dentro de casa, era preciso tomar as devidas
precauções e ficar atentas para não facilitar o processo.

Ah, uma coisa é muito importante para quem tem problemas de orçamento: não deixe sua
carteirinha de notas por aí. Evite tentações. Leve-a sempre consigo no bolso do quimono
(quimono de dona-de-casa não pode deixar de ter bolso), leve-a para o banho
(principalmente para o banho, pois é nesses momentos que nossa vigilância é impossível),
para a sua mesa de trabalho, para o quarto, quando for dormir, - ou deixa-a sempre em
um lugar seguro, escondida. Pois uma empregada descontente poderá facilmente dobrar
seu ordenado. As notinhas de 10 têm asas. [...] Parece que furtar é tão humano...como
errar. Pois as perdas são frequentes: sabonetes, meias de homem, lenços, mantimentos,
talheres avulsos, perfumes, calcinhas. Estranhamente, quase todas adoram calcinhas
pretas...um mistério a ser desvendado”. (KAUFMANN, 1975, p.78).

O livro escrito por Inez Arroz Almeida (1969) intitulado “Da Conversa Cricri” nos remete
a mesma ideia escrita por Kaufmann (1975) sobre a honestidade das trabalhadoras domésticas
remuneradas, remetendo-as não somente aos casos de furtos e roubos de objetos da casa, mas
também através de um imaginário de conduta sexual, desmoralizando-as em um sentido de
promiscuidade, o que deveria ser atenciosamente tratado pelas donas-de-casa. Almeida (1969)
ainda pede cuidado para a patroa não se tornar do tipo “leitora da crônica policial”, sempre
desconfiada e que tranca todos os armários com chaves, pois isso pode levar a estabelecer uma
péssima relação com a trabalhadora. Ao tentar prestigiar o trabalho doméstico em seu livro e
desvinculá-lo da “má fé masculina”, Inez Arroz Almeida (1969) propõe descrever todas
particularidades vividas por donas-de-casa, patroas e trabalhadoras para que o trabalho doméstico
seja devidamente reconhecido e valorizado, assim ainda lista outros doze tipos padrões de patroas
para evidenciar todas as complexidades que giravam em torno da realização das tarefas
84

domésticas. Essas patroas foram enquadradas em arquétipos como a “autoflageladora” (que faz
tudo e só contrata diarista), “a conservadora” (aguenta os maiores problemas porque não tem
coragem de falar com a trabalhadora), até a “justiceira” (pretende que os direitos sejam iguais e
trata as trabalhadoras em plano de igualdade). E as trabalhadoras domésticas remuneradas, como
são muitas e de muitos tipos, foi possível apenas descrever as “constantes” em todas elas, como
por exemplo, entupir ralos e pias, deixar o sabão de molho no tanque, jogar fora restos de comida
aproveitáveis, misturar na mesma pia panelas com restos de comida, frigideiras engorduradas,
xícaras de café, pratos de doces e copos. A “ineficiência” da trabalhadora doméstica remunerada
era o grande problema que ela e muitas patroas tinham que “enfrentar”, e corrigir isso com a mais
harmoniosa comunicação não era uma tarefa fácil, sendo então dedicadas várias páginas desses
manuais para mostrar os melhores caminhos de fala. Almeida (1969) propõe então que haja cursos
para aperfeiçoar essas profissionais.

Creio que em todo o Brasil, em cada bairro deveriam ser criados postos que recebessem
estagiárias e as orientassem e instruíssem nas lides caseiras. Campanhas permanentes de
alerta e estímulo deveriam ser mantidas. Senhoras e senhoritas da nossa sociedade
oferecer-se-iam como voluntárias para formar a diretoria e o corpo docente. Contratar-se-
iam pessoas hábeis e responsáveis para permanecer dia e noite no local. Depois do prazo
necessário ao treinamento a estagiária sairia preparada profissionalmente e recomendada
moralmente. Organizações desse tipo valorizariam a empregada e dignificariam a patroa.
(ALMEIDA, 1969, p.60).

O ideal de eficiência proposto por essas patroas era totalmente incompatível com as
práticas e condutas trabalhistas das trabalhadoras domésticas remuneradas, de acordo com elas.
As expectativas, desejos e ordens dessas mulheres sobre o trabalho doméstico remunerado estavam
inseridas em lógicas servis, não conseguindo estabelecer novas dinâmicas domésticas para que as
desigualdades vividas dentro de casa fossem minimamente sanadas. Esses manuais reforçavam
posições de classe e diferenciações culturais, que tinham por objetivo situar as posições de poder.
Muitas declarações e depoimentos das patroas vistas nas pesquisas realizadas por Farias (1983),
Motta (1979) e Saffioti (1978), e a publicação desses manuais reforçavam uma cultura
conservadora, que inferiorizava esse trabalho e os sujeitos que o realizavam, não conseguindo
compreender mudanças nas relações trabalhistas e nas ações cotidianas familiares. São através
dessas características que conseguimos visualizar a cultura doméstica, onde a vida cotidiana
doméstica não é sequer imaginada sem a contratação de outra pessoa para fazê-lo e, obviamente,
85

são usadas diversas estratégias para que a permanência, dependência e submissão sejam
estruturantes no trabalho doméstico remunerado. (RAY; QAYUM, 2009).
Nesse sentido, conseguimos visualizar o porquê as reivindicações e desconstruções
propostas pelas teorias da divisão sexual do trabalho – mesmo inseridas em diversos espaços de
formação política - não conseguiram adentrar o ambiente doméstico de fato. As representações
sobre o trabalho doméstico como degradante e humilhante não se modificaram e o restante dos
membros da família, consequentemente, não se responsabilizavam por realizar essas tarefas,
estabelecendo como uma lógica direta a contratação de outra mulher para fazer tudo em casa. É
claro que essas representações partem de um nível cultural muito enraizado, mas que se sustentam
também por uma compreensão de pertencimento de classe conectados com as posições econômicas
e sociais, como enfaticamente dito e analisado estatisticamente por Saffioti (1978), ou seja, é muito
importante marcarmos que a classe média brasileira tem como um de seus princípios de auto
reconhecimento não fazer as tarefas domésticas, mas sim contratar alguém para fazê-los. Dessa
forma, as desconstruções propostas pela divisão sexual do trabalho não chegam a sua plenitude
porque há posições econômicas de classe que, também, moldam os comportamentos domésticos
das famílias empregadoras.
Essas primeiras pesquisas traziam uma crítica, de uma forma muito parecida, sobre essas
posições “classistas e patriarcais”. Todo esse conservadorismo era pensando pelas propostas
analíticas de um feminismo marxista, que abriu as portas das casas e mostrou relações assimétricas,
violentas e de desigualdades, abrindo um caminho novo para se pensar a sociedade brasileira. No
entanto, como esses trabalhos estavam inseridos na lógica do desenvolvimento econômico, nos
conceitos de “trabalho produtivo” e “mais valia” e nos aspectos socioeconômicos, não havia
problematizações relativas às desigualdades étnico-raciais de maneira suficientemente
aprofundada, não compreendo que juntamente com uma divisão sexual do trabalho havia uma forte
divisão racial do trabalho. Nenhum desses trabalhos traz dados estatísticos, interpretações ou
análises suficientes que conectassem o processo de escravidão com as demandas mercantis do
trabalho doméstico remunerado, nem as violências apresentadas sobre os corpos das trabalhadoras
– como sua higiene, roupas e cheiro – foram vinculadas ao racismo. Esse é um limite teórico e
analítico muito importante, que deixou silenciado uma gama de explorações e humilhações que as
teorias marxistas não sustentavam, mas que mantinham fortemente o caráter violento e servil no
trabalho doméstico remunerado, mostrando mais uma vez as facetas de reconfiguração do que
86

tenho chamado de cultura doméstica. Não podemos nos esquecer ainda que esses limites também
causavam contradições em termos de lutas políticas do feminismo nesse momento, inclusive
muitos silenciamentos advinham das posições de classe das próprias feministas.

2.2 A CONTINUIDADE: O FEMINISMO E SEU CARÁTER CONSERVADOR DOS ANOS 70


E 80

As primeiras pesquisas realizadas sobre o trabalho doméstico remunerado no Brasil


continham uma discussão de classe forte, consistente e altamente crítica, marcada não só pelas
bases teóricas marxistas, mas por uma visão que incomodava muito as estruturas conservadoras
acadêmicas e de classe média do período. O feminismo não só adentrava a Academia, como se
constituía em termos de luta e formação de grupo de uma forma distinta do que estava ocorrendo
até então. No final da década de setenta via-se um movimento perseguido pela Ditadura Militar,
fragmentado em termos de consciência de luta e ao mesmo tempo muito presente nos espaços de
poder, conseguindo adentrar com seus discursos em instituições políticas e incomodar uma
esquerda machista e excludente. (PINTO, 2003).
Mas nos debates políticos dentro do próprio movimento havia posições de classe, que de
certa forma não pensavam na emancipação das trabalhadoras domésticas remuneradas, refletindo
e lutando por um feminismo classista e deixando os estudos e as discussões sobre o tema em
posições marginais. Inclusive uma das principais conclusões feitas por Saffioti (1978) dizia
respeito a esse posicionamento de suas companheiras.

Há que considerar, contudo, que os movimentos feministas, em sua maioria, vinculam-se


às classes sociais, não visando à liberação de toda e qualquer mulher. Os maiores
contingentes de militantes destes movimentos pertencem aos estratos médios da
sociedade e muito poucos elementos estão identificados com a problemática da mulher
proletária ou pertencente ao lumpemproletariado. Dado o fato de serem raros os
movimentos feministas integrados no pensamento socialista e que, portanto, militam em
favor da liberação da mulher pertencente a qualquer classe social, não havendo no Brasil
sequer um grupo do estilo, as influências feministas que atingem as brasileiras têm
nitidamente origem nas “classes médias”. (SAFFIOTI, 1978, p. 147).

Uma clara demonstração disso é que Romy Medeiros da Fonseca, presidente do Conselho
Nacional de Mulheres do Brasil e uma das protagonistas do feminismo e da luta no Estatuto da
Mulher Casada de 1962 (que garantiu as mulheres não serem mais controladas pelos seus maridos
87

caso quisessem trabalhar ou viajar para o exterior) escreveu o prefácio do manual de Tânia
Kaufmann (1975), dizendo que trazia grandes benefícios e aprendizagens para a sua vida
doméstica. Como bem aponta Roncador (2008), a incoerência do feminismo branco dos anos
setenta investia na campanha para a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho,
amparadas na exploração do trabalho doméstico remunerado, fazendo com que a crítica sobre a
maneira como esse trabalho se estabelecia no Brasil fosse debatido por poucas pessoas dentro do
movimento feminista.
A conjuntura política do período ditatorial durante os anos 70 e 80 apenas agravou,
profundamente, a constituição estrutural do feminismo no Brasil, principalmente em relação a
subjetividade – ponto muito importante para o questionamento intrínseco feminista. (SARTI,
1998). Os recursos simbólicos não atingiam todas as mulheres, pois bandeiras que pautavam as
relações entre homens e mulheres, casamento, meio de vida, significados e experiências da
maternidade tinham uma concepção de classe fundante. Por isso o movimento feminista teve
posicionamentos sociais que marcavam e afetavam mulheres profissionalizadas, universitárias,
“intelectuais”, quando não “viajadas e com potencial cosmopolita”, tendo como consequência a
materialização e a objetificação da luta política feminista de uma forma singular. (SARTI, 1998).
Nesse sentido, o trabalho doméstico nunca deixou de ser considerado “degradante”,
“aprisionador”, “que não produzia intelectualidade”, “que retira o tempo qualitativo para cuidar
da educação dos filhos”, “que causava depressões e canseiras”. E todas essas representações são
passadas para as pessoas que os executam, então mulheres “não intelectualizadas”, “pobres” e
“inferiores” são as designadas para esse tipo de serviço. São nessas entrelinhas que percebemos
por onde as continuidades servis se instituem, não somente pela constante desvalorização desse
trabalho, mas pelas características ideais apontadas pelas patroas e pelas patroas em potencial em
relação a trabalhadora doméstica remunerada: higiene, boa maneira, saber trabalhar, ser calma,
tímida, humilde, discreta, que reconheça seu lugar, que use uniforme, que não sente a mesa e nem
assista televisão, que não precisa de descansos semanais, etc. Ou seja, exigências que não só
impunha comportamentos e práticas trabalhistas, como também estabelecia as de ordem moral e
pessoal para que “cada um saiba seu devido lugar” – o que tenho chamado de “cultura doméstica”.
Essas exigências, reclamações e posturas conservadoras das empregadoras e do próprio
movimento feminista asseguraram que inferioridades e hierarquizações fossem concretizadas, e
que a luta por emancipação política tivesse um protagonismo específico. Isso significa dizer que
88

as práticas culturais que reproduziam desigualdades e vulnerabilidades nessas relações trabalhistas


não foram rompidas, inclusive o discurso do profissionalismo aparecia como resolução do
problema tanto para as pesquisadoras, como para as donas-de-casa. É claro que o contexto era
absoltamente distinto, pois em 1972 foi a primeira vez que direitos trabalhistas foram designados
para as trabalhadoras domésticas remuneradas, o que poderia realmente trazer uma perspectiva
analítica para as autoras como o caminho onde as desigualdades fossem sanadas – e de fato, a
regulamentação trabalhista é essencial para se pensar parâmetros minimamente igualitários. No
entanto, o que percebemos é que o contratualismo não acabava com o tão apontado “caráter
paternalista” nessas relações e nem diminuíam as diversas práticas de inferiorizações, ele era a
justificativa para que as empregadoras exigissem limites e posições subalternas das trabalhadoras
domésticas remuneradas – mostrando-nos aspectos de reconfiguração da cultura doméstica.
Não podemos deixar de apontar que, por outro lado, sempre houve uma ambição de
conjunção de lutas políticas entre alguns setores do movimento feminista com as pautas e
reivindicações das trabalhadoras domésticas remuneradas desde a década de 7023. Mas como já
enfatizado por Bernadino-Costa (2007), o frutífero encontro entre o movimento feminista e as
sindicalistas da categoria não pode ser compreendido sem suas contradições e elementos
colonialistas. Juntamente com o fortalecimento construído – do lado do movimento feminista
puderam atingir uma rede muito mais ampla de mulheres, e para as mulheres pertencentes às
periferias e aos movimentos de luta sindical questões como moral sexual, corpo e saúde foram

23
Inicialmente podemos destacar um encontro pautado por incentivos internacionais, pois como dito anteriormente,
houveram pressões advindas dos movimentos feministas europeus e norte-americanos, que estavam realmente
conseguindo levar as discussões sobre o trabalho doméstico para o debate público, exigindo novos posicionamentos
políticos e realmente questionando a divisão sexual do trabalho, o papel do Estado e pressionando as formulações do
Estado de bem-estar-social. (HIRATA, 2009). Muitas destas pesquisadoras feministas então começam a fazer suas
pesquisas empíricas na América Latina, seja porque estavam vinculadas a programas sociais da ONU e da OIT
(Organização Internacional do Trabalho) ou porque estes países apresentavam realidades muito distintas de seu
lugar de origem, o trabalho doméstico remunerado torna-se então um dos principais focos analíticos estudados por
estas pesquisadoras. O livro organizado por Elsa M. Chaney e Mary Garcia Castro intitulado “Muchachas No More:
Household Workers in Latin America and the Caribbean” é um grande exemplo deste contexto. Esta obra foi fruto
de um investimento inicial promovido pela OIT nos anos oitenta, que visava explorar essa dimensão trabalhista nas
Américas e financiou algumas pesquisadoras para que começassem a tratar dessa temática. Anazir María de
Oliveira – mais conhecida como Zica – e Odete presidiam o Sindicato de Trabalhadoras Domésticas Remuneradas
do Rio de Janeiro durante a década de oitenta, e escreveram um artigo denominado “Las Trabajadoras Domésticas
em Rio de Janeiro: su lucha para oganizarse”, com a ajuda da economista feminista Hildete Pereira de Melo,
expondo todas as dificuldades que as trabalhadoras brasileiras tinham em relação aos direitos trabalhistas e a sua
própria formação sindical. Essa oportunidade de escrever capítulos em um livro sobre o tema deve-se a proximidade
que as pesquisadoras do tema tiveram com os movimentos políticos e sindicais de trabalhadoras domésticas
remuneradas, que se uniram para tentar modificar o quadro de direitos trabalhistas e as desigualdades vividas por
essas mulheres dentro do ambiente domésticos, aspectos que veremos mais detalhadamente adiante.
89

incorporadas nas discussões e percepções políticas (RAGO, 1996) – havia uma óbvia desconfiança
que surgia devido as gigantes diferenças de classe que separava essas duas categorias.

O relacionamento com o movimento feminista é mediado pela desconfiança, devido ao


fato que a adesão das feministas à luta das trabalhadoras domésticas, na perspectiva
destas, esbarra do projeto de “emancipação feminina”, que se fazia não através de uma
renegociação da divisão sexual do trabalho entre marido e esposa, senão através de outra
mulher. Embora o movimento feminista apareça como um colaborador ao longo do
processo de fortalecimento do movimento das trabalhadoras domésticas, inclusive com
participações decisivas como no caso da criação da Fenatrad, a associação/sindicato de
trabalhadoras domésticas do Rio de Janeiro sempre percebeu as diferenças entre as
feministas e as trabalhadoras domésticas. (BERNADINO COSTA, 2007, p.158).

Se as diferenças não eram apontadas como centrais nesse momento, elas passam a ser o
motor interpretativo dos estudos realizados nos anos 90 e início dos anos 2000. As mesmas
concepções conservadoras vistas nesse capítulo são também percebidas no período posterior,
porém com uma abordagem teórica que compreendia os limites impostos pelo marxismo, e que
construiu outros pontos de análises através de pesquisas etnográficas e com visões voltadas aos
micropoderes cotidianos que estruturavam o trabalho doméstico remunerado. Por meio dessas
obras é possível visualizarmos igualmente as reconfigurações e/ou reiterações da “cultura
doméstica”.
90

3 PENSANDO A DIFERENÇA E A DESIGUALDADE: OS MINUCIOSOS TRABALHOS


DAS DÉCADAS DE 90 E 2000

Não é porque o doméstico reside na casa que ele vai tomar


certas liberdades [...] está faltando no ser humano cada um
saber o seu lugar24. Margareth Carbinato – Presidente do
Sindicato de Empregadores do Estado de SP, 2015.

Se durante as décadas anteriores o tema trabalho doméstico remunerado foi


majoritariamente analisado pela Sociologia, nos anos 90 e início dos anos 2000 este foi
minuciosamente etnografado pela Antropologia. Isso resultou em obras que trouxessem outras
perspectivas teóricas para compreender essas relações empregatícias no país, tanto pelo ponto de
vista dos mecanismos cotidianos que configuravam lógicas, estratégias e posições de poder dentro
do ambiente doméstico, como pelas análises das políticas públicas e legislativas que envolvem
essa categoria profissional. É importante lembrar que esse período é marcado pelo processo de
redemocratização, por políticas econômicas estabilizadoras para o crescimento econômico, um
considerável aumento do desemprego e consequentemente nos níveis de desigualdade no Brasil.
(DEDECCA, 2001). Ainda soma-se a esse contexto as novas leis trabalhistas e civis da
Constituição de 1988, que assegurou a maior ampliação de direitos para a categoria profissional
de trabalhadoras domésticas remuneradas, sendo garantidos nove dos trinta e sete incisos
determinados na legislação vigente. As trabalhadoras domésticas remuneradas passam a contar
com salário mínimo, irredutibilidade do salário (salvo negociação), décimo terceiro salário,
repouso semanal, férias remuneradas com um terço a mais do salário, licença maternidade, licença
paternidade, aviso prévio, aposentadoria. (FRAGA, 2016).
O quadro do mercado formal de trabalho permanece ampliando a força laboral feminina
de classe média, que já havia se iniciado nos anos 70, mantendo seus avanços e revelando-se na
década de 90 em um considerado crescimento, passando de 28 para 41,7 milhões de trabalhadoras
no início dos anos 2000, onde em sua maioria viam-se mulheres mais velhas (30-39 anos), casadas

24
FAGUNDEZ. Ingrid. Folha de São Paulo. Não Aprendi muito com “Que Horas Ela Volta?”, diz representante de
patrões. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2015/10/1689476-nao-aprendi-muito-com-que-
horas-ela-volta-diz-representante-de-patroes.shtml>. Acesso em: 09 ago.2016
91

e mães. (BRUSCHINI, 2007). Esse contexto impactou não só a realidade do trabalho doméstico
remunerado, como a própria composição analítica teórica das Ciências Sociais.
As principais discussões da Sociologia estavam amparadas na globalização econômica,
ajustes macroeconômicos políticos de competitividade, reestruturação produtiva e nos estudos
sobre o fordismo; ou seja, análises que já não tinham como sua base de sustentação o marxismo e
as concepções de classe, inclusive a própria Sociologia do Trabalho questionava o “fim do
trabalho”, da classe trabalhadora e de sua intervenção na sociedade. Passe-se então a um período
onde “trabalho” e “classe” não eram compreendidos mais como conceitos sociológicos centrais,
abrindo-se para análises com focos mais contextuais, relacionais e desconstrutivistas. (ABRAMO,
1999). A ciência já não era percebida como portadoras de novas descobertas de teorias, paradigmas
e interpretações embasadas nas evidências empíricas e da razão, inclusive até as ciências naturais
passaram compreender seus lócus de estudo por seus contextos e relações.
(SCHWARTZMAN,1991).
Como já dito no capítulo anterior, essa ruptura epistemológica transformou a maneira
como as Ciências Sociais pensavam os sujeitos e suas ações sociais, fazendo uma crítica incisiva
aos pressupostos de neutralidade cientifica e mostrando como determinados conceitos e teorias
não alcançavam as diferenças que se instituíam através do sexo e raça. Para além de um feminismo
marxista e de estudos que apenas mostravam as desigualdades entre homens e mulheres, o cenário
dos anos 90 nos apresenta, através do pós-estruturalismo, o conceito analítico de gênero. Assim,
temos dois elementos chaves que passaram a emergir nos estudos do período: a compreensão de
pensar as diferenças entre os sujeitos e a constituição de um conceito sociológico que abarcasse as
desigualdades relacionadas ao sexo.
A discussão da diferença já estava instaurada no movimento feminista anteriormente,
principalmente através da contribuição de Carol Gilligan (1982) sobre as diferenças éticas
construídas por homens e mulheres, onde apoiada pela ideia do care, em uma postural liberal da
dependência, acreditava que a moral do cuidado estava articulada nas conexões e experiências do
feminino e do masculino25 – lógica que ainda mantinha o mundo público e privado fortemente
separados. (TAMANINI; MONTICELLI, 2015). As interseccionalidades começam aparecer

25
É importante dizer que a polêmica teoria de Gilligan (1982) apesar de manter posições de sujeitos em papéis
muito fixos de representatividade, retirou as mulheres de uma posição inferior e considerada imatura pela teoria de
Kohlberg. (TAMANINI; MONTICELLI, 2014).
92

posteriormente, justamente com as teorias pós-estruturalistas e pós-modernas, para dizer que não
somente homens e mulheres continham diferenças entre si, mas que as diferenças também
poderiam ser densamente construídas entre mulheres de diferentes posicionalidades e contextos.
Esse movimento foi visto primeiramente nos Estados Unidos através das vozes de Teresa de
Lauretis, Adrienne Rich e Glória Anzaldúa, por exemplo, e realmente incorporado no Brasil nos
anos 90. (ADELMAN, 2004).

Esse foi um período em que, com a entrada dos debates sobre pós-modernismo e pós-
estruturalismo na academia norte-americana, assistimos a uma massiva desestabilização
de certezas, verdades, desintegração de epistemologias e a exploração, dentro do
feminismo, das múltiplas opressões constitutivas das diferenças entre as mulheres. [...]
examinando e polemizando as questões sobre a diferença: diferença sexual para além das
formulações dicotômicas, diferença racial, diferença étnica, diferença pós-colonial. O
feminismo da diferença, portanto, distancia-se das determinações biológicas para
salientar as inscrições sócio-culturais dos sujeitos além do gênero, o que abrirá, nos anos
1990, curso para a análise da interseccionalidade do gênero. (COSTA, 2005, p. 692).

As vozes de feministas negras, do Terceiro Mundo, lésbicas e judias ecoaram e mostraram


que o feminismo tinha várias camadas de subordinação, abrindo uma ferida em um feminismo
branco – como diz bell hooks (2004) – que insistia em trabalhar nos limites da classe média e da
construção da ideia de uma família heteronormativa. (COSTA, 2005). Assim, o debate já não se
centrava mais na acusação das imensas lacunas que diferenciavam homens e mulheres nas diversas
estruturas sociais, mas nos contextos que produziam e reproduziam hierarquizações,
subordinações, silenciamentos e opressões inscritas pela diferença, ou seja, os próprios
movimentos sociais e políticos começam a repensar as suas pautas e ações e isso, evidentemente,
traz consequências na maneira de pensar as teorias e na própria investigação empírica das Ciências
Sociais. (SORJ, 1992).
Inclusive, um dos grandes esforços do período no Brasil foi a tradução, construção e
obstinação do uso da categoria analítica gênero para torná-lo uma teoria de fato. O conhecido
artigo escrito por Joan Scott (1988) intitulado “Genre: une catégorie utile d’analyse historique” e
traduzido para o português em 1990, é um dos clássicos exemplos desse momento. Scott (1988)
fundamenta e legitima o “gênero” como uma categoria para as análises dos processos sociais
históricos, para isso ela desconstrói o termo desde sua forma gramatical, demonstrando como este
era utilizado para análises binárias sobre a realidade social. Essa construção conceitual supera os
alcances do feminismo marxista e da própria noção da divisão sexual do trabalho, pois os
93

resultados dos sistemas ocidentais dominantes foram percebidos como uma divisão clara entre
masculino e feminino, colocando essa interpretação no limite da família e das experiências
domésticas. Gênero, então, passa a ser definido como um elemento constitutivo de relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos. Esse esboço do processo de construção das
relações de gênero poderia ser utilizado para examinar a classe, raça, etnicidade, sexualidade ou
qualquer processo social, tendo como propósito o objetivo de clarificar e especificar como se deve
pensar o efeito do gênero nas relações sociais e institucionais. (SCOTT, 1990).
Justamente com esse esforço teórico, começam a surgir também os primeiros núcleos de
pesquisa, revistas especializadas, linhas de investigação e seminários próprios de gênero no Brasil,
como por exemplo, o Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná (1994),
Cadernos Pagu da Universidade Estadual de Campinas (1993) e o Fazendo Gênero da
Universidade Federal de Santa Catarina (1994), entre outros. Isso significa uma institucionalização
das teorias que eram produzidas por uma militância acadêmica feminista, e mais que isso, a
construção de fato de um campo de conhecimento que antes era assumidamente marginalizado.
Nesse contexto ainda, os estudos sobre a sexualidade tomam um espaço e um protagonismo maior
nesses centros de estudo, principalmente embasados pela teoria queer, pelo emblemático livro
“História da Sexualidade I: A Vontade de Saber” (1976) de Michel Foucault e pelas noções
desconstrutivistas de Jacques Derrida. (MISKOLCI, 2009).
No entanto, são essas mesmas obras e os pressupostos desconstrutivistas que irão
fundamentar as pesquisas realizadas sobre o trabalho doméstico remunerado no período. As obras
passam a olhar as minuciosas interações cotidianas e seus contextos, principalmente a relação entre
patroas e trabalhadoras domésticas remuneradas, levando em consideração a construção do espaço
doméstico como algo intrinsecamente feminino, nas subjetivações e agências das próprias
trabalhadoras domésticas remuneradas – não sendo vistas mais como sujeitos estáticos da opressão
– e os processos de interações e representações, essas obras estavam totalmente inseridas nos
pressupostos do feminismo da diferença. Assim, trazemos as obras de Suely Kofes (2001)
“Mulher, Mulheres: Identidade, Diferença e Desigualdade na Relação entre Patroas e
Empregadas”, Marlene Tamanini (1997) “Saúde-Doença na Interação entre Gênero e Trabalho:
Um Estudo das Representações das Empregadas Domésticas” e Jurema Brites (2000) “Afeto,
Desigualdade e Rebeldia: Bastidores do Serviço Doméstico”.
94

Essas obras apresentam uma intensa narrativa etnográfica das posições e representações
das trabalhadoras domésticas remuneradas, suas vozes e estratégias são parte constitutivas das
análises e nos mostram uma visão totalmente diferente das obras produzidas anteriormente. No
entanto, como essa tese se volta às questões que norteiam as reconfiguarações da “cultura
doméstica” e como ela ainda molda as percepções da classe empregadora, nos delimitaremos a
analisar esse outro lado da relação exposto nas obras. Essas obras nos evidenciam as minucias nos
processos de diferenciações, traz a complexidade dessa relação empregatícia frente à Constituição
de 1988 e as iminências de um país mais democrático, apontando as possíveis continuidades da
“cultura doméstica” nesse período.

3.1 DELIMITANDO OS ESPAÇOS E AS DIFERENÇAS: AS PATROAS REIVINDICAM O


SEU LUGAR

O debate sobre as diferenças no feminismo e as próprias teorias desconstrutivistas trazem


um aspecto muito importante para os estudos antropológicos sobre família e parentesco nos anos
90 e início dos anos 2000. Primeiramente que não se concebia mais trabalhar com conceitos
universais de explicação, exigindo outra postura em relação às concepções das mulheres como
sujeitos oprimidos na esfera doméstica, fruto de um sistema reprodutor da divisão sexual do
trabalho. (PISCITELLI, 1998). Era necessário ir além e compreender o contexto doméstico e as
relações familiares por suas estruturas internas, subjetividades e contextos. Nesse sentido, abre-se
outra esfera de interpretação nos estudos sobre o trabalho doméstico remunerado, sendo
incorporados então aos estudos sobre família e gênero. Isso significa que essa relação empregatícia
passa a ser vista como parte constituinte do universo familiar brasileiro e não apenas como uma
relação trabalhista pautada pelos pressupostos de classe. Assim, uma outra faceta dessa relação
passa a ser objeto de análise e descrita pela complexa rede: afeto, família, classe, trabalho e raça.
“Mulher, Mulheres: Identidade, Diferença, Desigualdade na Relação entre Patroas e
Empregadas” (2001) de Suely Kofes abre esse caminho. A tese de doutorado defendida em 1991
e publicada em 2001, parte do pressuposto desconstrutivo que haveria uma “equivalência entre um
sexo, uma categoria, uma experiência, uma identidade (mulher). (KOFES, 2001, p.19)”. Para isso,
a autora busca pontos de reconhecibilidade do feminino e dos sujeitos para pensar os efeitos da
desigualdade. A ênfase da tese estava nas relações sociais e concepções, lugares, sentidos e
95

interações que faz do doméstico um espaço constituinte da feminilidade. A etnografia tem como
metodologia não estipular fronteiras para o tema, buscando sentidos em todos os lugares onde este
se encontrava, como por exemplo, filmes, documentários, livros além da observação participante
na casa das patroas e de instituições (como cursos e sindicatos) destinados as trabalhadoras
domésticas remuneradas na cidade de Campinas – São Paulo.
Kofes (2001) assinala que nesse espaço doméstico que estrutura e constitui o feminino há
um jogo, e a interação entre patroas e trabalhadoras seria em conflito, pois uma estaria
supostamente assumindo o lugar da outra. Assim, as constantes diferenciações foram
insistentemente percebidas pelo lado da empregadora, para que a sua identidade enquanto mulher
não se camuflasse, ou fosse substituída, pela outra mulher que também ocupava esse espaço
doméstico e compartilhava as ações e tarefas íntimas definidoras desses papéis.

O cotidiano doméstico (comportando uma dimensão espaço-temporal), aparece como


delimitação de uma esfera de desempenho, atribuição de papéis e definição da mulher e
do feminino. O “doméstico” enquanto elaboração social, um lócus estrutural e ideológico
apontando para a possibilidade da elaboração de uma “identidade”. Entretanto
encontramos aí uma relação social que propicia um encontro entre mulheres, mas
mulheres socialmente desiguais”. (KOFES, 2001,p.124).

Para estabelecer e apontar esses marcos de diferença a autora faz uma descrição densa do
cotidiano doméstico de 2 casas e 1 apartamento, revelando detalhes estruturais desde as plantas
residenciais, até minúcias relacionadas aos membros da família que utilizam determinados
cômodos ou não, o horário que frequentam a cozinha, por quais objetivos, quem pode se sentar
no sofá para assistir a televisão, o quarto destinado a trabalhadora doméstica remunerada e as
tarefas que eram muito bem diferenciadas entre patroas e trabalhadoras: a patroa escolhe o cardápio
do almoço e compra alguns ingredientes que faltam, e trabalhadora cozinha; a patroa leva os filhos
para escola, a trabalhadora cuida de seus uniformes; a patroa observa as demandas de seu marido,
e a trabalhadora os executa; ou seja, dominar e estabelecer o que a trabalhadora doméstica
remunerada faz também é uma função da dona-de-casa, assim como preservar certas tarefas para
que sua identidade enquanto esposa e mãe não sejam sublimadas.
Esses aspectos nos demostram as continuidades dos pressupostos da “cultura doméstica”,
a organização, sistematização e separação das tarefas entre patroas e trabalhadoras domésticas
remuneradas, a vigilância e a performance de como cada uma deve desempenhar as suas devidas
atribuições se situam nas representações imaginárias do doméstico, da família e sobretudo da
96

limpeza do espaço residencial, assegurando os lugares e as diferenciações. Como já visto


anteriormente, as narrativas de uma suposta crise no mercado do trabalho doméstico remunerado
está intrinsecamente associado com as demandas das empregadoras, com os limites impostos pelas
trabalhadoras – seja pelos seus processos de agência, ou pelos impostos institucionalmente, como
pela ampliação de direitos.
A autora então fez entrevistas com as duas partes dessa relação e constata que no período
havia um discurso, por parte das empregadoras, que a indústria estava absorvendo a mão-de-obra
de trabalhadoras que antes via no trabalho doméstico remunerado a única via de sobrevivência.
Sendo assim, alguns mecanismos tradicionalmente utilizados como a doação de roupas velhas e
comida já não faziam mais sentido por si só, era necessário acrescentar a esses “benefícios” a folga
semanal, férias e descansos nos feriados. (KOFES, 2001). Nesse cenário, temos a Constituição de
1988 recém esteada e que ampliou consideravelmente os direitos trabalhistas para essa categoria
profissional. No entanto, percebe-se por meio da obra de Kofes (2001) que a incorporação real
legislativa não fazia parte da realidade dessas contratações, sendo que os direitos conquistados
ainda eram considerados peças de negociações e barganhas, o que deixava as relações de poder
ainda assimétricas.
As diferenciações realizadas pelas empregadoras também eram pautadas pelas questões
raciais, de classe e através do corpo. “Empregada tem que ser limpa, educada e não pode ser
metida...” (KOFES, 2001, p.400). As questões relacionadas à higiene da trabalhadora doméstica
remunerada eram colocadas em dúvida a todo momento nas narrativas das patroas, tanto pela
suposta falta de higiene ao realizar as tarefas domésticas, como por meio de suas vestimentas,
cabelo e lugar de origem, até quando essas passavam perfumes não era considerado de bom gosto,
“impregnando a casa com um mal odor”. Essa suposta falta de higiene delimitava os lugares onde
a trabalhadora poderia frequentar, quais os integrantes da casa ela podia tocar e subjugava o
conteúdo do trabalho realizado. “Então, se a gente cria a criança no maior dos luxos, não leva no
supermercado para não pegar doença, não leva no circo para não pegar doença, [...] vai deixar uma
empregada que você não sabe se é tuberculosa carregar a menina?” (KOFES, 2001, p.407). Nesses
discursos e nas práticas de diferenciações relacionadas a higiene ainda salienta-se uma tentativa
de mascarar preconceitos raciais profundos, um claro exemplo disso é que nas agências de
emprego pesquisadas pela autora durante a pesquisa, foi constatado que nos 1010 pedidos advindos
97

das empregadoras, majoritariamente as demandas eram por trabalhadoras “limpas”, ou seja,


brancas.

Em todos eles, consta a informação “se a patroa tem ou não preconceito racial”. A agência
faz sempre essa pergunta, como me foi explicado: “Antes eu não perguntava, enviava
uma moça de cor e logo vinha um telefonema reclamando”. Assim, 620 patroas afirmaram
não ter preconceito. A essa afirmativa quase sempre seguia-se em “mas”, ao qual se
acrescentava: “bem limpa” (245), “prefiro branca ou mulata”, “quero alguém bem limpa”.
Também pode ser acrescentado “ou”, quando se pede uma empregada “branca” (236):
“branca ou...bem limpa”, “ou clara”, “ou sem odor”, ou “mulata”. Também encontrei
“preta menos mulata”, ou “preta bem limpa”. (KOFES, 2001, p.238).

Nessas mesmas agências eram coletadas informações e expectativas das empregadoras


para uma futura contratação, sendo possível então para Kofes (2001) traçar um perfil referente à
competência, horário e caráter que uma trabalhadora doméstica remunerada deveria ter de acordo
com os desejos das contratantes. Esta precisaria ser experiente, prática, responsável, experta,
caprichosa, que goste de usar uniforme, que saiba ler e escrever, com informações, com um pouco
de instrução, que saiba atender ao telefone; pontual, que possa viajar, que não saia aos sábados à
noite, que não volte tarde; solteira, sem filhos, sem compromisso, independente, senhora, moça,
mocinha, maior de idade, que goste de criança, que goste de animais, boa aparência, boa e limpa,
sem odor, com dentes, com bons dentes, com boa presença, bem apresentável, educada e alegre,
calma, de boa formação moral, de confiança, boazinha, que não fume, entre outras. (KOFES,
2001). Assume-se assim que as características em relação ao trabalho e a moral da trabalhadora
ainda são pautadas por essas noções construídas pela “cultura doméstica”, o que nos aparece como
uma nova faceta, para interpretar e observar nessa reconfiguração cultural do espaço residencial e
seus sujeitos, é o afeto e seus complexos desdobramentos nessa relação empregatícia.
Do lado oposto dessa relação, as trabalhadoras domésticas remuneradas escutadas na
pesquisa de Kofes (2001), preservavam a ideia que uma boa patroa é aquela que não “trata a
empregada como empregada”, que se comporta com uma amiga e que saiba compreender os seus
problemas, ensiná-las e presenteá-las. (KOFES, 2001). Expectativas difusas em uma relação
desigual. Enquanto as empregadoras desejam ter uma pessoa que possa trabalhar em tempo
integral, com características que não lhes tragam problemas, com uma vida solitária para que
possam dominar mais o seu tempo, eficiente, limpa e que não tenham que se envolver nas questões
pessoais, as trabalhadoras domésticas remuneradas preservavam mais a boa comunicação
98

estabelecida com suas patroas26. Nesse sentido, não somente durante os anos 90, mas desde obras
anteriores até as narrativas contemporâneas, a imposição e regulamentação legislativa são
percebidas pelo lado das empregadoras como uma forma de estabelecer um contato menos íntimo
e mais profissional com as trabalhadoras domésticas remuneradas, livrando-se de seus problemas
e das complexas relações afetivas envolvidas nessa relação.
Isso não significa que essas relações não sejam nutridas pelas próprias patroas, tendo
discurso totalmente retórico frente às práticas que realizam. A famosa e tão polêmica frase “mas
ela é quase da família”, revelava para Kofes (2001) uma fetichização na confusão entre a casa e a
família, ou seja, nas relações sociais estabelecidas as trabalhadoras pertencem a casa, e a patroa a
família. “Compartilhar identidades seria compartilhar afetos, posições, status”. (KOFES, 2001,
p.387). Assim, as constantes diferenciações de classe social e racial eram usadas para marcar
profundamente a não igualdade entre essas duas mulheres situadas no espaço doméstico.

Talvez, encontremos aí o porquê da sobrecarga simbólica constante nessa interação: a


demarcação de espaços, de tempo, das roupas, dos gestos, da comensalidade. É como se
uma possível identidade a compartilhar aproximasse, e a desigualdade social e o núcleo
bem definido de posições e papéis na organização familiar operassem em sentido
contrário, distanciando. Igualdade e desigualdade entram em um jogo acirrado, como se
não houvesse síntese nessa contradição, mas uma tensão estrutural constante, que monta,
através de suas personagens, um cenário simbólico sempre renovado, no qual personagens
e cenários devem resolver o que a estrutura colocou como desafio. (KOFES, 2001, p.393).

A renovação do cenário simbólico que marca patroas e trabalhadoras domésticas


remuneradas também foi o alvo analítico de Jurema Brites (2000), em sua tese “Desigualdade e
Rebeldia: Bastidores do Serviço Doméstico”. Sua obra propõe mostrar e esmiuçar as diferenças
de organização domésticas e desigualdades econômicas, que, para ela, geram uma
complementariedade estratificada que justifica o trabalho doméstico remunerado no Brasil.
Partindo da ideia que existem dinâmicas familiares próprias dos grupos populares que faz desse
trabalho mais compatível do que outros, reconhecendo assim as experiências sobre a
subalternidade. As desigualdades sociais que marcavam o período eram profundas e observar
como as camadas mais pobres da sociedade encontravam caminhos de sobrevivência foi um dos

26
Essa lógica foi descrita em diversas outras obras. Para compreender mais sobre as formas de driblar as
desigualdades sociais, raciais e de gênero que as trabalhadoras domésticas remuneradas enfrentam, assim como as
relações afetivas que construídas nessas relações ver: Saffioti (1979); Brites (2000); Ávila (2009), Monticelli (2013)
entre outras.
99

objetivos de sua tese. Diferentemente do contexto dos anos 70 e 90, durante os anos 90 a inserção
das mulheres no mercado de trabalho já era um fato consumado e não mais um potencial em
crescimento, principalmente nas áreas de saúde e as que exigiam ensino superior. No entanto, o
trabalho doméstico remunerado era a maior ocupação feminina no período, e, de acordo com os
dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 1991 ele representava 18,36%
das mulheres com carteira assinada e constituía 36,3% da PEA (População Economicamente
Ativa) no Brasil. 19% das trabalhadoras domésticas remuneradas não ganhavam nem ao menos
um salário mínimo, desvelando uma sociedade altamente diferenciada, onde a modernização de
alguns setores dificilmente atingia uma equidade geral. Tratava-se de uma sociedade que mesclava
padrões democráticos com praticas políticas arcaicas e provincianas, de acordo com Brites (2000)
– nos trazendo aspectos de uma reconfiguração da “cultura doméstica”.
A pesquisa então se desenvolve com seis redes de trabalhadoras e patroas (6
empregadoras, 10 trabalhadoras e 1 trabalhadora doméstica remunerada que também era
empregadora (a única negra)), a utilização de entrevistas semi-estruturadas, recursos fotográficos
e fílmicos, observação participante na casa das empregadoras também foram utilizados
metodologicamente, além da convivência direta no bairro Jardim Veneza – bairro periférico de
Vitória-ES em 1996, onde a autora morou por dois meses para realizar a pesquisa de campo.
Na etnografia realizada na casa dos empregadores, Brites (2000) constata que manter uma
trabalhadora doméstica remunerada era um sinal diacrítico do distanciamento da pobreza. As
patroas entrevistadas pertenciam à classe média brasileira, não possuíam curso superior, tinham
uma renda entre oito e treze salários mínimos e trabalhavam no mercado formal de trabalho. Dessas
mulheres era esperado que cumprisse seu papel enquanto mãe e dona-de-casa, cuidando da saúde,
educação e higiene dos filhos, e na organização e decoração do lar. A trabalhadora doméstica
remunerada tinha por dever cumprir com as tarefas da limpeza, cuidado das crianças, idosos e
animais “de uma forma discreta e afetiva”. (BRITES, 2000, p.77). O marido e os filhos possuíam
uma vida cotidiana nos espaços públicos, seja no trabalho, escola, cursos complementares de
inglês, judô, etc. e não eram responsáveis diretos por quaisquer demanda relativa a manutenção da
limpeza da casa. (BRITES, 2000).
“Tenho que limpar o liquidificador, a batedeira...[...] a Alcinda (doméstica) é porca
mesmo! Não aprende ou tem preguiça!” (BRITES, 2000, p. 85). As constantes reclamações
advindas das empregadoras relativas à incompetência em realizar as tarefas domésticas com
100

perfeita organização, limpeza, e de acordo com a disposição e gosto das patroas fez com que Brites
elegesse três hipóteses sobre essas queixas, que advinham desde toalhas dobradas erradas, roupas
dispostas irregularmente nos closets, tupperware “jogado” de qualquer jeito nos armários, tampas
de panelas não enfileiradas, tapetes não enrolados, não bater todas as almofadas, não limpar os
azulejos com alvejantes e nem a caixa de gordura regularmente, mentiras, insolências, faltas, etc.
Assim, a autora acredita que as queixas não são apenas acusações, mas mal entendidos
sociológicos sobre as diferenciações organizacionais e de direitos. Não havendo nenhum
compartilhamento ou cumplicidade entre empregadoras e trabalhadoras, haveria concepções
diferentes sobre o que seja limpar e arrumar a casa e, para além disso, as queixas tinham como
objetivo marcar a fundamental inferioridade da trabalhadora doméstica remunerada. É claro, que
essas reclamações e inferiorizações sempre vêm camufladas, ou amparadas, por discursos médicos
sobre microorganismos causadores de patologias e infecções, não sendo abertamente declarados
como descriminações e depreciações.

[...] zelando pelo bom desempenho de um papel que lhe foi historicamente delegado, as
patroas encontram no discurso da patologia médica suporte para suas crenças. A
necessidade de desinfetantes, de limpar os cantinhos, de lavar separadamente calcinhas e
guardanapos, entre outras coisas, denuncia um vínculo entre as noções de limpeza e o
campo médico. Limpa-se o invisível. (BRITES, 2000, p.87).

No entanto, Brites (2000) descreve que apesar das abundantes reclamações sobre a
limpeza, o mesmo não acontecia sobre a relação estabelecida entre as trabalhadoras domésticas
remuneradas e as crianças da casa, não havendo relatos de maus tratos, má educação ou coisas
dessa ordem, muito pelo contrário, as relações afetivas entre estas eram fortemente construídas. A
autora relata casos de crianças que desejavam ver as trabalhadoras em outras posições para usufruir
o tempo com elas de uma forma mais qualitativa, enquanto que muitas trabalhadoras permaneciam
em trabalhos humilhantes e mal pagos justamente pelas afetividades construídas com as filhas e
filhos de seus empregadores. (BRITES, 2000). Ao ver as relações afetivas como algo tão
corriqueiro e forte entre os casos estudados, Brites (2000) questiona o porquê essas crianças
reproduziriam hierarquias e diferenciações na vida adulta perante essas contratações, e percebe
que a distância social é ensinada aos filhos e filhas das empregadoras através de informações
subliminares, delimitações de espaço e pequenos rituais interpessoais de dominação.“Outro dia,
eu cheguei em casa e encontrei a Alcina esparramada no sofá, assistindo TV [...], no mesmo lugar
101

que eu e minhas filhas vamos descansar! E ela lá com aquela “inháca” no meu sofá”. (BRITES,
2000, p.100). Assim, as diferenciações são ensinadas para as crianças, para que as posições e
identidades não sejam confundidas – a trabalhadora é diferente dos outros integrantes que
frequentam a casa.
Outra forma de hierarquização sustentada na vida cotidiana doméstica era através das
doações de objetos, roupas, comida, móveis, etc., onde é possível ver mais uma vez a mistura
particular de afeto e antagonismo que reforça as posições desiguais de poder. Essas doações foram
analisadas por Brites (2000) pela lógica analítica da dádiva de Mauss, em que os objetos não são
desassociados dos contextos sociais ao qual pertencem, assim acompanha a dádiva o significação
do objeto, do doador e a mensagem vinculada é a diferenciação. Usam coisas de segunda mão,
pessoas de segunda classe, o lugar dos objetos reflete o lugar social. Por outro lado, a autora
enfatiza que na lógica dos empregadores não havia a possibilidade de jogar nada no lixo, as
doações para as trabalhadoras domésticas remuneradas e sua família estavam inscritas em primeira
ordem em suas narrativas e ações.

A maioria dos patrões que pesquisei não deixaria as pessoas que lhes sustentam o
cotidiano e criam seus filhos sucumbirem a pobreza total. Complementam o salário que
pagam com pequenos objetos, e até empréstimos ou abonos ocasionais. Em troca recebem
prestigio e lealdade. Fazem assim reconhecer “suas virtudes” de bons patrões; os
subalternos, entretanto, não fazem uma leitura ingênua da dádiva. Mantêm os laços de
reciprocidade, sem deixar de utilizar seus favores apropriadamente, valorizando os
significados sociais embutidos na troca. (BRITES, 2000, p.114).

Nesse sentido, um fato de muita indignação das patroas era quando essas percebiam
pequenos furtos em casa. Brites (2000) foi a primeira – e até então a única – a realizar uma
detalhada etnografia sobre os roubos que aconteciam no ambiente doméstico por trabalhadoras
domésticas remuneradas. Longe de ser interpretado como uma má conduta e desonestidade, os
roubos foram compreendidos como formas de driblar as desigualdades econômicas, e as micro
humilhações diárias – como uma pequena forma de rebeldia ou “vingança”. Os tão polêmicos
roubos – de papel higiênico, absorvente, sabonetes, comida, meias, etc. – eram não somente aceitos
como esperados pelas patroas, justamente porque os objetos furtados não eram de grande valor e
porque os casos nunca chegavam aos tribunais – a gota d’água sempre era a dolorosa demissão.
Assim, os furtos eram encarados pelas empregadoras mais como um ato desleal com a família, do
102

que necessariamente um ato criminoso. Da mesma forma que para as trabalhadoras ter uma patroa
“mesquinha”, era justamente aquela que deixa de presentear com os móveis velhos, roupas que já
não serviam nas crianças, renegar a comida ou reclamar dos estranhos desaparecimentos de
pequenos objetos. (BRITES, 2000).
Jurema Brites (2000) conclui então que a tão criticada forma de pagamento “extra
salarial”, era o que determinava se uma patroa era boa ou não para as trabalhadoras, e o fator que
sustentava uma rede de afetos, trabalho, compensações, diferenciações e hierarquizações. Nesse
contexto, havia um desejo das empregadoras de que os contratos trabalhistas e a legislação
pudessem trazer relações mais justas, sendo esse percebido como a forma de estabelecer a
igualdade – eximindo-se da responsabilidade de encontrar parâmetros igualitários na relação
cotidiana doméstica. Nessa mesma lógica, as empregadoras tinham uma expectativa de encontrar
em uma trabalhadora doméstica remunerada uma profissional, e não uma amiga; uma cidadã com
direitos, mas com direitos diferenciados. Cria-se uma tensão nesses aspectos “paternalistas” que
estruturavam intrinsecamente o trabalho doméstico remunerado. (BRITES, 2000).
Tais aspectos “paternalistas” – denunciados principalmente pelas obras dos anos 70 –
foram colocados em outra chave de interpretação nesse momento por meio das relações afetivas.
Os afetos construídos e compartilhados nessas relações não estavam sob um olhar romantizado de
uma explanação sociológica e antropológica, mas sim complexificado juntamente com as
interações que insistiam em diferenciar através da classe e raça as trabalhadoras domésticas
remuneradas. Assim, os afetos foram percebidos, pela primeira vez nas obras relacionadas ao tema,
como um importante elemento para se compreender como relações trabalhistas tão violentas
poderiam fazer sentido tanto para empregadoras quanto para as trabalhadoras, trazendo outro
elemento para as análise da “cultura doméstica”
“Tereza sempre foi muito metida, eu dizia para ela que só eu aturava, que ela não ia
conseguir ficar na casa de mais ninguém.[...] Até hoje ela é assim, metidíssima. Nós brigamos há
vinte e três anos, semanalmente “quebra se um pau”. (GASS; GOFMAN, 1988, p.37). Esse é o
relato de Lucinha Araújo – mãe do cantor e compositor Cazuza – sobre a trabalhadora doméstica
remunerada que durante anos cuidou da casa e de seu filho. Esse relato está no livro “Empregadas
e Patroas: Uma Relação de Amor” (1998), escrito por Eny Léa Gass e Rosane Gofman, esta última
tinha interpretado uma trabalhadora doméstica remunerada na novela Por Amor (1997) de Manuel
Carlos e com essa personagem – chamada Tadinha – repensou essa relação empregatícia e resolveu
103

escrever o livro, com o objetivo de que essas relações empregatícias melhorassem, que as patroas
percebessem que lidam com mulheres iguais a elas, “que as patroas pudessem ter certeza de que
estão lidando no mínimo com pessoas de bem e no máximo com grandes amigas” (GASS;
GOFMAN, 1998,p.81), que as trabalhadoras não faltassem ao trabalho e que as ações trabalhistas
não fossem mais necessárias. Para atingir essa realidade utópica, o livro conta com relatos pessoais
da atriz e com relatos de outras personagens popularmente conhecidas, como Regina Duarte e
Tônia Carrero. Em todas as narrativas havia sempre a tentativa de mostrar como essa relação
trabalhista era recheada de amor, e com êxito ela conseguiu ir além e mostrar que havia também
muita desigualdade. Como, por exemplo, no caso em que Tônia Carrero descreve o dia em que sua
mãe “foi a uma quitanda e tinha uma negrinha de quatorze anos sentada em um dos degraus da
loja que chorava muito. Perguntada sobre o porquê do choro respondeu: Quando eu voltar para a
casa vou apanhar muito porque a minha patroa me bate muito e eu quebrei os ovos”.(GASS;
GOFMAN, 1988, p.53). A família de Tônia Carrero então “ficou” com essa “negrinha”.
As autoras também fazem entrevistas com psicólogas (para entender o comportamento
das trabalhadoras), sindicalistas e empregadoras. Uma das patroas entrevistadas justamente
contratava Arinda, uma das lideranças sindicais de trabalhadoras domésticas remuneradas do Rio
de Janeiro no período. Questionada sobre a sua opinião em relação ao sindicato e a reivindicação
dos direitos trabalhistas, Maria Cândida responde:

A nossa relação mudou da água para o vinho quando a Arinda entrou para este
movimento. Ela, de repente, se sentiu uma profissional. Quando ela me disse isso, eu
pensei que era uma vantagem maravilhosa. A minha passadeira, que também é do
sindicato, também é uma profissional exemplar que nunca faltou um dia de serviço. Isto
é uma coisa importante que tem que ser dita, porque é lucro para mim. Ser bom patrão é
ótimo, mas achar uma boa empregada também é maravilhoso. A Arilda é algo
mais...temos um relacionamento especial, mas outra qualquer que seja boa profissional é
ótimo, funciona para os dois lados. (GASS; GOFMAN, 1988, p.67e 68).

A narrativa da empregadora demonstra justamente o aspecto levantado por Brites (2000)


e que essa tese tem fundamentado, que o discurso do profissionalismo livra as empregadoras de
estabelecer relações igualitárias e humanas em sua vida cotidiana doméstica, no tratamento com a
trabalhadora, no conteúdo e na maneira de se fazer as tarefas porque a legislação já as “garante”
juridicamente – inclusive destinando a responsabilidade de um comportamento “profissional”
dessas trabalhadoras, como se antes elas não o tivessem sido. As constantes práticas de
diferenciações através dos espaços e objetos da casa, na vigilância sobre o trabalho realizado, a
104

maneira de se falar e ordenar das patroas entre outras disposições de poder encontradas nessa
relação levou Tamanini (1997) a perceber que diversas consequências na saúde dessas
trabalhadoras ocorriam por esses desgastes emocionais.
Sua dissertação de mestrado “Saúde-Doença na Interação entre Gênero e Trabalho: Um
Estudo das Representações das Empregadas Domésticas” (1997) tinha por objetivo compreender
como as condições de trabalho, vinculadas as representações sócio-culturais sobre o trabalho
doméstico remunerado e idealizado ao mundo do feminino poderiam causar distúrbios
fisiológicos, físicos e psíquicos nessas trabalhadoras. A pesquisa realizada por Tamanini (1997) é
a que mais se diferencia das que vimos até então, não sendo uma etnografia e não trazendo as
narrativas das empregadoras, por outro lado, ao revelar os conteúdos das 38 entrevistas semi-
estruturadas realizadas com trabalhadoras domésticas remuneradas em Santa Catarina e analisadas
pela ótica foucaultiana da biopolítica, muitos elementos já discutidos anteriormente foram
reafirmados.
“ela mandava descascar as batatas, mas ficava do meu lado para ver se eu estava tirando
a casca fininha [...]”, “a patroa vigia muito e faz muita diferença”, “a patroa nunca está contente
com meu trabalho”, “fazem separação da comida em algumas casas”, “[...] não é em todas as casas
que você é tratada como ser humano”, “esperar afeto e reconhecimento e não receber”, “não tem
horário para comer, dormir”, “era mal tratada”, “a patroa sempre cobra que está encardido”, “oh
fulana, tu não estás sentindo um mal cheiro? Ficou assim, bem perto de mim”, “a patroa escondia
a chave”, “o meu patrão é muito exigente com a roupa, quer tudo muito bem passado”, “a patroa
encontra mas fica bem quietinha, porque já culpou a empregada”, “porque é assim, cozinha, área
de serviço e quarto da empregada”, “entrar pela porta dos fundos é humilhante”, “existem muitos
tabus e diferenças”, “ [...] a patroa não deu as férias dela e deu metade para mim”, “a maneira de
vestir é descriminada, o jeito da gente também”, “tem casa que a patroa morre de ciúmes do
marido...”, “eles queriam que eu tirasse a criança, a gravidez era do sobrinho do patrão”, “a patroa
me convence de que eu tenho tudo”, “ela perde até as calcinhas e você tem que ficar procurando”,
“eles dizem que eu gasto muita energia”, “a gente sente medo dos patrões, eles nos tratam como
seres inferiores”, “quando eu não queria ficar prá que ela fosse passear, me chamava de egoísta”,
(TAMANINI, 1997, p.106 a 118).
Todas essas experiências e vivências foram analisadas pela perspectiva de gênero pela
autora, sendo não somente visualizada as características de diferenciações e inferiorizações
105

relativas à classe social, mas também como esse trabalho estava pautado e intrinsecamente
construído pela desigualdade de gênero – a esfera doméstica produzia danos emocionais, físicos e
psíquicos nas mulheres e principalmente nas trabalhadoras domésticas remuneradas. Uma das
grandes contribuições do trabalho da autora foi trazer para o plano das desigualdades as emoções,
sentimentos, dores, expectativas e frustrações que esse trabalho gerava. Tarefa não muito fácil,
pois muitas vezes as patologias são tratadas como verídicas no plano material e corpóreo, sendo
que os danos e desgastes emocionais levam a paralisações e enfermidades de outra ordem.

A dor moral, mais do que sintomas físicos, acompanha a descrição dessa relação. A dor
moral está circunscrita na vida social dessas mulheres, se articula ao seu sentir subjetivo,
ao mesmo tempo que é consequência da forma como a sociedade vem concebendo esse
trabalho. [...]. Sentir-se doente está, no nosso caso, muito mais associado à percepção dos
sentimentos: tristeza, angústia, peso, cansaço, sentimentos que acabam por determinar o
estar, ou não, de bem com a vida; [...]. Aspecto este, que virá carregado de relações mais
personalizadas, do que contratuais, de vigilância e disciplina, relações ambíguas,
hierarquizadas e desiguais, geradoras igualmente de focos de tensão. (TAMANINI, 1997,
p.157 e 158).

Nesse mesmo contexto, é produzido e lançado em 2001 o filme “Domésticas” de


Fernando Meirelles e Nando Olival, com o texto de Renata Melo – que já havia produzido uma
peça teatral e reescreveu o roteiro para o filme. O filme, que tem um montagem que se camufla
com aspectos de um documentário, conta a história de cinco trabalhadoras domésticas
remuneradas: Cida, Roxane, Quitéria, Raimunda e Créo27. A história ainda contava com
personagens secundários que trabalhavam como zelador, lavador de carros, motoboy, por exemplo.
As cinco trabalhadoras domésticas remuneradas narram suas vidas, desejos, os “perregues” no
trabalho, a relação com as patroas, as dificuldades no matrimonio, no convívio com os próprios
filhos e filhas. O enredo mescla cenas de comédia, com relatos pessoais e uma crítica, construída
nas entrelinhas, às desigualdades de classe no país.
É importante notar que esse foi a primeira produção cinematográfica que colocou as
trabalhadoras domésticas remuneradas como protagonistas, contando suas histórias e perspectivas.
Nesse sentido, muitos relatos se assemelham com a pesquisa de Tamanini (1997), contando as
mazelas do dia-a-dia e todas as desconfianças que giravam em torno delas no ambiente de trabalho.

27
As atrizes que protagonizaram as personagens são respectivamente: Renata Melo, Graziella Moretto, Claudia
Missura, Olívia Araújo e Lena Roque.
106

O filme, inclusive, começa com a fala de Créo, que estava sentada dentro de um ônibus, olhando
fixamente para a câmera, de baixo para cima, em uma tela preto e branco:

nasce e morre, nasce e morre, nasce e morre. Cada vez que a gente nasce é um tipo de
gente, uma vez nasce rico, outra japonês, outra comerciante, outra pintor de parede, nasce
homem, nasce veado, nasce travesti, nasce gorda, pobre, preta, nasce valente, idiota, nasce
de tudo. Cada vez é de uma coisa. Deus é que vai escrevendo as missão que cada um tem
que cumprir, eu aprendi isso no espiritismo. É a reencarnação. Porque que eu que eu tinha
que nascer assim, desse jeito? Pobre, preta, ignorante...[...] a minha bisavó foi escrava, a
minha vó foi doméstica, a minha mãe quando eu nasci disse que preferia me ver morta do
que empregada doméstica, eu sou doméstica. (CRÉO, Filme Domésticas, 2000).

O filme então, ao mesclar cenas em que os relatos se contrapõem à cenas de comédia, traz
com certa leveza a crítica social que deveria ser feita a maneira como esse trabalho ainda era
estruturado no país. No entanto, conseguem mostrar com maestria a segregação dos espaços
sociais, o trabalho que elas precisavam realizar, o uso do uniforme, a maneira como elas deveriam
fazer e organizar, trazendo à tona muitos dos aspetos da “cultura doméstica”. Cozinhas que
precisavam ser totalmente lavadas e perfeitamente secas, o pó retirado de cada cantinho, a maneira
de fazer a comida, etc. Quitéria ao conversar com Zefa sobre a sua mais nova demissão, enquanto
lavavam o chão da cozinha, explica a diferença das limpezas:

Zefa: como é que você consegue ser mandada embora em três horas Quitéria?
Quitéria: Foi por maldade não Zefa, foi só mal jeito...
Zefa: mas ela te dispensou com razão, você estragou o objeto dela...
Quitéria: Eu fui só tentar tirar direito o pó que estava acumulado, aí...
(mostra a imagem de Quitéria quebrando um vaso).
Zefa: mas não precisa botar força para tirar poeira.
Quitéria: mas não era poeira Zefa, era pó...
Zefa: e tem diferença?
Quitéria: uai se tem! Você não sabe disso? No “oio” parece tudo a mesma coisa, mas na
formação é diferente. O pó é assim, formado pelas coisas invisíveis que tá no ar, aí fica
visível embaixo da cama, em cima dos móveis, entende? Agora já a poeira não, a poeira
vem assim, de um acontecimento de uma coisa que acontece na casa, assim, uma troca de
geladeira, uma festa, você entendeu?

Assim, percebem-se por meio dessas obras que o foco analítico estava em compreender
a relação, a interação, como se constituía e reproduziam as ações sociais dos sujeitos, suas
subjetividades e lógicas. É claro que em todas essas investigações a imagem da trabalhadora
107

doméstica como portadora de agências e estratégias que tornavam, ou ao menos amenizavam, as


diversas desigualdades encontradas em suas vidas foram minuciosamente descritos – um dos lados
mais fascinantes desses estudos e que não foi abordado nessa tese pela questão do foco da pesquisa.
Não são análises macro sociológicas, que se pautavam nos números para visualizar as lacunas de
diferenças sociais, raciais e de gênero. São estudos que salientaram como essas diferenciações,
hierarquizações e humilhações eram concretizadas no vocabulário, nas separações, nas piadas, nas
micro vigilâncias, nos detalhes que deixavam explicito que duas mulheres podem até compartilhar
o mesmo espaço e as mesmas tarefas em um lar, mas elas nunca podem ser confundias ou pensadas
como iguais. O reconhecimento da família, o amor destinado à dona-de-casa nunca pode ser
comparado com o reconhecimento e com os carinhos designados a trabalhadora doméstica
remunerada. Características e análises que foram, propositalmente, evidenciadas nessa tese para
cumprir com o objetivo de investigar as recorrências e possíveis continuidades da “cultura
doméstica”, e como ela ainda molda práticas e um imaginário sobre a casa, família e os sujeitos
que fazem parte dela, sendo então parte constitutiva de suas subjetividades.
Se as concepções teóricas feministas e as propostas conceituais dos estudos de gênero
levaram ao pensamento da diferença, essas obras ainda nos mostram como as diferenças eram
estrategicamente mantidas. “Muchacha, Cachifa, Criada, Empregada, Empregadinha, Servente e
Nada Mais” – título de um dos livros mais importantes sobre o tema e publicado em 1993, mostra
justamente como a própria nomenclatura dessas profissionais pode ser pesadamente imposta para
delimitar posições. Para além das características de diferenciações reafirmadas cotidianamente
para que a estrutura do lar não fosse desfeita, a própria construção civil brasileira trabalha com
esses pressupostos para que as interferências de classe e raça não atrapalhem a harmonia do lar. O
polêmico elevador de serviço - inicialmente pensado para transportar cargas e animais - foi logo
destinado para a locomoção dos “serviçais”, deixando estritamente separados os moradores das
pessoas que trabalham naquele conjunto residencial28.
A segregação espacial de uma residência talvez seja a forma mais nítida de mostrar as
diferenças e legitimar as noções de desigualdade, como explicitamente mostrado na obra de Kofes
(2001). Muito já se foi questionado sobre os cômodos destinados às trabalhadoras domésticas
remuneradas, quartos que na verdade eram dispensas que não precisavam ter janelas, banheiros

28
Atualmente Governos Estaduais e Leis Municipais proibiram este tipo de segregação nos ambientes residenciais e
corporativos, mas não significa que essa prática ainda não seja mantida.
108

muito pequenos e com uma péssima infra-estrutura (muitas vezes via-se o chuveiro localizado em
cima do vaso sanitário) e a divisão deste espaço com o que era para ser escondido na casa – os
materiais de limpeza, baldes, vassouras e rodos. Uma estrutura arquitetônica já visualizada desde
Freire (1936), onde o autor analisava a construção de uma sociedade urbana brasileira às sombras
das lógicas patriarcais da casa-grande, passando como fundamental durante a década de 90 nas
residências de classe média e ressignificados até hoje.

FIGURA 2 - PLANTA DE UM APARTAMENTO COM “QUARTO REVERSÍVEL”

FONTE: http://lancamentosribeirao.blogspot.com.br/2011/10/west-side-central-park.html

A linha imaginária e concreta da distinção ainda persiste e caracteriza o que temos falado
sobre as reproduções da “cultura doméstica” e seus pressupostos de servilismo, pois mesmo que
estruturas antigas já são se sustentem mais, elas são reinventadas e dispostas socialmente por outras
maneiras e discursos não deixando de ser tão críticas quanto antes. Marcar as diferenciações é
antes de tudo marcar quem serve e quem é servido, é construir subjetividades através do olhar do
outro, das informações diferenciadas passadas pelo outro. Assim, empregadoras realizam no ato
de hierarquizar as posições dos sujeitos dentro de casa a sua própria diferenciação, assegurando-
109

se nas diferenças estruturais – raça e classe – e mantendo uma cultura que ainda reproduz
pressupostos servis. (RAY; QAYUM, 2009).
Durante o período exposto nesse capítulo, percebemos ainda que as noções sobre a
degradação que o trabalho doméstico pode trazer na vida de uma mulher, como infelicidade, falta
de tempo para realizar tarefas mais produtivas e canseiras já não era o único discurso vigente, pois
grande parte das empregadoras ocupavam posições de trabalho no mercado formal. De tal modo,
que se acrescenta no discurso a relação com o tempo, já não podiam fazê-los mais porque havia
outras demandas públicas que as retiravam das responsabilidades domésticas. Como bem aponta
Ray e Qayum (2009), muitos estudos apontam haver uma contradição entre o mundo moderno,
democrático, feminista e contratar uma trabalhadora doméstica remunerada. No entanto, nas
condições capitalistas do Terceiro Mundo, essas contratações não são contradições, e sim parte
constituinte de um sistema que não produz políticas públicas destinada aos cuidados. (FRAGA,
2016). Isso não significa que as lógicas de diferenciação sejam justificadas, muito pelo contrário,
elas são ainda mais perversas ao serem pensadas inseridas em uma economia desigual, em um
Estado onde a legislação trabalhista está ao alcance dos mais privilegiados, fazendo com que certas
estruturas nunca sejam de fato rompidas. As características da servidão ainda sustentam o status,
o racismo e a própria falta de uma discussão mais ampla sobre os processos de igualdade.

3.2 AS DIFERENÇAS SÃO ANALISADAS DIFERENCIALMENTE

Em junho de 1993 a estudante Ana Flávia Peçanha de Azeredo, filha do então Governador
do Espírito Santo, negra e moradora de um condomínio de classe média alta foi agredida
verbalmente e fisicamente por seus vizinhos. Ao entrar no elevador, a empresária Teresina Stange
(branca e olhos claros) e seu filho Rodrigo se indignaram com a resposta que Ana Flávia deu ao
lhe perguntarem sobre a demora do elevador. A empresária então lhe disse: “você tem que aprender
que quem manda no prédio são os moradores, preto e pobre aqui não tem vez”. A estudante
respondeu: “A senhora me respeite”. Teresina se indignou ainda mais e gritou: “cala a boca, você
não passa de uma empregadinha”. O filho da empresária entrou na discussão: “cale a boca, cale a
boca. Se você continuar falando eu meto a mão no meio da suas pernas.” Teresina segurou a moça
e Rodrigo deu soco do lado esquerdo do seu rosto. (FRY, 1996).
110

Esse episódio, divulgado pelas mídias na época e utilizado como uma ferramenta de
análise sobre o racismo no Brasil29, esclarece bem os processos de diferenciações apontados no
capítulo. Ana Flávia Peçanha sofre tamanha violência não somente porque era negra, mas porque
foi também confundida com uma trabalhadora doméstica remunerada, ou seja, com uma “mulher
pobre”, fazendo com que a família Stange se sentisse a vontade para descriminá-la e agredi-la
abertamente. Se é verdade que durante os estudos produzidos durante a década de 90 e início dos
anos 2000 acentuou-se as diferentes posicionalidades e contextos dos sujeitos e como isso
imbricava em repensar políticas, é também verdade que muitas ações foram concretizadas
separadamente. Isso resultou em pesquisas e análises que não colocavam o foco analítico racial
em conjunto com outros conceitos, não produzindo teorias críticas que atingissem esse ponto
nevrálgico30.

[...] na década de 1990, compreendia-se que diferentes formas de opressão se


relacionavam, daí a afirmação popular em movimentos sociais indenitários. “Racismo,
Sexismo e Homofobia: trace as conexões”. Ainda que as conexões fossem incontestáveis,
também era inegável que elas podiam ser estudadas ou confrontadas politicamente, em
separado. Raça, classe e gênero se apresentavam como formas diferentes e particulares
de organizar as pessoas em resposta a diferentes formas de poder. (MISKOLCI, 2009
p.160).

Essa relação estreita entre as questões raciais e o trabalho doméstico remunerado foi
devidamente descrita e percebida na realidade pesquisada em Campinas- SP por Kofes (2001), por
exemplo, no entanto não foi profundamente analisada. Uma constatação realizada por ela mesma
no prefácio de seu livro, dizendo que ao reler a obra dez anos depois para a sua publicação essa
conexão era ainda mais evidente, sendo a análise rasa frente à profundidade da questão. Assim,
seguimos com a sombra do racismo permeando as narrativas, as observações participantes,
entrevistas, práticas e lógicas, mas sem serem devidamente enfocadas em sua importância
analítica, característica já apontada nas obras referentes ao tema anteriores e contemporâneas a

29
O episódio foi utilizado por Michael Hanchard (1994) para compreender as diversas faces do racismo e do
movimento negro no Brasil; assim como utilizado por Peter Fry em seu artigo “O que a Cinderela Negra tem a Dizer
Sobre a Política Racial no Brasil” (1996).
30
A emergência de se pensar as diferenças fez com que críticas a esse discurso também surgissem, o livro de Pierucci
(1998) com o sugestivo título “Ciladas da Diferença” vem justamente apontar que essa separação e identificação do
diferente é a primeira premissa do pensamento conservador – são os conservadores e as políticas da direita que
justificam as desigualdades pelas diferenças culturais e étnicas. Assim, assinala o autor, o “direito a diferença”
aproximava as políticas progressistas com a os velhos argumentos da direita, pois supunha-se que a desigualdade
podia ser pensada separadamente da diferença – o que para ele se tornou uma cilada política.
111

esse período. Como já discutido anteriormente, a não introdução profunda do tema racial nas
questões que envolvem o trabalho doméstico remunerado no Brasil faz com que a crítica não seja
suficiente para repensar e produzir políticas que pudessem sanar as vulnerabilidades produzidas
nessas relações empregatícias, já que muitos pressupostos de diferenciações e formas de
hierarquizar e estabelecer poderes se concretizava por meio das compreensões racistas. E nem
fornecem aspectos para que as desigualdades formadas por uma “cultura doméstica” sejam
minimamente sanadas.
Essa lógica analítica começa a mudar nos estudos contemporâneos, onde as pesquisas
procuravam dar voz as trabalhadoras domésticas remuneradas, suas lutas políticas, produções
culturais e construções de cidadania. O primeiro estudo que vincula a herança escravocrata a
maneira que o trabalho doméstico remunerado é estabelecido atualmente aparece recentemente,
nos apresentando um outro olhar sobre as teorias feministas, de gênero e raça.
112

4 VOZES QUE ECOAM: AS PRODUÇÕES DECOLONIAIS CONTEMPORÂNEAS

Como se dar bem com a empregada? Eis uma verdadeira


charada...Há quem tenha tentado todos os métodos, e ficado
sem cozinheira. Há quem trate a cozinheira como se esta
fosse uma rainha, só para verificar que o trono está vazio. E
há donas de casa tão perfeitas, mas tão perfeitas que
terminam elas próprias lavando os pratos. [...]. Se isso tudo
fizer com que a empregada vá embora, pelo menos você
terá sido humana, o que lhe servirá de consolo enquanto
você lava os pratos com ódio. - Ilka Soares31, Diário da
Noite, 196032.

Durante os últimos doze anos vimos transformações ocorrerem nas esferas políticas e
sociais no Brasil, ocasionando novas formas de pensar as estruturas de classes. Isso se deu em
decorrência de uma real diminuição da pobreza no país e da melhora na qualidade de vida das
pessoas pertencentes às classes sociais mais baixas, principalmente devido ao aumento do poder
de consumo obtido como consequência das políticas públicas implementadas desde 2003. Mais de
30 milhões de pessoas passaram a não viver mais abaixo da linha da pobreza. (KERSTENETZKY;
UCHÔA, 2013). Esse novo quadro econômico e social gerou debates em relação à ampliação da
classe média brasileira e os novos comportamentos – sobretudo os de ordem doméstica – exigidos
por esse novo quadro socioeconômico.
Há um conjunto de fatores que impulsionaram essa questão do aumento da classe média
brasileira, ou de acordo com alguns autores, de uma “nova classe média” surgida no país. Entre
esses fatores, podemos listar o crescimento econômico, diminuição das desigualdades de
rendimento, aumento dos programas sociais – principalmente os de transferência de renda,
expansão do crédito e estabilidade econômica, o que fez aumentar o padrão de consumo 33 e o
rendimento de muitas famílias. Perante isso, a discussão em relação às mudanças provocadas na

31
Ilka Soares é o pseudônimo de Clarice Lispector. A autora escreveu durante os anos 60 para vários jornais,
inclusive o Diário da Noite, colunas dedicadas às donas-de casa e mulheres de classe média sobre assuntos ligados a
moda, culinária, e outros desafios domésticos.
32
LISPECTOR, Clarice. Correio Feminino. In.: NUNES, Aparecida Maria (org.). Rio de Janeiro: Rocco, 2006.160p.
33
Uma das questões relativas aos padrões de consumo foi a ampliação do mercado de produtos de beleza no Brasil,
uma questão que se relaciona diretamente com as produções de corpos, com demandas de raça e da diversidade.
Questões que antes não eram específicas das classes mais baixas. (RAMOS, 2014).
113

sociedade brasileira em referência a qualidade de vida, visões de mundo, aspirações, orientações


políticas e demandas sociais tornaram-se constantes. (SCALON; SALATA, 2012).
O que nos parece imprescindível salientar nesse novo cenário são os sujeitos que
pertencem a essa classe social demasiadamente discutida nas Ciências Sociais, pois foram os
trabalhadores manuais que mais se beneficiaram com essa nova política socioeconômica, ou seja,
as pessoas que tem como renda familiar média R$1.164,00 a R$4.076,00 por mês. (LUCE, 2013).
Assim, temos como protagonista dessa nova configuração social a classe que historicamente as
trabalhadoras domésticas remuneradas pertencem. Para além da discussão se ascensão econômica
dos últimos anos configura uma nova classe média, ou, novas formas de exploração do
proletariado, é importante dizer que ela redimensionou o comportamento dessas trabalhadoras e,
portanto, de suas patroas.
Desse modo, algumas obras produzidas sobre o tema trabalho doméstico remunerado
nesse período também estavam focadas em compreender as mudanças na configuração desse setor
trabalhista. Viam-se mais contratações de diaristas, rendimento salarial maior e vínculos
supostamente menos afetivos, o que trazia outra dinâmica para a família empregadora em relação
às demandas domésticas produzidas no lar, como podemos visualizar nas obras de Alexandre
Fraga (2013) e Harris (2007), por exemplo. Fraga (2013) utiliza de dados quantitativos, entrevistas
e a análises legislativas para compreender as diferenças nas relações de uma mensalista e uma
diarista, indicando que estas últimas tinham um rendimento mensal maior e eram uma categoria
potencialmente crescente no país. Já Harris (2007), apresenta uma comparação do trabalho
doméstico remunerado entre o Brasil e os Estados Unidos, expondo analiticamente as diaristas
como uma possibilidade de romper com desigualdades nessa categoria profissional e assimilando-
as a realidade norte americana.
É justamente nesse mesmo período que temos acesso a alguns discursos classistas e
elitistas advindos dos empregadores, pois determinados costumes antes praticados nos lares
passaram a ser compreendidos como irregularidades trabalhistas, propiciando diversas queixas das
patroas. “Já tem gente importando babás do Paraguai e da Bolívia. Isso porque, além do salário
114

alto, as exigências aumentaram muito. Poucas aceitam "dormir no emprego" ou trabalhar à noite
e nos fins de semana” – como diz uma reportagem do Estadão em 201134.
Essa realidade foi apontada em diversos estudos mais contemporâneos sobre o tema, as
trabalhadoras domésticas remuneradas já não estavam se submetendo a toda e qualquer opção de
trabalho, assim como colocavam limites trabalhistas em relação às demandas de suas vidas
privadas. Com os novos incentivos políticos elas passam também a ocupar espaços e consumir
produtos que antes não eram destinados a elas, colocando-as em um protagonismo tanto no
mercado, quanto nos meandros políticos. Na pesquisa realizada em Curitiba (2013), sobre as
realidades e afetos construídos nas relações entre diaristas e seus diversos empregadores, foi
observado que um dos benefícios listados por essas trabalhadoras se dirigia ao potencial
econômico que as diárias lhes ofertavam e com isso maior possibilidade de acesso ao mercado de
consumo. Inclusive, durante a pesquisa de campo, eletrodomésticos, carros, motos, novos móveis,
contratações de serviço como internet e plano de tv por assinatura eram realidades concretas e
afetivas na vida dessas mulheres, nos mostrando os símbolos que essa nova faceta econômica
propiciou. (MONTICELLI, 2013).
E isso, é claro, reflete-se também no debate de como esse trabalho era mantido no país e
na compreensão de suas formas de fazer política. Foi justamente no ano de 2013 que o Brasil
aprovou a maior ampliação de direitos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas remuneradas,
a Emenda Constitucional 478/13 estabeleceu para essa categoria profissional todos os direitos
previstos pela Constituição de 1988. Além disso, a OIT, pela primeira vez em mais de cem anos,
ratificou a Convenção 189 em 2011 e estipulou medidas claras sobre o trabalho decente para
trabalhadoras domésticas remuneradas no mundo. Fraga (2016) faz uma esmiuçada análise sobre
esse contexto, para compreender quais foram os mecanismos sociais e políticos que fizeram com
que tantos avanços foram realizados nesse momento, principalmente levando em consideração que
as lutas por ampliação de direitos já era uma pauta “antiga” de diversos movimentos sociais, mas
principalmente, das militantes de trabalhadoras domésticas remuneradas no país. De acordo com
o autor (2016), a intensificação da luta, apoios fortalecidos de movimentos sociais como o
feminista e o negro, um governo que institucionalizou essa demanda política (Lula 2003-2010),

34
PASTORE, Jose. Estadão. Domésticas – Profissão em Extinção?. Disponível em:
<http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,domesticas-profissao-em-extincao-imp-,723223>. Acesso: 22 de set.
2016.
115

período econômico favorável, aumento do número de diaristas (que não são comtempladas pela
nova legislação) fez com que o avanço de direitos fosse concretizado nesse momento. (FRAGA,
2016). Mas, o que também nos chama muita atenção para esse período é o conteúdo crítico sobre
como esse trabalho ainda era estabelecido e estruturado no Brasil. As discussões estavam nas
diversas mídias sociais, nas conversas cotidianas entre amigos e amigas, família, a imprensa
começou a dar um verdadeiro “holofote” ao trabalho doméstico remunerado e isso possibilitou que
diversas vertentes de reflexão, debates e posições fossem ressaltadas. (FRAGA, 2016).
É igualmente nesse cenário que vemos produções midiáticas com grande repercussão no
Brasil, como a telenovela global chamada “Cheias de Charme”, o documentário de Gabriel
Mascaro denominado “Domésticas” (2012), e um dos mais recentes filmes dirigidos por Anna
Mulayert chamado “Que Horas Ela Volta?” (2015). Essas três produções midiáticas são alvos
também de análise do capítulo, já que o conteúdo apresentado nos dá elementos para pensar as
reproduções das vulnerabilidades e as compreensões do fazer doméstico, que ainda persistem nas
configurações do trabalho doméstico remunerado.
Além disso, é importante salientar que nesse contexto há ainda uma discussão
epistemológica decolonial nas Ciências Sociais no Brasil, que produziu obras que refletissem a
produção de saberes das trabalhadoras domésticas remuneradas, pensando na articulação de suas
vozes por outros parâmetros metodológicos, com posições políticas criadas a partir do “Terceiro
Mundo” e que trazem também esse teor de mudança que o contexto social continha, possibilitando
novas formas de se fazer ciência e a produção de pesquisas. A apresentação, sucinta, de algumas
obras que se inserem nessa perspectiva epistêmica vem ajudar na análise das transformações que
ocorreram nos últimos anos, e as resistências da classe empregadora frente a elas.

4.1 QUEM FALA E QUEM ESCUTA

Há uma série de acadêmicos e acadêmicas de diferentes nacionalidades latino-americanas


que vem se dedicando em trabalhar nas ideias decoloniais desde a década de 90. Suas principais
preocupações se encontram nas formas de produção do conhecimento e nos seus duros efeitos de
verdade reproduzidos nas práticas acadêmicas. Pesquisadores como Arturo Escobar, Ramón
Grosfoguel, Santiago Castro-Gómez, Enrique Dussel, Walter Mignolo e Aníbal Quijano, por
exemplo, partem da premissa que as formas de dominação e as relações de poder não podem estar
116

em uma chave analítica sem incluir os níveis de produção do conhecimento e os efeitos de verdade
que as sustentam. Além de repensar a história da América Latina e as vozes e saberes silenciados
no processo de colonização, estes autores insistem em estabelecer um diálogo cada vez maior com
grupos de base, movimentos sociais, ativistas e ONG’s. O pensamento decolonial se fundamenta,
principalmente, em uma crítica da reformulação da modernidade35. (CASTAÑEDA,2013).
Walter Mignolo (2004) nos apresenta a ideia de que hoje a descolonização não é um
projeto de libertação das colônias no sentido de independência de um Estado- nação, mas sim o
processo de descolonização epistêmica e de socialização do conhecimento. O grande problema
está na forma como a revolução científica se desenvolveu e estabeleceu, considerando como dois
pontos importantes de ruptura a este modelo com as epistemologias feministas36 (reforça a política
sexual do conhecimento) e as epistemologias étnico-raciais (reforça a geopolítica do
conhecimento). Elas tratam o repúdio de lógicas e racionalidades estranhas ou perigosas, que
sustentam esse projeto da modernidade, por meio da colonialidade do poder e da classificação
racial do planeta. (MIGNOLO, 2004). As formas de argumentação a favor da “concepção
feminista de conhecimento” constituem em grande passo nessa direção; já que nos demonstram
que a ciência tal como a conhecemos hoje é uma concepção masculina de conhecimento; e mais,
masculina, branca e eurocêntrica. No quadro da epistemologia feminista, ainda temos a discussão
da contribuição e das perspectivas das mulheres do “Terceiro Mundo”. A própria concepção de
gênero é questionada nesse processo de colonização, reafirmando que a construção da identidade
e dos papéis relacionados a “mulher” à missão civilizatória europeia, como uma imposição da
modernidade ocidental. (COSTA, 2013).
Inseridos nessa dinâmica epistêmica/metodológica, de tentativa da superação ideológica
do mundo moderno e o compromisso com o pensamento que revisa o poder e a igualdade, trazemos

35
Para Mignolo o conceito ocidental de modernidade é totalitário e a ciência consequentemente é regulatória, no
sentido que tem servido como padrão para avaliar e enquadrar as outras formas de conhecimento de acordo com os
padrões da supremacia epistêmica. E é assim também que se deu origem ao totalitarismo epistêmico, a colonialidade
ainda é “invisibilizada” na idéia de que tudo que existe é moderno, mas a colonialidade era o espaço sem voz, que a
modernidade tinha e ainda tem que conquistar.(MIGNOLO, 2004).
36
Em 1949 foi publicado “Le Deuxième Sexe” de Simone de Beauvoir, esta obra traz uma nova perspectiva
epistemológica ao dar espaço a novas interpretações a partir das diferentes posições dos sujeitos. (ADELMAN,
2004). Beauvoir foi a precursora de um caminho que busca compreender a construção de identidades e posições
através marcos sociais. “Não se nasce mulher, torna-se mulher” foi um ponto de partida para a reflexão de um
sujeito percebido e construído através do olhar masculino universal, sempre mistificado nas características ternas,
sedutoras e sexuais do feminino.
117

duas obras sobre o trabalho doméstico remunerado: “Saberes Subalternos e Decolonialidade: Os


Sindicatos das Trabalhadoras Domésticas do Brasil” de Joaze Bernadino- Costa (2015) e o livro
de Sônia Roncador denominado “A Doméstica Imaginária: Literatura, Testemunhos e a Invenção
da Empregada Doméstica no Brasil (1889-1999)” (2008).
A tese de Bernadino Costa (2015) teve por objetivo recuperar a narrativa produzida pelos
sindicatos das trabalhadoras domésticas remuneradas no Brasil, tanto numa dimensão diacrônica
quanto sincrônica. A obra registra a história política das trabalhadoras e faz um esforço de pensar
e falar com e a partir da voz dessas mulheres.
Ao questionar o mito do bom senhor e da boa senhora de Freyre, Bernadino-Costa (2015)
compreende que as trabalhadoras sindicalizadas conseguem quebrar com parâmetros de
ressocialização trazidos pela convivência com a patroa, reelaboram essa relação contratual, e criam
novos valores e perspectivas políticas pautadas por suas próprias demandas. Assim, ele reconstitui
toda a história sindical dessa categoria profissional nas cidades de Santos e Campinas- SP, Recife-
PE, Rio de Janeiro-RJ e Salvador-BA. Além de trazer toda a trajetória institucional, vínculos com
partidos políticos, movimento feminista, Igreja Católica e movimento negro, o autor ainda nos
apresenta a história de vida das principais militantes e a composição política debatida e elaborada
nos Congressos Nacionais realizados em todo país ao longo de todos esses anos.

Nesse longo processo, observamos uma articulação, trocas, interações entre o movimento
das trabalhadoras domésticas e os movimentos classistas, negros e feministas. [...] A
incorporação teórica e política das ideias de classe, raça e gênero não se deram de maneira
automática e sem reflexão. Ao contrário, esses três eixos de poder foram apropriados de
acordo com a posicionalidade das trabalhadoras domésticas. Assim, ao mesmo tempo em
que estabeleceram solidariedade, diálogo e parcerias com movimentos sindicais, negros
e feministas, fizeram também apontamentos críticos. (BERNADINO COSTA, 2015,
p.249).

Ao recuperar essas histórias e apresentar a conjuntura política e as conquistas legislativas


e constitucionais organizadas pelas trabalhadoras domésticas remuneradas, o autor nos demonstra
outras formas, não hegemônicas, de conquistas de espaços, voz e parâmetros de igualdade através
dos pressupostos de cidadania. São mulheres e movimentos políticos que rompem com
comportamentos dominantes, silenciamentos e opressões que – como enfaticamente discutido
nesse trabalho – hierarquizavam e inferiorizavam sujeitos, constituíam subjetividades e
desprezavam saberes. Joaze Bernadino Costa (2015) nos desvenda a força e estratégias do outro
lado dessa relação.
118

Com esse mesmo esforço metodológico, Roncador (2008) refaz por meio da literatura
essa tentativa de resgatar as vozes subalternas, e mais precisamente, a produção escrita das
trabalhadoras domésticas remuneradas. Em todo seu livro ela extrai os elementos de análise para
compreender como as trabalhadoras domésticas remuneradas foram retratadas em diversos
períodos, como por exemplo, na da Belle Époque brasileira através Júlia Lopes de Almeida, as
memórias através de Freyre e Lins do Rego, no jornalismo de Clarice Lispector e, por último, nos
testemunhos dessas trabalhadoras. Apesar de todo o livro ser de imensurável importância para a
tese, pois ela retoma as falas e estratégias das empregadoras durante todo o período analisado,
assim como as posições políticas e ideológicas que perpassavam cada período, eu vou focar nessa
sessão apenas no último capítulo de seu livro, para assim compreender o contexto do qual as
trabalhadoras tomam um protagonismo que começa sim a incomodar a classe empregadora.
Por meio do livro de Lenira de Carvalho37 “A Luta Que Me Fez Crescer” (1999)38 e em
seu testemunho “Só a Gente que Vive é que Sabe” (1982), Roncador (2008) destaca que o grande
objetivo de luta política, para essa autora, ainda era o reconhecimento social, mesmo depois de
anos de dedicação e conquistas reais em relação aos direitos trabalhistas para essa categoria
profissional. Assim, o testemunho de Lenira de Carvalho é colocado como uma narrativa
“exemplar”, no sentido que foi construída em uma situação coletiva de injustiça. Não descartando
que o livro foi escrito por Cornélia Parisuius, que colhe os depoimentos de Lenira de Carvalho e
o organiza nessa narrativa, indicando “outras vozes” no processo de escrita, Roncador (2008) nos
mostra rupturas importantes em relação às vias de acesso da mulher de classes populares às práticas
da escrita, publicação e do poder interpretativo. (RONCADOR, 2004). E mais que isso, reinventam
as posições e representações tomadas na literatura brasileira.
Como bem aponta Frey Betto no prefácio do livro de Lenira de Carvalho, o seu
testemunho é uma das grandes contribuições para se pensar as entranhas das desigualdades na
América Latina. A despeito de toda discussão testemunhal, do poder da escrita e das edições que
possivelmente foram feitas por seus colaboradores, Lenira de Carvalho postula a história e a

37
Lenira de Carvalho é sindicalista e durante anos foi presidente do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de
Recife, o livro narra a sua trajetória enquanto trabalhadora e militante, demonstrando como a luta por melhores
condições trabalhistas transformou sua vida.
38
O livro foi publicado pelas Edições Bagaço – editora que tem por objetivo fortalecer a literatura nordestina. Estes
depoimentos foram contados a Cornélia Parisius, que consta como escritora da obra.
119

narrativa de trabalhadoras domésticas remuneradas no país, por meio de suas lutas políticas e
estratégias, que precisa ser escrita e publicada. (RONCADOR,2004).

Muitos dos temas que Lenira discute em Só a Gente que Vive é que Sabe [...]
correspondem às “marcas” da realidade da doméstica: a migração da maioria das
domésticas do interior para as cidades; seu isolamento afetivo (pela migração) e de classe
(pela desvalorização do serviço doméstico entre os próprios trabalhadores); as relações
entre patrões e domésticas (a falta de uma “consciência profissional” das duas partes, as
ambigüidades na relação patroa-doméstica, os abusos sexuais dos patrões); os
estereótipos sociais da doméstica (com ênfase no que diz respeito a sua [des]honestidade
e sexualidade); o estigma social dessa profissão e a conseqüente baixa auto-estima da
maioria das domésticas. (RONCADOR, 2004, p.170).

A publicação do livro, é sem dúvida, mais uma forma de apontar as diversas estratégias
de luta política das trabalhadoras domésticas remuneradas. Através de seu testemunho o acesso às
experiências, sentimentos, narrativas nos deslocam a compreensão das subjetividades criadas na
emancipação política, na dor, nas resiliências, na conjunção de uma história política coletiva e
individual. Sem dúvida, não podemos deixar de notar, principalmente quando tento evidenciar as
produções decoloniais, a própria entrada das milites no acesso a publicação narrativa de suas
histórias, luta e vida. Contudo, é preciso mostrar as articulações políticas que se envolvem por
meio dessa “nova”39 estrutura de luta, pois o suporte do movimento negro e, principalmente, do
feminista tem garantido cada vez mais espaços para que as trabalhadoras domésticas remuneradas
possam entrar nesse campo, surgindo configurações políticas cada vez mais híbridas. A própria
Lenira de Carvalho também já publicou um artigo no livro “Reflexões Feministas Sobre a
Informalidade e Trabalho Doméstico” (2008) – organizado e publicado pelo SOS Corpo: Instituto
Feminista para a Democracia. Neste mesmo livro, há também o artigo de Creuza Maria de Oliveira,
presidente da FENATRADE (Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas) que escreveu “A
Organização Política das Trabalhadoras Domésticas no Brasil” (2008). Creuza recentemente ainda
ganhou um prêmio de redação do concurso lançado pela Secretaria de Políticas Públicas para as
Mulheres, publicando na coletânea “Mulheres Negras Contam sua História” (2013) o artigo

39
Na versão do livro “Muchachas no More: Household Workers in Latin America and the Caribbean” publicado em
espanhol em 1993, acrescentou-se o capítulo V escrito por sindicalistas do Brasil, Colômbia, Venezuela e Peru.
Anazir María de Oliveira – mais conhecida como Zica – e Odete presidiam o Sindicato de Trabalhadoras
Domésticas Remuneradas do Rio de Janeiro durante a década de 80, e escreveram um artigo denominado “Las
Trabajadoras Domésticas em Rio de Janeiro: su lucha para oganizarse”, expondo todas as dificuldades que as
trabalhadoras brasileiras tinham em relação aos direitos trabalhistas e a sua própria formação sindical.
120

denominado “Minha Luta é para Ver Tornar-se Real o Sonho do Trabalho Doméstico Decente”,
onde conta parte da sua vida e de sua militância40.
Essa ligação, cada vez mais estreita, entre a militância da categoria e o movimento
feminista tem promovido um intercâmbio de conhecimentos e de espaços de escutas41. Percebe-se
nestes próprios textos produzidos pelas trabalhadoras domésticas remuneradas um conhecimento
que, provavelmente, se formou nestas conjunturas de movimentos políticos. Como podemos
perceber no artigo de Creuza Maria de Oliveira:

Sabemos que as trabalhadoras domésticas são mulheres e o modelo do sindicalismo


brasileiro é um modelo europeu e excludente, no qual os homens estão na linha de frente.
Sabemos que a categoria das trabalhadoras domésticas enfrenta muitas dificuldades para
se organizar, como já falei. (...). Assim, penso que o trabalho do sindicato é também de
conscientização, de valorização da mulher trabalhadora, de resgate de auto- estima, de
luta contra as marcas do racismo. Nós enfrentamos o machismo que afronta dentro da
casa do patrão, mas também na relação com o companheiro, o pai, o filho, o namorado.
Por isso, penso que o sindicato das trabalhadoras domésticas é muito diferente de todos
os demais, porque, nestes últimos luta-se em grande medida pela questão salarial ou pelos
direitos trabalhistas, mas nós lutamos por muito mais no nosso cotidiano. (OLIVEIRA,
2008, pgs. 111,112 e 113).

Podemos visualizar uma demanda de reivindicações na escrita de Creuza Maria de


Oliveira muito similar com os discursos e pautas de movimentos políticos outros, principalmente
o feminista. Com isso, tentamos demonstrar que não somente o contexto econômico e político

40
Além destas personagens sindicalistas contemporâneas, que ainda continuam no movimento político e com
acessos aos debates e ONGs feministas, podemos contar com obras históricas dos depoimentos de Amábile Silva do
Nascimento e Laudelina de Campos Melo. Amábile Silva do Nascimento é a autora do livro intitulado “Doméstica:
Atavismo Social” (1972). A autora trabalhou como trabalhadora doméstica remunerada por mais 23 anos e foi
presidente da Associação das Empregadas Domésticas de São Paulo durante o início da década de 70. Esse livro
surgiu quando teve acesso ao conteúdo do livro “INPS Ao Seu Alcance” e procurou a editora Programática – que se
objetivava em publicar livros de ativismo social - mostrou as anotações de seu caderno pessoal, feitas a partir do
que havia visto e ouvido de trabalhadoras domésticas remuneradas nos seus 10 anos de convivência na Associação e
em poucos dias o caderno se tornou livro. (NASCIMENTO, 1972). Já Laudelina de Campos Melo é, sem dúvida
alguma, o nome mais conhecido pelas militantes do trabalho doméstico remunerado. Ela foi a primeira trabalhadora
a fundar um sindicato e percorreu quilômetros para angariar fundos, debater com políticos e chamar mais mulheres
para a participação política. É autora de muitos folhetins – assim como as outras sindicalistas já mencionadas –
sobre as posições políticas da militância e os direitos a serem conquistados. Mas quase no final de sua vida escreveu
o artigo “Mulher, Negra, Doméstica, Sindicalista” na revista Trabalhadores: Classe Perigosa (1990), da Associação
Cultural do Arquivo Edgar Leuehroth/Unicamp .
41
Na II Oficina “Feminilização do Trabalho: Trabalho Doméstico e Afeto em um Contexto Transnacional” que
ocorreu em 2011 na cidade de Santa Maria-RS, concentrou-se uma rede de pesquisadores/as do Brasil, Argentina,
Espanha e Inglaterra e pode também contar com a presença das sindicalistas Creuza Maria de Oliveira e Ernestina
Pereira em uma mesa redonda que explorava a questão política e as conquistas de direitos. Assim como no X
Congresso Nacional de Trabalhadoras Domésticas em Recife-PE – encontro dos sindicatos da categoria de todo país
– houve mesas redondas compostas por pesquisadores/as acadêmicos/as, advogados/as e representantes de ONGs
feministas e do movimento negro.
121

propiciaram uma abertura para que as trabalhadoras domésticas remuneradas pudessem ocupar
outras posições, a própria investigação cientifica já estava se questionando se os subalternos
podem falar, ou se ao menos, se são ouvidos – como no clássico texto de Spivak (1994), e o próprio
contexto de uma militância política hibrida vem propiciando maiores conquistas em termos de
institucionalização e de abertura para outras formas de comunicação. Isso resultou em obras que
tivessem as vozes das trabalhadoras domésticas remuneradas compreendidas como fundantes de
conhecimento e suas lutas e estratégias como forte resistências aos processos de desigualdade,
gerando consequências na crítica a maneira como esse trabalho ainda era pensado no país.
Perante esse contexto, as relações entre trabalhadoras domésticas remuneradas e suas
empregadoras começam a causar ruídos, tanto porque novas configurações legislativas começam
a pressionar as mudanças dentro dos lares, como o comportamento dessas trabalhadoras que não
condiziam mais com as expectativas e desejos de seus empregadores. Frente a todas essas
mudanças a “cultura doméstica” ainda se faria fortemente presente? Quais seriam as suas
reconfigurações? Uma das formas que encontrei como caminho de análise, para esse momento e
contexto, é observar como a crítica foi estabelecida ao trabalho doméstico remunerado, e como ele
ainda é estabelecido, considerando que a crítica, por meio das mídias, traz justamente os aspectos
de continuidades de um servilismo que ainda sustenta discursos, práticas e um imaginário
doméstico.

4.2 TEM UM RATO NA PISCINA

Em outubro de 2013, durante X Fazendo Gênero em Florianópolis-SC, na mesa redonda


“Feminismos, Intersecções e Colonialidades”, Jurema Werneck acrescenta o seguinte trecho à
discussão que discorria:

Esta seria então (conceito de interseccionalidade) uma lente para corrigir uma espécie de
astigmatismo – tem que se lembrar aqui que eu sou uma médica daquelas com cara
de empregada doméstica (aplausos) – uma espécie de astigmatismo político que nos
atinge a todos e a todas colocando mais nitidez a teoria, ao campo e mais ainda a cada
sujeito social e político que compartilha conosco o esforço de uma sociedade mais
igualitária. (WERNECK, 2013, grifos meu).
122

A “provocação” de Jurema Werneck, médica e militante da ONG Criola42, deu-se devido


ao comentário que Micheline Borges, uma jornalista do Rio Grande do Norte, fez, naquele mesmo
ano, em relação às médicas cubanas que chegaram ao Brasil para integrar o Programa “Mais
Médicos” do Governo Federal43. De acordo com a jornalista, as médicas cubanas tinham “cara de
empregada doméstica. Será que são médicas mesmo???”, afinal de contas, as médicas cubanas não
tinham “[...] postura, médico se impõem a partir aparência”. E ainda sugere que elas não tinham
conhecimento específico na área, pedindo a proteção divina: “Deus proteja O nosso Povo!”.
A associação entre médicas cubanas e as trabalhadoras domésticas remuneradas feita pela
jornalista se dá porque estas profissionais não possuiam os códigos que as vinculam a uma classe
social distinta, tais como bens de consumo de luxo, aparência física e principalmente por serem
negras. O post da jornalista nos demonstra como historicamente a sociedade brasileira vem
distinguindo estas profissionais – no fundo, Micheline Borges expressou o preconceito e as
desigualdades que foram fomentadas no Brasil durante anos – “lugar de mulher negra é na cozinha,
e não no consultório”.
As reações em relação a este comentário tomaram proporções diversas, textos e artigos
publicados em jornais, repúdio do movimento negro, uma ação judicial do Sindicato de
Trabalhadoras Domésticas de São Paulo e uma grande crítica gerada por comentários de
internautas nas redes sociais. É justamente esse movimento crítico advindo tanto de movimentos
organizados políticos, quanto de pressões da população em geral que começaram a borbulhar na
sociedade brasileira nos últimos anos, refletindo enormemente nas produções midiáticas. Se temos
pela primeira vez na história televisiva brasileira uma novela protagonizada por personagens que
eram trabalhadoras domésticas remuneradas, documentários com forte crítica social a maneira
como esse trabalho ainda era percebido pelos jovens de classe média e um filme que teve grande
repercussão nacional e internacional, é porque as transformações políticas, econômicas e legais
começaram a trazer as vozes, agências e perspectivas dessas mulheres para outro plano. E mais
que isso, a sociedade brasileira começou a repensar como esse trabalho ainda era mantido e
reproduzido no país.

42
A ONG Criola foi fundada em 1992, com objetivo de atuar em defesa e promoção de mulheres negras.
< http://criola.org.br/>.
43
O Programa “Mais Médicos” tem por objetivo trazer médicos de outras nacionalidades, principalmente cubanos,
para trabalhar nas áreas mais remotas do Brasil.
123

O documentário “Domésticas”, estreado em 2012, dirigido por Gabriel Mascaro se insere


nesse contexto de produção midiática com forte apelo crítico, ele apresenta a história de sete
adolescentes e as trabalhadoras domésticas remuneradas que trabalham em suas respectivas casas.
Nas sete histórias podemos ver a realidade cotidiana das famílias, a preparação de alimentos, a
limpeza das casas, o cuidado com as crianças e adolescentes, a interação dessa trabalhadora com
a casa e com a família empregadora, etc. O documentário ainda consegue nos transmitir a
complexa relação contratual que envolve o trabalho doméstico remunerado nas diversas classes
sociais no Brasil, pois não apenas famílias pertencentes à classe média alta são retratadas, mas
também a realidade de famílias de classe média, classe média baixa e até mesmo uma trabalhadora
doméstica remunerada que contrata outra para cuidar de seus filhos em uma periferia de um grande
centro urbano brasileiro. Esse complexo jogo de classes sociais mais populares que também
precisam contratar alguém para o trabalho doméstico, vem justamente reafirmar o quanto as
políticas públicas relacionadas aos cuidados no país são estabelecidas em péssimas condições. Isso
resulta em um sistema de mercado de trabalho ainda precário para as mulheres, que são
majoritariamente as responsáveis pelas demandas domésticas, e que vêem a sua saída para a esfera
pública como uma “ameaça” ao bom funcionamento de suas casas. Quando a trabalhadora
doméstica remunerada precisa dormir no mesmo lugar que trabalha, a relação com essa dinâmica
fica ainda mais complexa.
No documentário, praticamente todas as trabalhadoras residem nas casas com seus
empregadores, ocupam os polêmicos “quartos de empregada” – pequenos, sem ventilação, com
camas desconfortáveis, armários e cômodas pequenas, etc. Todas essas trabalhadoras relatam
episódios de violência em suas relações conjugais e narram a ambiguidade afetiva das quais estão
inseridas. “Eu já passei mais tempo aqui do que na casa da minha mãe”, diz Gracinha, uma
trabalhadora doméstica remunerada na Bahia que já trabalhava e vivia com a família empregadora
há 13 anos. Esses relatos de ambiguidades afetivas aparecem nas fotos guardadas com as crianças
da casa, de seus aniversários, do cuidado com os idosos, nos finais de semana que não voltam para
casa porque um dos patrões está doente, a saudade e a preocupação com os seus próprios filhos, a
dor de não ver frequentemente a família, etc.
No documentário é possível perceber todas as complexidades que envolvem a “cultura
doméstica”, as posições, espaços, trabalhos que cada um ocupa e faz – trabalhadoras e adolescentes
– e como as relações afetivas se interpõem nessa relação, construindo e moldando pontes entre as
124

desigualdades estabelecidas, as narrativas e as possibilidades da “flexibilização” em uma realidade


tão dura.
Entre as sete histórias apresentadas, duas chamam mais atenção para o foco da tese, pois
tratam também do relato das empregadoras. Sílvia é a patroa de Lena, elas se conhecem há muitos
anos porque Lena era filha dos caseiros de um sítio dos pais de Sílvia e quando Lena já estava com
“idade”, trouxeram ela para a cidade para poder trabalhar como trabalhadora doméstica
remunerada44. “Desde que eu me conheço por gente ela está aqui e a nossa relação é muito boa,
não é uma relação de patroa e empregada. [...] a gente costuma dizer que ela mora aqui, ajuda em
casa, ela é da família” – Essa é uma das falas da filha de Silvia, que comenta que Lena é quase sua
irmã, conta-lhes segredos, ajudam uma à outra, etc. Mas como costumeiramente acontece nessas
relações, Lena dorme no quarto fora da casa, compartilhando o pequeno espaço com o berço de
Fernandinha, a sua filha que ainda tinha meses quando o documentário foi lançado. Fernandinha
é sem dúvida o dengo de toda a família empregadora, não somente a patroa como também os seus
filhos cuidam do bebê durante todo o dia, o fazem dormir, alimentam, assistem TV, enquanto Lena
está cozinhando, lavando os pratos e arrumando a casa. O bebê de Lena não recebe somente os
cuidados e mimos da família empregadora, pois também lhe amparam com todos os bens materiais
que uma criança precisa para viver e ser “mimada”.
Não há dúvidas que o carinho que a família empregadora sente por Lena e Fernandinha
são reais, assim como também não há dúvidas de que eles sabem perfeitamente que Lena está ali
para servi-los e que um dia essa relação irá acabar. Relações afetivas construídas na dialética de
classe e raça – Lena é negra e pertencestes às classes mais baixas, Sílvia é branca e pertencente à
classe média. Como já explanado no capítulo anterior, essas relações de afeto geram dívidas e
gratidões onde a reciprocidade é sempre marcada pela desigualdade. Nesse caso, Lena cumpre não
somente com o seu trabalho enquanto trabalhadora doméstica remunerada, ela também precisa ser
leal e grata a família empregadora.
A outra história marcada por essa complexa relação afetiva é quando Luís Felipe mostra
a realidade de sua casa. A família do adolescente é composta pelo seu pai, mãe e uma irmã mais
nova e na casa ainda mora Lucimar – a trabalhadora doméstica remunerada que trabalha há

44
De acordo com os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2012, ainda há 241.411
crianças e adolescentes empregados no trabalho doméstico remunerado, constituindo 3,91% dessa categoria
profissional. (MONTICELLI, 2013).
125

dezesseis anos para eles. O apartamento é amplo, cada pessoa da casa tem o seu quarto, há ainda
a cozinha, sala de jantar, sala de televisão, lavanderia, o quarto de empregada, etc. “Eu conheço a
Lucimar desde que eu nasci, mas na verdade ela é filha do caseiro da minha bisa. Minha bisa tinha
um sítio em Valência e desde que eu sou pequenininha eu ia pra esse sítio. Enfim, a vida inteira eu
conheço a Lucimar. Eu chegava em Valência e a primeira coisa que eu queria saber era da Lucimar.
[...], se a Lucimar ia ficar comigo, se ela ia brincar. Eu nem sabia falar ainda e falava “Ushimar”,
“Ushimar”, “Ushimar” [...]. A gente brincava muito. Eu nunca imaginei que a Lucimar fosse
trabalhar com a gente. Quando você tinha 1 ano, a empregada que trabalhava com a gente pediu
para ir embora [...] e eu fiquei apavorada, como eu ia fazer. Aí a minha avó falou: “você não quer
tentar a Lucimar?”. E eu: “claro que eu quero!”. Só que no começo era difícil né, eu tinha que me
impor como patroa e ela é a Lucimar, minha amiga de sempre”. – esse é o relato da mãe de Luís
Felipe, a patroa de Lucimar.

FIGURA 3 - LUCIMAR E A MÃE DE LUÍS FELIPE AINDA CRIANÇAS

FONTE: Mascaro, Gabriel. Domésticas. 2012


126

FIGURA 4- LUCIMAR E A MÃE DE LUÍS FELIPE BRINCANDO

FONTE: Mascaro, Gabriel. Domésticas. 2012.

FIGURA 4- LUCIMAR NA COZINHA E A MÃE DE LUÍS FELIPE (SUA PATROA)

FONTE: Mascaro, Gabriel. Domésticas. 2012.


127

As fotografias de Lucimar e sua patroa ainda criança, revelados no documentário,


mostram perfeitamente tanto a relação afetiva construída nessas relações, como a violência trazida
pelas questões de classe e raça interpostas pelas desigualdades de gênero. Se durante muitos anos
a literatura em relação ao trabalho doméstico remunerado apenas apontava para as heranças da
escravidão, essa sequência de fotografias nos mostra, minimamente, como o processo escravocrata
ainda mantêm fortes consequências na realidade contemporânea brasileira, através do trabalho
doméstico remunerado. Tanto Lucimar quanto Lena tinham uma vida restrita imposta pelos limites
da vida no interior, e mais que isso, como dependentes de um vínculo trabalhista rural precário,
que em muitos casos o desfecho das filhas do casal de caseiros é o trabalho doméstico remunerado
na casa das filhas de seus patrões. Um vínculo trabalhista fundado não somente na dependência
econômica, mas também na disponibilidade de “ter” esse tipo de mão de obra advindos do interior,
na confiança construída pelo controle de gerações e pela amizade cultivada e nutrida na infância.
Nada mais natural do que “pegar” essas meninas e levá-las para trabalhar no “conforto” de suas
casas.
Essas realidades nos mostram as reconfigurações da “cultura doméstica”, uma realidade
ainda marcada por profundas desigualdades de classe, étnico-raciais e de gênero. Mais do que as
imagens que detalham as trabalhadoras realizando o seu trabalho, o documentário traz a percepção
das patroas – e de seus filhos e filhas - em relação à essas trabalhadoras, o afeto, a amizade e o
respeito estão sim estabelecendo e pautando a convivência no espaço doméstico, assim como as
diferenciações, as segregações espaciais e o servilismo. As desigualdades raciais são marcantes,
nos apontando como a “cultura doméstica” ainda não se reconfigura sem as premissas de uma
divisão sexual e racial do trabalho.
Assim, o documentário de Mascaro traz através dessas histórias uma realidade que ainda
insiste em reproduzir elementos de desigualdades, afetos, violências, racismos e hierarquizações
que mantêm os pressupostos de servilidade ainda pulsantes na sociedade brasileira. A cultura
doméstica também estrutura os sentimentos associados com instituições, produzidos pela
confluência das condições materiais históricas e a organização social predominante. (RAY;
QAYUM, 2009). De tal modo, que a constituição dos sujeitos perante os limites impostos pelas
categorias de classe e raça condiciona uma estrutura doméstica com raízes ainda escravocratas. Se
essa concepção social é descortinada durante as sete histórias de Mascaro, o filme de Muylaert vai
além e nos mostra as fissuras causadas nessas relações com as mudanças dos últimos anos.
128

“Jéssica passou no vestibular! Jéssica passou” – Dona Bárbara responde: “caramba... 68


pontos, parabéns...[...] eu não estou acreditando...incrível...impressionante...mas aqui, não fica
muito animada porque é a primeira fase, a segunda é mais difícil”. Essa é uma das últimas cenas
do filme “Que Horas Ela Volta?”, dirigido por Anna Muylaert e lançado em 2015. Jéssica45 é filha
da trabalhadora doméstica remunerada Val46, que sai do interior de Pernambuco para prestar
vestibular em uma das mais prestigiadas Universidades de arquitetura do Brasil. Jéssica passa no
vestibular, o filho da patroa não. A cena do filme mostra como essa conquista foi uma desagradável
surpresa para a família de Dona Bárbara47, principalmente porque a trama afetiva que envolve
essas duas mulheres se interpõe ao tentar consolar Fabinho48 – o filho da patroa – por não ter
conseguido os pontos necessários para passar na referida prova. Val estava no quarto de Fabinho,
abraçada a ele, dizendo-lhe palavras de conforto quando Dona Bárbara chega, pede para Val sair
e tenta consolar o filho, que então recusa o seu abraço. “Até a Val pode te abraçar e eu não posso”
– Fabinho só muda sua postura com a mãe quando Val volta ao quarto e diz que Jéssica fez 68
pontos, conseguindo passar na primeira fase do vestibular. Assim, o filme tem como final a ruptura
de uma estrutura de desigualdade que é precisamente colocada durante todo o enredo. A conquista
“da filha da empregada” rompe com pressupostos de classe (ao acessar espaços antes ocupados
apenas pela classe média), e gera o incomodo e a ruptura afetiva, ao ponto de Fabinho buscar o
consolo da mãe, como se naquele momento ele tivesse que buscar o carinho legítimo.
O filme de Muylaert teve uma grande repercussão no Brasil, com uma bilheteria de mais
de quatrocentos mil espectadores, gerando debates, comentários, post em redes sociais, blogs, etc.
O Brasil foi para o divã discutir o trabalho doméstico remunerado, como bem aponta Fraga (2016).
Esse mal-estar gerado em setores da classe média brasileira se colocou porque o filme conseguiu
transmitir, com detalhes, a complexa relação da família empregadora com a trabalhadora
doméstica remunerada. Val chega na casa de Dona Bárbara para cuidar de Fabinho quando ele
ainda era uma criança, e acaba por viver com essa família e trabalhar com eles por mais de dez
anos, deixando sua filha Jéssica aos cuidados do pai em Pernambuco.
Val, a protagonista do filme, passa todos esses anos vivendo com os patrões no Morumbi
– bairro de classe média alta de São Paulo. Ela tem o seu quarto localizado nos fundos da casa,

45
A personagem Jéssica foi vivida por Camila Márdila.
46
Personagem protagonizada por Regina Casé.
47
A atriz Karine Teles foi a responsável pelo papel de Dona Bárbara.
48
Personagem vivido pelo ator Michel Joelsas.
129

pequeno, sem ventilação, com uma cama de solteiro, um guarda roupa, uma cômoda com uma
televisão antiga e várias caixas com eletrodomésticos e enxovais empacotados e empilhados, para
o dia que sair dali e poder montar a sua própria casa. Entre o quarto de Val e a casa onde ficam os
outros cômodos - como o quarto do casal (Dona Bárbara e Dr. Carlos), quarto de Fabinho, quarto
de hospedes, cozinha, sala de jantar, sala de televisão, varanda, etc. – há um jardim e uma piscina.
É justamente nessa piscina que se passa as cenas onde a segregação espacial é claramente
percebida. Val nunca entrou na piscina, mesmo quando cuidava de Fabinho ainda criança e
ensinava essa lógica para Jéssica - e caso alguém da família a convidasse para entrar era necessário
dizer: “ah, agradecida, mas não tenho maiô não”. Nesse momento do filme chega Fabinho e seu
amigo e pulam na piscina, enquanto Val se retira para ajudar Dona Bárbara a deitar na cama – pois
tinha acabado de sofrer um pequeno acidente e passado pelo hospital. Enquanto Dona Bárbara se
acomodava na cama, ouvem-se barulhos mais fortes vindo da piscina e logo ela pergunta: “Quem
está na piscina?” – Val: “É Fabinho mais Caveira”. Dona Bárbara questiona mais uma vez, já que
havia outra voz junto com a dos meninos. Val decide então olhar pela varanda e vê que Jéssica
estava na piscina junto com os meninos, nadando, brincando de bola, naquele dia ensolarado. A
trabalhadora se desespera e começa a gritar para Jéssica sair da piscina, o que faz com que Dr.
Carlos49 também vá à varanda e ajude Val, pedindo para que Jéssica saia da piscina. Dona Bárbara
se levanta, vai até a varanda, pede para que Jéssica obedeça a sua mãe, ordena para que Fabinho
suba até seu quarto. Já deitada novamente na cama, ela liga para a empresa destinada a limpeza de
piscinas e pede um serviço de urgência. No outro dia ela avisa Val que a piscina precisa ser limpa,
pois havia um rato dentro dela durante a noite.
Não somente a piscina foi marcada como um espaço de delimitação de quem poderia ou
não usar determinados espaços residenciais. A sala de jantar, por exemplo, era usada somente pelos
membros da família, a mesa do café da manhã era constantemente servida por Val, enquanto a
família estava sentada e comendo. Dr. Carlos – pai de Fabinho – pede para que Val sirva água ou
guaraná a ele a todo instante no filme, onde Val precisava parar o que estava fazendo, pegar na
geladeira o refrigerante, abrir, colocar no copo e entregar para Dr. Carlos. Val usa uniforme todos
os dias. Val passeia com a cadela da casa, para que ela faça as necessidades na rua todos os dias.
Val limpa a casa todos os dias. Val serve o almoço na mesa para seus patrões, retira os pratos,
serve a sobremesa e o café para eles todos os dias. Val dá carinho para Fabinho todos os dias. Val

49
Personagem protagonizado por Lourenço Mutarelli.
130

sabe o seu lugar naquela casa, ela sabe onde pode ou não sentar, onde pode ou não comer, onde
pode ou não estar. Sempre nos lugares liminares, como pertencente à casa, mas não a família.
Essa estrutura provoca ruídos quando Jéssica chega. A filha de Val passa um tempo com
a mãe na casa dos patrões, mas não se comporta como a mãe. Jéssica se oferece para ficar no quarto
de hospedes, ela senta à mesa e toma café da manhã, ela conversa com os patrões de sua mãe em
uma postura que não se sente inferiorizada. Jéssica ainda teve o seu comportamento nutrido pelas
investidas amorosas/sexuais de Dr.Carlos, que passa a vê-la como uma alternativa para sair de
quadro depressivo e de um relacionamento fracassado. E justamente quando Jéssica começa a
frequentar os espaços não destinados a ela e a sua mãe, a comer a comida que não era destinada a
elas que é perfeitamente visível as micro-estratégias de hierarquizações e poderes que se encaram
nessas relações empregatícias. Em uma das cenas Dr. Carlos convida Jéssica para almoçar com
ele, conversam sobre arquitetura durante o almoço e Val os serve na sala de jantar enquanto escuta
a conversa da cozinha. Quando terminam de almoçar Dr. Carlos chama Val para que retire os
pratos e a comida da mesa.

Dr. Carlos: Val!


Val: Sim...
Dr. Carlos: Val!
Val: to indo...
Dr. Carlos: Você tira para gente?
Jéssica: Estava muito bom o omelete. Deixa que eu te ajudo...
Dr. Carlos: não, não. Deixa que a Val tira...
Val tira os pratos e se mostra indignada com o fato da filha sentar-se à mesa dos patrões
e comer.
Dr. Carlos: Val, traz um cafezinho para gente.
Jéssica: tem algum docinho Val?
Dr. Carlos: traz um sorvetinho.
Val vai até a cozinha e pega um pote de sorvete aparentemente mais popular.
Jéssica: obrigada Val.
Dr. Carlos: Ah Val, não é esse não. Traz aquele de chocolate com amêndoas.
Val: o de Fabinho?
Dr. Carlos: não é do Fabinho. O que está aqui é nosso, é da Jéssica...pega o outro de
chocolate com amêndoas.
Val: o sorvete de Fabinho?
Dr. Carlos: o sorvete de chocolate com amêndoas.
Val volta na cozinha e pega o sorvete, dizendo “agora quando o Fabinho quiser o
sorvete...”

Nas cenas onde dois distintos potes de sorvete aparecem fica explícito essa relação de
desigualdade, que precisa ser firmada cotidianamente para que “cada um saiba o seu lugar”. O que
muitas vezes “borra” a violência dessa relação é que Dona Bárbara não é colocada como uma
131

patroa ruim, ou muito menos desumana, ela inclusive compra sorvete para as pessoas que
trabalham na casa dela, fez questão de comprar um bom colchão para que Jéssica pudesse dormir
junto com a mãe, entre outras coisas. No entanto, compra-se um sorvete popular, mais barato, o
colchão fica no menor quarto da casa, fazendo com que Val e Jéssica não consigam ter uma noite
confortável de sono. “[...]Uma amiga contou que ia ampliar o quarto da empregada depois de
assistir ao filme. Cauã Reymond disse que aumentou o salário da babá da filha após ver Que Horas
Ela Volta?50.” Conta Anna Muylaert em uma entrevista para a revista Quem Acontece. Ou seja,
mesmo com generosos atos advindos dos empregadores essas relações não deixam de ser menos
violentas, a generosidade alimenta a desigualdade nesses contextos– pois aumenta-se o quarto,
mas ele ainda é inferior aos outros da casa e designado a pessoas consideradas inferiores.
Nesse momento podemos perceber que as práticas de diferenciações e as segregações
instituídas no cotidiano doméstico se tornam mais veladas, sutis, reconfigurando essas aspectos e
trazendo à tona outras características da “cultura doméstica”. Não podemos deixar de notar, que
todas as críticas fomentadas nos últimos anos em relação ao trabalho doméstico remunerado no
país também moldaram comportamentos, negociações e a compreensão do doméstico pelos
empregadores, mas isso não significa que as características fundamentais da “cultura doméstica”
tenham desaparecido, elas se apresentam de outros modos, talvez menos explícitos e agressivos
sobre as separações, posições e formação de uma imaginário doméstico.
Dessa forma, quando Jéssica come o sorvete “destinado” a Fabinho, pede para ficar no
quarto de hóspedes, senta na mesma mesa que os patrões, nada na pisciana e ainda passa no
vestibular ela causa ruídos em uma estrutura de poder estabelecida pelas diferenças de classe,
étnico-raciais e de gênero. “Jéssica já chega como cidadã, ela vem prestar vestibular para a FAU. A
própria história já dizia tudo. Essa inversão era forte o suficiente porque lida com os preconceitos
de quem assiste ou com as esperanças – depende de onde você está situado em relação à porta da
cozinha”. – Como bem aponta Muylaert51. Jéssica representa um país que muda, mas como fica
Val?

50
NEVES, Carla. Diretora Anna Muylaert fala sobre “Que Horas Ela Volta?”: Estou Orgulhosa de Mim. Revista
Quem Acontece. Acesso: 18 de setembro de 2016. Disponível em:
<http://revistaquem.globo.com/Entrevista/noticia/2015/10/diretora-anna-muylaert-fala-sobre-que-horas-ela-volta-
estou-orgulhosa-de-mim.html>. Acesso: 07 de março 2017.
51
Idem 10
132

No filme, Val consegue se demitir e constrói uma nova oportunidade de convivência com
a sua filha na sua própria casa. Na pesquisa realizada em Curitiba no ano de 2012 sobre as diaristas,
foi observado situações muito parecidas, mulheres que tinham encontrado no trabalho através de
diárias formas de estabelecer melhores relacionamentos com seus empregadores, mas antes de
tudo, formas de concretizar melhorias para sua vida material e emocional. Subjetividades
construídas na experiência da dor, humilhação, mal pagamento, dependência, demasiado
investimento emocional com os filhos e filhas da família empregadora, etc. Um quadro de
profissionais que tinha a oportunidade de realizar escolhas, o que muitas vezes não era possível
em décadas passadas. (MONTICELLI, 2013).
Essa mesma realidade é retratada na novela “Cheias de Charme” da Rede Globo, estreada
em 2012 no horário das 19:00 e reprisada em 2016 no quadro “Vale a Pena Ver de Novo”. As três
protagonistas – Maria da Penha, Maria do Rosário e Maria Aparecida52 – eram trabalhadoras
domésticas remuneradas e a história girava em torno das dificuldades diárias em seus respectivos
trabalhos, na relação com suas patroas, nos “perrengues” da vida pessoal cotidiana, nas
desigualdades da favela do “Borralho” (onde moravam), e em seus sonhos de ascensão social.
“Levo vida de empreguete/só pego às sete!/Fim de semana, salto alto e ver no que vai
dar!/ Um dia eu compro apartamento e viro socialite/ Toda boa vou com meu ficante viajar!” Esse
é o refrão da música que as três protagonistas cantavam, e que as fizeram ganhar fama e se tornarem
madames. A ascensão social proposta pela novela se dá através da fama enquanto cantoras, com
uma grande turnê nacional, cantando músicas referentes a suas realidades enquanto ex-
trabalhadoras domésticas remuneradas. O sonho se torna realidade e essas personagens - que
sempre foram retratadas na novela como mulheres otimistas, bem vestidas, possuidoras de itens
tecnólogos e de última geração, casas bem arrumadas e decoradas (mesmo na favela do Borralho)
- passam a representar como os limites de classe social nos últimos anos se tornaram mais estreitos.
Como bem aponta Macedo (2016), a novela “Cheias de Charme” ultrapassa a velha imagem
intransponível das profundas desigualdades sociais entre “patroas e empregadas”, e passa a vê-la
como algo passageiro e conjuntural.
A novela conseguiu unir o contexto socioeconômico brasileiro, colocando e
representando essas protagonistas como consumidoras ativas de bens de consumo, cosméticos,
produtos antes só vistos na casa onde trabalhavam, com um sonho típico da Cinderela para narrar

52
Vividas, respectivamente, por Taís Araújo, Isabelle Drummond e Leandra Leal.
133

a história. Características que, inclusive, levaram alguns autores a analisar a relação entre o
consumo dessas personagens com o fato delas terem um patamar de cidadãs na novela.
(MACEDO, 2016). A despeito das estratégias globais para manter fiéis espectadoras, é importante
ressaltar que em vários episódios houve uma discussão sobre a legislação vigente, os direitos
dessas trabalhadoras e representações das violências que, costumeiramente, são observadas nessas
relações empregatícias: patroas que não assinavam a carteira de trabalho, exploração de horas
extras, abusos sexuais, diferenciações e violências. Algumas vezes um tanto quanto caricato, essas
violências eram representadas por estereótipos cómicos e não por meio estratégias veladas de
diferenciações – como ter dois distintos potes de sorvete em casa. (MACEDO, 2016).
A realidade retratada na novela não está tão distante da realidade de algumas
trabalhadoras domésticas renumeradas, principalmente das que estão inseridas em um mercado
mais dinâmico dos grandes centros urbanos. (FRAGA, 2013). Mas, de acordo com os dados
estatísticos e outras realidades apresentadas em pesquisas, esse cenário ainda não é para todas,
sobretudo no interior do Brasil e em Estados onde a economia não é tão forte. (PNAD, 2012). O
sonho de ascensão social ainda permanece, o conto de fadas da Cinderela ainda é o motor das
audiências e expectativas de algumas dessas mulheres, levando emoções, afetos e percepções
lúdicas para a realidade destas. Na etnografia realizada por Macedo (2016), essa sobreposição de
emoções, direitos, representatividade e realidade é bem posta.

Após meses de convivência mais ou menos frequente, assisti juntamente com seus dois
filhos menores ao tão esperado último capítulo de uma novela. No show de despedida das
Empreguetes, as protagonistas, três Marias, declararam: “essa foi uma homenagem a
todas as Marias desse país. Quem é Maria levanta a mão?”. Na cama, os filhos de Maria,
brincando, agitados diante de minha presença, gritavam, “minha mãe é Maria!, minha
mãe é Maria!”. Maria sorriu, contente e irônica, diante da homenagem que a Rede Globo
lhe proporcionava. Com o fim do episódio, as crianças mudaram de canal e Maria foi para
a cozinha esquentar a janta. A rotina rapidamente se refazia. Sem maquiagem, salto alto
ou qualquer outra mostra de glamour, era mesmo naquela cozinha simples que sua vida
seguia. Filha de uma longa geração de agricultores pobres, para Maria, a pobreza e a
desigualdade social não foram vencidos na cidade grande. Mas dali a pouco começaria
outra novela; amanhã outra, e depois outra. E, pelo menos por ora, na vida dura dessa
Maria, pouca coisa mudava. (MACEDO, 2016, p.29).

Se na vida dessa Maria algumas mudanças não foram de fato concretizadas, de acordo
com a classe média elas foram absolutamente visíveis e perceptíveis. As famílias empregadoras
tiveram que encarar novos desafios impostos tanto por uma nova estrutura socioeconômica, quanto
pelos novos posicionamentos advindos dessas trabalhadoras – o que fez com que muitas pessoas
134

acreditassem em uma suposta e drástica diminuição do trabalho doméstico remunerado no Brasil.


(BRITES; FRAGA, 2014). É importante lembrar que são esses episódios de “crise” que justamente
vem mostrar a resistência das patroas sobre as transformações que o trabalho doméstico
remunerado vem passando, assegurando-se nos pressupostos arraigados da “cultura doméstica”.

4.3 AGORA VAMOS TER QUE LAVAR OS PRATOS?

“Não, ainda não é o fim. Mas, sim, é certo que nada será como antes”. Essa é a frase
inicial de uma reportagem escrita por Laura Diniz, para um exemplar da revista Veja no ano de
201353, que tinha por objetivo discutir as mudanças que estavam ocorrendo dentro dos lares de
classe média quanto ao trabalho doméstico remunerado. Essa reportagem é seguida por um
editorial e pela capa da revista – um homem branco, meia idade, usando terno, gravata e um
avental, pano de prato pendurado no ombro direito, com um semblante infeliz, lavando a louça,
com a seguinte legenda: “Você Amanhã: as novas regras trabalhistas das empregadas são um
marco civilizatório para o Brasil – e um sinal de que em breve as tarefas domésticas serão dividas
entre toda a família”.

53
DINIZ, Laura. Veja. Nada Será Como Antes. 3 abr. 2013. Disponível em:
<https://acervo.veja.abril.com.br/index.html#/edition/32156?page=74&section=1>. Acesso: 22 de set. 2016.
135

FIGURA 5 - CAPA DA REVISTA VEJA SOBRE A “PEC DAS DOMÉSTICAS”

Fonte: Veja. Nada Será Como Antes. 3 abr. 2013.

A Revista Veja foi mais ponderada do que outros meios de comunicação, que vinculavam
realmente uma ideia sobre uma possível “extinção” do trabalho doméstico remunerado no país. A
edição da Veja apenas discutia, pela primeira vez, a viabilidade de que os membros da família
começariam a ter que se responsabilizar pelas tarefas domésticas. A divisão sexual do trabalho
pode ser, em alguns contextos, um conceito já repensado e que precisa de novas intersecções
teóricas. Mas, na prática das famílias – sobretudo das heteronormativas nucleares – essa divisão
ainda se faz constantemente presente. Enquanto as mulheres dispendem em torno de 44 horas
semanais nos trabalhos domésticos, os homens dedicam cerca de nove horas por semana para o
mesmo. (MELLO, 2007). Essa é uma das características que ainda sustentam a forte permanência
136

da “cultura doméstica” nos lares brasileiros, confinando a maior carga de trabalho as mulheres e
instituindo posições, papéis e representações ainda muito embasadas pelos pressupostos da divisão
sexual do trabalho. Isso molda intimidades, afetos, responsabilidades, estresse, etc. E não institui
novas dinâmicas para as famílias e, consequentemente, para as trabalhadoras domésticas
remuneradas.
Com as novas configurações econômicas, legislativas e de comportamento político
advindo das trabalhadoras domésticas remuneradas essa pesquisa questiona quais são as reais
mudanças que ocorreram nos lares, nas perspectivas, expectativas, desejos e compreensões da
“cultura doméstica” para as famílias empregadoras. Para isso, as entrevistas realizadas com as
empregadoras em Curitiba-PR, no ano de 2015, percebemos que as resistências sobre todas essas
mudanças ainda são fortes, assim como as enumeradas necessidades de ordem cotidiana doméstica
que moldam a contratação do trabalho doméstico remunerado por suas lógicas e vontades, não se
enquadrando nos pressupostos e determinações das leis trabalhistas. Além disso, é visto como essa
mesma estrutura do pensamento sobre o lar, o casamento, as tarefas domésticas, criação de filhos,
trabalho no mercado formal ainda são enquadrados em práticas conservadoras, que refletem tanto
na subjetividade das empregadoras, quanto na sua relação com a trabalhadora. Esses dados serão
apresentados no próximo capítulo da tese juntamente com novas discussões sobre a divisão sexual
do trabalho, as noções sobre intimidade, amor e cuidados contemporâneas.
137

5 “NOVAS” PRÁTICAS, “NOVOS” DISCURSOS E AS EXPECTATIVAS SOBRE O


TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO: AS RECONFIGURAÇÕES DA
“CULTURA DOMÉSTICA”

Quem tem empregada vive a dor e a delícia disso. - Vanessa Soublin,201454.

Como visto nos capítulos anteriores, essa tese parte da ideia da construção de uma
“cultura doméstica” na sociedade brasileira. Essa ideia conceitual vem sendo formada, como algo
percebido no período pós-abolição, dos primeiros anos republicanos e as lógicas e práticas dessa
“cultura doméstica” foram sendo reconfiguradas ao longo dos anos no país, influenciada pelas
transformações no mercado de trabalho, na família, na legislação trabalhista para as trabalhadoras
domésticas remuneradas, nas demandas políticas de diversos movimentos sociais. Contudo, alguns
aspectos ainda são igualmente percebidos na compreensão de como deveria ser o espaço
doméstico, a intimidade, os afetos e as experiências compartilhadas no “lar”. E essas noções então
pautam como uma casa deve ser limpa, organizada, administrada, estabelecem os papéis de cada
membro da família - como já dito por Kofes (2001), instituem desigualdades e relações de poder.
Questões já há tempo analisadas e denunciadas pelos diversos movimento feministas, como a
divisão sexual do trabalho, dupla jornada de trabalho para as mulheres, falta de reconhecimento e
desvalorização do trabalho doméstico ainda são fortemente presentes na realidade das patroas
entrevistadas nessa pesquisa.
O que traz outra dinâmica na maneira como elas lidam com essas desigualdades, é o fato
de poderem contratar uma trabalhadora doméstica remunerada para assumir os trabalhos mais
“duros”, cansativos, desgastantes, desvalorizados – em suas percepções. Ao contratarem alguém
para fazer essas tarefas, as patroas passam a assumir outras modalidades do exercício de poder
dentro de suas próprias casas, através de concepções reconfiguradas da “cultura doméstica”.

54
SAMORANO, Carolina; RUSKY, Renata. A Dor e a Delícia da Vida sem Empregada. Correio Braziliense.
Brasília, 26 de out. 2014. Disponível em:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2014/10/26/interna_revista_correio,453952/a-dor-e-a-
delicia-da-vida-sem-empregada.shtml>. Acesso: 06 de mar. 2017.
138

Esse capítulo então tem por objetivo apresentar essas características, como pensam suas
casas, demandas e necessidades, como exigem a limpeza, organização, preparo de alimentos,
cuidado com filhos, a própria relação com a trabalhadora doméstica remunerada e a sua relação
enquanto “patroa”, e como tudo isso interfere nos pressupostos de intimidade e afeto. Essas
reconfigurações culturais do domésticos são apresentadas também através de teorias sobre o
cuidado, intimidade, afetos colocados sob uma lente das relações de poder – o que se mostrou
intrínseco nessa realidade, sendo parte constituinte da subjetividade dessas mulheres.

5.1 AS PATROAS E SUAS CASAS: POSIÇÕES, NEGOCIAÇÕES E VIDA COTIDIANA

Se durante os anos 70 as autoras dos manuais e as patroas entrevistadas pelas


pesquisadoras se sentiam aprisionadas ao realizar o trabalho doméstico, que as desgastava e as
retirava tempo para realizar algo realmente “produtivo”, do cuidado dos filhos e filhas, de seus
momentos enquanto esposas, as patroas com quem tive a oportunidade de realizar a pesquisa se
sentiam igualmente “prisioneiras” do lar. No entanto, o tempo “produtivo” que elas tanto
almejavam estava vinculado ao mercado de trabalho formal, desfrutar do tempo de lazer com a
família, dar mais atenção as demandas dos filhos e filhas, ter mais tempo para suas próprias
demandas enquanto mulheres. O trabalho doméstico ainda está vinculado com uma ideia de
humilhação, infelicidade, improdutividade, desvalorização, além disso, é um trabalho que as
deixam feias, mal arrumadas, cansadas, desgastadas e estressadas.

Marcela: Eu que cozinho, eu que faço compra, eu que descarrego o carro, é... o que ia dar
diferença se eu não tivesse doméstica é que meu marido ia ter que me suportar sem fazer
a unha, sem fazer escova no cabelo (risos) [...], mas é só isso que muda, é luxo, confesso,
luxo total eu ter uma doméstica.
[...]
Thays: Entendi. E você acha que dá mais trabalho em casa ou o trabalho fora?
Marcela: É, não é que é muito trabalho, é a mesma rotina, o que cansa é porque é
repetitivo, é isso que cansa. Eu dou aula, pensa uma sala com 10 mulheres dentro falando
ao mesmo tempo, de depilação ainda, que elas só falam besteira... eu chego em casa que
eu não consigo, às vezes com uma dor na perna, mas com o alívio de não ter precisado
ficar em casa cuidando da casa, então eu acho que não é que a casa dá mais trabalho, é
mais chato. Menos gratificante eu acho. Porque você não repara na casa, assim, é
obrigação a casa arrumada, não é vitória né, eu acho que é isso que eu penso, daí que nem
eu costumo... minhas cunhadas reclamam de serviço de casa, de ser mãe, eu falo “é, quem
mandou ser mulher? Nascesse homem!”, eu assumo muito isso que é meu papel de
mulher, não adianta eu querer impor pro meu marido que arruma uma diarista, uma
empregada sendo que isso é papel meu, a partir do momento que eu não dou conta tudo
bem, quando a gente mudou pra casa grande eu cuidava da casa sozinha, e eu levava duas
139

horas só pra varrer passar pano na casa, só pra varrer e passar pano, eu achava um absurdo
isso, duas horas, e quando ele chegava em casa eu estava só o pó, aí quando me caiu a
ficha eu falei pra ele, “amor a casa é muito grande, eu não dou conta, ou você tem a casa
limpa ou você tem a mulher arrumada, você tem que optar, que os dois não vai rolar não”.
(entrevista 10, Marcela, 38 anos, 2015).

Assim, uma das perguntas realizadas durante a entrevista era sobre os benefícios que as
patroas encontravam na contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada. As respostas
eram basicamente essas: “ela ajuda com o pesado”, “liberdade para sair de casa”, “mantém a casa
limpa”, “não ficar mais cansada”, “liberdade”, “você libera a vida”, “o trabalho é muito cansativo,
elas auxiliam”, “o dinheiro mais bem pago do mundo, porque te liberta”, “todos”, “a mordomia”,
“eu quero ser madame”, “tempo para ficar com a filha e trabalhar fora”, “tempo livre para fazer as
próprias coisas”, “tempo livre para os filhos”, “ser feliz, eu posso trabalhar fora”.
Nesse sentido, não é necessariamente a “casa” que traz o sentimento de aprisionamento e
infelicidade descrito pelas patroas, mas as tarefas domésticas. Eu não escutei na pesquisa que o
matrimônio ou a suas relações enquanto mães as deixavam sobrecarregadas, mas varrer e passar
pano no chão, lavar e passar, cozinhar todos os dias, arrumar, tirar pó, lavar banheiro, lavar louça,
organizar, etc. não eram trabalhos que lhes traziam sentido de realização, produtividade e
superação. O trabalho doméstico não é percebido, por elas, como algo a ser dispensado tempo,
atenção, cuidado para si mesmas, muito pelo contrário, o trabalho doméstico é percebido como
algo que elas fazem para os “outros”, que nunca tem fim e acima de tudo não é reconhecido. A
casa bem organizada e limpa, comida na mesa e filhos bem educados são consideradas, por elas,
um dever enquanto mulher.
Isso não significa que elas não estejam atentas a outras possibilidades de reorganizar a
dinâmica instituída pela divisão sexual do trabalho, quando perguntava qual era a relação dos filhos
e filhas com as responsabilidades nas tarefas domésticas, algumas delas me diziam que tentavam
incluí-los, principalmente quando elas mesmas tinham que realizar o trabalho doméstico. No
entanto, era sempre colocado como ocasiões especiais, não fazendo parte do cotidiano real dos
filhos e filhas. Algumas delas me disseram que nunca tentaram “ensinar” algumas tarefas, que
quando o faziam era por espontaneidade e desejos deles e delas. O que foi uma constante nas
entrevistas, era a não participação dos maridos nas tarefas domésticas, seja porque essas mulheres
realmente achavam que eles não tinham que cumprir com nenhuma responsabilidade em casa por
já serem os provedores financeiros, seja porque eles não “sabiam” fazer.
140

Thays: E você acha que você consegue fazer isso com...você se sente responsável por
colocar todo mundo trabalhando na casa?
Tereza: totalmente! Totalmente! Pincipalmente quem está crescendo agora né,
principalmente por causa da Vanessa (filha mais nova). E o Thiago também, desde de
sempre, desde de pequeno vai enxugar uma louça, vai lavar uma louça, quando não tinha
a menina que morava aqui em casa (empregada) era ele que era responsável por lavar a
louça. Tanto é que ele diz que quando ele tiver dinheiro, ele nunca mais vai lavar uma
louça na vida dele (risadas).
Thays: mas como você conseguiu trazer essa dinâmica, de todo mundo ajudar assim?
Tereza: porque eu trabalho fora, acho justo. Eu não pago as contas, todas assim. O Fred
(marido) é responsável, então eu ainda me sinto mais responsável ainda de deixar o Fred
sentado e eu ir lá e fazer, porque eu não tenho a responsabilidade financeira dentro de
casa, a minha responsabilidade é a casa, os filhos, então eu me sinto totalmente na
obrigação de fazer no lugar dele. E também coloco essa questão para eles, para as
crianças, para eles verem que como tem uma pessoa que é o provedor os demais tem que
fazer por ele. Eu fiz uma janta e não vou pedir, tipo, para o Fred lavar a louça? Não. As
vezes ele levanta da mesa, vai lá e lava. Mas é minha obrigação e das crianças, não do
Fred. (entrevista 1, Tereza, 40 anos, 2015)

A inserção dos filhos e filhas na dinâmica da organização da casa se mostra, timidamente,


como algo que essas mulheres começaram a incluir em suas vidas. Pelo fato de poderem contratar
uma trabalhadora doméstica remunerada, essa “ajuda” é realizada em casos excepcionais, não
sendo uma obrigação de fato e não contam com os “ensinamentos” delas de como a limpeza e a
organização devem ser. “Eu acho que eles aprenderam só vendo, porque eu nunca chamei para
ensinar” – Como me disse Rita, uma das patroas entrevistadas. No entanto, elas sempre me diziam
como essa dinâmica era uma de suas exigências enquanto mães, expondo que já não podiam mais
deixar tudo para “empregada” fazer. Essa é, sem dúvida, uma das mudanças que começaram a
aparecer dentro dos lares atualmente, se antes os filhos eram totalmente excluídos das atividades
domésticas e as filhas destinadas a aprenderem, minimamente, algumas coisas para se tornarem
boas donas-de-casa no futuro, hoje há sim uma compreensão de os filhos e filhas precisam se
responsabilizar, ao menos, pelas suas próprias demandas – o quarto, por exemplo.
No entanto, o que se mostra como ponto realmente complexo é a relação com o marido
sobre as responsabilidades das tarefas domésticas. A maior parte das entrevistadas não contavam
com absolutamente nenhuma “ajuda” advinda de seus maridos no trabalho doméstico, quando
muito eles faziam mercado ou cortavam a grama nos finais de semana. Inclusive, esses eram pontos
de ruído nas relações matrimoniais, as patroas entrevistadas incluíam na lista de benefícios na
contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada, não terem mais que brigar ou discutir
com seus maridos sobre as demandas da casa.
141

Thays: E assim, quais os maiores benefícios que você vê na contratação de uma


trabalhadora doméstica assim?
Mônica: na minha vida pessoal? Eu tenho tempo para ficar com a minha filha e para
trabalhar do jeito que eu preciso. E eu acho que é essa a grande vantagem, e eu acho que
diminui também um pouco os conflitos conjugais (risadinhas), porque quando você não
tem alguém que faça os trabalhos domésticos você propõe uma divisão né, com os
maridos, o meu marido, por exemplo, aceita dividir os trabalhos domésticos, só que eu
acho que o homem tem uma relação diferente com os trabalhos domésticos do que a
mulher.
Thays: e você acha que isso prejudica em que sentido?
Mônica: eu acho que a gente tem mais conflitos na tentativa de dividir igualmente o
trabalho doméstico com o marido, com o homem, com o marido. Bom, com o meu
marido, porque antes eu não tinha essa experiência de tentar dividir com outras pessoas.
(entrevista 5, Mônica, 37 anos, 2015)

A relação com o marido se mostra desigual em todas as casas em que pude fazer a pesquisa,
seja nas configurações da divisão sexual do trabalho, seja nas desigualdades salariais. E muitas
vezes, para essas mulheres, realizar as tarefas domésticas era mais um ponto para se sentirem
humilhadas, diminuídas, cansadas perante seu cônjuge. A contratação de uma trabalhadora
doméstica remunerada foi até mesmo descrita como um processo de não se sentirem mais
subalternas nas configurações domésticas, pois já sentiam demasiadamente cansadas por ter dupla
jornada de trabalho, por estar sempre dispostas para seus maridos e ainda tinham que realizar um
trabalho “duro”, “chato”, “que nunca acaba” e sem reconhecimento algum. A trabalhadora
doméstica remunerada também passa a ser um escopo das próprias ânsias das patroas enquanto
esposas.

Thays: Mas eles (filhos) foram ajudar no casamento, aqui quando estavam com você eles
não ajudavam tanto?
Rosa: Não.
Thays: Aí é difícil né?
Rosa: Mas eu acho que o erro foi meu também sabe, porque até um tempo no meu
casamento eu achava assim, mulher casou, eu tinha exemplo de mãe né, eu casei novinha,
19 anos, então achava assim, mulher tem que dar conta do serviço, e eu fui mulher e
homem, eu cortava grama, eu pintava a casa, eu consertava telhado, eu trabalhava fora,
né, levava as crianças na escolinha a pé, depois que eu comprei meu carro, mas eu
consegui comprar meu carro sozinha, paguei metade dessa casa sozinha, ajudei pagando
metade, então o tempo foi me mostrando, e daí eu achava assim, eu olhava, meu marido
chegava, assistia televisão, ele pedia um cafezinho, se esticava ali, daí tomava um
cafezinho, deixava ali, eu disse puta que pariu, passava o domingo e o sábado fazendo
serviço, então isso foi mexendo comigo, e eu... eu... e tipo assim, não sentia valorizada,
não me sentia valorizada entendeu... agora eu não fico mais sem.
Thays: Que coisa né, é realmente... é realmente... então no seu dia a dia você não se
imagina mais hoje sem (trabalhadora doméstica remunerada)? Você lembra alguma coisa
142

que aconteceu que você falou assim, chega, agora eu vou ter uma trabalhadora doméstica,
vou ter uma empregada.
Rosa: eu vou falar pra você... tipo assim, com tudo que eu fazia meu marido achou, ele
teve uma, uma... um caso fora, tipo assim entendeu, eu disse, puta que pariu, eu trabalho
que nem uma camela né...
Thays: Você já trabalhava fora, trabalhava dentro de casa...
Rosa: É... daí tô cansada, tô irritada, tô isso, tô aquilo, chega... só que daí quando eu
resolvi isso também eu mandei ele embora...
Thays: Aí você resolveu tudo.
Rosa: Tudo. Só que daí começou a correr atrás.
Thays: Você se sente melhor depois de ter conseguido contratar alguém...
Rosa: sim, me sinto melhor com empregada... (entrevista 14, Rosa, 55 anos, 2015).

Portanto, o trabalho demandado em uma casa foi percebido nas entrevistas como algo
extremamente cansativo, que não traz reconhecimento e valor, que retira o tempo das mulheres
para fazerem algo realmente “produtivo”, prazeroso, as aprisionando em uma rotina de tarefas
infindáveis e que não as recompensam diretamente, já que não compreendem a realização desse
trabalho como algo para si, e sim para os outros. Essas características são igualmente percebidas
nas narrativas das patroas dos anos 70, 80, 90, 2000, demonstrando-nos como a “cultura
doméstica” ainda molda a percepção das tarefas domésticas pela classe empregadora, muitas vezes
sentindo-se humilhadas, subalternas frente a realização constante do trabalho doméstico. Ainda
soma-se a essa percepção que os homens não tem a mesma relação com o trabalho doméstico que
as mulheres – como relata Mônica. De acordo com as empregadoras, a relação que os homens
constitui com as demandas domésticas são diferentes, não somente na maneira de se
responsabilizar por elas, como na maneira de concretizá-las, “não fazendo direito”, “são
desajeitados”, “deixam tudo engordurado, desorganizado”, “não limpam direito”, “o que está
limpo para um homem, não está limpo para uma mulher”, etc. Percepções, discursos e práticas que
também estão incluídos na “cultura doméstica”, já que esta apresenta pontos que definem as
percepções sobre as diversas organizações da casa, e se alguém não cumpre de acordo com esse
“molde”, a casa “fica bagunçada”. A “cultura doméstica”, claramente, se fundamenta pelas
desigualdades nas relações de gênero.
A contratação de uma trabalhadora doméstica é a possibilidade dessas mulheres de
livrarem-se desses sentimentos de infelicidade, aprisionamento, desvalorização, canseira, que as
inferioriza, as deixam feias e mal arrumadas e ainda cessam com as brigas com os maridos– de
acordo com suas narrativas e percepções. Quando perguntado na entrevista se elas poderiam pensar
143

em suas vidas cotidianas domésticas, sem uma trabalhadora doméstica remunerada, a resposta foi
majoritariamente “não”.

Flávia: A Dona Sônia uma vez, foi no dia do meu aniversário, ela falou para mim que ela
ia embora porque a mãe dela estava com Alzheimer e que precisa ajudar a cuidar da mãe
dela [...]
Thays: uhum.
Flávia: foi o pior dia da minha vida. Eu queria morrer, que minha vida virou...Eu tenho
uma organização que eu conto com ela e sem ela, tudo na minha vida é bagunçado. Que
eu não consigo me organizar com meus filhos, com meu marido, comigo mesmo. Nada
dá certo, se eu não tenho uma pessoa bem boa na reta guarda da minha casa, sabe?
Thays: se você ficasse sem, porque não existe possibilidade de contratação mais, como
que você acha que conseguiria resolver a questão da casa? A dinâmica da casa.
Flávia: (7 segundos em silêncio). Para mim é ruim porque eu não gosto de trabalhar em
casa, então, é claro, jogar uma roupa na máquina, passar, eu sei fazer. Lavar banheiro
tudo bem. Mas eu, para eu ser feliz, eu preciso trabalhar, trabalhar...Eu hoje, o que eu
ganho é o que eu pago quase a Dona Sônia. Mas eu não me importo. Eu prefiro estar lá
fazendo o que eu faço e ela fazendo o que ela faz. (risadas). Nem que empate o meu
salário com o dela. Porque eu fazer o que ela faz não me traz felicidade, me traz depressão.
Eu fico doente, não posso.
(entrevista 4, Flávia, 38 anos, 2015)

Todas essas posições, características e descrições sobre a maneira como as patroas


enxergam as tarefas domésticas já foram detalhadamente analisadas, como podemos ver nos
capítulos anteriores, pelas perspectivas da divisão sexual do trabalho, análises de classe pautadas
pelos pressupostos marxistas, perspectivas estruturalistas e decoloniais. De tal modo, que se torna
um desafio analisar esse quadro, seja porque já foi demasiadamente pesquisado nas análises sobre
as configurações domésticas familiares, seja porque é difícil encontrar novas posições,
compreensões pautadas por uma ideologia diferente entre a classe empregadora. Inclusive, foram
justamente essas conexões entre narrativas passadas e as atuais sobre a maneira de pensar o
trabalho doméstico e, consequentemente, o trabalho doméstico remunerado que me fez ter um
questionamento hipotético sobre uma cultura que permeava as noções sobre o espaço da casa, a
formação do “lar”, a sua organização e limpeza, a nutrição e quem deveria fazer cada tarefa.
Se esse quadro não se mostra com variações tão grandes ao longo dos anos, como eu venho
tentando demonstrar, proponho então fazer uma análise sobre o “conservadorismo” em relação ao
trabalho doméstico e ao trabalho doméstico remunerado. O primeiro ponto a ser pensado sobre as
práticas e lógicas que ainda preservam características conservadoras é a posição que essas
mulheres se veem na composição familiar e doméstica. Elas se colocam como as principais
responsáveis pelo mantimento dos cuidados da casa, pela sua organização, limpeza impecável e
144

pela alimentação de todos os membros da família. As relações de poder conectadas com o


rendimento salarial se mostram um forte elemento de negociação entre essas mulheres e seus
maridos, já que são os cônjuges que ganham mais e contribuem mais com as demandas financeiras
domésticas, as mulheres quando não os isentam de quaisquer tarefas na casa, encontram
dificuldades para tentar compartilhar, de uma forma minimamente igualitária, as responsabilidades
do trabalho doméstico. Isso porque não possuem salários iguais, já que a grande maioria das
entrevistadas estavam inseridas no mercado formal de trabalho. Das patroas dessa pesquisa, apenas
uma tinha o rendimento mensal parecido com o do marido, nas outras casas os homens chegavam
a receber até 15 vezes mais que suas esposas.
Viviana Zelizier (2009) nos aponta que os acordos econômicos para o fornecimento de
cuidados não devem ser pensados somente pelo custo, a conveniência e a eficiência, pois essas
relações também implicam negociações das formas como são estabelecidas, suas representações,
obrigações e os direitos a eles envolvidos, que por sua vez são inseparáveis dos laços de
significados interpessoais. São esses tipos de negociações que nos apontam as frágeis e imaginárias
fronteiras entre o mundo público e o privado, porque o tradicional pensamento da casa ser o lugar
do amor, do cuidado, dos afetos mais sinceros “escondem” que nesse espaço há sim transações
monetárias, direitos instituídos pela legislação, obrigações e responsabilidades que são negociadas
a todo tempo nas práticas cotidianas domésticas, nos tribunais de causas familiares, etc. que levam
em consideração as representações do cuidado. O que se pareceu uma constante na pesquisa, é a
subvalorização dos salários, do rendimento monetário, do poder de comprar, contratar e manter a
vida doméstica em parâmetros confortáveis para setores da classe média. Se para muitos, a divisão
estabelecida nas casas pesquisadas parece justa – homens garantem o sustento financeiro e as
mulheres o conforto do cuidado – ou, parece uma óbvia separação de tarefas (inclusive para
próprias entrevistadas), elas nos mostram que as desigualdades entre os sexos e no matrimonio
ainda é uma realidade nos lares. As mulheres dessa pesquisa ganhavam menos no mercado formal
de trabalho, mas isso não significa que elas trabalhavam menos – igualmente como seus maridos,
elas tinham uma rotina de mais de 44 horas de trabalho semanais, mas não era necessariamente
essa questão que entrava nas negociações sobre as tarefas domésticas, sendo na verdade pautadas
por lógicas mercantis sobrepostas em uma violenta desigualdade de gênero.
Como já analisado por bell hooks (1990), o “lar” para muitas pessoas, sobretudo mulheres,
pode ser o espaço marcado por violências, desigualdades e fragmentação dos sujeitos –
145

principalmente quando pensado em termos de classe e étnico-raciais. Dessa mesma forma, Costa
(2002) observa que o “lar” não pode ser pensado como um lugar, mas como múltiplas localizações
que produzem dispersão e fragmentação. O lar pode ser pensado como uma espécie de ficção
necessária que criamos para construir o senso de pertencimento e para localizar as identidades.
Justamente nesse sentido, acredito que a “cultura doméstica” oferece as posicionalidades para cada
membro da família, colocando as mulheres como esposas, mães e as detentoras do “verdadeiro”
afeto e cuidados, preservando uma esfera conservadora sobre constituição familiar e do “lar”. O
que se mostra surpreendente, nessa pesquisa, é o fato de muitas das patroas nem sequer pensarem
em outras lógicas para suas vidas domésticas, levando em consideração que a pauta dos diversos
movimentos feministas sobre a divisão sexual do trabalho foram demasiadamente colocadas no
Brasil, como podemos ver no capítulo 2. Durante as entrevistas, o rol de reclamações frete à
demandas domésticas eram enormes, mas elas não se colocavam em outra posição – eram as
mulheres da casa e precisavam organizá-la, limpá-la e cuidá-la, ou, eram as responsáveis por
“mandar” e “vigiar” se a trabalhadora doméstica remunerada estava realizando todo o trabalho da
maneira mais correta possível.
Arlie Hochschild (2008) nos aponta que as “novas” configurações familiares e
principalmente novas possibilidades das identidades e posições das mulheres na família, como por
exemplo, esposas que não são mães, mães que não são esposas, madrastas, segundo casamento,
matrimônios homoafetivios, duas mulheres que são mães, etc, não podem ser confundidas com
novas configurações do cuidado. O incentivo do movimento feminista em inserir as mulheres,
pertencentes a classe média, no mercado formal de trabalho gerou uma mercantilização dos
cuidados e da vida intima, fazendo com que as noções e pressupostos do mundo público e do
privado ficasse cada vez mais fundidas55. Assim, os mecanismos capitalistas acabam por reforçar
mais a imagem da família, da casa e do “lar” relacionados a figura materna, como uma forma de
criar um imaginário que esse espaço não é tão precário e violento como o “mundo exterior”.

55
Se transações como a contratação de trabalhadoras domésticas remuneradas, cuidadoras, babás tornaram-se mais
complexas pelas imposições legislativas, abrindo reflexões para questões de ordem moral, de valores e as
posicionalidades que se derivam dessas relações, é igualmente importante lembrarmos que o mercado de trabalho
também passa a se estruturar com limites às posições familiares, como por exemplo, incentivar a contratação de
pessoas sem filhos e solteiras. (HOCHSCHILD, 2008).
146

La simbolización hiperbólica de la madre es en parte una respuesta a la desestabilización


del basamento cultural y también económico sobre el que se asienta la familia. En virtud
de su extremo dinamismo, el sistema capitalista desestabiliza tanto la economía como la
estructura familiar. Cuanto más precario se manifiesta el mundo exterior a la familia, más
nos parece que necesitamos creer en uma familia inquebrantable y, em su defecto, en una
figura inquebrantable de la esposa-madre56. (HOCHSCHILD, 2008, p.63).

Considerando então que a casa não é apenas um espaço geográfico, mas um símbolo
metafísico ressonante sobre “amor”, “carinho”, “cuidado” e “afeto” as posições dos sujeitos nele
inseridas serão representadas por esse ideal – e o “familiar” torna-se uma extensão simbólica e
uma confirmação de si mesmo. (FESKI, 2000). Mas, apesar das patroas dessa pesquisa se situarem
nessas posições de mães, esposas detentoras dos mais “puros” sentimentos em relação a sua
família, elas constantemente relatavam a infelicidade, o aprisionamento e as humilhações que casa
lhes propiciava. Não seriam então posições ambíguas ou contraditórias? Mais que uma forma de
demostrar que essa percepção ideal da “casa” seja uma imaginação construída pelas necessidades
sociais, políticas e culturais, sendo apontado por essas narrativas que o tão sonhado e aconchegante
“lar” lhes causa tédio, canseiras, sentimento de improdutividade e desvalorização de seu tempo e
trabalho. Essas percepções e afetos em relação à casa estão diretamente ligadas a compreensão
moderna sobre a vida cotidiana.
De acordo com Felski (2000), a vida cotidiana moderna foi socialmente construída
intrinsicamente vinculada com a ideia de hábito, que por sua vez se tornou o inimigo de uma vida
“verdadeiramente” autentica. A liberdade foi tradicionalmente conectada com movimentos através
de espaços públicos, enquanto o espaço residencial com uma vida sem novidades, marcada por
uma ideia cíclica e não linear do tempo. A repetição se tornou algo aprisionador. A casa, que
sempre demandou trabalhos cíclicos, que precisam ser realizados todos os dias, se tornou
aprisionador. Os discursos dos movimentos feministas, principalmente dos anos 70, investiam na
imagem da casa como o lugar que aprisiona a mulher. Nesse sentido, como as mulheres sempre
foram interligadas à esfera doméstica, são elas que vão sentir e se afetar com as pressões advindas
do cotidiano. O que Feslki (2000) vem nos dizer, é que a construção do hábito e da vida cotidiana

56
A simbolização hiperbólica da mãe é em parte uma resposta a desestabilização sobre as bases culturais e também
econômicas sobre a família. Em virtude de seu extremo dinamismo, o sistema capitalista desestabiliza tanto a
economia quanto a estrutura familiar. Quanto mais precário se manifesta o mundo exterior a família, mais nos
parece que precisamos crer em uma família inquebrável, e em sua omissão, em uma figura inquebrável da esposa-
mãe. (tradução livre).
147

é um elemento essencial da vida moderna, que tanto homens e mulheres as experimentam, mas de
formas diferentes.

The temporality of everyday life is internally complex; it combines repetition and


linearity, recurrence with forward movement. The everyday cannot be opposed to the
realm of history, but is rather the very means by which history is actualized and made
real. Thus repetition is not an anachronism in a world of constant flux, but an essential
element of the experience of modernity. Rather than being the sign of a uniquely feminine
relationship to time, it permeates the lives of men as well as women 57. (FELSKI, 2000,
p.85).

De acordo com a autora, o cotidiano não está somente no domínio dos outros, como em “si
mesmo”, não somente no domínio da transgressão, mas também no domínio da familiaridade, tédio
e do hábito. Reconhecer que todos nós habitamos o cotidiano não é negar as diferenças sociais,
mas simplesmente conhecer a base comum do mundano. Partindo dessa premissa, Feski (2000)
pensa em uma teoria feminista que reflita sobre o cotidiano tentando não separar o “sujeito
moderno” do lar, e simultaneamente que pudesse compreender a dimensão moderna das
experiências cotidianas domésticas, considerando que esse espaço possa ser também um lugar
central para as experiências das mulheres. (FESKI, 2000). É claro que não podemos deixar de
lembrar do esforço das feministas, durante os anos 70, de separar as análises ligadas ao sexo das
de classe e, posteriormente, redefinindo o próprio conceito de trabalho para a Sociologia, em um
movimento de abarcar em um outro status analítico e prático as vivências e experiências da esfera
doméstica. (HIRATA, 2002). Mas, pensar a vida cotidiana sem pensar que as mulheres são parte
constituinte de uma representação sobre o diário, o cíclico e a repetição é colocar uma venda nas
formas como os sujeitos na vida moderna se posicionam. Como indica Felski (2000), o problema
ainda se compelxifica porque existe uma visão romântica da ligação entre mulheres e a vida
cotidiana, associando-as com o natural, autêntico, originário.

I have explored some of the ways everyday life has been connected to women, without
simply endorsing the view that women represent daily life. The problem with this view,
as the work of Lefbvre makes particularly clear, is that it presents a romantic view of both

57
A temporalidade da vida cotidiana é internamente complexa; une-se repetição e linearidade, recorrentemente com
movimentos para o exterior. A vida cotidiana não pode ser oposta ao domínio da história, mas é sim o meio pelo
qual a história é atualizada e se faz real. Assim, a repetição não é um anacronismo em um mundo de fluxo constante,
mas um elemento essencial da experiência da modernidade. Ao invés de ser o sinal único da relação feminina com o
tempo, esta permeia a vida tanto de homens como de mulheres. (tradução livre).
148

everyday life and women by associating them with the natural, authentic, and primitive.
This nostalgia feeds into a long chain of dichotomies – society versus community,
modernity versus tradition, public versus private – that do not help us understand the
social organization of gender and that deny women’s contemporaneity, self-
consciousness, and agency. Furthermore, to affirm women’s special grounding in
everyday life is to take at the face value a mythic ideal of heroic male transcendence and
to ignore the fact that men are also embodied, embedded subjects who live, for the most
part, repetitive, familiar, and ordinary lives 58. (FELSKI, 2000, p.94).

Nesse sentido, acredito que uma das chaves para romper com a ideia de que a casa seja um
lugar aprisionador para as mulheres, é compreender, como primordial, que a esfera doméstica não
se opõem à esfera pública, sendo essas intrinsecamente incorporadas uma a outra. Uma ideia que
parece óbvia, mas que ainda sustenta dicotomias e posicionam sujeitos em espaços desiguais,
fomentando subjetividades frustradas em relação a compreensão do mundo moderno. Como tenho
tentado demostrar nessa tese, a “cultura doméstica” foi concebida pelos pressupostos de políticas
aplicadas a esfera públicas ainda no período republicano, mas que insistia em dizer que a casa era
diferente da rua. Essa mesma ideia é reconfigurada na contemporaneidade, separando essas duas
esferas embasadas nas noções de tempo – o cotidiano/aventura, aprisionamento/liberdade -
mostrando que as separações entre essas duas esferas somente mascaram a complexidade das
relações familiares e, consequentemente, das contratações de terceiros que adentram o ambiente
familiar. Totalmente inspirada pela ideia de Felki (2000), ainda penso que as reflexões feministas
podem alcançar um estranhamento, ou desconstruções, em relação a maneira como a vida cotidiana
é simbolicamente representada através de pressupostos de gênero; compreender que a vida
doméstica cotidiana pode ser repleta de possibilidades e posicionalidades, requer compreender que
o lar pode ser o espaço das experiências na modernidade. Isso resulta em pensar em formas de
tentar romper com as reconfigurações da cultura doméstica, que se apresenta nesse contexto ainda
preservando as falsas dicotomias entre público/privado e sendo o lugar da infelicidade entediante
das patroas.

58
Eu explorei alguns dos caminhos que a vida cotidiana tem sido conectada com a mulher, sem simplesmente
endossar que as mulheres representam a vida diária. O problema com essa visão, como Lefbvre particularmente
esclarece, e que esta apresenta uma visão romântica da vida cotidiana e das mulheres associando-as com o natural,
autentico e primitivo. Essa nostalgia alimenta uma longa cadeia de dicotomias – sociedade versus comunidade,
modernidade versus tradição, público versus privado – que não nos ajudam a entender a organização social do
gênero e que negam a contemporaneidade das mulheres. Além disso, situar às mulheres as bases da vida cotidiana é
assumir um ideal mítico heroico da transcendência masculina e ignorar o fato de que os homens também são
encarnados, sujeitos incorporados que vivem, na maior parte das vezes, de uma forma repetitiva, familiar e
ordinária. (tradução livre).
149

Como já explicitado anteriormente, a cultura doméstica também vai pautar parâmetros


sobre as percepções sobre o lar, a limpeza, a organização, a intimidade, os afetos e as segregações
e diferenciações entre os sujeitos. Assim, sigo apresentando como ela vem se reconfigurando,
através das narrativas das patroas, em suas relações com as trabalhadoras domésticas remuneradas.

5.2 “EU NÃO TRATO EMPREGADA COMO EMPREGADA” – AS RECONFIGURAÇÕES


DA CONVIVÊNCIA COM A TRABALHADORA DOMÉSTICA REMUNERADA

Compreendo então que as desigualdades geradas entre os sexos nas relações familiares
ainda são suficientemente fortes, trazendo à margem as negociações que envolvem dinheiro e
afetos, posicionando os sujeitos em determinados e tradicionais papéis, lugares e espaços
“aprisionados” pela vida cotidiana, reproduzindo desigualdades de gênero e sustentando
desigualdades étnico-raciais e de classe – por meio da contratação de uma trabalhadora doméstica
remunerada – podemos traçar alguns pontos da reconfiguração da “cultura doméstica”. É
importante dizer que além de construir comportamentos, práticas e noções sobre a organização,
limpeza e culinária de uma casa, a “cultura doméstica” forma subjetividades ligadas ao “familiar”,
que simbolicamente passam a representar o mais íntimo dos sujeitos. (FESKI, 2000). Isso significa
dizer que, dicotomicamente, a esfera privada preserva os afetos, as intimidades, “os segredos”, o
domiciliar essencializado, construindo subjetividades e compreensões de “si mesmo” embasados
por esse contexto.
As patroas dessa pesquisa compartilhavam de uma ideia sobre suas posições enquanto
esposas, mães, donas-de-casa e profissionais que se demonstraram com poucas variações em
relação aos modelos já tradicionalmente estabelecidos sobre o casamento, maternidade e os
“papéis de mulher”. Elas se colocam como as principais responsáveis pela manutenção do lar, pela
organização da vida de cada membro da família e como detentoras dos cuidados, atenções e amor
por todos eles. No entanto, sentem-se aprisionadas por esse espaço, por essas posições e pelas
tarefas domésticas. É importante recorrermos a Costa (2002) mais uma vez, onde a autora nos
remete a ideia dos interstícios, ou os espaços chamados in-between, onde as subjetividades são
construídas por essas ambiguidades posicionais. As experiências múltiplas e conflitantes do sujeito
patroa simbolizam um processo reflexivo entre as representações essencializadas da casa e do lar
conectadas com os cuidados e amores femininos, ao mesmo tempo que escolhem uma vida
150

“moderna” em termos estéticos, profissionais vinculados aos pressupostos dicotômicos do esfera


pública. Nesse complexo jogo reflexivo, as patroas ao sentirem as pressões advindas das
imposições e necessidades da manutenção da casa, não introduzem novas formas de pensar a
relação doméstica e compartilhar as responsabilidades com a sua família, elas repassam todas as
desigualdades geradas pela divisão sexual do trabalho para a trabalhadora doméstica remunerada,
como já extensamente analisado por Ávila (2009). Mas, ao repassar essas responsabilidades elas
enumeram diversas ordens, estabelecem normas, organizam e querem que a trabalhadora
contratada faça tudo impecavelmente, da maneira como elas subjetivamente já pensaram como
deve estar suas casas.
Assim, ao repassar as responsabilidades domésticas para outra pessoa, essas mulheres
passam a se ver e a se posicionar em relação ao seu exercício de poder, instrumentalizando as
subjetividades construídas nos pressupostos de intimidade e de familiaridade. Suely Kofes (2001),
nos apresenta que os mecanismos de diferenciações, que ocorrem constantemente nas iterações
entre patroas e trabalhadoras, são formas de esclarecer as posições, não tornando-as “borradas” ou
hibridas, já que a trabalhadora assume as posições que seriam destinadas as patroas naquela casa.
Para além disso, eu acredito que os pressupostos da “cultura doméstica” estabelecem as interações
entre patroas e trabalhadoras domésticas remuneradas, embasando não somente a organização e
limpeza da casa, a maneira de agir e falar uma com a outra, constituindo parâmetros meritocráticos,
moldando as exigências e ordens, mas também construindo interações que vinculam os cuidados
ao poder, e a própria construção de si mesmas frente as “contradições” narradas: tem seus papéis
enquanto mulheres, mas se sentem aprisionadas neles.
A maior parte das entrevistadas se percebiam enquanto mulheres modernas, que tinham
um trabalho no mercado formal de trabalho, responsabilidades domésticas, educação dos filhos,
mantinham uma programação de viagens e férias com toda a família e tentavam se manter
“informadas sobre o que acontecia no mundo”. Mulheres que se opunham à ideia de ter uma vida
sem movimento, sem liberdade e que o seu tempo fosse de fato produtivo – a compreensão do
sujeito moderno em relação ao tempo e a vida cotidiana, como já analisado por Rita Feski (2000).
Nesse sentido, nada mais “antigo”, “antiquado”, “escravocrata” do que tratar uma trabalhadora
doméstica remunerada mal, com pressupostos racistas e discriminatórios – características que
foram exploradas nos capítulos anteriores. As patroas de hoje também “dão” liberdade para suas
trabalhadoras – “porque eu falei para ela: se sinta em casa, é como se você estivesse na tua casa.
151

Eu não queria tratar ela como uma empregada né.”, como me disse Tereza. Ou, como relatou
Marcela: “era da família, nunca teve essa separação, ah você é empregada... nunca teve isso”.
Afinal de contas, como disse Verônica, “tratar bem a empregada, só isso, é o mínimo esperado”.
A patroa moderna é “humana”, não faz distinções, garante todos os direitos trabalhistas
para a trabalhadora doméstica remunerada e está ciente das críticas que são realizadas às estruturas
do trabalho doméstico remunerado. O capítulo anterior tenta mostrar o contexto de intensas
mudanças sobre esse trabalho no país, dando mais visibilidade para a pauta e a narrativa das
trabalhadoras, consolidando uma legislação mais igualitária e abrindo espaços midiáticos
realmente críticos à forma como o trabalho doméstico remunerado se estruturou no país. Alexandre
Fraga (2016), nos traz em sua tese todas essas transformações que ocorreram no trabalho
doméstico remunerado através dos incentivos de institutos internacionais, um governo que se
mostrou aberto para a demandas políticas dessa categoria profissional, além das reconfigurações
trabalhistas por meio das diaristas. De fato, não podemos pensar que o trabalho doméstico
remunerado manteve-se estático ao longo dos anos, muito pelo contrário, tenho tentado demostrar
que muitos aspectos de mudanças foram se concretizando, principalmente pelas mãos de
trabalhadoras domésticas remuneradas.
No entanto, no discurso das patroas ainda ressoa pressupostos servis, práticas
discriminatórias, relações baseadas em negociações da vida cotidiana e não dos preceitos
legislativos, nas representações e símbolos da casa organizada e limpa, no preparo dos alimentos,
no banheiro bem lavado, na roupa bem passada e guardada, na sujeira que desaparece, no cheiro
de limpeza que fica em cada cômodo dos quartos. Esses discursos muitas vezes apareceram
declaradamente abertos em algumas das entrevistas, e em outras de uma forma camuflada. Assim,
acredito que a resistência em assimilar novas práticas sobre o trabalho doméstico remunerado seja
uma das formas de reconfiguração da “cultura doméstica”, que tenta preservar posições hierarquias
dentro das relações de poder e cuidado, mesmo inserido em contexto “moderno”.

5.2.1 Limpeza e Alimentação: Como Fazer e Quem Pode Comer

A maior parte das patroas entrevistadas eram mães, e me relataram que a contratação de
uma trabalhadora doméstica remunerada se tornou primordial em suas vidas a partir desse
momento. Quando moravam apenas com seus maridos, elas mesmas se responsabilizavam pela
152

limpeza e organização da casa “chamando” uma diarista esporadicamente. Muitas delas não
conviveram com uma trabalhadora doméstica remunerada ou babás na casa de seus pais,
estabelecendo esse convívio depois de casadas e com a demanda dos cuidados de filhos e filhas,
quando ainda pequenos. De acordo com elas, a rotina familiar muda drasticamente com atenção e
cuidado que os filhos e filhas necessitam, não conseguindo manter a mesma qualidade da
alimentação, limpeza e em suas posições no mercado formal de trabalho, necessitando de alguém
que pudesse ajudá-las.

Thays: Você contratou uma trabalhadora doméstica quando você casou?


Leila: olha, quando eu casei não porque eu morei aqui com a minha mãe. Aí eu fui para
o apartamento, como eu trabalhava a vida inteira, então eu sempre tive que ter empregada.
Quando as minhas filhas eram pequenas o fluxo de empregada era muito grande porque
como tinha três filhas pequenas e eu não conseguia pagar muito e elas tinham que fazer
todo o serviço e ainda... é, daí, ficava difícil né. Então era muito difícil parar as
empregadas na minha casa porque, filhos, eu tinha que sair para trabalhar e elas não
venciam as coisas e se mandavam. (risadas).
(entrevista 13, Leila, 64 anos, 2015)

De acordo com elas, a vida com apenas adultos compartilhando o mesmo lar é mais
dinâmica, não precisando ter horários fixos para as refeições, nem estas serem necessariamente
saudáveis, com variedades – “adulto se vira com um sanduíche, com uma pizza, sai para comer”,
como Flávia me exemplificou. O cuidado com os filhos também abarca o tempo gasto ao dar
banho, lavar mais roupa, “deixar pronto para ir para escola”, além da bagunça adicional da casa
com brinquedos, material escolar, etc. Algumas patroas me relataram que esse foi o momento
crucial para a contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada e a possibilidade de não
contar com essa outra mulher em casa era apavorante para algumas delas, ou quando havia uma
rotatividade de trabalhadoras que passavam por suas casas, gerando estresse de tentar achar alguém
ideal que “desse conta da rotina”.
De acordo com Dominique Vidal (2007), a classe média brasileira muitas vezes justifica a
contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada porque não pode contar com uma boa
infraestrutura estatal em relação a creches, escolas, saúde pública, espaços públicos com
segurança, etc. como nos países europeus ou como nos Estados Unidos. Mas como lembra o autor,
é justamente essa classe que não acessa esses serviços públicos e que se alia ao pensamento político
de privatizações como saída para encontrar uma boa qualidade nos mesmos, distinguindo-se como
153

a classe que gera o desenvolvimento do país e que se enxerga como parte de uma elite, não
ocupando os mesmos espaços que o restante da população. Para Vidal (2007), esses seriam
discursos contraditórios que camuflam as justificativas para as desigualdades de classe.
De fato, o Brasil não oferece uma gama de serviços estatais de qualidade para toda a
população, dificultando enormemente diversos setores econômicos e principalmente a entrada de
mulheres das classes mais populares no mercado formal de trabalho, ampliando uma rede de
cuidados parental feminina – avós que cuidam de netos, tias e madrinhas que se responsabilizam
pelas demandas de sobrinhos e afilhados, vizinhas que agrupam várias crianças para levar a escola,
etc. (FONSECA, 1998). Todavia, como venho tentado demostrar, me aproximo da interpretação
de Dominique Vidal (2007), que a contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada é uma
forma de se perceber enquanto uma classe social distinta, pois a não realização do trabalho
doméstico ou não se ocuparem das tarefas mais pesadas no cuidado das crianças são formas se
diferenciar enquanto classe média – demostrando um aspecto de uma reconfiguração da “cultura
doméstica”.
Por outro lado, não posso deixar de notar que essas mulheres se posicionam como as
principais responsáveis pelas demandas da casa, e a chegada de filhos realmente traz uma
sobrecarga de trabalho que as limitam em seu cotidiano. A “ajuda” contratada então é um escape
da desigualdade gerada pela divisão sexual do trabalho e também uma forma de se posicionar,
enquanto uma mulher de classe média, frente as novas exigências que a casa produz na rotina
familiar.

Dinorá: Aí eu cheguei aqui em Curitiba, aí nasceu a minha filha e aí eu não tinha ninguém.
Aí eu estava, eu cuidava dela e tal e foi se tornando uma coisa um pouco mais pesada,
porque eu não tinha mãe né, até para me explicar, até para eu passar o domingo, tomar
um café, nem isso. Então depois eu fiquei a espera do segundo filho e daí arranjei uma
pessoa para me ajudar, mas não dormia na minha casa e vinha também por dias aqui e tal.
Depois arranjei o terceiro filho e daí já depois do terceiro e tal, procurei uma pessoa que
já estivesse para me ajudar porque já era e logo veio a quarta, então eu precisava de
alguém. Então aqui em Curitiba foi muito interessante porque todas as pessoas que eu
tive na minha casa eram polacas, polonesas. Todas!
(entrevista 7, Dinorá, 80 anos, 2015)

Se a chegada dos filhos e filhas traz novas e mais pesadas demandas na rotina do trabalho
doméstico, esses passam ser igualmente mais um alvo de vigilâncias e exigências em relação a
limpeza, organização e preparo de alimentos. E é justamente nessa parte onde as narrativas sobre
154

a “falta de profissionalismo”, as falhas, as constantes reclamações, os motivos de desgaste, de ter


que se impor enquanto patroas, de frustrações de expectativas, de motivos para demissões e de
negociações (inclusive de direitos trabalhistas) aparecem. A limpeza é o ponto crucial para saber
se uma trabalhadora doméstica remunerada é realmente boa ou não, é necessário enxergar a
limpeza, sentir o cheiro de limpo, estar tudo no lugar, guardado, passado, feito no capricho,
deixando os detalhes impecáveis, fazendo tudo da forma mais higiênica possível.

Thays: assim, quais são as principais qualidades que você vê numa trabalhadora
doméstica?
Patrícia: capricho, principalmente o capricho. É, atenciosa com as pessoas da casa e
principalmente idosos né, essa moça aqui é tudo de bom ela cuida da minha mãe quando
é preciso, é, ela é caprichosa. Ela é tudo de bom.
Thays: e o que é essa coisa de caprichosa?
Patrícia: capricho? É fazer, é enxergar a sujeira né, porque tem umas que só limpam por
cima. Ela vai, fuça, tira pó, levanta a cortina e faz de tudo. Ela é bem boazinha.
(entrevista 3, Patrícia, 68 anos, 2015)

As excessivas ordens de limpeza e os padrões estabelecidos para saber se uma casa está
realmente limpa ou não – limpa-se o invisível, como já nos apontou Brites (2000) – são as
características que mais se conectam com os pressupostos construídos pela “cultura doméstica”.
Quando se trata desse aspecto, são poucos elementos de fato reconfigurados, pois eles ainda
permanecem em uma compreensão “dura” sobre as práticas que devem ser realizadas na limpeza
e organização de uma casa. E muitas vezes estende-se a imagem de fazer da forma higienicamente
certa à trabalhadora doméstica remunerada, sendo percebidas como “porcas”, “sujas”, sem noção
de limpeza quando não estão dentro dos padrões imaginados e construídos.

Thays: quais as principais falhas que você considera em uma trabalhadora doméstica?
Que você vê e pensa: ah, não vai mais poder ficar aqui em casa.
Flávia: Ai, falta de higiene né. Porque ter, já vi várias vezes, é, lavar pano de chão com
pano de cozinha. Essas coisas, é, sabe? Logo no começo eu falava muito pra, porque
quando a babá veio a babá era filha da Dona Sônia, então a Dona Sônia tinha, acho, que
uns dois meses aqui na minha casa. Aí eu precisava de uma pessoa para cuidar do Daniel
que eu estava voltando a trabalhar, e ela falou: eu tenho a minha filha. Então enfim veio
a filha, e eu sempre falava para ela: “Josi, olha, o que é de banheiro é banheiro, o que é
de cozinha é de cozinha, você nunca pode misturar uma coisa com a outra. Pano de
cozinha é pano de cozinha, esponja que lava cozinha não pode ir no banheiro”. Então, eu
sempre falava as coisas assim, sabe? Meio que marcava, olha: escova de banheiro, escova
de cozinha para não misturar. Então isso também é uma coisa importante. Sabe, ela é
bem, ela é limpinha também.
Thays: uhum.
Flávia: ah, porque funcionário fedido também não dá né.
155

Thays: uhum.
Flávia: e gente que mistura, deixa pano de louça, pano de chão, lava calcinha com pano
de prato? Também não dá. Aqui na minha casa é tudo separado, então ela lava tudo que
é de cozinha, pano de mão, pano de louça, lavo, toalha de mesa essas coisas não tem
problema. E roupa tudo separado, roupa de adulto lava separado de roupa de criança, que
lava separado de roupa de bebê. Que eu expliquei para ela: “olha Dona Sônia, adulto tem
algumas coisas que não pode misturar com roupa de criança, não pode misturar nem
toalha, e nem as roupas do Daniel podem misturar com as roupas da Alice, porque o
Daniel é uma criança que tem seis anos, põem a mão na boca, põem a mão no pipi e não
lava a mão, faz pouco tempo o Daniel estava com vermes, não dá para misturar com as
coisas da Alice porque ela é um bebê. Então, lava tudo separado e ela tem um...
Thays: tudo separado...
Flávia: tudo separado. Então isso é bem importante assim que eu vejo dela. Ela tem uma
organização higiênica lógica dela né para fazer as coisas.
(entrevista 4, Flávia, 38 anos, 2015)

As patroas entrevistadas não só gostam de ver a limpeza, sentir que a casa passou por uma
transformação higiênica enquanto elas não estavam lá, como também precisam saber se essa
limpeza foi feita da forma mais organizada, separada e “higiênica” possível. Lavar as roupas de
adultos, crianças e bebês em separado é triplicar o trabalho de quem faz, aumentar a vigilância
sobre o trabalho e estipular padrões de higiene que se são formas de controle, de exercício do
poder. Além disso, elas querem ver os lugares não visíveis limpos, as gavetas que não são usadas,
os armários que dificilmente são abertos, o cantinho atrás do sofá que só aparece se o sofá for
mudado de lugar, até o teto precisa ficar livre da sujeira, absolutamente tudo precisa estar
impecavelmente limpo, desinfetado e sem pó – mesmo que não seja usado, que não faça parte dos
espaços ocupados cotidianamente e que sejam “invisíveis”.

Thays: Aham, e assim, é... que que você compreende assim como falhas das
trabalhadoras... das trabalhadoras domésticas assim? Alguma coisa que acontece e você
fala “ah, não dá pra ficar aqui em casa mais”?
Angélica: É, no início é tudo perfeito né, que nem diz, vassoura nova varre uma beleza,
mas depois elas vão... elas são... que nem a última, paninho no banheiro, banheiro tem
que se lavar, cozinha lavar né, não tem... então mas elas vão relaxando assim né, eu acho
que vai pegando a confiança e vai empurrando com a barriga... eu não gosto de falar, eu
acho assim, eu tenho meu trabalho eu faço bem feito, então eu sei que eu tenho que
responder aquele e-mail daqui a cinco minutos, então eu sei que eu tenho que fazer aquilo,
então a partir do momento que a diarista, empregada chegou, ela tem que fazer bem feito
o que é pra ser feito, então é aquilo, ultimamente a... o banheiro, o banheiro tem que ser
lavado, não passado o pano e jogado Q-boa né, isso aí a gente faz quanto tá com pressa,
passa um paninho ali e boa... lavar banheiro, cozinha, né, é... tirar uma teia de aranha,
você tem que estar pedindo, não tá visível, mas tá ali, ela... se você não pedir ou deixar
escrito não faz, então passa batido, então, quer dizer, a gente tem que chegar, olhar, não,
tem que fazer isso e isso, e eu não gosto de ficar mandando, acho que a pessoa tem que
se... ah, ela é empregada, ela tem que fazer o que ela se propôs a fazer né...
Thays: uhum
156

Angélica: Eu dispensei, agora eu tô entregando aqui, tem coisa assim, isso aqui, por
exemplo, eu puxei aqui, não tinha condições, daí ó... onde olha aonde... eu mesmo
esfregando sabe... então tipo assim, elas limpam hoje aonde é visível, então esse aqui é
visível que eu abria toda hora, limpava, mas aquele ali que vai atrás, em cima, não. Então
que ótimo, eu vou tá subindo, tal, vi sujeira ali quase...
Amiga de Angélica: E você não vai ficar fiscalizando, entendeu?
Angélica: Entendeu? Então tipo assim, elas fazem aonde você... pá... enxerga. Aí se tiver
uma teia de aranha aqui atrás, já era, fica a teia de aranha. Então hoje em dia elas estão
bem assim né, qualquer uma hoje em dia, ah sou diarista, né, tá precisando de uma grana,
ah vou ser diarista, doméstica, mas...
(entrevista 11, Angélica, 40 anos, 2015).

Cozinha e banheiros são os cômodos para os quais mais se exige uma limpeza e higiene
redobrada. Possivelmente porque nesses espaços o trânsito de pessoas é maior, o banheiro é o
espaço da limpeza dos corpos, então este não pode conter o resto de gordura corporal, pelos,
cabelos, unhas, lixinho retirado cotidianamente, além do depósito das roupas sujas. O banheiro
não pode ser simplesmente limpo, ele tem que ser lavado. Isso significa que todo o espaço, paredes,
chão, box, pia, torneiras, vaso sanitário, espelhos precisam ser esfregados com água e sabão,
desinfetado com água sanitária, passar produtos de limpeza com cloro, álcool, desinfetantes,
sapólio, enxugar e finalizar com um produto aromático. De acordo com Alyne Landim 59 – dona
do blog chamado “Coisas da Alyne” – esfregar o box seco com a esponja de aço ainda seca, é uma
das formas mais eficientes para começar a limpar o cômodo, é preciso primeiramente então passar
“em todo o box, onde estiverem as machas, marcas de gordura, respingos d’água, de shampoo, etc.
[...] O que acontece? Toda a sujeira e gordura, vai aderindo (grudando) à esponja de lã de aço e o
vidro vai ficando limpinho e transparente. [...] Após fazer isso, enxague bem, inclusive os rejuntes
abaixo do box, porque fiapos de lã se soltam e se ficarem ali, irão enferrujar e manchar seu piso.”
(LADIM, 2014). Todos os detalhes de como limpar cada parte específica do banheiro é
minuciosamente explicada no blog.

59
Alyne Landim é proprietária do blog chamado “Coisas da Alyne”, ela posta dicas sobre limpeza e organização da
casa, vida financeira, cuidado com filhos, receitas culinárias, produtos e dicas de beleza para as mulheres. Seu
público alvo são as donas-de-casa. Ela se apresenta como uma “pessoa que nasceu para ser mãe e cuidar da família”.
Ela também acredita que a “mulher tem esse dom de dar conta de tudo e transformar a casa num lar”. Alyne é mãe
de dois filhos (Victor de 14 anos e Isabelly de 10), e esposa do Eduardo. Informações retiradas de: <
http://www.coisasdaalyne.com.br/p/alynelandim.html>. Acesso: 31/01/2017
157

FIGURA 6 - POST DE ALYNE EM SEU BLOG (COISAS DA ALYNE) SOBRE OS PRODUTOS DE LIMPEZA
USADOS NA LAVAGEM DO BANHEIRO.

Fonte: Coisas da Alyne. Produtos de Limpeza para o Banheiro. 3 dez. 2014

A variedade de produtos de limpeza utilizados para “verdadeiramente” higienizar o


banheiro também é um veículo de vigilância e observação das patroas. O mercado oferece uma
gama de possibilidades de desinfetantes, sabão, soluções aromáticas, etc. Afinal de contas, a
limpeza não produz necessariamente cheiros e odores, a tão famosa e desejada sensação de
“cheirinho de limpo” advém dos produtos utilizados para a limpeza. Assim, a multiplicidade usada
destes para a higienização do banheiro não se faz coerente muitas vezes, levando em consideração,
por exemplo, que o “Veja X-14” (um produto específico para a limpeza de banheiros) tem a mesma
composição química que a Q-boa, a diferença é a inserção de aromatizantes60, ou seja, o cloro
ativo vai eliminar o mesmo limite das sujeiras e germes do espaço. O consumo de produtos que
visam uma higienização e limpeza muitas vezes se caracterizam por ideias ilusórias sobre a sua

60
Informações retiradas do site oficial de cada produto:
http://www.vejalimpeza.com.br/produtos/banheiro/?gclid=CjwKEAiAq8bEBRDuuOuyspf5oyMSJAAcsEyWi_UqH
e2Pvox8gs_cmNXhobqP5xlMzilmlOP_IFcwpRoCjFrw_wcB e < http://www.qboa.com.br/produtos-
interna.php?id=4&titulo=%C1gua%20Sanit%E1ria> . Acesso: 31 de jan. 2017.
158

real eficiência, como comprovado por Camargo, Schim et al. (2013), que os níveis de bactérias
que se proliferam em uma escova de dente convencional é a mesma de uma escova de dente
antibacteriana. Nesse sentido, a compreensão sobre a limpeza e a forma como ela deve ser
realizada ainda preservam as características da “cultura doméstica”, é necessário limpar o que não
existe, com produtos que não cumprem com as exigências estabelecidas sobre o nível de
higienização necessária e impõem separações e diferenciações através de atributos como “sujo”,
“impuro”, “contagioso”. (DOUGLAS, 1976).
No clássico livro de Corbin (1987) sobre odores e sabores e as transformações sociais e
históricas em relação a estes, o autor expõe que no final do século XVIII, a construção do espaço
privado foi de suma importância para idealizar o sujeito individualizado, o “eu”. O espaço privado
e intimo também passa a ser o lugar de “esconder” ou “reservar” os odores íntimos, o ato de defecar
e seus cheiros provenientes passam a ser delimitados longe da cozinha e da sala de receber as
visitas, por exemplo. Mas "o fato de que os odores do eu tenham sido mais bem definidos, mais
intensamente ressentidos, só fez estimular a repulsa contra os odores do outro", contra o "cheiro
da multidão e suores nos lugares apertados do espaço público" (GOMES, p. 85). E aqui se tem
início a etapa da insularização dos odores pessoais na qual estamos inseridos (GOMES, 1988, p.
262).
É importante lembrar que a maior parte das casas, das quais fiz a pesquisa, tinha mais de
um banheiro e todos tinham que ser limpos e desinfetados da mesma forma. A limpeza do banheiro
é imprescindível para as patroas que entrevistei, é onde elas podem ver se a trabalhadora doméstica
remunerada é de fato “boa” e “eficiente”, se retira todas as sujeirinhas e “lodos” dos rejuntes, se
não tem um pelo ou fio de cabelo no azulejo, se a torneira está brilhando, se foram jogados
suficientemente os produtos – não podem ser usados em demasia e nem em extrema economia-
para matar os germes que se instaram no vaso sanitário, box e pia. Há uma idealização da limpeza.

Thays: É, porque hoje em dia... e quando você pensa em contratar alguém pra trabalhar
na sua casa, quais as expectativas que você tem sobre esse trabalho, o que que você deseja
encontrar nessa contratação?
Nara: Pois é, perfeição. (risos).
Thays: O que que é a perfeição pra você, me fala?
Nara: Perfeição... que a empregada venha na casa da gente e faça tudo, assim, um serviço
de primeiríssima, assim, infelizmente não acontece.
Thays: Como que seria esse serviço de primeiríssima assim?
Nara : Assim, olha, por exemplo, você fazer uma limpeza e aparecer que foi limpo, sabe,
que eu cansei de levantar a noite jogar água no banheiro, porque ela jogava tanto sabão
159

que aí você toma banho aquilo fica cheirando sabão assim, então muitas vezes eu tive que
levantar pra lavar o banheiro, pra tirar aquele cheiro de sabão assim, então é assim, mais
qualidade no trabalho sabe.
(entrevista 8, Nara, 59 anos, 2015)

A cozinha, por sua vez, é o espaço da higiene, dos cuidados extras com a alimentação e um
lugar de segregações e diferenciações. Uma cozinha limpa é caracterizada, de acordo com as
patroas, pela louça lavada, seca e devidamente guardada, a pia sem sujeiras e seca, os armários
organizados e sem poeira, saber lavar os panos de prato adequadamente, geladeira limpa e
organizada, e assim como o banheiro este cômodo também deve ser lavado, porque é assim que se
retira a gordura do fogão, do chão, das paredes. A limpeza da cozinha também é alvo das mais
minuciosas vigilâncias, pois a comida não pode ser preparada em um lugar “sujo”, “mal
arrumado”, “engordurado”, “com mofo”, pois as refeições podem ser contaminadas. Os germes
precisam desaparecer.
Apesar das exigências sobre os aspectos da limpeza da cozinha serem tão altas quanto do
banheiro, o que as patroas entrevistadas mais listavam como pontos de ruído nas relações com a
trabalhadora doméstica remunerada era a parte do preparo dos alimentos. Muitas reclamavam que
não encontravam mais trabalhadoras dispostas a cozinhar e isso era o grande desafio atualmente,
já que o tempo para cozinhar todos os dias era elevado e elas precisavam de alguém que pudesse
suprir essa necessidade. Cozinhar e cozinhar bem, com variedade no cardápio, com higiene,
usando toucas e garantindo a nutrição dos membros da família ainda é uma atividade
compartilhada entre patroas e trabalhadoras domésticas remuneradas, pois a patroa precisa
comprar verduras, legumes, carnes, grãos, farinha, formas e panelas específicas para que a
trabalhadora execute o seu trabalho da melhor forma possível. Essa exigência saudável do
cotidiano alimentar foi visto, principalmente, com as patroas que tinham crianças.

Thays: Você acredita que o fato de ter filhos exige mais também da casa?
Flávia: com certeza. Porque assim, a gente se vira. [...] A criança não, você tem que ter o
almoço, você tem que ter a salada, e você tem que ter a variedade, aqui também a gente
tem uma logística de comida, sabe? A gente tem e a Dona Sônia também tem isso. A
gente compra feijão, compro feijão branco, grão de bico, eu compro lentilha, ervilha.
Então ela faz uma variedade, cada dia é um tipo de grão. Então a gente tem mais qualidade
comendo em casa. Então cozinhar também é fundamental, ela cozinha e cozinha bem.
Thays: é, isso é...
Flávia: isso é importante. A cozinha eu acho que é uma das coisas que mais pega. Porque
diarista você consegue se virar, lavar, passar, joga a roupa na máquina, dá uma limpada
mais ou menos. Mas cozinhar é difícil. Hoje eu fui em um quilo almoçar e gastei 100
reais.
160

Thays: muito caro.


Flávia: Não faz sentido. Então, cozinhar...então, voltando lá para trás cozinhar é mais
importante. (risadas). Não falar, ser pró ativa e cozinhar. E é difícil gente que cozinha.
[...] e ela ainda faz pão, ela faz coxinha, outro dia ela fez um, ela faz com a minha mãe
massa de lasanha, então ela faz assim sabe? Não é só o arroz e feijão e a verdura, sabe?
Ela faz outras coisas, ela fez coxinha de mandioca com recheio de carne de porco. Nossa,
ficou espetacular. Então, além de cozinhar ela cozinha bem.
(entrevista 4, Flávia, 38 anos, 2015)

Uma comida tradicionalmente conhecida como saudável para essas mulheres, é poder ter
na mesa, todos os dias, pelo menos arroz, feijão, carne e salada. Uma refeição que já incorporada
no cotidiano das famílias, mas que demanda muito tempo no preparo e nas variedades. Muitas
vezes as patroas me diziam que cozinhar a mesma comida todos os dias era extremamente
cansativo, utilizando da cozinha somente quando querem fazer algum prato diferente, mais
elaborado ou nos finais de semana. Outras me confidencializaram que o principal motivo de ainda
ter a contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada era porque “alguém” tinha que
cozinhar, manter a rotina dos alimentos em casa, com temperos caseiros, com a mesa bem servida.

Thays: ela é bem próxima, e assim, pensando no seu dia a dia, você se imagina sem uma
trabalhadora doméstica?
Júlia: hum, é, é....o que me atrapalha assim é a coisa da comida, por exemplo, eu poderia
sair e comer fora todos os dias. Mas eu tenho duas filhas, tanto que esses dias a Carol
falou, eu fui numa consulta e ela foi junto comigo – “ela podia sair e dizer: vão, se virem
e almocem’ – mas tem que ter essa coisa do almoço, essa é uma coisa que tá assim, tem
que ter o almoço...
Thays: entendi, e fazer almoço todo dia é...
Júlia: é, se elas saíssem eu poderia fazer por dia. É muito fácil você reclamar da pessoa
que trabalha lá. Eu vejo, eu por exemplo, faço arroz, feijão, carne e farofa todo o dia
(risadinha). Então, primeiramente tem que treinar né, treinar a pessoa, porque eu acho que
pegar uma pessoa que é nova naquilo que está fazendo é muito diferente né, essa coisa da
cozinha tem que ensinar.
[...]
Thays: E assim, por exemplo, você vê problemas da Rosana dormir na sua casa?
Júlia: eu não tenho espaço. Eu não quero mais pessoas dormindo, eu se eu tivesse
morando sozinha eu acho que não ia precisar de empregada mesmo. O meu problema é o
almoço, aí todo mundo fala, a Érica fala: não vai ficar desesperada porque não tem
almoço. Mas a qualidade do almoço é outra.
Thays: é diferente
Júlia: eu não sei como eu vou me adaptar a isso...
Thays: é, é difícil a comida da casa e a comida do restaurante...
Júlia: Não, é boa a comida do restaurante, mas eu gostaria de ter pelo menos essa
possibilidade, porque não é uma coisa assim, eu vejo que...que dia? Segunda feira?
Não,foi ontem né. “Então vamos comprar”, aí foram buscar um frango (risadinha), mas
tem o tempero diferente, era frango assado, tinha aquelas marmitas na mesa. Mas não é
uma coisa que me deixa...satisfeita sabe? Eu faço isso mais para...ou operacionar o que
está acontecendo..
(entrevista 2, Júlia, 62 anos, 2015)
161

As patroas entrevistadas que não tinham uma trabalhadora doméstica remunerada que
cozinhasse todos os dias, onde elas mesmas preparavam os alimentos, me contaram que
estabeleciam uma dinâmica mais flexível em relação à comida, não exigindo de si mesmas ter a
variedade e qualidade sempre à mesa. Não foram todas essas mulheres que tinham uma relação
tão exigente com a alimentação dos membros da família, algumas já tinham instituído novos
hábitos alimentares, não se importavam em comer fora e nem de dar “bobagem” para os filhos e
filhas. Essa talvez seja uma das faces de reconfiguração do que tenho chamado do “cultura
doméstica” – algumas patroas não sentiam que as refeições precisavam ser feitas com tanta
variedade, cozinhando apenas um prato, não se mostrando dispostas a fazer um “banquete”, seja
porque não tinham tempo ou seja porque não gostavam. No entanto, ainda se colocavam como as
principais responsáveis pela ordem culinária, comprando os alimentos, pedindo um cardápio mais
variado para a trabalhadora doméstica remunerada ou cozinhando.

Thays: e a cozinha, como que você... você cozinha todo dia?


Tereza: Eu cozinho quase todos os dias, porque eu venho da faculdade e dou comida pras
crias né. Aí eu tenho... eu praticamente todos os dias.
Thays: E você cozinha... aquela comida, arroz, feijão...
Tereza: Aham. Batata, macarrão... macarrão nem sempre, porque daí quando faz
macarrão é só macarrão... (risos)... todos os dias...
Thays: E é a trabalheira na cozinha...
Tereza: Sabe que hoje tá muito prático né, eu sou bem prática, tipo assim, tem a minha
panela ali elétrica, que eu ponho meu arroz, tem a fritadeira lá que eu ponho ali, já a
cumbuca de feijão já tá ali... e uma saladinha, pronto... quentinha, quinze minutinhos,
entendeu? Tchu, tchu, tchu, tudo rapidinho. Não é tipo assim, hoje... é aquilo, hoje em dia
está mais fácil, porque antes a pessoa tinha que ficar cuidando, vai queimar...e tu sabe que
quando eu casei com o pai do Thiago, tinha que ter feijão, arroz, macarrão, carne, salada,
batata, era uma coisa, tipo 22 anos atrás, porque ele vinha de uma criação assim que tinha
que ter todos os dias isso, e se eu fosse todos os dias na casa da minha ex... da falecida
ex-sogra, você ia encontrar todos os dias, e ainda ia ter coxinha frita, quibe, tudo quanto
é coisa, e tudo fresquinho.
Thays: Todo dia assim, hoje está mais dinâmico.
Tereza: Com certeza, tá muito mais prático. Ainda bem.
Thays: É, cozinhar é muito trabalho...
Tereza: Ainda bem, nossa... eu só não sou muito daqueles... daqueles congelados que vai
no micro-ondas, eu tenho impressão que vai muito sódio, muito produto químico, mas se
fosse depender disso, depender desses... até isso facilita né, a gente não tem, as pessoas
cozinham na tua casa pra 30 dias, você deixa tudo congelado, todo dia você vai lá e
descongela.
Thays: Mas por exemplo assim, vocês que tem filha com 10 anos assim, a comida dela
tem que ser diferente?
Tereza: A minha filha não é de comer muito, mas eu forço, que nem hoje eu fiz um
feijãozinho, então, ela prefere bobageira, então se falar hoje eu não estou a fim de fazer
almoço, vamos no Habib’s, oba, mas tipo, eu forço comer arroz e feijão, ela não é muito
162

de salada, então tipo, ah, hoje foi couve-flor com queijo entendeu, mas tudo básico
assim...
(entrevista 1, Tereza, 40 anos, 2015)

Se o ato de cozinhar são tarefas primordiais para as patroas, tanto no fato de se


responsabilizar por fazer, comprar os alimentos e gerenciar o seu preparo pelas mãos das
trabalhadoras domésticas remuneradas, mostrando características, símbolos e representações da
“cultura doméstica” e como ela pode se reconfigurar nas dinâmicas familiares contemporâneas, é
a comida que também é utilizada como alvo de diferenciações camufladas por essas mulheres. Há
duas “regras” em relação a esse aspecto: patroa não cozinha para a trabalhadora doméstica
remunerada e trabalhadora não pode comer tudo que tem na casa. Essas são as formas de se
diferenciar enquanto classe, enquanto mulheres não iguais, enquanto alguém que precisa servir e
outra que precisa ser servida. No entanto, como já mencionado anteriormente, separar comida, não
chamar a trabalhadora para se sentar à mesa e comer as refeições junto com a família empregadora,
não oferecer o que ela mesma cozinhou não são práticas ditas “modernas”. Essas patroas não
querem ser vistas como as mulheres que tratam mal, com desrespeito, que enxergam a trabalhadora
como inferior, isso é “antigo”, “antiquado”, “escravocrata” e elas não querem ser vinculadas a
imagem de reprodução de desigualdades.

Cláudia: Depois eu também tive uma outra doméstica que também morava em Rio Branco
do Sul e agora que eu estou lembrando, mas essa era muito...eu não gostava dela porque
ela era muito respondona. Sabe, ela brigava comigo, ela pegou tanta liberdade comigo
que um dia que eu estava em casa, acho que era férias, e ela estava limpando e eu também
comecei a fazer umas arrumações no quarto e tal, ela chegou para mim e falou assim,
nunca esqueço disso, fiquei tão ofendida, ela chegou para mim, pôs a mão na cintura e
falou: “será que eu vou ter que ir na esquina almoçar? Porque estou vendo que nessa casa
não tem comida hoje”. (risadinhas). Ela falou desse jeito comigo e eu fiquei assim tão
murchinha, fiquei acabada, corri para a cozinha e fui fazer alguma coisa para ela comer,
porque eu nem tinha me dado conta que ela poderia estar com fome né, ela já tinha
trabalhado um monte e eu não. Eu não estava com fome, mas ela estava. (risadinhas).
(entrevista 6, Cláudia, 59 anos, 2015).

Como demostrado por Cláudia, a pergunta da trabalhadora doméstica remunerada a


ofendeu, ela não se sentia confortável em estabelecer esse tipo de diálogo e nem em se
responsabilizar pela alimentação dessa trabalhadora. Mas afinal de contas ela fez, ela foi até a
cozinha e preparou algo para elas comerem, mesmo não estando com fome e mesmo não querendo
cozinhar. O “problema” foi resolvido – a trabalhadora doméstica não estava mais com fome – mas
163

Cláudia não deixou de se ofender com aquele ato, com a pergunta, com fato de te que ir para
cozinha e cozinhar para a pessoa que estava limpando a sua casa. São esses aspectos de
diferenciação “veladas” que eu tenho compreendido como formas de reconfiguração da “cultura
doméstica”, se antes essas diferenciações eram totalmente óbvias e claras nessa relação
empregatícia, hoje elas tomam contornos mais minuciosos para que as estratégias de
posicionalidade dos sujeitos não sejam tão violentas. Assim, muitas vezes, as patroas me relataram
que elas são boas, mas que a trabalhadora doméstica remunerada também tem que ter noção do
que ela pode e não pode fazer, pode e não pode comer, pode e não pode estar. Se ela já sabe onde
se posicionar, a patroa não precisa agenciar esses mecanismos velados de diferenciação, “eu falei
para ela comer, mas ela não quis” – como disse Helena. Dessa forma, essa relação continua sendo
desigual, mas com uma narrativa que nada mais é igual como no passado, porque elas estão
fazendo a sua parte e respeitando a vontade da trabalhadora.

Flávia: assim, eu não sei assim, que, a funcionária, funcionária não, a Dona Sônia, ela não
almoça comigo porque ela não quer, sabe? Não é porque eu não tenho assim, eu não gosto
que ela sente na mesa comigo. Eu chamo: Dona Sônia. Apesar que a nossa mesa é super
pequena, não cabe ela. Mas as vezes, a, veio aniversário do Daniel que eu tenho parente
e recebo as pessoas, a gente faz um almoço – Dona Sônia, senta para almoçar – a Josi,
todo mundo. A gente nunca fez assim, distinção de coisas - olha Dona Sônia, isso, isso a
senhora não faz – e a Dona Sônia é uma pessoa que tem noção, sabe? Que nem assim, eu
compro uma caixa de...vou falar, o Daniel gosta de uma fruta diferente, ela vê que são
frutas diferentes e ela tem noção que é para o Daniel. Ela não vai lá comer a caixa de
cereja.
Thays: entendi.
Flávia: eu compro banana, maçã, é, as outras frutas, ela come as outras frutas. Ela não vai
lá comer o que é do, ela percebe que foi comprado para a criança, sabe? Do mesmo jeito
as outras coisas, então ela é uma pessoa que tem muita noção.
(entrevista 4, Flávia, 38 anos, 2015).

As cerejas são caras, são especiais, são frutas diferenciadas e por isso que somente as
pessoas da família “podem” comer. Esse tipo de diferenciação é facilmente encontrado nas
residências em que fiz a pesquisa e, inclusive, foi uma das cenas do filme “Que Horas Ela Volta?”
– o sorvete importado era de Fabinho – mostrando que essa realidade pode ser uma constante nas
casas onde há uma contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada. Muitas vezes essas
práticas são justificadas através do discurso que em empresas, no mercado formal de trabalho os
funcionários também não comem juntamente com seus chefes, ou não comem a mesma refeição
que seus superiores, assim essa lógica seria totalmente compreensível, já que os empregadores não
164

teriam que compartilhar suas refeições com a trabalhadora contratada. Ao mesmo tempo, o
discurso de que a casa não é uma empresa e que arcar com todos os direitos trabalhistas é
demasiado para uma família é amplamente usado pelas patroas, mostrando as dificuldades em
manter essa contratação trabalhistas de acordo com os parâmetros legislativos. Os discursos são
acessados e manipulados para que a ordem hierárquica permaneça nas casas, usando os
pressupostos do mercado formal de trabalho para que as diferenças sejam mantidas e trazendo à
tona as dicotomias público/privado para os interesses das posicionalidades dos sujeitos.
Outra característica usada em relação a comida e formas para estabelecer diferenciações
com as trabalhadoras domésticas remuneradas é modo de se pensar as compreensões de “sujo”,
“impuro”, “fedorento”, “nojento”. Como já citado anteriormente, algumas vezes a ideia de sujeira
se vincula à trabalhadora e logo o que ela prepara, o que ela toca e o que ela faz também se torna
“sujo”, “nojento” e passa a não ser mais acessado pelas empregadoras.

Helena: ah, então. Que a funcionária vai, pega o cigarro dela e fica lá fumando - Ah, mas
Rê - e diz que bisbilhotando sabe. Aí o que ela falou, ela falou assim para ela. Não, um
dia, ela apagou o cigarro e o que ela falou mesmo? Foi um troço tão horrível, é, como que
é? (5 segundos me silêncio). Aí não sei que expressão que ela usou, mas acho que ela
falou assim, alguma coisa do tipo: vou cagar. (risadas). Você sabe, fumando e disse: eu
vou cagar. Eu só sei que a minha prima ficou assim (fez cara de assustada). Ela disse que
depois daquele dia ela ficou com tanto nojo dela, que nunca mais comeu a comida dela.
Aí ela não deixa a mulher cozinhar. E não deixa a mulher cozinhar para os filhos dela, aí
ela fica louca porque ela faz tudo e ainda tem que cozinhar.
(entrevista 9, Helena, 34 anos, 2015)

O relato de Helena nos remete a obra de Corbin (1987), em que o autor conectava a ideia
da purificação dos odores, cheiros com os comportamentos sociais através da classe social, onde
as elites passaram por um processo de segregação dos espaços e lugares com mal cheiro, o
saneamento básico passa a ser uma arma do Estado e começa a se criar uma ideologia política
frente aos odores que vinham das ruas, multidões, lixos, muretas, cemitérios, até os cheiros dos
corpos dos trabalhadores que produziam suor, não tinham acesso aos meios de higienização, etc. .
“Sem dúvida, o primeiro grupo a manifestar náuseas em relação a este tipo de comportamento foi
a elite. Desse modo, os odores passaram a constituir um dos cenários privilegiados por onde se
tratava a luta de classes. De fato, a burguesia elaborou um extenso aparato ideológico fundado
exclusivamente no aspecto olfativo”. (GOMES, 1988, p. 262). Essas definições de cheiros, do que
é simbolicamente sujo, como já apontou Fleisher (2002), tem se mostrado como mecanismos de
165

poder hierarquizantes das classes sociais, considerando os aspectos, afetos e emoções das
interações sociais dentro de uma residência, essas micro diferenciações tornam-se essenciais e
fundamentais para a posicionalidade dos sujeitos.
Na literatura específica sobre as compreensões do que seja impuro e puro, sujo e limpo,
nojento e aceitável com as relações de sociabilidade entre os sujeitos, nos processos sociais,
culturais e econômicos, como foram utilizados para moldar a ideia de “civilização” ocidental, tem
caracterizado esse teor ideológico de separar e diferenciar os sujeitos, como por exemplo, nas obras
de Mary Douglas (1976), Marceu Mauss (1974), Goffman (1988), Elias (1991). O que tenho
tentado demostrar é que essas práticas ideológicas não foram sanadas quando se trata de pensar
em relações mais modernas nas contratações de trabalhadoras domésticas remuneradas, elas tem
sido reconfiguradas em um momento onde as pressões sociais e críticas ao modelo como esse
trabalho se estruturou no país. A limpeza e a comida são formas de perceber essa características
de diferenciações mais veladas, camufladas na narrativa do convite para sentar à mesa, de fazer
parte da festinha de aniversário de algum membro da família, ou de comprar distintas frutas e potes
de sorvete – um para a família e outro para quem trabalha para ela – demostrando como aspectos
da “cultura doméstica” se apresenta atualmente.
Esses mecanismos “modernos” de diferenciação são percebidos em outros espaços e
momentos de interação entre trabalhadoras domésticas remuneradas e suas patroas, como por
exemplo, nas expectativas de como essas mulheres tem que ser e trabalhar, suas falhas enquanto
profissionais, nos aspectos de como “mandar e obedecer”, etc. Sigo então apresentando mais
alguns pontos dessas reconfigurações da cultura doméstica.

5.3 “EU NÃO GOSTO DE MANDAR, EU NÃO QUERO FICAR FALANDO” – A


AUTONOMIA DA TRABALHADORA COMO PONTO DE RECONFIGURAÇÃO DA
“CULTURA DOMÉSTICA”

Um ponto recorrentes nas entrevistas era a dificuldade que as patroas encontravam em


“mandar”, seja porque elas não gostavam de se impor, se sentiam constrangidas em ter que mostrar
para a trabalhadora doméstica remunerada como deveriam trabalhar, seja porque elas “não sabiam”
fazer isso. São muitas as interferências que entram nesse jogo da comunicação como um poder,
desde do “aprendizado” com suas próprias famílias quando jovens, ou tendo que estabelecer essas
166

ordens na prática, quando já adultas e com suas próprias necessidades. Dentre os diversos motivos
da complexidade da comunicação, o constrangimento em estabelecer ordens, para algumas
entrevistadas, dava-se justamente porque elas não gostariam de se identificar com uma imagem
retrograda “da patroa mandona”. No entanto, essa dificuldade de comunicar os seus desejos e
estabelecer os parâmetros do que seria uma casa bem organizada e limpa gera ainda mais
reclamações, frustrações e o sentimento de que estão sendo enganadas a todo instante – afinal,
estariam pagando por um serviço de “péssima qualidade”.
Em sua pesquisa, Dominique Vidal (2007) encontrou algo muito parecido nas narrativas
das patroas que entrevistou. Ele listou três palavras que apareceram no discurso dessas mulheres
em relação a maneira como agiam com a trabalhadora doméstica remunerada: o lugar, o limite e o
abuso. O lugar estaria em esperar que a trabalhadora soubesse devidamente onde é “o seu lugar”
na casa onde presta serviços, não ultrapassando posições e ocupando espaços que não eram
devidamente apropriados à elas. O “limite” está na percepção que a própria trabalhadora tem que
ter das coisas que ela pode acessar dentro da casa, “a cereja”, “o pote de sorvete importado”, “saber
que não pode se sentar no sofá e nem usufruir de certas comodidades do lar”. E o abuso, se
caracteriza quando elas não sabem o seu lugar e os seus limites, nesse sentido a patroa precisa agir
para que esse tipo de situação acabe, pois as trabalhadoras passam a “abusar da liberdade”.
“Saber mandar” é uma “arte” que as patroas da década de 70 já procuravam escrever e dar
dicas para as donas-de-casa em seus manuais. Essa é uma questão posta para as empregadoras até
os dias de hoje, pois se essa comunicação for eficientemente boa não será necessário se desgastar
ao ver a sujeirinha atrás da geladeira, perceber que a sobremesa acabou “antes da hora” ou que a
roupa foi guardada nos armários errados. O “saber mandar” ainda se vincula com a percepção que
nem todas as patroas possuem essa habilidade, já que muitas delas só foram encarar a contratação
de uma trabalhadora doméstica remunerada já adultas, casadas e com filhos, não “aprendendo” em
casa como ter uma linguagem adequada, postura e desenvoltura para dar ordens.

Cela suppose pour les patrons, selon l’expression communément utilisée à ce propos, de
“savoir commander” (saber mandar). […] Ceux qui ont été élevés dans des familles qui
employaient des domestiques ont certes vu et entendu leur parentes donner des ordres,
mais les récits des patronnes révèlent que cela n’a pas suffit à maîtriser ce que l’on peut
appeler le “métier de patronne”. Car si naître et grandir dans le monde des couches
supérieures assure l’inculcation d’une vision hiérarchisée du monde social et du rôle qui
joue les gens des milieux populaires, l’exercice pratique de l’autorité ne s’acquiert qu’à
la longue, après parfois quelques déboires. L’experiénce de la “première bonne” est ainsi
167

toujours une expérience nouvelle et souvent mal vécue. […] Comment donner des ordres
aux domestiques est du reste un des thèmes de conversation de prédilection des les
employeurs dès qu’ils en viennent à évoquer ce type de relations. L’idee de la limite et de
l’abus reviennent toujours alors61. (VIDAL, 2007, p. 181).

Por isso, muitas delas ainda preservam o mesmo ideal das patroas dos anos 70 – as
trabalhadoras precisam passar por cursos que aperfeiçoem seus trabalhos. Pois se elas chegassem
para trabalhar e já soubessem dos limites e de seu lugar, esse tipo de “chateação” não aconteceria,
o que foi proposto por Lisa Mackey em seu curso de Atualização para Secretárias do Lar, ao
constatar que as “empregadas perderam a noção do limite”. Esses cursos além de instruírem a
trabalhadora a se portar no ambiente de trabalho, ainda poderiam aprimorar suas competências e
ser um potencial a mais a ser remunerado, valorizado e reconhecido – de acordo com as patroas
entrevistadas. Assim, as trabalhadoras domésticas remuneradas estariam “autorizadas” a receber
seus direitos trabalhistas, pois ofereceriam um trabalho para tal – como é possível ver no capítulo
6.

Thays: quais as principais mudanças que você acha que vai acontecer no trabalho
doméstico atualmente? No que foi, no que é hoje.
Mônica: eu acho que a nova legislação vai impor algumas mudanças que eram
necessárias, que deveriam acontecer, eu vejo como um bom passo né, que a gente está
vivendo, que é que, ah, fazer essa empregada ter um status de empregada, não de serviçal
ou de totalmente disponível para o trabalho doméstico né. Eu acho que vai fazer o
empregador também perceber que a pessoa não vive para servir alguém, a pessoa tem o
seu horário de trabalho. Então eu acho que isso é uma boa, boa, é, boa mudança que está
acontecendo. Eu penso que seria muito necessário haver assim, cursos de formação sabe,
porque eu vejo que atualmente é uma profissão que se tornou mais valorizada né, as
empregadas passaram a ganhar mais ao longo do tempo, e eu acho que elas ainda não se
aperfeiçoam né. Eu não desmereço o trabalho doméstico, eu acho que é um trabalho que
merece esse investimento também né, eu acho que assim, elas até podem ganhar mais se
elas souberem desempenhar algumas funções.
Thays: quais essas coisas que você acha que está...que elas poderiam fazer?
Mônica: Olha, tem coisas que eu imagino, mas não são coisas que eu necessite. Mas eu
imagino que famílias necessitem disso, uma empregada doméstica que tenha habilitação
para dirigir né, então eu imagino que algumas famílias necessitem de uma empregada
doméstica assim, ou então, uma empregada doméstica que saiba fazer comida
vegetariana, então ela pode vender isso junto com o seu trabalho, eu imagino! Eu estou

61
Isto implica para os patrões, segundo a expressão comumente usada nesse contexto, “saber mandar”. Aqueles que
foram criados em famílias que empregavam domésticas certamente ouviram e viram seus parentes darem ordens,
mas as narrativas dos patrões revelam que esta não foi suficiente para controlar o que pode ser chamado de “ofício
de patrão”. Porque nascer e crescer no mundo das camadas superiores assegura a inculcação de uma visão
hierárquica do mundo social e do papel que desempenha as pessoas das classes trabalhadoras, o exercício prático da
autoridade não se adquire apenas com o tempo, por vezes nos contratempos. A experiência do “première bonne” é
também sempre uma experiência nova e por vezes mal vivida. Como dar ordens aos domésticos é, aliás, um dos
tópicos preferidos dos empregadores que vinham discutir essa relação. A ideia do limite e do abuso sempre
retornavam.
168

falando coisas também que eu não vivo, mas são ideias que eu tenho de que outras
famílias possam necessitar.
(entrevista 5, Mônica, 37 anos, 2015).

Dessa forma, os pressupostos do que seriam uma trabalhadora doméstica ideal para as
patroas entrevistadas ainda assemelha-se ao perfil descrito pelas empregadoras dos anos 70,80, 90
e 2000. Quando realizava a pergunta sobre as qualidades que uma trabalhadora precisava ter para
cumprir com todos os trabalhos de suas casas, as patroas entrevistadas me responderam:
caprichosa, atenciosa, saber enxergar a sujeira, honesta, ter boa vontade, tem que ter iniciativa,
autonomia, empatia, bem humorada, rápida, flexível, que tenha compromisso, responsável, chegue
na hora, que façam um serviço de primeiríssima, ser de confiança, honrada, ágil, que saiba
trabalhar, saiba cozinhar, pró-ativa, organizada, pontual, eficiente, concentrada no trabalho,
discreta, não bisbilhota, disposta, rápida, que não precisa ficar falando o que fazer, não ser abusada,
não ser desrespeitosa, disposta, dinâmica, sincera, esforçada, ter zelo pelas coisas. E se puderem
se aperfeiçoar nas opções culinárias ou também prestar serviços como motoristas, seria uma forma
de aprimoramento da trabalhadora “polivalente”, executando todas as tarefas da casa e as
necessidades da família impecavelmente.
A questão da autonomia era uma constante nessas narrativas, se apresentando como uma
reconfiguração da “cultura doméstica”, já que a “autonomia” passa a representar a trabalhadora
doméstica remunerada que sabe trabalhar, sabe se posicionar, cumprir com todas as tarefas
demandadas da forma mais rápida, higiênica e discreta possível. A autonomia da trabalhadora livra
a patroa de ser “chata”, “mandona”, “exigente demais” – características que não se vinculam com
a empregadora moderna. No entanto, se essas trabalhadoras começam a agir e a trabalhar da
maneira como elas esquematizam os horários, como elas compreendem como deve ser a limpeza,
a comida, a roupa lavada e passada, ou autonomia para servir-se dos alimentos dispostos na casa,
essas mesmas passam a abusar.

Thays: E quando você contrata alguém para trabalhar na sua casa, uma diarista, doméstica
para trabalhar na sua casa, quais as expectativas que você tem sobre esse trabalho?
Cláudia: ai, principalmente que eu não tenho que ficar falando as coisas para ela, que
chegue e seja uma pessoa disposta, rápida e que eu não tenha que ficar falando: olha, você
não limpou direito aqui. Tem que limpar de novo, então essa que eu estou agora, que está
comigo mais de dez anos, eu até...raramente eu falo para ela: olha, o banheiro está
precisando de uma caprichada. Ela já sabe, a cada quinze dias ela limpa bem o banheiro,
porque como a minha casa era uma casa pequena antes...há três anos atrás era uma casa
169

de 100m², aí ela ficou muito preocupada e eu até achei que ela fosse sair quando eu
construí essa casa. Porque essa casa é bem maior, tem 215m né, o dobro.
Thays: por que você tem tanta dificuldade assim na hora de falar?
Cláudia: porque eu me sinto constrangida, sinceramente. Eu fico constrangida de falar
para uma pessoa o que ela tem que fazer, de mandar. Se bem que quando eu trabalhava
fora eu era coordenadora lá do setor, mas o pessoal que trabalhava comigo, elas diziam
que eu sempre tinha um jeito de falar muito especial, mesmo quando era para chamar
atenção, eu chamava atenção da pessoa sozinha de um jeito que não parecia que eu estava
chamando atenção e a pessoa refazia o serviço de uma forma correta. Mas com a diarista,
com a empregada doméstica eu me sinto muito mal. Eu fico preocupada de estabelecer
uma diferença muito grande, de colocar uma barreira, dela pensar que eu tenho alguma
coisa e ela não tem e se sentir inferiorizada e isso me preocupa muito, até hoje.
(entrevista 6, Cláudia, 59 anos, 2015)

Assim, nas entrevistas realizadas com as patroas em Curitiba-PR, a tentativa de se


distanciar das constantes exigências enquanto donas-de-casa apareceram frequentemente nos
discursos dessas mulheres. Mas isso não significa que elas estejam de fato menos exigentes, elas
passaram a compreender que a comunicação com as trabalhadoras deveria acontecer em outros
termos, o que não as livra de sentimentos como a raiva, constrangimento, frustração, chateação,
ficam irritadas em ver que estão pagando por um serviço “mal feito”. As falhas apontadas, como
por exemplo, “faltar e não avisar”, “não enxergar a sujeira”, “não se importarem em melhorar”,
“trabalhar emburrada, batendo coisas”, “brigava com os filhos”, “quebram as coisas”, “usar muitos
panos de chão para limpar a casa”, “ficar muito no telefone”, “falta de higiene”, “panos sujos
jogados no chão”, “comida sem lavar”, “falta de cuidado na alimentação” eram apontados como
os pontos de desgastes emocionais para essas mulheres e não conseguir falar, mandar e estabelecer
ordens somente acentuava uma tensão referente às posicionalidades dos sujeitos.
Quando perguntava a elas então qual era o principal elemento para se estabelecer uma boa
convivência com a trabalhadora doméstica remunerada, o “respeito” foi colocado como central
nessa relação. É necessário haver respeito entre as duas partes, cada uma saber até onde podem ir,
falar e compreender o espaço da outra. O que muitas vezes aparecia como mais uma maneira de
estabelecer diferenciações, mostrar que cada uma ocupava distintas posições – o respeito garantia
que as configurações que vem sustentando as desigualdades de classe nessa relação empregatícia
sejam mantidos.

Dinorá: Então para aquela pessoa que trabalha na tua casa também, ela não pode
ultrapassar um muro que você tem aqui como você não vai ultrapassar aquele muro para
lá. Porque eu acho que só a ela pertence e como tem coisas que só pertencem a mim. A
gente não pode misturar as coisas, então eu acho hoje em dia uma coisa assim, aí não sei,
mas são coisas que assim, por exemplo, a porteira, ela é uma porteira, então se é uma
porteira está se comportando como uma porteira, tem todas as leis como porteira, etc.,
170

etc., etc. Ela telefona para mim e me chama de “você” – “você não sei o que, não sei
quantos...” – então, é uma coisa que não é, não pode haver essa coisa. Não pode, como?
Ela tem que dizer: a senhora ou Dona Dinorá. Então, tipo, eu acho isso que eu te falei,
não há esse muro, não há respeito. E é a mesma coisa com pessoa que trabalha na sua
casa, mesma coisa.
(entrevista 7, Dinorá, 80 anos, 2015)

Do outro lado dessa relação, a maneira como as patroas estabeleciam formas de demostrar
respeito exaltavam formas de não sentirem que as diferenças entre elas eram tão profundas, no
entanto, mostravam igualmente como essas mulheres não tinham como pressuposto parâmetros
minimamente igualitários para pensar essa relação. Expressões como “tratar de igual para igual”,
“como se tivesse o mesmo nível”, “como se fosse um de nós”, que foram ditas nas entrevistas,
justamente revelam que as trabalhadoras não são vistas como iguais, que precisam se esforçar para
estabelecer uma “relação respeitosa”, onde as camadas de diferenciações – classe, étnico-raciais–
não sejam empecilho na comunicação e as razões para que não haja uma harmoniosa convivência.

Thays: como que você consegue assim conceber essa ideia de respeito? Tipo assim, no
dia a dia mesmo, na prática.
Cláudia: Ah, eu acho que tentando tratar ela de igual para igual né. Ela pode até perceber,
é claro que ela nota, que eu tenho mais condições do que ela. Mas não deixar com que
isso seja um empecilho para ter uma boa relação, então ela me conta dos problemas dela,
eu também as vezes conto dos meus problemas, tanto que ela me convidou para o
casamento do filho, ela me convidou para o aniversário de um ano da neta, então eu sei
que ela gosta de mim e eu também sinto isso em relação a ela. [...] ah, essa coisa do
exemplo né. Ela (filha) sempre foi muito educada com a empregada, sempre. Nossa, até
hoje a Emília fala que adora a minha filha. Tanto que ela nem poderia ir trabalhar lá na
casa da minha filha, mas as vezes eu faço: “Emília, a Iasmin está precisando, será que
você pode ir lá?”. Aí eu levo, deixo ela lá e depois vou buscar e levo ela até a casa dela
para não ter trabalho né, de pegar o ônibus porque é mais longe. Mas a minha filha sempre
foi extremamente educada com todas as pessoas que trabalhavam aqui em casa. De
oferecer coisas quando está comendo, de tentar tratar como se fosse uma pessoa, assim,
com o mesmo nível social, cultural né, não colocando diferença.
(entrevista 6, Cláudia, 59 anos, 2015)

Nesse sentido, uma das diferenciações que mais sustentavam os discursos sobre o respeito
eram referentes a classe social, ter uma atitude respeitosa era tentar mostrar que as desigualdades
entre classes não eram de fato importante para essas patroas, que ter uma pessoa “pobre” dentro
de casa não poderia ser um problema nessa relação. O respeito não era compreendido em
estabelecer uma contratação moderna pautada nos direitos trabalhistas, que as horas de trabalho
estipuladas fossem de fato cumpridas, que as tarefas domésticas fossem menos pesadas ou
demandar algumas delas para o restante dos membros da família, reconhecer seu trabalho e
171

oferecer um ambiente agradável em termos de acesso aos alimentos, aos espaços comumente
compartilhados, estabelecer padrões menos exigentes em relação a limpeza e higienização, etc.
Em algumas situações, o discurso sobre as diferenças entre as classes era o instrumento
para ensinar o que era “respeito”, ou como respeitar uma trabalhadora doméstica remunerada aos
filhos – questão imprescindível para as patroas entrevistadas. Enquanto mães, elas se sentiam na
obrigação de passar os preceitos de como “tratar bem” uma pessoa, de apontar os mecanismos para
“borrar” as possíveis diferenças que poderiam existir entre elas, e muitas vezes tentam mostrar
como a falta de respeito pode, inclusive, prejudicar a família empregadora, podendo ser
processados, ou alvo de ineficiências da trabalhadora contratada.

Flávia: Então assim, eles (família do marido) foram criados servido pelas mulheres. E os
empregados então era mais tipo, praticamente escravo.
Thays: entendi.
Flávia: então ele vem de uma cultura diferente. Então aqui em casa, por mais que a Dona
Sônia seja super boa, sabe? As vezes ele vê uma coisa assim, esquece um pano lá – Pô,
essa Dona Sônia também, não sei o que – E o Daniel outro dia escutou sabe, aí ele falou,
o que ele falou? A Dona Sônia é...o que ele disse? Sei lá, ele falou alguma coisa sabe?
Que a dona Sônia era... cretina... (começa a cochichar novamente) porque o pai falou. Aí
eu falei – Meu filho, nunca mais fale isso, porque a Dona Sônia pode processar o teu pai,
porque você é criança, e a gente vai morar embaixo da ponte. Porque ela vai ganhar a
nossa casa, ela vai morar aqui (fez uma entonação mais forte) na nossa casa, que isso é
uma falta de respeito e nós vamos morar embaixo da ponte. (risadas). - Mas ele chama
de Dona Sônia, sabe? Pede as coisas, as vezes eu falo – Filho, que bagunça é essa? Quem
é que vai arrumar isso? A Dona Sônia! – E eu falo – Não, a Dona Sônia vem aqui para
ajudar a gente, se você não guardar o seu sapato ela não vai poder lavar a tua roupa. O
que você prefere? Quem vai lavar a tua roupa? Você prefere a roupa limpa ou o sapato
que você guarda? Então tem que ajudar a Dona Sônia sim.
(entrevista 4, Flávia, 38 anos, 2015).

Em outros momentos, a pergunta sobre como o respeito era instituído entre a família
empregadora e a trabalhadora doméstica remunerada, acabava por trazer à tona momentos de
desrespeito dos filhos e filhas com essas trabalhadoras, casos de exploração do tempo de trabalho
e até mesmo casos de abusos sexuais. Nessas narrativas a violência era explicita, mostrando como
muitos aspectos já mencionados nos capítulos anteriores ainda se fazem presentes na realidade do
trabalho doméstico remunerado. Mesmo com todas as mudanças que foram concretizadas nos
últimos anos politicamente, ainda percebe-se que práticas de humilhação e abusos ainda sustentam
as desigualdades no trabalho doméstico remunerado, não fazendo com que as reais transformações
propostas sejam de fato exercidas dentro dos lares brasileiros.
172

Thays: Entendi. Como que você pensa, assim, do respeito, de uma coisa respeitosa? Por
exemplo, a senhora tem filhos?
Patrícia: tenho três.
Thays: Como que você falava para eles, tipo, tem que respeitar?
Patrícia: (tosse) tinha coisas que eles faziam que eu não via, porque eu fazia faculdade.
Eles me dizem hoje e dia que tinha empregada que quando ela lavava louça eles faziam
sardinha na bunda dela. Isso eu não via e eles faziam. Isso para mim é terrível, eu não
sabia. Hoje eles me contam, dão risada e eu – ‘mas não é assim que se trata né’ – daí, é,
quando eu era casada e eu morava em Florianópolis eu também tinha uma empregada e o
meu ex-marido era...acho que tinha distorção de personalidade, eu cansei de pegar ele
olhando ela, porque ela dormia dentro de casa, as vezes ela dormia com a minha filha, ela
queria chorar, a Lorena queria chorar e então ela pegava e punha na cama dela. E eu
sempre via ele abrindo a porta para ver ela dormir, com a camisolinha bem alta assim,
sabe? Então ele era meio tarado. Então, desses detalhes também que a gente vai passando
na vida. (risadinha).
(entrevista 3, Patrícia, 68 anos, 2015)

Portanto, as características que formam a “cultura doméstica” muitas vezes se colocam


como explicitas na realidade pesquisada com as patroas na cidade de Curitiba-PR, e outras vezes
se coloca de uma forma velada, reconfigurada através de narrativas sobre autonomia, na inserção
de práticas como convite para festas familiares, chamar para sentar-se à mesa, demandar
minimamente alguns trabalhos para os filhos e filhas. O que temos então ainda é um cenário onde
as diferenciações, segregações, exigências sobre a organização e limpeza de uma casa ainda são
baseadas por pressupostos servis, sustentando uma rede de desigualdades vinculadas a classe social
e as formas exploratórias de racismo. Durante as entrevistas, foi possível escutar descrições em
relação a trabalhadora doméstica remunerada altamente pejorativas, como por exemplo,
“moreninha”, “péssima de serviço”, “maior cretina”, “cara de pau”, “estrupício”, “gorda”,
“carentes”, “safada”, “demorada”, “mal humorada”, “cricri”, “cara amarrada”, “elas são muito
acostumadas”, “não tem limites”, “mentirosas”, “elas se acham toda no direito”, “elas estão se
sentindo”, “estabanada”, “ladra”, “furtam”, “escondem”, “desorganizada”, “porca”, “preguiçosa”,
“fala muito”, “aquela peça”, “não tem higiene”, “fedida”, “desparafusada”, “maluca”, “esquisita”,
“aqui não é nenhum concurso de beleza, ela não veio aqui para desfilar”, “vou ter que comprar
roupa para poder ficar em casa”, “xereta”, “piduncha”, “não tem cara boa”, “cara de azeda”,
“brava”, “exigente”, “pilhada”, “gente de cor”, “polaca”, “neguinha”, “não tem educação”, “suja”.
O tão almejado respeito – chave para estabelecer uma boa relação com a trabalhadora
doméstica remunerada – era apenas retórica, não sendo instituída pelas bases legais trabalhistas,
por formas de reconhecer o trabalho realizado, por não compreender novas possibilidades de
limpeza e higiene, por não respeitar as diferenças de classe e étnico-raciais. A “cultura doméstica”
173

ainda se faz fortemente presente estabelecendo comportamentos, práticas e posicionando os


sujeitos dentro dos lares pesquisados.
Além disso, a “cultura doméstica” também interfere nos pressupostos de direitos
trabalhistas e das necessidades que cada casa encontra em relação às suas demandas cotidianas,
constituindo uma complexa rede de afetos, doações, diferenciações e intimidades.
174

6 O TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO NA MIRA DOS DIREITOS


TRABALHISTAS: AS FACETAS DAS RECONFIGURAÇÕES E REITERAÇÕES DA
“CULTURA DOMÉSTICA”

A segunda viagem que fizemos levando a babá fomos pro


Rio de Janeiro e levei mais porque ela me falou um dia que
o sonho da vida dela era conhecer o Rio e, como eu já
estava grávida de quatro meses, achei que seria uma boa
idéia sentar na praia e ler revista, já que um mês depois
iríamos pra Miami só nós três e foi ótimo. Nesta segunda
viagem ela ficou encantada, me mandou mensagem quando
chegamos agradecendo e eu acho bonitinho a pessoa dar
valor pq barato não sai uma viagem dessas pra gente.-
Valéria Rios62, 2013.

Tenho tentando demostrar, ao longo dessa tese, que os direitos trabalhistas conquistados
pelas trabalhadoras domésticas remuneradas são recebidos pelas empregadoras, normalmente,
como desproporcionais aos trabalhos realizados por estas, como se elas não merecessem todas as
garantias e proteções advindas da legislação, pois não recebem um serviço de qualidade, não
procuram se aprimorar ou inovar. Essa reação ainda é acompanhada por uma ideia de alto custo
que essas contratações passariam a ter, inflada pelos veículos de comunicação, pelas conversas
cotidianas das empregadoras e até mesmo pelo Estado com o discurso que a maior parte das
famílias brasileiras não teria renda suficiente para bancar com todas as despesas da regulamentação
trabalhista, gerando altos níveis de desemprego63.
A despeito de todas essas reações, o número de contratações legais, que respeitam todas as
bases estipuladas pelo Estado ainda são muito baixas no Brasil, apenas 29,34% das trabalhadoras
domésticas remuneradas podem contar com os direitos propostos pela Constituição brasileira,
demonstrando que 70,66% das mais de 6 milhões de mulheres que ocupam essa categoria
profissional não possuem proteção legal alguma. (MONTICELLI, 2013). Esses dados reafirmam

62
CARDOSO, Bia.. Babás e Empregadas Domésticas: Relações que Perpetuam Racismo e Machismo. Blogueiras
Feministas. 15 jan. de 2013. Disponível em: < http://blogueirasfeministas.com/2013/01/babas-e-empregadas-
domesticas-relacoes-que-perpetuam-racismo-e-machismo/ > Acesso: 6 de fev. 2017.
63
Essa lógica é também vista em outros países da América Latina. No Paraguai, por exemplo, foi estipulado pelo
Estado que as trabalhadoras domésticas remuneradas ganhem metade do salário mínimo vigente, considerando que
alguns empregadores e empregadoras da casse-média baixa não conseguiriam arcar com os custos da
contratação.(GOLDSMITH, 2008).
175

uma contradição dos discursos proferidos pelas empregadoras e empregadores, já que os níveis de
demissões causados por dificuldades de se adequar ao aparato legislativo não condiz com a
realidade do altíssimo número de contratos ilegais.
O que essa tese também tenta demostrar é que essa percepção sobre uma desproporcionalidade
entre direitos trabalhistas e qualidade do trabalho ofertado está estritamente ligada com os
pressupostos da “cultura doméstica”, que geram os parâmetros simbólicos que representam uma
casa bem limpa, organizada, as tarefas domésticas impecavelmente feitas, etc. São essas
representações que também pautam e estabelecem as necessidades de cada família, submetendo
essa relação com os direitos trabalhistas em negociações pautadas pelo cotidiano, envolvendo
afetos, doações, intimidade, roubo. Assim, os parâmetros legislativos passam por posições e
compreensões subjetivas e relacionais nessas relações trabalhistas, dificultando enormemente a
garantia de direitos para essas mulheres e sustentando desigualdades de classe, étnico-raciais
embasados pela desigualdade de gênero.
Esse capítulo então tem por objetivo apresentar como as interações entre direitos,
doações, intimidade, roubos e as necessidades cotidianas estão conectados com a “cultura
doméstica”, mostrando os impasses para que os parâmetros minimamente igualitários sejam
estabelecidos nessa relação.

6.1 A LUTA POR DIREITOS TRABALHISTAS: RESISTÊNCIAS, EMANCIPAÇÃO


POLÍTICA, ACORDOS E NEGOCIAÇÕES

O trabalho doméstico remunerado esteve à margem da ampliação de direitos trabalhistas


promovida pelo Estado até o ano 2013, quando foi aprovado a Emenda Constitucional nº 72. Antes
disso, o próprio Estado brasileiro formulava os parâmetros Constitucionais com verdadeiros
limites ao acesso de proteções e direitos para essa categoria profissional, institucionalizando
pressupostos não igualitários e incorporando discursos conservadores sobre o trabalho
reprodutivo, o não reconhecimento pleno do trabalho doméstico em seu valor econômico e
lucrativo, reforçando estereótipos ligados a esfera pública e privada, sendo usado estrategicamente
pelo discurso dos/as empregadores e empregadoras sobre o suposto nível de desemprego,
legislando em prol de injustiças e desigualdades.
176

Como bem aponta Fraga (2016), até 1972 o trabalho doméstico remunerado foi exercido
sem praticamente nenhum órgão institucional que regulasse essas contratações, contando com
poucas ações governamentais, localizadas em apenas alguns municípios64. Em 1941, durante o
governo de Getúlio Vargas, o primeiro Decreto-Lei (3.078/41) foi desenvolvido, considerando o
trabalhador doméstico65 como “aquele de qualquer profissão ou mister que, mediante
remuneração, preste serviço em residências particulares ou em benefício destas” (art. 1ᵒ).
(FRAGA, 2010). O uso da carteira de trabalho se tornou obrigatória, instituiu oito dias de aviso
prévio para as duas partes envolvidas e definiu os deveres e direitos de empregados e
empregadores. No entanto, durante o Estado Novo em 1943, ainda no governo Vargas, houve uma
reestruturação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a categoria profissional de
trabalhadoras domésticas remuneradas foi excluída do aparato legislativo. Essa exclusão foi
considerada a partir do argumento que os serviços prestados não eram de natureza econômica, de
consumo familiar e não empresarial, não gerando lucros. (PORTO, 2010).
Após mais de 30 anos da primeira tentativa de regulamentação dos direitos para as
trabalhadoras domésticas remuneradas, durante a Ditadura Militar em 1972, no governo do
General Emílio Médici foi aprovada a Lei nº5.859, onde estabelecia-se que o trabalhador
doméstico é “aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à
pessoa ou à família, no âmbito residencial destas”66. (art.1ᵒ/1972). Os primeiros direitos
trabalhistas conquistados então em 1972 foram: anotação do contrato na carteira de trabalho
(quando apresentado atestado de boa conduta e de saúde), previdência social (definindo como
obrigatório, descontando 8% do empregador e 12% do salário da trabalhadora) e férias

64
Em determinados casos, essas poucas ordens de regulamentação acabavam beneficiando os patrões e preservando
seus interesses. (TELLES, 2011). Durante o período colonial e o Império, o trabalho doméstico foi desenvolvido por
meio da mão-de-obra forçada, escravizada, ocupando posições bem especificas nas configurações sobre a
constituição da sociedade brasileira, estabelecendo estruturas hierárquicas e violentas dentro do ambiente doméstico.
O trabalho doméstico passa ser algo que necessita ser remunerado após abolição da escravidão em 1888,
estabelecendo outras configurações nessas relações – como visto anteriormente. Ao longo dos anos republicanos,
onde então as contratações passam a existir para cumprir com as demandas das tarefas domésticas, não houveram
praticamente nenhum quadro de garantias estatais que procurasse estabelecer parâmetros para regularizar esse
trabalho. (FRAGA, 2016).
65
A Constituição brasileira denomina “trabalhador doméstico” as pessoas que prestem serviços desta natureza.
66
Essa determinação e descrição perdurou até o ano de 2013, o que dificultou enormemente pensar as diversas
formas de contratações de trabalho no âmbito residencial, pois não incorporava mudanças e reconfigurações que o
setor de cuidados estabeleceu, como por exemplo, o caso de cuidadores de idosos e diaristas. (MONTICELLI,
2013).
177

remuneradas de 20 dias úteis a cada um ano de trabalho. Esses direitos foram ampliados em 1988,
com o processo de redemocratização do Brasil e a formulação de uma nova Constituição.
Com a Constituição de 1988 os direitos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas
remuneradas foram consideravelmente ampliados, incluindo aos direitos já mencionados: a)
salário mínimo fixo; b) irredutibilidade salarial (salvo o disposto em convenção ou acordo
coletivo); c) décimo terceiro salário (com base na remuneração integral); d) repouso semanal
remunerado e em feriados civis e religiosos; e) licença maternidade de 120 dias, f) aviso prévio e
g) férias anuais de 30 dias com acréscimo de 1/3 do salário; h) aposentadoria.
E em 2001, durante o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, a lei 10.208 inclui
o FGTS aos direitos conquistados em 1988, mas como um direito facultativo (a critério do
empregador), e em 2006 foi incorporado a essa lei um benefício que garantiu a restituição do
imposto de renda aos empregadores que contribuíssem corretamente com a previdência social da
trabalhadora, além disso foi proibido descontar do salário da trabalhadora doméstica remunerada
alimentos, vestuário, higiene e moradia que ela poderia ocasionalmente usufrui enquanto
trabalhava.
É importante dizer que durante todo esse tempo, a luta por emancipação política e
ampliação de direitos trabalhistas se realizou através de uma forte luta das trabalhadoras
domésticas remuneradas. A organização política da categoria no Brasil tem datado seu início por
volta de 1936, pelas mãos de Laudelina de Campos Melo 67 – uma trabalhadora doméstica
remunerada - que fundou primeira Associação de Trabalhadoras Domésticas em Santos. Sua
trajetória política também inclui um trabalho de mobilização em anúncios de jornais, rádio e
através de alguns sindicatos, fundando em 1961 a Associação Profissional Beneficente das
Trabalhadoras Domésticas em Capinas- SP, onde atuou até sua morte em 1991(OLIVEIRA, 2009).
A história de Laudelina é uma dentre muitas histórias de militantes da categoria no Brasil, onde
podemos minimamente destacar também Lenira de Carvalho do Sindicato de Trabalhadoras
Domésticas de Recife, Odete Maria da Conceição do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas do
Rio de Janeiro, Terezinha da Silva do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas de Curitiba e Creuza
Maria de Oliveira do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas da Bahia, que posteriormente foi
presidente da FENATRAD (Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas). (BERNADINO
COSTA, 2007).

67
Sua militância começou no movimento negro e perdurou por aproximadamente seis décadas.
178

O movimento sindical de trabalhadoras domésticas remuneradas no país é amplo,


abrangente, tendo ao menos uma sede em cada Estado. É um movimento que tem concretizado
verdadeiras conquistas em relação aos direitos trabalhistas, mas vem igualmente expandindo as
ações de emancipação política por meio de políticas públicas, dialogando com outros movimentos
sociais. A história desses sindicatos e associações tem sido contada com diversos apoios, desde da
Igreja Católica através da JOC (Juventude Operária Católica) na década de 60, até as estreitas
ligações com movimentos feministas e o movimento negro. (BERNADINO COSTA, 2007). As
militantes brasileiras tem conseguido, inclusive, se destacar internacionalmente frente as posições
de luta das trabalhadoras domésticas remuneradas, sendo as relatoras da Convenção nº189 seguida
da Recomendação nº 201 intituladas “Trabalho Decente para Trabalhadoras e Trabalhadores
Domésticos”, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em Genebra durante o ano de 2011.
(MONTICELLI, 2013).
De acordo com Fraga (2016), esse cenário propiciou a aprovação da Emenda
Constitucional nº 72, que alterou o parágrafo único do artigo 7º da Constituição Federal. Com a
alteração e revogação desse parágrafo, as trabalhadoras domésticas remuneradas teriam os mesmos
direitos trabalhistas que os demais trabalhadores e trabalhadoras no Brasil. No entanto, esse
também foi um caminho de muitas negociações, acordos e luta por parte das militantes da
categoria. O que percebe-se é que durante os anos de governo Lula (2003-2010), houve um espaço
propício para se debater o tema, políticas que institucionalizassem de fato as demandas relativas
ao trabalho doméstico remunerado no país, criando políticas públicas e direcionando secretarias e
ministérios para tratar o tema, além de pressões internacionais de órgãos institucionais, como a
OIT.

Em seguida, nos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), não apenas as
alterações legais foram mais significativas, como a forma de tratar o assunto mudou, no
sentido de as decisões serem tomadas em diálogo e com a participação direta das
organizações das trabalhadoras domésticas. O que o governo Lula trouxe de novo foi uma
institucionalização do tema do serviço doméstico, ou seja, um esforço do Estado para
consolidar uma articulação institucional em torno dessa questão, envolvendo
principalmente a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), a
Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), o Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE), a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD) e o
Escritório da OIT no Brasil, mas também o Fundo de Desenvolvimento das Nações
Unidas para a Mulher (UNIFEM), o Ministério da Previdência Social, o Ministério da
Educação, o Ministério das Cidades, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a
Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e Serviços (CONTRACS) e
ONGs feministas. (FRAGA, 2016, p.110).
179

Assim, a famosa “PEC das Domésticas”, foi aprovada após muitos anos de audiências
públicas que envolveram cinco distintos grupos: órgãos estatais68, representantes da sociedade
civil69, institutos internacionais70, juristas71 e professores, professoras, pesquisadores e
pesquisadoras do tema72. Nessas audiências a ampliação dos direitos trabalhistas era coloca como
essencial para um Estado Democrático que visa combater injustiças e desigualdades. A promoção
de igualdade de direitos trabalhistas foi pensada como uma das principais estratégias para retirar
o trabalho doméstico remunerado de um quadro de marginalização, não o colocando como uma
“segunda categoria” trabalhista e propiciando espaço para que milhares de mulheres,
majoritariamente negras e pertencentes às periferias brasileiras, tiveram acesso aos seus direitos
plenos e a cidadania. (FRAGA, 2016).
De tal modo, Benedita da Silva (PT) – relatora da PEC 478/10 (PEC das Domésticas) –
conseguiu levar no dia 21 de novembro de 2012 a segunda votação para a Câmara dos Deputados,
sendo aprovada por unanimidade. No dia 26 de março de 2013 esta mesma PEC foi aprovada pelo

68
Grupo formado por: “Antonio de Oliveira Lima, Procurador do Ministério Público do Trabalho; Ângela Maria de
Lima Nascimento, Diretora de Programas da Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas (SEPPIR); Arnaldo
Barbosa de Lima Júnior, Coordenador-Geral da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda; Tânia
Mara Coelho de Almeida Costa, Coordenadora-Geral de Fiscalização do Trabalho do Ministério do Trabalho e
Emprego; Tatau Godinho, Subsecretária de Planejamento da Secretaria de Política para as Mulheres da Presidência
da República (SPM); Rogério Nagamine Costanzi, Diretor de Regime Geral de Previdência Social; e Cláudia Rejane
de Barros Prates, Representante do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM).” (FRAGA, 2016,
p.126).
69
Grupo formado por: “Creuza Maria Oliveira, Presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas
(FENATRAD); Mario Avelino, Diretor do Instituto Doméstica Legal; Natália Mori Cruz, Diretora do Colegiado do
Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA); Cleusa Aparecida da Silva, Representante da Articulação de
Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB); Rosângela Rassy, Presidente do Sindicato Nacional dos
Auditores-Fiscais do Trabalho (SINAIT); Ana Cristina dos Santos Duarte, Representante da União Geral dos
Trabalhadores (UGT); Cleonice Caetano Souza, Representante do Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade
Racial (INSPIR); Rosane Silva, Secretária Nacional da Mulher Trabalhadora da CUT; e Maria Auxiliadora,
Representante da Força Sindical (FS).” (FRAGA, 2016, p.126).
70
Grupo formado por: “Rebecca Tavares, Diretora Regional da ONU Mulheres Brasil e Cone Sul.” (FRAGA, 2016,
p. 127).
71
Grupo formado por: “Comba Marques Porto, Juíza do Trabalho aposentada; Adriane Reis de Araújo, Procuradora
Regional do Trabalho da 10ª Região-DF; Fernando Luiz Gonçalves Rios Neto, Desembargador Federal do Trabalho
do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região; Solange Barbosa de Castro Coura, Juíza do Trabalho do Tribunal
Regional do Trabalho da 3ª Região; e Hamilton Rovani Neves, Assessor Jurídico da Federação Nacional das
Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD).” (FRAGA, 2016, p.127).
72
Grupo formado por: Hildete Pereira de Melo, Professora de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF);
Joaze Bernardino-Costa, Professor de Sociologia da Universidade Federal de Brasília (UnB); Clovis Scherer,
Supervisor Técnico do Departamento Intersindical de Estudos Econômicos e Sociais (DIEESE); e André Gambier
Campos, Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). (FRAGA, 2016,
p.127).
180

Senado, e promulgada a partir do dia 13 de abril do mesmo ano. Atualmente então, as


trabalhadoras domésticas remuneradas têm todos os direitos trabalhistas previstos na Constituição
brasileira, sendo assegurados formalmente: proteção contra despedida arbitrária ou sem justa
causa, seguro-desemprego, FGTS, garantia de salário-mínimo, remuneração do trabalho noturno
superior ao diurno, proteção do salário, salário-família, jornada de trabalho estabelecida em oito
horas diárias e quarenta e quatro semanais, adicional de horas extras, redução dos riscos inerentes
ao trabalho, creches e pré-escolas para filhos e dependentes até seis anos de idade, possibilidades
de acordos e convenções coletivas, seguro contra acidentes de trabalho, proibição de discriminação
de salário, de função e de critério de admissão, proibição de discriminação em relação à pessoa
com deficiência, proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezesseis anos.
Além dos já garantidos em 198873. (FRAGA, 2016).
As reações sobre essa “revolução” de direitos trabalhistas foram imensas, os diversos meios
midiáticos trataram o tema, especialistas foram chamados para dar explicações em relação as
mudanças que ocorreriam, economistas foram acessados para se ter a real dimensão de custos que
a ampliação de direitos levaria aos empregadores e empregadoras, etc. Apesar de todo o alarde, a
real ampliação de gastos não seria o grande inconveniente para quem tem a possibilidade de
contratar uma trabalhadora doméstica remunerada, mas sim estabelecer os direitos que atingiriam
diretamente o cotidiano das famílias, como por exemplo, a jornada de trabalho estabelecida com
acréscimo de horas extras e com descanso na hora do almoço.
Os direitos trabalhistas passaram a ser um incomodo para as patroas, a partir do momento
em que o seus cotidianos não puderam mais ser organizados e pensados de acordo com as suas
necessidades. No entanto, mesmo com um aparato legislativo completo, algumas negociações
ainda são realizadas no contexto doméstico que não levam em consideração a ordem legislativa,
mostrando-nos como alguns aspectos de reconfiguração da “cultura doméstica” são as bases para
estabelecer acordos, recompensações, manter desigualdades e hierarquias.

73
Alguns incisos da Constituição são inaplicáveis, como por exemplo, o XI e o XXXII que respectivamente tratam
de participação de lucro nas empresas e distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual.
181

6.2 DIREITOS TRABALHISTAS, AFETOS E NOSTALGIA

A “cultura doméstica” tem sido alvo de análises para essa tese, sendo percebida como um
importante ponto para se pensar as diversas relações que o ambiente residencial produz e
estabelece, assim como as posicionalidades perante as representações do “lar” e da “casa”,
considerando o complexo jogo ambíguo que as subjetividades da patroa se constroem. Nas
diversas reconfigurações e reiterações que a “cultura doméstica” assume nas relações entre patroas
e trabalhadoras domésticas remuneradas, podemos visualizar algumas estratégias de manutenção
dos cuidados da casa como possíveis formas de acessar parâmetros que hierarquizam, classificam
os sujeitos em representações e símbolos que diferenciam, sustentando desigualdades e relações
de poder. Como já anunciado anteriormente, a “cultura doméstica” também está associada com
alguns parâmetros e percepções sobre os direitos trabalhistas conquistados e a relação com o
“profissionalismo” exigido nessas contratações, sendo uma das características que dificultam o
entendimento da formalização legal desse trabalho. Essas relações ainda se complexificam através
da afetividade construída entre os sujeitos nessa interação, interferindo nas negociações que
envolvem direitos, doações, gratidões, obediência e lealdade.
As relações afetivas são parte constituinte da formação cultural sobre o trabalho doméstico
remunerado, como mostrado por Saffioti (1978), Graham (1992), Kofes (2000) e Brites (2000),
construindo particularidades, conexões, sentidos que muitas vezes são percebidos como
contraditórios, vide narrativas de militantes sindicais da categoria nas obras de Bernadino-Costa
(2007) e nos testemunhos e textos destas (RONCADOR, 2008). No entanto, como a literatura já
incessantemente nos apontou, os afetos são justamente o peso das escolhas, dos elos e dos
significados que fazem esse trabalho ainda ter um lado recompensador para além das
remunerações. O afeto pensado em termos sociológicos define-se tanto por uma compreensão que
este se constitui em relações interpessoais, baseadas nas interações humanas, construídas por um
compartilhamento de sentimentos, de ações e reações humanas em determinados contextos sociais,
incluindo sua forma verbal – afetar-se; como por sua definição, da qual inclui um “conjunto de
atos ou de atitudes como a bondade, a benevolência, a inclinação, a devoção, a proteção, o apego,
a gratidão, a ternura, etc., que, no seu todo, podem ser caracterizado como a situação em que uma
pessoa “preocupa-se com” ou “cuida de” outra pessoa em que esta responde, positivamente, aos
cuidados”.(DICIONÁRIO DE FILOSOFIA, 1998, p. 21). (MONTICELLI, 2013).
182

O ato de cuidar, observar, dar atenção envolve muitas interações entre os sujeitos, o preparo
dos alimentos, a atenção ao detalhe para agradar, o toque corporal, o abraço entre a criança e a
trabalhadora doméstica remunerada, o chá servido na cama quando a patroa está doente, os
medicamentos doados pela patroa quando a trabalhadora precisa, as compreensões de faltas e
atrasos por motivos pessoais, etc. moldam as percepções dos sujeitos frente ao contexto do trabalho
doméstico remunerado. E essa forma cultural do cuidar, que envolve o cuidado da casa, da comida,
das crianças, agrados, servilidade, doações e recompensas, envolvendo as duas partes dessa relação
– trabalhadora e família empregadora – são aspectos conectados com o que tenho chamado de
“cultura doméstica”.
Na pesquisa realizada em Curitiba- PR (2013) sobre as relações afetivas entre diaristas e
seus diversos empregadores, é possível perceber uma reconfiguração desses aspectos afetivos
conectados com a “cultura doméstica”. As diaristas entrevistadas tinham a possibilidade de fazer
escolhas em suas vidas, inclusive escolhiam os lugares para os quais queriam trabalhar, e estas
seleções estavam embasadas nos afetos, na maneira como os filhos dos patrões as tratavam, na
forma como a patroa dirigia a palavra, nos agrados, na maior remuneração, etc., trazendo à tona
sentidos além dos estritamente financeiros para essa relação. Nesse sentido, até nas formas mais
“independentes” e “modernas” de contratar uma pessoa para o trabalho doméstico – através de
diárias – os aspectos afetivos eram igualmente importantes, protagonizando escolhas e construindo
melhores relações de trabalho. (MONTICELLI, 2013).
No entanto, é preciso lembrar que essas interações afetivas estão inseridas em relações de
poder. Se as trabalhadoras agenciam os afetos em prol de melhores condições de trabalho, onde
são respeitadas e não passam por determinados tipos de opressões, diferenciações e
hierarquizações, as patroas entrevistadas ainda o veem como uma forma de estabelecer laços
extremamente fortes, onde estes fazem mais sentido do que propriamente alguns direitos
trabalhistas, configurando um quadro de obediência e servilismo.

Thays: Você lembra, era mensalista assim?


Rita: Era, não, mas naquele tempo era diferente, naquele tempo a minha mãe, como a
minha mãe nasceu no interior tinha muito parente lá, então naquele tempo fazia muito
isso assim, perguntava se tinha alguém que queria vir morar na cidade, daí eles
mandavam, normalmente era uma jovenzinha assim, era mais menina, e daí ela morava
com a gente, ela morava, aí ela ajudava minha mãe, aí ia pra escola, era diferente. A minha
sogra também era assim, elas pegavam umas meninas do interior e daí elas moravam junto
183

né, e faziam algum serviço, estudavam às vezes à noite ou à tarde. Agora não existe mais
isso.
Thays: Você lembra como que era essa relação lá na sua casa?
Rita: Não, era ótima assim, era… era… eu acho melhor do que agora, porque agora é tudo
lei, lei, direitos e deveres e tudo, era uma relação mais de... como é que eu posso dizer, a
pessoa acabava se tornando parte da família, era diferente, agora, agora não, agora é uma
relação profissional mesmo né.
Thays: Entendi, e você acha…
Rita: A Ana não, a Ana é parte da família já. (risos).
Thays: A Ana está há 14 anos trabalhando para você né…
Rita: É, e daí ela cuida dos meus netos... sabe, ela ficou com a minha filha quando a minha
filha precisou que estava com a minha netinha pequena, ela tinha que trabalhar, daí a Ana
foi pra lá, depois a Ana voltou quando ela não precisou mais, daí a Ana voltou, então a
Ana viu os meus netos crescerem, até hoje ela ajuda a cuidar, então essa relação é do
tempo da minha mãe assim, mas eu sei que a maioria não é assim hoje né.
Thays: E você acha que essas outras situações que você vem vendo assim hoje, dessa
profissionalização que você falou, você acha que isso piorou a relação do trabalho
doméstico?
Rita: Eu acho que piorou, que virou uma cobrança né, então eu acho que piorou porque
hoje em dia a pessoa não se fixa no emprego, ela começa a trabalhar mas aí desaparece,
outra pessoa que oferece um pouquinho mais ela sai, ela não tem mais aquela, aquela...
aquele... aquela relação afetiva que tinha antes, que a família tinha antes com a pessoa,
porque ela... a pessoa acaba convivendo com você todos os dias, mas com você do que
qualquer outra pessoa né, é uma coisa bem íntima assim, é tipo um casamento, e hoje em
dia eu vejo que... eu vejo até pelas minhas filhas que tem, elas arrumam daqui a pouco a
vizinha oferece mais não sei quanto, daí ela já sai, não se prende no... nem o carinho pelas
crianças assim sabe...
Thays: Entendi.
Rita: Nem babá, nem nada… virou muito comercial mesmo, muito…
(entrevista 12, Rita, 54 anos, 2015).

Então as relações afetivas são percebidas como sinônimos de lealdade a família


empregadora, os motivos para não trocar de trabalho, para permanecer executando as tarefas
domésticas e cuidando de todos os membros da família por gerações – filhos, filhas, netos e netas.
A nostalgia, precisamente colocada na narrativa de Rita, nos permite compreender mais sobre
realidade contemporânea do que necessariamente sobre tempos passados. Como afirma Lindsey
Freeman (2015), a nostalgia é um sentimento que transparece as dificuldades encontradas em viver
as relações pautadas no presente, utilizando da ideia que as conjunturas sociais, políticas e culturais
que foram modificadas em contextos contemporâneos não trazem o mesmo nível de satisfação aos
sujeitos. Nesse caso, o sentimento de nostalgia acaba por descrever uma visão atualizada sobre
uma realidade de desigualdades sociais, raciais e de gênero que não foram de fato rompidas na
forma como o trabalho doméstico remunerado foi estabelecido.
Ter uma trabalhadora que é “parte da família” já foi analisado como um fetiche por Kofes
(2000), como uma forma de poder senhorial por Farias (1983), como formas simbólicas servilistas
184

por Saffioti (1978), como forma de proteção e obediência por Graham (1992) e denunciada como
uma prática abusiva pelas sindicalistas. Essa frase é uma constante nos estudos sobre o tema e por
mais que ela já tenha sido demasiadamente problematizada, suas críticas vinculadas em diversas
mídias, ainda foi possível escutá-la nas narrativas nas patroas entrevistadas para essa pesquisa, seja
como uma realidade de suas casas, ou como um desejo para suas vidas.

Thays: sim. É, quais as principais mudanças que você acha que deve acontecer no
trabalho doméstico?
Leila: (silêncio).
Thays: ou que você já viu que já mudou assim...você disse que acha que não
mudou muito né...
Leila: ah, eu acho que não. Eu acho que sempre foi a mesma história assim, elas
fazem cada vez menos né (risadinhas) e você ou aceita ou você não tem, né.
Porque uma perfeita...tem gente que tem empregadas de vinte anos, que são da
casa. Eu não tive, eu nunca tive essa sorte, eu já tive empregada de quatro anos e
não sei o que mais, é, normalmente é um ano e meio, dois anos que elas ficam
comigo, não é mais que isso. Então eu não tive essa sorte assim de ter uma
empregada de anos e anos e anos. Tem a minha cunhada lá que eu acho que já faz
uns vinte anos que tem empregada com ela.
Thays: e por que você fala que é sorte?
Leila: ah, por que é. Eu acho sorte você ter uma empregada de muitos anos, em
que ela é quase uma pessoa da família né. Porque elas vão se tornando, é, é tanta,
tanta...criam filhos, criam netos né. Então elas vão se tornando uma pessoa da
casa mesmo né.
(entrevista 13, Leila, 64 anos, 2015)

As trabalhadoras domésticas remuneradas não compartilham dos mesmos espaços e


privilégios que a família empregadora, não são incluídas no compartilhamento de desejos e planos,
não desfrutam dos mesmos momentos de lazer. O anacronismo da frase “quase da família” nos
desperta, por um lado, para um conservadorismo ao supor que as relações afetivas e de lealdade
fizesse com que as diferenças de classe, étnico-raciais e as explorações derivadas de uma relação
trabalhista pudessem “desaparecer”, ou ao menos, não fazer sentido frente a todo o afeto construído
por anos, gerações entre a trabalhadora e a família empregadora e, por outro lado, nos faz
questionar os pressupostos de intimidade que são construídos nessa relação, já que a trabalhadora
acessa uma extensão simbólica do “eu” da patroa ao adentrar o campo “familiar”. (FESKI, 2000).
De acordo com Zelizer (2010), as relações de intimidade precisam ser expandidas em sua
compreensão conceitual, sugerindo que esta passe a ser pensada como interações que recebam um
conhecimento particularizado e uma atenção provida, ao menos por uma pessoa, que não são
livremente disponíveis para outras pessoas fora desse círculo interacional. Esse conhecimento é
caracterizado por elementos como o compartilhamento de segredos, rituais interpessoais,
185

informações corporais, consciência de vulnerabilidades pessoais, além de partilhar memórias e


situações singulares uma com a outra. Já a atenção envolve elementos como serviços corporais,
linguagens privadas e suporte emocional, por exemplo. Outra característica intrinsicamente
envolvida nos aspectos da intimidade é a questão da confiança, em seus variados graus ao sentir-
se livre em compartilhar experiências e vivencias. Assim, a autora expande a definição de
intimidade para relações de pais e filhos, avós e netas, amigos próximos, paciente e psiquiatra,
cliente e advogado, empregador e trabalhador, prostituta e cliente, etc. Essas variedades mostram
as diversas formas que a intimidade pode se apresentar na sociedade contemporânea. (ZELIZER,
2010).
Compreendendo então o conceito de intimidade por um aspecto mais amplo e lembrando
que este faz parte da construção simbólica familiar e da casa, sendo parte fundante de uma cultura
que permeia as relações do trabalho doméstico no Brasil, a frase “quase da família” faria um
sentido prático cotidiano para as patroas. Inclusive, como já apontado na análise de Roberto da
Matta (1987) sobre a formação da família brasileira, juntamente com as características patriarcais
da constituição desta também soma-se agregados, aparentados e não aparentados (escravos,
criados, afilhados, filhos de criação). De acordo com o autor herdamos uma cultura familiar, onde
prevalece para além da família nuclear patriarcal a cultura da servilidade.

Dinorá: “ah Fátima, mas que bom, então você vai casar?” e tal e coisa, e queria que
fossemos padrinhos. Eu e meu marido fomos, demos presente, geladeira, aquelas coisas
deles, bem de padrinho. Então tá, aí nós fomos para o tal do casamento que era, não era o
nome, era uma colônia de poloneses que tinha aqui. Então fomos lá e teve casamento e
tal, aí fomos para a casa dela que era festa, aqueles casamentos de polacos que vão 500
pessoas né.
(entrevista 7, Dinorá, 80 anos, 2015).

A narrativa de Dinorá não é uma exceção, são muitos os casos em que empregadores são
padrinhos de filhos e filhas de trabalhadoras domésticas remuneradas, ou apadrinham o casamento
da trabalhadora, estendem as doações para membros da família desta, estabelecendo configurações
que mesclam as relações trabalhistas e familiares - patroas que se tornam comadres, madrinhas.
“Ser parte da família” então não seria um discurso retórico nesses casos, já que a ampliação das
relações trabalhistas também se interpõem com as relações familiares e de compadrio? Mas, como
já enfatizado, essas relações são assimétricas, complexificadas pelas características de classe
186

social, étnico-raciais e de gênero, demostrando que essa relação trabalhista avança para outras
categorias de intimidade e de interferências na vida familiar uma da outra, tendo como
consequências dependências e vínculos afetivos singulares, mas que não reconfiguram as
posicionalidades dessas mulheres em relações familiares, principalmente quando estas estão
inseridas nos modelos tradicionais.
A lúdica e romantizada percepção das empregadoras sobre ser “parte da família” nos
mostra que os parâmetros de obediência, lealdade e até mesmo de vigilância ainda permanecem
no discurso patronal, mesmo depois de constantes críticas vinculadas à ela. Nas entrevistas
realizadas em Curitiba-PR, o “ser quase da família” tinha até mesmo uma conotação de mostrar
respeito pela trabalhadora, tentando expressar uma posição diferenciada enquanto patroa. Esse
aspecto nos mostra uma reconfiguração da “cultura doméstica” ao trazer a representação desse
afeto genuíno e leal que a trabalhadora deveria ter, na percepção das patroas. Mesmo que em seus
discursos haja uma ideia de que essas relações já não existam mais pela interferência dos direitos
trabalhistas – “virou muito comercial”, como disse Rita – essa expectativa do afeto ainda é um dos
parâmetros do que seria uma “boa” trabalhadora doméstica remunerada, que traz confiança e se
“integra” as necessidades da casa. Inclusive, a “confiança”, atributo essencial na contratação de
uma trabalhadora doméstica remunerada, de acordo com as entrevistadas nessa pesquisa, não se
associa aos pressupostos de que o trabalho contratado será somente realizado com competência no
tempo estipulado, cumprindo-o da forma mais eficiente possível, mas é configurado pelos afetos
e todas as características que o cercam, ou seja, “confiar” a responsabilidade de suas casas à alguém
é confiar que as tarefas demandadas serão impecavelmente realizadas, com carinho e atenção ao
espaço residencial e, principalmente, aos membros da família.
É claro que esse percepção afetiva também molda os comportamentos e práticas das
patroas. As tão desejadas relações “de anos” também geram um sentimento de “obrigação” e
“comprometimento” por parte das empregadoras, que passam a assegurar outros aspectos da vida
dessas mulheres, que vai além da remuneração salarial.

Thays: E ela trabalha para você há muito tempo?


Júlia: na nossa família em torno de trinta anos...é, eu tenho uma obrigação moral com essa
pessoa No momento, por exemplo, se eu pudesse dizer para ela não vir mais eu contrataria
outra pessoa mais eficiente. Não que ela não faça, ela faz muito, só que é uma pessoa que
com esse tempo não muda mais nada né, então. [...] porque na verdade ela é quase uma
pessoa da família né. Hoje em dia eu penso que se um dia a Rosana morrer ela não tem
187

ninguém que cuide. E outro dia ela falou que gostaria de ser enterrada em Santa Catarina
que tem um irmão dela que está lá.
Thays: entendi. E como ela está muitos anos na ...
Júlia: né?! Eu penso nisso.
(entrevista 2, Júlia, 62 anos, 2015).

As relações intimas, afetivas, de proximidade compelxificam e caracterizam o trabalho


doméstico remunerado. Os afetos são muitas vezes apontados nas narrativas das trabalhadoras,
mas igualmente encontrei-os no discurso das patroas ao falar do carinho com as crianças, na
atenção com suas necessidades, nas escolhas afetivas com os membros da casa, como por exemplo,
me relatou Júlia – “e ela é assim, a Carol é preferida dela, e uma vez a Érica teve um piti lá, e é
verdade, ela arruma o quarto da Carol melhor, ela deixa as coisas da Carol melhor. No meu quarto
ela coloca tudo as roupas. Mas o Diogo (neto) está lá em casa e ela leva café para ele lá em cima.
Ela tem uma coisa, se eu tiver de cama ou alguma coisa assim, nossa, ela faz sopa e leva chá.”.
Essas ações e atos são reconhecidos pelas patroas, são sentidos pelos membros da família e afetam
de diversas formas a maneira de pensar essa relação, inclusive de pensar a relação enquanto classe
social, no sentido de não poupar esforços ao amparar, financeiramente e emocionalmente, as
necessidades da trabalhadora.

Thays: Aham, e essa amizade que você preza tanto com as suas trabalhadoras assim...
porque que é tão importante?
Rita : Porque? Porque é uma pessoa que está todo dia dentro da minha casa, então não
existe uma intimidade maior que essa, a pessoa está participando da sua vida, de todas as
conversas, ela acaba escutando as conversas, tudo que acontece dentro da sua família,
então não existe maior intimidade do que isso, às vezes eu brinco assim, você é a dona da
casa... os dois viajam, ela cuida da casa, ela cuida dos cachorros, cuida... então sabe, é
uma confiança assim muito grande, e é uma troca né... que uma mão lava a outra.
Thays: Como que uma mão lava a outra?
Rita: Porque o que ela precisar eu sempre vou ajudar. Tudo que ela precisar, quando ela
perdeu um filho, precisou naquele momento que a gente ajudasse, até financeiramente, a
gente ajudou, pra tudo né, a gente tá aqui pra tudo que acontecer com ela, na vida dela,
com os filhos dela, então eu acho que é uma troca né. Ela faz tudo pela gente né, então a
gente tem que fazer por ela também, é uma relação bonita eu acho...
(entrevista 12, Rita, 54 anos, 2015).

Os discursos em relação aos afetos aparecem ligados aos pressupostos de proteção, gratidão
e gratificação – como já apontado por Graham (1992). Nesse sentido, a construção dos afetos, a
maneira como são pautadas as conexões ente os sujeitos dessa relação, estão inseridos na lógica
das reconfigurações da “cultura doméstica”, pois são afetos intrinsicamente formados no
reconhecimento do ato, mas não no reconhecimento da pessoa que o faz. (MOLINIER, 2013).
188

Como já apontado por Butler (2010), as noções particulares de personalidade determinam o objeto
e o significado de reconhecibilidade. Assim, acolhemos um ideal normativo como condição
preexistente do reconhecimento, atribuindo o reconhecimento de uma maneira diferencial.
Sabendo então que essas relações afetivas são construídas intrinsicamente no reconhecimento que
trabalhadoras e patroas são diferentes, o sentido da gratidão e das gratificações também reafirmam
as desigualdades e pautam negociações assimétricas. As doações, ainda muito comuns nessas
relações, reafirmam essa característica e também pautam as percepções das patroas sobre os
direitos trabalhistas recentemente aprovados.

6.2.1 Doações, Roubos e Direitos Trabalhistas

As doações feitas por patroas para trabalhadoras domésticas remuneradas já foram alvo de
muitas análises nas pesquisas sobre o tema, nos mostrando uma longa herança cultural que acessa
mecanismos para prover sustento, econômico e afetivo, para além das remunerações financeiras.
Essas doações se caracterizam, normalmente, através da comida, móveis, roupas, remédios,
estendendo para necessidades e gastos específicos que a trabalhadora venha a ter. Como bem nos
aponta Brites (2000), essas doações faziam muito sentido para a trabalhadora doméstica
remunerada, configurando inclusive práticas econômicas de subsistência nas periferias brasileiras,
desvelando outras percepções sobre políticas clientelistas. Em sua análise baseada no conceito de
dádiva de Mauss, ela percebe que as trabalhadoras retribuem as doações através da lealdade e
prestígio, ao receber essas “regalias” as trabalhadoras sabiam que tinham recebido “a sobra”, “o
descarte”, “o que não se usa”, “o que não se quer mais”, “o que já está velho” – coisas de segunda
mão, para pessoas de “segunda classe” – não tendo uma visão ingênua sobre os donativos e sobre
a maneira de retribuí-los.
As doações também foram incessantemente contadas e narradas pelas patroas entrevistadas
nessa pesquisa, elas se sentem no dever de doar objetos, comida, móveis, tanto por uma
consciência de que estarão ajudando alguém com necessidades, como por uma ideia que para
manter uma boa relação com a trabalhadora doméstica remunerada é preciso “dar certos agrados”.
Mas assim como na análise de Brites (2000), as doações ainda são marcadas por uma desigualdade
e diferenciação fundantes.
189

Thays: E o que você acha que é esse agrado assim?


Flávia: Olha, na verdade assim, é... (5 segundos em silêncio). Eu nem sei te dizer, como
que a gente... (5 segundos em silêncio). Primeiro que todas as coisas aqui na minha casa
(4 segundos em silêncio) eu dou para a Dona Sônia, o mesmo a minha mãe. Aí, vai trocar
de cama: - Dona Sônia, quer levar a cama? Eu troco de armário: Dona Sônia, a senhora
quer levar o armário? Eu tinha um casaco de pele que estava me irritando sabe, eu nem
sei onde é que a Dona Sônia vai com aquele casaco de pele (risadas). Porque é um casaco
de pele que eu não posso guardar ele dentro do guarda roupa, porque ele estraga, ele mofa,
então ele ficava pendurado aqui, aí dia de sol eu pendurava ele para lá. Aí esses dias eu
me irritei com aquele casaco – aí, esse casaco que não pode ser pendurado dentro do
guarda roupa, fica pendurado, eu não quero mais esse casaco, eu não vou mais usar isso
– Aí eu falei: ô Dona Sônia, a senhora quer o meu casaco de pele? Porque eu estou irritada
com ele, eu quero que ele suma da minha vista. (risadas). Eu nem sei onde é que ela vai
com aquele casaco (risadas), mas ela levou o casaco. Enfim, bercinho do Daniel,
roupinha, quando minha vó morreu, tudo, tudo eu dou para ela. Tudo que vai sabe, eu não
gosto de acumular, e quando as coisas começam a me irritar eu quero...eu dou tudo para
a Dona Sônia – Dona Sônia, quer? – Porque eu sei que ela usa, se ela não usa ela ajuda
outras pessoas.
(entrevista 4, Flavia, 38 anos, 2015).

A decisão de dar o casaco coloca em movimento o objeto, o valor do objeto, o valor afetivo
e a expressão seletiva dele. Nesse sentindo, um casaco de pele passa a não ter o mesmo valor
quando usado em outro corpo e outro contexto social – como discretamente debochado e
questionado por Flávia: “Eu nem sei onde é que ela vai com esse casaco”. A doação significa alívio
para essa empregadora em dois sentidos: porque ela não se irrita mais e porque ela tem a
possibilidade de ser boa. Assim, as doações além de expressarem os afetos, expressam o poder. E
nesse sentido, uma característica que se apresentou incessantemente nas narrativas das patroas
entrevistadas é a questão se as trabalhadoras são ou não merecedoras dessas doações e dos afetos.
Os parâmetros de merecimento estão pautados na qualidade dos serviços prestados, na lealdade,
obediência e laços “genuinamente” afetivos.

Thays: huuum, entendi. Bom, essa coisa do respeito assim, como por exemplo, como você
ensinava as suas filhas a terem respeito por uma trabalhadora doméstica?
Leila: as minhas filhas sempre trataram bem elas, sabe? É, é, sempre as moças gostam
delas porque realmente elas tratavam bem as... as... as... moças que trabalhavam lá. E
quando elas eram pequenas era a companhia delas né, então, ah, ah, eu tive uma mocinha
que veio de Codó e ficou quatro anos comigo, e nossa, ela sentiu um...até hoje essa moça
tem relação com a gente porque ela mora nos fundo da minha empresa, porque a gente
deixou ela morar lá porque ela fez enfermagem, ela estudou, fez segundo grau, fez, é,
enfermagem e agora ela faz faculdade de enfermagem. Então como ela morava longe eu
disse: “Déia, fique aqui atrás da empresa”. Porque ela trabalha ali no hospital, então a
gente deixou ela lá na casinha que tem lá no fundo para ela e ela atende...e ela trabalhou
comigo e depois trabalhou com a minha filha, criou as minhas netas, entende? Ajudou a
criar. Agora ela está terminando a faculdade de enfermagem. Então é uma pessoa que
realmente a gente, é, tem prazer em ajudar porque é uma menina esforçada, é uma menina
caprichosa, quando eu quero, assim, armários perfeitamente arrumados eu digo: Déia,
190

vem arrumar meus armários! (risadas) Aí eu pago para ela o dia e ela vem e arruma tudo
certinho, ela é muito caprichosa.
(entrevista 13, Leila, 64 anos, 2015).

Essa mesma lógica meritócratica foi percebida em relação aos direitos trabalhistas
conquistados em 2013 para a categoria profissional de trabalhadoras domésticas remuneradas,
havia nas narrativas das empregadoras uma compressão de que além dos direitos, elas ainda
ganhavam regalias por meio das doações e não mantinham uma qualidade nos serviços prestados,
não sendo assim merecedoras de todos esses “benefícios”. O serviço de qualidade se apresenta nas
características da “cultura doméstica” sobre organização, limpeza, preparo de alimentos,
posicionalidades e limites. De tal modo, a trabalhadora que “não limpa os cantinhos”, “não lava o
banheiro, só passa um pano”, “quebra objetos”, “come o que não deveria” não “merece” o registro
na carteira de trabalho, pois afinal de contas estão “abusando” da “boa vontade” dos patrões, que
já fazem diversas doações.

Thays: porque que você acha que hoje tem que ficar colocando limite?
Marcela: Limite? Ah, eu acho que são os direitos que aumentaram, informação, questão
de internet, televisão, eu acho que elas são mais bem informadas. Apesar de... eu não acho
errado isso, sabe, mesmo na época da minha mãe ela sempre falou, se você arrumar um
lugar que você vai ganhar mais, se você conseguir alguém que te registre, vai, eu não me
importo de arrumar outra pessoa, e eu também sempre pensei assim... [...] e eu acho que
elas estão certas em se informar, não acho errado não, só que o que eu acho errado, só
que elas acham, que tem mais direitos do que um trabalhador que trabalha numa firma
fechada, só que elas não tem consciência de que elas não trabalham como se fosse numa
firma fechada, elas quebram coisas nossas, elas não fazem o que tem que fazer, a gente
tem que corrigir toda semana, comem na hora que querem, não tem aquela coisa rígida
de bater cartão, esse tipo de coisa, e eu acho que ela não tem muito consciência dessa
necessi... do que vai acontecer na vida delas né, porque eu acho que você tem uma... não
é que a vida de doméstica é fácil, do emprego doméstico, mas elas tinham regalias, quem
trabalhava bem sempre tem regalias, e eu acho que elas não tem noção que elas vão perder
isso.
Thays: Quais são essas regalias que você vê assim?
Marcela: Ah, eu vejo que, ai, as domésticas ganham presente sempre, pra filho, quando
vai no mercado você sempre lembra de levar alguma coisa, biscoitos, gostou de alguma
coisa, e... com esse monte de regra que a gente tem que cumprir, com esse monte de
imposição, eu acho que isso inibe um pouco, fora o salário que subiu bastante né, então
se a gente não pode aí a gente acaba limitando pra não ter que registrar mesmo.
(entrevista 10, Marcela, 38 anos, 2015).

As doações são práticas tão comumente estabelecidas nas relações que envolvem
trabalhadoras domésticas remuneradas e as famílias empregadoras, que o Estado brasileiro proibiu
191

em 2006 que possíveis abonos salariais fossem realizados em detrimento destes74. Algumas
patroas, principalmente as que mantinham um vínculo de trabalho onde a trabalhadora também
dormia em sua residência, acabava descontando do salário gastos com as despesas cotidianas. Na
pesquisa realizada em Curitiba nenhuma empregadora tinha um contrato de trabalho como esse no
momento que fizemos a entrevista, todas me disseram que perdiam muito a privacidade quando
tiveram essa experiência, além de ter que arcar com todos os custos que envolviam manter outra
pessoa em suas casas – “acabam se beneficiando se for morar na casa de alguém, não gastam
aluguel e ficam ali enfim, trabalha até as seis, depois assiste uma novela e tal e vai dormir” (Flávia).
As estatísticas já vinham apontando que a contratação de trabalhadoras que residem com a
família empregadora tem diminuído a cada ano, o que demostra uma transformação nas
configurações desse trabalho. (FRAGA, 2016). Com a nova legislação, onde foi estabelecida a
jornada de trabalho de oito horas diárias, a família precisa arcar com todas as horas extras a mais
que isso, inclusive com uma remuneração maior durante a noite, o que provavelmente dificulta a
contratação de uma trabalhadora que esteja disponível 24 horas por dia para a família. Mas, o que
realmente foi um incomodo para as patroas que tiveram uma contratação assim, era saber que havia
uma trabalhadora em casa e elas mesmas teriam realizar as tarefas domésticas depois do horário
estabelecido, causando irritações e questionamentos referentes ao trabalho feito e as
posicionalidades entre elas.

Thays: e assim, quando você estava com a menina que estava morando aqui, qual foi a
experiência assim?
Tereza: o que eu não gostei assim, como eu falei para ela que cinco horas não precisava
fazer mais nada, as vezes, tinha inúmeras coisas por fazer e eu sabia que depois das cinco
ela não ia fazer mais nada. Aí eu chegava sete horas da noite e tinha chão para varrer, as
vezes a cozinha estava toda suja, mas fechava cinco horas e não tinha dado tempo dela
fazer. Ela não varria a cozinha (risadinhas) e isso me desgastava sabe.
Thays: em que sentido assim?
Tereza: irritada. Aí eu ia lá e varria e as vezes ela estava sentada assistindo televisão e eu
ia lá e limpava, porque...como já estava fora do horário, eu chegava era sete e meia, sete
e sete e pouquinho e eu ia lá e varria para não ter que falar nada, primeiro para não ter
que falar nada, e também sabe deus o que foi que ela fez tanto durante o dia que não tinha
dado tempo de varrer a cozinha. Então essas coisas me chateiam bastante, me chateiam
muito.
Thays: você teria novamente na sua casa...
Tereza: morando na minha casa nunca mais, como eu tive né... [..] porque é custo também
para mim né.

74
Os pagamentos in natura, justamente estes realizados somente por doações foi um dos pontos críticos a ser
estabelecidos pela Convenção 189 e Recomendação 201 da OIT em 2011, não conseguindo um discurso unanime
nem entre as trabalhadoras domésticas de cada país. Assim, a OIT não conseguiu regulamentar essa prática.
192

Thays: quais custos assim?


Tereza: custo de que era um banho a mais, é luz, uma, três alimentações a mais, é tudo é
custo, a gente vai colocando no papel e as vezes vale mais....e quando ela saiu a gente
colocou a Vanessa no período integral, o custo foi menor.
Thays: entendi.
Tereza: porque eu pagava o salário cheio para ela, além de alimentação em casa, tipo, se
ela quisesse comer qualquer coisa, se eu comprasse chocolate ela tinha todo direito de
comer...[...]
Thays: e você lembra se na época que essa menina ficou aqui tinha um contrato já, uma
carteira de trabalho?
Tereza: não, não foi. Quando saiu a lei de...eu acho que ela saiu, ela parou de vir em
janeiro, eu não lembro que época foi das empregadas, aquelas leis de empregada, mas foi
logo em seguida que ela...
Thays: ela saiu e depois teve a aprovação...
Tereza: isso. Mas os direitos realmente eu não fiz, eu não tinha carteira assinada, era os
benefícios todos de alimentação, que era alimentação em casa, é, dormir aqui em casa,
não tinha serviço depois das cinco da tarde e realmente ela não lavava uma louça depois
da cinco da tarde. Como eu falei, chegava as oito, começava a oito e cinco horas acabava.
E outra, não vinha segunda de manhã e sexta-feira a tarde ela estava indo embora. Então,
era bom para ela e bom para mim, no sentido de manter a casa limpa.
(entrevista 1, Tereza, 40 anos, 2015).

O relato de Tereza demostra o aspecto das representações sobre as posicionalidades de


patroas e trabalhadoras em uma casa, as “doações” e os direitos trabalhistas. A trabalhadora que
morava em sua casa lhe trazia “irritação” porque não tinha terminado as tarefas durante as oito
horas de trabalho e ficava “descansando” - mesmo cuidado e dormindo no mesmo quarto de
Vanessa, sua filha mais nova - enquanto ela precisava varrer o chão. Além disso, ainda tinha que
pagar para além do salário integral a alimentação, a conta de luz mais alta e dividir o chocolate. O
registro na carteira de trabalho já um direito garantido para as trabalhadoras domésticas
remuneradas desde 1972, mas Tereza disse que demitiu a “menina” antes mesmo da “PEC das
Domésticas” (2013) ser aprovada, na tentativa de justificar o não cumprimento da legislação
trabalhista e a reafirmando, por meio das “doações”, o seu “bom” caráter. Arcar com as despesas
relativas a alimentação, saúde, cuidados de higiene da trabalhadora que reside na mesma casa que
os patrões, dorme no mesmo quarto que as crianças que necessitam ser cuidadas são percebidos
pelas patroas como uma forma de “doação” e “benevolência”, desconsiderando o fato de ter uma
pessoa disponível 24 horas dentro de suas casas que precisam ser amparadas com as necessidades
básicas da vida. O fato da trabalhadora “parar” às cinco da tarde, não significa que ela deixou de
olhar a criança, que ela não prestou algum “favor” para a família a noite ou que realizou alguma
ação simbólica afetiva – demostrando aspectos reiterados da cultura doméstica, e cumprindo com
uma jornada de trabalho extensa.
193

É importante dizer que se essas doações não são cobradas financeiramente, ou não são
cobradas diretamente com a trabalhadora doméstica remunerada em negociações e no
compartilhamento de um sentimento de “dívida” - como relatado por Coelho (2006) - elas são
minuciosamente contabilizadas nas narrativas das patroas. Como toda boa “patroa moderna”, elas
não vão fazer “mesquinharia” com pequenos objetos doados, ou até mesmo “furtados” pelas
trabalhadoras que estão trabalhando em suas residências, mas fazem no discurso reconhecer cada
papel higiênico levado, cada alimentação, cada chocolate dividido ou cada “regalia” doada a
trabalhadora.

Júlia: porque a Rosana leva papel higiênico, leva toalha, eu já fui na casa dela e é cheio
de toalha de mesa, de coisas nossas, entendeu?
Thays: mas você já chegou a falar alguma vez?
Júlia: Ah, eu imagino que sim, entendeu? Porque eu compro papel higiênico e deixo lá
em baixo. E eu tenho certeza absoluta que ela leva, e quando eu acho que tem mais e não
tem mais. Mas eu vejo lógica nisso, porque é um absurdo sabe? Pensa? Tem um monte
ali por que que eu não posso pegar um pouco? Isso passa assim pela cabeça da pessoa, eu
não acho isso uma falha.
Thays: entendi.
Júlia: não, se fosse uma pessoa estranha talvez eu achasse, mas como é ela eu dou esse
desconto.
Thays: mas tem alguma coisa que ela pegaria que você não suportaria assim?
Júlia: então, dinheiro é uma coisa ruim né.
Thays: mas nunca aconteceu?
Júlia: não, porque eu acabo me mudando. Olha, antes d’eu fazer as coisas eu acho que eu
pagava muito mais para ela, porque quando tem férias você não paga salário, então eu
pagava dois salários, paga as férias, pagava o salário e quando ela voltava eu pagava o
salário de novo. E depois que eu fiquei vendo: nossa, nem era para eu ter feito isso, mas
já pagou e desconta? Então, quando eu fiz a folha de pagamento né, eu vi que pagava
muito mais para ela do que ela merecia.
(entrevista 2, Júlia, 62 anos, 2015).

As doações fazem com que as patroas entrevistadas se reconheçam enquanto “boas” e


“generosas”, lhes trazendo sentimentos complexos frente ao convívio diário com a trabalhadora
doméstica remunerada, seja na doação “velada” de rolos de papel higiênico ou nos pagamentos
extras desatentamente realizados. A bondade pensada nos termos da vida cotidiana, em um
entrelaçamento com as relações de poder, constrói verdadeiras fronteiras da sua forma de ação
original. (HAN, 2014). Desde textos religiosos e filosóficos, a bondade aparece como o fim último,
é a ação virtuosa da qual requer uma reflexão moral. A bondade é caracterizada ao se distanciar
dos interesses próprios e fazer o bem para os que precisam de algo – seja no plano da materialidade
ou não – sem esperar retribuição, demostrando uma elevação moral. (MARTINS, 2013). Clara
Han (2014), em sua etnografia nas periferias urbanas chilenas, confronta os muitos sentidos da
194

bondade por meio de ações governamentais e individuais que a população de baixa renda recebe,
e ao questionar os princípios cristãos de “ame o próximo assim como a si mesmo”, nos mostra
como muitas vezes uma performance de fingimento se entrelaça nessas configurações, mostrando
uma batalha moral silenciosa e ilusória. Uma contradição entre o ato, a escolha e as reflexões
subjetivas morais dos sujeitos.
Essa forma de contradição é muito bem analisada por Lauren Berlant (2011) ao pensar
como o otimismo pode ser cruel em determinados momentos e contextos. De acordo com a autora,
o otimismo se caracteriza como cruel quando algo desejado se torna, de fato, um obstáculo para
chegar ao seu fim pleno. Uma relação entre o desejo e as ações individuais que pode envolver
diversos aspectos da vida cotidiana como a alimentação, amor, a ilusão de uma “boa vida” ou até
mesmo um projeto político. A crueldade dessa contradição está no fato do objeto/desejo almejado
impedir o sentido original idealizado, frustrando os indivíduos em uma rede ilusória entre seus
atos e suas ambições e escolhas.
Nesse sentido, a benevolência das patroas entrevistadas pode ser caracteriza como cruel,
pois ela não atinge o seu objetivo último plenamente. A bondade cruel, percebida nessa pesquisa,
está no fato que as doações realizadas pelas patroas não passam por ação de total desinteresse
próprio, visando beneficiar alguém sem retribuição. As doações, muitas vezes, nem se
caracterizam por uma forma espontânea e plena de generosidade, sentindo-se “compelidas” a fazer
para que a relação entre elas duas – patroas e trabalhadoras - não cause ruídos. Essas doações
acabam se tornando algo no qual as patroas se sentem abusadas, principalmente no contexto da
ampliação de direitos, já que além de todos os pagamentos atribuídos pelas leis trabalhistas elas
ainda tem que dar “regalias” e mais “benefícios”. No contexto atual, as doações não suprem mais
com a irregularidade e com o baixo salário, já que o Estado “garante” a proteção desse trabalho,
passando então a ser vistos como “desnecessários”, uma vez que as trabalhadoras são asseguradas
por outras vias. No entanto, como já apontado por Malinowiski (1976), a generosidade é um dos
principais meios de se demostrar a riqueza, sendo assim as patroas não podem simplesmente se
abstrair das doações, uma vez que que na construção identitária enquanto mulheres de classe
média, as doações reafirmam os símbolos que representam suas posicionalidades. E assim como
na etnografia de Han (2014), o fingimento é a performance acessada para cumprir com o objetivo
de se reconhecer como “boa” patroa. A bondade cruel então se faz no princípio de que “doar” e
“ajudar” a trabalhadora doméstica remunerada não lhes traz o real sentimento da benevolência,
195

pois precisam fingir o ato, do qual lhe trazem irritação, sentimento de abuso, além de receber em
troca um “péssimo serviço”.

Thays: Por que? Você acha que de alguma forma você acha que precisa agradar as
trabalhadoras domésticas?
Patrícia: Eu acho, porque elas são carentes né, tem uma vida difícil, deixam os filhos em
casa para atender a gente né. Essa menina mesmo tem duas meninas, uma de onze e outra
cinco, eu acho, então eu sempre estou comprando umas coisinhas para as crianças, um
brinquedinho, uma roupinha. E a minha filha também tem uma menina, então quando não
serve mais para a... a Aline, que tá bem boazinha ela dá para ela. Ela fica bem feliz...são
bem carinhosas com a gente.
Thays: entendi
Patrícia: mas olha, é duro de aguentar. A gente cansa de agradar outras também que não
tem retorno, mas ela (empregada) tem. E já tive outras também que teve. Essas que meu
pai arrumou estágio, que cresceu na vida e tudo sempre vem visitar. Essa que perdeu o
neném, ela veio aqui trazer os outros filhos que ela casou e teve. [...]. Então, tudo isso é
em agradecimento que a gente recebe né, por ter sido boa. E as que (suspiro) foram safada
não vieram mais. Mas acho que já passou mais de cem empregadas pela minha vida, pelo
amor de deus! Entre diarista e mensalista...mas era isso, as empregadas é que elas não
são....eu tenho tia, prima da minha mãe, que tem uma empregada há quarenta anos. Nunca
saiu de lá, a prima da minha mãe já faleceu e ela está lá com o filho e a nora da minha
prima. Então tem pessoas, que é, eu gostaria de ter tido uma pessoa assim, que criasse a
gente, que criasse os meus filhos, entende? Que estivesse com a gente. Essa minha amiga
de Florianópolis também, ela teve uma que criou as filhas dela, criou os netos e agora ela
está velhinha e eles construíram uma casa para ela e ela mora sozinha lá no cantinho dela,
não trabalha mais porque ela está velhinha e daí quando ela viaja ela vai lá cuidar da casa,
posa lá para ter luz e tudo, então ela também foi agradecida né. E a Célia também foi
agradecida porque cuidou deles a vida inteira né.
(entrevista 3, Patrícia, 68 anos, 2015).

Assim, as doações apresentam-se reconfiguradas nessas contratações contemporâneas, pois


não fazem mais o sentido estrito do elo afetivo, da lealdade e obediência. As doações são vistas
como habituais entre as patroas que entrevistei, mas diferentemente das análises e descrições
realizadas sobre elas anteriormente, estas apresentam-se como um forte elemento que entra nos
cálculos entre direitos, afetos, posicionalidades e reconhecimento. Na narrativa dessas mulheres,
as doações não se mostravam mais como de necessidade para superar misérias, fome ou um quadro
de pobreza da trabalhadora doméstica remunerada, elas apareciam como “regalias”, “benefícios”
e “agrados” para manter uma boa relação dentro do contexto doméstico. Nesse sentido, as doações
são vistas como desproporcionais aos direitos conquistados, pois além de arcarem com as despesas
tributárias ainda precisam fazer doações, e não recebem mais a mesma lealdade de vínculos
trabalhistas vistos no passado – como nos disse Patrícia. Mas, as doações ainda são forte símbolos
representativos das posicionalidades, das diferenciações de classe social e reafirmam uma
196

compreensão da “bondade” ligada, de uma forma naturalizada e essencializada, ao feminino.


(MARTINS, 2013). De tal modo que as doações entram no rol das reconfigurações da “cultura
doméstica”, ao serem reiteradas as posições hierárquicas de poder.
Se as doações aparecem como formas estratégicas do acesso aos mecanismos de poder, o
“roubo” igualmente se insere nessa lógica ao reproduzir símbolos e posicionalidades, para garantir
às patroas a justificativa necessária para cometer certos abusos e desmerecer os direitos trabalhistas
conquistados. Todas as patroas com que fiz a entrevista me relataram casos de quando foram
furtadas, a pior coisa que podem acontecer com elas é contratar uma trabalhadora doméstica
remunerada “ladra”, “desonesta”, que quebre com o tão valorizado elo de confiança entre essas
duas mulheres. Os relatos sobre esses furtos foram narrados aos detalhes, com descrições
minuciosas do objeto levado, da reação, dos sentimentos e de como elas lidaram com essa
desagradável surpresa, quase sempre ocasionando na demissão desta, afinal de contas “não dá para
aguentar mais essa” – como me disse Helena.

Dinorá: Aí a Amanda (neta) tinha uma amiga, a Isabela, e daí ela foi lá passar o final de
semana, não sei o que, não sei o que...e a Isabela estava com o não sei o que, levou um
não sei o que de roupa para sair, aquelas coisas e levou um casaco de couro, e aí de repente
a Isabela: e meu casaco de couro? Não acho o casaco de couro. E a Amanda: mas você
trouxe? Eu não vi, que não sei o que, mas você não trouxe que eu não vi”. Aí aquela coisa
toda né, então mas, sabe? Eram bem mocinhas assim, sabe? Então a gente, até a minha
filha ficou assim pensando, acho que elas...naquela confusão e tal de coisas não deu para
ter trazido o tal do casaco de couro porque não estava o casaco de couro, e procura o
casaco de couro e tal e nada. Daí, passou o tempo e tinha a empregada essa, Lucimara, eu
não sei se esse negócio do colar foi antes ou foi depois do casaco de couro. Então, um
belo dia, não sei o que aconteceu, que a minha filha ficou suspeitando um pouco da
Lucimara. E daí a Lucimara saiu né, e aí a minha filha foi no quarto dela e falou: “não é
possível, aqui tem alguma coisa” – não sei mais o que tinha desaparecido – aí a minha
filha puxou a roupa da cama, colchão e daí você veja, ela tinha mandado fazer, minha
filha, uma cama que embaixo eram dois gavetões para guardar coisas né. Esses gavetões
entre um e outro tinham uma distância assim, sabe? O gavetão, aí tinha uma distância, aí
aqui outro gavetão, e aqui em cima tinha o negócio para pôr o colchão em cima. Aí nesse
espaço, além de outras coisas, de roupa das meninas, tinha o casaco de couro da Isabela.
Aí a minha filha falou: “Meu Jesus, a Isabela estava certa”. Tirou tudo aquilo, tirou tudo
o que tinha lá né e daí quando veio a Lucimara falou assim: “o que é isso que você colocou
aqui?” “– Eu? Eu coloquei?” “– Não, veio sozinho, veio sozinho e se enfiou aqui em
baixo”. E tchau para Lucimara.
(entrevista 7, Dinorá, 80 anos, 2015).

Os furtos de alimentos, sabonete, papel higiênico, toalhinhas, absorvente eram relatados


como algo terrível, porém esperado, pois são pequenos objetos cotidianos que, em um certo
sentido, as patroas “permitiam”, ou ao menos, não pensavam com mesmo rigor do que quando
197

eram furtadas financeiramente. O troco não devolvido, as moedinhas do pote, a nota que estava na
bolsa, etc. era o pior dos furtos, a justificativa para abusar das descrições pejorativas em relação
as trabalhadoras domésticas remuneradas na entrevista, de se mostrarem vítimas de pessoas “mal
agradecidas”, que recebem diversos benefícios e ainda abusam das relações de confiança. É
importante perceber que o roubo de óleo, macarrão, blusinhas, produtos de higiene são
automaticamente compreendidos através das desigualdades de classe, “são carentes”,
“necessitados”, então levam o pó de café porque não podem comprar. Esses tipos de “furtos”
reafirmam as diferenças de classe e, consequentemente, as posicionalidades entre essas mulheres.
Mesmo se percebendo enquanto “boas”, que não seria necessário “pegar sem avisar”, pois dariam
e ajudariam com o maior gosto, os roubos de “pequenos objetos” afetavam as patroas enquanto
uma inabilidade nos mecanismos de controle da casa, mas não necessariamente quebravam a
confiança em deixar as suas casas “nas mãos” de outra pessoa.

Thays: Qual foi a maior reclamação que você já ouviu assim?


Patrícia: de empregada? (3 segundos em silêncio) sei lá. (risadas). Acho que a maior
reclamação é que são, que roubam.
Thays: entendi.
Patrícia: essa é a pior coisa. Porque roubar comida e essas coisas você sabe que eu não
ligo, o que eu não admito assim é que mexem em joia, da minha irmã já roubaram uma
joia, roupa, então entende? Essas coisas assim, porque comida as vezes eu falo – ah, está
precisando, coitados, deixe que leve – essas coisas as vezes fazem tanta falta. Agora coisa
assim de valor eu ligo, dinheiro, é...já roubaram até a copa de cristal da minha mãe, que
a irmã dela morreu e daí desmancharam a casa e a minha mãe foi lá pegar, porque na casa
da irmã pegou alguma coisa, e aí a minha mãe pegou uma caixinha de copo de cristal que
ela não precisa era só para ter de lembrança. Seis copinhos de cristal de água e estava na
minha caixinha, lá na minha estante, e daí essa empregada ia casar e daí quando a gente
foi ver não estava lá mais os copos.
Thays: de cristal...
Patrícia: Então, é, tem coisas que a gente não liga. Mas isso aí é uma coisa afetiva, né. E
minha mãe descobriu isso depois, e roupa dela que roubam demais...
(entrevista 3, Patrícia, 68 anos, 2015).

Os furtos que envolviam diretamente bens considerados, por elas, preciosos, caros ou um
símbolo afetivo familiar eram a prova que tinham contratado uma “ladra”, uma trabalhadora
desonesta que aproveitou da confiança estabelecida para se beneficiar de outras formas da família
empregadora. Uma característica que permeia esse tipo de furto é a sua descoberta tardia pelas
patroas, pois normalmente, eram furtados os objetos quase nunca utilizados, que ficavam
guardados em armários, gavetas, maleiros que não faziam parte da vida cotidiana da empregadora
– ““Aparecida, por que você fez uma coisa dessa?” – “ah, porque a senhora tem umas coisas que
198

estavam todas guardadas em um maleiro” – isso era verdade, estavam guardadas em um armário
que eu tinha – “e eu nuca vi a senhora usar aquilo lá e então eu achei que não...””.(Dinorá) – Esse
relato de Dinorá demostrava a sua “experiência traumática” ao descobrir que Aparecida “pegou
coisas” depois de 15 anos trabalhando com ela, “por isso que eu estou te dizendo, você não pode
dar muita abertura porque depois, de repente, você vai ter uma surpresa desagradável”. (Dinorá).
A surpresa ao ver que a trabalhadora seria capaz de pegar taças de cristal que estavam
encaixotadas, pertences que ficavam guardados sem utilidades dentro de um maleiro, talheres de
prata que estavam separados para ocasiões especiais sem dúvida alguma representa a perda da
confiança para além de uma perda em termos econômicos e afetivos para as patroas. Mas muitas
vezes, o que era percebido nas entrelinhas dessas narrativas era a ideia simbólica que aqueles
objetos não eram usados, e por isso que foram levados. O valor econômico destes não aparecia nas
justificativas que as trabalhadoras lhes davam ao serem questionadas do roubo, mas sim a sua
inutilidade. Como já analisado por Brites (2000), os roubos praticados por trabalhadoras
domésticas remuneradas simbolizam um aspecto de rebeldia e formas de agência, frente as
diversas desigualdades e humilhações que passavam cotidianamente na casa da qual trabalhavam.
A intencionalidade da trabalhadora doméstica remunerada de pegar algo pelo seu real valor
econômico ultrapassa os limites metodológicos da tese, mas através das entrevistas não foi
percebido que elas o faziam para tentar um caminho de enriquecimento rápido e fácil. No entanto,
quando se tratava desses objetos considerados especiais, o desfecho era a demissão ou sentimento
de decepção profunda, indicando mais uma vez como as relações afetivas se interpõem nessas
interações.
Nenhuma das patroas me relatou ter ido prestar queixas na delegacia especializada de
pequenos furtos, ou qualquer outra instituição, para obter seus objetos e pertences novamente. A
razão para não levar os casos as instâncias jurídicas era a possibilidade delas serem acusadas de
mentirosas, não conseguirem provar de fato o roubo e serem ainda mais prejudicadas pela
trabalhadora doméstica remunerada através de um processo por danos morais, por exemplo.

Thays: Aham, e você estava falando essa coisa da confiança, como que você consegue
estabelecer uma relação de confiança assim com a trabalhadora doméstica?
Rosa: Eu acho que só o tempo né... o tempo vai dizendo. Porque já tivemos uma moça
que a gente começou a notar que faltava algumas coisas em casa, antes dessa, daí um dia
eu peguei e disse pro meu marido: “eu acho que tá acontecendo isso”, daí ele disse então
vamos fazer um teste, a gente não pode sair dizendo pra pessoa, daí a gente dispensou
também sem dizer... mas daí eu disse assim, ó fulana, corre ali, tem uma bolsinha na
199

gaveta tal, tem uma bolsinha lá, tem umas moedinhas, deve ter uns dez reais lá, mas acho
que daí eu deixei uma nota de 10, uma de 20, uma de 5, mais umas coisinha assim, umas
moedas, acho que tem dez reais ali e umas moedas, corre lá comprar leite na padaria,
entendeu, aí ela veio, eu contei o dinheirinho pra saber, aí o vinte não tava mais, nem o
cinco, só tava como se fosse o 10, o troco do 10, entendeu?
Thays: Entendi.
Rosa: Aí a gente teve certeza, daí no outro dia a gente dispensou dizendo que a gente não
ia mais precisar do trabalho, mas também tem aquela questão né, você não pode... sabe...
dizer não, tô dispensando porque você roubou, porque... sabe... é delicado né, hoje você
tem que tomar muito cuidado, tudo dá cadeia, tudo é... vamos dizer assim (risos), aí o
pessoal pode né... trocar os pés pelas mãos e daí sai, faz uma denúncia contra você, então
é bem delicado essa questão.
(entrevista 14, Rosa, 55 anos, 2015).

As narrativas eram permeadas pela ideia de que a trabalhadora doméstica remunerada


poderia reverter a situação e prejudicá-las de alguma forma, não acessando assim os meios
institucionais para resolver os casos de roubo. O que se mostrava, muitas vezes, uma forma de não
expor o contrato irregular da trabalhadora doméstica remunerada, uma vez que os processos legais
abriram as características que permeavam essa contratação trabalhista. Assim, por traz do discurso
da constante desonestidade da trabalhadora, havia uma possibilidade de esconder a desonestidade
da patroa - ao não se responsabilizar em cumprir com as exigências dos direitos trabalhistas
estabelecidos. Os desfechos desses casos de roubo oscilavam entre a demissão, um questionamento
abusivo, uma quebra no elo de confiança e das relações afetivas.

Verônica: Você acredita que ela dava a chave (da casa de praia) da minha casa pra filha
ir dormir com o cara?
Thays: Aí você teve que dispensar?
Verônica: Aí mas eu fiquei doida quando eu soube, eu chamei ela, “vai lá em casa”, eu
fui lá na casa dela, “eu preciso falar com você, vai lá em casa por favor e leva a chave”.
Ah, mas eu cheguei em casa ela já chegou atrás, daí eu falei “olha, eu to sabendo que você
está, que a tua filha está vindo aqui passar a noite aqui na minha casa, só que eu cobro
quinhentos reais pra dormir na minha cama por noite, então vamos ver isso, quem que
está dando a chave? Ela está te roubando a chave?”, “não, eu dei pra ela” nesse... “ah você
deu a chave, então ela vem aqui com a tua autorização?”, “é”, “então tá, então me dá a
chave aqui, você não trabalha mais pra mim, e fique sabendo que se eu quiser cobrar eu
posso ir pra justiça e cobrar quinhentos reais por toda a noite que ela dormiu aqui”, essa
mulher ficou vermelha, nossa mas chorou, chorou, chorou, daí conversamos lá [...], mas
aí é uma quebra de confiança né, não tem mais, sem chance, nossa, olha a
irresponsabilidade dessa mulher, não sei se de repente até não alugou minha casa... usava
a piscina, levava o neto lá pra usar a piscina, então assim, essa foi, essa marcou bem
também a vida sabe, foi assim traumatizante...[...] nossa foi traumatizante pra mim isso,
fiquei muito abalada, aí perdi a confiança, que hoje eu tenho só piscineiro e o jardineiro,
que eu pago pra ela por dia lá, e diarista eu não tenho mais, porque eu não tenho mais
confiança de deixar a chave, sabe... olha o trauma que dá isso pra gente.
(entrevista 15,Verônica, 42 anos, 2015).
200

Verônica não foi a justiça, não cobrou a pernoite da casa de praia, é como se os problemas
informais se resolvessem de uma forma informal, ou, como se a informalidade dessa contratação
não pudesse ser resolvida pelos meios formais. Inclusive, quando os meios jurídicos eram
acionados pelas trabalhadoras domésticas remuneradas as patroas se ofendiam, se sentiam
injustiçadas porque já haviam realizado diversas doações, já haviam suportado furtos e ainda
tinham que passar por um processo judicial porque não tinham “registrado” a trabalhadora. Uma
forma de negociação e compensação totalmente desproporcional, como se o fato de “ter sido
roubada” valesse pelo fato de não cumprir com as ordens legais.

Patrícia: E ultimamente, depois que eu, porque eu fui morar em Ponta Grossa e fiz
odontologia, quando eu voltei para Curitiba que minha mãe começou a ter empregadas
tinha umas boas, tinha outras péssimas e eu tive uma, ultimamente agora, faz uns cinco
anos que ela era...nhenhenhe e era a maior cretina, cara de pau. Um dia eu paguei Unimed
para a minha filha e ela devolveu o dinheiro e eu pus em uma caixinha de joia, e ela viu
eu pôr, quando eu fui ver o dia seguinte ‘cadê o dinheiro?’ Já tinha levado, ‘vai provar
como?’. Aí eu juntava moeda em um potinho, eu tinha 360 reais de moeda e ela levou
embora também. Aí eu disse assim para a minha mãe: manda embora, porque é ladra.
Você acredita que ela pôs, ela não era registrada, pôs a gente na Justiça e aí a minha mãe
teve que pagar dois mil reais por não estar registrada?
(entrevista 3, Patrícia, 68 anos, 2015).

Portanto, as doações e roubos entram nas lógicas das reconfigurações da “cultura


doméstica”, pois reiteram posicionalidades, hierarquias, mantêm relações de poder e entram no
complexo rol de negociações entre afetos e direitos, conectados com as desigualdades de classe,
étnico-raciais e de gênero. Esses pontos ainda permeiam os aspectos de reconhecibilidade dos
direitos trabalhistas, uma que vez que entram como parâmetro de “cálculos” frente a um quadro
legislativo que visa uma contratação justa e sem abusos. O roubos, por sua vez, são narrados,
criticados e apontados como o pior “defeito” de uma trabalhadora, mas seus desfechos também
refletem diversas “desonestidades” das patroas, não os levando aos meios institucionalizados, já
que as contratações não eram também regularizadas.
As dificuldades em se enquadrar nos novos parâmetros legislativos também foram
percebidos pelas patroas como desconectados da realidade de demandas de suas casas, criando
então uma ideia de “cada casa tem uma lei”, ao realizar negociações que refletissem a vida
cotidiana de suas residências, não incorporando assim as determinações legais.
201

6.2.2 Vida Cotidiana e Direitos Trabalhistas

Durante as entrevistas havia um consenso sobre a ampliação de direitos trabalhistas


aprovados em 2013, por meio da “PEC das Domésticas”. As patroas não se opunham à ideia de
que a nova legislação era importante para a categoria profissional de trabalhadoras domésticas
remuneradas, afinal elas são trabalhadoras “como qualquer outra pessoa”, e essa equiparação era
mais do que justa – de acordo com suas palavras. Como já explicitado anteriormente, nenhuma
empregadora vai se colocar em uma posição que não reconheça esse trabalho, que não tenha um
pensamento “moderno” sobre essas contratações, livrando-se dos aspectos “escravocratas” dessa
relação. Nessa mesma lógica, foram poucas as patroas que fizeram referência ao aumento de custos
que essas contratações passariam a ter, mesmo porque as alterações nas taxas de pagamento, de
fato, não eram o problema para elas.
Com a nova legislação, as empregadoras obrigatoriamente tem que arcar com os seguintes
gastos referentes aos direitos trabalhistas:
202

QUADRO 2 - TAXAS DE PAGAMENTO COM A “PEC DAS DOMÉSTICAS” PARA EMPREGADORES


TAXAS DE PAGAMENTO COM A PEC DAS DOMÉSTICAS
8% do salário para o FGTS
12% do salário para o INSS
3,2% do salário para casos de indenização sem justa causa
(quando acontece a demissão sem justa causa, o empregador deve
pagar uma multa de 40% do valor que trabalhador tem assegurado
no FGTS, no entanto para as pessoas que empregam uma
trabalhadora doméstica remunerada foi estabelecido essa cobrança
como uma forma de “poupança”, para que o pagamento da multa
não afete tanto o orçamento familiar).
0,8% do salário para seguro contra acidentes de trabalho
Salário-família – taxa de R$31,07 para cada filho da trabalhadora
doméstica remunerada que tenha até 14 anos, ou que seja portador
de necessidades especiais em qualquer idade. (como esse benefício
é concedido pela Previdência Social, os patrões são reembolsados
por meio da guia de recolhimento do INSS).
Fonte: MONTICELLI, Thays. 2017

Essas são as taxas fixas que uma empregadora precisa pagar todos os meses. Durante o ano
de 2015, quando foram realizadas as entrevistas, as patroas tinham então que arcar com o custo de
R$1.070, 3375 referente ao salário mínimo, R$97,07 do FGTS, R$128,43 do INSS, R$9,31 em
relação ao seguro contra acidente de trabalho, R$37,23 de antecipação de multa do FGTS. O total
seria de R$1.342,37 mensais. Lembrando que a média salarial das patroas entrevistadas era de
R$6.698,00, e a renda média familiar mensal estava em torno de R$14.548,00. Ou seja, o
pagamento para a trabalhadora doméstica remunerada afetava cerca de 20,04% do salário das
patroas, ou, 9,2% do orçamento familiar. Em relação aos gastos não fixos, que seriam, por
exemplo, as horas extras e o adicional noturno a nova legislação dispõem dos seguintes valores:
50% a mais de cada hora trabalhada, que representaria R$7,29 para cada hora excedida da jornada
de 8 horas diárias; já para o trabalho noturno (considerado das 22:00 às 5:00), cada hora de trabalho
custaria R$5,83. Entre essas normas, as horas extras podem ser colocadas em um “banco de horas”
e ser compensado por folgas ou redução da jornada durante um ano.

75
Salário mínimo estipulado pelo Governo do Estado do Paraná no ano de 2015.
203

Os discursos sobre as dificuldades no orçamento familiar e a falta de compreensão


burocrática das leis trabalhistas eram, por vezes, proferidos pelas patroas entrevistadas, mas logo
assumiam outra postura no exercício da narrativa reflexiva quando lhes perguntava sobre os reais
empecilhos da legislação. Esses discursos eram visivelmente pautados por um imaginário que as
leis trariam desemprego, aumentaria o número de diaristas ou horistas e consequentemente, seria
cada vez mais difícil achar uma trabalhadora “como as de antes” – como me disse Claúdia
(entrevista 6, 2015). Assim, percebiam que o aumento das taxas de cada direito conquistado, não
era o principal problema dessas contratações e sim as mudanças que afetariam as suas vidas
cotidianas.

Thays: Assim, é, o que você pensa sobre a nova legislação para as trabalhadoras
domésticas?
Rita: ah, eu acho que ficou meio barra né. Eu acho assim, eu acho que é bom pelos direitos
que realmente tem, mas eu acho que vai ter muito menos empregada porque não é todo
mundo que vai aguentar essa barra de pagar um monte de direitos, além dos já direitos
que elas tem. É, mas eu acho que ela é trabalhadora como qualquer ser humano, então ela
vai ter que ter esse direito.
Thays: aham. Porque você acha que vai mudar mais? A partir dessa nova lei...
Rita: ah, eu acho que agora o que vai aumentar é o FGTS a mais que vai ser obrigado a
recolher né, e mais as porcentagens aí que o governo pôs, também acho que não vai fazer
tanta diferença não.
(entrevista 12, Rita, 54 anos, 2015).

A despeito de todas essas taxas, o que era o motivo das constantes queixas para as patroas
entrevistadas era em relação aos serviços recebidos frente a todo aparato de direitos que as
protegiam, como se houvesse uma desproporcionalidade entre as responsabilidades que teriam que
arcar perante a justiça, com as forma como o trabalho doméstico era feito pelas trabalhadoras -
estariam pagando caro por um serviço de “péssima” qualidade.

Thays: Entendi, entendi… E, é, o que você pensa sobre essa nova legislação para as
trabalhadoras domésticas?
Leila: Não, eu acho que tá certo, eu acho que elas tem né... só que eu acho que tem uma
coisa que não dá certo, é... elas não estão tão bem informadas assim, quanto aos direitos
e aos deveres delas, então na maioria das vezes elas acabam cobrando só os direitos, elas
nunca, mas nem por sonho elas vão ver os deveres, não vão olhar os deveres, então isso
está tendo muito... muita, né... tem gente que está mandando embora, mandando embora,
mandando embora, por causa da nova lei e isso é ridículo porque elas tem todo o direito
como qualquer outro trabalhador...
Thays: Sim.
Leila: O que tem é que sentar e colocar tudo certinho, na verdade não foi nem uma coisa
que afetou tanto financeiramente o patrão, mas assustou muito as pessoas, “ah porque
agora ela tem direito à isso, direito àquilo”, a Soraia, ela tem um monte de direitos, ela
204

tem direito de ficar uma hora na hora do almoço sem fazer nada, mas ela não fica, porquê?
Porque isso é um acordo...
Thays: Que vocês tem…
Leila: Que a gente tem, porque não funciona assim na verdade, isso não funciona no dia
a dia, não funciona, prejudica o patrão e prejudica elas... entendeu, não funciona assim...
eu acho isso, que, que… elas não estão preparadas entendeu? Eu acho que teria que ter,
junto com essa legislação o governo devia dar lá um curso básico pra todas elas, pra
ensinar o que que elas tem direito, quais são os deveres entendeu, porque fica muito assim
na superficialidade, daí qualquer coisinha elas vão e vão cobrar do patrão e acabam
brigando, entrando em atrito, daí é aonde que perde o emprego...
(entrevista 14, Leila, 64 anos, 2015)

Uma outra característica que foi demasiadamente apontada pelas patroas é a falta de
conexão prática das leis com as suas vidas cotidianas. Como bem relata Leila, a trabalhadora
doméstica remunerada tem o direito de 1 hora de intervalo para refeições e descanso se tiver uma
jornada de mais de 6 horas de trabalho por dia. No entanto, esse intervalo - que pode durar até 2
horas previsto em lei - acontece no momento em que a casa mais precisa trabalhadora doméstica
remunerada, de acordo com elas – a hora do almoço. Essa hora “sem fazer nada”, como disse Leila,
é uma norma estabelecida pela medicina e pela segurança do trabalho, não podendo ser negociada
ou renunciada pela própria trabalhadora. Mas, nas práticas das casas da qual entrevistei, a hora do
intervalo nunca foi respeitada por nenhuma das duas partes e nem ao menos eram computadas
como horas extras.

Thays: Quais os desafios que essa legislação impõe que você acha para o empregador?
Nara: É o que eu te disse, vou ter que contratar um contador, né, porque vamos ter que
marcar horário, vamos ter que dar intervalo, né, então, você veja bem, como a gente estava
falando, a empregada ter que parar na hora do almoço, uma hora, é meio incoerente isso,
sabe... porque dentro da casa a dinâmica é outra, a dinâmica de uma empresa você para
ao meio dia e volta a uma e pronto, acabou, agora na casa é bem o horário que tem mais
serviço, porque você está servindo o almoço, você está atendendo, você tem que lavar
louça, está fazendo o almoço, e também não há o interesse depois de dar uma folga às
quatro horas da tarde, que interesse que tem pra empregada, não é? Sabe, nesse aspecto
eu achei que está bem complicado sabe, bem complicado.
(entrevista 8, Nara, 59 anos, 2015).

Esse aspecto vem demostrar a dificuldade de se pensar a vida cotidiana familiar em outros
parâmetros, inserindo outras lógicas e práticas que forcem a interação da patroa e de sua família
frente as demandas domésticas. Assim, expõe como os símbolos, as representações e as
posicionalidades da “cultura doméstica” não são modificadas com a ampliação da leis trabalhistas,
pois negociações são realizadas para arcar com as necessidades da casa, sem que haja uma reflexão
sobre as possibilidades de não contar com a trabalhadora durante um tempo determinado do dia.
205

O que entra em jogo é que um direito garantido, que preserva a saúde da trabalhadora, negociado
em função de uma ordem cotidiana tradicionalmente estabelecida nessas casas, retirando um
caráter mais “profissionalizado” e “racional” dessas contrações – características tão desejadas no
discurso das patroas.
Nesse sentido, os acordos entre patroas e trabalhadoras domésticas remuneradas acabam
por trazer reconfigurações da “cultura doméstica”, não rompendo com uma jornada de trabalho
excessiva, e nem com uma ideologia que permeia as práticas cotidianas referentes a organização
do almoço, do tempo de filhos e filhas e com as posicionalidades de quem serve e se quem é
servido. Além disso, a imposição da jornada de trabalho com a contabilidade de horas extras
passou a ser mais uma das formas de utilização de mecanismos de poder por parte das patroas. Nas
narrativas destas havia sempre a suspeita de que a trabalhadora poderia se beneficiar ao trabalhar
menos e ganhar mais, “mentindo” ou “enganando” a patroa sobre os horários de chegada e
principalmente em relação aos horários de saída.

Flávia: Ah, então a Dona Sônia chega às 7:15 e ela vai embora, assim, umas três e meia.
[...] ela trabalha, mas acho que ela trabalha, porque tem uma hora de descanso né e ela
não faz essa uma hora de descanso. Então ela tem que trabalhar as horas, que ela tem que
trabalhar menos uma hora porque ela não faz esse descanso.
Thays: uhum.
Flávia: e falando nesse negócio de horas para trabalhar é difícil, porque você vai fazer o
que? Você vai colocar um relógio ponto na sua casa?
Thays: é uma das grandes dificuldades.
Flávia: Você vai colocar um livrinho para assinar? Aí ela vai escrever 7:00 e chega às
8:00. Você nem está lá para ver. A minha mãe estava falando, e a minha mãe fala na frente
da Dona Sônia, que as vezes né, para a Dona Sônia também se espertar. Que o pessoal da
academia estava reclamando que tinham colocado livro ponto para as funcionárias, mas
as funcionárias assinam lá 4 horas e enfim a amiga da minha mãe ligou ou voltou para
casa para fazer alguma coisa e a mulher já não estava mais lá. Então, tipo, serve para que?
Serve para ajudar ou serve para atrapalhar? Para que que serve? Então eu nem fiz esse
negócio de livro ponto aí, porque...
(entrevista 4, Flávia, 38 anos, 2015)

O estereótipo de malandragem permeia as narrativas das patroas sobre a trabalhadora


doméstica remunerada, exigindo destas estratégias de vigilância e controle para não serem
“passadas para trás”. Se por um lado a jornada de trabalho estabelecida em 8 horas diárias foi um
dos maiores ganhos em questões de direitos para as trabalhadoras, regularizando abusivas e
excessivas horas de trabalho sem uma remuneração justa, como já analisado por Ávila (2009), ela
oferece para as patroas formas de acessar suas posições de poder e de construir discursos referentes
206

a desonestidade destas, intensificadas em um contexto em que as empregadoras não ficam em casa


a todo tempo fiscalizando e ordenando o que necessita ser feito.

Helena: Questão de horário, regularidade, é... de, de, dessa de registrar mesmo entradas e
saídas, eu acho que é uma das partes que parece que eles estão desenvolvendo algumas
coisas agora, já ponto por telefone, esse tipo de coisa...
Thays: Ah é? Eu não estava sabendo disso...
Helena: É... então já estão lançando sisteminhas de registro pra elas, essa do telefone é
uma técnica que eu sempre usava. Eu falava, quando você tiver saindo me liga que eu
mando acionar o alarme da casa, porque eu nunca dava a senha assim, eu não dei a senha
do alarme, eu podia cadastrar pra elas, mas eu, algumas eu fiz questão de não dar, “olha,
me liga que eu aciono o alarme da casa”, então isso que eu conseguia controlar a saída
delas, e muitas vezes eu perguntava, “porque você tá indo embora já? Você fez não sei o
quê?” e eu acho que é uma coisa que vai pegar bastante, questão de horário, especialmente
pra essas que ficam sozinha né, em casa e diz que cumpre o horário o dia inteiro.
(entrevista 9, Helena, 34 anos, 2015)

De tal modo, as patroas não rompem com um imaginário de representações e símbolos em


relação a trabalhadora doméstica remunerada, colocando-se em posição defensiva das possíveis
“desonestidades”, “mentiras” e “ineficiências” no trabalho. As patroas então acessam as novas
informações que a nova legislação traz, e constroem novas formas de estabelecer seus parâmetros
de controle e vigilância - são reconfigurações da cultura doméstica.
Como bem nos apontou Maria Bethânia Ávila (2009), o tempo de trabalho das
trabalhadoras domésticas remuneradas é controlado e explorado de uma tal forma que se camuflam
com as percepções cotidianas como “hora de acordar”, “hora de dormir”, com o tempo livre que
seria para o seu lazer e passam assistindo novela com suas patroas, etc. De fato, a contabilização
de horas trabalhadas exigida pela nova legislação é o que mais incomoda a rede patronal que
entrevistei, pois as demandas de trabalho de uma casa são permanentes, não tem hora para acabar
e nem para começar – especialmente em residências com filhos e filhas pequenos/as – o que
ocasionava em uma “extensividade, intensividade e intermitência das jornadas de trabalho
domésticas” (ÁVILA, 2009, p.370). E esse ritmo, pautado pelas configurações, reconfigurações e
reiterações da cultura doméstica, era automaticamente transferido para a trabalhadora doméstica
remunerada, que passa nesse instante a ter limites e taxas. O tempo não era a medida de
negociações entre trabalhadoras e seus patrões e sim as demandas de trabalho que a casa exigia,
não importando quanto tempo era necessário para faze-las. Nesse sentido, o reconhecimento de
horas de trabalhadas ainda se mostra incompatível com o trabalho doméstico remunerado – na
percepções das empregadoras.
207

Bruno Mouro Fernandes fez um post no dia 05 de abril de 2013 em sua conta em uma rede
social76, fazendo uma paródia sobre as interferências da “PEC das Domésticas” na rotina de sua
casa. De acordo com o conto de Bruno Fernandes, sua filha Tetê queria o “gagau” (mamadeira)
antes de dormir e a trabalhadora doméstica remunerada se recusava a fazer porque iria contabilizar
“horas extras”. Entre as manhas de Tetê e questionamentos de Bruno, a trabalhadora decide fazer
o “gagau”, mas se nega a dormir com a menina pois também iria contabilizar horas de trabalho.

- Deta, eu quer dormir com você.


- Não posso, Tetê.
- Quer dormiiiiiir com vocêêêêê!
- Tetê, eu já trabalhei mais de oito horas hoje e...
Irritado, intrometo-me:
- Peraí! Você quer dizer que não pode dormir com ela?
- Veja só, Sr. Bruno. Se eu dormir sozinha, lá no meu quarto eu não estou trabalhando,
portanto essas horas de sono não serão computadas na minha jornada de trabalho. Mas
se eu dormir com Tetê no quarto dela, o senhor terá que me pagar horas extras porque
estarei trabalhando, já que estarei ali, tomando conta dela, ainda que dormindo.
- Como é que uma pessoa pode tomar conta da outra dormindo?
- É lei, Sr. Bruno. É lei.
- Pôxa, e qual a diferença de dormir na sua cama e dormir no quarto de Tetê? De uma
forma ou de outra você estará descansando, ora bolas!
- Na verdade, em ambas as hipóteses estarei à disposição e, portanto, o senhor terá que
me pagar horas extras.

O post de Bruno Fernandes atingiu mais de 14 mil compartilhamentos em uma única rede
social, o que nos mostra uma popularidade das ideias que são dialogadas ao longo de sua narrativa.
A percepção de que se a trabalhadora dormir no mesmo quarto que Tetê ou no quarto dela seria a
mesma coisa, pois afinal de contas ela estaria “descansando”, não reconhece que essa mulher
estaria trabalhando ao acordar para realizar alguma demanda da criança. Provavelmente, se ele o
tivesse que fazer reconheceria esse tempo do cuidado como algo de fato trabalhoso. No entanto,
sem utilizar de pensamentos hipotéticos, Dr. Bruno convence a trabalhadora a dormir com a
criança e termina seu conto dizendo que tem medo do monstro chamado “horas extras” – e
descrevendo as “mudanças” causadas pela PEC aprovada.
O conto de Bruno Fernandes e as narrativas das patroas entrevistadas para essa pesquisa
vem nos mostrar a maior interferência da ampliação de direitos recentemente aprovada: em suas
vidas cotidianas. Esse aspecto causa tanto espanto pois, por um lado, o trabalho doméstico não era

76
Disponível: < https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10200323751688412&set=pb.1592889943.-
2207520000.1487332532.&type=3&theater> Acesso: 17 de fev. de 2017.
208

mensurado em horas de trabalho, mas sim nas demandas que necessitavam ser realizadas. E como
já dito anteriormente, a “cultura doméstica” pauta símbolos, representações e parâmetros sobre a
maneira como as demandas da casa precisam ser perfeitamente efetivadas, ocasionando em
extensas jornadas de trabalho pelo caráter cíclico destas. A rede patronal entrevistada não tinha
como organização ou exigência que determinadas tarefas fossem cumpridas em determinado
horário – mostrando um aspecto profissionalizado ou racionalizado desse trabalho – mas
demandavam que todas as tarefas fossem realizadas de acordo com o tempo e horário de suas
famílias, o horário do colégio da criança, o almoço do marido, etc. E por outro lado, as patroas não
tinham uma compreensão diferenciada da relação com a trabalhadora doméstica remunerada,
utilizando desse aspecto legislativo como mais uma forma de exercer seus mecanismos de poder,
controle e vigilância – não rompendo assim com características que vem sustentando as
desigualdades de classe, étnico-raciais interpostas pelas relações de gênero. As reconfigurações da
cultura doméstica se mostram ao utilizar dos aparatos estatais e institucionais para manter os
pressupostos de diferenciação e assegurar as posicionalidades nessa relação desigual.

6.3 AFETO, DIREITOS E A DESIGUALDADE NA VIDA COTIDIANA

Ao longo dos últimos anos, o Brasil tem passado por uma instabilidade política que levou
milhares de pessoas às ruas em protestos contra a corrupção e ao governo eleito nas eleições de
2014. Em alguma dessas manifestações foi possível ver casais, usando roupas com as cores da
bandeira nacional, levando seus filhos pequenos acompanhados por uma babá uniformizada. Em
uma dessas cenas, o empresário Claudio Pracownik foi fotografado com sua esposa, seus dois
filhos e a babá nas ruas do Rio de Janeiro, em um protesto do dia 12 de março de 2016, que tinha
como objetivo lutar contra a corrupção e a favor do golpe político que culminou da retirada da
Presidenta Dilma Rousseff. As críticas em relação a essa imagem era a ideia de um país que ainda
preservava características escravocratas, não somente pela relação étnico-racial, mas pelo fato da
trabalhadora estar uniformizada, em um domingo, cuidando dos filhos dos patrões enquanto estes
lutavam por um “país melhor”.
209

Frente ao grande compartilhamento de críticas e da própria imagem circulando em diversas


mídias sociais e da grande imprensa, o empresário veio por meio de sua página no facebook se
posicionar em relação a fotografia77. Pracownik disse:

Ganho meu dinheiro honestamente, meus bens estão em meu nome, não recebi presentes
de construtoras, pago impostos (não, propinas), emprego centenas de pessoas no meu
trabalho e na minha casa mais 04 funcionários. Todos recebem em dia. Todos têm
carteira assinada e para todos eu pago seus direitos sociais. Não faço mais do que a
minha obrigação! Se todos fizessem o mesmo, nosso país poderia estar em uma situação
diferente. A babá da foto, só trabalha aos finais de semana e recebe a mais por isto. Na
manifestação ela está usando sua roupa de trabalho e com dignidade ganhando seu
dinheiro. A profissão dela é regulamentada. Trata-se de uma ótima funcionária de
quem, a propósito, gostamos muito. Ela é, no entanto, livre para pedir demissão se achar
que prefere outra ocupação ou empregador. Não a trato como vítima, nem como se fosse
da minha família. Trato-a com o respeito e ofereço a dignidade que qualquer
trabalhador faz jus. [...].
(OGLOBO, 2016, grifo meu).

Figura 7 - CASAL LEVA BABÁ EM PROTESTO

Fonte: Jornal OGlobo, 2016

77
OGlobo. Vice do Flamengo Rebate Críticas por Foto com Baba em Protesto. Rio de Janeiro. 13 de marc.2016.
Disponível: http://oglobo.globo.com/esportes/vice-do-flamengo-rebate-criticas-por-foto-com-baba-em-protesto-
18867132. Acesso: 17 de fev. 2017
210

As palavras do empresário, ao se justificar pela foto, se relacionam a uma ideia de que ele
é um consumidor do trabalho doméstico remunerado, solicita os serviços de acordo com as suas
necessidades e paga bem, com todos os direitos garantidos, a pessoa contratada – e por essa razão
estar com a babá no protesto político não se apresenta como um problema, ou não se associa com
elementos “escravocratas”. No entanto, o que se reflete nesse pensamento é que ao estar correto
perante a legislação, garante ao empresário não ter que estabelecer parâmetros igualitários na
relação cotidiana com a trabalhadora doméstica remunerada. O fato dela estar uniformizada, por
exemplo, garante o aspecto de diferenciação, estabelecendo que ela pode até compartilhar do
mesmo espaço, ir para as ruas em protesto juntamente com a família empregadora, mas ela não
está como uma igual ao seus patrões, está ali para servi-los enquanto agem politicamente por um
país melhor. Nesse sentido, as palavras de respeito e reconhecimento da ampliação de direitos para
a categoria profissional de trabalhadoras domésticas remuneradas não garante o reconhecimento
pleno dos sujeitos, nem uma percepção ideológica sobre esse trabalho, reconfigurando alguns
comportamentos nessa relação empregatícia.
Nas entrevistas realizadas com as patroas em Curitiba-PR, foi perceptível que a nova
legislação impõem novos desafios quanto acesso a informação burocrática, negociações da vida
cotidiana, mas que a lei não poderia mudar a convivência entre elas e suas trabalhadoras
domésticas remuneradas.

Thays: assim, quais as principais mudanças que você acha que deve acontecer no trabalho
doméstico? Ou que você já vem vendo acontecer assim?
Nara: Será que mudou alguma coisa?
Thays: Porque que você tá me falando isso?
Nara: Pois é... não sei definir...
Thays: É?
Nara: Não, acho que não tem nada assim de mudança...
Thays: Na relação de trabalho?
Nara: Na relação quanto a lei só, mas a lei não vai mudar a convivência.
Thays: Sim, e nessa convivência você acha que não mudou quase nada?
Nara: Do que eu vivi não. Não vejo assim mudança não, acho que não.
(entrevista 8, Nara, 59 anos, 2015).

O que essa tese vem mostrar é que essa convivência é pautada pelos pressupostos da
“cultura doméstica”, construindo pressupostos sobre as práticas cotidianas dos lares, as
características que permeiam as intimidades e os cuidados, organização e limpeza, posicionando
211

cada uma – patroas e trabalhadoras – em espaços desiguais e de diferenciações. Assim, a


convivência faz mais sentido do que lei, pois a “cultura doméstica” oferta uma base para pensar o
“mérito”, a “profissionalização”, fundamentando as negociações dos direitos trabalhistas em
termos da necessidades de cada casa. E muitas vezes essas necessidades são de ordem afetiva,
intíma, moral que ocasionam singulares interações desiguais.

Thays: Atualmente a senhora está com o contrato de?


Júlia: Atualmente, teoricamente ela seria a diarista, teoricamente era para ela estar indo
duas vezes, mas ela não está fazendo isso. Ela está de mensalista, mas ela não está
registrada. Ela está aposentada, ela se aposentou, ela trabalhou conosco nos últimos 30
anos e, por exemplo, para ela se aposentar ela não tinha mais nenhum documento aí
adoeceu, aí eu fiz, eu fui no INSS com ela para ver como que tava, para ver quanto tempo
ela precisava para se aposentar porque ela se aposentou por idade né.
T: uhum.
Júlia: mas ela conseguiu se aposentar e teoricamente ela iria se aposentar e iria ficar em
casa, só que ela sempre foi uma pessoa que... e daí ela passou a não ficar em casa, primeiro
também porque ela não se dá bem com a nora e aí começa a dar atrito, coisas assim. E aí
ela iria, teoricamente, na minha casa duas vezes por semana, só que ela não vai e ela fica
lá quase a semana inteira, entendeu?
(entrevista 2, Júlia, 62 anos, 2015).

Das 15 patroas entrevistadas 7 não estavam com a trabalhadora devidamente registrada de


acordo com a legislação, 4 mantinham um regime contratual devidamente estabelecido pelas bases
legais e 3 já não queriam mais a contratação de uma mensalista, passando para diaristas. Essas
duas patroas me disseram que a nova legislação tinha atrapalhado um pouco, mas o que realmente
elas já não aguentavam era o desgaste emocional cotidiano com a trabalhadora doméstica
remunerada, com as ordens, com ter que lidar com “serviço mal feito”, com as interferências em
suas vidas privadas e com o envolvimento nos problemas da trabalhadora. A maior parte das
patroas que não tinham um contrato de trabalho regularizado me justificavam dizendo que eram
as próprias trabalhadoras que prefeririam ficar na irregularidade, ou que já garantiam à elas outros
benefícios por meio de doações – como visto anteriormente. O que perpassava as narrativas eram
também as afetividades, lealdades, quebras de confiança, de palavra, de negociações e o
rompimento da relação quando haviam os ruídos legislativos.

Thays: Qual que foi o problema que você teve?


Marcela: Ela não quis registro em carteira, ela pediu pra eu pagar um... pra dar um valor
a mais pra ela, aí ela falou que vai descontar, vai fazer falta pra mim né... “então eu prefiro
que não me registre, eu não faço questão, até porque o registro não vai me fazer diferença
212

porque eu nunca tive, então eu não vou conseguir me aposentar”. E aí eu falei beleza né,
eu sou evangélica, ela era também, eu acabei confiando, aí quando ela saiu, acho que do
ano passado pra cá que a gente tem viajado menos, mas até então a gente viajava muito
assim, três, quatro vezes no ano, e aí, quando ela entrou eu avisei que a gente viajava e
que esses períodos iam contar como férias pra ela, eu nunca ia descontar, eu não
descontava nem o vale-transporte, e que isso ia contar como férias e que ela ia ser avisada
com antecedência quando a gente fosse viajar. Aí beleza, quando ela saiu, que aí ela
recebeu a recisão, alguém buzinou na orelha dela que ela tinha que ter, e fizeram umas
contas pra ela, que ela tinha 3 mil reais de INSS, pelele, pelele, pelele... e daí o sindicato
me chamou, quando eu fui lá no sindicato eu percebi que ela não entendeu a colocação
do advogado, que ela achou que 3 mil reais de INSS era pra ela, e eu sabia que não era,
então eu assinei o cheque, paguei o sindicato, registrei ela, dei baixa na carteira e ela foi
embora muito brava porque ela teve que pagar o sindicato. E aí acabou assim, ela era
apaixonada pelo meu filho, falava com a gente direto, só que aí ela ficou mal, ela ficou
achando que ia ganhar dinheiro, e pra mim não fez diferença nenhuma, porque eu queria
ter registrado ela.
(entrevista 10, Marcela, 38 anos, 2015).

As relações afetivas são alvo de vários questionamentos das patroas quando se trata de
ampliação de direitos trabalhistas, como apontado anteriormente pelas narrativas nostálgicas de
que hoje elas já não são mais “parte da família”. Os afetos construídos cotidianamente ainda são
muito valorizados pelas empregadoras, o cuidado e o carinho com as crianças, os mimos nos
detalhes, atenção dada quando é necessitado. Mas esses afetos são interpostos pelos sentimentos
de irritação, de abuso, de perceber algo poderia ser feito melhor, pelas mentiras e enganos, vai
deixando as patroas com o “coração duro” porque “precisa ficar falando coisas”, “tomava o meu
Ades... ou de comida, ou de horário, ou de parar durante o dia o trabalho pra fazer um patê e tomar
café, e hoje em dia eu não consigo engolir essas coisas porque eu fico achando já que vai montar
em cima, fica aquela... criei distância, não adianta”. (Marcela, 38 anos, entrevista 10, 2015).
E quando a patroa “cria distância”, se irrita, pensa que precisa “aguentar tudo isso” os
direitos não são reconhecidos, são percebidos como desproporcionais, as trabalhadoras passam a
não merecer esse amplo aparato estatal. Assim, pelas análises realizadas na tese, a “cultura
doméstica” está relacionada com o baixo número de contratações legais, uma vez que são
moldados formas de pensar a casa, sua organização, os cuidados, os afetos, as intimidades em uma
complexa rede de relações de poder e subjetividades, que encaram frustrações, desejos não
cumpridos, expectativas fracassadas, casa mal arrumada, comida mal feita, uma limpeza feita por
cima, roubam, mentem, atrasam, faltam, quebram, comem, etc.
Esses desgastes são tão “pesados” para as patroas, que elas ainda acreditam que cursos de
profissionalização sejam essenciais para que chegue uma “boa” trabalhadora em suas casas, cursos
213

que inclusive, poderiam ser ofertados pelo Estado ou pelo Sindicato de Trabalhadoras Domésticas,
segundo as entrevistadas. A falta da compreensão política que existe nessa relação trabalhista, faz
com que as patroas entrevistadas não assumam outras perspectivas para além das compreendidas
pela “cultura doméstica”.

Thays: Qual parte assim você acha que precisa melhorar?


Verônica: Ah, de organização né, de gaveta, né... que durante todo o tempo que eu tive
empregada nunca me arrumaram um armário, sabe, então assim, eu também não sei se
isso faz parte da obrigação da empregada, mas ela devia saber e fazer... então, arrumar os
armários de louça, essas coisas assim né. Organizar assim, se ela tivesse um... não quero
que elas sejam um personal organizer (risos)... imaginou você ter uma empregada
maravilhosa que te arruma um armário assim, de roupa, deixa tudo assim
organizadíssimo, uma gaveta organizadíssima, seria bom demais né (risos)... então, de
repente o sindicato das domésticas podia investir nisso né, fazer com que as domésticas
fossem assim né, e também usar os aparelhos...
(entrevista 15, Verônica, 42 anos, 2015).

Assim, acompanhamos que a “cultura doméstica” também constrói a imagem da


trabalhadora doméstica profissional atrelada a preceitos morais, que as compõe em
posicionalidades estratégicas para que as relações de poder sejam mantidas e as diferenciações
estabelecidas. E esse aspecto é igualmente visto no contexto de maior ampliação trabalhista, maior
vinculação de críticas nos meios midiáticos sobre a maneira que esse trabalho é estabelecido, em
um mercado que se apresenta mais racionalizado, com número considerável de agências de
emprego, com discursos políticos sindicais cada vez mais fortes e institucionalizados. No discurso
patronal, as configurações, representações e reiterações de símbolos e representações que
hierarquizam e conservam as posiconalidades estão fortemente presentes.
A empresa “Emprego Doméstico” em Curitiba-PR é uma referência no acompanhamento
jurídico de casos relacionados a contratação de trabalhadoras domésticas remuneradas por
empregadores e empregadoras, oferecendo um amplo serviço administrativo que inclui o
agenciamento de possíveis contratações. Em seu site oficial78, além das áreas relacionadas aos
interesses jurídicos, cadastro de trabalhadoras e de empregadores, há uma sessão relacionada a
dicas de limpeza, organização, cuidado, etc., dicas que também apresentam um “manual” para as
patroas de como fazer as melhores perguntas em uma entrevista com a trabalhadora doméstica

78
http://www.empregodomestico.org/
214

remunerada, como saber se comunicar, dar ordens e estabelecer uma harmoniosa relação
trabalhista, em uma postura similar com as escritoras de manuais dos anos 70. De acordo com as
dicas, foi listado 21 perguntas essenciais para garantir a trabalhadora perfeita para a casa:

1. Onde você nasceu?


2. É casada? Se sim, há quanto tempo e o que faz o marido, ou seja, no que ele trabalha?
3. Quantos filhos você tem e com quem ficam enquanto você trabalha? Se eles ficarem
doentes, quem os leva ao médico ou você fica em com eles?
4. Como concilia o trabalho com compromissos pessoais (seja para ir ao médico, dentista
ou doença)? Como coordena esses eventos na sua agenda?
5- gosta de usar uniforme?
6. Incomoda-se de trabalhar em casa que tenham mais funcionários? Já teve problemas
de relacionamento com colegas de trabalho?
7. Gosta de animais domésticos? Como reagiria se tivesse de assumir os cuidados com
esses “bichinhos”?
8. Como está sua saúde? Faz uso contínuo de algum medicamento?
9. Gosta de crianças? Se fosse necessário me dar uma “mãozinha” (lembrando que
acumulo de atividades é ilegal então quando se fala em ajudar temos que lembrar que
deve ser realmente apenas uma ‘MÃOZINHA’) com as crianças, você se incomodaria?
10. Sabe passar roupas? Como classificaria seu nível nesse quesito?
11. Como lava roupas? Sabe identificar as roupas que podem ou não ser lavadas na
máquina? Sabe tirar manchas?
12. Como reage às instruções da patroa? Gosta de ser direcionada ou prefere fazer as
coisas do seu jeito? Como reagiria se as instruções fossem passadas por funcionários mais
antigos?
13. Tem o hábito de fazer lista das coisas que vão acabando na casa? Pode fazer compras
no supermercado se for necessário? Acostuma-se rápido às marcas dos produtos usados
na casa? Sabe escolher frutas e verduras?
14. Sabe e gosta de cozinhar? Citar exemplos de coisas que cozinha (incluindo
sobremesas). Sabe servir e montar mesa? (lembrando que apenas domésticas mensalistas
cozinham diaristas não tem obrigação de prestar esses serviços)
15. Como você se descreveria?
16. Que horário e esquema de folgas pode cumprir? Pode trabalhar aos sábados
17. Qual pretensão salarial?
18. Pesa para levar a carteira para verificar experiências anteriores.
19. Quais eram suas funções nessa casa?
20. Tinham outros funcionários na casa? Dava-se bem com eles?
21. Quais é sua maior qualidade e seu maior defeito?
(SITE EMPREGO DOMÉSTICO, 2016).

Todas essas perguntas são essenciais para você achar a trabalhadora perfeita, que não vai
dar problema, vai cumprir com todas as obrigações, que vai entender o seu lugar, vai respeitar os
espaços e os gostos das empregadoras. A entrevista é fundamental para saber se a empregada
doméstica passa confiança, se e apresentável e se sabe respeitar as ordens dos patrões, de acordo
com o site especializado nas demandas dos empregadores “emprego doméstico” (2016) e com o
manual doméstico de Tânia Koufmann (1975). Apesar de todos essas informações, as patroas
215

seguem sua “luta” diária em tentar encontrar uma solução para suas ânsias, desejos, emancipações,
subjetivações, explorações e escolhas. O discurso ilusoriamente construído sobre um
profissionalismo “moderno”, “racional” e “liberal”, na verdade reproduz práticas, conserva
representações e símbolos e impede que parâmetros igualitários e justos sejam de fato
concretizados cotidianamente nos lares entrevistados. As reconfigurações da cultura doméstica
ainda preserva as misérias das profundas e estratégicas desigualdades sociais, étnico-raciais e de
gênero na sociedade brasileira.
216

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao percorrer um caminho empírico inspirada pela linha empírica de que haveria uma
“cultura doméstica” que permeava as relações no ambiente residencial, trazendo consequências,
reproduções, reconfigurações e reiterações de um caráter conservador nas interações entre patroas
e trabalhadoras domésticas remuneradas, tive acesso a um conteúdo complexo, de jogos de
poderes, afetos, intimidades, desejos, expectativas e sentimentos que são caros aos debates
feministas, as análises econômicas, de classe social e aos insistentes mecanismos de práticas
racistas na sociedade brasileira. Mas para além disso, a “cultura doméstica” revela uma faceta
ordinária da vida cotidiana, cíclica, exaustiva, essencializada no feminino e que explora
diariamente mulheres inseridas nessa relação, construindo símbolos e representações de vidas
depressivas, entediantes, feias, infelizes e humilhantes – visão partilhada pelas patroas. A “cultura
doméstica” demostra claramente como a imagem dicotômica onde o lar é o espaço dos mais puros
sentimentos e amor, caminho, aconchego, intimidade, companheirismo e segurança são irreais, ou
parcialmente reais. A casa é também um lugar violento, de explorações, negociações, frustrações
e subjetivações enquanto esposas, mães e donas-de-casa das mulheres nele inseridas. Essas
complexas facetas foram percebidas e analiticamente desenvolvidas através da análise das
pesquisas, livros, manuais, filmes e documentários sobre o trabalho doméstico remunerado e por
meio das entrevistas com 15 patroas na cidade de Curitiba-PR.
Ao realizar a análise das narrativas, discursos, práticas e lógicas das empregadoras em
relação ao trabalho doméstico e ao trabalho doméstico remunerado através das produções
acadêmicas, literárias, dos manuais e das mídias foi percebido como as representações e símbolos
da “casa ideal” eram concebidas. As patroas idealizavam uma casa impecavelmente limpa e
organizada, que não houvesse nada fora do lugar, nenhuma poeira ou sujeirinha acumulada em
nenhum dos mais escondidos cantinhos da casa, que a roupa estivesse lavada e passada, quartos
devidamente acomodados, banheiros absolutamente desinfetados e cheirosos, cozinha sem
gordura e impurezas, além da alimentação diária nutritiva e variada. Uma idealização que as
desgastava emocionalmente, sentiam que seu tempo era improdutivo e as subjetivavam com
aspectos ligados a inferioridade. Essa casa ideal estava no rol de competências exigidas enquanto
esposas, mães e donas-de-casa, utilizando da contratação de uma trabalhadora doméstica
remunerada como uma forma de administrar as demandas que essa idealização estabelecia.
217

Essa contratação era percebida como o caminho da “liberdade” por essas mulheres, que as
retiravam do aprisionamento entediante e desgastante do cotidiano cíclico do lar. Mas essa tão
sonhada liberdade lhes custava “caro”, saber conduzir todas as complexidades que se inseriam em
suas vidas privadas ao colocar outra mulher no espaço residencial, da intimidade, do cuidado, da
nutrição e da manutenção desse lugar requer muita habilidade nas formas de negociações, tanto as
que precisavam realizar consigo mesmas, quanto em suas posições de poder. Nas negociações
subjetivas, as patroas precisam agenciar suas posicionalidades para que nada fique “fora do lugar”
nessa relação, elas demandam os cuidados a outra mulher, mas são elas que mandam, observam,
vigiam, estabelecem os parâmetros do que consideram bom ou não, querem ser livre, mas ainda
vinculadas ao lugar primordial estabelecido como o de responsabilidade feminina – a liberdade de
não sujar as mãos na pia e nem a barriga no tanque, mas que não as desvinculam totalmente dos
espaços enquanto pertencimento. Nesse sentido, as negociações enquanto sujeitos administrando
suas posicionalidades, seu exercício de poder para manter os diversos sentidos de pertencimento
do lar, as patroas acessam variados aspectos de diferenciações que se interpõem nessa relação
empregatícia: classe social e étnico-raciais, principalmente. Como essa relação é estabelecida
intrinsicamente nas bases do gênero, duas mulheres que precisam administrar e negociar as
pressões e explorações da divisão sexual do trabalho, as diferenciações vão se estabelecer através
dos pressupostos de classe e por meio do racismo.
Durante toda a análise das pesquisas sobre o tema, assim como as características que
permeavam as produções literárias, filmes, documentários, panfletos, etc. foi realçado nas
narrativas e discursos das patroas formas violentas de produzir e reproduzir uma relação desigual.
O feminismo, que tem sido a vertente epistemológica que se debruça em compreender as
complexidades do trabalho doméstico e trabalho doméstico remunerado, conseguiu expor as
desigualdades de classe por meio das análises de cunho marxista, as desigualdades de gênero por
meio de etnografias minuciosas que apontavam as detalhadas formas de diferenciação dentro lar,
evidenciou e deu voz para as trabalhadoras domésticas remuneradas reivindicarem seus direitos,
contarem suas histórias e mostrarem seus pontos políticos e os silenciamentos produzidos na
realização dessas análises. Mas o feminismo não assegurou um lugar de produção de conhecimento
sobre a classe patronal e, principalmente, sobre o sujeito patroa. Essa mulher, que precisa agenciar
suas subjetividades nas interações com o matrimônio, maternidade, responsabilidades do lar e o
trabalho fora dele, passam também por processos reflexivos de classe, de inseguranças posicionais
218

nas habilidades compreendidas por elas como de “mulher”, passam a exercer poder em um
contexto, o familiar, marcado por opressões, explorações e inferioridades. A relação com a
trabalhadora doméstica remunerada também se apresenta como uma forma de sair dos “papéis”
inferiorizados e explorados, passando a exercer uma posição mais prestigiosa, de comando e poder.
Os limites teóricos e epistemológicos dos estudos feministas não olharam para o lado das patroas,
não realizando uma crítica consistente sobre as práticas e reproduções que essas mulheres
realizavam e que mantinham as desigualdades fundantes no trabalho doméstico remunerado. Os
estudos feministas precisam tocar nas incoerências e reproduções que a contratação de uma
trabalhadora doméstica gera, assim como produzir mais críticas aos pressupostos da “cultura
doméstica”, as relações étnico-raciais e aos pressupostos de modernidade ligados à esfera privada.
Essa tese lança luz a diversas perguntas que permeiam os desejos, ânsias e expectativas das
patroas, nos apontando variados caminhos para futuras pesquisas sobre essa parte da relação, que
consiga metodologicamente explorar mais os outros sujeitos empregadores e empregadoras, como
gays, lésbicas, trans, negros, negras, compreendo as múltiplas possibilidades de conjunções
residenciais da qual pode-se contratar uma trabalhadora doméstica remunerada, lugares e espaços
que essa tese não conseguiu abarcar e que provavelmente nos mostrariam outras facetas das
interações com o exercício enquanto patrões e patroas, demostrando outras possíveis
reconfigurações da “cultura doméstica”.
A falta de polifonia na tese se justificou na metodologia utilizada, as mulheres entrevistadas
me apresentaram para suas redes de amizade e familiares, compondo um campo empírico muito
similar de mulheres, brancas, casadas, com filhos, pertencentes à casse média e classe média alta,
escolarizadas e que tinham em média 40 anos. No entanto, as narrativas e discursos proferidos por
essas mulheres entrevistadas se assemelhavam com a constatação da “cultura doméstica” que foi
sendo construída e “costurada” por toda a base analítica da tese. Nesse aspecto, a hipótese
levantada de que haveria uma “cultura doméstica” se comprova ao descortinar que as práticas
cotidianas dos lares, os pressupostos de intimidade e cuidados, a própria compreensão de direitos
trabalhistas perpassa intrinsicamente as relações de poder familiares, na divisão sexual do trabalho
e constitui subjetividades e posicionalidades da patroa e da trabalhadora como cuidadoras do lar,
lugar construído nas interações da vida cotidiana e carregando em si as falsas dicotomias
instituídas entre público e privado.
219

Nessas relações contratuais contemporâneas foi percebido diversas reconfigurações e


reiterações da “cultura doméstica”, pressionadas por diversas mudanças e transformações que o
trabalho doméstico remunerado sofreu ao longo dos anos através da ampliação de direitos
trabalhistas, críticas contundentes em relação a maneira como esse trabalho era estabelecido e aos
diversos processos políticos e de melhorias econômicas que as trabalhadoras foram conquistando
perante essa relação. Mas alguns aspectos são igualmente vivenciados na contemporaneidade, o
racismo, por exemplo, se apresentou insistente mesmo quando essa relação era pautada entre duas
mulheres brancas, fazendo com que as patroas acionassem o discurso da diferenciação e da
violência por meio de termos como “polaca”, “alemã” e “sudada”. As patroas entrevistadas eram
cientes de todas as desigualdades que estruturam essas relações empregatícias, estavam ligadas
nas críticas e tentavam estabelecer novas maneiras de convívio com as trabalhadoras, como
convidar a sentar à mesa nas refeições, ter um discurso de reconhecimento do árduo trabalho
realizado em casa e da nova legislação trabalhista, no entanto foi percebido formas veladas de
diferenciações e de manutenção de hierarquias e desigualdades, como ter diferentes alimentos
destinados aos membros da família e à elas, utilizar de um discurso de autonomia da trabalhadora
para dizer onde esta deve estar e como deve se portar, além das práticas de vigilância, de imposição
de limites e das extremas e idealizadas exigências em relação a limpeza e organização da casa.
Essas reconfigurações e reiterações da “cultura doméstica” se mostraram sim diretamente
conectadas com as percepções e reconhecimentos legislativos – respondendo então a pergunta
central da tese. A “cultura doméstica” pauta as negociações entre patroas e trabalhadoras em uma
complexa rede meritocrática, da qual interpõem-se afetos, doações, lealdade, dependências e
interelações com o cuidado. O baixo número de contratações legais está conectado com os
parâmetros meritocráticos estabelecidos, reconfigurados e reiterados da cultura doméstica,
fazendo com que as patroas vejam a ampliação de direitos trabalhistas como desproporcionais a
qualidade dos serviços prestados pelas trabalhadoras. Uma vez que são estabelecidas formas de
pensar a casa, sua organização, os cuidados, os afetos, as intimidades em uma complexa relação
que soma poder e subjetividades, que as patroas encaram frustrações, desejos não cumpridos,
expectativas fracassadas, “casa mal arrumada”, “comida mal feita”, “uma limpeza feita por cima”,
“trabalhadoras que roubam”, “mentem”, “atrasam”, “faltam”, “quebram”, “comem o que não
devem”, entre outras “faltas de limites”, a canseira emocional da patroa leva ao descumprimento
da legislação trabalhista, ou são ao menos percebidos como desproporcionais – não vão pagar caro
220

por um péssimo trabalho, por um trabalhadora que abusa dessa relação e não sabe demostrar
verdadeiramente os afetos e a gratidão.
Se as patroas pagam “caro” na contratação de uma trabalhadora doméstica remunerada,
seja economicamente ou emocionalmente, as trabalhadoras ainda continuam a receber as misérias
das desigualdades de classe e étnico-raciais, além de não saírem de um quadro marginalizado
economicamente, sem seus direitos plenamente reconhecidos. A “cultura doméstica” antes de mais
nada pauta os paramentos da não empatia, do não reconhecimento e de uma idealização da casa,
do lar e da família irreais, reproduzindo uma violenta realidade que angustia e causa infelicidade
nas patroas e mantém uma precária relação trabalhista ainda vinculada aos pressupostos de
servilidade. O rompimento real da “cultura doméstica” se mostra, pelas análises realizadas nessa
tese, como um caminho para se concretizar parâmetros minimante modernos em termos contratuais
legais e igualitários em termos das relações travadas cotidianamente no lar. Enquanto isso, as
patroas seguem tentando encontrar a trabalhadora “perfeita”, que cubra seus desejos de liberdade,
suas idealizações referentes ao lar e que sejam o contraponto posicional de seus exercícios de
poder.
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