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Sonhos Ganham Vida
CAPA
PARTE 1: Sonhos Ganham Vida
PRÓLOGO
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
PARTE 1
Sonhos Ganham Vida
tradução por:
Phantasie
PRÓLOGO
Vejo aquele sorriso por toda parte. Ele me saúda de repente, em meio
à escuridão. Numa esquina. Nos meus sonhos. Aquele grande sorriso. Uma
boca cheia de dentes que parecem lisos e uniformes. Não dá para saber
quão afiados eles são até que se esteja descendo por sua garganta.
Aquele diabinho querido.
Não posso fugir dele.
O que estou prestes a contar vai soar inacreditável.
Não sou bobo. Todos vão ler isso e pensar “não sei quem esse tal de
Buddy acha que é, mas ele não vai me passar a perna”. Mas eu tenho que
escrever isso. Tenho que contar a história. Mesmo que ninguém acredite
em mim. Preciso fazer isso enquanto ainda há tempo. Antes...
A cada som, cada chiado, eu vejo aquele sorriso. Qualquer um diria
que estou ficando doido, mas eu sei qual é a verdade, eu sei o que vi. Sei o
que aconteceu.
Você precisa ler com atenção. Palavras nunca foram o meu forte.
Mas preciso usá-las... porque não se pode confiar em desenhos.
Não confie nos desenhos.
Tem muitas outras pessoas envolvidas. Até demais. Mas se eu puder
proteger uma única pessoa, uma só, do que eles se tornaram...
Do que todos nos tornamos...
Se você encontrar isso, Dot. Se nos encontrar...
Acho que é melhor começar do começo.
E prosseguir.
Até o fim.
CAPÍTULO UM
— Esse é o Bendy.
Naquele momento, ser apresentado a um desenho bidimensional
tinha sido meio, bom, fofo, eu acho. Embora “fofo” não fosse exatamente
uma palavra que eu usasse muito no dia-a-dia. Mas sim, claro, fofo. É um
prazer conhecê-lo, personagem fictício. Mas agora, deixa eu tentar explicar
o que eu entendo a respeito daquele momento... O que eu sei agora
comparado com o que sabia na época...
Eu não sabia, por exemplo, que quando o quando o Sr. Drew sorria,
você precisava olhar de perto para seus olhos, procurar por uma pequena
ruga mais ao canto. Todo artista conhecia aquela ruga, ela contribui para
um sorriso de aparência mais autêntica. Mas eu ainda não era um artista.
Não na época. Não sabia o que havia de errado ali.
Também não sabia que uma apresentação podia ter tanto significado
— que numa festa, a forma como alguém apertava sua mão ou dizia seu
nome ou até a forma como o Sr. Drew me apresentava às pessoas — não
sabia na época que era tudo uma espécie de código. Algo para decifrar.
Queria saber já naquele momento que o Sr. Drew estava esperando que eu
me desse conta disso. Que algo estalasse lá dentro e tudo fizesse sentido.
E ele me observou cuidadosamente.
— Olá, Bendy — disse, entrando no jogo. O Sr. Drew deu risada e
guardou o desenho.
— Então você não o conhece mesmo, não é? — perguntou.
Sacudi a cabeça, indicando que não. Porque não conhecia.
— É uma pena — disse o Sr. Drew, mais para si mesmo que para
mim. Isso eu percebi já na hora, então não disse nada.
O fato é que o Sr. Drew acreditava que eu devia conhecer o Bendy. E
aposto que um monte de gente se perguntaria a mesma coisa: Por que não
conhecia? Afinal, ele aparecia naqueles curtas que eram exibidos antes dos
filmes no cinema e lá estava ele, estampado em latas de sopa. Pelo amor de
Deus, o diabinho vendia até títulos de crédito para operações militares na
guerra. Eu sei, eu sei.
E não é como se eu nunca o tivesse visto. Como escrevi antes, eu
cheguei a ter a impressão de que o reconhecia. Então não era isso. É que,
quando você mora no Lower East Side, cresce lá, vai à escola e aí
abandona os estudos pra fazer dinheiro... quando a sua experiência com
filmes é Don Miller segurando a porta dos fundos do cinema pra você...
você acaba não assistindo tantos desenhos quanto uma criança normal. Se
Bendy ainda aparecesse nas tirinhas de jornais na época que comecei a
desenhar, teria sido diferente. Aquele era todo o meu mundo.
Não tinha sido culpa de ninguém. A culpa era de ser pobre. De tentar
ajudar a minha mãe e trabalhar doze horas por dia. E sejamos honestos
aqui, aqueles desenhos já não eram exatamente mais tão populares quanto
costumavam ser. Eu mal tinha chegado ao mundo quando os desenhos do
Bendy faziam sucesso. Então o diabinho já não tinha mais tanto apelo. Não
representava nada. Não significava nada.
Mas significava tudo para o Sr. Drew.
— Isso é o que quero dizer, exatamente o que quero dizer — disse
ele, levantando-se e começando a andar pela sala. Ainda não estava falando
comigo, mas estava falando mais alto e eu não podia simplesmente ignorar.
— Desculpe-me, senhor, mas o que quer dizer com relação ao quê?
— perguntei.
Ele olhou para mim, mas continuou andando.
— A que ponto esse estúdio está chegando? A que ponto chegamos
para uma criança da sua idade não conhecer o Bendy? É isso o que quero
dizer, é por isso.
Suas palavras ainda não estavam fazendo muito sentido. Era meio
louco que um punhado de frases coerentes ainda pudessem soar como uma
completa incoerência.
Gostou dessa, Dot? Sei que gosta desse tipo de coisa. Esse jogo de
palavras engraçadinho.
Espero que esteja te deixando orgulhosa.
Espero que leia isso.
Espero que esteja viva.
Onde eu estava?
Certo.
— Ah, sim — disse. Não sabia o que mais dizer àquele ponto.
Houve um segundo de silêncio. Ele parou de andar. Eu parei de falar.
E então ele bateu uma mão na outra com força. De repente. O barulho me
fez pular na cadeira. Foi como um tiro; eu quase me abaixei.
Isso sempre ficou comigo: De todas as memórias que começam a se
misturar aqui, nesse cérebro, nessa cabeça, nesse... isso por algum motivo
se destaca. No momento em que bateu as mãos, as luzes voltaram. Foi
como se estivessem esperando por ele, como se estivesse no controle delas.
Não estava. Mas eu fiz essa conexão na época. De alguma forma, fez
sentido para mim que talvez, só talvez, ele tivesse o poder de fazer aquilo.
Não tinha. E não tem. Não deixe ninguém te fazer pensar que tem.
O Sr. Drew notou a luz e riu com um “Ha!” que foi exatamente do
jeito que se escreve. Bem assim: “Ha!”. Ele se voltou para mim, sorrindo
outra vez.
— Venha, vou te dar um tour, garoto.
Eu assenti e todos os pensamentos estranhos que tivera naquele curto
momento desapareceram. Agora estava empolgado. Ia fazer um tour por
um estúdio que fazia desenhos animados. Ia conhecer outros artistas. Não
era nada como imaginei que seria o meu dia quando acordei pela manhã.
— Legal! — Me levantei num instante e segui o Sr. Drew, deixando
seu escritório e adentrando o saguão agora extremamente bem-iluminado.
Havia uma mulher sentada atrás da mesa junto à porta. Tinha uma
aparência compacta, com cabelos excepcionalmente negros que formavam
cachos perfeitos.
— Vamos dar um tour, Srta. Rodriguez — anunciou o Sr. Drew
enquanto passava por ela.
— O Tom está aqui — respondeu ela, sem erguer o olhar de sua
máquina de escrever.
E, de fato, havia um homem alto e encorpado sentado em uma das
cadeiras perto do elevador. Estava com uma perna cruzada impecavelmente
sobre a outra, segurando seu chapéu no colo. Junto a ele, havia o que
parecia uma caixa de ferramentas amarela com a palavra “Gent” escrita.
Ergui o olhar para o Sr. Drew e vi seu sorriso oscilar, semelhante a
como fazem as luzes antes de se apagarem. Mas então ele cresceu ainda
mais quando o Sr. Drew apontou para o homem e disse:
— Tommy Connor! — Não era uma pergunta.
O homem se levantou, pegando um longo e estreito tubo de papelão
que estava a seu lado na cadeira.
O Sr. Drew notou e apontou para o tubo, mas não disse nada. Então,
deu um sorriso ainda maior.
— Sim, senhor — disse Tom, mesmo sem haver uma pergunta a
responder. — É sim.
Era o quê?
— Sinto muito por isso, Buddy, mas preciso participar dessa reunião.
Grandes planos, garoto, grandes planos — disse o Sr. Drew. — Volte logo
cedo e vamos acomodá-lo por aqui. — Ele não olhou para mim, mas me
deu uma batida firme nas costas enquanto estendia o outro braço em
direção ao escritório. — Por aqui, Tommy.
— Sr. Connor — respondeu Tom, enquanto ia até lá.
Frente a isso, o Sr. Drew apenas deu risada, embora eu não tenha
entendido a piada, e os dois entraram de volta em seu escritório, fechando a
porta atrás deles.
E então, eu estava sozinho.
Fui até a secretária. Ela não olhou para mim. Àquela altura, não
esperava que o fizesse. Também não sabia o que dizer.
— Para que ele te contratou? — perguntou a Srta. Rodriguez.
— Office-boy. Talvez... talvez um artista. Ele disse que vou ficar no
Departamento de Artes. — Já não tinha mais tanta certeza de qual seria
exatamente o meu trabalho.
A Srta. Rodriguez parou de datilografar e recostou-se na cadeira,
voltando o olhar para a mesa. Abriu uma gaveta e pegou um envelope
grosso, cheio de papéis. Finalmente, olhou para mim enquanto me
entregava um deles.
— Preencha isso, traga com você amanhã. Chegue às nove da manhã
e fale com a Srta. Miller, lá embaixo na entrada.
Peguei o papel e assenti.
— Obrigado.
A Srta. Rodriguez olhou para mim por mais um momento. Como se
talvez quisesse dizer alguma coisa. Mas não disse. Apenas voltou a
datilografar.
Estou com fome. Ou talvez ele esteja com fome. Não sei dizer.
Simplesmente sinto a fome.
Essa não é a questão. Só deixa escrever mais difícil, pensar mais
difícil. Estou tendo problemas para permanecer na minha cabeça. Não sei
bem se isso faz sentido. Vou ser honesto, aquela última parte sobre a minha
mãe e o meu avô no meu quarto, parecia até que eu tava contando a história
de outra pessoa por um momento.
Aquela era a minha história?
Lembre-se: os cinco sentidos. O cheiro do apartamento, velho e
mofado, mas também de carne, batatas e charutos de repolho. O teto
manchado de água em cima da cama. Os sons lá fora, na rua, carros,
pessoas gritando, mesmo às duas da manhã. O cobertor que coçava. Me
lembro dele.
Te conheci na manhã seguinte, Dot.
Acho que se pode dizer que eu era acostumado a conhecer outras
pessoas, ainda mais como entregador. Pessoas novas não me incomodavam
muito. Gostava de olhar para elas. Isso soa estranho. O que quero dizer é
que você conhece uma pessoa nova e vê coisas a respeito dela. Como
talvez os sapatos daquele sujeito tivessem acabado de ser engraxados, ou
como aquele outro tinha um círculo de suor marcando a gola da camisa. Os
bobes do cabelo daquela dona são manchados de preto, o batom daquela
outra traçava a parte externa de seus lábios. Todo mundo é único.
Na verdade, eu vi a Dot pela primeira vez de longe. Não sabia quem
era, na época. Só sabia que aquele ser humano distante era uma garota
baixa, meio gordinha, com ombros largos e um caminhar decidido. Devia
ter provavelmente a minha idade, com cabelos loiros-escuros molhados,
cujos cachos já estavam desmanchando logo pela manhã. Seus óculos olho
de gato pareciam um pouco grandes demais para seu rosto.
Após notar que ela também estava indo para a entrada principal do
Joey Drew Studios, dei uma corridinha para alcançá-la e ela segurou a
porta para mim. Me deu uma olhada completa, da cabeça aos pés. Foi
rápido, mas quando acabou, já tinha uma opinião formada sobre mim. Sei
disso porque conversamos a respeito depois:
— Tinha te achado alto — disse ela.
— Bom, eu sou alto — respondi.
— Era tipo um filhote de cavalo, só pernas. Parecia um pouco
desengonçado. Eu gostei disso.
Ainda não entendo porque ela teria gostado disso. Mas sei que a Dot
sempre suspeitou de quem se gabava: “Como dá pra saber se alguém está
sendo verdadeiro ou falso quando agem daquele jeito todo confiante?”.
Após me medir, ela continuou com seus passos determinados e
assentiu com firmeza para a mulher atrás da mesa antes de atravessar o
salão e desaparecer numa curva.
Eu, por outro lado, fui até a mulher, que me olhou mais uma vez com
aquela expressão de desconfiança. Ou talvez não. Talvez fosse só como era
o seu rosto. Sabe, nunca perguntei a ela. Não sei a resposta pra essa.
Nunca perguntei muita coisa pros outros.
— Oi, sou Daniel Lewek. Uh... Buddy — disse.
Ela continuou me encarando.
— Eu, uh, sou o novo office-boy e aprendiz de artes.
Ela só me encarou.
Alguém me tocou no braço. Me virei e estava cara a cara com uma
mulher, provavelmente por volta dos cinquenta, com cabelos e franja
castanhos, um tanto cheios e cacheados, destacando seu rosto anguloso.
Tinha uma profunda linha de expressão entre as sobrancelhas que a fazia
parecer preocupada com alguma coisa. Mas eu eventualmente descobriria
que era só a aparência normal dela.
— Você é o Daniel? — perguntou.
— Sou.
Ela limpou a mão no avental que estava usando e a ergueu para
apertar a minha. Notei que estava manchada de tinta. Como os meus dedos.
— Sou a Sra. Lambert. Supervisora do Departamento de Artes.
Venha comigo.
Levei minha mão à dela, apertamos, e então eu a estava seguindo
pelo mesmo corredor que no dia anterior estivera escuro e assustador, mas
que agora estava bem-iluminado com as lâmpadas zunindo mais acima. Ela
puxou a grade do elevador e nós entramos. Fechando-a atrás de nós, ela
apertou um botão e fomos alavancados para cima, tudo sem dizer nada. O
que não me incomodava. Não era muito de falar. Nunca fui. Nunca serei.
Definitivamente nunca serei.
É meio engraçado.
“Humor negro”, é como a Dot chama.
Enfim.
Também estava superinteressado no fato de que uma mulher era a
supervisora do Departamento de Artes, estava pensando um pouco sobre
isso. Acho que nunca tinha visto uma mulher na supervisão de nada antes.
Não que não houvesse várias mulheres trabalhando nos últimos anos. Sabia
que havia, com a falta de homens e vários deles tendo sido mandados pra
guerra e tal. Mas uma mulher na chefia? Não, nunca tinha visto.
Me perguntei por quê.
O elevador estremeceu e parou de súbito, ao que rangi os dentes de
leve. A Sra. Lambert notou e riu.
— Sim, ele faz isso. — Ela puxou a grade novamente, abrindo-a num
ruído estridente, e descemos no andar do Departamento de Artes. Havia
artistas sentados por toda a sala, todos com seus próprios cantos e recantos,
curvados em suas mesas e trabalhando duro. Cada um dos espaços era
decorado com desenhos e fotografias. O lugar tinha uma espécie de caos
organizado que me agradava.
Era também muito quieto.
Já tinha feito entregas em escritórios o bastante pra conhecer bem o
zumbido das conversas e os estalidos das máquinas de escrever. Era como
os sons da cidade, um barulho de fundo suave, quase reconfortante.
Mas ali, o único som no qual conseguia focar era o de lápis riscando
papel. Me fazia sentir que qualquer som que eu fizesse poderia distraí-los.
Como se mesmo a minha respiração fosse um pouco alta demais. Como se
talvez eu não devesse respirar.
A Sra. Lambert não sentia o mesmo:
— Ei, gostaria da atenção de todos! — exclamou bem alto.
Cabeças se ergueram, olhos piscando em nossa direção. Um sujeito
sentado à janela tirou os óculos, limpou as lentes e os colocou novamente.
— Esse é Daniel Lewek — disse ela.
— Buddy — eu a corrigi. Ela olhou para mim. — Todos me chamam
de Buddy.
— Certo. Esse é o Buddy, nosso novo office-boy.
— O Joey não tinha congelado novas contratações? — perguntou o
sujeito na janela.
A Sra. Lambert deu de ombros.
— Foi ele que contratou o Buddy.
O homem sacudiu a cabeça e se virou de volta para sua mesa.
— Acho que pode ficar com aquela mesa ali nos fundos. Desculpa
ser um pouco escuro, mas... bom, é tudo o que temos. — Ela me viu
olhando para ela e sua expressão se suavizou um pouco. Não muito, não o
suficiente para apagar a ruga entre as sobrancelhas, mas um pouco. — Está
tudo bem, Buddy, vamos dar um jeito em tudo. Mas preciso voltar ao
trabalho agora.
E com isso, eu atravessei a sala. Tomei nota do lugar enquanto o
fazia. Não era muito grande, mas, agora que parava para olhar com mais
atenção, havia apenas quatro pessoas nele. As paredes eram placas de
madeira sem pintura, mas estavam quase completamente cobertas de
desenhos e fotos de pessoas, animais e lugares, talvez como referência para
poses e outras coisas que pudessem precisar ao fazer os desenhos, imaginei.
Me sentei na minha mesa. Sim, meu canto era escuro, mas não
parecia triste. Quase parecia aconchegante. Sobre a mesa, havia desenhos
amarelados do Bendy. Havia outros personagens também. Uma garota com
um vestido sem alças preto e uma auréola na cabeça. E o que parecia um
lobo alto com as orelhas esticadas em meio ao ar e vestindo um macacão.
— Essa é a Alice Angel, esse é o Lobo Boris e aquele obviamente é
o Bendy — disse uma voz simpática atrás de mim. Me virei e vi um dos
cartunistas olhando para mim. — E eu sou o Jacob. Prazer em conhecê-lo,
filho. — Peguei sua mão e a apertei. Vestia um terno cinza elegante e usava
uma gravata marrom com um lenço de bolso combinando. Estiloso.
— Obrigado. Acho que é melhor eu aprender essas coisas — disse.
Jacob riu.
— Sim. Mas não pergunte a ninguém. Especialmente ao Sr. Drew.
Se tiver perguntas, faça aqui no Departamento de Artes. Alguns dos mais
veteranos podem ser sensíveis. Não entendem que nós também não
sabíamos quem eram esses personagens antes de chegarmos aqui.
— Certo — disse.
— A fama é passageira — disse Jacob, empurrando o chapéu um
pouco para trás. Ele me abriu um sorriso. E então disse: — Pode levar essa
pasta ao pessoal de Redação? Preciso que eles deem visto na arte antes de
prosseguir.
— Ah, claro — disse.
Peguei a pasta e ele voltou à sua mesa. Me virei para olhar para a
minha, pensando no que ele dissera. A madeira estava desgastada devido
aos anos de uso, escurecida em algumas partes com manchas de tinta
derramada. Podia ver que alguém também esculpira a própria madeira: um
par de olhos engraçados. A auréola de Alice. E mais embaixo, na beira da
mesa, um nome. Mas não parecia igual aos desenhos. O nome parecia ter
sido talhado de novo e de novo, várias vezes. Mais profundamente. Era
evidentemente o antigo dono da mesa.
— Vou tentar te deixar orgulhoso, Henry — disse para a mesa, a voz
baixa. Então ergui o olhar para me certificar de que ninguém tinha ouvido.
Me levantei e fui até a Sra. Lambert. Ela não tinha uma secretária e
eu não sabia bem a quem mais recorrer. Ela olhou para mim com profunda
desconfiança.
— Uh, preciso levar isso à equipe de Redação — disse.
Ela me encarou com um olhar severo, dando a impressão de que não
fazia ideia de porque eu a estava dizendo aquilo.
— Uh... onde fica? — perguntei.
— Ah — disse ela. — Um andar abaixo. — Então voltou a seu
storyboard e eu me senti basicamente invisível outra vez.
Tá, é só fazer isso, disse a mim mesmo. Impressione-os e faça o seu
trabalho que eles eventualmente vão te deixar desenhar. E pelo menos você
não está lá fora no calor.
Apesar que, na verdade, lá dentro não estava tão mais fresco. Os
ventiladores no teto só pareciam circular o ar quente.
Desci um andar e me encontrei numa sala praticamente igual à do
Departamento de Artes. Mais cabeças recurvadas sobre mesas. Dessa vez,
havia uma secretária jovem e bonita junto à entrada e ela ergueu o olhar
para mim, esperando que eu me pronunciasse.
— Oi, eu sou o Buddy, sou novo aqui. Me pediram para entregar
essa pasta? — formulei a frase como uma pergunta, mesmo sabendo que
era exatamente o que precisava fazer.
A secretária disse:
— Leve à Dot.
Dei uma olhada na sala.
— Quem é Dot? — perguntei.
Agora ela olhou para mim como se eu fosse um idiota.
— A única escritora mulher na sala? — Ela também formulou a frase
como uma pergunta, mas definitivamente não era uma. E definitivamente
me fez me sentir um imbecil.
Assenti depressa e comecei a procurar por uma mulher. Finalmente,
eu a vi, sentada um pouco distante do resto da equipe, perto de uma janela
com uma pequena estante de livros embaixo. Sua cabeça estava recurvada
tão perto do papel que eu me diverti imaginando que ela estava escrevendo
com o nariz.
— Com licença — disse.
Ela me ergueu um olhar expressivo, mas não surpreso. Não parecia
assustada. Só... intensa.
É claro. Agora eu me lembrava. A garota lá de baixo. A que tinha
segurado a porta para mim. Acho que ela teve um momento semelhante de
percepção.
— Sim? — disse ela.
— Preciso entregar isso para você. — Dei-lhe a pasta, que ela pegou
com um movimento rápido e eficiente.
Olhou para mim outra vez.
— Sou novo — decidi explicar. — O Sr. Drew me contratou ontem.
Sou do Departamento de Artes. — Por que eu ainda estava falando? Não
costumava falar tanto assim, então por que não conseguia parar?
— Certo — disse ela. E então voltou ao que estava escrevendo e eu
não tive escolha senão partir.
É estranho pensar que aqueles dois breves encontros te fizeram ter
tanta certeza sobre mim. Te fizeram gostar de mim. Nunca vou entender
por quê. Mas sempre serei grato por você ter tomado essa decisão.
Tive sorte de ter conhecido você.
O resto da manhã foi basicamente um combo onde fiquei sentado na
minha mesa por tempo até demais e então fui fazer algumas entregas.
Ninguém ainda parecia saber de fato que eu existia, mas a Sra. Lambert me
assegurou que quando o resto do estúdio descobria que tinha um novo
office-boy no pedaço, a demanda seria alta.
— Aproveite a paz e tranquilidade enquanto pode — disse ela com
um sorriso torto. — E leve isso à equipe de Música.
Assim o fiz. Desci vários andares até chegar ao do Departamento de
Música. Foi a primeira vez que tive noção do labirinto que aquele prédio
era. Diferente do meu departamento, que era só uma única sala grande, o
elevador agora se abrira num corredor estreito. Ele se estendia para ambos
os lados e não havia placas ou quaisquer outros indicadores que
apontassem aonde eu devia ir. Nem mesmo pessoas. O que destoava em
comparação com todas as outras áreas agitadas do estúdio. Era quase
estranhamente sinistro. Minha imaginação imediatamente se perguntou o
que teria acontecido a todas as pessoas. Imaginei uma mão gigante
brotando do chão e pegando todo mundo. Era engraçado, mas, por algum
motivo, ainda me sentia um pouco inquieto.
Deixei tudo isso de lado. Porque estava sendo bobo. Era só um
corredor vazio.
Escolhi ir para a direita. Fui caminhando, ouvindo o som dos meus
próprios passos, até que o corredor se abriu num pequeno espaço que dava
em quatro salas. Três das portas estavam trancadas; a quarta levava a um
banheiro que não parecia ser usado há muito tempo. Fechei a porta. A
sensação de inquietação continuava lá. Portas trancadas queriam dizer que
alguém queria manter as pessoas fora. Mas um banheiro sem uso queria
dizer que ninguém ia lá há algum tempo. Qual seria o caso?
Havia outro pequeno corredor escuro que se dividia do que eu estava,
mas sentia que estava indo para o lado errado, entrando cada vez mais
fundo no labirinto, então dei meia-volta e fui pelo outro caminho. Só tinha
duas escolhas, afinal. Passei pelo elevador e dessa vez virei à esquerda. Me
sentia mais confiante. Aquele corredor tinha pôsteres pendurados nas
paredes e, à medida que avançava, encontrei partituras e até alguns discos
emoldurados, suspensos como obras de arte.
E então, de repente, estava de volta a um corredor de aparência mais
simples. Girei sobre os calcanhares, mas não consegui entender como
aquilo acontecera. Devia ter errado uma curva em algum lugar. Estava
começando a me sentir um pouco em pânico.
Era ridículo. Aqueles corredores não podiam continuar para sempre.
Aquele prédio ficava espremido entre outros dois prédios. Aquela era Nova
York, uma cidade numa ilha, sempre crescendo para cima porque não havia
mais para onde crescer para os lados.
Só dê a volta e você vai acabar entendendo. Em algum momento.
Mas.
Não consegui. Na verdade, agora também já não conseguia mais
encontrar o caminho de volta até o elevador. Estava começando a sentir
aquela sensação tão familiar que tinha quando fazia entregas para o Sr.
Schwartz. Não queria ser conhecido como o cara que atrasava, ou que não
era confiável. Não ali, não no estúdio. E definitivamente não no meu
primeiro dia.
Fui parar num corredor que era mais escuro que os outros. Eu agora
estava ficando genuinamente assustado. Estava perdido num labirinto e,
àquele ponto, minha imaginação começava a se apossar de mim. Toda vez
que fazia uma curva, meu estômago se comprimia só um pouco com a ideia
do que eu poderia encontrar.
Ou quem.
Dei a volta em mais uma curva e então ouvi alguma coisa. Me
esforcei para escutar melhor.
Música.
Estava ouvindo música. Era baixa e esparsa. Como um grito lento e
agudo. Ficou mais alta, mas então voltou a abaixar. E mais uma vez,
aumentou e abaixou. Segui o som e fiz uma curva. A luz era mais brilhante
ali e acabei encontrando uma mesa vazia junto à uma porta. Em cima, havia
uma placa: Departamento de Música. E a música vinha de detrás da porta.
Alguém estava tocando. Esse alguém ia me ajudar a sair daquele labirinto.
Abri a porta cuidadosamente e espiei lá dentro. Era uma sala grande,
com um teto com dois andares de altura e um palco mais adiante. Na
parede dos fundos, um quadrado de luz branca e brilhante bruxuleava,
como se um rolo de filme tivesse acabado de terminar uma exibição. Me
virei para olhar para a parede oposta. Havia uma cabine de projeção mais
acima, mas a luz era tão ofuscante que não consegui identificar se aquele
tal Norman que tinha conhecido no dia anterior estava lá, ele ou qualquer
outra pessoa, na verdade. Então dei a volta e avancei pela sala. Cadeiras e
suportes de partituras estavam espalhadas pelo palco. E havia uma série de
instrumentos acomodados nos assentos, seus estojos abertos no chão junto
a eles. Parecia que todo mundo tinha tirado uma pausa pro almoço. Exceto
pela moça com o violino.
Estava sentada no meio do palco, cercada por uma floresta de
suportes de partituras, seu cabelo comprido, liso e sem corte. Sua partitura
lhe escondia o rosto e boa parte do instrumento, então só conseguia ver sua
mão e dedos, quase como garras, segurando as cordas no braço do violino.
A música que produzia era lenta e penosa, dificilmente se podia
considerar uma melodia. Ela atravessou a minha cabeça e me fez me sentir
um pouco zonzo.
— Com licença? — disse, a voz baixa, sem querer interrompê-la,
mas sem saber o que mais fazer.
Ela ergueu a cabeça depressa e a música parou instantaneamente.
Olhou para mim por detrás dos olhos de pálpebras extremamente carnudas.
— Oi, desculpa interromper, mas estou perdido...
Houve um súbito estrondo do lado de fora da sala. Então, um grito
desesperado. A mulher se levantou e fitou a porta e eu me virei para olhar,
meu coração palpitando rápido.
— O que houve?
A mulher ficou olhando, completamente imóvel. Então, num
sussurro, disse:
— Ele está vindo.
Me virei de volta para ela.
— Quem?
De repente, a sala ficou escura. Olhei em volta e notei que o projetor
fora desligado. Apenas uma luz mais ao canto iluminava a sala agora.
Podia sentir meu peito se contrair de medo, mas era só uma mudança na
iluminação. Só isso. Só isso.
Toc.
Me virei devagar em direção à porta. Me lembrei então do meu
pesadelo. A escuridão à minha volta. A mão passando pela porta. Olhei
para a violinista. Estava completamente parada em seu longo vestido preto.
Seu cabelo se mesclava a ele, fazendo-a parecer uma grande sombra. Ela
não deu meia-volta, não fugiu. Ficou apenas olhando para a porta.
Toc, toc.
Parecia o som de alguém mancando, pisando com força num pé só.
Logo do lado de fora. Aproximando-se.
Não. Não ia deixar que o meu cérebro me pregasse peças.
Toc, toc.
Não era um pesadelo.
Segui até a porta devagar, respirei fundo e então a abri com tudo.
Não havia ninguém lá.
— Ele está vindo.
Olhei para a violinista. Ela apontava para a porta com seu arco.
— Quem? — perguntei outra vez.
Ela não disse nada, ficou só olhando. Estava começando a me sentir
mais frustrado que assustado e então me virei em meio a um longo suspiro,
apenas para me deparar com o rosto de uma criatura coberta numa gosma
negra que pingava bem na minha frente.
Recuei aos tropeços e a pasta na minha mão caiu no chão, esquecida,
enquanto o monstro adentrava a sala usando o batente da porta para se
atirar em minha direção. Seu corpo inteiro estava coberto com uma coisa
escura que ficava escorrendo. Ele apalpou o próprio rosto e então disparou
uma lamúria de pura agonia enquanto se lançava sobre mim. Não consegui
fugir. Tropecei nos próprios pés enquanto a coisa caía em mim, cobrindo
meu corpo com a mesma substância grudenta e molhada. Empurrei o mais
forte que pude enquanto ela arranhava seu próprio rosto, nunca cessando
aquele urro horripilante que vinha do fundo de sua garganta. Toda vez que
abria a boca, a gosma negra escorria de sua garganta, fazendo-a gorgolejar
e cuspir.
Finalmente, ela rolou para o lado, saindo de cima de mim, e eu me
levantei aos tropeços. Olhei para mim mesmo.
Minhas mãos, calças, camisa — estava tudo coberto. Fitei minhas
mãos de perto, esfregando a gosma negra.
— Tinta? — disse, ofegante.
Me virei para a coisa no chão e percebi que não era um monstro. Era
um homem. Coberto de tinta. Um homem coberto de tinta, se debatendo no
chão, agoniado e furioso.
Num instante, já estava abaixado a seu lado.
— Senhor, senhor, consegue me ouvir?
O homem subitamente agarrou a gola da minha camisa e me puxou
para perto.
— Meus olhos!
Assenti e tirei suas mãos de cima de mim enquanto me levantava.
Vasculhei a sala com o olhar desesperadamente e vi um pedaço de tecido
enfiado num estojo de violoncelo aberto. Atrás dele, na fileira dos fundos,
tinha um copo de água pela metade. Passei correndo pela violinista, ainda
parada lá feito uma estátua, peguei os dois e, em pânico, voltei.
— Água e um pano — expliquei, entregando-os ao sujeito. Ele
sacudiu os braços às cegas e eu agarrei sua mão, fechando seus dedos em
volta do copo. Fiz o mesmo com a outra e o pano.
Observei enquanto ele esfregava os olhos furiosamente e me parecia
que só estava piorando as coisas. Ao mesmo tempo, eu também não ia dizer
a ele o que fazer — ele parecia um pouco... ensandecido.
A tinta faz isso com você.
No fim, ele conseguiu limpar seu rosto o suficiente porque logo se
acalmou, abaixou os braços ao lado do corpo e ficou ali deitado, olhando
para o teto.
— Você está bem, senhor? — perguntei.
O homem ficou parado por mais um momento e então virou a cabeça
para que pudesse olhar para mim. Seu rosto e estava manchado e a parte
branca dos olhos não estava branca. Ao invés disso, estava mais para um
tom pálido de rosa. Tudo nele parecia pontiagudo. Seu nariz, seu queixo,
até o formato de suas sobrancelhas.
— Se estou bem? — perguntou, em meio a uma risada, repetindo o
que eu dissera. Ele sacudiu a cabeça e me encarou.
— Está sangrando — disse, apontando para um ponto por onde o
sangue escorria.
O homem o tocou, subindo com os dedos em direção ao alto da
cabeça. Estremeceu. E então puxou alguma coisa com toda a força. Olhou
para seus dedos. Em meio a eles, havia um pedaço de vidro. Ele olhou de
volta para mim.
— Quem diabos é você?
— Ah, uh, sou o Buddy. Sou o novo office-boy do Departamento de
Artes.
Ele me encarou por mais tempo dessa vez. E então começou a rir,
uma risada que era só respiração, sem som. Quase como se estivesse
arquejando.
— Departamento de Artes. Certo. Certo, office-boy do Departamento
de Artes, responda-me isso: Por que vocês estão guardando tinta no
depósito das partituras? E por que o Joey tá passando um cano que
aparentemente tá cheio de tinta pelo meu depósito?
Um cano? Com tinta? Aquilo definitivamente não me parecia algo
normal, mas, pra falar a verdade, eu não fazia ideia do que era normal para
um estúdio de animação.
— Eu não sei.
— Você não sabe. Você não sabe. — A risada ficou ainda maior,
embora continuasse sendo só respiração. Agora, tinha também estalido
vindo do fundo de sua garganta. Ele se ergueu, apoiando-se nos cotovelos,
ainda rindo.
— Eu... não sei — disse, como se repetir as palavras fosse fazer com
que a resposta soasse menos engraçada. — Eu... não sei nem onde o
depósito das partituras fica. — Não sabia onde ficava a maioria das coisas.
Mesmo agora, nesse momento, nem sempre me lembro onde ficam as
coisas.
Mas me lembro do homem se levantando e me agarrando pelo
cotovelo. E me lembro de olhar para a violinista, do jeito que ela ficou
olhando em silêncio enquanto ele me arrastava para fora da sala. Me
lembro de segui-lo, sem saber o que estava acontecendo. E da força de sua
mão. Seus dedos eram tão pontiagudos quanto todo o resto.
Eu me lembro.
Me lembro de seguir um rastro de pegadas de tinta em sentido
contrário pelo chão.
E me lembro do depósito.
A porta estava escancarada e o chão completamente negro, com tinta
pingando das pilhas de papéis brancos nas prateleiras altas, como se uma
torneira tivesse acabado de ser fechada. Havia vidro quebrado por todo
lado.
— Esse é o depósito das partituras — disse o sujeito, soltando meu
braço de um jeito que mais pareceu um empurrão. Tropecei em direção ao
lugar. Bati com o pé num caco de vidro, que foi tilintando para um canto
escuro. — E essa é a tinta que não devia estar aí. — Ele apontou para uma
série de fileiras de tinteiros intactos e sem qualquer tipo de rótulo. — E
esse é o cano que está inexplicavelmente passando por aqui cheio de tinta e
ainda conseguiu estourar, arruinando incontáveis montantes das minhas
partituras.
— Certo — disse. Olhei para ele. Ele olhou para mim.
— Certo? — Ele parecia indignado, mas eu não sabia mais o que
podia dizer. Só queria voltar ao elevador e ao meu trabalho.
Quando eu não disse mais nada, ele sacudiu a cabeça para mim.
Então se inclinou tão perto que eu podia ver a tinta que penetrara cada um
de seus poros. Quando falou, pude ver sua língua e gengiva manchadas de
tinta:
— Limpe. Essa. Bagunça.
E então ele saiu batendo os pés e eu fiquei sozinho. De novo.
Olhei para o depósito.
Aquela sensação de estar perdido não me deixava em paz. Aquela
sensação de estar sempre errado. Não era boa. E então, olhando para a
bagunça, eu não conseguia entender. Eles não tinham pessoas para limpar
aquilo? Como aquele podia ser o meu trabalho?
E como eu podia fazer aquele trabalho?
Como se limpa tinta derramada?
É uma pergunta complicada de se responder.
Porque a resposta é: Não se limpa.
Deixe-me contar uma coisa sobre a tinta. Ela não vai embora. Quer
dizer, você pode lavar suas mãos e esfregar e você acha que se livrou de
tudo, mas aí um pontinho, um pequeno pontinho vai brotar. Algo que você
não tinha visto? Talvez. Mas não é o que parece. Então, ao invés de
continuar tentando tirar, você espera que as partículas da sua pele a
removam. E aí ela some. Ou será que não? Você acha que sumiu, mas aí
você acha mais. Em outro lugar.
E mais.
A tinta nunca desaparece.
Ela está sempre lá, como se estivesse se escondendo, esperando para
se revelar. Está sempre lá para te lembrar. Ela nunca irá embora.
No início, não é ruim. Você acaba se acostumando a vê-la por dentro
da unha do seu dedo indicador. Talvez seja até uma amiga. Ou uma marca
de orgulho. É assim que ela te atrai.
Mas ela floresce e se enterra. E penetra e mergulha.
E submerge e bebe.
Está viva.
Está em toda parte.
Está dentro de mim. Respira por mim. Posso senti-la esguichando
nos meus pulmões.
Posso senti-la no meu cérebro.
Eu sou a tinta.
CAPÍTULO QUATRO
— Buddy?
Àquela altura, já estava esfregando a tinta com um esfregão velho
que encontrei na despensa há provavelmente uma hora. Antes disso, tinha
recolhido o vidro quebrado e os frascos de tinta. Joguei fora todos os papéis
de partitura que foram destruídos. Sentia que tinha feito algo de útil. Mas
agora não. Agora era só tinta girando e girando, sem ir a lugar algum.
Me virei.
— Ah, oi. — Era a garota do Departamento de Redação. A que eu
tinha visto mais cedo.
Era a Dot.
Vindo ao meu resgate.
— O que está fazendo? — perguntou. Disse isso como se pensasse
que eu era doido.
— Ah, uh, o cara da música me disse pra limpar isso — disse,
sustentando o esfregão no ar enquanto ele pingava no chão. Mais tinta. —
Ele estava aqui e acho que quebrou uns frascos e teve um cano que
estourou ou algo do tipo.
— Cara da música?
— Isso... Ele é... pontiagudo. — Não sabia muito mais sobre ele.
Nem mesmo seu nome, parando para pensar.
— Ah — disse a garota, um sorriso rompendo sua expressão severa.
— O Sammy.
— Talvez.
— Ah, com certeza foi o Sammy. Ele... é bem entusiasmado. — Ela
deu a volta por mim de forma extremamente eficiente para dar uma olhada
na bagunça no depósito. — O que essa tinta toda estava fazendo aqui pra
começo de conversa? — Ela estendeu a mão e tocou uma poça grudenta em
uma das prateleiras. — Espessa — disse, mais para si mesma do que para
mim.
— Nem me fala — respondi, finalmente abaixando o esfregão no
chão e sentindo toda a exaustão da limpeza me tomando o corpo.
— Tinta estraga? — perguntou ela, olhando para mim.
— Nem ideia.
Ela deu de ombros.
— Bom. Não importa. Ele não devia ter feito você fazer isso. Olha
pra você, está horrível.
Me lembrei então que também estava coberto de tinta. Por causa de
Sammy. A mãe ia me matar quando visse o estado das minhas roupas.
— Vem comigo, quero te mostrar uma coisa.
E como qualquer coisa era melhor que ficar empurrando tinta em
círculos, fiz conforme ela disse.
Não sabia por que Dot fazia tanta questão de me levar aonde quer
que estivéssemos indo. Tá, admito que o meu primeiro pensamento foi que
talvez ela fosse a fim de mim. Quer dizer, não só a fim, mas estivesse
caidinha por mim. Se estiver lendo isso, sei que está rindo, Dot, mas não
sei dizer nenhum outro motivo pelo qual uma garota iria querer sair com
um cara, ainda mais na nossa idade. Não me ocorreu então que podíamos
ser simplesmente duas pessoas juntas.
Amigos.
Fico feliz por ter me dado conta disso.
Enfim, eu não sabia aonde ela estava me levando ou por quê, mas
qualquer coisa era melhor que ficar ali limpando, como eu disse, e àquela
altura eu já tinha me desviado tanto da minha tarefa que nem sabia mais
qual era o meu trabalho. E eu merecia uma pausa.
Sempre fui muito bom fazendo as coisas fazerem sentido na minha
cabeça, bem desse jeito.
Eu a segui pelo corredor, virando aqui e acolá até que chegamos ao
elevador. Senti tanto alívio ao vê-lo que me esqueci por um momento que
não estava indo para o Departamento de Artes e fiquei completamente
desnorteado quando o elevador começou a descer ao invés de subir.
— Aonde estamos indo? — perguntei. A gaiola na qual estávamos
sacudia um pouco e as engrenagens que controlavam o mecanismo de
movimentação faziam um barulho um pouco alto demais. Esse elevador
deve ter sido um dos primeiros do gênero, pensei. Um artefato histórico.
Um artefato histórico bem lento.
— Não quero estragar a surpresa — disse Dot, bastante natural.
— Hm — disse em voz alta. Era para ser apenas um pensamento.
Ela se virou e estreitou os olhos em minha direção, desconfiada.
— O quê?
— O quê? Ah, não, não é nada. Você só não parece do tipo que se
interessa por mistério, jogos e essas coisas. — Eu desacelerei enquanto
dizia isso e ela olhou para mim. De repente, me senti um imbecil. Não
sabia nada sobre ela. Só sabia que ela parecia mais pragmática.
Mas aparências podem enganar.
— Não está errado — disse ela, abrindo os olhos novamente. — Mas
de vez em quando, sabe como é. Uma surpresa pode ser bacaninha. Além
disso, é difícil explicar, melhor você ver.
— É, às vezes palavras não são o bastante — concordei.
Ela pensou a respeito por um momento.
— Vou escolher não levar isso como um insulto pessoal.
— Ah! Não, não foi. — Definitivamente não foi o que eu quis dizer.
Só achei que estava concordando com ela. Ela me fazia me sentir
pressionado, como se caso eu não dissesse tudo perfeitamente, ela podia
entender errado.
Mas no fim, eu estava certo.
De um jeito bom.
— Sou a Dorothy, à propósito. — É, acho que foi mais ou menos
assim que aconteceu. Acho que foi a primeira vez que nos apresentamos.
Sou a Dorothy, à propósito. — Todos me chamam de Dot. Eu me chamo
de Dot. Só me chame de Dot.
Certo. Me lembrei então da secretária a chamando assim.
— Eu sou o Buddy. Meu nome verdadeiro é Daniel, mas todo mundo
me chama de Buddy.
— Sério, por quê?
— Bom, por que te chamam de Dot?
— É um apelido comum que as pessoas dão para Dorothys —
respondeu ela, como se eu devesse saber. — Para Daniel, normalmente é
algo como Dan, Danny ou coisa do tipo. Buddy é estranho.
Isso meio que me pegou de surpresa. Não concordava com ela com
relação a isso.
— Não é não. Na verdade, começou como Little Buddy[1]. Todo
mundo no bairro me chamava assim. Eu era bem pequeno e estava sempre
fazendo o que podia para ajudar os meus pais, com tarefas e tal. Só queria
ser útil. Ficava dando a volta no bairro. Acho que as pessoas simplesmente
começaram a me chamar assim. Mas aí, bom, você sabe... — Abaixei a
cabeça e olhei para mim mesmo, para aquele meu par de pernas esguias
enfiadas nos meus grandes sapatos. Sempre senti que eu era uma vareta
num suporte ou algo do tipo.
— Você cresceu — disse ela.
— É.
O elevador finalmente parou com um solavanco, me fazendo ranger
os dentes por um instante. Imaginei que precisava me acostumar com as
paradas súbitas ou então eles iam acabar caindo da minha boca.
Dot abriu a grade e adentramos um corredor escuro e vazio.
Estávamos no porão, isso ao menos era evidente. E quando olhei em volta,
ficou claro para mim que ninguém trabalhava ali, aquele espaço era usado
mais para armazenamento que para qualquer outra coisa. Enormes recortes
de papelão do tamanho de uma pessoa com a imagem do Bendy estavam
inclinados na parede à direita e, quando Dot se virou e eu a segui para a
esquerda, vi vários depósitos de portas abertas. Dentro das salas, havia uma
porção de caixas empilhadas umas sobre as outras.
— Podemos mesmo vir aqui embaixo? — perguntei.
Dot deu de ombros.
Considerei isso como um não. Ela fora tão direta para responder
todas as outras perguntas, então imaginei: um gesto como aquele não seria
também uma resposta para a pergunta? É, provavelmente era um não.
— Então posso te perguntar uma coisa?
Ela olhou para mim, aquele olhar desconfiado outra vez. Quer dizer,
eu acabaria descobrindo que era assim que ela olhava para todo mundo —
porque suspeitava de todo mundo. Ainda assim, no início, isso me fazia
pensar o que estava fazendo de errado o tempo todo.
— Certo.
— Notei que tem várias... moças trabalhando aqui. — Não tinha
muita certeza de como dizer aquilo.
Dot deu uma risada. Uma risada única, que parecia vir junto a uma
tosse. E ela sacudiu a cabeça.
— Quem está chamando de moça, Buddy? — disse ela, em meio a
um sorrisinho travesso.
Meu rosto ficou quente frente a isso.
— Você sabe o que eu quis dizer. Todas essas, bom, essas garotas
que trabalham aqui. Como a supervisora do Departamento de Artes. É uma
moça. E... você sabe... — Eu meio que extingui o pensamento e fiquei
quieto.
— Sei o quê? — perguntou ela, fazendo uma curva. Eu a segui. Ela
ligou um interruptor e uma série de lâmpadas empoeiradas que percorriam
o teto estreito foram piscando até se finalmente se acenderem.
— Não estou... acostumado a ver tantas mulheres fazendo... esse tipo
de trabalho. — Era difícil expressar o que eu queria dizer. Principalmente
porque, acredito, eu não sabia bem o que estava perguntando.
— Tá, tá, antes que você acabe se enrolando mais aí, varapau, deixa
eu te ajudar. — Dot parou de andar e se virou para olhar para mim. Eu
também olhei para ela. — Durante a guerra, o Sr. Drew, como todos os
outros empregadores, perdeu vários funcionários que foram lutar a boa luta.
Então, como várias outras companhias, ele contratou as “moças”, como
você colocou. A guerra acaba, nem todos os rapazes voltam e aqueles que
voltam, bem... O Sr. Drew gostou do nosso trabalho. Acho que no começo
ele ficou surpreso, mas então percebeu que vinha ignorando muitos talentos
sem nem perceber. O Sr. Drew gosta de talento. E não se importa com o
gênero, a idade ou a cor do qual se originou.
— Sim — assenti, pensando na minha entrevista com ele. Não que o
Sr. Drew realmente soubesse que eu tinha alguma competência. Eu ainda
não tinha desenhado nem mesmo um círculo. Esquisito, quando parei para
pensar por esse ângulo.
— Enfim, você entende. Os caras que voltaram, voltaram. Mas o Sr.
Drew não demitiu nenhuma das garotas. Nós trabalhamos juntos por um
tempo, alguns dos homens ficaram por aí, outros já não gostaram muito de
receber ordens de mulheres, então... acabamos onde estamos agora.
— Com moças na chefia. — Agora eu entendo.
— São chefes como qualquer outro, Buddy. Mulheres não são uma
espécie estranha e especial de chefe. Só pessoas, Buddy, só pessoas. —
Assenti outra vez. Quer dizer, eu sabia disso. Claro que sabia. Dot olhou
para mim por um momento. — Você vai ter que jogar essa roupa todinha
fora. Tá destruída.
Olhei para baixo outra vez, para a tinta preta que ensopava a minha
camisa.
— Pois é — disse. Não queria pensar a respeito. Com isso, me
restava apenas mais um bom conjunto de camisa e calção.
Dot assentiu com veemência e começou a andar outra vez. Fiz o
mesmo. Ela andava depressa, mas duas passadas dela equivaliam a uma das
minhas, então não me senti exatamente apressado. Ainda que eu meio que
soubesse que devia estar voltando ao trabalho. Era bom ter algo que fizesse
algum sentido. Era bom ter uma amiga. Ela era minha amiga? Não tinha
certeza.
Finalmente paramos em frente a uma porta fechada. Dot então olhou
em volta, o que definitivamente me fez pensar que o que estávamos
fazendo não era permitido. Ela tirou uma pequena chave de bronze de um
bolso fundo em sua saia e destrancou a porta.
— Onde conseguiu isso?
Ela deu de ombros outra vez.
Abrindo a porta, ela acendeu a luz e nós entramos.
Era mais um depósito. Mas muito maior que os outros pelos quais
tínhamos passado, que eram pouco maiores que um armário. Dito isso,
havia tanta coisa empilhada junto às quatro paredes que dava a impressão
que o espaço era muito menor do que realmente era. No meio, havia um
conjunto de cadeiras e uma mesa. E o que parecia uma porção daquelas
casinhas de boneca que se via na vitrine de uma loja de brinquedos estava
disposta sobre a mesa. Meu ombro bateu em alguma coisa que se
sobressaltava e eu virei para olhar o que era. Era um volante.
Um volante?
Foi quando tudo finalmente entrou em foco.
É interessante como o cérebro funciona. Ele vê várias coisas como
uma só. Não vê as peças soltas individualmente. Você vê um carro. Não vê
um para-brisas, portas, faróis. Esses, você vê depois. Depois que viu o
“carro”.
É engraçado como, se não procurar pelas peças, às vezes você nem
chega a notá-las.
As coisinhas individuais que formam o todo.
As pistas.
A questão é que eu só tinha visto “coisas”. Mas agora que havia
notado o volante, notei mais. Notei que o volante estava preso a um kart de
aparência diminuta e me dei conta de que era muito parecido com os
carrinhos bate-bate de Coney Island. E então notei que aquela parede era
composta por uma pilha de carros. E mais que isso, havia uma placa meio
escondida com uma série de lâmpadas ao redor. Estava escrito “DY Bate-
Bate” nela. Adentrei a sala e dei a volta num círculo, notando mais coisas.
Como um cavalo de carrossel preto e branco e um recorte do Lobo Boris
segurando uma bandeja com uma seta com a palavra “Comida”.
— Incrível, não é? — perguntou Dot.
Me virei e vi que ela estava parada junto à mesa.
— O que é tudo isso?
— Bom, deixa eu te mostrar — disse ela, apontando para as casinhas
de boneca.
Me juntei a ela na mesa e notei então que não eram casas de boneca.
Eram parte de um modelo em pequena escala, o que fazia muito mais
sentido. Ambos nos sentamos dos dois lados da mesa. Ergui o olhar por um
instante e a forma como o nariz e a boca de Dot sumiram atrás do pequeno
modelo de um prédio fazia parecer que ela era um gigante observando um
circo de pulgas humano.
Voltei a olhar para baixo. Estava pairando logo acima de uma
pequena placa onde estava escrito “Bendy Bate-Bate”. Olhei por cima do
ombro para o verdadeiro, agora oculto nas sombras.
— Não entendo. Coney Island? — perguntei.
— Bendyland — respondeu ela.
Ergui o olhar de volta para ela, que estava olhando para mim com
uma expressão de quem sabe tudo.
— E isso existe? — perguntei. Mas mesmo enquanto o fazia, já sabia
a resposta. Não podia existir, já que todo aquele lixo estava entulhado
naquela sala. — Existiu?
Ela sacudiu a cabeça em negação.
— É o próximo grande projeto do Sr. Drew. Ele tem trabalhado nisso
nesses últimos anos, pelo menos desde que comecei a trabalhar aqui. Mas
sempre em segredo. Ninguém sabe sobre esse lugar, não que eu tenha visto.
Costumava ser só umas coisinhas aqui e ali e o modelo só foi crescendo e
crescendo. Mas aí no último mês, essa sala começou a encher de verdade.
Como se algo estivesse prestes a acontecer.
Pensei naquele sujeito, o Tom, que havia visto no dia anterior. Pensei
no tubo de papelão que ele carregava em mãos. O tipo de tubo que
arquitetos e designers carregam. Talvez ele estivesse trabalhando nisso.
— Não sei onde ele vai guardar tudo, porque mesmo esse armazém é
minúsculo. Loucura, não é?
Dei uma boa olhada em toda a cena apresentada no modelo diante de
mim. Havia diversos brinquedos e atrações, com uma área central onde
ficavam pequenas barracas com vários tipos de jogos. Tinha uma praça de
alimentação e até algo que parecia uma casa assombrada. Era um parque
completo. Só com coisas do Bendy.
— O Sr. Drew bolou tudo isso? — perguntei, admirado.
— Quem mais? — retrucou Dot.
— E você acha que mais alguém sabe?
— Acho que não. — Dot se ergueu e cruzou os braços na frente do
peito, ainda olhando para o modelo. Também me levantei.
— Como é que você sabe sobre isso? — perguntei.
— Boa pergunta, Buddy. — Ela parecia impressionada. — Continue
fazendo perguntas assim por aqui. É importante.
Eu não entendi. Quer dizer, entendi o que havia dito, só não entendi
por quê. Então perguntei. Já que, sabe como é, foi exatamente o que ela
tinha me dito para fazer.
— Por quê?
— Não sei, Buddy, não sei. Só estou sentindo alguma coisa nas
minhas entranhas e não está me cheirando bem. Preciso entender isso
melhor. Gosto de informação. Gosto de detalhes.
A mãe costumava dizer que o diabo estava nos detalhes.
— Enfim, não se distraia, Buddy. Você me fez uma pergunta e veja o
que eu fiz. Não a respondi e nós mudamos de assunto.
Assenti. Estava confuso, mas, ao mesmo tempo, não estava. O que
também era confuso.
— Então como você sabe sobre isso?
— Eu fuxico as coisas. Quero juntar os fatos.
— Por causa da coisa das entranhas.
— Isso.
Entendia aquilo de fuxicar. Fazia muito disso no meu bairro. E
quando ficava espiando os artistas no Central Park.
— Onde conseguiu a chave? — perguntei.
Dot sorriu frente a isso.
— Pergunta ainda melhor.
— Obrigado.
— O Wally está sempre perdendo as chaves. Não quer dizer que eu
tenha que devolvê-las.
Assenti outra vez, sem saber ao certo como me sentia a respeito de
toda essa coisa de roubar. Bom, eu sabia como me sentia e não gostava,
mas gostava da Dot e ela parecia tão segura de si, como se sempre soubesse
a coisa certa a fazer. Talvez a coisa certa daquela vez de alguma forma
fosse a coisa errada?
— Provavelmente é melhor a gente voltar lá pra cima antes que eles
notem a nossa ausência — disse ela. Senti uma pontada de pânico pensando
em como estava atrasado e como podia ser demitido, mas, ao mesmo
tempo, já tinha sumido há muito tempo antes de descer ali com ela e
ninguém parecia ligar. Se bem que ninguém também sabia que eu
trabalhava lá. Ainda.
— Será que você pode me ajudar a achar o caminho de volta ao
Departamento de Artes? — perguntei enquanto fechávamos a porta atrás de
nós e seguíamos em direção ao elevador.
— Claro.
Então eu parei. Pensando. Dot também parou. Notando.
— O que foi? — perguntou ela.
— Por que eu? — indaguei.
— Por que você o quê?
— Por que veio atrás de mim? Por que me mostrou isso tudo?
Ela então estreitou os olhos para mim com aquele olhar. Você tem
aquele olhar, sabia, Dot? Aquele olhar que diz que, de alguma forma, era
eu quem tinha que descobrir, que eu tenho a chave, a solução.
Eu não tinha. Não tinha na época, não tenho agora. Você põe muita
fé em mim, Dot.
— Minhas entranhas — respondeu ela.
----------
[1]
Little Buddy: Algo como “garotinho”, “rapazinho”, “camaradinha”, etc. Seria uma
espécie de apelido carinhoso. | Pronúncia: Lírou Bâ-ri.
CAPÍTULO CINCO
Não cheguei a ver o Sr. Drew naquele dia. Isso me deixou um pouco
mal. Até um pouco preocupado, pensando que talvez ele não estivesse
falando sério quando me ofereceu o trabalho ou que talvez já tivesse até me
esquecido. Mas quando voltei ao Departamento de Artes, pareceu até que
um holofote gigante se acendeu sobre mim. Eu definitivamente não estava
mais invisível.
— Quando dizem pra você cair de cabeça no trabalho, não é pra
levar pro lado literal.
— Isso é algum tipo de obra de arte conceitual?
— Quer virar um personagem de desenho quando crescer?
Acho que o pessoal do Departamento de Artes disse mais algumas
outras coisas, mas não consigo me lembrar. Me lembro deles rindo. Me
lembro do meu rosto ficar quente. E me lembro de tentar cumprir com as
tarefas que todos me davam o mais rápido que conseguia, conversando o
mínimo possível até o final do expediente.
O relógio continuou correndo. Cinco horas. Seis horas. Eu já estava
mais que pronto para ir embora. Que belo primeiro dia para o trabalho dos
sonhos. Mas ninguém me disse quando o dia acabava e ninguém à minha
volta se levantou. Todas as cabeças continuavam inclinadas sobre suas
mesas, seus lápis riscando furiosamente o papel.
— Tudo bem, Buddy, já pode ir — disse a Sra. Lambert. Eu quase
dei um pulo, ela meio que tinha chegado em mim de surpresa.
— Eu posso ficar — disse. Não queria parecer preguiçoso. Sempre
trabalhei duro.
— Não precisa. Estamos com um prazo bem apertado, mas é o seu
primeiro dia. Além do mais, parece que não foi um dia exatamente fácil. —
Ela me abriu um sorriso.
Não sabia o que dizer ou fazer. Eu meio que só queria sair correndo.
A ideia de sair lá fora coberto de tinta daquele jeito não era lá das
melhores. Mas fiz conforme ela disse e, pegando a minha jaqueta, fui para
casa. Fiquei muito focado na calçada sob meus pés. Não estava muito no
clima para ficar vendo pessoas olhando para mim.
Foi mais difícil ignorar os gritos das pessoas do meu bairro.
— Fala, Buddy! Tu caiu num tanque de chocolate, foi?
Esse tipo de coisa.
Cheguei em casa e subi correndo as escadas, esbarrando no Sr.
McKenna enquanto saía do banheiro, aquela velha toalha aos farrapos
amarrada na cintura, sua grande barriga caída sobre ela.
— Cuidado, garoto!
Entrei no apartamento às pressas e disparei por trás da mãe, que
estava lavando os pratos na cozinha, seguindo rapidamente em direção ao
meu quarto. Parei de súbito. Tinha me esquecido.
Meu avô.
Ele estava parado no pequeno espaço entre o pé da cama e a parede,
observando o grande quadro pendurado ali. Na verdade, acho que o quadro
em si não era exatamente grande, era do tamanho que era. Só era grande
em comparação à parede e eu sempre pensei que ele meio que dominava o
quarto inteiro.
— Só preciso trocar de camisa — anunciei. Mas ele não se mexeu ou
fez algum sinal de que havia me ouvido. Nem mesmo um grunhido. —
Koszula — disse. Meu polonês era horrível, só sabia uma coisinha ou outra
aqui e ali. Não tinha nem certeza se sabia como era “camisa” em polonês,
pra começo de conversa.
Dizer isso a ele também não pareceu surtir efeito.
Então segui lentamente em sua direção, tentando fazer com que ele
me notasse. Quando ele não o fez, finalmente resolvi subir na cama para
chegar à cômoda. Olhei para o quadro enquanto passava. Era uma
paisagem natural, com montanhas e árvores. Não era uma pintura realística
como uma foto, era mais como se o artista tivesse simplesmente jogado a
tinta aos montes na tela e conseguido a paisagem por acidente. Estava tão
acostumado com o quadro, tão familiarizado com cada forma, cada linha.
Mas não só com a pintura em si. Tinha também a moldura dourada.
Quando era pequeno, perguntei à mãe se era ouro de verdade. Não era, ela
disse. Eu disse que se fosse ouro de verdade, podíamos ter vendido e
comprado um apartamento novo. E mais comida também. Ela sorriu. “Não
é a moldura que é valiosa”.
Não tinha entendido o que ela quis dizer na época. Mas entendi
alguns anos mais tarde, quando Tommy Sharp me disse que vira no jornal
que um quadro que parecia bastante um dos nossos tinha sido vendido por
dez mil dólares num leilão. Não acreditei nele e acabamos brigando por
causa disso. Depois, fui para casa todo machucados e dei uma olhada nele.
E foi como se o meu mundo inteiro tivesse entrado em foco nesse
momento. Notei os outros quadros no apartamento. Os que estavam
empilhados uns sobre os outros ao longo do corredor. Notei como eles
ocupavam todo o espaço, do chão até o teto, quase como se estivessem num
estoque. Estavam todos tortos. Empoeirados. Tinha vivido com eles por
tanto tempo que nunca notei que os quadros eram algo a se notar.
— Mãe, podíamos vender esses quadros — disse. — Podíamos fazer
dinheiro. A senhora podia parar de se matar de tanto trabalhar para o Sr.
Schwartz todo dia.
— Essas ideias que você tem — disse ela, em meio a uma risada,
levantando-se da mesa para bagunçar o meu cabelo, como se eu ainda fosse
uma criancinha e não tivesse já os meus treze anos.
— Dinheiro é importante, mãe — disse, me virando de onde estava
sentado para olhar para ela.
— Não me diga que dinheiro é importante como se eu não soubesse
disso. — Ela se apoiou na pia e olhou para mim. — Nós não vamos vender
os quadros.
— Eles são valiosos. A senhora mesmo me disse isso uma vez —
disse a ela. — Você não viu no jornal?
— Não. — Ela se voltou para a pia outra vez. Mas não fez nada. Só
ficou lá parada. Em silêncio. Lágrimas não fazem barulho. As pessoas
acham que fazem porque quando as pessoas soluçam e tal, elas costumam
fazer sons com a garganta, mas na verdade é possível chorar sem que
ninguém saiba.
Mas eu sabia. Eu sempre sabia.
O que não entendia era por que ela estava chorando. Meu coração
afundou na altura do estômago.
— É por causa do pai? — perguntei, a voz baixa. Não recebíamos
uma carta dele há semanas.
Ela se virou abruptamente, seus olhos arregalados e vermelhos.
Parecia assustada, mas não de um jeito que eu saiba bem como explicar.
Tenho certeza que você saberia, Dot. Sua expressão então subitamente se
suavizou e ela disse:
— Ah, o seu pai. Não, não, não é por causa dele.
Olhei para o meu avô enquanto seguia até a cômoda e abri minha
gaveta.
De repente, ela estalou na minha cabeça, aquela memória. “É por
causa do pai?” Ela pensou que eu estava perguntando sobre o pai dela, não
o meu. Ela sempre escondeu alguma coisa. Sobre a família dela.
O que ele estava olhando no quadro? Por que era tão importante? O
que eu não conseguia ver?
Peguei uma camisa e mais um par de calças, fechando a gaveta num
empurrão. Não era justo, eu não precisava disso. Não precisava de um
velho misterioso que não falava a minha língua no meu quarto, no meu
espaço, só complicando tudo. Também não gostava de como ele deixava a
mãe triste. Ela era sempre tão feliz, menos quando falava dele. Por que o
estava deixando entrar na vida dela desse jeito? Na nossa vida?
Por que ele estava parado tão perto do quadro?
Era demais. Aquele dia tinha sido demais.
Fiz o caminho de volta pisando pesado em cima da cama, o que na
verdade não é algo que se possa fazer. Estava mais para um tropeço furioso
que praticamente me jogou do outro lado. E então eu voltei para o nosso
corredor estreito. Me despi e troquei de roupa, jogando as manchadas de
tinta em cima da cama.
Meu avô nem se mexeu.
Só ficou olhando.
E continuou olhando.
CAPÍTULO SEIS
Trabalhar no estúdio não era nada como eu achava que seria. Quer
dizer, não era ruim. Qualquer coisa era melhor que trabalhar na rua como
entregador para o Sr. Schwartz, em meio ao calor do verão de Nova York.
Dito isso, também não tenho certeza se escolheria ser entregador num lugar
fechado, em meio ao calor do verão de Nova York. Especialmente se esse
lugar fosse um estúdio de animação sufocante e mal ventilado.
Mas também não queria dizer que não havia lá suas vantagens.
Observar os artistas trabalhando era uma gigantesca, isso é, quando eles
permitiam, claro. O Jacob sempre me deixava dar uma olhadinha por cima
de seu ombro, mas o Richie, nah, ele escondia seu trabalho de mim como
se estivesse escrevendo mensagens secretas para os Aliados durante a
guerra. Mas honestamente falando, poder dizer ao pessoal do meu bairro
que eu estava trabalhando para o Joey Drew Studios no centro também era
bem legal. Eles ficaram impressionados. Ficaram com inveja.
E as pessoas que conheci no trabalho também eram bem bacanas. A
maioria deles. A Sr. Lambert, que supervisionava o Departamento de Artes,
era um pouco severa e às vezes me deixava frustrado quando me dizia para
sentar na minha mesa e parar de ficar zanzando o tempo todo. Ela também
usava ternos masculinos, algo que achei fascinante e definitivamente uma
inspiração para algum tipo de personagem que pensava em criar. Algum
dia. Quando ela finalmente me deixasse desenhar. O que não aconteceria
tão cedo. Eu queria aprender, queria fazer parte do grupo.
Aí tinha o resto da equipe. O Richie, o Dave e o Jacob, que eu tinha
conhecido no primeiro dia. Pareciam até uma ganguezinha, eu diria. Suas
mesas ficavam enfileiradas junto à uma parede embaixo de três lâmpadas
brilhantes. Richie e Jacob pareciam estar na casa dos vinte e poucos e eram
cheios de energia. Richie era meio bruto e estava sempre fedendo à fumaça
de cigarro. As pontas de seus dedos eram até amareladas, o que descobri
quando ele me passou alguns rascunhos novos, me encarando com um
olhar cheio de desconfiança por cima de seus pequenos óculos redondos.
Suas roupas sempre pareciam um pouco amarrotadas e isso fazia eu me
sentir um pouco melhor, já que depois do incidente com o Sammy, eu
agora tinha só um conjunto de camisa e calção pra chamar de meu. Não
tinha nem um paletó.
Jacob, por outro lado, se vestia muito elegantemente, com gravatas
bem coloridas e meias combinando. Eu nem sequer sabia que faziam meias
em cores que não fossem preto ou branco. Às vezes, ele usava até seu
chapéu no estúdio. Parecia um sujeito até bem tranquilo, mas era o que
mais gozava de mim. Parecia não conseguir esquecer toda a história de eu
ter tomado um banho de tinta. Pelo menos quando tocava no assunto, ele
sorria. O fato era que ele importunava todo mundo, então tentei não levar
para o lado pessoal.
Dave era mais velho que todos nós e sua pele era tão fina e seca
quanto um pedaço de papel. Depois que Dot me explicou o que tinha
acontecido no estúdio depois da guerra, fiquei me perguntando como um
sujeito mais velho como ele se sentia recebendo ordens de uma mulher, se
era muito aferrado às velhas tradições ou coisa do tipo. Mas ele não parecia
ligar muito. Não parecia fazer nada além de desenhar e tirar longas pausas
para o almoço. Não costumava falar muito com ninguém. Entregava seus
trabalhos no tempo certo e sempre ia para casa na hora, menos quando o
departamento estava com o prazo apertado.
Mas já que eu trabalhava como office-boy, como eles chamavam,
também acabei conhecendo pessoas de fora do meu departamento. Eu
geralmente pegava coisas de uma pessoa e dava a outra. Tinham muitas
coordenadas que precisavam ser dadas naquele prédio e eu era a ponte
entre todo mundo ali. Sentia que isso por si só já devia ter me rendido um
pouco de respeito, mas eu definitivamente era a base da base da pirâmide,
pelo menos por ora. Então eu levava roteiros do Departamento de Redação
para o Departamento de Artes. Partituras do Departamento de Música para
o Laboratório de Animação. Recibos de todo mundo para a Contabilidade e
contas da Contabilidade para todo mundo. Conheci todas as secretárias.
Conheci todos os chefes.
Acabei descobrindo que o tal “Sammy” era Samuel Lawrence, um
músico premiado e supervisor do Departamento de Música. Vê-lo sem estar
coberto de tinta pela primeira vez foi estranho para mim. Os ângulos de seu
corpo eram ainda mais pronunciados agora que ele não estava oculto
embaixo de toda aquela tinta pegajosa. Ele meio que me parecia um
pássaro. Especialmente quando ficava no posto de regente durante os
ensaios. A violinista ainda me dava arrepios.
Conheci também Norman Polk, o sujeito que me guiara pelas
escadas durante o blecaute, embora ele não tenha demonstrado nenhum
interesse em me conhecer. Ele operava o projetor, o que descobri que era
feito quando precisavam sincronizar som e imagens animadas. Era por isso
que tinha uma cabine de projeção na Sala de Música, como eu havia notado
daquela vez. E tinha uma também no Estúdio de Gravação de Voz. Norman
conhecia todos os atores e músicos e sempre observava quando eles
performavam, notei. Ele os observava por trás da luz brilhante do projetor.
Não o conhecia lá muito bem, mas nas poucas vezes que interagimos, tive a
sensação de que ele não gostava de mim. Me chamava de “entregadorzinho
do Drew”, o que não era verdade. Mas também não sabia o que havia de
errado com isso. Era quase como se não gostasse do Sr. Drew ou algo do
tipo. O que eu não conseguia entender. Como se podia não gostar dele?
Só conheci uma atriz naquelas primeiras semanas. Segurei a porta
para ela quando estávamos entrando no prédio e fiquei abismado com como
ela não parecia ninguém mais no estúdio. Quer dizer, ela parecia ter sido
tirada diretamente de um filme. No dia que segurei a porta para ela, estava
vestindo uma saia cinza-claro e uma jaqueta com uma blusa cor-de-rosa por
baixo. Usava um pequeno chapéu com laço na frente que lhe cobria os
olhos, embora não completamente. Devo dizer, nunca entendi porque ela
resolveu trabalhar com dublagem. Sua beleza era equiparável à de Ginger
Rogers. Tinha até o mesmo cabelo loiro-platinado. Nós acabamos no
elevador juntos e vou te contar, ela era muito simpática. Agradeceu quando
eu segurei a grade para ela e até perguntou o meu nome.
— Buddy. — Foi tudo o que consegui dizer. Não consegui nem
perguntar qual era o dela.
— Bom, eu sou a Allison, o que é engraçado, né? — disse ela,
abrindo um sorriso enquanto subíamos.
Não quis encará-la e não entendia por que “Alisson” era engraçado,
então só fiquei jogando o meu peso de um pé para o outro no chão do
elevador.
— Por causa da Alice. Allison. Alice. É muito parecido, sabe? —
Podia notar que ela estava olhando para mim. Queria que eu achasse a
sacada engraçada e esperta. Qual é, Buddy, qual é...
— Ah! Você é a voz da Alice Angel! — disse mais alto do que devia
quando o elevador chegou ao meu andar.
Allison riu.
— Sim! Bom, parece que essa é a sua descida. Foi um prazer te
conhecer, Buddy. — Ela me ergueu a pequena mão enluvada e eu logo a
segurei com a minha, bastante suada, sacudi uma vez e praticamente saí
correndo do elevador em direção ao Departamento de Artes.
Não a vi mais desde então e, francamente, fiquei aliviado com isso.
Comecei a ver a Dot com mais frequência. Desde aquela nossa
aventura estranha, ela decidiu que éramos amigos e embora eu não tivesse
entendido exatamente por que ela decidira isso, também não liguei. Era
legal quando ela vinha me procurar no almoço. Ou me mostrar um novo
roteiro no qual estava trabalhando e começava a explicá-lo para mim ao
invés de simplesmente me entregar e ignorar, como os outros escritores
faziam. Talvez fosse porque tínhamos quase a mesma idade. Talvez fosse
porque, mesmo que ela de fato pudesse escrever e não fosse só um office-
boy como eu, parecia que só pegava a parte mais chata do trabalho do
Departamento de Redação e estava na base da pirâmide, assim como eu.
No geral, ela só corrigia a ortografia e gramática, pelo que pude notar. Mas
no almoço, vinha sentar na minha mesa, no canto escuro do Departamento
de Artes, enquanto os canos mais acima rangiam e chiavam, e me contava
tudo sobre as várias diferentes histórias do Bendy que tinha bolado.
— Fiz uma bem legal que ele é um cowboy — disse ela, dando uma
mordida no sanduíche.
— Eu gosto de cowboys — respondi.
Talvez fosse o seu instinto lá das entranhas sobre mim o que nos
tornou amigos.
Eu não ligava. Era bom ter uma companheira.
Mas a pessoa que eu não tinha visto nem uma única vez aquele
tempo todo era o Sr. Drew. Eu entendia que ele era ocupado. Estava no
comando da coisa toda. Não esperava que ele fosse aparecer para ver como
eu estava pessoalmente. Ou me convidar para almoçar. Ou qualquer coisa
desse tipo. Mas cheguei a pensar que talvez, sei lá, talvez ele fosse querer
me acompanhar pelo menos uma vez depois de ter me contratado. Talvez
eu só estivesse imaginando coisas, como sempre, mas achei mesmo que ele
tinha gostado de mim.
— É como é o Sr. Drew — disse Dot.
Ela tinha me convencido a dar uma passada no pub do outro lado da
rua depois do trabalho. Era um lugarzinho pequeno e enfurnado de gente
que ficava descendo um lance de escadas e era claramente frequentado por
muitos tipos que gostavam de curtir depois do trabalho. O lugar era cheio
de homens e até algumas mulheres espremidos no bar e sentados nas
poucas mesas perto da porta e mais aos fundos. O ar ali era tão espesso
com fumaça de cigarro que me fez tossir à princípio. Dot tinha dezoito
anos, então podia beber, mas fiquei um pouco aliviado quando, ao invés
disso, ela pegou um refrigerante. Me ajudou a não me sentir tão bebêzão.
Nós pegamos nossas bebidas com o barman e encontramos um lugarzinho
junto à parede.
— Como assim, “como é” o Sr. Drew? — perguntei, quase gritando
por cima do barulho.
— É o que ele faz: desaparece. Apenas faça o seu trabalho, é só com
o que precisa se preocupar.
Suspirei, mas sabia que a Dot não tinha ouvido. Me inclinei para
falar em seu ouvido:
— Esse é o problema. Não estou fazendo o trabalho que quero fazer.
Preciso que ele diga à Sra. Lambert para me deixar desenhar.
Dot sacudiu a cabeça e me abriu um pequeno sorriso.
— Você não precisa de permissão, Buddy — retrucou ela. — Só vai
lá e faz. Desenhe.
Sacudi a cabeça.
— Não. Não, eu não tenho tempo. Fico correndo de um lado para o
outro o dia todo. Você sabe disso.
— Então faça em casa, desenhe algumas coisas do Bendy. Mostre à
Sra. Lambert.
No quê?, perguntei a mim mesmo. Com o quê? A Dot não entendia.
Claro, eu tinha um lápis e uns papéis velhos, mas precisava das ferramentas
certas. O papel do estúdio era espesso e poroso, absorvia a tinta. Não podia
simplesmente entregar um desenho feito atrás de um recibo do mercado.
Ou pelo menos não queria, não queria que vissem como gastávamos pouco
com comida.
— Eu... não posso...
Dot olhou para mim. Já estava me acostumando com o olhar àquela
altura. Então só olhei de volta. Se ela pudesse ler a minha mente, se
pudesse descobrir qual era o problema sem que eu tivesse que dizer a ela,
seria ótimo.
E então, ela o fez.
Não de verdade, é claro. De alguma forma, ela sempre conseguia
saber o que as pessoas realmente estavam pensando, não o que diziam estar
pensando.
Ela não disse nada. Só pôs a mão no bolso e me passou sua chave.
— Pega emprestada. Vou deixar na minha mesa de agora em diante,
caso você precise outra vez.
Eu não peguei, só olhei para ela.
— Você quer que eu use isso? — disse, devagar.
— Sim.
— Para...?
— Para arranjar os materiais certos, Buddy. Arranjar um pouco de
papel e tinta.
Sacudi a cabeça.
— Isso é roubo.
— É pegar emprestado. Afinal, você vai estar fazendo isso pelo bem
do estúdio. No seu próprio tempo, claro. E você também quer mostrar um
pouco de iniciativa, não é? É assim que se faz isso.
Por um lado, ela estava certa, não parecia ser nada demais. Não era
como se eu fosse pegar as coisas e então vender para as crianças do bairro
ou algo assim. Por outro lado...
— Pense a respeito — disse ela.
Coloquei a chave no bolso depressa.
— Você é uma má influência — disse, em meio a uma risadinha.
Dot deu de ombros, como sempre fazia.
— Talvez esteja mais para uma influência pragmática. Eles te
contrataram para um trabalho. Então faça o seu trabalho.
Pragmática. Não conhecia essa palavra na época. Procurei o que
queria dizer depois. Pragmática. Era alguém que lidava com as coisas de
forma “sensata”. Sem usar a emoção. Fazendo uma escolha por praticidade.
Não achei que concordava com ela com relação a isso, mas queria.
— Vou pensar.
E pensei.
Pensei a respeito disso a noite toda, deitado ao lado da figura ossuda
do meu avô, assobiando ritmicamente pelo nariz enquanto dormia. Devo ter
apagado em algum momento, mas senti que tinha passado horas acordado,
pensando. Pensando sobre viver assim, com a minha mãe, agora com o meu
avô. Dormindo ali, na cama grande. No quarto grande. Num apartamento
que mal comportava uma única pessoa, menos ainda uma família. Com
todas as outras famílias no meu prédio morando em cinco ou mais pessoas.
Aquele quarto grande que costumava pertencer aos meus pais. Até que o
meu pai morreu e aí ele passou a ser meu.
— Você já está tão alto, Buddy — a mãe tinha dito. — Não preciso
de um quarto tão grande.
Alto como ele costumava ser alto.
Imaginei mais quartos. Imaginei um apartamento que não absorvesse
o calor e te sufocasse lá dentro. Imaginei ter um terno. Não podia pegar o
do meu pai emprestado. Não podia colocá-lo. Simplesmente não podia.
Eu nunca teria mais quartos e um terno se continuasse sendo um
office-boy. Já era velho demais para ser um entregadorzinho.
E de toda forma, o estúdio tinha tanto papel e tinta que só faltava se
afogar nela. Como o Sammy. Coberto de tinta. Era tanta tinta que
aparentemente podiam até passar por canos.
Quando acordei de manhã, decidi que sabia o que fazer. A Dot estava
certa. Era a escolha pragmática.
Era a única escolha.
CAPÍTULO SETE
Era final de semana, mas não que isso importasse muito pra mãe. Ela
estava sentada ao lado da janela em sua máquina de costura, junto à mesa
da cozinha, costurando um paletó para o Sr. Schwartz. Tinha que admitir
que eu também ainda estava me acostumando com a ideia de ter o final de
semana livre. Ao invés disso, tinha passado as últimas semanas fazendo
tarefas para a mãe, indo ao mercado para fazer compras, pagando o leiteiro,
esse tipo de coisa.
Estava pensando no que a Dot tinha dito quando meu avô passou por
mim com seu paletó e chapéu já bem gastos.
— Aonde está indo? — perguntei.
Ele olhou para mim daquele jeito que sempre olhava.
— Aonde ele vai? — perguntei à mãe.
Ela não ergueu o olhar do seu trabalho.
— Provavelmente à biblioteca.
Me virei e o vô já tinha aberto a porta. Tive aquele sensação de que
“era agora ou nunca”.
— Ei, vô, eu vou com o senhor.
Isso fez a mãe erguer o olhar. Ela me abriu um sorriso, pequeno mas
perfeitamente pleno. Era um agradecimento. Não entendia por quê, mas ela
estava feliz.
Não me preocupei em colocar uma camisa já que só estávamos indo
na biblioteca. Ela ficava subindo o quarteirão e todo mundo também estaria
usando só a camiseta de baixo. Estava quente demais para se importar.
Enfiei meus pés nos sapatos e lhe segurei a porta. Ele me olhou um pouco
enquanto seguia para a saída. Então assentiu.
Quando saímos em meio ao ar espesso do meio-dia sob o sol quente
do meio-dia, eu ainda não tinha certeza se devia lhe pedir ajuda.
Obviamente, minhas entranhas achavam que era uma boa ideia e a Dot
sempre dizia que era preciso confiar nas suas entranhas. Mas, ao mesmo
tempo, como sequer seria possível que ele me ajudasse?
Me lembrei que ele se oferecera para me “ensinar”. Que talvez eu
devesse respeitar isso. Mas ainda assim.
Atravessamos a rua para desviar do hidrante de incêndio aberto que
disparava água nas crianças locais e eu nunca pensei que seria uma
daquelas pessoas que atravessavam a rua para desviar disso. Acho que
queria dizer que eu estava ficando mais velho.
— Legal — disse ele, apontando para as crianças gritando e rindo em
meio à água.
A biblioteca era um edifício de tijolos de quatro andares mais ao
canto. Uma mãe e sua garotinha estavam sentadas nos degraus que levavam
até ela, lendo um livro de canções infantis. A garota acenou para mim
quando estava passando e eu acenei de volta. Lá dentro, o ar era um pouco
mais fresco, graças aos ventiladores de teto que giravam lentamente sobre
nós e às paredes brancas e altas, feitas de alvenaria. Foi um grande alívio.
O silêncio também era relaxante. Não dava para ouvir nem o
burburinho da cidade. Era como quando a mãe desligava o rádio quando
estava na hora de dormir.
Segui o meu avô até as prateleiras dos fundos. Ele parecia ter um
propósito. Fomos até a seção infantil e foi quando ele parou para dar uma
olhada na coleção. Examinou cuidadosamente cada um dos livros que
tirava da prateleira, abrindo as capas, folheando as páginas e colocando-os
ordenadamente no lugar onde havia encontrado. Era um processo um tanto
demorado, mas fascinante de observar.
Ele finalmente recolheu uma pequena pilha de livros. Três livros
ilustrados, incluindo um do George, o Curioso e um da Píppi Meialonga.
Foi quando ele olhou para mim, satisfeito com sua coleção, que finalmente
me dei conta do que estava fazendo.
Estava aprendendo a nossa língua por conta própria.
É claro.
Se podia ensinar algo difícil assim para si mesmo, então eu não devia
ter medo de pedir a ele. Ou pelo menos foi assim que funcionou a minha
linha de raciocínio.
— Vô? — sussurrei enquanto seguíamos para a mesa da biblioteca.
Ele olhou em minha direção.
— Pode me ensinar a desenhar melhor? — Ele parou de andar e me
fitou. — Você sabe — disse, mexendo a mão, fingindo que estava
desenhando num pedaço de papel. — Arte.
Ele sorriu.
— Arte.
— Sim. Pode me ajudar? — perguntei.
Ele não assentiu, nem disse nada. Apenas pôs os livros na mesa de
retirada e falou com a bibliotecária ali sentada:
— Separe para mim?
Ela assentiu.
— Com certeza, Sr. Unger.
Ela o conhecia. Claro que conhecia.
— Venha — ele disse para mim, ao que eu o segui. Dessa vez, ele foi
em direção às escadas e nós as subimos bem devagar.
Fomo ao segundo andar, passamos por uma série de prateleiras e
então paramos. Estávamos na seção de artes. Devia saber. Mais uma vez,
meu avô examinou os livros cuidadosamente, sem pressa. Sorriu para eles e
os tocou como se tivesse uma boa recordação de cada um. Então começou
a tirar livros das prateleiras. E passá-los para mim. Um atrás do outro e
atrás do outro.
A pilha foi ficando pesada nos meus braços e, quando vi os títulos,
não entendi exatamente por que os estaria segurando a menos que quisesse
aprender tudo sobre a história da arte, o que não queria. Roma Antiga.
Grécia Antiga. Renascença. Da Vinci. Monet. Nem um único livro sobre
como desenhar. Nada desse tipo.
Meu avô parou e olhou para mim. Então disse:
— Bom. — E se virou para as escadas.
— Vô, isso é tudo bem legal e tal, mas eu não quero ser um artista,
artista. Só quero aprender a fazer aqueles desenhos cartunizados — disse,
mesmo sabendo que ele provavelmente não entenderia.
— História. Bom — respondeu.
História era bom.
Quando chegamos em casa, eu estava todo suado e cansado, mas
meu avô só estava começando. Ele se sentou na mesa da cozinha e olhou
para mim.
— Papel — disse.
Então peguei o papel, a caneta e a tinta do nosso quarto e levei para
ele. Ele tirou um pequeno livro bastante grosso com o título “A História da
Arte” escrito na capa. Abri. As letras eram pequenas e muito bem apertadas
em cada uma das páginas. Parecia impossível de ler. Fiquei entediado só de
passar as páginas.
— Ler e praticar. Hoje, círculo. — Ele pegou um dos livros maiores
e mais brilhantes e então o abriu. Encontrou uma página onde havia uma
foto lustrosa de uma pintura. Era de uma mulher que parecia um pouco
deprimida, sentada com um cachorrinho no colo. Meu avô olhou para mim
e apontou para a pintura. Então começou a recriar a pintura na página com
círculos. E ovais. E outras formas geométricas. Ela não tinha expressões
faciais, mãos, nada. Era quase como se fosse uma sombra de si mesma. —
Vê? — disse.
— Ah, círculos — disse a mãe, olhando por cima do meu ombro. —
Começando com o básico. — Assenti. — Água? — perguntou ela.
Assenti outra vez.
Enquanto ia até a pia, ela disse:
— Sabe, eu sempre disse que você tinha herdado as suas habilidades
artísticas do seu avô.
— Pra quem? — perguntei, vendo meu avô desenhar.
— Para todo mundo — respondeu ela, colocando dois copos de água
embaçados na mesa.
— Para mim não — disse. — Não me lembro de você falar sobre ele.
— Eu falava — respondeu ela. — Talvez você não se lembre.
— Não falava. — Me senti incomodado outra vez. Lembrei de como
ela simplesmente tinha convidado aquele estranho para morar conosco sem
sequer falar comigo a respeito. Sem sequer me avisar a respeito.
Escutei ela suspirar.
— Vou comprar as coisas para o jantar. — Ela deu meia-volta e saiu.
— Buddy — disse o meu avô e então eu olhei de volta para ele,
chocado. Nunca o ouvira dizer meu nome antes. — Certo, trabalho agora.
Ele me passou algumas folhas e empurrou o livro em minha direção,
trocando de página. Era estranho ver aquelas pinturas tão vívidas em preto-
e-branco. Era como se só contassem metade da história.
— Trabalho.
Ele me passou a caneta e olhou atentamente para a minha folha. Eu
finalmente assenti.
— Círculos? — perguntei.
— Sim. Círculos.
CAPÍTULO DEZ
Foi divertido. Foi sim. Aprender com o vô. Com certeza frustrante, e
às vezes até tedioso, era tudo muito técnico, eu não podia desenhar o que
quisesse. Mas, é, também foi divertido. E quanto mais empolgado eu ficava
quando aprendia algo novo, melhor. Em alguns dias, ele acrescentou mais
coisas às lições. Ainda estávamos fazendo círculos, mas avançamos para as
linhas. Linhas que ajudavam com perspectiva. Não me pergunte como ele
conhecia essa palavra, ele só conhecia.
Traçamos um bocado de linhas, uma do lado da outra, até o meio da
folha. Então fomos desenhando coisas como retângulos para prédios e
cones para árvores em meio às linhas. Desenhamos as mesmas coisas em
menor escala conforme nos aproximávamos do centro da folha. E deu
certo! Parecia que as “árvores” estavam ficando mais distantes.
— Pirâmide — disse o vô. — Perspectiva.
Ele estava apontando para uma pintura de da Vinci. Da Virgem
Maria sentada numas pedras enquanto segurava o menino Jesus.
Assenti.
— Pirâmide — repeti.
Continuamos praticando juntos depois do trabalho, nos finais de
semana e eu também praticava nos meus intervalos no estúdio. Não tinha
mais Bendys Cowboys para dar à Sra. Lambert e às vezes podia senti-la
olhando para mim, me julgando, duvidando de mim. Eu realmente queria
me provar para ela. Talvez até mais agora que para o Sr. Drew, de certa
forma. Sentia que ela não achava que eu salvara meu trabalho porque
merecia. Sentia como se ela achasse que o Sr. Drew simplesmente gostava
de mim. Aquela coisa do clube do Bolinha.
Achava isso porque ela disse uma vez. Só “aquele velho clube do
Bolinha de sempre” e não foi bem pra mim, mas eu escutei. E eu pensei
sobre isso. Pensei sobre como o Sr. Drew a dispensara naquele dia no
escritório dele. Eu estava tão confuso. Qual era a verdade, afinal? Ele
respeitava talento ou não? Ou talvez respeitasse, mas era mais complacente
com pessoas que eram como ele? Que o faziam lembrar de si mesmo?
Não, não. Não queria pensar desse jeito.
Enfim, imaginei que estava na hora de começar de fato a fazer uns
Bendys e planejei pedir ajuda ao meu avô em casa. Estava me sentindo
empolgado e saí correndo pelo saguão de entrada no final do dia quando
ouvi uma voz familiar:
— Buddy!
Derrapei até parar e me virei. O Sr. Drew estava parado junto à
recepção com um grande sorriso no rosto.
— Senhor! — disse, chocado. Imediatamente fui até ele.
— Aonde vai com tanta pressa, tem um encontro? — perguntou ele,
em meio a uma risada.
Senti meu rosto ficar quente como sempre ficava quando alguém me
fazia perguntas pessoais como aquela.
— Ah, não, senhor, não tenho namorada.
O Sr. Drew assentiu frente a isso.
— Provavelmente é melhor assim. Nesse momento, é importante
para nós focar no trabalho.
— Sim — disse. Eu imaginava. Na verdade, não era exatamente isso,
mas também era. Quando eu teria tempo para isso?
— Tenho algo para você. Peço desculpas pela demora, mas te dei um
pequeno bônus para compensar. — Ele me entregou um pedaço de papel
branco.
Olhei para ele.
Meu cheque de pagamento.
Meu primeiro cheque de pagamento.
Fazia três semanas e, é, acho que tinha demorado um pouco, mas eu
estivera tão enrolado com tudo o que acontecera com o desenho, a mentira
e depois com dar o meu melhor para encobrir a mentira que acho que meio
que esqueci. O motivo primordial para aquilo tudo.
O dinheiro.
Quarenta pratas.
Quarenta dólares, redondinho.
Na minha mão.
— Espero que seja o suficiente; nunca chegamos a falar sobre quanto
o Schwartz te pagava. Uma boa lição, Buddy. Sempre discuta números.
Sempre discutir números.
Quarenta pratas.
Senti como se não conseguisse respirar.
— Está ótimo — consegui botar para fora.
— Ótimo! — respondeu o Sr. Drew. Ele me deu uma boa batida nas
costas e eu tossi. — Venha, vamos comemorar!
Vamos?
Sem sequer esperar que eu dissesse alguma coisa, ele partiu em
direção à porta e eu o segui lá para fora, em meio ao calor escaldante. Por
algum motivo, ele não pareceu tão completamente sufocante, para variar.
De alguma forma, parecia até que bom.
Alcancei o Sr. Drew e o acompanhei enquanto ele ia caminhando
depressa pela calçada.
— Aonde estamos indo? — perguntei.
— Comemorar — respondeu ele, sorrindo novamente.
Sim, mas como e onde, eu queria saber. Não perguntei outra vez.
Não era para perguntar. Eu só tinha que confiar nele. E assim o fiz, confiei
nele.
Seguimos por uma série de quarteirões e então viramos para o sul.
Finalmente chegamos a um restaurante com um grande toldo vermelho. A
palavra “Sardi’s” estava escrita nele.
— Acho que já ouvi falar nesse lugar — disse, enquanto passávamos
pelas portas e adentrávamos o interior vermelho-escuro.
— Esperava que sim — disse o Sr. Drew, em meio a uma risada.
— Ah, Sr. Drew, a mesa de sempre? — perguntou o recepcionista na
bancada.
— Com certeza — respondeu o Sr. Drew e, quando ergueu a mão
para apertar a dele, notei um vislumbre de uma nota de dólar passando
entre os dois.
— Por aqui! — disse ele, com um largo sorriso.
Nós o seguimos até os fundos do restaurante, até uma mesa para dois
junto à uma parede cheia de caricaturas de pessoas famosas.
— É o Sinatra! — disse, enquanto me sentava.
— Algum dia, garoto, seremos nós — disse o Sr. Drew.
— Bom, pelo menos você — respondi. Não notei como o Sr. Drew
reagiu a isso, estava com os olhos arregalados demais enquanto olhava em
volta. Havia desenhos de pessoas famosas cobrindo todo canto das paredes.
E eu tinha certeza que também devia haver algumas pessoas famosas de
fato sentadas em algumas das mesas, não que eu as tivesse reconhecido.
Homens com seus ternos, mulheres com seus vestidos, jantando antes de
ver um espetáculo.
Olhei acima da minha cabeça para as caricaturas ali. Reconheci
Lauren Bacall. Estava muito boa. Para ser franco, eu não tinha esse desejo
de estar em um dos desenhos, mas a ideia de ter um dos meus desenhos ali
em cima? Para que todos vissem? Isso deixou meu estômago empolgado.
Um garçom de jaqueta vermelha se aproximou.
— Bebidas, cavalheiros?
— Me veja um old-fashioned — disse o Sr. Drew. — Buddy?
Ele olhou para mim e percebi que, se quisesse, podia ter pedido o
mesmo. Mas simplesmente não consegui.
— Um refrigerante? — perguntei ao garçom. — Uma Coca?
O garçom sorriu para mim como se eu tivesse feito a escolha mais
perfeita que qualquer um já tivesse feito antes e se retirou para buscar as
nossas bebidas.
— Buddy, você precisa começar a beber como um homem — disse o
Sr. Drew.
— Eu, uh, tenho umas coisas que preciso fazer quando chegar em
casa. Tenho que estar sóbrio — respondi. Achei estranho. Como o que eu
bebia me fazia mais ou menos homem? Eu já não era um homem
simplesmente por que era um?
Ainda assim, por algum motivo, eu me senti mal.
O garçom voltou com as nossas bebidas e se foi tão rápido quanto.
— Como a Lambert tem te tratado? — perguntou o Sr. Drew,
pegando seu copo e bebendo um gole. Ele fechou os olhos e suspirou. —
Que belezinha — disse para a bebida.
Bebi um gole da minha Coca de canudo.
— Ah, ela é legal. Está me deixando trabalhar no Bendy Cowboy —
respondi.
— Bom, bom. Bem, se ela ficar se achando muito pra cima de você,
me avise. Ela pode ser difícil — respondeu ele.
Eu não pensava exatamente isso sobre ela. Só a achava séria.
— Bom, eu acredito que você tenha um grande potencial, Buddy, de
verdade. Vejo quão duro você trabalha. O jeito como percorre o estúdio.
Aposto que vê todo tipo de coisa. — Ele me deu uma piscadela.
— Uh, na verdade não, senhor, só gosto de cumprir com o meu
trabalho.
Não sabia exatamente o que ele queria dizer com “todo tipo de
coisa”, mas tomei um grande gole da minha Coca, tentando acalmar minha
garganta que começava a se apertar. Não era uma mentira, de toda forma,
eu não tinha visto nada. Só escutado. Escutado conversas.
Sobre máquinas.
E tinta.
O Sr. Drew se inclinou sobre a mesa, meio como se fosse me contar
um segredo.
— Se vir algo... interessante... ou algo que ache que eu devia saber,
me conte.
— Claro. — É claro que eu imediatamente senti que devia contar
tudo a ele naquele exato momento. Especialmente sobre o Tom e o Sammy.
Mas isso envolveria a Dot. E ela gostava de segredos. Sentia que eram
necessários. Ela devia ter um bom motivo, ainda que eu não entendesse.
Mas naquele rápido momento, eu soube que não podia contar a ele.
Não ainda.
— Bom — disse o Sr. Drew. Ele se recostou na cadeira quando o
garçom voltou à nossa mesa.
— Prontos para pedir? — perguntou ele.
Olhei para o cardápio que ainda não tinha aberto.
— Uh...
— Vamos querer bifes, ao ponto, e não economize nas batatas —
anunciou o Sr. Drew, devolvendo o seu cardápio. O garçom riu, como se o
Sr. Drew tivesse feito a melhor piada que já tinha ouvido. — E mais um —
disse o Sr. Drew, batendo com o dedo no copo vazio.
— Outra Coca para você, senhor? — perguntou o garçom, voltando-
se para mim.
Eu ainda estava na metade da que tinha pedido.
O Sr. Drew riu.
— Vamos, Buddy, viva um pouco!
— Certo — disse ao garçom.
— Muito bem, senhor.
E então ele se foi em mais um de seus rápidos movimentos.
Enquanto esperávamos pela comida, o Sr. Drew começou a falar.
Não me refiro a falar como na conversa que estávamos tendo antes. Mas
falar mesmo. Do jeito que tinha falado quando fomos ao teatro. Do jeito
que tinha falado no dia que me contratou. Estava começando a me
acostumar com isso, a ouvi-lo falando. Ele tinha muitas filosofias de vida
pessoais. E tinha necessidade de compartilhá-las. Eu podia ouvir, embora
nem sempre conseguisse entender do que ele estava falando.
— Foi por isso que escrevi o livro. É tudo uma ilusão, compreende?
A vida. Viver. Está tudo aqui. — Ele deu uma batidinha na lateral da
cabeça e tomou um grande gole do novo old-fashioned que havia se
materializado diante dele. — As pessoas acham que existem regras, mas
regras são coisas criadas pelo homem. Para tentar manter a sociedade em
ordem. Isso não é ruim, mas também não é algo com que pessoas como nós
precisem se preocupar.
Ele sempre dizia isso, dizia “nós”. Não sabia bem se eu era uma
pessoa como nós. Mas gostava de como isso soava.
— Eu não entendo — respondi.
Foi quando os bifes chegaram e eu olhei para eles, boquiaberto. Não
que quisesse fazer isso e, quando o garçom riu, imediatamente fechei a
boca, sentindo-me envergonhado. Mas eles eram enormes. Os maiores
pedaços de carne que já tinha visto. Aquilo facilmente poderia alimentar
eu, a mãe e o vô num jantar.
— Parece fantástico — o Sr. Drew disse ao garçom, que abriu um
sorriso e partiu. Então ele se voltou para mim e sorriu. — Não tenha medo,
Buddy, caia dentro!
— Não estou com medo — respondi enquanto pegava meu garfo e
faca. Mas, honestamente, eu meio que estava.
Cortei uma fatia e comi. Foi o sabor mais incrível que eu tinha
sentido em muito tempo. Macio e suculento, com a quantidade certa de
condimentos. Me parecia quase errado que uma comida pudesse ser assim
tão gostosa e nem todo mundo tivesse a chance de experimentar. Não. Não
era quase errado. Era errado.
— Dizem que as regras são feitas para serem quebradas — disse o
Sr. Drew, mastigando. — Mas eu digo, por que não reescrever as regras?
Por que quebrá-las quando se pode controlá-las? Trata-se de ter o controle
sobre o nosso próprio destino.
Assenti enquanto pegava uma batata. Tinha um gosto diferente, um
toque especial.
— Rabanete — respondeu o Sr. Drew, sem que eu sequer tivesse que
perguntar. — Incrível, não é?
— Sim — disse de boca cheia.
E então ele continuou. Foi um jantar no qual o Sr. Drew queria falar
sobre coisas profundas que eu não entendia de fato e no qual tudo o que eu
queria fazer era degustar. Queria saborear. Guardar tudo na memória. Pra
ser sincero, eu mal o escutei. Ouvi a palavra “visão” outra vez. E mais
coisas sobre ilusões. Mas depois do terceiro old-fashioned, tenho certeza
que até o Sr. Drew já não estava mais acompanhando o que tentava dizer.
Quando atacamos o cheesecake que pegamos de sobremesa, não
achava que o meu estômago fosse aguentar mais comida. E certamente não
achava que o meu cérebro fosse aguentar mais dos discursos do Sr. Drew.
Finalmente, a maratona acabou e ambos nos recostamos em nossas
cadeiras. O Sr. Drew tinha parado de falar, eu tinha parado de comer. Nós
dois simplesmente ficamos ali sentados. Cheios.
— Isso sim é vida — disse o Sr. Drew.
— Ou uma boa ilusão dela — respondi, meio sem pensar. Mas acho
que todas as coisas que ele dissera de alguma forma tinham conseguido
entrar no meu cérebro.
O Sr. Drew apontou para mim e começou a rir, muito. Mais do que
eu já tinha visto alguém rindo antes. Ele se inclinou para frente e se curvou,
rindo tanto que começaram a sair lágrimas de seus olhos, mas o som da
risada não saía.
— Puxa vida, caramba, Buddy — disse ele, limpando o rosto com
um guardanapo. — Você é bom, garoto. Você é dos bons.
Eu também sorri, embora me sentisse mais inquieto que qualquer
outra coisa.
O garçom foi até nós com um livrinho preto fino.
— Quando estiver pronto, senhor. — Ele entregou o livro ao Sr.
Drew.
— Sim, claro. Buddy? — disse o Sr. Drew, estendendo a mão por
cima da mesa.
— Sim? — perguntei.
— Você precisa assinar a conta — explicou ele.
Olhei para ele. Ele me olhou de volta.
E foi então que entendi.
Eu tirei meu cheque de pagamento do bolso enquanto o garçom me
passava uma caneta.
— Uh, quanto ficou? — perguntei.
O Sr. Drew abriu o livrinho preto.
— Com a gorjeta, vamos arredondar para quinze.
Olhei para ele. Quinze dólares. Por uma refeição.
— O dinheiro vem acompanhado de responsabilidades, Buddy. É
assim que funciona.
— Sim... s-senhor — gaguejei, ainda olhando para o número
“quinze”.
— Vamos, garoto, ambos temos lugares aonde ir — disse o Sr.
Drew. O tom de sua voz ficara sério agora, quase irritado.
Eu peguei a caneta da mão do garçom devagar e assinei o livro da
conta. Entreguei a ele.
— Muito bem, senhor — disse o garçom. — Vou trazer o seu troco.
Olhei de volta para o Sr. Drew, meu coração acelerado. Esperava que
ele não conseguisse ver o pânico nos meus olhos.
— Isso sim é o que eu chamo de comemoração, não é, garoto? —
perguntou ele, em meio a um grande sorriso.
— Sim, senhor — respondi, a voz baixa.
— Mas não vá gastar desse jeito toda vez que receber o pagamento.
— Ele riu. — Não seria responsável.
— Sim, senhor — disse outra vez. Mal conseguia falar as palavras.
O Sr. Drew olhou por cima do ombro. Podia ver que estava ficando
impaciente. Ele suspirou.
— Olha, Buddy, tudo bem por você se eu voltar ao escritório? Vou
receber uma pessoa em meia hora.
Ele ia me deixar ali? Quer dizer, por que não, não é? O jantar já tinha
terminado. E eu não precisava de ajuda para ir para casa ou coisa do tipo.
— Ah, sim, claro.
O Sr. Drew jogou seu guardanapo na mesa e se levantou enquanto
assentia com firmeza.
— Excelente. Continue com o bom trabalho, garoto. Te vejo amanhã.
— E com isso, foi a sua vez de partir, apertando a mão do garçom e do
recepcionista enquanto ia embora.
Todos riram.
Eu não entendia qual era a graça.
— Seu troco, senhor — disse o garçom, voltando e me entregando o
livrinho preto.
— Obrigado.
Eu o abri. Vinte e cinco dólares, em espécie. Ainda era bastante
dinheiro. Mas era mais. Muito mais.
Enfiei as notas no bolso e saí daquele restaurante o mais rápido que
pude. Peguei o metrô para casa, mantendo a mão no bolso. Não precisava
de ninguém surrupiando o resto.
Cheguei em casa quando a mãe estava limpando a mesa. O vô me
abriu um sorriso da pia e acenou para mim com a mão ensaboada.
— Buddy! Achei que você vinha jantar em casa — disse a mãe
quando me viu.
— Eu também — respondi. Fica firme, Buddy, não pode deixar que
eles saibam que está se sentindo culpado. Olhei para a cortina empoeirada,
a pilha de pratos sujos, o velho sofá-cama onde a mãe dormia. Não, aquilo
não ia ajudar com a culpa. — Uh, o Sr. Drew me levou para comemorar.
Recebi o pagamento hoje.
— Finalmente! — disse a mãe. Ela me abriu um sorriso. — Estava
ficando preocupada.
— É, eu também. Enfim, aqui. — Eu rapidamente coloquei a pilha
de notas amassadas na mesa.
— Nossa, uau, Buddy — disse a mãe, olhando para elas.
Aquilo me fez engolir em seco.
— Sim, vinte e cinco pratas. Mas vai ser mais, agora que ele confia
em mim. — Uma mentira. Vai ser mais agora que não vou ter mais nenhum
jantar chique. — É tudo seu.
A mãe recolheu o dinheiro com cuidado, desamassando cada dólar.
Ela estendeu dez para que eu pegasse.
— Você precisa de alguma coisa, roupas novas. Talvez levar um dos
seus novos amigos para comer uma fatia de bolo.
Eu quis fugir de tão envergonhado que estava.
— Não, mãe, por favor. Não dessa vez. Talvez da próxima — disse.
E então fui para o meu quarto o mais rápido que pude. Me escondi lá
dentro. Meu coração não estava acelerado, mas doía.
Era o tipo de vergonha que nunca tinha sentido antes. Estava bravo
comigo mesmo. E com o mundo também. Todas aquelas pessoas naquele
restaurante, elas tinham dinheiro para comer lá, não estavam tendo uma
crise por causa de uma refeição. Não era justo. Simplesmente não era justo.
Nunca mais, eu disse a mim mesmo. Não até que eu pelo menos
conseguisse bancar aquilo de verdade. Não até que pudesse levar a mãe,
comprar um vestido chique para ela. Levar o vô também, claro. Comprar
um terno novo para ele. Uma nova camisa de manga comprida, já que ele
gostava tanto delas.
Nunca mais.
Não até lá.
CAPÍTULO ONZE
Era por causa dos canos. Agora eu sei disso. O meu cantinho do
Departamento de Artes onde ninguém queria sentar. Aquele afastado de
qualquer fonte de luz. Não era só por ser pequeno e apertado. Era porque os
canos que percorriam o prédio passavam pela parede e pelo teto em cima
dele. Eles faziam um som metálico quando a temperatura mudava ou
quando uma válvula era virada em algum lugar. Mas não era algo que eu
pensava que devia achar incômodo. Afinal, o nosso apartamento era cheio
de rangidos lentos, o constante ajuste da fundação do prédio. Quando era
pequeno, eu meio que sempre pensei que o apartamento estava vivo, que
estava respirando e suspirando, com frio no inverno e suando no verão.
Então os canos ficarem fazendo aqueles barulhos estranhos enquanto
eu ficava ali sentado trabalhando no meu canto naquela noite na verdade
sequer me fizeram piscar. Não me fizeram nem olhar para cima.
Até que fizeram.
Começou com um estrondo. No sentido literal da palavra. Eu estava
debruçado na mesa, trabalhando a questão da perspectiva. Desenhando um
monte de linhas. Não estava indo muito bem; tinha sido um dia longo e eu
estava cansado. Mas também estava determinado. Tinha ficado até tarde,
mesmo depois de todos os outros já terem ido embora. Determinado a
acertar naquilo. E toda vez que ficava um pouco cansado ou entediado,
tinha uma visão do Sr. Drew me empurrando da beira da passarela. Tá,
talvez essa não fosse a melhor coisa para se ver e talvez os outros fossem
dizer que ele tinha um jeito estranho de motivar a equipe, mas eu posso
afirmar com certeza que não achava que tinha sido essa a intenção dele.
Afinal, tínhamos saído para jantar na semana anterior, conversamos como
verdadeiros amigos. Tinha sido só uma piada.
Só isso.
Mas ainda assim, funcionou. Me deu uma agitada, me deu um novo
foco. E então houve um momento em que comecei a desligar, meus olhos
ficando um pouco pesados, quando subitamente imaginei que estava caindo
em direção ao chão do palco e no exato momento que ia me espatifar, um
bang! alto e forte soou sobre minha cabeça. Me joguei tão para trás na
minha cadeira que quase caí. Meu coração estava palpitando e, à medida
que as sombras do Departamento de Artes foram voltando a clarear na
minha visão, eu não soube dizer se tinha imaginado o som ou se fora
mesmo real.
Até que aconteceu outra vez.
Me levantei instintivamente. Não era uma caldeira se sentindo
frustrada. Era outra coisa. Mas o que era, isso eu não fazia ideia.
Bom, o que eu sabia era que não era da minha conta. Então voltei a
me sentar e foquei na minha folha.
Foi quando o gemido começou.
Não era como o vento nas árvores. Ou como o rangido do piso
quando um vizinho precisava usar o banheiro. Era como um animal, como
quando um cachorro faminto uiva num beco. Mas não exatamente desse
jeito. Desse jeito, mas também como quando um gato vê um inimigo e solta
aquele som lá do fundo das entranhas.
E talvez também o que parecia uma única nota, bem baixa, tocada
num violino.
Não era como nada que eu já tivesse escutado antes.
E eu fiquei curioso.
E também me lembrei do que o Sr. Drew havia dito. Que tomar a
iniciativa era importante. Estava tarde, a ponto de já estar escuro lá fora,
mesmo no verão. Os outros já tinham ido para casa e a Sra. Lambert teve
que reacender a luz quando notou que eu ainda estava ali. Tinha feito isso
de propósito, é claro. Para mostrar ao Sr. Drew e a todos os outros que eu
tinha a vontade. E com isso em mente, se eu era o único que ainda estava
no prédio e algo estranho estava acontecendo no estúdio do Sr. Drew,
naquele estúdio que significava tanto para ele, então certamente era meu
dever investigar.
Fiquei ali sentado em silêncio por um momento, escutando. Então
ouvi aquela batida determinada outra vez e logo me levantei. Não ia ficar
pensando muito a respeito, simplesmente ia fazê-lo. Ainda que fosse acabar
me assustando um pouco no processo.
Não tinha muita certeza de por onde começar, mas imaginei que a
sala da caldeira podia ser um bom lugar e então segui para o elevador.
Enquanto descia em direção ao porão, me dei conta de como estava
sozinho. Todos os andares estavam vazios, uma única luz acesa no prédio,
o resto tomado por sombras profundas. Talvez aquilo tudo fosse muito
ambicioso da minha parte. Talvez eu tivesse ficado até tarde demais.
Tarde demais.
O porão estava completamente negro e tive que tatear a parede para
encontrar o interruptor. O nó no meu estômago deu uma afrouxada quando
a sala se iluminou, parecendo bastante normal. E me senti mais confiante
conforme seguia para a sala da caldeira.
Tinha estado lá uma vez, procurando pelo zelador, o Wally, porque
um dos vasos do banheiro estava transbordando. Wally tinha montado uma
espécie de escritório improvisado ali embaixo, então era sempre lá que
dava para encontrá-lo quando ele não estava fazendo rondas. Mas o
expediente já tinha acabado agora, então é claro que quando eu tentei abrir
a porta, ela estava trancada. Não tinha pensado bem a respeito.
Ouvi mais uma daquela batida alta. Ergui o olhar e foi só então que
percebi que tinha ido fundo demais. Parecia que o som não estava vindo da
caldeira, afinal. O que era uma boa notícia, já que eu não tinha acesso a ela.
Ao invés disso, o som parecia estar vindo de algum lugar logo acima de
mim, um andar acima. E quase que para confirmar esse pensamento, houve
outro bang bem em cima da minha cabeça. Algumas partículas de poeira
começaram a flutuar sobre mim, caindo das tábuas do teto.
Foi quando um pranto veio em minha direção. Como o gemido, só
que mais angustiado. Soava bem menos como um problema com o
encanamento e bem mais como um problema com algo vivo. Isso fez os
meus pelos do braço se arrepiarem, mas também me impulsionou ainda
mais a entrar em ação. Se fosse alguém com problemas, não só um cano
com defeito, então eu tinha que me apressar. Tinha que ajudar.
Pressionei o botão do interruptor novamente para apagar as luzes
enquanto me enfiava de volta no elevador. Me senti inquieto vendo as
paredes descendo devagar enquanto eu subia. Quando o chão do próximo
andar se materializou diante de mim, notei que a minha respiração estava
rasa. E quando o elevador parou num solavanco, já estava me perguntando
quão certo eu estava do meu plano. Mas saí no corredor escuro e acionei
um interruptor. Mais uma vez, a claridade fez eu me sentir um pouco
menos tenso.
O pranto veio flutuando em minha direção outra vez. Soava como se
estivesse vindo de algum lugar mais à frente no corredor. Saber que estava
seguindo a pista certa fez o meu estômago revirar. Não sabia bem se era de
medo ou empolgação.
Provavelmente medo. Por algum motivo, sempre que ia no andar do
Departamento de Música, tinha alguma coisa que não me fazia, não me
deixava sentir nada além de desconforto.
Ouvi um baque alto. Esperei. Então o gemido começou de novo.
Bom, eu definitivamente estava no andar certo dessa vez.
Não tinha certeza se isso era uma coisa boa.
Enquanto seguia o som, me lembrei da primeira vez que estive ali
embaixo, perdido num labirinto de corredores. Quando fiz uma curva e me
deparei com um lance de escadas que levava para baixo, senti um grande
pavor tomar conta de mim.
Pendurada ao final das escadas havia uma placa com a palavra
“Enfermaria” escrita. Uma enfermaria? Nem sabia que o estúdio tinha uma.
Desci pelas escadas devagar, os degraus rangendo sob os meus pés, e
então entrei no saguão da enfermaria.
A sala era bastante grande, com cadeiras de madeira duras, uma
cama mais ao canto e uma mesa coberta de prontuários junto à parede. As
paredes no geral estavam vazias, com exceção de um pôster amarelado que
fora colocado sem muito zelo perto da sala de espera. Era uma imagem do
Bendy vestido de médico, da Alice Angel com um uniforme de enfermeira
e do Lobo Boris deitado numa maca, com o título “Leitos e Penicos”
escrito em cima com aquela típica fonte dos desenhos do Bendy.
Crash.
Dessa vez mais alto e vindo do corredor no alto das escadas. Isso me
trouxe de volta a mim. Não sabia o que era mais inquietante, o som em si
ou não fazer ideia do que o som podia ser. Esperava que fosse só um cano
frouxo. Esperava de verdade que não fosse alguém invadindo o lugar. Eu
não era um cara durão, não achava que conseguiria afugentar alguém.
Ainda assim, eu segui o som. Imediatamente acendi a luz do corredor
e vi uma série de portas alinhadas de ambos os lados. Esperei. E esperei.
Mas é claro que agora, quando eu precisava, não teve som de batida, não
teve gemido. Não teve nada.
Decidi que a única coisa a ser feita era checar cada uma das salas. Se
estivessem destrancadas. Não acreditava que estariam. Mas a primeira
porta se abriu, revelando um pequeno escritório com algumas mesas e uma
cadeira.
Chequei mais duas salas, ambas iguais. Então encontrei um escritório
maior. Esse tinha alguns diplomas emoldurados na parede e por um
segundo me perguntei a quem deviam pertencer.
Fechei a porta atrás de mim. Ela fez um barulho alto, mais alto do
que esperava, e então, imediatamente, eu ouvi. O pranto de novo. Mas
dessa vez soou mais como um grito. Como se alguém tivesse me ouvido.
Como se estivesse me alertando.
Parecia vir do fim do corredor.
Atrás de uma porta.
Com dois grandes pedaços de madeira cruzados na frente, formando
um “X”. Como se a porta estivesse sendo protegida de uma tempestade ou
coisa do tipo. Exceto pelo fato de que a tal porta obviamente ficava dentro
do prédio.
De repente, alguma coisa se atirou contra a porta. Ela sacudiu. Houve
um grande baque e uma sombra apareceu e então desapareceu na fresta
embaixo da porta.
Definitivamente tinha alguém preso lá dentro. Ou seria... alguma
coisa? Notei que estava segurando o fôlego e botei tudo para fora de uma
só vez, começando a puxar o ar de volta logo depois.
Alguma coisa? Como um animal? Como um... fantasma?
Que idiotice. Eu só precisava ver com os meus próprios olhos, saber
que o que quer que aquilo fosse fazia todo o sentido. Impedir que a minha
imaginação fizesse das coisas maiores do que eram.
O pranto recomeçou, dessa vez definitivamente vindo de detrás da
porta. De perto, havia alguma coisa nele que parecia diferente. Quase triste,
quase como um choro. Mas não um choro humano. Um choro animal.
Soava quase desamparado e me fez me sentir mal. Quase tão mal quanto o
quão assustado eu estava.
Levantei a mão devagar e a levei à maçaneta. Estava trancada. É
claro que estava. Quem deixaria uma porta destrancada com uma coisa
daquelas do outro lado?
O fato de estar trancada devia ter sido um sinal. Nem um sinal, na
verdade. Não era mágica, não era uma mensagem de uma força superior.
Era uma porta trancada. E uma porta trancada significava “fique longe”.
A menos que você tenha a chave.
Pensei na Dot. Pensei na chave dela.
Não parecia provável que uma cópia da chave daquela porta estaria
simplesmente jogada por aí em qualquer lugar. Ainda mais quando todas as
outras portas estavam abertas. Era uma sala na qual não era para se entrar.
Comecei a divagar. Nunca tinha perguntado a ela, mas o fato de que a Dot
tinha aberto uma sala no porão e então um depósito parecia indicar que era
uma daquelas chaves que podia abrir muitas fechaduras: uma chave mestra.
Diversos pensamentos me passaram pela cabeça nos momentos
seguintes. Dentre eles, preocupações e, é claro, aquela sensação de que não
devia estar fazendo isso, mas, ao mesmo tempo — não sei dizer por quê —
eu senti um impulso. Não sentia mais que tinha algo a ver com o Sr. Drew.
Eu precisava desvendar aquilo.
Quando cheguei ao Departamento de Roteiro, indo à mesa da Dot,
imaginei que ela ficaria impressionada comigo e não se importaria que eu
fizesse aquilo. Ela provavelmente teria me encorajado se estivesse ali.
Provavelmente teria levado a chave junto, para caso uma situação como
aquela acontecesse. E lá estava ela. Na gaveta de baixo, em meio às folhas
de uma cópia de A Obra Completa de Sir Arthur Conan Doyle.
Não me lembro como cheguei de volta à porta com o “X” na frente.
Não me lembro dos pensamentos que tive. Talvez eu me lembrasse em
algum momento, mas do jeito que a minha mente está agora, com tudo
misturado, eu realmente não lembro.
Só sei que eu estava lá.
Na frente da porta.
Com a chave.
Seja lá o que fosse o que estava lá dentro me ouviu outra vez porque
se atirou de novo contra a madeira e pareceu chacoalhar o corredor inteiro.
O pranto era mais insistente agora.
Encaixei a chave na fechadura e bam! De novo, a coisa se jogou
contra a porta, ameaçando quebrar tudo em pedaços e me fazendo tremer
dos pés à cabeça. Engoli em seco.
Virei a chave.
Click.
Silêncio. Nem mesmo o pranto. Nada.
Respirei fundo, girei a maçaneta e empurrei. Em meio a um alto
rangido, consegui abrir uma fresta e então empurrei com mais força, até
que decidi me jogar em cima dela para abrir tudo de uma vez.
Imediatamente acendi as luzes com o interruptor ao lado.
Fiquei parado sob o batente da porta, olhando para uma sala vazia.
Parecia uma sala de operação em miniatura. E estava tudo revirado. Lixo
no chão, a lixeira virada ao lado. Instrumentos cirúrgicos estranhos estavam
espalhados desordenadamente pelo balcão, com uma cadeira de madeira
quebrada em pedaços mais ao canto.
O que não parecia haver lá era... alguém. Ou alguma coisa.
— Olá? — disse. É o que as pessoas tendem a dizer, tinha notado,
quando não sabem se devem entrar num lugar. Ainda que talvez receber um
“olá” como resposta não seja o que você quer.
Naquele momento, eu não sabia o que queria. Mas aquela sala vazia
definitivamente não estava na lista.
Entrei na sala com cautela e então, mais que depressa, chequei atrás
da porta, porque é onde as pessoas sempre se escondem, atrás da porta.
Mas não tinha ninguém lá. Não tinha ninguém em lugar nenhum. Então
fiquei parado de frente para a porta aberta, confuso, sozinho e me sentindo
ainda mais inquieto. Senti um arrepio me subir a espinha, como se uma
mão gelada estivesse passando os dedos pelas minhas costas.
Foi quando a luz escureceu. Ou talvez “escureceu” não seja a palavra
certa para descrever exatamente. Diria que era mais como se sombras
tivessem começado a se espalhar pela sala. Começaram devagar, então
pensei que a lâmpada estivesse para queimar, mas então olhei para baixo e
vi a escuridão se fechando em volta do meu pé. Puxei o pé para cima,
achando que fosse algo molhado, mas era só uma sombra.
Só uma sombra.
Ergui o olhar e observei enquanto ela subia pelas paredes. Ia para o
teto. Cobria a sala na mais absoluta negritude. Como uma sala cheia de
tinta derramada.
Me virei e olhei para o corredor e, como era óbvio, a negritude
estava escorrendo porta afora.
Segurei o fôlego e fiquei completamente imóvel. Estava congelado,
em estado de pânico. Nunca tinha visto nada como aquilo antes e também
não achava provável que alguém já tivesse. Não sabia o que queria dizer ou
como estava acontecendo, mas sabia de uma coisa.
Parecia ameaçador. Perigoso.
Como se aquelas sombras gotejantes fossem o mal encarnado.
Não sei explicar como você sente que algo é o mal. Você só sente.
Eu simplesmente sabia.
Meu sangue gelou.
Todas as luzes se apagaram. Na sala. No corredor. As sombras
tinham vencido e eu mal conseguia ver o batente, só alguns centímetros à
minha frente.
Devia ter ido embora.
Mas o medo me fez ficar plantado no lugar. Medo da escuridão.
Medo das sombras.
E um medo arrastado e crescente. Me fazendo cócegas na nuca.
Medo de que houvesse algo na sala comigo.
Uma respiração suave e aquosa. Quieta e calma, mas distinta. Em
algum lugar atrás de mim. E agora eu podia ouvir o som de algo raspando o
chão, como passos arrastados, travados, mancos.
Então o silêncio.
Houve então um súbito estrondo quando algo pousou no balcão atrás
de mim, seguido pelo tilintar de metal caindo no chão. Os instrumentos
cirúrgicos, pensei. Lâminas afiadas e precisas no chão. Mas ainda não
consegui me mexer. Tinha a impressão de que, se não me mexesse, talvez o
que quer que fosse aquilo não fosse me ver.
O som de algo raspando o chão recomeçou. Foi ficando mais alto,
conforme a coisa se aproximava. E então, enquanto continuava ali parado
tentando ser invisível, pude sentir sua presença. Não só ouvir. Pude senti-la
logo atrás de mim. Ela se inclinou em minha direção.
A respiração quente e molhada na minha bochecha.
E então um outro tipo de som de respiração. Inalações rápidas.
Estava sorrindo para mim.
Eu não estava invisível. Eu precisava correr. Precisava correr mais
rápido do que já tinha corrido na vida.
Vai, Buddy, corra.
Corra!
Me lancei em direção à porta, erguendo um dos pés como se o
estivesse tirando de dentro de um lamaçal. Apoiei meu braço no batente da
porta para tentar me atirar mais longe. Não conseguia entender; não estava
fisicamente preso. Mas minha mente estava fazendo o meu corpo agir
como se estivesse.
A coisa atrás de mim me fez então um estranho grunhido, como se
tivesse se dado conta de alguma coisa. Senti ela se afastar.
Foi quando senti um súbito peso nas costas, me empurrando para
frente, seguido pelo som de passos pesados passando por mim à toda
velocidade. Eu tinha sido empurrado e caí com tudo no chão. Tinha a
mesma força que eu vira ser aplicada contra a porta e isso me tirou o ar.
Mas não fiquei de cara no chão por muito tempo. Logo me levantei. Meu
cérebro finalmente desprendeu meus pés e eu saí correndo pelo corredor
atrás do som de passos.
Em transe, olhei para tudo que era canto. De um lado, uma parede.
Do outro, um corredor que levava de volta à sala de espera. Não tinha nada.
Corri até a mesa da frente e derrapei para parar diante dela.
De novo.
Nada.
Foi quando notei a claridade à minha volta. A falta da sombra negra
feito tinta. Me virei e vi que o corredor atrás de mim também estava muito
bem iluminado. Levemente ofegante, voltei andando devagar para a sala.
Sem sombras.
Nada.
Esfreguei as mãos uma na outra, notando agora que estavam doendo
pela queda e vendo o rasgo na altura do joelho das minhas calças. Agora
estava com uma camisa e dois pares de calças a menos. Tinha só a camisa
do corpo que estava limpa e inteira o suficiente para trabalhar. De todas as
coisas, não era isso que devia estar me preocupando naquele momento.
Mas era.
Uma onda de exaustão tomou meu medo num abraço.
Vagando por Nova York tarde da noite, meu único pensamento era
chegar em casa. Olhando para as sombras escuras em meio a becos e
vitrines gradeadas, senti um pavor diferente de tudo o que já tinha sentido.
Não conseguia entender o que tinha acontecido. Não tinha nada naquela
sala, mas então algo respirou em mim. Me empurrou.
Era a minha cabeça me pregando uma peça? Eu estava assim tão
cansado? Eu tinha caído? Tropeçado no meu pé? Não teria sido a primeira
vez. “Pés de palhaço”, costumavam me zoar na escola.
Mas e quanto aos sons? Às batidas na porta? Às sombras crescentes?
Tinha sido real. Mais que real. Aquelas sombras estavam vivas, tinha
certeza disso. Respiravam, existiam.
Não era um sonho. Não era uma mentira. Eu tinha ouvido os sons.
Tinha visto a porta sacudir. E tinha sido empurrado ao chão. Tudo isso
tinha acontecido. Eu sabia que tinha. Não ia duvidar da minha mente.
Estava tão seguro com relação à minha mente naquele momento.
Me lembro do que senti.
Era quase como se estivesse sentindo de novo.
Fui andando para casa. Demorei pouco mais que uma hora, mas
precisava disso. Precisava de tempo para acalmar os nervos, para entrar
naquele ritmo familiar, para ver outras pessoas sendo só pessoas, não
pesadelos. As sombras me perseguiam, mas eu andava rápido. E quando
finalmente cheguei em casa, o medo estava muito pequeno e a exaustão já
tinha tomado conta. Isso era bom. Eu só precisava dormir.
Subi as escadas e me enfiei no nosso apartamento escuro. Todos já
tinham ido para a cama. Bom. Não estava no clima para falar com o meu
avô ou tentar fazer a mãe achar que estava tudo bem.
Abri a porta do meu quarto cuidadosamente, tentando não acordar o
velho. Deitado do seu lado da cama com a luz do poste lhe iluminando o
rosto, ele quase parecia um cadáver. Me perguntei se estava respirando.
Não consegui me segurar — levei a mão sobre seu nariz e boca e senti um
ar ligeiramente quente contra ela.
Graças a Deus por isso. Me sentei do meu lado da cama, encarando a
porta fechada, e vi novamente a porta trancada do estúdio. Não. Sacudi a
cabeça; não ia mais pensar naquilo naquela noite. Puxei lentamente os
suspensórios dos meus ombros e os rolei para trás, arqueando o pescoço e
ouvindo um estalo bastante satisfatório.
Suspirei.
Então algo me segurou com força por trás.
Pulei em meio a um berro e então me virei, vendo meu avô ali
sentado, fitando-me com aqueles olhos vazios, arregalados e assombrosos.
Sua boca estava aberta no que parecia medo ou angústia.
— O quê? — perguntei, um pouco alto demais, mas meu coração
estava extremamente acelerado. — O que foi?
Ele ergueu a mão devagar e apontou. Apontou direto para mim.
— Vô, sou eu. Sou o Buddy. O Daniel. — Coloquei a mão no meu
peito e dei uma batidinha. — Sou só eu. Seu neto.
Ele continuou apontando, seu dedo indicador sacudindo de leve. Sua
expressão continuava congelada.
Me inclinei em sua direção para tentar, sei lá, confortá-lo? Achei que
talvez ele não conseguisse ver muito bem, então se me visse de perto...
— Viu? Sou só eu.
Com outro súbito movimento, ele me agarrou pela gola com ambas
as mãos. Sua velocidade me impressionou. Ele estava puxando a minha
camisa. Podia ouvir as costuras na altura do ombro começando a rasgar.
— Para, vô, para com isso! — Puxar o braço de volta só piorava as
coisas e seus longos dedos esqueléticos só apertavam com mais força. —
Para com isso!
— Tire! — disse ele, a voz rouca.
— O quê?
Ele finalmente conseguiu passar um botão pela casa.
— Você precisa ver, precisa ver. — Ele agora estava determinado,
mas eu finalmente entendi e então coloquei minhas mãos sobre as dele, que
continuavam trêmulas.
Ele não me soltou e, enquanto tentava me levantar, cedi e desabotoei
a camisa enquanto o fazia. Ele continuou me puxando até que finalmente
consegui puxar meus braços das mangas, desemaranhando-me do tecido e
recuando em direção à porta aos tropeços.
Meu avô segurou a camisa junto a seu colo e a fitou.
Olhei para ele com os olhos esbugalhados, vestindo apenas a minha
camiseta de baixo amarelada.
— Qual o teu problema, velho? — Eu quis gritar, mas não queria
acordar a mãe, então sussurrei entredentes.
— Veja — disse o meu avô. Olhei para mim mesmo. Só o que vi foi
eu mesmo. E o buraco no joelho das minhas calças.
— Não. Koszula.
Ergui o olhar. Ele segurou minha camisa dobrada em seu colo por
mais um instante e então, com as mãos trêmulas e envelhecidas e os dedos
finos feitos pincéis, a ergueu para que eu pudesse ver.
E eu vi.
E fiquei olhando.
— Veja — disse o meu avô.
A luz lá fora iluminou a camisa, deixando-a transparente. Permitindo
que eu enxergasse as costas da camisa facilmente. Que visse a sombra
negra que fora marcada nela.
Ergui a mão e peguei a camisa dele. Ele a soltou facilmente.
— Você viu — disse o meu avô, soando satisfeito e deitando-se
novamente no travesseiro.
Uma marca de mão.
Exatamente onde eu tinha sido empurrado.
Nas costas da minha camisa.
Uma grande marca de mão, preta e manchada de tinta.
CAPÍTULO DOZE
Eu nunca coubera num terno antes. Bom, isso não era inteiramente
verdade. A mãe sempre soltava as bainhas e tinha um jeito mágico de
estender a vida de todas as minhas roupas, me fazendo ficar lá parado feito
um manequim numa vitrine. Mas eu nunca tivera um smoking antes e com
toda certeza nunca tivera um de uma alfaiataria do Upper East Side. O
smoking não era feito do zero, como o do Sr. Drew. Era um que por algum
motivo fora devolvido ao alfaiate, um que ele estava revendendo. Então ele
soltou a bainha das calças, o que sempre acontecia comigo, e apertou um
pouco a cintura, tudo tão rápido que eu e o Sr. Drew mal tivemos que
esperar até que ele me entregasse uma bolsa preta chique com um cabide
brotando do topo.
Estava acostumado a carregar esse tipo de bolsa para outras pessoas.
Mas aquela era minha.
E isso fazia toda a diferença.
— O que acha, garoto? — perguntou o Sr. Drew, enquanto
voltávamos para seu carro.
— Acho que é incrível, obrigado, senhor. — Ainda estava em
choque com aquilo tudo.
— Não foi nada — disse o Sr. Drew com um aceno de sua mão. — E
então, garoto, onde você mora?
Não soube o que dizer naquele momento. Não que eu não soubesse a
resposta, era só que...
— Ei, Buddy — disse ele, pondo uma mão no meu ombro. — Eu sei
como é. Não precisa ter vergonha.
Olhei para ele. Era difícil não ter. Não era só o fato de ter crescido no
meu bairro e ser pobre. Isso já era ruim o suficiente. Era morar num
apartamento de cortiço que eu dividia com a minha mãe e avô. Onde todos
os apartamentos do meu andar e do debaixo dividiam um único banheiro
pequeno. Onde às vezes a água era cortada por algum motivo aleatório e a
luz zumbia alto demais.
Como eu poderia me orgulhar disso?
— No Lower East Side — disse.
— Ótimo! — Ele se inclinou para frente para falar com o motorista e
eu me recostei no meu assento, querendo desaparecer em meio a ele.
Nós logo partimos e o Sr. Drew começou a falar sobre como Nova
York era a maior cidade do mundo, como Los Angeles não tinha nada do
que estávamos fazendo ali com animação, como os atores eram muito
melhores e como ele amava as estações e odiava palmeiras. E eu não podia
concordar ou descordar porque nunca tinha deixado a cidade e, ainda que
tivesse deixado, meu estômago estava dando um nó atrás do outro à medida
que íamos nos aproximando do meu bairro.
Onde nós eventualmente chegamos. Eu odiava o quanto ele era feio.
Quão altos eram os prédios. Como pareciam que podiam cair um por cima
do outro. As roupas lavadas penduradas nas janelas, as barracas de comida
ao longo das ruas estreitas. E as pessoas. Tantas pessoas gritando umas
com as outras. Ainda que não estivessem bravas. Só o barulho, o calor e
aquele cheiro. Aquele cheiro que eu tinha contado antes. De mijo. E
vômito. E suor.
— Qual é a sua rua, Buddy? — perguntou o Sr. Drew.
— Tem certeza? — disse. Não estava muito empolgado para mostrar
isso a ele.
— Não quer mostrar a essas pessoas como é o sucesso de verdade?
Não quer que eles vejam o que se ganha com trabalho duro? Eles têm que
ficar maravilhados com você, Buddy — disse o Sr. Drew, enquanto
passávamos pelo Açougue do Singer.
Até onde eu sabia, todos no meu bairro trabalhavam duro. Até onde
eu sabia, trabalhavam até não conseguir mais ficar de pé. Era por isso que
éramos um bairro de corcundas com peles bronzeadas e rostos magros e
angulosos. Era por isso que nunca ficava quieto por ali. As pessoas estavam
sempre com pressa, mesmo às duas da manhã. Mas eu tinha entendido o
que ele quis dizer. Ele quis dizer que eu tinha conseguido sair e que isso era
algo a se invejar. Eu com toda certeza invejava aqueles que tinham
escapado antes de mim. Havia uma diferença entre bom trabalho duro e
mau trabalho duro.
Pelo menos... foi o que eu senti na época. Naquele momento.
Naquele carro chique com o meu smoking novo, eu me senti... bem, eu
agora tenho vergonha disso, mas naquele momento, eu me senti... superior.
Guiei o Sr. Drew até a porta da frente do nosso prédio. Foi difícil
chegar lá com as pessoas que começavam a se aglomerar e o motorista teve
que avançar devagar. Cabeças brotaram das janelas acima e eu notei
Timmy Sharp sair correndo da loja de seu pai para espiar o carro. Acenei
para ele, que se ergueu e exclamou:
— Buddy Lewek está naquele carro!
Bom, isso só atraiu a multidão para ainda mais perto e pude ver que a
expressão no rosto do Sr. Drew não estava mais tão feliz. Ele parecia
inquieto. Talvez estivesse preocupado que pudéssemos acabar batendo em
alguém com o carro.
Nah, não era isso. Isso foi o que disse a mim mesmo na época.
Mas essa é a minha história e eu não preciso mais inventar mentiras.
Não depois do que sei agora.
Não era preocupação.
Era nojo.
Nós paramos.
— Bom, é melhor você sair, Buddy. Seus fãs estão esperando —
disse ele. Estava sorrindo, mas parecia impaciente agora. E eu estava
confuso porque, afinal, a ideia fora dele.
Assenti e, pegando a bolsa, saí do carro. Quase no mesmo instante
que meus pés tocaram o pavimento, o Sr. Drew já estava indo embora. Não
o culpei por querer dar o fora daquilo tudo. A situação só me deixou com
ainda mais vergonha.
— Ei, Buddy, posso pedir três desses? — perguntou Timmy,
apontando para o carro do Sr. Drew.
Eu sorri, mas não sabia o que dizer. Não era muito bom com piadas.
— Quem era aquele, Bud? — perguntou Molly O’Neill.
— Meu chefe — respondi, tentando abrir caminho pelas pessoas para
chegar à minha porta.
— Você trabalha naquele estúdio chique, né? — perguntou Timmy.
— Sim.
— Você vai se lembrar da gente, não vai? — disse o Sr. Goldman,
do outro lado da rua. — Ei, Buddy, não se esqueça da gente!
Acenei para ele e sorri. Passei pela porta.
— O Billy vai dar uma festa no sábado, vê se aparece — disse
Molly.
— Talvez — disse, mas não ia acontecer. Eu não ia a uma das
festinhas do Billy onde todo mundo ficava bêbado e sempre acabava dando
em briga.
Eu então fechei a porta. Acho que se pode dizer que a fechei na cara
deles, mas eles não estavam recuando e eu estava me sentindo esmagado.
Eu sempre quis impressionar a vizinhança, mas nunca me dera conta de
quanta coisa sentiria com isso.
No geral, o que eu mais conseguia pensar era no rosto do Sr. Drew e
no quão rápido ele foi embora com seu carro. Estava começando a me dar
dor de cabeça.
Subi até o apartamento, encontrando-o vazio, e fiquei grato por isso.
Não estava a fim de conversar com ninguém, explicar “como tinha sido
meu dia”. Também não estava a fim de praticar meu traço. Só queria deitar
na minha cama e olhar para o teto. Pendurei o smoking cuidadosamente no
guarda-roupas, junto aos dois ternos surrados do vô.
Fui até a cama e olhei para ela. Olhei para a cômoda ao lado. Para as
folhas de desenhos em cima dela. Me arrastei por cima da cama e peguei
um punhado antes de me virar e deitar de costas no colchão, olhando para a
mancha de água lá em cima. Quando criança, costumava fingir que era um
rio e criava cidadezinhas na minha imaginação que viviam à sua margem.
Confabulava cavalos e até escolhia um para mim, para a mãe e para o pai.
Algum dia, íamos morar num lugar que tivesse espaço para todo mundo.
Espaço para respirar.
Peguei um dos meus desenhos. Um de um anjo gorduchinho de um
teto em algum lugar da Europa. Tinha começado como círculos, mas agora
estava bem parecido com a pintura. Nunca imaginei que eu desenharia
anjos gorduchinhos. Nunca imaginei que era necessário. Mas agora estava
começando a entender melhor. As linhas simples que compunham o Bendy
ainda eram baseadas em figuras humanas. Em ângulos clássicos. Eu
conseguia desenhá-lo andando e realmente parecia que ele estava andando.
Foi quando notei que metade de uma das asas do meu anjo estava
para fora da folha. Aquilo não fazia sentido para mim. Por que eu não teria
desenhado a asa por inteiro? Aquilo fazia parte do exercício.
Me sentei. Isso me lembrou do cowboy do vô daquela tarde. A forma
como ele parecia ter escorrido da folha.
Olhei para a próxima folha na minha mão e então para a próxima. Eu
estava ficando louco? Eles todos estavam mesmo parecendo um pouquinho
diferentes? Todos os desenhos estavam escorrendo?
Ou era só coisa da minha cabeça? Só um deslize da minha mente...
Joguei as folhas no chão a frente e lancei meus antebraços sobre os
olhos. Tudo estava quente demais. Meu braço, minha cabeça, meu cérebro.
Eu precisava que tudo esfriasse.
Que todos ficassem frios, na deles.
Mas é claro que isso não ia acontecer.
Da frigideira para o fogo, como dizem.
Direto para as chamas.
CAPÍTULO
QUATORZE
Henry.
O nome que me assombrava desde o primeiro dia. O nome talhado
na minha mesa. O nome do qual o Sr. Drew me chamara quando estávamos
provando os smokings. Aquele nome que eu acreditara ser simplesmente de
um ex-funcionário e que, bom, quem precisava saber desse tipo de coisa,
afinal?
— O antigo parceiro de negócios do Sr. Drew — disse Dot. —
Ajudou a fundar o Joey Drew Studios. Ele criou o Bendy.
— Ele criou o Bendy? — disse. — Eu achava... quer dizer... sempre
acreditei...
— Um monte de gente acredita — disse Norman. — Não é do feitio
do Sr. Drew corrigi-las.
Isso me fez me sentir desconfortável. A implicação nisso.
— Ele criou os grandes três, não foi? — perguntou Dot.
— O Bendy e o Boris. Até a Alice, mas só começaram a incluí-la
depois que o Henry já tinha ido embora. Sim. Ele era um artista talentoso.
Um sujeito decente também. Na medida do possível.
— Vindo de você, é um baita elogio — disse Dot.
Norman deu risada.
— Acho que sim.
— Mas o que o Henry tem a ver com a tinta? — Eu queria prosseguir
com a história, não precisava saber do Henry e do Sr. Drew.
— Bom, o Henry foi embora. Disso vocês sabem. Ele pediu as
contas, queria passar mais tempo com a esposa, a Linda. Vocês entendem,
esse trabalho pode ser... consumidor.
— Claro — disse Dot.
Assenti, mas engoli em seco. Pensei em todas as noites em que
ficava até mais tarde. Pensei em como tentava provar o meu valor. Pensei
em como não tinha uma boa conversa com a mãe há um bom tempo.
— Como vocês acham que um homem como Joey Drew lida com
isso?
— Lida com o quê? — perguntei.
— Com a partida. O Sr. Drew tinha a visão. Mas o Henry, ele tinha o
talento. O talento se foi, e agora? Não é pessoal, mas o Sr. Drew lida como
se fosse. Talvez ele decida que não precisa do Henry. Nunca precisou. Só
precisa do talento.
Nada disso estava fazendo o menor sentido e, com tudo o que tinha
acabado de acontecer, a ideia de ter um monstro do lado de fora da porta, e
essa sensação, essa sensação que mais parecia um soco no estômago ao
ouvir a palavra “visão”... Eu não conseguia juntar as peças.
— Certo, então o Sr. Drew contrata pessoas talentosas, sabemos
disso — disse Dot.
— E sabemos que os desenhos vão bem por um tempo, depois que o
Henry vai embora. A Alice foi popular por um tempo. Assim como sua
atriz original, a Susie. Chegou a vê-la? — Norman perguntou a Dot.
— Uma vez — respondeu ela.
— Um doce de menina. — Ele terminou sua bebida e pôs a caneca
na mesa. — Mas enfim. Não durou. Todo o talento do mundo, e não durou.
Ele começa a gastar dinheiro com um parque de diversões que nunca vai
construir.
É claro que Norman também sabia sobre isso.
— E com o teatro — disse, quase mais para mim mesmo.
— Que teatro? — perguntou Norman.
— O estúdio começa a decair — disse Dot, colocando-nos de volta
nos trilhos.
Norman assentiu.
— Ele precisa de alguma coisa, qualquer coisa. Para colocar o
estúdio de volta nos jornais. Deixar os investidores empolgados de novo.
Foi quando finalmente estalou.
— A máquina — disse. — Tom Connor.
— Sim — disse Norman, olhando para mim. — Então vocês sabem
sobre a máquina — disse ele, como em aprovação.
— Mais ou menos — disse. Não pude evitar e acabei olhando por
cima do ombro, só para checar se a luz continuava brilhante.
Continuava.
— Sabemos que existe uma. Sabemos que Tom Connor está
trabalhando nela — disse Dot.
— Estava — corrigiu Norman.
— Estava? — perguntei.
Norman me ergueu uma sobrancelha.
— Estava.
Houve um silêncio no qual imagino que devíamos ter perguntado a
ele por quê. Mas então a Dot fez uma pergunta diferente. Nos colocando de
volta nos trilhos. Como sempre fazia.
— O que a máquina tem a ver com a tinta?
— Ela precisa de tinta para funcionar.
— O cano — disparei.
— Que cano? — perguntou Dot.
— Eu achei estranho, naquele primeiro dia, quando o Sammy estava
coberto de tinta e eu tive que limpar tudo. A tinta era de um cano que tinha
estourado no depósito. Tinha tinta passando pelo cano. Mas como...?
Norman me interrompeu:
— Não sei como e não sei o que está acontecendo. Só o que sei é que
toda essa tinta entra e então sai e, quando sai, de algum jeito sai diferente.
— Tinta diferente. — Pensei a respeito. Agora que as peças
começavam a se juntar, as coisas faziam mais sentido na minha cabeça
bagunçada. Eu conseguia resolver mais problemas. — A tinta que o
Sammy estava procurando... pela qual estava doido... — disse com cautela,
fazendo contato visual com a Dot.
— Sim — disse ela. — É claro. Por que ele se importaria tanto com
tinta normal? Tem por todo lado. Somos um estúdio de animação, temos
tinta por todo lado.
— Por todo lado — repeti.
— A máquina — disse Dot, virando-se de volta para Norman e se
inclinando em sua direção. — Você disse que o Sr. Drew precisa de tinta
para a máquina. Norman, o que a máquina faz?
Segurei o fôlego esperando pela resposta. Quase senti que não queria
saber qual era ela.
Norman apenas sacudiu a cabeça. Ele tirou o pé da mesa e voltou a
se sentar.
— Queria saber. Só observo o que posso ver. E o Sr. Drew e aquele
tal do Tom Connor, eles são mais sorrateiros que vocês dois. Só sei que o
Sammy não é mais o Sammy. A tinta, bem, eu não sei, mas me parece que
a tinta está tomando controle dele. Acho que foi a tinta que o levou.
— Acha que ele está vivo? — perguntou Dot.
— Não sei, mas vou contar uma coisa. Aquela tinta tem uma mente
própria. Vai aonde quer...
— Escorre da folha — disse, pensando no meu Bendy Cowboy.
Pensando no caderno do Sammy. Pensando...
Um tipo de pânico que nunca tinha sentido antes, nem mesmo
quando o monstro estava nos perseguindo. Algo animalesco e profundo,
algo que ia além das minhas entranhas, bem na minha espinha, me tomou
em meio a um momento de pura e profunda percepção.
— Eu tenho a tinta — disse. — Peguei um frasco do armário de
suprimentos, do estoque do Sammy.
— Bom, a essa altura o estúdio já foi tomado por ela. O Sr. Drew se
certificou disso — disse Norman.
— Não, ele não fez isso, não é justo! — gritei, mas mesmo enquanto
o fazia, me lembrei do meu avô olhando para a mão do Sr. Drew, das
palavras “tinta má”. Não, não era verdade. Não podia ser verdade. — Você
mesmo disse que ele contrata pessoas com talento, — disse a Norman, —
que ele é o homem de visão, então nada disso foi culpa dele. Foi desse Tom
Connor. Ou talvez do Sammy. — Eu estava tremendo agora. Todos os
meus sentimentos misturados em forma de medo. Não conseguia dizer qual
era qual. Não conseguia separar a minha percepção a respeito da tinta da
conversa sobre o Sr. Drew ou da criatura e da violinista e das sombras. As
sombras em forma de garra que tentavam nos pegar. Era tudo uma única
grande bola de medo.
— Buddy, acalme-se — disse Dot.
— Não consigo, você não entende. Eu tenho que ir! — Eu tinha, eu
tinha que ir.
— Está tudo bem, Buddy, mas temos que esperar um pouco mais —
disse Dot, levantando-se e vindo até mim, pousando uma mão gentil sobre
o meu ombro.
— Eu não posso! Você não entende? Eu tenho a tinta. Tenho a tinta
em casa. Está no meu apartamento. — Tirei sua mão de mim e saí correndo
da cabine de projeção. Não me preocupei se a havia machucado. Não me
preocupei se Norman ia achar que eu estava louco. E também não me
preocupei com a ideia de que a criatura podia me achar e me pegar. Não me
preocupei com nada disso porque não estava pensando. Não estava
processando. Só estava fazendo.
Estava correndo para casa.
CAPÍTULO
DEZESSETE
Mais uma vez, eu não sabia como chegara aonde estava indo. Mas
não era por extremo medo ou pânico agora, mas por nunca ter me sentido
tão extremamente sobrecarregado antes. Tanta coisa me havia sido dita
num espaço tão curto de tempo. Eu tinha vivido tanto. Meus olhos foram
abertos para coisas que eu nunca sequer havia imaginado e minha própria
culpa e confusão me pressionavam com tudo.
Quando cheguei ao East River, me dei conta de duas coisas: que eu
julgara meu avô de uma forma tão horrível e, no fim, acabei descobrindo
que não sabia nada sobre ele ou sobre a minha própria família. E que eu
também não sabia nada sobre o Sr. Drew, então como poderia conseguir
entender suas motivações, o que estava acontecendo no trabalho? Precisava
conhecer sua história.
Todos tinham uma história a contar.
Ainda que fosse fictícia.
Joguei a bolsa com os papéis, a caneta, o frasco de tinta, os panos e a
camisa do pijama do meu avô na água negra diante de mim. Ela boiou por
um momento, mas então foi afundando devagar.
Não me senti bem com isso. Só mais inquieto. A água parecia tinta.
CAPÍTULO DEZOITO
Não havia nada em mim que estivesse a fim de ir a uma festa. Era
tudo pelo que eu mais esperara nas últimas semanas e agora mais parecia
uma nuvem negra num dia ensolarado. Estava quase torcendo para que,
com todo o caos no estúdio, essa coisa toda acabasse sendo cancelada, mas
o estúdio reabriu dois dias depois e todos voltaram ao trabalho como se
nada tivesse acontecido.
É claro que para a maioria das pessoas não tinha sido nada de mais,
dois dias de folga, um pequeno descanso. Mas o que eu e a Dot tínhamos
experienciado? O que tínhamos visto? Voltar ao prédio foi algo realmente
aterrorizante. Eu não estava em qualquer posição para pedir demissão —
tinha que continuar fazendo dinheiro para a minha família. Mas também
sabia que não ia mais ficar vasculhando cantos escuros. Ia ficar de cabeça
baixa e ir embora antes de escurecer. Focar no meu trabalho.
E se o Sr. Drew achava que era seguro o suficiente para que todos
voltássemos lá para dentro, bom, eu confiava nele.
Ainda.
Mais ou menos.
O Sr. Drew deu um pequeno discurso motivacional no saguão:
— Sei que esses últimos dias foram complicados, mas já reabrimos e
o trabalho continua! Deixem que essa seja uma lição para aqueles que
acham que podem mexer com o nosso estúdio! — Ele deu uma boa
gargalhada e todos aplaudiram enquanto eu trocava um olhar com a Dot.
Ela foi até mim quando a plateia começou a se espalhar.
— Oi — disse ela. — Como você está?
Não consegui fazer contato visual com ela. Não queria falar sobre
nada. Só queria fingir que nada daquilo tinha acontecido. Tinha que focar
na vida real. Já estava farto de monstros.
— Tenho que voltar ao trabalho — disse e passei por ela em meio a
um empurrão.
Ela não me seguiu. Dot não era do tipo que seguia as pessoas.
O engraçado é que estou sentado aqui escrevendo isso na esperança
de chegar até ela.
E então:
Nada.
CAPÍTULO
VINTE E QUATRO
Não tenho respostas para todas as suas perguntas, Dot. Sei que você
achava que eu estava morto. Sei como é achar que alguém está morto. Sei
como é esse vazio absoluto. Como é a descrença. A forma como você luta
contra a sua própria mente. Como se não entendesse. Como se fosse tudo
mentira. Ou um sonho ruim.
A questão é que, claro...
Sonhos ganham vida.
Eu não estou morto.
Mas também não estou vivo.
E você não pode me salvar.
Mas pode salvar todos os outros.
Não sei qual foi o momento que eu acordei. Veio em estágios, o que
não é normal. Normalmente você está dormindo e então está acordado. Mas
descobri que quando se tem duas mentes vivendo juntas, quando se tem
dois conjuntos de memórias, às vezes uma mente acorda antes da outra.
Na primeira vez que acordei, estava confuso com relação a onde eu
estava. O mundo à minha volta estava escuro e sombrio e eu estava
acostumado com as coisas sendo brilhantes. Toquei o chão e vi a minha
mão. Ela estava diferente. Eu a virei. Parecia mais arredondada. Não era
tão plana quanto como a que eu estava acostumado. Também tinha mais
lados. Não conseguia entender. Me sentei e olhei em volta, agora em
pânico, e havia alguém parado ali. Ele tinha uma forma estranha, sua
cabeça muito pequena, seu corpo muito alto. Estava envolto em sombras,
era difícil de identificar. Quem era ele? O que queria de mim?
— Buddy? — perguntou.
Quem era Buddy?
Na segunda vez que acordei, era a minha mente. Não a dele. Eu
estava olhando diretamente para o Sr. Drew.
Isso me deixou confuso. Por que ele estava aqui? Ainda estava
usando seu smoking.
Foi quando me dei conta de que estava sentado e não me lembrava
de como fizera isso. Onde eu estava? Fechei meus olhos por um momento e
então me lembrei. Do teatro. Da criatura.
Da Dot.
De me afogar.
Da morte.
Do monstro. Eu rapidamente me virei para olhar, mas ele não estava
mais lá. Estávamos sozinhos. Soltei um longo suspiro e foi muito bom
fazê-lo. Nunca tinha me dado conta antes do quão bom era respirar.
Olhei para o Sr. Drew outra vez e ele estava sorrindo para mim.
Notei então que eu não estava embaixo do palco, estava em cima dele. Bem
no meio. Os assentos da plateia se estendiam num vórtice negro atrás dele.
Me virei para olhar para o outro lado. Em cima de mim pairava a máquina.
Gigantesca desse ângulo. Gotejando insistentemente. O som era hipnótico e
também um pouco doloroso.
Esse tempo todo, o Sr. Drew não disse nada. Ficou só me
observando. Era estranho e perturbador. Olhei de volta para ele.
— Estou morto? — perguntei. Era uma pergunta tola e, depois de
perguntar, percebi que já sabia a resposta. Era óbvio que não estava. Eu
sabia onde estava, sabia quem eu era. A menos que fosse assim que era
estar morto.
O Sr. Drew então se aproximou de mim a passos lentos.
— Buddy? — disse ele.
— Sim? — respondi.
— É você, Buddy? — Ele estava parado bem na minha frente agora,
pairando sobre mim. Sua pele era enrugada. Ele parecia quase inumano.
— Sim, sou eu — disse a ele. É claro que era eu.
Ele me agarrou por debaixo do queixo e manteve minha cabeça
imóvel. Tentei afastá-lo, mas ele segurava forte feito um torno. Ele ergueu
sua outra mão e me segurou com ainda mais força. Então veio mais perto e
me fitou atentamente nos olhos. Seu cheiro era poderoso. Nunca tinha
chegado a notar isso antes. Mas agora, por algum motivo, conseguia sentir
seu cheiro claramente. Não era só a fumaça do cigarro e a pomada do
cabelo. Podia sentir o cheiro do seu jantar, dos hors d’oeuvres da festa. O
cheiro do uísque e do champanhe. O cheiro do ar da cidade e do calor do dia.
Seu suor.
Sua loucura.
— Consigo senti-lo aí — sussurrou ele.
— Do que está falando? Me solta! — gritei na cara dele. Já não
ligava mais se ia impressioná-lo ou ofendê-lo. Não ligava para o que ele
pensava de mim. Sua máquina tinha feito isso com todos nós. Tinha
matado eles. Tinha me matado.
E agora... agora lentamente me ocorreu. A máquina tinha me trazido
de volta à vida?
— É claro que você não consegue me responder — disse ele,
subitamente se dando conta de alguma coisa. Seus olhos brilhavam e ele
mordeu o lábio. — É claro que não consegue. Ah, isso é mesmo incrível,
Buddy.
Não consigo respondê-lo? Mas que diabos?
Ergui as mãos e o empurrei, com força. Com mais força do que já
tinha empurrado qualquer um antes, e ele caiu de costas no palco de
madeira em meio a um grande estrondo. Me senti estranhamente poderoso.
Também já não estava mais sentindo dor alguma. Me levantei. Marchei até
ele. Era a minha vez de pairar sobre ele.
Ele se encolheu. Ele realmente se encolheu de medo. Me senti muito
bem com isso.
— O que você fez comigo? — perguntei.
— Vamos, Buddy — disse ele, erguendo uma mão, — não fique
bravo. Lembre-se que eu salvei a sua vida.
— O que você fez? — Me aproximei um passo, pondo minhas mãos
nos quadris. Gostei do fato de que a minha sombra o encobria por inteiro
daquele jeito, enchendo seu pequeno mundo de escuridão.
— Você está bravo, está frustrado. Não consegue se expressar, eu
entendo, mas não vê que eu te consertei? E agora você está, você está...
perfeito!
— O que quer dizer com isso? — Aquela palavra me tirou o ar dos
pulmões, acabou com a minha confiança.
— Vê? Não é tão ruim, certo? — disse o Sr. Drew, com um pequeno
sorriso no rosto.
— Do que você tá falando? — disse. Sentia agora que estava falando
com uma parede. Por que ele não podia me dar uma resposta direta? —
Diga o que você fez. Diga o que há de errado comigo. — Suspirei de
frustração e me virei para olhar primeiro para a máquina e depois de volta
para ele. — Diga... — Nesse momento, eu finalmente notei a minha
sombra. — Diga... — De repente, fiquei distraído.
Diga...
Recuei aos tropeços. Minha sombra era alta e magra, como sempre
havia sido. Ela cobria o Sr. Drew, agora se levantando, não mais encolhido
de medo. Me observando atenciosamente. Estava curioso, não com medo.
Parecia entender algo que eu não entendia. Algo que eu estava para
descobrir.
Toquei o topo da minha cabeça. O que era aquilo na minha sombra?
Duas pontas altas e curvas que pareciam crescer de ambos os lados do meu
crânio. Eram macias ao toque. E quando meus dedos as tocaram, eu senti
meus dedos. Aquelas pontas eram parte de mim. Assim como meus braços
ou minhas pernas.
Abaixei minhas mãos e olhei para elas.
Recuei outro passo.
— Atrás de você, Buddy — disse o Sr. Drew.
Me virei devagar. Não queria fazer o que ele dizia, mas, ao mesmo
tempo, eu sabia que precisava.
No chão, havia uma figura coberta de tinta. Esparramada em meio ao
palco. Inanimada. Encharcada. Me aproximei dela com cautela.
— Quem é esse? — perguntei, mas soou mais como um gemido.
Sem palavras. Só a sensação por trás das palavras.
Eu não queria saber a resposta.
Porque eu já sabia a resposta.
Me inclinei para olhar mais de perto.
O corpo no chão era meu.
CAPÍTULO
VINTE E CINCO
Acho que a minha história está chegando ao fim. A minha parte nela,
pelo menos. Acho que estou quase terminando de escrever. Não acho que
vá conseguir fazer isso por muito mais tempo. Ele está gostando da
história, mas também está com fome. Eu estou com fome.
Dot, se você encontrar isso, compartilhe.
Espero que consiga dizer a eles se essa história é verdade.
Sei que nem tudo é verdade.
Mas acho que a maior parte do que escrevi é real.