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Bendy and the Ink

Machine:
Sonhos Ganham Vida

Esta é uma tradução gratuita, elaborada e disponibilizada pela equipe da


Phantasie Translate. Se você pagou por ela, você foi enganado.
CONTEÚDOS

CAPA
PARTE 1: Sonhos Ganham Vida
PRÓLOGO
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
PARTE 1
Sonhos Ganham Vida
tradução por:
Phantasie
PRÓLOGO

Vejo aquele sorriso por toda parte. Ele me saúda de repente, em meio
à escuridão. Numa esquina. Nos meus sonhos. Aquele grande sorriso. Uma
boca cheia de dentes que parecem lisos e uniformes. Não dá para saber
quão afiados eles são até que se esteja descendo por sua garganta.
Aquele diabinho querido.
Não posso fugir dele.
O que estou prestes a contar vai soar inacreditável.
Não sou bobo. Todos vão ler isso e pensar “não sei quem esse tal de
Buddy acha que é, mas ele não vai me passar a perna”. Mas eu tenho que
escrever isso. Tenho que contar a história. Mesmo que ninguém acredite
em mim. Preciso fazer isso enquanto ainda há tempo. Antes...
A cada som, cada chiado, eu vejo aquele sorriso. Qualquer um diria
que estou ficando doido, mas eu sei qual é a verdade, eu sei o que vi. Sei o
que aconteceu.
Você precisa ler com atenção. Palavras nunca foram o meu forte.
Mas preciso usá-las... porque não se pode confiar em desenhos.
Não confie nos desenhos.
Tem muitas outras pessoas envolvidas. Até demais. Mas se eu puder
proteger uma única pessoa, uma só, do que eles se tornaram...
Do que todos nos tornamos...
Se você encontrar isso, Dot. Se nos encontrar...
Acho que é melhor começar do começo.
E prosseguir.

Até o fim.
CAPÍTULO UM

Sonhos se tornam realidade, Buddy, foi o que ele me disse. O Sr.


Drew não era um mentiroso. O problema é que, sim, sonhos se tornam
realidade. Assim como pesadelos. Pacote completo.
Pra ser sincero, eu passei muito tempo sem entender nada disso.
Sonhos se tornavam realidade? Pra quem? Pra gente rica, claro. Mas e pra
minha família? Sonhos eram só umas pausinhas rápidas entre os duros dias
de trabalho pesado.
Queria poder capturar exatamente como era o Lower East Side no
verão de 1946. Queria poder fazer um desenho: as calçadas derretendo em
meio às ruas e escorrendo em direção aos bueiros, linhas de vapor subindo
para riscar o céu extremamente branco, enormes gotas de água caindo das
testas das pessoas. Talvez a palavra “chiado” flutuando pelo ar.
Mas não posso desenhar. Tenho que contar.
Estou tentando me lembrar o que aprendi com você, Dot. Como
escrever uma boa história. Tenho que me lembrar do que você costumava
dizer. Usar todos os cinco sentidos, não só a visão.
Escrever não é desenhar.
Os cinco sentidos. Quais são mesmo os outros quatro?
Certo.
Audição: Crianças rindo e gritando umas com as outras, adultos
brigando, vidro quebrando e então o som de punhos socando carne. Sempre
dava briga quando ficava quente daquele jeito. Nada pra fazer, sem ter
aonde ir, o cérebro simplesmente não funciona — vira uma papa rosa e
melequenta na sua cabeça, revirando de um lado para o outro, pronta para
escorrer pelos seus ouvidos.
Tato: Sua pele ficava sempre gosmenta com o suor e tudo embaixo
dos seus dedos parecia molhado porque você estava molhado. Não tinha
como se sentir seco.
Olfato: O ar estava sempre tranquilo e estagnado, incapaz de passar
por cima dos grandes cortiços. O cheiro, no geral, era de mijo. Fazia você
querer vomitar. Às vezes, acabava vomitando. Ah! Esse era outro. O cheiro
de vômito.
Paladar:
Paladar:
Desculpa, não consigo me lembrar de nenhum sabor agora. É muito
difícil. Só o que consigo sentir é o amargo na minha boca. Aquele gosto
persistente de tinta.
Tá, só pra você entender. Era quente. E é importante que entenda
isso, porque eu teria feito qualquer coisa para sair daquele calor, sair
daquele bairro. Eu vinha pulando de um trampo pro outro já há alguns
anos, todos me explorando de tudo que era jeito. Desde que o pai morreu.
A mãe começou a trabalhar como costureira de tecidos pré-moldados e
nisso eu saí da escola pra assumir o lugar do meu primo Lenny, entregando
os ternos e jaquetas já prontos para o chefe, o Sr. Schwartz. Aí, sabe como
é, entregava as peças novas de volta pra mãe e ela começava tudo de novo.
A gente precisava da grana. E era o único jeito que eu conseguia fazer a
mãe sorrir. Sinto falta disso.
O sorriso da mãe. Gentil. Calmo. Caloroso. Do tipo que chegava lá
em cima, na altura dos olhos.
Não como o sorriso dele. Nada parecido com o sorriso dele.
Enfim, eu era pago, o que era importante.
Mas eu já tinha quase dezessete na época e a maioria dos outros
garotos tinha só uns doze. Comecei a me sentir um idiota sendo velho
daquele jeito e trabalhando com aquilo, então quando o Sr. Schwartz
sugeriu que eu fosse seu entregador sênior e explicou que eu ia sair do
bairro e rodar a cidade toda, eu disse sim. Tinha verde em outras partes da
cidade. Árvores e tal. E os bairros chiques não cheiravam à mijo. E quando
eu levava uma roupa costurada ao Upper East Side, podia dar uma volta no
parque e mergulhar os pés no lago.
Mais importante que tudo isso, podia ver os artistas pelas avenidas
desenhando turistas. Caricaturas. Podia vê-las de perto.
Foi aí que o problema começou.
Primeiro, artistas são evidentemente temperamentais.
— Ei, garoto, o que acha que tá fazendo?
— Só olhando, senhor. — Talvez daquela vez eu tenha chegado um
pouco mais perto da tela que de costume.
— Cai fora daqui com as suas olhadas!
Era como ir para a escola de artes, mas aposto que na escola de artes
os professores não te perseguem dizendo que você está assustando os
clientes porque está chegando perto demais.
Mas essa não era a melhor parte. Sabe, uma coisa que eu não disse,
porque acho que você já deve saber a essa altura, é que eu sou um artista.
Bom, agora. Na época não era. Mas queria ser. Não sei bem por quê; talvez
tivesse algo a ver com o meu avô que eu nunca conheci. Que ainda morava
na Polônia. Imaginava que ele devia amar artes. Afinal, a única coisa que
guardou e mandou com a mãe do “velho país”, como costumava chamar,
foram aqueles quadros malditos. Todo mundo ficava sempre supersupreso
em ver aquelas enormes pinturas à óleo num pequeno apartamento de
cortiço. Ela podia tê-los vendido. Por muito dinheiro. Mas não vendeu. E
isso sempre ficou comigo.
Comecei a rascunhar tarde da noite, pegando no sono e me atrasando
para as aulas. Então, fui mandado à sala do diretor várias vezes por ficar
“rabiscando” durante o dia e, cara, como eu amava tirinhas. Ficava dando a
volta no bairro atrás de jornais descartados, só pra ler as últimas do Popeye
ou do Dick Tracy. Até comecei a desenhar quadrinhos, criando aventuras
com Olívia Palito, Pruneface, Sparkle Plenty. Logo, já estava inventando
meus próprios personagens. Eles não tinham muita graça. Não os mostrei a
ninguém.
Mas aí eu encontrei os artistas do Central Park. E digamos que
acabei me distraindo.
— Você perdeu o terno? — O Sr. Schwartz podia ser bem assustador
para um homem que tinha só um metro e cinquenta e dois.
— Sinto muito, senhor! Juro que nunca mais voltará a acontecer! —
Eu só tinha deixado de lado por um segundo para olhar um desenho mais
de perto, mas foi tempo o suficiente para outra pessoa chegar de fininho e
surrupiar o terno.
— E quanto à última vez, quando chegou três horas atrasado? Meu
cliente quase não chegou à reunião a tempo.
— Sinto muito, senhor.
— Quer ser meu aprendiz? Quer ganhar a vida de forma boa e
honesta?
Eu queria, queria muito. Precisava do dinheiro. Nós, eu e a minha
mãe, precisávamos do dinheiro. E ninguém contrataria um adolescente da
favela que nem se formara no ensino médio. Ser o braço direito do Sr.
Schwartz era mais do que eu podia ter esperado. Cara, eu me senti um
idiota. Com vergonha de mim mesmo.
— Mais uma chance, Buddy, mais uma chance e acabou.
Mais uma chance.
Era minha última chance.
E aí eu conheci ele.
Quando fui a seu estúdio pela primeira vez para entregar seu terno,
estava com a bolsa de roupas pendurada no ombro direito, tinha rolado um
apagão por causa do calor. Não só no alto edifício de tijolos do estúdio,
mas no bairro inteiro também. As luzes intermitentes do letreiro do teatro
estavam apagadas e quando passei pela placa escura de St. Louis Woman,
dois assistentes de palco estavam olhando para o alto do prédio, as mãos na
cintura, palitos pendurados nas bocas.
— E agora, Steve?
— O show tem que continuar.
— É o que dizem, sim.
Eu não tinha me dado conta de que era de fato um apagão até alguns
quarteirões depois, quando passei por um teatro que não trabalhava com a
Broadway e finalmente cheguei ao estúdio ao lado. Estava superfocado em
chegar lá, mas já estava atrasado. Daquela vez não foi minha culpa. Foi o
metrô, eu juro. Mas o Sr. Schwartz não notaria a diferença. Eu ia
compensar o tempo perdido, por isso estava andando rápido, sem notar
muito do mundo à minha volta. Mas quando entrei no escuro absoluto, fui
puxado de volta à realidade. E aí eu parei e fiquei ali de pé. Era tão negro
que não dava nem pra dizer qual lado era pra cima.
Então, de repente, ficou superbrilhante, como se alguém estivesse
apontando uma luz diretamente em cima de mim. Ergui a mão e a luz saiu
do meu rosto e eu vi enquanto o feixe vasculhava a sala até chegar a uma
mulher mais velha de cabelos grisalhos sentada atrás de uma grande mesa.
Dei um pulo, surpreso por vê-la aparecer daquele jeito.
— Caramba, Norman — disse ela, fechando bem os olhos por trás
das lentes dos óculos enormes.
— O projetor desligou — disse Norman, a voz rouca.
— Caso não tenha notado, a luz acabou por toda parte. Agora tira
essa lanterna dos meus olhos! — Houve uma pausa. E então, num clique,
ficou tudo escuro outra vez.
Mais escuro, eu diria. Mais escuro. Depois do clarão da luz direta,
parecia que não só a lanterna tinha se apagado, mas os meus olhos também.
Senti um arrepio me subindo a espinha.
Não sabia o que fazer. Precisava entregar aquele terno de uma vez.
Achava que conseguia me lembrar onde ficava a mesa, então será que não
podia ir até lá aos tropeços mesmo?
— Quem é o garoto? — perguntou Norman de algum lugar.
— Não sei, Norman. — Ouvi o barulho de um fósforo riscando uma
superfície e então aquele chiado de uma chama ganhando vida. O rosto da
velha foi grotescamente distorcido pelas sombras longas e pronunciadas
que se formaram quando acendeu um lampião em suas mãos.
E então houve luz.
Ela tremulava e dançava pelas paredes. Havia pôsteres emoldurados
pendurados ao longo das mesmas. Pareciam pôsteres de filmes. Mas eram
desenhos. E todos de um personagem em particular. Era bem sorridente.
Quis olhar mais de perto. Onde eu estava? Que lugar era aquele? Por que o
personagem meio que parecia familiar?
— Muito bem, garoto, agora estou te vendo. O que você quer? —
perguntou a mulher sentada tão baixo atrás da mesa que apenas seus óculos
e o topo da cabeça eram visíveis.
— Eu, uh... — Não era complicado, mas eu tinha esquecido para
quem era a entrega e olhei para baixo, vasculhando às cegas a bolsa de
roupas preta que carregava nos braços para encontrar o nome.
— Aproxime-se, não consigo ouvir bulhufas do que está falando —
disse a mulher. Sua mão apareceu por cima da mesa e acenou com
veemência, indicando para que eu fosse até lá.
Ainda procurando pela placa de identificação, eu fui.
— Eu trouxe um terno — disse, tentando ganhar tempo.
— Aham — disse a mulher.
Finalmente, encontrei a placa.
Foi a primeira vez que o nome dele me marcou de alguma forma. A
primeira vez que significou alguma coisa. Tudo o que importava até aquele
momento era levar o terno até o estúdio a tempo. Não ser demitido. Essa
era a parte importante. Então eu sabia o endereço, sabia que era na
Broadway, mas o nome do sujeito não fora nada que tivesse me marcado.
Não tinha nem notado.
— Anda, garoto, não tenho o dia todo.
— Joey Drew — disse. — Estou procurando por um Sr. Joey Drew.
— Quem está procurando? — perguntou Norman, sua voz cheia de
desconfiança.
— O Sr. Schwartz — disparei. Não era exatamente a melhor das
respostas, mas o escuro e a atitude daquele sujeito me deixaram nervoso,
por algum motivo. E, de alguma forma, a luz tremeluzente sobre aquele tal
personagem de desenho sorridente também não ajudava.
— Quem? — perguntou a mulher.
— O alfaiate, que fez o terno dele. Estou com o terno do Sr. Drew.
Sou o entregador. Com... o terno... dele.
— Ele morreu — disse Norman.
Eu me voltei para o sujeito. Estava parado tão longe da luz do
lampião que não era mais que uma silhueta.
— Morreu...? — Meu coração bateu com força no peito. Aquilo não
fazia sentido e me assustou de um jeito estranho, quase incompreensível.
— Nah — respondeu Norman, dando risada. — Nah, morreu não.
— Eu... não entendo — disse, virando de volta para a velha.
Ela apenas deu de ombros e disse:
— Não é todo mundo que entende as piadas do Norman.
— Era uma piada? — Olhei de volta para a silhueta do sujeito.
Norman ainda estava rindo, mas não parecia uma risada feliz, ou pelo
menos certamente não me fez me sentir melhor.
— Vem comigo — disse ele. — A garota dele não vai estar por aqui
essa tarde. Pode levar pra ele pessoalmente.
Olhei para a mulher e ela assentiu, o que imaginei ser a permissão
para seguir o sujeito. No entanto, vou ser sincero, eu não queria. Meio que
decidi naquele momento que eu e o Norman provavelmente nunca íamos
nos entender, sabe?
O sujeito ligou a lanterna e me guiou por um corredor estreito. Seu
feixe de luz era mais direcionado que o brilho do lampião e só o que
conseguia ver de fato era sua silhueta e o outro lado do corredor, onde
havia a grade de um elevador. De vez em quando, no entanto, dava para ter
um rápido vislumbre de outro pôster, com mais personagens de desenho e
coisa do tipo. Eles pareciam felizes, mesmo na escuridão, mas me faziam
sentir da mesma forma que o personagem sorridente da entrada tinha feito.
Esquisito.
— Não dá pra usar o elevador — disse Norman. Seu rosto ainda
estava envolto em sombras e eu assenti porque, claro, não tinha energia e
tal... Então ele passou pela porta mais ao lado. A lanterna iluminou a
palavra “escada”, embora, quer dizer, eu podia ter adivinhado.
Começamos a subir juntos, a luz da lanterna de Norman guiando o
caminho. Vez ou outra, eu olhava para a poça de escuridão que ia ficando
para trás. Quase parecia que tudo atrás de mim estava sendo apagado, como
se eu tivesse que me apressar ou seria apagado também.
Só pra dizer, estava muito quente lá fora e meu cérebro começou a
inventar todo tipo de história.
Dizem que a vida é mais estranha que a ficção. Mas nunca pensei
que alguma coisa pudesse superar as coisas estranhas na minha cabeça.
Eu estava errado.
Norman parou quando chegamos ao terceiro andar. Eu estava
suando, vou te contar. Minha camisa e a camiseta que usava por baixo
estavam completamente encharcadas, meu cabelo colado na cabeça. Uma
gota escorreu pela minha nuca, descendo por baixo da gola da camisa.
— Aqui, garoto — disse Norman, me entregando a lanterna.
— Pra que isso?
— Eu conheço o caminho de volta pra minha sala, você não conhece
nada. Vai andando. Boa sorte.
Peguei a lanterna e, enquanto Norman desaparecia cada vez mais em
meio às sombras, vociferei:
— Andando pra onde?
— Pra cima, garoto, pra cima até chegar no topo. — Ele riu na
escuridão. Cara, eu não gostei daquela risada.
Então lá estava eu, o terno do Sr. Drew numa mão, uma lanterna na
outra e uma gota de suor descendo pelas costas em direção a um lugar não
muito feliz. E quem sabia quantos degraus ainda haviam pela frente?
Apontei a luz para cima para tentar ter uma ideia, mas a velha escada de
madeira parecia continuar para sempre. Direto até o céu. Apontei a luz para
baixo, vi as escadas embaixo de mim. Avançando em meio à escuridão.
Direto até o... bom, você sabe aonde quero chegar.
Então comecei a subir pelas escadas o mais rápido que pude. Era
quente e cansativo e eu não sabia se ia conseguir, e talvez tenha sido por
causa das escadas que tudo isso aconteceu. Porque vou te contar, quando
cheguei no topo e passei pelas portas e o ar parecia ainda mais espesso lá
em cima, o jeito que o calor sobe e tal, eu simplesmente desmoronei. Caí de
cara no chão. Não desmaiei, só caí, com força, fazendo um barulho alto à
beça, e acho que o Sr. Drew ouviu, porque ele saiu de seu escritório.
— Ei, que confusão é essa? — Mesmo no meu estado atordoado, sua
voz me impressionou. Era tão segura de si, amigável também. Não sei dizer
exatamente o que faz uma voz soar amigável, mas acho que não sou o
único por aí que a descreveria assim. Acho que era isso o que fazia as
pessoas gostarem dele.
Confiarem nele.
— Sinto muito — disse, no chão. — Tenho uma entrega para o Sr.
Joey Drew.
— Eu sou o Sr. Joey Drew — disse ele, e uma mão se materializou
diante de mim. Era para eu segurá-la. Assim o fiz. Ele me ajudou a me
levantar. — Tudo bem?
Assenti.
— Bom. — Ele não soltou minha mão imediatamente, olhou para ela
por um momento, quase como se a estivesse examinando. Não sabia ao
certo o que estava fazendo, mas me pareceu um pouco estranho. Por fim, a
soltou e disse: — Venha ao meu escritório, garoto.
Havia janelas lá em cima, então dava para enxergar sem a lanterna.
— Sente-se, beba isso. — O Sr. Drew me passou um copo de água
morna enquanto me sentava em frente a ele e sua grande mesa de madeira.
Bebi e era como se tivesse vindo de uma fonte fresca nas montanhas. —
Então, — perguntou, recostando-se em sua cadeira, — quem é você e o que
está fazendo aqui?
Tomei outro grande gole de água e então respondi suas perguntas:
— Sou um entregador do Sr. Schwartz e trouxe o seu terno.
— Ah! — disse o Sr. Drew, batendo sua mão com força sobre a
mesa, o que me fez dar um pulo. Não sabia na época o quanto ele fazia
isso, embora, pra ser sincero, nunca tenha me acostumado. — É o terno!
Fantástico! Passa pra cá.
Assim o fiz e o Sr. Drew desabotoou a bolsa e assentiu. Ele tinha
esse jeitão meio exagerado, como se estivesse atuando num palco e todos
precisassem ver mesmo suas menores ações. Quando aprovava alguma
coisa, como era o caso do terno, era a melhor sensação do mundo.
— Formidável, simplesmente formidável. Olhe para isso, uma obra
digna de um artesão bem aqui.
Talvez porque estava cansado e com calor, não sei, mas eu disse:
— Na verdade, é o trabalho da minha mãe.
O Sr. Drew olhou para mim e senti o sangue sendo drenado do meu
rosto. O que eu tinha dito? Me xinguei internamente.
— Bom. Ela tem talento. — Ele pôs o terno na mesa e se inclinou na
minha direção, me olhando de perto, como se estivesse tentando ver através
dos meus olhos, no meu cérebro ou sei lá. — Você tem talento, garoto?
— O quê?
— Seus dedos, é um escritor? — perguntou.
Olhei para os meus dedos. Estavam manchados de tinta. Em especial
o polegar e o indicador. Estava tão acostumado com eles assim que nem me
lembrei que não era normal.
— Eu desenho às vezes — disse.
— Você desenha às vezes. — Ele sorriu quando disse isso. — Eu
também desenho às vezes.
Foi quando eu finalmente dei uma olhada em seu escritório. Estava
me sentindo um pouco melhor agora e consegui assimilar tudo ao redor. As
prateleiras com livros e papéis. Os tinteiros por todo lado. Uma mesa de
desenho mais ao canto. E mais pôsteres. Mas não só pôsteres: rascunhos,
desenhos inacabados com palavras ilegíveis junto a eles, setas, ideias
cruzadas — era quase como um papel de parede, de tanta coisa por cima
uma da outra.
E a grande mesa que ocupava quase toda a parede dos fundos.
Coberta com mais papeis. E livros. E um troféu de vidro alto como
premiação de alguma coisa. E um desenho emoldurado de um punhado de
personagens assinado com o nome Henry Stein.
— Uau — disse. Não consegui me segurar.
— Tenho sensações a respeito das pessoas, garoto. Sensações... Às
vezes, simplesmente sei. — Ele me entregou um pedaço de papel com um
rascunho do personagem sorridente lá de baixo. — O que você vê?
Olhei mais de perto. O personagem não parecia humano. Seu corpo
era basicamente uma forma oval com pernas e braços delgados saindo dela.
Mas usava botas pretas e luvas brancas. Tinha uma gravata-borboleta e
tudo. Seu rosto era redondo e ele tinha dois grandes olhos negros, mas sem
nariz. E aquele sorriso. Aquele grande sorriso cheio de dentes.
— Vejo um encrenqueiro. Alguém que faz muita travessura e acaba
se metendo em um monte de problemas também. Mas não liga pra isso.
Ergui o olhar para o Sr. Drew. Tinha no rosto um sorriso quase como
o do desenho.
— Sim! — disse, apontando um dedo para mim. — Exato. Tem ideia
de quantas pessoas simplesmente dizem “um desenho”? Mas você entende.
Assenti. Claro, pensei. Eu acho. Dei mais uma olhada. Foi quando
notei que a cabeça não era um círculo completo. A parte de cima meio que
parecia quando se dava uma mordida num biscoito. Mas liso. Sem marcas
de dentes. Espera. Entendi! Sua cabeça tinha chifres, eram chifrezinhos na
parte de cima.
— É um diabo.
Ouvi o Sr. Drew empurrar sua cadeira para trás, arrastando-a pelo
chão de madeira. Ergui o olhar e o observei enquanto dava a volta em sua
mesa e se apoiava nela, ainda sorrindo.
— Garoto, será que você não gostaria de vir trabalhar para mim?
Meio que estou precisando de um entregador, mas só para dentro do prédio.
Um office-boy, entregando coisas pelos departamentos. Seja lá quanto o
Schwartz estiver te pagando, eu dobro. Colocarei você para trabalhar no
Departamento de Artes, meio que como um aprendiz. Darei uma chance
para provar suas habilidades. E pode acabar aprendendo algumas coisinhas
pelo caminho.
A princípio, não consegui processar por completo o que ele estava
dizendo e, quando processei, ainda não acreditei. Lá estava eu, preocupado
que o Sr. Schwartz fosse me demitir e agora estava conseguindo meu
trabalho dos sonhos. Finalmente, consegui abrir um sorriso para o homem e
apertei sua mão.
— Bom — disse ele. — Excelente. Bom, eu sou Joey Drew e este é o
meu estúdio. Pode me chamar de Sr. Drew.
— Certo, Sr. Drew.
— E você é?
— Ah, me chamo Daniel, senhor, mas todo mundo me chama de
Buddy, ou Bud, tanto faz. Eu não ligo.
— É um prazer conhecê-lo, Buddy. — Ele ergueu a mão e pegou o
desenho do personagem que estava comigo. Ele o virou para que ficasse de
frente para mim. Lado a lado, eles refletiram a imagem um do outro com
seus grandes sorrisos. — E esse, — disse, batendo com o dedo no desenho,
— esse é o Bendy.
CAPÍTULO DOIS

— Esse é o Bendy.
Naquele momento, ser apresentado a um desenho bidimensional
tinha sido meio, bom, fofo, eu acho. Embora “fofo” não fosse exatamente
uma palavra que eu usasse muito no dia-a-dia. Mas sim, claro, fofo. É um
prazer conhecê-lo, personagem fictício. Mas agora, deixa eu tentar explicar
o que eu entendo a respeito daquele momento... O que eu sei agora
comparado com o que sabia na época...
Eu não sabia, por exemplo, que quando o quando o Sr. Drew sorria,
você precisava olhar de perto para seus olhos, procurar por uma pequena
ruga mais ao canto. Todo artista conhecia aquela ruga, ela contribui para
um sorriso de aparência mais autêntica. Mas eu ainda não era um artista.
Não na época. Não sabia o que havia de errado ali.
Também não sabia que uma apresentação podia ter tanto significado
— que numa festa, a forma como alguém apertava sua mão ou dizia seu
nome ou até a forma como o Sr. Drew me apresentava às pessoas — não
sabia na época que era tudo uma espécie de código. Algo para decifrar.
Queria saber já naquele momento que o Sr. Drew estava esperando que eu
me desse conta disso. Que algo estalasse lá dentro e tudo fizesse sentido.
E ele me observou cuidadosamente.
— Olá, Bendy — disse, entrando no jogo. O Sr. Drew deu risada e
guardou o desenho.
— Então você não o conhece mesmo, não é? — perguntou.
Sacudi a cabeça, indicando que não. Porque não conhecia.
— É uma pena — disse o Sr. Drew, mais para si mesmo que para
mim. Isso eu percebi já na hora, então não disse nada.
O fato é que o Sr. Drew acreditava que eu devia conhecer o Bendy. E
aposto que um monte de gente se perguntaria a mesma coisa: Por que não
conhecia? Afinal, ele aparecia naqueles curtas que eram exibidos antes dos
filmes no cinema e lá estava ele, estampado em latas de sopa. Pelo amor de
Deus, o diabinho vendia até títulos de crédito para operações militares na
guerra. Eu sei, eu sei.
E não é como se eu nunca o tivesse visto. Como escrevi antes, eu
cheguei a ter a impressão de que o reconhecia. Então não era isso. É que,
quando você mora no Lower East Side, cresce lá, vai à escola e aí
abandona os estudos pra fazer dinheiro... quando a sua experiência com
filmes é Don Miller segurando a porta dos fundos do cinema pra você...
você acaba não assistindo tantos desenhos quanto uma criança normal. Se
Bendy ainda aparecesse nas tirinhas de jornais na época que comecei a
desenhar, teria sido diferente. Aquele era todo o meu mundo.
Não tinha sido culpa de ninguém. A culpa era de ser pobre. De tentar
ajudar a minha mãe e trabalhar doze horas por dia. E sejamos honestos
aqui, aqueles desenhos já não eram exatamente mais tão populares quanto
costumavam ser. Eu mal tinha chegado ao mundo quando os desenhos do
Bendy faziam sucesso. Então o diabinho já não tinha mais tanto apelo. Não
representava nada. Não significava nada.
Mas significava tudo para o Sr. Drew.
— Isso é o que quero dizer, exatamente o que quero dizer — disse
ele, levantando-se e começando a andar pela sala. Ainda não estava falando
comigo, mas estava falando mais alto e eu não podia simplesmente ignorar.
— Desculpe-me, senhor, mas o que quer dizer com relação ao quê?
— perguntei.
Ele olhou para mim, mas continuou andando.
— A que ponto esse estúdio está chegando? A que ponto chegamos
para uma criança da sua idade não conhecer o Bendy? É isso o que quero
dizer, é por isso.
Suas palavras ainda não estavam fazendo muito sentido. Era meio
louco que um punhado de frases coerentes ainda pudessem soar como uma
completa incoerência.
Gostou dessa, Dot? Sei que gosta desse tipo de coisa. Esse jogo de
palavras engraçadinho.
Espero que esteja te deixando orgulhosa.
Espero que leia isso.
Espero que esteja viva.
Onde eu estava?
Certo.
— Ah, sim — disse. Não sabia o que mais dizer àquele ponto.
Houve um segundo de silêncio. Ele parou de andar. Eu parei de falar.
E então ele bateu uma mão na outra com força. De repente. O barulho me
fez pular na cadeira. Foi como um tiro; eu quase me abaixei.
Isso sempre ficou comigo: De todas as memórias que começam a se
misturar aqui, nesse cérebro, nessa cabeça, nesse... isso por algum motivo
se destaca. No momento em que bateu as mãos, as luzes voltaram. Foi
como se estivessem esperando por ele, como se estivesse no controle delas.
Não estava. Mas eu fiz essa conexão na época. De alguma forma, fez
sentido para mim que talvez, só talvez, ele tivesse o poder de fazer aquilo.
Não tinha. E não tem. Não deixe ninguém te fazer pensar que tem.
O Sr. Drew notou a luz e riu com um “Ha!” que foi exatamente do
jeito que se escreve. Bem assim: “Ha!”. Ele se voltou para mim, sorrindo
outra vez.
— Venha, vou te dar um tour, garoto.
Eu assenti e todos os pensamentos estranhos que tivera naquele curto
momento desapareceram. Agora estava empolgado. Ia fazer um tour por
um estúdio que fazia desenhos animados. Ia conhecer outros artistas. Não
era nada como imaginei que seria o meu dia quando acordei pela manhã.
— Legal! — Me levantei num instante e segui o Sr. Drew, deixando
seu escritório e adentrando o saguão agora extremamente bem-iluminado.
Havia uma mulher sentada atrás da mesa junto à porta. Tinha uma
aparência compacta, com cabelos excepcionalmente negros que formavam
cachos perfeitos.
— Vamos dar um tour, Srta. Rodriguez — anunciou o Sr. Drew
enquanto passava por ela.
— O Tom está aqui — respondeu ela, sem erguer o olhar de sua
máquina de escrever.
E, de fato, havia um homem alto e encorpado sentado em uma das
cadeiras perto do elevador. Estava com uma perna cruzada impecavelmente
sobre a outra, segurando seu chapéu no colo. Junto a ele, havia o que
parecia uma caixa de ferramentas amarela com a palavra “Gent” escrita.
Ergui o olhar para o Sr. Drew e vi seu sorriso oscilar, semelhante a
como fazem as luzes antes de se apagarem. Mas então ele cresceu ainda
mais quando o Sr. Drew apontou para o homem e disse:
— Tommy Connor! — Não era uma pergunta.
O homem se levantou, pegando um longo e estreito tubo de papelão
que estava a seu lado na cadeira.
O Sr. Drew notou e apontou para o tubo, mas não disse nada. Então,
deu um sorriso ainda maior.
— Sim, senhor — disse Tom, mesmo sem haver uma pergunta a
responder. — É sim.
Era o quê?
— Sinto muito por isso, Buddy, mas preciso participar dessa reunião.
Grandes planos, garoto, grandes planos — disse o Sr. Drew. — Volte logo
cedo e vamos acomodá-lo por aqui. — Ele não olhou para mim, mas me
deu uma batida firme nas costas enquanto estendia o outro braço em
direção ao escritório. — Por aqui, Tommy.
— Sr. Connor — respondeu Tom, enquanto ia até lá.
Frente a isso, o Sr. Drew apenas deu risada, embora eu não tenha
entendido a piada, e os dois entraram de volta em seu escritório, fechando a
porta atrás deles.
E então, eu estava sozinho.
Fui até a secretária. Ela não olhou para mim. Àquela altura, não
esperava que o fizesse. Também não sabia o que dizer.
— Para que ele te contratou? — perguntou a Srta. Rodriguez.
— Office-boy. Talvez... talvez um artista. Ele disse que vou ficar no
Departamento de Artes. — Já não tinha mais tanta certeza de qual seria
exatamente o meu trabalho.
A Srta. Rodriguez parou de datilografar e recostou-se na cadeira,
voltando o olhar para a mesa. Abriu uma gaveta e pegou um envelope
grosso, cheio de papéis. Finalmente, olhou para mim enquanto me
entregava um deles.
— Preencha isso, traga com você amanhã. Chegue às nove da manhã
e fale com a Srta. Miller, lá embaixo na entrada.
Peguei o papel e assenti.
— Obrigado.
A Srta. Rodriguez olhou para mim por mais um momento. Como se
talvez quisesse dizer alguma coisa. Mas não disse. Apenas voltou a
datilografar.

Não fui para casa imediatamente. Primeiro precisava ver o Sr.


Schwartz, avisar que a entrega fora feita e que o Sr. Drew estava satisfeito
com o terno.
E então tive que me demitir.
O que, bom, não acabou muito bem, mas eu não estava nem aí para o
quão vermelho ficasse o rosto do Sr. Schwartz ou para quanto ele apontasse
o dedo na minha cara. Na manhã seguinte, eu ia trabalhar no Joey Drew
Studios e ninguém ia me impedir. A única coisa que me assustava era que o
Sr. Schwartz podia acabar descontando na mãe, acabar demitindo ela. Mas
não demitiu. A mãe era muito boa. Às vezes, queria que ela pudesse abrir
uma loja própria.
Bom, talvez agora. Talvez quando começasse a ganhar o suficiente.
Quando fosse um artista pago pelo Joey Drew Studios. O pensamento me
fez sorrir.
Não estava pronto para ir para casa depois disso. Estava praticamente
pulando de empolgação. Dei uma volta pelo bairro. Peguei uma rosquinha
de graça com a Sra. Panek quando ela estava para fechar a mercearia e as
crianças Jankowski tentaram me chamar para jogar bets com elas. Abri um
sorriso e fui em frente até que acabei chegando ao East River quando o céu
já estava ficando roxo escuro.
As luzes estavam acesas no Brooklyn. Pareciam até estrelas ao longo
do rio.
Me sentei num banco. Quase num cocô de passarinho, mas vi no
último segundo e joguei a bunda pro lado. O ar era menos estagnado perto
da água. E estava mais frio agora que o sol estava quase se pondo.
Quase fez com que eu me sentisse mais calmo que antes. Toda a
agitação vibrante do dia começava a me envolver como num cobertor.
Ainda me sentia feliz, mas tudo parecia muito mais real.
Às vezes, coisas assim aconteciam.

Cheguei em casa tarde. Bem tarde. A luz da frente estava acesa, o


que foi legal da parte da mãe, mas eu sabia que precisava apagar
imediatamente depois que entrasse. A conta de luz ficava alta e a mãe
precisava trabalhar mais. Esperava que agora com esse novo trabalho,
talvez a luz não fosse mais um problema tão grande. Talvez agora ela
pudesse sentar para ler mais confortavelmente, sem precisar de uma vela.
Sabia também que eu provavelmente levaria um sermão na manhã
seguinte por ter ficado fora até tão tarde. Ela gostava de saber onde eu
estava. Como se eu fosse uma criança ou algo do tipo. Bom, não era minha
culpa perder a noção do tempo... tinha sido um grande dia.
Abri a porta o mais devagar que pude. A mãe dormia no sofá-cama
que ficava logo ao lado da entrada. Na verdade, era tudo um espaço só, a
cozinha, onde comíamos, onde sentávamos. E a porta se abria bem no meio
de tudo isso. Ela estava enrolada embaixo das cobertas, dormindo
profundamente, e eu tirei os sapatos, carregando-os até o meu quarto.
Meu quarto na verdade nunca fora muito escuro. É engraçado, mas
até aquele dia, quando fiquei parado no meio da entrada completamente
negra do Joey Drew Studios, não fazia ideia de que havia diferentes tipos
de escuridão. Nunca me ocorrera que a luz do poste do lado de fora das
janelas tornava possível para mim encontrar a minha cama, jogar minhas
roupas no canto e me atirar embaixo das cobertas de shorts sem ficar
esbarrando em tudo pela frente.
Nunca me ocorrera que podia estar tão escuro que não seria possível
enxergar sua mão na frente do seu rosto.
Naquela época, eu não conhecia esse tipo de escuridão.
Puxei a coberta e deitei na cama por um momento, tentando me
acalmar. Me levantei e abri uma fresta na janela. A temperatura lá fora não
estava muito diferente, mas tinha algo tranquilizante no zumbido da cidade.
Me deitei e fechei os olhos.
Às vezes, você não sabe que pegou no sono. Foi o que aconteceu
então. Achei que ainda estava acordado, tentando pegar no sono, quando
percebi que não estava mais deitado na cama. Ainda estava tudo negro
como quando se fecha os olhos, mas eu estava de pé e meus olhos estavam
abertos. Estava tentando ver alguma coisa, mas não conseguia. Então
avancei em meio à escuridão.
Havia alguma coisa mais à frente.
Conseguia ouvir.
Alguma coisa respirando, talvez?
Mas, por algum motivo, não sabia dizer se estava viva. Acho que eu
ainda pensava que estava acordado nesse ponto porque pensei comigo
mesmo: “Você não tem tempo para isso, precisa dormir”. Mas continuei
indo em frente.
Finalmente, cheguei a uma porta. Ela meio que se materializou
diante de mim. Mas não fiquei surpreso. Havia uma batida vindo do outro
lado. Isso me fez recuar um passo. Senti que não devia atender.
Toc, toc.
Recuei outro passo. De alguma forma, a porta continuava bem na
minha frente.
Houve um longo silêncio.
Uma mão gigante irrompeu em meio à madeira, criando uma chuva
de farpas. Ouvi um urro e me virei aos tropeços, mas não consegui fugir.
Ela me perseguia, tateando de um lado para o outro, tentando me encontrar.
Acordei de súbito, o rosto plantado no travesseiro. A parte de baixo
da coberta estava encharcada de suor. Meu coração estava na boca.
Foi um sonho, disse a mim mesmo. Um sonho.
Virei de costas para baixo e olhei para o facho de luz do poste que
iluminava o teto. Havia uma rachadura que percorria os cantos do gesso,
infiltração. Um dia, começara assumir uma coloração marrom-escura e a
mancha a fazia parecer o rio Hudson. Escura. Fria. Cheia de todo tipo de
sabe-se lá o quê.
Por que não conseguia parar de sentir que estava sendo observado?
Olhei para a direita.
Uma figura esguia estava parada à minha porta.
Ele reluziu à luz do poste. Um rosto pálido, cadavérico, a pele fina
feito papel esticada por cima do crânio. Olhos esbugalhados e sem vida.
Uma longa camisola branca cobrindo sua estrutura esquelética.
Tudo o que consegui fazer foi olhar. Respirar. Tirar aquele sonho do
meu cérebro. Não é real. Acorde que ele desaparece. Mas ele continuou ali
parado. Não se mexeu.
Ele levantou a mão devagar e apontou para mim. Foi quando não
consegui mais aguentar. Fechei os olhos e gritei. Talvez fosse por covardia,
mas não consegui me mexer. Gritei de novo. Meu corpo todo estava
gritando.
As luzes se acenderam de súbito. A que ficava em cima da minha
cama piscava como de costume, a fiação nas paredes danificada pela
infiltração lá em cima.
— Buddy, você está bem? — A mãe entrou correndo no quarto,
lutando para colocar seu robe roxo desbotado mesmo com a manga direita
presa embaixo da faixa da cintura. Eu normalmente daria risada, mas o
terror ainda estava no controle, especialmente quando, mesmo com as luzes
agora acesas e o sonho acabado, o velho continuava lá. E parecia tão
assustador quanto antes.
Não consegui respondê-la, obviamente. Não encontrei as palavras.
A figura se voltou para a minha mãe. Deu um passo em sua direção.
Isso me ajudou a encontrar minha voz:
— Fique longe dela! — gritei, pulando da cama. Meu pé ficou preso
no buraco nos fundos da coberta de crochê enrolada na beira da cama e eu
caí de cara no chão.
— Meu Deus, o que está havendo? — disse a mãe.
Estava procurando qualquer coisa para me ajudar a me levantar. Me
sentia um tonto. Me apoiei nos antebraços. Uma mão ossuda se estendeu
em minha direção.
— Vem? — disse uma voz grave e baixa com um forte sotaque que
eu conhecia muito bem.
Virei a cabeça e olhei para o homem. Suas feições ainda pareciam
pálidas e desgastadas demais, mas seus olhos eram azuis-claros e tinham
um certo brilho, não eram mais vazios. Estendi a mão e segurei a dele. Era
quente.
Me levantei e olhei para ele por um momento. Tínhamos mais ou
menos a mesma altura. Talvez ele fosse um centímetro mais baixo. Parecia
agora mais frágil que amedrontador.
Olhei para a mãe. Tinha conseguido passar o braço pela manga e
estava me olhando como se eu tivesse ficado louco. Talvez eu tivesse. Mas
por outro lado...
— Quem é o velho? — perguntei, apontando só para ter certeza que
ela sabia do que eu estava falando, já que ela parecia muito confusa e
aquela não me parecia uma situação confusa.
A mãe fechou os olhos por um momento e sorriu. Suspirou enquanto
os abria novamente.
— O velho é o seu zayde.
— Meu o quê?
— Seu avô, Buddy. Meu pai. — As palavras pareceram travar em
sua garganta por um segundo.
Olhei para o velho. Ele não sorriu. Não disse nada. Só ficou ali
parado do mesmo jeito que antes, emoldurado pelo aro da porta.
— O que ele está fazendo aqui?
— Olha, vou levá-lo para cama. Eu volto aqui e a gente conversa —
disse ela. Então murmurou alguma coisa para ele em polonês e ele assentiu.
O pegou pela dobra do braço e o levou para fora do meu quarto.
Me sentei na cama. Foi a primeira vez no dia todo que finalmente me
senti cansado. Não empolgado por conta do Sr. Drew ou assustado por
conta de uma pessoa que era evidentemente o meu avô. Só muito cansado.
A mãe voltou e se sentou ao meu lado. Me deu aquela olhada de
esguelha que era sua especialidade. Queria dizer que me achava engraçado.
Não estava exatamente rindo de mim, mas também não estava não-rindo de
mim.
— Desculpa, eu não sabia. Como podia saber? — perguntei.
— Tudo bem, foi culpa minha. Aconteceu tudo tão rápido. Não sabia
que ele ia vir hoje, também não estava pronta para ele. Pelo menos não o
coloquei na sua cama. Imagine o choque que não teria sido! — disse ela,
numa risada.
— Na minha cama?
— Você tem uma cama grande, Buddy, e vamos ter que fazer isso
funcionar por um tempo. — Suspirei com força, mas não disse nada. Minha
mãe era do tipo de pessoa doce e boa, mas não se deixe enganar: não se
pode discutir com ela. Você nunca vai vencer. — Quando você não voltou
para casa, coloquei ele comigo esta noite. Não queria assustá-lo.
— Acho que isso foi legal da sua parte — disse, sentindo pena de
mim mesmo.
— Não foi? — disse a mãe, com uma piscadela. — E onde você
estava até tão tarde? Não pensa na sua pobre mãe em casa, morrendo de
preocupação?
Não achava que já fosse hora de mudar de assunto. Ainda não tinha
conseguido informações o suficiente. Meu avô do “velho país” estava agora
no meu apartamento em Nova York, e por quê? O porquê ainda não havia
sido abordado. Mas estava tarde. Além disso, a resposta a deixaria feliz.
— Consegui um emprego — disse, tentando não sorrir. Tentando
fazer parecer algo bem casual. Como se não me importasse muito.
— E quanto ao Sr. Schwartz? — perguntou ela, mordendo o lábio.
— Não se preocupe, ele não ficou bravo, seu trabalho ainda é seu.
Mas espero que logo você não precise mais trabalhar para ele também. Esse
emprego é melhor. Vou trabalhar como aprendiz para o Joey Drew Studios.
Quem sabe aonde isso pode me levar?
— Vai ser pago pra isso?
— É claro. O dobro que antes.
A mãe abriu um sorriso então, um pequeno sorriso, talvez não fosse
nem para eu ter visto, mas pude notar que algo nela tinha relaxado e isso
me deixou muito orgulhoso.
— O que é um Joey Drew Studios? — perguntou ela, virando-se para
olhar para mim, apoiando um joelho na coberta.
— É onde fazem desenhos animados. Os do Bendy. Vou ser um
office-boy, mas também um aprendiz de cartunista. Ver como funcionam
as coisas.
Ela me olhou então com uma expressão engraçada. Mas não era
incomum. Sempre me olhava daquele jeito, como se tivesse toda uma
história rolando na cabeça dela, uma que eu nunca ia ouvir. Segredos. Ela
sorriu outra vez.
— Então vai poder desenhar e ser pago por isso. — Não era uma
pergunta.
— Sim.
— E o seu avô chega no mesmo dia que conseguiu esse emprego.
— Pois é — disse.
— Perfeito. — Ela sorriu.
Não entendi a conexão. E é claro que ela não explicou. Também não
perguntei. É engraçado. Começo a perceber como eu não fazia perguntas
naquela época. Não até eu te conhecer, Dot.
— Bem, estou feliz por você, Buddy. — Ela se inclinou e me beijou
na testa. Fez eu me sentir como uma criancinha. — Agora vá dormir um
pouco. Falamos sobre tudo isso amanhã. — Isso me fez me sentir ainda
mais como uma criancinha.
Ela saiu, apagou a luz e eu voltei para baixo das cobertas. Só então
me lembrei do meu sonho. Imaginei o barulho que não devia ter feito para
aquele velho acordar e vir até o quarto. Fiquei pensando o quanto não tinha
me constrangido.
Diante do meu avô sinistro que parecia um fantasma.
Que dia estranho.
E noite.
Se tivesse qualquer tipo de percepção supersticiosa, podia ter visto
isso como um sinal. Alguma coisa começando, alguma coisa errada.
Mas é claro que não vi. Não vi os sinais até que já tivesse passado
por eles, trilhando um caminho escuro e sem saída. Outra metáfora. Essa
até que não ficou ruim. Olha só, Dot, estou ficando melhor nisso.
CAPÍTULO TRÊS

Estou com fome. Ou talvez ele esteja com fome. Não sei dizer.
Simplesmente sinto a fome.
Essa não é a questão. Só deixa escrever mais difícil, pensar mais
difícil. Estou tendo problemas para permanecer na minha cabeça. Não sei
bem se isso faz sentido. Vou ser honesto, aquela última parte sobre a minha
mãe e o meu avô no meu quarto, parecia até que eu tava contando a história
de outra pessoa por um momento.
Aquela era a minha história?
Lembre-se: os cinco sentidos. O cheiro do apartamento, velho e
mofado, mas também de carne, batatas e charutos de repolho. O teto
manchado de água em cima da cama. Os sons lá fora, na rua, carros,
pessoas gritando, mesmo às duas da manhã. O cobertor que coçava. Me
lembro dele.
Te conheci na manhã seguinte, Dot.
Acho que se pode dizer que eu era acostumado a conhecer outras
pessoas, ainda mais como entregador. Pessoas novas não me incomodavam
muito. Gostava de olhar para elas. Isso soa estranho. O que quero dizer é
que você conhece uma pessoa nova e vê coisas a respeito dela. Como
talvez os sapatos daquele sujeito tivessem acabado de ser engraxados, ou
como aquele outro tinha um círculo de suor marcando a gola da camisa. Os
bobes do cabelo daquela dona são manchados de preto, o batom daquela
outra traçava a parte externa de seus lábios. Todo mundo é único.
Na verdade, eu vi a Dot pela primeira vez de longe. Não sabia quem
era, na época. Só sabia que aquele ser humano distante era uma garota
baixa, meio gordinha, com ombros largos e um caminhar decidido. Devia
ter provavelmente a minha idade, com cabelos loiros-escuros molhados,
cujos cachos já estavam desmanchando logo pela manhã. Seus óculos olho
de gato pareciam um pouco grandes demais para seu rosto.
Após notar que ela também estava indo para a entrada principal do
Joey Drew Studios, dei uma corridinha para alcançá-la e ela segurou a
porta para mim. Me deu uma olhada completa, da cabeça aos pés. Foi
rápido, mas quando acabou, já tinha uma opinião formada sobre mim. Sei
disso porque conversamos a respeito depois:
— Tinha te achado alto — disse ela.
— Bom, eu sou alto — respondi.
— Era tipo um filhote de cavalo, só pernas. Parecia um pouco
desengonçado. Eu gostei disso.
Ainda não entendo porque ela teria gostado disso. Mas sei que a Dot
sempre suspeitou de quem se gabava: “Como dá pra saber se alguém está
sendo verdadeiro ou falso quando agem daquele jeito todo confiante?”.
Após me medir, ela continuou com seus passos determinados e
assentiu com firmeza para a mulher atrás da mesa antes de atravessar o
salão e desaparecer numa curva.
Eu, por outro lado, fui até a mulher, que me olhou mais uma vez com
aquela expressão de desconfiança. Ou talvez não. Talvez fosse só como era
o seu rosto. Sabe, nunca perguntei a ela. Não sei a resposta pra essa.
Nunca perguntei muita coisa pros outros.
— Oi, sou Daniel Lewek. Uh... Buddy — disse.
Ela continuou me encarando.
— Eu, uh, sou o novo office-boy e aprendiz de artes.
Ela só me encarou.
Alguém me tocou no braço. Me virei e estava cara a cara com uma
mulher, provavelmente por volta dos cinquenta, com cabelos e franja
castanhos, um tanto cheios e cacheados, destacando seu rosto anguloso.
Tinha uma profunda linha de expressão entre as sobrancelhas que a fazia
parecer preocupada com alguma coisa. Mas eu eventualmente descobriria
que era só a aparência normal dela.
— Você é o Daniel? — perguntou.
— Sou.
Ela limpou a mão no avental que estava usando e a ergueu para
apertar a minha. Notei que estava manchada de tinta. Como os meus dedos.
— Sou a Sra. Lambert. Supervisora do Departamento de Artes.
Venha comigo.
Levei minha mão à dela, apertamos, e então eu a estava seguindo
pelo mesmo corredor que no dia anterior estivera escuro e assustador, mas
que agora estava bem-iluminado com as lâmpadas zunindo mais acima. Ela
puxou a grade do elevador e nós entramos. Fechando-a atrás de nós, ela
apertou um botão e fomos alavancados para cima, tudo sem dizer nada. O
que não me incomodava. Não era muito de falar. Nunca fui. Nunca serei.
Definitivamente nunca serei.
É meio engraçado.
“Humor negro”, é como a Dot chama.
Enfim.
Também estava superinteressado no fato de que uma mulher era a
supervisora do Departamento de Artes, estava pensando um pouco sobre
isso. Acho que nunca tinha visto uma mulher na supervisão de nada antes.
Não que não houvesse várias mulheres trabalhando nos últimos anos. Sabia
que havia, com a falta de homens e vários deles tendo sido mandados pra
guerra e tal. Mas uma mulher na chefia? Não, nunca tinha visto.
Me perguntei por quê.
O elevador estremeceu e parou de súbito, ao que rangi os dentes de
leve. A Sra. Lambert notou e riu.
— Sim, ele faz isso. — Ela puxou a grade novamente, abrindo-a num
ruído estridente, e descemos no andar do Departamento de Artes. Havia
artistas sentados por toda a sala, todos com seus próprios cantos e recantos,
curvados em suas mesas e trabalhando duro. Cada um dos espaços era
decorado com desenhos e fotografias. O lugar tinha uma espécie de caos
organizado que me agradava.
Era também muito quieto.
Já tinha feito entregas em escritórios o bastante pra conhecer bem o
zumbido das conversas e os estalidos das máquinas de escrever. Era como
os sons da cidade, um barulho de fundo suave, quase reconfortante.
Mas ali, o único som no qual conseguia focar era o de lápis riscando
papel. Me fazia sentir que qualquer som que eu fizesse poderia distraí-los.
Como se mesmo a minha respiração fosse um pouco alta demais. Como se
talvez eu não devesse respirar.
A Sra. Lambert não sentia o mesmo:
— Ei, gostaria da atenção de todos! — exclamou bem alto.
Cabeças se ergueram, olhos piscando em nossa direção. Um sujeito
sentado à janela tirou os óculos, limpou as lentes e os colocou novamente.
— Esse é Daniel Lewek — disse ela.
— Buddy — eu a corrigi. Ela olhou para mim. — Todos me chamam
de Buddy.
— Certo. Esse é o Buddy, nosso novo office-boy.
— O Joey não tinha congelado novas contratações? — perguntou o
sujeito na janela.
A Sra. Lambert deu de ombros.
— Foi ele que contratou o Buddy.
O homem sacudiu a cabeça e se virou de volta para sua mesa.
— Acho que pode ficar com aquela mesa ali nos fundos. Desculpa
ser um pouco escuro, mas... bom, é tudo o que temos. — Ela me viu
olhando para ela e sua expressão se suavizou um pouco. Não muito, não o
suficiente para apagar a ruga entre as sobrancelhas, mas um pouco. — Está
tudo bem, Buddy, vamos dar um jeito em tudo. Mas preciso voltar ao
trabalho agora.
E com isso, eu atravessei a sala. Tomei nota do lugar enquanto o
fazia. Não era muito grande, mas, agora que parava para olhar com mais
atenção, havia apenas quatro pessoas nele. As paredes eram placas de
madeira sem pintura, mas estavam quase completamente cobertas de
desenhos e fotos de pessoas, animais e lugares, talvez como referência para
poses e outras coisas que pudessem precisar ao fazer os desenhos, imaginei.
Me sentei na minha mesa. Sim, meu canto era escuro, mas não
parecia triste. Quase parecia aconchegante. Sobre a mesa, havia desenhos
amarelados do Bendy. Havia outros personagens também. Uma garota com
um vestido sem alças preto e uma auréola na cabeça. E o que parecia um
lobo alto com as orelhas esticadas em meio ao ar e vestindo um macacão.
— Essa é a Alice Angel, esse é o Lobo Boris e aquele obviamente é
o Bendy — disse uma voz simpática atrás de mim. Me virei e vi um dos
cartunistas olhando para mim. — E eu sou o Jacob. Prazer em conhecê-lo,
filho. — Peguei sua mão e a apertei. Vestia um terno cinza elegante e usava
uma gravata marrom com um lenço de bolso combinando. Estiloso.
— Obrigado. Acho que é melhor eu aprender essas coisas — disse.
Jacob riu.
— Sim. Mas não pergunte a ninguém. Especialmente ao Sr. Drew.
Se tiver perguntas, faça aqui no Departamento de Artes. Alguns dos mais
veteranos podem ser sensíveis. Não entendem que nós também não
sabíamos quem eram esses personagens antes de chegarmos aqui.
— Certo — disse.
— A fama é passageira — disse Jacob, empurrando o chapéu um
pouco para trás. Ele me abriu um sorriso. E então disse: — Pode levar essa
pasta ao pessoal de Redação? Preciso que eles deem visto na arte antes de
prosseguir.
— Ah, claro — disse.
Peguei a pasta e ele voltou à sua mesa. Me virei para olhar para a
minha, pensando no que ele dissera. A madeira estava desgastada devido
aos anos de uso, escurecida em algumas partes com manchas de tinta
derramada. Podia ver que alguém também esculpira a própria madeira: um
par de olhos engraçados. A auréola de Alice. E mais embaixo, na beira da
mesa, um nome. Mas não parecia igual aos desenhos. O nome parecia ter
sido talhado de novo e de novo, várias vezes. Mais profundamente. Era
evidentemente o antigo dono da mesa.
— Vou tentar te deixar orgulhoso, Henry — disse para a mesa, a voz
baixa. Então ergui o olhar para me certificar de que ninguém tinha ouvido.
Me levantei e fui até a Sra. Lambert. Ela não tinha uma secretária e
eu não sabia bem a quem mais recorrer. Ela olhou para mim com profunda
desconfiança.
— Uh, preciso levar isso à equipe de Redação — disse.
Ela me encarou com um olhar severo, dando a impressão de que não
fazia ideia de porque eu a estava dizendo aquilo.
— Uh... onde fica? — perguntei.
— Ah — disse ela. — Um andar abaixo. — Então voltou a seu
storyboard e eu me senti basicamente invisível outra vez.
Tá, é só fazer isso, disse a mim mesmo. Impressione-os e faça o seu
trabalho que eles eventualmente vão te deixar desenhar. E pelo menos você
não está lá fora no calor.
Apesar que, na verdade, lá dentro não estava tão mais fresco. Os
ventiladores no teto só pareciam circular o ar quente.
Desci um andar e me encontrei numa sala praticamente igual à do
Departamento de Artes. Mais cabeças recurvadas sobre mesas. Dessa vez,
havia uma secretária jovem e bonita junto à entrada e ela ergueu o olhar
para mim, esperando que eu me pronunciasse.
— Oi, eu sou o Buddy, sou novo aqui. Me pediram para entregar
essa pasta? — formulei a frase como uma pergunta, mesmo sabendo que
era exatamente o que precisava fazer.
A secretária disse:
— Leve à Dot.
Dei uma olhada na sala.
— Quem é Dot? — perguntei.
Agora ela olhou para mim como se eu fosse um idiota.
— A única escritora mulher na sala? — Ela também formulou a frase
como uma pergunta, mas definitivamente não era uma. E definitivamente
me fez me sentir um imbecil.
Assenti depressa e comecei a procurar por uma mulher. Finalmente,
eu a vi, sentada um pouco distante do resto da equipe, perto de uma janela
com uma pequena estante de livros embaixo. Sua cabeça estava recurvada
tão perto do papel que eu me diverti imaginando que ela estava escrevendo
com o nariz.
— Com licença — disse.
Ela me ergueu um olhar expressivo, mas não surpreso. Não parecia
assustada. Só... intensa.
É claro. Agora eu me lembrava. A garota lá de baixo. A que tinha
segurado a porta para mim. Acho que ela teve um momento semelhante de
percepção.
— Sim? — disse ela.
— Preciso entregar isso para você. — Dei-lhe a pasta, que ela pegou
com um movimento rápido e eficiente.
Olhou para mim outra vez.
— Sou novo — decidi explicar. — O Sr. Drew me contratou ontem.
Sou do Departamento de Artes. — Por que eu ainda estava falando? Não
costumava falar tanto assim, então por que não conseguia parar?
— Certo — disse ela. E então voltou ao que estava escrevendo e eu
não tive escolha senão partir.
É estranho pensar que aqueles dois breves encontros te fizeram ter
tanta certeza sobre mim. Te fizeram gostar de mim. Nunca vou entender
por quê. Mas sempre serei grato por você ter tomado essa decisão.
Tive sorte de ter conhecido você.
O resto da manhã foi basicamente um combo onde fiquei sentado na
minha mesa por tempo até demais e então fui fazer algumas entregas.
Ninguém ainda parecia saber de fato que eu existia, mas a Sra. Lambert me
assegurou que quando o resto do estúdio descobria que tinha um novo
office-boy no pedaço, a demanda seria alta.
— Aproveite a paz e tranquilidade enquanto pode — disse ela com
um sorriso torto. — E leve isso à equipe de Música.
Assim o fiz. Desci vários andares até chegar ao do Departamento de
Música. Foi a primeira vez que tive noção do labirinto que aquele prédio
era. Diferente do meu departamento, que era só uma única sala grande, o
elevador agora se abrira num corredor estreito. Ele se estendia para ambos
os lados e não havia placas ou quaisquer outros indicadores que
apontassem aonde eu devia ir. Nem mesmo pessoas. O que destoava em
comparação com todas as outras áreas agitadas do estúdio. Era quase
estranhamente sinistro. Minha imaginação imediatamente se perguntou o
que teria acontecido a todas as pessoas. Imaginei uma mão gigante
brotando do chão e pegando todo mundo. Era engraçado, mas, por algum
motivo, ainda me sentia um pouco inquieto.
Deixei tudo isso de lado. Porque estava sendo bobo. Era só um
corredor vazio.
Escolhi ir para a direita. Fui caminhando, ouvindo o som dos meus
próprios passos, até que o corredor se abriu num pequeno espaço que dava
em quatro salas. Três das portas estavam trancadas; a quarta levava a um
banheiro que não parecia ser usado há muito tempo. Fechei a porta. A
sensação de inquietação continuava lá. Portas trancadas queriam dizer que
alguém queria manter as pessoas fora. Mas um banheiro sem uso queria
dizer que ninguém ia lá há algum tempo. Qual seria o caso?
Havia outro pequeno corredor escuro que se dividia do que eu estava,
mas sentia que estava indo para o lado errado, entrando cada vez mais
fundo no labirinto, então dei meia-volta e fui pelo outro caminho. Só tinha
duas escolhas, afinal. Passei pelo elevador e dessa vez virei à esquerda. Me
sentia mais confiante. Aquele corredor tinha pôsteres pendurados nas
paredes e, à medida que avançava, encontrei partituras e até alguns discos
emoldurados, suspensos como obras de arte.
E então, de repente, estava de volta a um corredor de aparência mais
simples. Girei sobre os calcanhares, mas não consegui entender como
aquilo acontecera. Devia ter errado uma curva em algum lugar. Estava
começando a me sentir um pouco em pânico.
Era ridículo. Aqueles corredores não podiam continuar para sempre.
Aquele prédio ficava espremido entre outros dois prédios. Aquela era Nova
York, uma cidade numa ilha, sempre crescendo para cima porque não havia
mais para onde crescer para os lados.
Só dê a volta e você vai acabar entendendo. Em algum momento.
Mas.
Não consegui. Na verdade, agora também já não conseguia mais
encontrar o caminho de volta até o elevador. Estava começando a sentir
aquela sensação tão familiar que tinha quando fazia entregas para o Sr.
Schwartz. Não queria ser conhecido como o cara que atrasava, ou que não
era confiável. Não ali, não no estúdio. E definitivamente não no meu
primeiro dia.
Fui parar num corredor que era mais escuro que os outros. Eu agora
estava ficando genuinamente assustado. Estava perdido num labirinto e,
àquele ponto, minha imaginação começava a se apossar de mim. Toda vez
que fazia uma curva, meu estômago se comprimia só um pouco com a ideia
do que eu poderia encontrar.
Ou quem.
Dei a volta em mais uma curva e então ouvi alguma coisa. Me
esforcei para escutar melhor.
Música.
Estava ouvindo música. Era baixa e esparsa. Como um grito lento e
agudo. Ficou mais alta, mas então voltou a abaixar. E mais uma vez,
aumentou e abaixou. Segui o som e fiz uma curva. A luz era mais brilhante
ali e acabei encontrando uma mesa vazia junto à uma porta. Em cima, havia
uma placa: Departamento de Música. E a música vinha de detrás da porta.
Alguém estava tocando. Esse alguém ia me ajudar a sair daquele labirinto.
Abri a porta cuidadosamente e espiei lá dentro. Era uma sala grande,
com um teto com dois andares de altura e um palco mais adiante. Na
parede dos fundos, um quadrado de luz branca e brilhante bruxuleava,
como se um rolo de filme tivesse acabado de terminar uma exibição. Me
virei para olhar para a parede oposta. Havia uma cabine de projeção mais
acima, mas a luz era tão ofuscante que não consegui identificar se aquele
tal Norman que tinha conhecido no dia anterior estava lá, ele ou qualquer
outra pessoa, na verdade. Então dei a volta e avancei pela sala. Cadeiras e
suportes de partituras estavam espalhadas pelo palco. E havia uma série de
instrumentos acomodados nos assentos, seus estojos abertos no chão junto
a eles. Parecia que todo mundo tinha tirado uma pausa pro almoço. Exceto
pela moça com o violino.
Estava sentada no meio do palco, cercada por uma floresta de
suportes de partituras, seu cabelo comprido, liso e sem corte. Sua partitura
lhe escondia o rosto e boa parte do instrumento, então só conseguia ver sua
mão e dedos, quase como garras, segurando as cordas no braço do violino.
A música que produzia era lenta e penosa, dificilmente se podia
considerar uma melodia. Ela atravessou a minha cabeça e me fez me sentir
um pouco zonzo.
— Com licença? — disse, a voz baixa, sem querer interrompê-la,
mas sem saber o que mais fazer.
Ela ergueu a cabeça depressa e a música parou instantaneamente.
Olhou para mim por detrás dos olhos de pálpebras extremamente carnudas.
— Oi, desculpa interromper, mas estou perdido...
Houve um súbito estrondo do lado de fora da sala. Então, um grito
desesperado. A mulher se levantou e fitou a porta e eu me virei para olhar,
meu coração palpitando rápido.
— O que houve?
A mulher ficou olhando, completamente imóvel. Então, num
sussurro, disse:
— Ele está vindo.
Me virei de volta para ela.
— Quem?
De repente, a sala ficou escura. Olhei em volta e notei que o projetor
fora desligado. Apenas uma luz mais ao canto iluminava a sala agora.
Podia sentir meu peito se contrair de medo, mas era só uma mudança na
iluminação. Só isso. Só isso.
Toc.
Me virei devagar em direção à porta. Me lembrei então do meu
pesadelo. A escuridão à minha volta. A mão passando pela porta. Olhei
para a violinista. Estava completamente parada em seu longo vestido preto.
Seu cabelo se mesclava a ele, fazendo-a parecer uma grande sombra. Ela
não deu meia-volta, não fugiu. Ficou apenas olhando para a porta.
Toc, toc.
Parecia o som de alguém mancando, pisando com força num pé só.
Logo do lado de fora. Aproximando-se.
Não. Não ia deixar que o meu cérebro me pregasse peças.
Toc, toc.
Não era um pesadelo.
Segui até a porta devagar, respirei fundo e então a abri com tudo.
Não havia ninguém lá.
— Ele está vindo.
Olhei para a violinista. Ela apontava para a porta com seu arco.
— Quem? — perguntei outra vez.
Ela não disse nada, ficou só olhando. Estava começando a me sentir
mais frustrado que assustado e então me virei em meio a um longo suspiro,
apenas para me deparar com o rosto de uma criatura coberta numa gosma
negra que pingava bem na minha frente.
Recuei aos tropeços e a pasta na minha mão caiu no chão, esquecida,
enquanto o monstro adentrava a sala usando o batente da porta para se
atirar em minha direção. Seu corpo inteiro estava coberto com uma coisa
escura que ficava escorrendo. Ele apalpou o próprio rosto e então disparou
uma lamúria de pura agonia enquanto se lançava sobre mim. Não consegui
fugir. Tropecei nos próprios pés enquanto a coisa caía em mim, cobrindo
meu corpo com a mesma substância grudenta e molhada. Empurrei o mais
forte que pude enquanto ela arranhava seu próprio rosto, nunca cessando
aquele urro horripilante que vinha do fundo de sua garganta. Toda vez que
abria a boca, a gosma negra escorria de sua garganta, fazendo-a gorgolejar
e cuspir.
Finalmente, ela rolou para o lado, saindo de cima de mim, e eu me
levantei aos tropeços. Olhei para mim mesmo.
Minhas mãos, calças, camisa — estava tudo coberto. Fitei minhas
mãos de perto, esfregando a gosma negra.
— Tinta? — disse, ofegante.
Me virei para a coisa no chão e percebi que não era um monstro. Era
um homem. Coberto de tinta. Um homem coberto de tinta, se debatendo no
chão, agoniado e furioso.
Num instante, já estava abaixado a seu lado.
— Senhor, senhor, consegue me ouvir?
O homem subitamente agarrou a gola da minha camisa e me puxou
para perto.
— Meus olhos!
Assenti e tirei suas mãos de cima de mim enquanto me levantava.
Vasculhei a sala com o olhar desesperadamente e vi um pedaço de tecido
enfiado num estojo de violoncelo aberto. Atrás dele, na fileira dos fundos,
tinha um copo de água pela metade. Passei correndo pela violinista, ainda
parada lá feito uma estátua, peguei os dois e, em pânico, voltei.
— Água e um pano — expliquei, entregando-os ao sujeito. Ele
sacudiu os braços às cegas e eu agarrei sua mão, fechando seus dedos em
volta do copo. Fiz o mesmo com a outra e o pano.
Observei enquanto ele esfregava os olhos furiosamente e me parecia
que só estava piorando as coisas. Ao mesmo tempo, eu também não ia dizer
a ele o que fazer — ele parecia um pouco... ensandecido.
A tinta faz isso com você.
No fim, ele conseguiu limpar seu rosto o suficiente porque logo se
acalmou, abaixou os braços ao lado do corpo e ficou ali deitado, olhando
para o teto.
— Você está bem, senhor? — perguntei.
O homem ficou parado por mais um momento e então virou a cabeça
para que pudesse olhar para mim. Seu rosto e estava manchado e a parte
branca dos olhos não estava branca. Ao invés disso, estava mais para um
tom pálido de rosa. Tudo nele parecia pontiagudo. Seu nariz, seu queixo,
até o formato de suas sobrancelhas.
— Se estou bem? — perguntou, em meio a uma risada, repetindo o
que eu dissera. Ele sacudiu a cabeça e me encarou.
— Está sangrando — disse, apontando para um ponto por onde o
sangue escorria.
O homem o tocou, subindo com os dedos em direção ao alto da
cabeça. Estremeceu. E então puxou alguma coisa com toda a força. Olhou
para seus dedos. Em meio a eles, havia um pedaço de vidro. Ele olhou de
volta para mim.
— Quem diabos é você?
— Ah, uh, sou o Buddy. Sou o novo office-boy do Departamento de
Artes.
Ele me encarou por mais tempo dessa vez. E então começou a rir,
uma risada que era só respiração, sem som. Quase como se estivesse
arquejando.
— Departamento de Artes. Certo. Certo, office-boy do Departamento
de Artes, responda-me isso: Por que vocês estão guardando tinta no
depósito das partituras? E por que o Joey tá passando um cano que
aparentemente tá cheio de tinta pelo meu depósito?
Um cano? Com tinta? Aquilo definitivamente não me parecia algo
normal, mas, pra falar a verdade, eu não fazia ideia do que era normal para
um estúdio de animação.
— Eu não sei.
— Você não sabe. Você não sabe. — A risada ficou ainda maior,
embora continuasse sendo só respiração. Agora, tinha também estalido
vindo do fundo de sua garganta. Ele se ergueu, apoiando-se nos cotovelos,
ainda rindo.
— Eu... não sei — disse, como se repetir as palavras fosse fazer com
que a resposta soasse menos engraçada. — Eu... não sei nem onde o
depósito das partituras fica. — Não sabia onde ficava a maioria das coisas.
Mesmo agora, nesse momento, nem sempre me lembro onde ficam as
coisas.
Mas me lembro do homem se levantando e me agarrando pelo
cotovelo. E me lembro de olhar para a violinista, do jeito que ela ficou
olhando em silêncio enquanto ele me arrastava para fora da sala. Me
lembro de segui-lo, sem saber o que estava acontecendo. E da força de sua
mão. Seus dedos eram tão pontiagudos quanto todo o resto.
Eu me lembro.
Me lembro de seguir um rastro de pegadas de tinta em sentido
contrário pelo chão.
E me lembro do depósito.
A porta estava escancarada e o chão completamente negro, com tinta
pingando das pilhas de papéis brancos nas prateleiras altas, como se uma
torneira tivesse acabado de ser fechada. Havia vidro quebrado por todo
lado.
— Esse é o depósito das partituras — disse o sujeito, soltando meu
braço de um jeito que mais pareceu um empurrão. Tropecei em direção ao
lugar. Bati com o pé num caco de vidro, que foi tilintando para um canto
escuro. — E essa é a tinta que não devia estar aí. — Ele apontou para uma
série de fileiras de tinteiros intactos e sem qualquer tipo de rótulo. — E
esse é o cano que está inexplicavelmente passando por aqui cheio de tinta e
ainda conseguiu estourar, arruinando incontáveis montantes das minhas
partituras.
— Certo — disse. Olhei para ele. Ele olhou para mim.
— Certo? — Ele parecia indignado, mas eu não sabia mais o que
podia dizer. Só queria voltar ao elevador e ao meu trabalho.
Quando eu não disse mais nada, ele sacudiu a cabeça para mim.
Então se inclinou tão perto que eu podia ver a tinta que penetrara cada um
de seus poros. Quando falou, pude ver sua língua e gengiva manchadas de
tinta:
— Limpe. Essa. Bagunça.
E então ele saiu batendo os pés e eu fiquei sozinho. De novo.
Olhei para o depósito.
Aquela sensação de estar perdido não me deixava em paz. Aquela
sensação de estar sempre errado. Não era boa. E então, olhando para a
bagunça, eu não conseguia entender. Eles não tinham pessoas para limpar
aquilo? Como aquele podia ser o meu trabalho?
E como eu podia fazer aquele trabalho?
Como se limpa tinta derramada?
É uma pergunta complicada de se responder.
Porque a resposta é: Não se limpa.
Deixe-me contar uma coisa sobre a tinta. Ela não vai embora. Quer
dizer, você pode lavar suas mãos e esfregar e você acha que se livrou de
tudo, mas aí um pontinho, um pequeno pontinho vai brotar. Algo que você
não tinha visto? Talvez. Mas não é o que parece. Então, ao invés de
continuar tentando tirar, você espera que as partículas da sua pele a
removam. E aí ela some. Ou será que não? Você acha que sumiu, mas aí
você acha mais. Em outro lugar.
E mais.
A tinta nunca desaparece.
Ela está sempre lá, como se estivesse se escondendo, esperando para
se revelar. Está sempre lá para te lembrar. Ela nunca irá embora.
No início, não é ruim. Você acaba se acostumando a vê-la por dentro
da unha do seu dedo indicador. Talvez seja até uma amiga. Ou uma marca
de orgulho. É assim que ela te atrai.
Mas ela floresce e se enterra. E penetra e mergulha.
E submerge e bebe.
Está viva.
Está em toda parte.
Está dentro de mim. Respira por mim. Posso senti-la esguichando
nos meus pulmões.
Posso senti-la no meu cérebro.
Eu sou a tinta.
CAPÍTULO QUATRO

— Buddy?
Àquela altura, já estava esfregando a tinta com um esfregão velho
que encontrei na despensa há provavelmente uma hora. Antes disso, tinha
recolhido o vidro quebrado e os frascos de tinta. Joguei fora todos os papéis
de partitura que foram destruídos. Sentia que tinha feito algo de útil. Mas
agora não. Agora era só tinta girando e girando, sem ir a lugar algum.
Me virei.
— Ah, oi. — Era a garota do Departamento de Redação. A que eu
tinha visto mais cedo.
Era a Dot.
Vindo ao meu resgate.
— O que está fazendo? — perguntou. Disse isso como se pensasse
que eu era doido.
— Ah, uh, o cara da música me disse pra limpar isso — disse,
sustentando o esfregão no ar enquanto ele pingava no chão. Mais tinta. —
Ele estava aqui e acho que quebrou uns frascos e teve um cano que
estourou ou algo do tipo.
— Cara da música?
— Isso... Ele é... pontiagudo. — Não sabia muito mais sobre ele.
Nem mesmo seu nome, parando para pensar.
— Ah — disse a garota, um sorriso rompendo sua expressão severa.
— O Sammy.
— Talvez.
— Ah, com certeza foi o Sammy. Ele... é bem entusiasmado. — Ela
deu a volta por mim de forma extremamente eficiente para dar uma olhada
na bagunça no depósito. — O que essa tinta toda estava fazendo aqui pra
começo de conversa? — Ela estendeu a mão e tocou uma poça grudenta em
uma das prateleiras. — Espessa — disse, mais para si mesma do que para
mim.
— Nem me fala — respondi, finalmente abaixando o esfregão no
chão e sentindo toda a exaustão da limpeza me tomando o corpo.
— Tinta estraga? — perguntou ela, olhando para mim.
— Nem ideia.
Ela deu de ombros.
— Bom. Não importa. Ele não devia ter feito você fazer isso. Olha
pra você, está horrível.
Me lembrei então que também estava coberto de tinta. Por causa de
Sammy. A mãe ia me matar quando visse o estado das minhas roupas.
— Vem comigo, quero te mostrar uma coisa.
E como qualquer coisa era melhor que ficar empurrando tinta em
círculos, fiz conforme ela disse.
Não sabia por que Dot fazia tanta questão de me levar aonde quer
que estivéssemos indo. Tá, admito que o meu primeiro pensamento foi que
talvez ela fosse a fim de mim. Quer dizer, não só a fim, mas estivesse
caidinha por mim. Se estiver lendo isso, sei que está rindo, Dot, mas não
sei dizer nenhum outro motivo pelo qual uma garota iria querer sair com
um cara, ainda mais na nossa idade. Não me ocorreu então que podíamos
ser simplesmente duas pessoas juntas.
Amigos.
Fico feliz por ter me dado conta disso.
Enfim, eu não sabia aonde ela estava me levando ou por quê, mas
qualquer coisa era melhor que ficar ali limpando, como eu disse, e àquela
altura eu já tinha me desviado tanto da minha tarefa que nem sabia mais
qual era o meu trabalho. E eu merecia uma pausa.
Sempre fui muito bom fazendo as coisas fazerem sentido na minha
cabeça, bem desse jeito.
Eu a segui pelo corredor, virando aqui e acolá até que chegamos ao
elevador. Senti tanto alívio ao vê-lo que me esqueci por um momento que
não estava indo para o Departamento de Artes e fiquei completamente
desnorteado quando o elevador começou a descer ao invés de subir.
— Aonde estamos indo? — perguntei. A gaiola na qual estávamos
sacudia um pouco e as engrenagens que controlavam o mecanismo de
movimentação faziam um barulho um pouco alto demais. Esse elevador
deve ter sido um dos primeiros do gênero, pensei. Um artefato histórico.
Um artefato histórico bem lento.
— Não quero estragar a surpresa — disse Dot, bastante natural.
— Hm — disse em voz alta. Era para ser apenas um pensamento.
Ela se virou e estreitou os olhos em minha direção, desconfiada.
— O quê?
— O quê? Ah, não, não é nada. Você só não parece do tipo que se
interessa por mistério, jogos e essas coisas. — Eu desacelerei enquanto
dizia isso e ela olhou para mim. De repente, me senti um imbecil. Não
sabia nada sobre ela. Só sabia que ela parecia mais pragmática.
Mas aparências podem enganar.
— Não está errado — disse ela, abrindo os olhos novamente. — Mas
de vez em quando, sabe como é. Uma surpresa pode ser bacaninha. Além
disso, é difícil explicar, melhor você ver.
— É, às vezes palavras não são o bastante — concordei.
Ela pensou a respeito por um momento.
— Vou escolher não levar isso como um insulto pessoal.
— Ah! Não, não foi. — Definitivamente não foi o que eu quis dizer.
Só achei que estava concordando com ela. Ela me fazia me sentir
pressionado, como se caso eu não dissesse tudo perfeitamente, ela podia
entender errado.
Mas no fim, eu estava certo.
De um jeito bom.
— Sou a Dorothy, à propósito. — É, acho que foi mais ou menos
assim que aconteceu. Acho que foi a primeira vez que nos apresentamos.
Sou a Dorothy, à propósito. — Todos me chamam de Dot. Eu me chamo
de Dot. Só me chame de Dot.
Certo. Me lembrei então da secretária a chamando assim.
— Eu sou o Buddy. Meu nome verdadeiro é Daniel, mas todo mundo
me chama de Buddy.
— Sério, por quê?
— Bom, por que te chamam de Dot?
— É um apelido comum que as pessoas dão para Dorothys —
respondeu ela, como se eu devesse saber. — Para Daniel, normalmente é
algo como Dan, Danny ou coisa do tipo. Buddy é estranho.
Isso meio que me pegou de surpresa. Não concordava com ela com
relação a isso.
— Não é não. Na verdade, começou como Little Buddy[1]. Todo
mundo no bairro me chamava assim. Eu era bem pequeno e estava sempre
fazendo o que podia para ajudar os meus pais, com tarefas e tal. Só queria
ser útil. Ficava dando a volta no bairro. Acho que as pessoas simplesmente
começaram a me chamar assim. Mas aí, bom, você sabe... — Abaixei a
cabeça e olhei para mim mesmo, para aquele meu par de pernas esguias
enfiadas nos meus grandes sapatos. Sempre senti que eu era uma vareta
num suporte ou algo do tipo.
— Você cresceu — disse ela.
— É.
O elevador finalmente parou com um solavanco, me fazendo ranger
os dentes por um instante. Imaginei que precisava me acostumar com as
paradas súbitas ou então eles iam acabar caindo da minha boca.
Dot abriu a grade e adentramos um corredor escuro e vazio.
Estávamos no porão, isso ao menos era evidente. E quando olhei em volta,
ficou claro para mim que ninguém trabalhava ali, aquele espaço era usado
mais para armazenamento que para qualquer outra coisa. Enormes recortes
de papelão do tamanho de uma pessoa com a imagem do Bendy estavam
inclinados na parede à direita e, quando Dot se virou e eu a segui para a
esquerda, vi vários depósitos de portas abertas. Dentro das salas, havia uma
porção de caixas empilhadas umas sobre as outras.
— Podemos mesmo vir aqui embaixo? — perguntei.
Dot deu de ombros.
Considerei isso como um não. Ela fora tão direta para responder
todas as outras perguntas, então imaginei: um gesto como aquele não seria
também uma resposta para a pergunta? É, provavelmente era um não.
— Então posso te perguntar uma coisa?
Ela olhou para mim, aquele olhar desconfiado outra vez. Quer dizer,
eu acabaria descobrindo que era assim que ela olhava para todo mundo —
porque suspeitava de todo mundo. Ainda assim, no início, isso me fazia
pensar o que estava fazendo de errado o tempo todo.
— Certo.
— Notei que tem várias... moças trabalhando aqui. — Não tinha
muita certeza de como dizer aquilo.
Dot deu uma risada. Uma risada única, que parecia vir junto a uma
tosse. E ela sacudiu a cabeça.
— Quem está chamando de moça, Buddy? — disse ela, em meio a
um sorrisinho travesso.
Meu rosto ficou quente frente a isso.
— Você sabe o que eu quis dizer. Todas essas, bom, essas garotas
que trabalham aqui. Como a supervisora do Departamento de Artes. É uma
moça. E... você sabe... — Eu meio que extingui o pensamento e fiquei
quieto.
— Sei o quê? — perguntou ela, fazendo uma curva. Eu a segui. Ela
ligou um interruptor e uma série de lâmpadas empoeiradas que percorriam
o teto estreito foram piscando até se finalmente se acenderem.
— Não estou... acostumado a ver tantas mulheres fazendo... esse tipo
de trabalho. — Era difícil expressar o que eu queria dizer. Principalmente
porque, acredito, eu não sabia bem o que estava perguntando.
— Tá, tá, antes que você acabe se enrolando mais aí, varapau, deixa
eu te ajudar. — Dot parou de andar e se virou para olhar para mim. Eu
também olhei para ela. — Durante a guerra, o Sr. Drew, como todos os
outros empregadores, perdeu vários funcionários que foram lutar a boa luta.
Então, como várias outras companhias, ele contratou as “moças”, como
você colocou. A guerra acaba, nem todos os rapazes voltam e aqueles que
voltam, bem... O Sr. Drew gostou do nosso trabalho. Acho que no começo
ele ficou surpreso, mas então percebeu que vinha ignorando muitos talentos
sem nem perceber. O Sr. Drew gosta de talento. E não se importa com o
gênero, a idade ou a cor do qual se originou.
— Sim — assenti, pensando na minha entrevista com ele. Não que o
Sr. Drew realmente soubesse que eu tinha alguma competência. Eu ainda
não tinha desenhado nem mesmo um círculo. Esquisito, quando parei para
pensar por esse ângulo.
— Enfim, você entende. Os caras que voltaram, voltaram. Mas o Sr.
Drew não demitiu nenhuma das garotas. Nós trabalhamos juntos por um
tempo, alguns dos homens ficaram por aí, outros já não gostaram muito de
receber ordens de mulheres, então... acabamos onde estamos agora.
— Com moças na chefia. — Agora eu entendo.
— São chefes como qualquer outro, Buddy. Mulheres não são uma
espécie estranha e especial de chefe. Só pessoas, Buddy, só pessoas. —
Assenti outra vez. Quer dizer, eu sabia disso. Claro que sabia. Dot olhou
para mim por um momento. — Você vai ter que jogar essa roupa todinha
fora. Tá destruída.
Olhei para baixo outra vez, para a tinta preta que ensopava a minha
camisa.
— Pois é — disse. Não queria pensar a respeito. Com isso, me
restava apenas mais um bom conjunto de camisa e calção.
Dot assentiu com veemência e começou a andar outra vez. Fiz o
mesmo. Ela andava depressa, mas duas passadas dela equivaliam a uma das
minhas, então não me senti exatamente apressado. Ainda que eu meio que
soubesse que devia estar voltando ao trabalho. Era bom ter algo que fizesse
algum sentido. Era bom ter uma amiga. Ela era minha amiga? Não tinha
certeza.
Finalmente paramos em frente a uma porta fechada. Dot então olhou
em volta, o que definitivamente me fez pensar que o que estávamos
fazendo não era permitido. Ela tirou uma pequena chave de bronze de um
bolso fundo em sua saia e destrancou a porta.
— Onde conseguiu isso?
Ela deu de ombros outra vez.
Abrindo a porta, ela acendeu a luz e nós entramos.
Era mais um depósito. Mas muito maior que os outros pelos quais
tínhamos passado, que eram pouco maiores que um armário. Dito isso,
havia tanta coisa empilhada junto às quatro paredes que dava a impressão
que o espaço era muito menor do que realmente era. No meio, havia um
conjunto de cadeiras e uma mesa. E o que parecia uma porção daquelas
casinhas de boneca que se via na vitrine de uma loja de brinquedos estava
disposta sobre a mesa. Meu ombro bateu em alguma coisa que se
sobressaltava e eu virei para olhar o que era. Era um volante.
Um volante?
Foi quando tudo finalmente entrou em foco.
É interessante como o cérebro funciona. Ele vê várias coisas como
uma só. Não vê as peças soltas individualmente. Você vê um carro. Não vê
um para-brisas, portas, faróis. Esses, você vê depois. Depois que viu o
“carro”.
É engraçado como, se não procurar pelas peças, às vezes você nem
chega a notá-las.
As coisinhas individuais que formam o todo.
As pistas.
A questão é que eu só tinha visto “coisas”. Mas agora que havia
notado o volante, notei mais. Notei que o volante estava preso a um kart de
aparência diminuta e me dei conta de que era muito parecido com os
carrinhos bate-bate de Coney Island. E então notei que aquela parede era
composta por uma pilha de carros. E mais que isso, havia uma placa meio
escondida com uma série de lâmpadas ao redor. Estava escrito “DY Bate-
Bate” nela. Adentrei a sala e dei a volta num círculo, notando mais coisas.
Como um cavalo de carrossel preto e branco e um recorte do Lobo Boris
segurando uma bandeja com uma seta com a palavra “Comida”.
— Incrível, não é? — perguntou Dot.
Me virei e vi que ela estava parada junto à mesa.
— O que é tudo isso?
— Bom, deixa eu te mostrar — disse ela, apontando para as casinhas
de boneca.
Me juntei a ela na mesa e notei então que não eram casas de boneca.
Eram parte de um modelo em pequena escala, o que fazia muito mais
sentido. Ambos nos sentamos dos dois lados da mesa. Ergui o olhar por um
instante e a forma como o nariz e a boca de Dot sumiram atrás do pequeno
modelo de um prédio fazia parecer que ela era um gigante observando um
circo de pulgas humano.
Voltei a olhar para baixo. Estava pairando logo acima de uma
pequena placa onde estava escrito “Bendy Bate-Bate”. Olhei por cima do
ombro para o verdadeiro, agora oculto nas sombras.
— Não entendo. Coney Island? — perguntei.
— Bendyland — respondeu ela.
Ergui o olhar de volta para ela, que estava olhando para mim com
uma expressão de quem sabe tudo.
— E isso existe? — perguntei. Mas mesmo enquanto o fazia, já sabia
a resposta. Não podia existir, já que todo aquele lixo estava entulhado
naquela sala. — Existiu?
Ela sacudiu a cabeça em negação.
— É o próximo grande projeto do Sr. Drew. Ele tem trabalhado nisso
nesses últimos anos, pelo menos desde que comecei a trabalhar aqui. Mas
sempre em segredo. Ninguém sabe sobre esse lugar, não que eu tenha visto.
Costumava ser só umas coisinhas aqui e ali e o modelo só foi crescendo e
crescendo. Mas aí no último mês, essa sala começou a encher de verdade.
Como se algo estivesse prestes a acontecer.
Pensei naquele sujeito, o Tom, que havia visto no dia anterior. Pensei
no tubo de papelão que ele carregava em mãos. O tipo de tubo que
arquitetos e designers carregam. Talvez ele estivesse trabalhando nisso.
— Não sei onde ele vai guardar tudo, porque mesmo esse armazém é
minúsculo. Loucura, não é?
Dei uma boa olhada em toda a cena apresentada no modelo diante de
mim. Havia diversos brinquedos e atrações, com uma área central onde
ficavam pequenas barracas com vários tipos de jogos. Tinha uma praça de
alimentação e até algo que parecia uma casa assombrada. Era um parque
completo. Só com coisas do Bendy.
— O Sr. Drew bolou tudo isso? — perguntei, admirado.
— Quem mais? — retrucou Dot.
— E você acha que mais alguém sabe?
— Acho que não. — Dot se ergueu e cruzou os braços na frente do
peito, ainda olhando para o modelo. Também me levantei.
— Como é que você sabe sobre isso? — perguntei.
— Boa pergunta, Buddy. — Ela parecia impressionada. — Continue
fazendo perguntas assim por aqui. É importante.
Eu não entendi. Quer dizer, entendi o que havia dito, só não entendi
por quê. Então perguntei. Já que, sabe como é, foi exatamente o que ela
tinha me dito para fazer.
— Por quê?
— Não sei, Buddy, não sei. Só estou sentindo alguma coisa nas
minhas entranhas e não está me cheirando bem. Preciso entender isso
melhor. Gosto de informação. Gosto de detalhes.
A mãe costumava dizer que o diabo estava nos detalhes.
— Enfim, não se distraia, Buddy. Você me fez uma pergunta e veja o
que eu fiz. Não a respondi e nós mudamos de assunto.
Assenti. Estava confuso, mas, ao mesmo tempo, não estava. O que
também era confuso.
— Então como você sabe sobre isso?
— Eu fuxico as coisas. Quero juntar os fatos.
— Por causa da coisa das entranhas.
— Isso.
Entendia aquilo de fuxicar. Fazia muito disso no meu bairro. E
quando ficava espiando os artistas no Central Park.
— Onde conseguiu a chave? — perguntei.
Dot sorriu frente a isso.
— Pergunta ainda melhor.
— Obrigado.
— O Wally está sempre perdendo as chaves. Não quer dizer que eu
tenha que devolvê-las.
Assenti outra vez, sem saber ao certo como me sentia a respeito de
toda essa coisa de roubar. Bom, eu sabia como me sentia e não gostava,
mas gostava da Dot e ela parecia tão segura de si, como se sempre soubesse
a coisa certa a fazer. Talvez a coisa certa daquela vez de alguma forma
fosse a coisa errada?
— Provavelmente é melhor a gente voltar lá pra cima antes que eles
notem a nossa ausência — disse ela. Senti uma pontada de pânico pensando
em como estava atrasado e como podia ser demitido, mas, ao mesmo
tempo, já tinha sumido há muito tempo antes de descer ali com ela e
ninguém parecia ligar. Se bem que ninguém também sabia que eu
trabalhava lá. Ainda.
— Será que você pode me ajudar a achar o caminho de volta ao
Departamento de Artes? — perguntei enquanto fechávamos a porta atrás de
nós e seguíamos em direção ao elevador.
— Claro.
Então eu parei. Pensando. Dot também parou. Notando.
— O que foi? — perguntou ela.
— Por que eu? — indaguei.
— Por que você o quê?
— Por que veio atrás de mim? Por que me mostrou isso tudo?
Ela então estreitou os olhos para mim com aquele olhar. Você tem
aquele olhar, sabia, Dot? Aquele olhar que diz que, de alguma forma, era
eu quem tinha que descobrir, que eu tenho a chave, a solução.
Eu não tinha. Não tinha na época, não tenho agora. Você põe muita
fé em mim, Dot.
— Minhas entranhas — respondeu ela.

----------
[1]
Little Buddy: Algo como “garotinho”, “rapazinho”, “camaradinha”, etc. Seria uma
espécie de apelido carinhoso. | Pronúncia: Lírou Bâ-ri.
CAPÍTULO CINCO

Não cheguei a ver o Sr. Drew naquele dia. Isso me deixou um pouco
mal. Até um pouco preocupado, pensando que talvez ele não estivesse
falando sério quando me ofereceu o trabalho ou que talvez já tivesse até me
esquecido. Mas quando voltei ao Departamento de Artes, pareceu até que
um holofote gigante se acendeu sobre mim. Eu definitivamente não estava
mais invisível.
— Quando dizem pra você cair de cabeça no trabalho, não é pra
levar pro lado literal.
— Isso é algum tipo de obra de arte conceitual?
— Quer virar um personagem de desenho quando crescer?
Acho que o pessoal do Departamento de Artes disse mais algumas
outras coisas, mas não consigo me lembrar. Me lembro deles rindo. Me
lembro do meu rosto ficar quente. E me lembro de tentar cumprir com as
tarefas que todos me davam o mais rápido que conseguia, conversando o
mínimo possível até o final do expediente.
O relógio continuou correndo. Cinco horas. Seis horas. Eu já estava
mais que pronto para ir embora. Que belo primeiro dia para o trabalho dos
sonhos. Mas ninguém me disse quando o dia acabava e ninguém à minha
volta se levantou. Todas as cabeças continuavam inclinadas sobre suas
mesas, seus lápis riscando furiosamente o papel.
— Tudo bem, Buddy, já pode ir — disse a Sra. Lambert. Eu quase
dei um pulo, ela meio que tinha chegado em mim de surpresa.
— Eu posso ficar — disse. Não queria parecer preguiçoso. Sempre
trabalhei duro.
— Não precisa. Estamos com um prazo bem apertado, mas é o seu
primeiro dia. Além do mais, parece que não foi um dia exatamente fácil. —
Ela me abriu um sorriso.
Não sabia o que dizer ou fazer. Eu meio que só queria sair correndo.
A ideia de sair lá fora coberto de tinta daquele jeito não era lá das
melhores. Mas fiz conforme ela disse e, pegando a minha jaqueta, fui para
casa. Fiquei muito focado na calçada sob meus pés. Não estava muito no
clima para ficar vendo pessoas olhando para mim.
Foi mais difícil ignorar os gritos das pessoas do meu bairro.
— Fala, Buddy! Tu caiu num tanque de chocolate, foi?
Esse tipo de coisa.
Cheguei em casa e subi correndo as escadas, esbarrando no Sr.
McKenna enquanto saía do banheiro, aquela velha toalha aos farrapos
amarrada na cintura, sua grande barriga caída sobre ela.
— Cuidado, garoto!
Entrei no apartamento às pressas e disparei por trás da mãe, que
estava lavando os pratos na cozinha, seguindo rapidamente em direção ao
meu quarto. Parei de súbito. Tinha me esquecido.
Meu avô.
Ele estava parado no pequeno espaço entre o pé da cama e a parede,
observando o grande quadro pendurado ali. Na verdade, acho que o quadro
em si não era exatamente grande, era do tamanho que era. Só era grande
em comparação à parede e eu sempre pensei que ele meio que dominava o
quarto inteiro.
— Só preciso trocar de camisa — anunciei. Mas ele não se mexeu ou
fez algum sinal de que havia me ouvido. Nem mesmo um grunhido. —
Koszula — disse. Meu polonês era horrível, só sabia uma coisinha ou outra
aqui e ali. Não tinha nem certeza se sabia como era “camisa” em polonês,
pra começo de conversa.
Dizer isso a ele também não pareceu surtir efeito.
Então segui lentamente em sua direção, tentando fazer com que ele
me notasse. Quando ele não o fez, finalmente resolvi subir na cama para
chegar à cômoda. Olhei para o quadro enquanto passava. Era uma
paisagem natural, com montanhas e árvores. Não era uma pintura realística
como uma foto, era mais como se o artista tivesse simplesmente jogado a
tinta aos montes na tela e conseguido a paisagem por acidente. Estava tão
acostumado com o quadro, tão familiarizado com cada forma, cada linha.
Mas não só com a pintura em si. Tinha também a moldura dourada.
Quando era pequeno, perguntei à mãe se era ouro de verdade. Não era, ela
disse. Eu disse que se fosse ouro de verdade, podíamos ter vendido e
comprado um apartamento novo. E mais comida também. Ela sorriu. “Não
é a moldura que é valiosa”.
Não tinha entendido o que ela quis dizer na época. Mas entendi
alguns anos mais tarde, quando Tommy Sharp me disse que vira no jornal
que um quadro que parecia bastante um dos nossos tinha sido vendido por
dez mil dólares num leilão. Não acreditei nele e acabamos brigando por
causa disso. Depois, fui para casa todo machucados e dei uma olhada nele.
E foi como se o meu mundo inteiro tivesse entrado em foco nesse
momento. Notei os outros quadros no apartamento. Os que estavam
empilhados uns sobre os outros ao longo do corredor. Notei como eles
ocupavam todo o espaço, do chão até o teto, quase como se estivessem num
estoque. Estavam todos tortos. Empoeirados. Tinha vivido com eles por
tanto tempo que nunca notei que os quadros eram algo a se notar.
— Mãe, podíamos vender esses quadros — disse. — Podíamos fazer
dinheiro. A senhora podia parar de se matar de tanto trabalhar para o Sr.
Schwartz todo dia.
— Essas ideias que você tem — disse ela, em meio a uma risada,
levantando-se da mesa para bagunçar o meu cabelo, como se eu ainda fosse
uma criancinha e não tivesse já os meus treze anos.
— Dinheiro é importante, mãe — disse, me virando de onde estava
sentado para olhar para ela.
— Não me diga que dinheiro é importante como se eu não soubesse
disso. — Ela se apoiou na pia e olhou para mim. — Nós não vamos vender
os quadros.
— Eles são valiosos. A senhora mesmo me disse isso uma vez —
disse a ela. — Você não viu no jornal?
— Não. — Ela se voltou para a pia outra vez. Mas não fez nada. Só
ficou lá parada. Em silêncio. Lágrimas não fazem barulho. As pessoas
acham que fazem porque quando as pessoas soluçam e tal, elas costumam
fazer sons com a garganta, mas na verdade é possível chorar sem que
ninguém saiba.
Mas eu sabia. Eu sempre sabia.
O que não entendia era por que ela estava chorando. Meu coração
afundou na altura do estômago.
— É por causa do pai? — perguntei, a voz baixa. Não recebíamos
uma carta dele há semanas.
Ela se virou abruptamente, seus olhos arregalados e vermelhos.
Parecia assustada, mas não de um jeito que eu saiba bem como explicar.
Tenho certeza que você saberia, Dot. Sua expressão então subitamente se
suavizou e ela disse:
— Ah, o seu pai. Não, não, não é por causa dele.
Olhei para o meu avô enquanto seguia até a cômoda e abri minha
gaveta.
De repente, ela estalou na minha cabeça, aquela memória. “É por
causa do pai?” Ela pensou que eu estava perguntando sobre o pai dela, não
o meu. Ela sempre escondeu alguma coisa. Sobre a família dela.
O que ele estava olhando no quadro? Por que era tão importante? O
que eu não conseguia ver?
Peguei uma camisa e mais um par de calças, fechando a gaveta num
empurrão. Não era justo, eu não precisava disso. Não precisava de um
velho misterioso que não falava a minha língua no meu quarto, no meu
espaço, só complicando tudo. Também não gostava de como ele deixava a
mãe triste. Ela era sempre tão feliz, menos quando falava dele. Por que o
estava deixando entrar na vida dela desse jeito? Na nossa vida?
Por que ele estava parado tão perto do quadro?
Era demais. Aquele dia tinha sido demais.
Fiz o caminho de volta pisando pesado em cima da cama, o que na
verdade não é algo que se possa fazer. Estava mais para um tropeço furioso
que praticamente me jogou do outro lado. E então eu voltei para o nosso
corredor estreito. Me despi e troquei de roupa, jogando as manchadas de
tinta em cima da cama.
Meu avô nem se mexeu.
Só ficou olhando.
E continuou olhando.
CAPÍTULO SEIS

Trabalhar no estúdio não era nada como eu achava que seria. Quer
dizer, não era ruim. Qualquer coisa era melhor que trabalhar na rua como
entregador para o Sr. Schwartz, em meio ao calor do verão de Nova York.
Dito isso, também não tenho certeza se escolheria ser entregador num lugar
fechado, em meio ao calor do verão de Nova York. Especialmente se esse
lugar fosse um estúdio de animação sufocante e mal ventilado.
Mas também não queria dizer que não havia lá suas vantagens.
Observar os artistas trabalhando era uma gigantesca, isso é, quando eles
permitiam, claro. O Jacob sempre me deixava dar uma olhadinha por cima
de seu ombro, mas o Richie, nah, ele escondia seu trabalho de mim como
se estivesse escrevendo mensagens secretas para os Aliados durante a
guerra. Mas honestamente falando, poder dizer ao pessoal do meu bairro
que eu estava trabalhando para o Joey Drew Studios no centro também era
bem legal. Eles ficaram impressionados. Ficaram com inveja.
E as pessoas que conheci no trabalho também eram bem bacanas. A
maioria deles. A Sr. Lambert, que supervisionava o Departamento de Artes,
era um pouco severa e às vezes me deixava frustrado quando me dizia para
sentar na minha mesa e parar de ficar zanzando o tempo todo. Ela também
usava ternos masculinos, algo que achei fascinante e definitivamente uma
inspiração para algum tipo de personagem que pensava em criar. Algum
dia. Quando ela finalmente me deixasse desenhar. O que não aconteceria
tão cedo. Eu queria aprender, queria fazer parte do grupo.
Aí tinha o resto da equipe. O Richie, o Dave e o Jacob, que eu tinha
conhecido no primeiro dia. Pareciam até uma ganguezinha, eu diria. Suas
mesas ficavam enfileiradas junto à uma parede embaixo de três lâmpadas
brilhantes. Richie e Jacob pareciam estar na casa dos vinte e poucos e eram
cheios de energia. Richie era meio bruto e estava sempre fedendo à fumaça
de cigarro. As pontas de seus dedos eram até amareladas, o que descobri
quando ele me passou alguns rascunhos novos, me encarando com um
olhar cheio de desconfiança por cima de seus pequenos óculos redondos.
Suas roupas sempre pareciam um pouco amarrotadas e isso fazia eu me
sentir um pouco melhor, já que depois do incidente com o Sammy, eu
agora tinha só um conjunto de camisa e calção pra chamar de meu. Não
tinha nem um paletó.
Jacob, por outro lado, se vestia muito elegantemente, com gravatas
bem coloridas e meias combinando. Eu nem sequer sabia que faziam meias
em cores que não fossem preto ou branco. Às vezes, ele usava até seu
chapéu no estúdio. Parecia um sujeito até bem tranquilo, mas era o que
mais gozava de mim. Parecia não conseguir esquecer toda a história de eu
ter tomado um banho de tinta. Pelo menos quando tocava no assunto, ele
sorria. O fato era que ele importunava todo mundo, então tentei não levar
para o lado pessoal.
Dave era mais velho que todos nós e sua pele era tão fina e seca
quanto um pedaço de papel. Depois que Dot me explicou o que tinha
acontecido no estúdio depois da guerra, fiquei me perguntando como um
sujeito mais velho como ele se sentia recebendo ordens de uma mulher, se
era muito aferrado às velhas tradições ou coisa do tipo. Mas ele não parecia
ligar muito. Não parecia fazer nada além de desenhar e tirar longas pausas
para o almoço. Não costumava falar muito com ninguém. Entregava seus
trabalhos no tempo certo e sempre ia para casa na hora, menos quando o
departamento estava com o prazo apertado.
Mas já que eu trabalhava como office-boy, como eles chamavam,
também acabei conhecendo pessoas de fora do meu departamento. Eu
geralmente pegava coisas de uma pessoa e dava a outra. Tinham muitas
coordenadas que precisavam ser dadas naquele prédio e eu era a ponte
entre todo mundo ali. Sentia que isso por si só já devia ter me rendido um
pouco de respeito, mas eu definitivamente era a base da base da pirâmide,
pelo menos por ora. Então eu levava roteiros do Departamento de Redação
para o Departamento de Artes. Partituras do Departamento de Música para
o Laboratório de Animação. Recibos de todo mundo para a Contabilidade e
contas da Contabilidade para todo mundo. Conheci todas as secretárias.
Conheci todos os chefes.
Acabei descobrindo que o tal “Sammy” era Samuel Lawrence, um
músico premiado e supervisor do Departamento de Música. Vê-lo sem estar
coberto de tinta pela primeira vez foi estranho para mim. Os ângulos de seu
corpo eram ainda mais pronunciados agora que ele não estava oculto
embaixo de toda aquela tinta pegajosa. Ele meio que me parecia um
pássaro. Especialmente quando ficava no posto de regente durante os
ensaios. A violinista ainda me dava arrepios.
Conheci também Norman Polk, o sujeito que me guiara pelas
escadas durante o blecaute, embora ele não tenha demonstrado nenhum
interesse em me conhecer. Ele operava o projetor, o que descobri que era
feito quando precisavam sincronizar som e imagens animadas. Era por isso
que tinha uma cabine de projeção na Sala de Música, como eu havia notado
daquela vez. E tinha uma também no Estúdio de Gravação de Voz. Norman
conhecia todos os atores e músicos e sempre observava quando eles
performavam, notei. Ele os observava por trás da luz brilhante do projetor.
Não o conhecia lá muito bem, mas nas poucas vezes que interagimos, tive a
sensação de que ele não gostava de mim. Me chamava de “entregadorzinho
do Drew”, o que não era verdade. Mas também não sabia o que havia de
errado com isso. Era quase como se não gostasse do Sr. Drew ou algo do
tipo. O que eu não conseguia entender. Como se podia não gostar dele?
Só conheci uma atriz naquelas primeiras semanas. Segurei a porta
para ela quando estávamos entrando no prédio e fiquei abismado com como
ela não parecia ninguém mais no estúdio. Quer dizer, ela parecia ter sido
tirada diretamente de um filme. No dia que segurei a porta para ela, estava
vestindo uma saia cinza-claro e uma jaqueta com uma blusa cor-de-rosa por
baixo. Usava um pequeno chapéu com laço na frente que lhe cobria os
olhos, embora não completamente. Devo dizer, nunca entendi porque ela
resolveu trabalhar com dublagem. Sua beleza era equiparável à de Ginger
Rogers. Tinha até o mesmo cabelo loiro-platinado. Nós acabamos no
elevador juntos e vou te contar, ela era muito simpática. Agradeceu quando
eu segurei a grade para ela e até perguntou o meu nome.
— Buddy. — Foi tudo o que consegui dizer. Não consegui nem
perguntar qual era o dela.
— Bom, eu sou a Allison, o que é engraçado, né? — disse ela,
abrindo um sorriso enquanto subíamos.
Não quis encará-la e não entendia por que “Alisson” era engraçado,
então só fiquei jogando o meu peso de um pé para o outro no chão do
elevador.
— Por causa da Alice. Allison. Alice. É muito parecido, sabe? —
Podia notar que ela estava olhando para mim. Queria que eu achasse a
sacada engraçada e esperta. Qual é, Buddy, qual é...
— Ah! Você é a voz da Alice Angel! — disse mais alto do que devia
quando o elevador chegou ao meu andar.
Allison riu.
— Sim! Bom, parece que essa é a sua descida. Foi um prazer te
conhecer, Buddy. — Ela me ergueu a pequena mão enluvada e eu logo a
segurei com a minha, bastante suada, sacudi uma vez e praticamente saí
correndo do elevador em direção ao Departamento de Artes.
Não a vi mais desde então e, francamente, fiquei aliviado com isso.
Comecei a ver a Dot com mais frequência. Desde aquela nossa
aventura estranha, ela decidiu que éramos amigos e embora eu não tivesse
entendido exatamente por que ela decidira isso, também não liguei. Era
legal quando ela vinha me procurar no almoço. Ou me mostrar um novo
roteiro no qual estava trabalhando e começava a explicá-lo para mim ao
invés de simplesmente me entregar e ignorar, como os outros escritores
faziam. Talvez fosse porque tínhamos quase a mesma idade. Talvez fosse
porque, mesmo que ela de fato pudesse escrever e não fosse só um office-
boy como eu, parecia que só pegava a parte mais chata do trabalho do
Departamento de Redação e estava na base da pirâmide, assim como eu.
No geral, ela só corrigia a ortografia e gramática, pelo que pude notar. Mas
no almoço, vinha sentar na minha mesa, no canto escuro do Departamento
de Artes, enquanto os canos mais acima rangiam e chiavam, e me contava
tudo sobre as várias diferentes histórias do Bendy que tinha bolado.
— Fiz uma bem legal que ele é um cowboy — disse ela, dando uma
mordida no sanduíche.
— Eu gosto de cowboys — respondi.
Talvez fosse o seu instinto lá das entranhas sobre mim o que nos
tornou amigos.
Eu não ligava. Era bom ter uma companheira.
Mas a pessoa que eu não tinha visto nem uma única vez aquele
tempo todo era o Sr. Drew. Eu entendia que ele era ocupado. Estava no
comando da coisa toda. Não esperava que ele fosse aparecer para ver como
eu estava pessoalmente. Ou me convidar para almoçar. Ou qualquer coisa
desse tipo. Mas cheguei a pensar que talvez, sei lá, talvez ele fosse querer
me acompanhar pelo menos uma vez depois de ter me contratado. Talvez
eu só estivesse imaginando coisas, como sempre, mas achei mesmo que ele
tinha gostado de mim.
— É como é o Sr. Drew — disse Dot.
Ela tinha me convencido a dar uma passada no pub do outro lado da
rua depois do trabalho. Era um lugarzinho pequeno e enfurnado de gente
que ficava descendo um lance de escadas e era claramente frequentado por
muitos tipos que gostavam de curtir depois do trabalho. O lugar era cheio
de homens e até algumas mulheres espremidos no bar e sentados nas
poucas mesas perto da porta e mais aos fundos. O ar ali era tão espesso
com fumaça de cigarro que me fez tossir à princípio. Dot tinha dezoito
anos, então podia beber, mas fiquei um pouco aliviado quando, ao invés
disso, ela pegou um refrigerante. Me ajudou a não me sentir tão bebêzão.
Nós pegamos nossas bebidas com o barman e encontramos um lugarzinho
junto à parede.
— Como assim, “como é” o Sr. Drew? — perguntei, quase gritando
por cima do barulho.
— É o que ele faz: desaparece. Apenas faça o seu trabalho, é só com
o que precisa se preocupar.
Suspirei, mas sabia que a Dot não tinha ouvido. Me inclinei para
falar em seu ouvido:
— Esse é o problema. Não estou fazendo o trabalho que quero fazer.
Preciso que ele diga à Sra. Lambert para me deixar desenhar.
Dot sacudiu a cabeça e me abriu um pequeno sorriso.
— Você não precisa de permissão, Buddy — retrucou ela. — Só vai
lá e faz. Desenhe.
Sacudi a cabeça.
— Não. Não, eu não tenho tempo. Fico correndo de um lado para o
outro o dia todo. Você sabe disso.
— Então faça em casa, desenhe algumas coisas do Bendy. Mostre à
Sra. Lambert.
No quê?, perguntei a mim mesmo. Com o quê? A Dot não entendia.
Claro, eu tinha um lápis e uns papéis velhos, mas precisava das ferramentas
certas. O papel do estúdio era espesso e poroso, absorvia a tinta. Não podia
simplesmente entregar um desenho feito atrás de um recibo do mercado.
Ou pelo menos não queria, não queria que vissem como gastávamos pouco
com comida.
— Eu... não posso...
Dot olhou para mim. Já estava me acostumando com o olhar àquela
altura. Então só olhei de volta. Se ela pudesse ler a minha mente, se
pudesse descobrir qual era o problema sem que eu tivesse que dizer a ela,
seria ótimo.
E então, ela o fez.
Não de verdade, é claro. De alguma forma, ela sempre conseguia
saber o que as pessoas realmente estavam pensando, não o que diziam estar
pensando.
Ela não disse nada. Só pôs a mão no bolso e me passou sua chave.
— Pega emprestada. Vou deixar na minha mesa de agora em diante,
caso você precise outra vez.
Eu não peguei, só olhei para ela.
— Você quer que eu use isso? — disse, devagar.
— Sim.
— Para...?
— Para arranjar os materiais certos, Buddy. Arranjar um pouco de
papel e tinta.
Sacudi a cabeça.
— Isso é roubo.
— É pegar emprestado. Afinal, você vai estar fazendo isso pelo bem
do estúdio. No seu próprio tempo, claro. E você também quer mostrar um
pouco de iniciativa, não é? É assim que se faz isso.
Por um lado, ela estava certa, não parecia ser nada demais. Não era
como se eu fosse pegar as coisas e então vender para as crianças do bairro
ou algo assim. Por outro lado...
— Pense a respeito — disse ela.
Coloquei a chave no bolso depressa.
— Você é uma má influência — disse, em meio a uma risadinha.
Dot deu de ombros, como sempre fazia.
— Talvez esteja mais para uma influência pragmática. Eles te
contrataram para um trabalho. Então faça o seu trabalho.
Pragmática. Não conhecia essa palavra na época. Procurei o que
queria dizer depois. Pragmática. Era alguém que lidava com as coisas de
forma “sensata”. Sem usar a emoção. Fazendo uma escolha por praticidade.
Não achei que concordava com ela com relação a isso, mas queria.
— Vou pensar.
E pensei.
Pensei a respeito disso a noite toda, deitado ao lado da figura ossuda
do meu avô, assobiando ritmicamente pelo nariz enquanto dormia. Devo ter
apagado em algum momento, mas senti que tinha passado horas acordado,
pensando. Pensando sobre viver assim, com a minha mãe, agora com o meu
avô. Dormindo ali, na cama grande. No quarto grande. Num apartamento
que mal comportava uma única pessoa, menos ainda uma família. Com
todas as outras famílias no meu prédio morando em cinco ou mais pessoas.
Aquele quarto grande que costumava pertencer aos meus pais. Até que o
meu pai morreu e aí ele passou a ser meu.
— Você já está tão alto, Buddy — a mãe tinha dito. — Não preciso
de um quarto tão grande.
Alto como ele costumava ser alto.
Imaginei mais quartos. Imaginei um apartamento que não absorvesse
o calor e te sufocasse lá dentro. Imaginei ter um terno. Não podia pegar o
do meu pai emprestado. Não podia colocá-lo. Simplesmente não podia.
Eu nunca teria mais quartos e um terno se continuasse sendo um
office-boy. Já era velho demais para ser um entregadorzinho.
E de toda forma, o estúdio tinha tanto papel e tinta que só faltava se
afogar nela. Como o Sammy. Coberto de tinta. Era tanta tinta que
aparentemente podiam até passar por canos.
Quando acordei de manhã, decidi que sabia o que fazer. A Dot estava
certa. Era a escolha pragmática.
Era a única escolha.
CAPÍTULO SETE

O armário de suprimentos artísticos ficava num corredor logo atrás


da minha mesa, mas eu estava com muito medo de ser pego. Então recorri
ao único outro lugar onde sabia que havia suprimentos do Departamento de
Artes, quer Sammy aprovasse isso ou não: o depósito de partituras no
Departamento de Música. Era uma vantagem. Ser um office-boy queria
dizer que todos estavam acostumados comigo andando para lá e para cá em
diferentes partes do estúdio, fazendo o que quer que estivesse fazendo.
Imaginei que isso tornaria a minha tarefa bem fácil. Mas ainda queria
esperar pelo almoço, quando estaria sozinho.
E assim o fiz.
Esperei uns cinco minutos, garantindo que ninguém fosse voltar de
repente porque tinha esquecido o chapéu ou coisa do tipo. Então me
levantei da minha mesa e desci até o Departamento de Música, através do
sinuoso aglomerado de corredores, e cheguei ao depósito. Dei mais uma
olhada no corredor por onde tinha vindo e então para o outro lado, que
levava... bem, eu não sabia aonde levava. Nunca tinha ido mais longe que
no depósito antes e imaginava que devia acabar levando a algum tipo de
beco sem saída. Parando para pensar, aquele lugar parecia até um labirinto.
Talvez houvesse mais alguma coisa em meio às sombras. Sorri pensando
que talvez houvesse uma esfinge ou algo do tipo, guardando uma entrada
secreta, interrogando os funcionários e decidindo se os deixaria passar.
Não. Chega de ficar imaginando coisas. Para com isso, Buddy! Eu
rapidamente destranquei a porta do depósito, entrei e puxei a corrente para
acender a luz. Me abaixei e peguei um pequeno maço de papel branco,
espesso e poroso. A diferença na qualidade de diferentes tipos de papel era
incrível. Nunca tinha pensado muito a respeito antes de trabalhar ali. Então
procurei em volta pela tinta. Tinha uma caixa de papelão no chão e eu a
abri com cuidado. Lá estavam elas, pequenas garrafinhas de vidro cheias de
preto. Tirei uma de lá, todo animado. Ainda precisava de uma caneta. Foi
quando estava vasculhando as prateleiras estreitas que eu ouvi as vozes.
Congelei no lugar e fiquei escutando. É de se pensar que como tenho
orelhas grandes, eu teria uma audição um pouco melhor, mas o jeito com
que elas se destacavam nunca pareceu fazer diferença. Mas eu pelo menos
podia dizer, como qualquer um provavelmente poderia, que as vozes
estavam vindo da parte escura do corredor, não do Departamento de
Música. Estava começando a ficar ansioso. Não podia ser pego; se o fosse,
com certeza seria demitido. Eu precisava do emprego e estava começando a
me arrepender de verdade de fazer aquilo.
Me joguei dentro do depósito e fechei a porta atrás de mim. Então
puxei a corrente da luz e fiquei completamente parado com um braço cheio
de papel em meio à escuridão total. As vozes foram ficando mais altas e
agora eu também conseguia ouvir passos. Eles estavam quase em frente à
minha porta quando então pararam. Ouvi o som de uma briga.
— Não me segure outra vez, Sr. Lawrence — disse uma voz severa
que eu não reconheci.
— Então escute quando eu falo com você! — Essa definitivamente
era a voz de Sammy, essa eu conhecia bem. Era mais baixa que os berros
frenéticos que ouvi no nosso primeiro encontro, mas parecia um pouco
tensa. Sempre com um quê irritado nela.
— Eu escutei, mas não acredito em você — disse a outra voz.
— Por que não? — O jeito como ele falou foi quase um guincho.
— Eu vi você andando às escondidas na minha estação de trabalho.
Vi você na máquina. Na última sexta, você perguntou ao meu funcionário
onde nós guardamos a tinta. Então não me venha com essa história de
inocência. Vou falar com o Sr. Drew.
— Tom, qual é, por que eu iria querer a sua tinta? — perguntou
Sammy.
Tom... Eu ainda não sabia de quem se tratava.
— É Sr. Connor — respondeu Tom, a voz fria.
— Por que não posso chamá-lo de Tom?
— Porque não somos amigos. E você me dará o respeito que eu
mereço. — Houve então uma longa pausa. Não conseguia decidir se eu
queria que os dois avançassem pelo corredor de uma vez ou que ficassem
ali para que eu ouvisse mais. Quando Sammy não disse nada, Tom
acrescentou: — Qual o problema, Sr. Lawrence? Não está acostumado a
dar respeito a alguém como eu?
— O que quer dizer com isso, “alguém como você”? — O tom de
Sammy tinha ido de furioso à ameaçador.
— Você sabe o que quero dizer — respondeu Tom.
Houve uma longa pausa.
— Me deixe em paz — disse Sammy. Ouvi o som de passos à
medida em que ele marchava de volta para a parte escura do corredor.
— Deixe a minha tinta em paz! — exclamou Tom, atrás dele.
Eu subitamente fiquei muito consciente do pequeno tinteiro em
minhas mãos. Parecia ter ficado muito mais pesado que um momento antes.
Também notei quão alta soava a minha respiração naquele pequeno espaço
confinado. Não fazia ideia que tinta era algo tão importante. E que era tão
importante para Tom Connor.
Tom bufou do lado de fora da minha porta e então finalmente ouvi
seus calçados pisando com força em direção ao corredor escuro. Continuei
parado, esforçando-me para ouvir mais passos. Para ver se um deles ia
voltar. Mas quanto mais esperava, me dei conta, mais provável era que
alguém acabasse aparecendo e também tinha o fato de que o almoço
provavelmente já estava para acabar. Então eu não tinha escolha. Abri a
porta com todo o cuidado.
Ninguém.
Me virei depressa e peguei a primeira caneta recarregável que
consegui encontrar. E então saí de lá, trancando a porta atrás de mim,
correndo de volta para a minha mesa e escondendo os suprimentos na
lixeira embaixo dela. Fiquei lá sentado, imóvel por um momento, e então
respirei fundo. Estava mais assustado que no início. Claro, roubar não era
algo que eu fosse fã, mas eu realmente nunca achei que tinta fosse algo tão
importante. Não do jeito que Tom fazia parecer.
Senti a chave no meu bolso.
Me levantei e segui até o elevador, que imediatamente se abriu.
Jacob saiu dele, voltando do almoço.
— E aí, Buddy — disse ele, enquanto passava, todo casual, como se
não houvesse nada de estranho acontecendo no estúdio.
Provavelmente porque ele não sabia.
Provavelmente porque eu estava pensando demais no assunto.
Desci um andar até o Departamento de Redação e por sorte encontrei
Dot na mesa dela, seu sanduíche desembrulhado diante de si, sua cabeça
tão inclinada sobre o papel que seu nariz praticamente encostava nele.
Não tinha certeza se era certo interrompê-la, mas ela tomou a decisão
por mim. Com um rápido movimento, ela subitamente se ergueu e estava
olhando para mim.
— Uou, você me assustou — disse, recuando um passo.
— Eu assustei você? Era você que tava me espiando — respondeu
Dot, direta como sempre.
— É, tem razão.
— O que tá pegando? — perguntou ela, olhando para mim
atentamente, como se estivesse tentando ler o meu cérebro.
— Eu, uh... — Olhei por cima do meu ombro, mas não havia
ninguém por perto. — Eu queria devolver, você sabe.
Dot assentiu e abriu sua gaveta. Eu rapidamente coloquei a chave lá
dentro e ela se curvou, pondo-a em meio às páginas de um livro. A Obra
Completa de Sir Arthur Conan Doyle, dizia na capa, em letras douradas.
— Obrigada.
Fiquei ali parado. Não conseguia decidir se devia contar a ela o que
tinha escutado.
— E aí, pegou o que precisava? — perguntou ela, após um momento.
— Sim. — Eu não sabia o que dizer. Talvez só estivesse em pânico
porque agora era um ladrão.
— No que está pensando, Buddy? — perguntou ela, recostando-se
em sua cadeira outra vez.
Tá bom, vai.
— Você sabe alguma coisa sobre um homem chamado Tom Connor?
— perguntei, a voz baixa.
Dot pensou a respeito por um momento.
— Acho que não.
— Bom, eu ouvi ele e o Sammy falando sobre tinta.
— Tinta?
— É, parecia que esse tal de Tom achava que o Sammy estava
roubando tinta. — Me lembrei então de outra coisa. — E ele também disse
alguma coisa sobre uma máquina.
— Uma máquina? — Dot franziu as sobrancelhas, olhando para
mim. — Que tipo de máquina?
— Não sei. Eu só fiquei curioso porque, bom, como você sabe, eu...
— Eu abaixei minha voz num sussurro, mesmo não havendo ninguém por
perto. — Eu acabei de roubar um pouco de tinta. E estou preocupado que
isso possa ser mais grave do que pensamos.
Dot sacudiu a cabeça.
— Não, isso é bobagem.
Eu não gostei disso. Não era bobagem. Ela não estaria pensando isso
se tivesse ouvido o que eu ouvi.
— Vou ver se descubro mais a respeito — disse ela.
— Não precisa, só queria saber se você sabia — disse. Mas não com
muita convicção. Dot era realmente muito boa “descobrindo mais” sobre as
coisas e qualquer ajuda ali seria muito bem-vinda.
— Não, eu quero. — Ela então olhou por cima do meu ombro e eu
me virei. Mike, um dos escritores, tinha acabado de sair do elevador. — Me
avise o que a Contabilidade tem a dizer, mas não tem pressa — disse ela,
em voz alta, e eu logo percebi que agora estávamos fingindo.
— Claro.
Dei meia-volta e passei por Mike, que me olhou de canto de olho
enquanto tirava a jaqueta e se sentava em sua mesa. Ele abaixou a aba de
seu chapéu e empurrou a cadeira para trás, sustentando seu peso nas pernas
traseiras. Pegando algo em que estava trabalhando, começou a ler o que
havia escrito.
Eu voltei ao Departamento de Artes bem a tempo de ser mandado
numa tarefa real no Departamento de Música. A última coisa que queria
fazer era ver Sammy, mas ele felizmente ficou na dele, sentado em sua
banqueta no posto de regente, revisando anotações e resmungando. Ao lado
dele, havia um frasco de tinta pela metade.
Normalmente, eu nunca prestaria muita atenção em algo assim, mas
agora, bem, agora eu a fitei por um momento. Pensando comigo mesmo.
Eu sacudi a cabeça e logo deixei a pasta que me fora dada na caixa
de entrada junto à porta e me virei para partir.
Talvez eu devesse perguntar. Talvez tivesse um jeito de perguntar.
Me virei de volta.
O frasco de tinta agora estava vazio.
Como?
— O que você quer, Departamento de Artes? — perguntou Sammy,
subitamente erguendo o olhar para mim.
— Nada! Só deixei uma pasta pra você — disse, recuando às pressas.
— Fantástico — respondeu ele, olhando de volta para seu trabalho.
Eu imediatamente fui embora, me sentindo terrivelmente perturbado.
Não porque ele me pegou de surpresa. Estava acostumado com o fato de
ele ser imprevisível. Também não pelo que tinha ouvido ele dizer mais
cedo. Foi porque eu podia jurar que, quando ele se virou para olhar pra
mim, tinha uma pequena mancha preta no canto direito da boca dele.
CAPÍTULO OITO

Cheguei em casa cedo o suficiente para me juntar à mãe e ao meu


avô no jantar.
— Bom ver você, Buddy — disse a mãe, dando-me um grande
abraço enquanto colocava meu prato diante de mim.
— Obrigado. Como vai o Sr. Schwartz? — Estava tentando não fazer
careta enquanto ela bagunçava o meu cabelo.
— Ah, ele está bem. Como vão as coisas no estúdio?
Não achava que o Sr. Schwartz estivesse “bem”, mas as coisas no
estúdio também não estavam lá tão bem. Mas era meio isso o que sempre
dizíamos. Era a nossa rotina. Quando a vida não é fácil e os dias são longos
e custosos, você não quer entrar muito nos detalhes. Então é isso que você
diz. E segue em frente.
Depois disso, ficamos lá sentados, em silêncio. Toda uma conversa
sobre absolutamente nada. Incluindo meu avô, que ficou apenas quieto,
enfiando comida na boca.
Bem divertido.
Comi o mais rápido que pude e então corri para o meu quarto. Tinha
que pegá-lo para mim antes que meu avô o fizesse. Me sentei no chão e pus
minha tinta e papeis roubados mais à frente. Peguei uma placa e a apoiei no
parapeito da janela. Não era tão grande quanto uma mesa, mas era uma
superfície sólida o suficiente e eu a usava para desenhar desde que era
criança. Tinha sorte que as janelas eram baixas do jeito que eram. E que
meu corpo era alto do jeito que era.
Hora de desenhar.
Sim.
Dot, você sabe muito bem como é encarar uma folha em branco. Sei
que escritores tem a mesma sensação. Começa empolgante, mas conforme
os segundos passam, os minutos, a sensação começa a mudar. Começa a
ficar ruim. Você vai ficando ansioso e quase consegue sentir o papel rindo
da sua cara.
Não o tempo todo. Mas parece acontecer bem quando você precisa
desenhar alguma coisa. Essa sensação de pressão.
Não é nada divertido.
Eu estalei o pescoço e joguei o cabelo que me cobria a testa para trás.
Ele ficou parado nessa posição, molhado de suor. Mal podia esperar que
aquele verão acabasse. Tirei minha camisa de botão e fiquei ali sentado só
com a camiseta de baixo. Era mais fresca. Só um pouco. Bem pouco.
Só começa logo a desenhar. Desenhe qualquer coisa.
Bendy Cowboy.
Ela brotou na minha cabeça assim, de repente. A ideia da Dot. Bom,
ela certamente precisava de imagens para acompanhar a ideia. E eu gostava
de cowboys.
Sorri comigo mesmo e comecei a desenhar. Era a minha primeira vez
fazendo alguma coisa do Bendy e fiquei surpreso com como ele era mais
difícil de desenhar do que eu imaginava. Ele parecia tão simples de fazer.
Uma cabeça redonda, dois olhos, uma boca. Nem mesmo um nariz com que
se preocupar. Narizes podem ser complicados.
Mas por algum motivo, ele toda vez ficava meio torto.
Parei. E então tentei outra tática. Comecei a desenhar o cavalo que
queria que ele montasse.
Também não foi fácil. De alguma forma, o corpo parecia atarracado
e rechonchudo, como um burrico ou um cachorro acima do peso. As pernas
também ficaram muito grandes. Assim como a cabeça. Não queria nem
pensar como seria uma cabeça como aquela num cavalo de verdade.
Tentei de novo. Dessa vez, as proporções ficaram um pouco
melhores. Parei e dei uma olhada no papel. Dois Bendys esquisitos e dois
tipos de cavalos.
Não estava ruim. Mas... também não estava bom.
E então não estava mais lá.
O papel subitamente desapareceu por debaixo de mim e eu me virei,
deparando-me com meu avô, que se assomava à minha frente. Não fazia
ideia do que ele estava fazendo, mas, por algum motivo, não disse nada. Só
olhei para ele. Notei que, mesmo num dia como aquele, estava vestindo a
mesma camisa de manga comprida, punhos muito bem abotoados na altura
dos pulsos, calças compridas e suspensórios, meias e sapatos. Não fazia
ideia de como não estava derretendo de calor.
Seus olhos estavam atentamente voltados para o papel.
Ele olhou para mim. Então apontou para mim.
— Você? — perguntou.
— É para o meu trabalho — disse. Será que ele já entendia palavras
como “trabalho”? Ele entendia alguma coisa? Mesmo quando falava sua
própria língua? Estava começando a pensar que talvez as pessoas da
Polônia o achassem tão bizarro quanto eu.
— Montaria? — perguntou, apontando para o papel.
— Sim — respondi, assentindo.
Ele sorriu:
— Cowboy.
Não pensei naquele momento que era legal o meu avô saber o que
era um cowboy. Não pensei nem em questionar como ele sabia. Estava
muito frustrado, com muito calor. Suspirei. Sim, avô, um cowboy. Pode me
devolver o meu papel? Por favor?
Ele o pôs sobre a cômoda mais ao lado e se inclinou, observando-o
de perto. Fez um movimento com os dedos, como quem vai agarrar
alguma, mas não olhou para mim. Não sabia o que ele estava fazendo. E
não tinha tempo para aquilo.
— Dê, dê — disse ele, ainda sacudindo os dedos. Finalmente fez
sentido: ele queria a caneta. Queria desenhar. Aquilo não era só um jogo
pra mim, mas ele estava tratando como se eu fosse uma criancinha com seu
hobby. Não gostei nada disso. Mas ele não ia parar. Eu sabia disso.
Dei a caneta a ele.
Ele sorriu.
— Dê. — Ele me ergueu as sobrancelhas. Então abaixou o olhar.
Suspirei outra vez e lhe passei uma folha em branco.
— Ah! — disse ele. Começou a desenhar na folha enquanto eu me
recostava na parede. Era ridículo.
Olhei pela janela empoeirada. A Sra. Bilski do outro lado da rua
estava pendurando a roupa lavada. Seu gato tentava brincar com as
cobertas que iam balançando. Nunca gostei de gatos.
— Cowboy — disse o meu avô. Estava sorrindo para mim e
apontando para o papel.
Assenti.
Ele deu uma batidinha no papel.
Então com um gemido, me ergui com um empurrão e olhei para ele.
E olhei.
E fiquei olhando.
Me voltei para o meu avô. Ele estava saindo do quarto. Só saindo,
como se nada tivesse acontecido. Como se não tivesse conseguido desenhar
um cavalo perfeito. E um Bendy perfeito. Simples assim. Em menos de um
minuto.
Peguei o papel e imediatamente o segui em meio ao corredor.
— Vô! — Dei a volta e entrei na cozinha. Ele já estava sentado,
olhando para mim como se eu tivesse enlouquecido. Parece que o jogo
tinha virado, não é mesmo?
— Buddy? — A mãe estava de pé junto à pia, também olhando para
mim. Eu a ignorei.
— Como? Como você fez isso? — perguntei a ele, apontando para o
papel.
— Como? — ele me perguntou, confuso.
— Como! — eu meio que gritei, o que o fez se encolher de um jeito
estranho e, embora não tivesse sido minha intenção assustá-lo, eu estava
extremamente cheio de energia. Ele se encolheu em sua cadeira, como se
seu corpo velho e fragilizado estivesse murchando, quase desaparecendo
em meio a ela, mas ainda mais que só isso.
— Buddy, por favor — disse a mãe, sua voz em sinal de alerta.
— Sinto muito — disse, sentando-me junto a ele. — É que... é...
bom. É muito bom.
Ele me fitou atentamente e pensou por um momento.
— Você desenha cowboy?
— Não consigo.
— Consegue.
Eu ri de um jeito que não era exatamente uma risada. Estava mais
para um suspiro frustrado.
— É sério, vô, eu não consigo.
Ele se aproximou e tomou minha mão gentilmente com a sua. Era
quente e macia. Examinou meus dedos cuidadosamente, olhando para as
manchas de tinta.
— Consegue.
Sacudi a cabeça. O calor estava começando a mexer comigo e eu
estava me sentindo sobrecarregado e muito cansado. E zangado comigo
mesmo. A única coisa que queria fazer e nem isso conseguia.
— Eu ensino — disse ele.
— Não. — Me levantei devagar. — Não, não precisa.
De que adiantaria?
Segui em direção à porta.
— Aonde você vai? — perguntou a mãe.
— Não sei — respondi. A pergunta permaneceu no fundo da minha
cabeça. Aonde estava indo? O que ia fazer, afinal?
Saí lá fora, mas o ar estava pesado. Comecei a caminhar para os
lados do rio. Precisava sentir a brisa no meu rosto, precisava não me sentir
tão completamente sufocado. Aumentei a velocidade e logo percebi que
estava correndo. Estava fugindo? Correndo em direção a alguma coisa?
O rio me saudou e eu consegui respirar outra vez.
Pelo menos por ora.

No dia seguinte, me sentei no meu cantinho escuro e foi a primeira


vez que não me importei por estar tão longe do resto da equipe. Tirei o
desenho do Bendy Cowboy do meu bolso, o abri sobre a mesa e comecei a
desamassá-lo o melhor que pude usando as mãos. Não era só o fato do meu
avô ter desenhado o cavalo perfeito. Era mais que isso. Era a expressão no
rosto do Bendy, confiante e orgulhoso. Não era só aquele sorriso plástico
que eu tinha visto nos grandes recortes publicitários armazenados pelo
estúdio. Tinha personalidade, mesmo tendo tão pouco com o que trabalhar.
Só olhos e uma boca. Tinha também uma sensação de movimento, como se
estivesse cavalgando à toda velocidade. E tinha também a parte cômica da
sua corda de laçar ter ficado toda emaranhada num cacto.
Ele tinha feito tanto com tão pouco. Eu não sabia como. Precisava
descobrir. Para que pudesse impressionar o Sr. Drew.
— O que é isso? — perguntou uma voz por cima do meu ombro.
Ergui o olhar. Era Jacob. Ele se inclinou e olhou para o desenho.
— Olha só, garoto, nada mal. — Ele me abriu um sorriso e se
ergueu.
— Obrigado — disse. Sabia que tinha que explicar para ele, dizer
que não tinha sido eu quem tinha feito. Mas era a primeira vez que alguém
naquele lugar de fato me dizia uma coisa boa. Ele assentiu, mas não foi
embora, então imaginei que precisava dizer mais alguma coisa. — Fiz
ontem à noite.
— Ficou de arrebentar a boca do balão — disse ele.
— Isso é uma coisa boa? — perguntei.
Jacob sorriu.
— Com toda a certeza. — Ele se virou. — Ei, Sra. Lambert!
— Não, por favor — disse, mas era tarde demais. Ela ergueu o olhar
de sua mesa do outro lado da sala, descruzou as pernas longas, se levantou
e marchou até nós com seu par de calças acentuadamente apertadas.
— O que houve? — perguntou. A ruga entre suas sobrancelhas
parecia ainda mais profunda que de costume.
— Dá uma olhada no que o nosso office-boy fez ontem à noite —
disse Jacob, apontando para o desenho.
Tentei sorrir de um jeito mais relaxado enquanto Jacob saía da frente
para que ela pudesse ver por cima do meu ombro. Mas estava começando a
entrar em pânico. E se eles me fizessem recriar o desenho ou coisa do tipo?
— Ficou decente — disse a Sra. Lambert, franzindo o cenho
enquanto acenava com a cabeça em aprovação.
— Eu fiz ontem à noite — disse, sentindo-me um pouco aliviado.
Mas também não conseguia dizer muito mais que isso.
— Você estava aqui? — Ela olhou para mim, confusa. — Eu estava
aqui.
— Não — disse, gaguejando enquanto procurava pelas palavras. —
Não, em casa. No meu tempo livre. — Tinha soado legal, né? Soava como
algo que alguém que trabalhava duro diria. Eu trabalhava mesmo no meu
tempo livre.
A Sra. Lambert ficou ali parada por um momento. Então se
aproximou e pegou o desenho. Mas não estava olhando para o desenho em
si, estava olhando para o papel, sentindo-o entre o dedo indicador e o
polegar.
— Diga a verdade, Buddy. Onde conseguiu o papel e a tinta?
Ah. Certo. A verdade. A verdade era...
Um grande silêncio se sucedeu enquanto eu pensava comigo mesmo
qual realmente era a verdade.
— Compreendo. Buddy, nosso estoque estava baixo hoje e você sabe
tanto quanto todos aqui que o dinheiro está apertado. Não somos um time
de beisebol. — Ela passou o desenho de volta para mim.
— Um time de beisebol? — perguntei. Notei que Jacob não estava
mais do meu lado. Estava voltando lentamente para sua mesa.
— Você não tem direito a três strikes aqui.
Eu ainda não tinha entendido.
— Sinto muito, Buddy, mas isso é simplesmente inaceitável. Roubar
não é permitido e o Sr. Drew é muito rígido com relação a isso. Você não
pode fazer isso, Buddy.
Tá bom, claro. Eu entendo, eu entendo. Não ia fazer outra vez.
— Não vou fazer outra vez.
A Sra. Lambert sacudiu a cabeça e então olhou para os canos que
passavam pelo teto sobre a minha cabeça.
— Sinto muito, Buddy. Tenho que levá-lo ao Sr. Drew.
Meu estômago pareceu cair do corpo. Podia quase ouvir na minha
cabeça, ele caindo no chão em meio a um baque molhado.
Só consegui me sentir vazio com tamanha injustiça. Era só um pouco
de papel e tinta. Mas tá, não era como se eu pudesse comprar papel e tinta.
Tinha um custo. E pelo visto era um custo muito maior do que eu tinha
imaginado.
— Vamos. — A Sra. Lambert fez sinal para que eu me levantasse.
Assim o fiz e a segui em direção ao elevador. Podia sentir as cabeças se
virando para espiar, mas não olhei para trás. Estava muito envergonhado.
Ficamos em silêncio no elevador à medida que ia subindo
ruidosamente até o topo.
— Eu... eu sinto muito — disse. Me dei conta de que ainda não havia
dito. Era verdade, mas será que talvez fizesse diferença se eu realmente
sentisse?
— Eu sei. É difícil. As coisas não são mais como costumavam ser
aqui. Temos que proteger cada dólar. Mas ainda mais que isso, temos que
ter confiança.
Assenti. Não é como se não tivesse notado que com certeza pareciam
estar contando as moedas por ali. Se tinha uma coisa da qual eu entendia,
era isso. Pegar papel usado do cesto de lixo para usar como rascunho, um
único zelador para o estúdio inteiro, todas as salas vazias e os cantos
empoeirados. Sim, eu tinha notado. Mas ainda não tinha entendido. Até
aquele momento.
A Sra. Lambert puxou a grade para o lado quando chegamos ao
escritório do Sr. Drew e me deixou sair primeiro. Fomos até a Srta.
Rodriguez, sentada atrás de sua mesa, datilografando naquele seu passo
apressado, exatamente como da primeira vez que vi o Sr. Drew.
Da única vez que vi o Sr. Drew.
— O Sr. Drew tem tempo para nós? — perguntou a Sra. Lambert.
A Srta. Rodriguez ergueu o olhar, mas não parou de datilografar.
Ficaria impressionado se não estivesse me sentindo tão para baixo.
— Cinco minutos — disse ela. E, sem parar de datilografar ou
levantar ou qualquer outra coisa, gritou bem alto: — A Sra. Lambert está
aqui com aquele novo office-boy.
— Aquele novo o quê? — O Sr. Drew gritou de volta com aquela
sua voz rouca.
— O garoto. — Ela olhou de volta para mim, examinando-me de
cima a baixo. Eu instintivamente enfiei a camisa mais fundo dentro das
calças, ajeitando a postura dos ombros.
— Que garoto? Esquece, mande entrarem! — gritou novamente o Sr.
Drew.
A Srta. Rodriguez fez um gesto com a cabeça em direção à porta e
desviou o olhar de volta para o que estava fazendo. Olhei para a Sra.
Lambert, que não pareceu achar nada disso estranho e, seguindo em direção
à porta, a abriu.
— Sr. Drew, precisamos conversar — disse ela.
— Claro, claro, podem entrar — ouvi o Sr. Drew responder. A Sra.
Lambert se virou para mim e me lançou um olhar que eu sabia que
definitivamente significava que era para segui-la.
Assim o fiz.
E nós entramos no escritório do Sr. Drew.
Ele estava sentado atrás de sua grande mesa, com uma grande pilha
de papéis espalhados por toda parte. Tudo parecia ainda mais bagunçado
que da primeira vez que eu vira o lugar, se é que era possível. As persianas
da janela estavam abaixadas dessa vez, sem vista para a Broadway agora.
Fazia a sala parecer menor, mais apertada, desconfortável.
Ou talvez fosse porque eu estava me sentindo desconfortável.
— O que é isso tudo? — disse ele, sem erguer o olhar, atentamente
focado num pedaço de papel diante de si.
Era a primeira vez que eu via o homem desde que ele me contratara.
Desde que lhe trouxera seu terno. E agora estava a ponto de ser demitido. O
que aconteceria depois? O Sr. Schwartz me aceitaria de volta? Eu não
acreditava nisso. A mãe ficaria tão decepcionada comigo.
— Sinto muito, Sr. Drew, mas esse seu novo garoto foi pego
roubando — disse a Sra. Lambert.
— Roubando? — Diante disso, ele finalmente levantou a cabeça. —
O garoto! — disse, apontando para mim, lembrando-se que eu existia. Isso
não me fez me sentir mal, ser esquecido. Não, nem um pouco.
— Sim, senhor, Buddy Lewek. Infelizmente, ele foi pego roubando
e, de acordo com as regras... bem, eu o trouxe ao senhor para que possa
resolver o assunto. — Sua voz soava cansada, como se aquela fosse a
última coisa que queria estar fazendo agora. Eu não a culpava.
— Ah — disse o Sr. Drew. — Bom, certo, Buddy, o que tem a dizer
em sua defesa? — Ele franziu a testa para mim e suas grossas sobrancelhas
se encontraram ao topo do nariz para terem uma conversa privada. Eu
imaginei olhos nelas, com linhas onde elas também estariam franzindo as
próprias testas.
A Sra. Lambert me deu um pequeno empurrão.
— Vamos.
Olhei de volta para ela. Ela não parecia lá tão brava, apenas tinha que
fazer aquilo.
— Eu queria desenhar — disse, virando-me novamente para o Sr.
Drew.
A Sra. Lambert suspirou pesadamente atrás de mim.
— Ele roubou suprimentos e os levou para casa consigo. Você sabe
que não podemos arcar com os custos de...
— Por favor, Sra. Lambert. Que tal começar a me dizer com quais
custos eu posso ou não posso arcar? — O Sr. Drew cruzou os braços em
frente ao peito.
Olhei de volta para a Sra. Lambert e a vi bufar de leve. Ela ia dizer
alguma coisa, mas parou no meio do caminho.
— Estava apenas seguindo às suas instruções, senhor — disse ela,
entredentes.
O Sr. Drew assentiu.
— Eu compreendo, Sra. Lambert. Compreendo. E não podemos
simplesmente deixar a equipe ficar pegando as coisas. Temos um estoque
para cuidar. E é claro que o fato de ele ter entrado num armário trancado...
— Ele me examinou meticulosamente. Não gostei disso. Por um momento,
tinha pensado que talvez ele estivesse do meu lado. Agora, já não fazia
mais ideia do que ele estava pensando. — Pode voltar ao trabalho, Sra.
Lambert. Deixe-me ter uma palavra com o nosso office-boy aqui.
— Sim, Sr. Drew. — Com isso, ela se virou e deixou o escritório,
seus sapatos estalando até o som desaparecer por completo.
O Sr. Drew não se mexeu. Não disse nada. Apenas ficou olhando
para mim daquele jeito que estava olhando para mim.
— Buddy, certo? — disse ele, enfim.
— Sim, senhor.
Ficou parado por mais um momento.
Então.
— Certo, vamos dar uma olhada.
— Uma olhada no quê?
— Você queria desenhar, então vamos dar uma olhada. Vamos ver o
resultado final.
Eu não tinha um resultado final. Só o que tinha era o desenho do meu
avô no meu bolso traseiro.
Levei a mão para trás e o tirei de lá, pondo-o na mão já erguida do
Sr. Drew. Ele o desdobrou e olhou para ele. Depois olhou para mim.
— Feche a porta, Buddy.
Eu fechei a porta.
— Sente-se.
Eu me sentei.
— Existem coisas que eu devo dizer e fazer como chefe. Mas o fato,
garoto, é que eu nunca planejei me tornar o chefe de ninguém. Eu era só
um homem com um sonho. Era só um homem que sabia o que queria e dei
um passo e então mais outro, até que logo já estava dançando, sabe o que
quero dizer?
Na verdade, não.
— Sei — disse.
— Eu devia te dizer que roubar é errado e, acredite, eu não gosto
quando alguém rouba de mim. Mas isso é roubo? — Ele ergueu o desenho.
— Eu...
— Roubo é quando você tira algo de mim. Alguém que diz que algo
é seu quando na verdade é meu. Não tenho muita tolerância com alguém
que tira algo de mim. Acho que nenhum homem tem. Mas quando você faz
algo pelo bem maior? Quando você cria e faz alguma coisa, quando dá um
passo a mais na pista de dança... isso não é roubo. Sabe do que chamamos
isso? — Ele ficou me olhando, cheio de expectativa. Mas, mais uma vez,
eu não fazia ideia do que dizer a ele.
— Não sei, senhor.
— Chamamos de ambição. — Então, o Sr. Drew finalmente abriu
um sorriso, recostando-se em sua cadeira. Não tinha certeza de como ou
por que, mas entendi com isso que pelo menos eu não estava encrencado.
Entendi que, por algum motivo, eu na verdade estava sendo elogiado.
O Sr. Drew olhou para o desenho novamente.
— Isso é bom, Buddy, muito bom. Sabia que você tinha a habilidade,
mas não sabia que tinha a ambição. Você estava impaciente. Entendo isso.
Fui impaciente a vida toda. Você sabia o que queria, então foi lá e pegou.
Também entendo isso. Pelo bem maior.
— Pelo bem maior — repeti. A história que ele estava confabulando
a meu respeito era parcialmente mentira. Eu não era tão habilidoso. Não
conseguia desenhar daquele jeito. Me senti culpado por um momento, até
que me dei conta que a coisa que deixara o Sr. Drew impressionado na
verdade também fazia parte da mentira. Ele só não sabia disso. Mostrar a
ele o desenho que meu avô tinha feito me ajudara a salvar o meu emprego.
Tinha sido pelo bem maior.
— Gosto de você, Buddy. Peço desculpas por não ter aparecido
muito, tenho trabalhado num projeto. Tem sido... complicado. Nem tudo
funciona logo na primeira tentativa, sabe?
Isso eu definitivamente sabia.
— Sim, senhor.
— Tem sido muitas noites em claro, com reuniões e investimentos
em tecnologias que admito que ainda não compreendo por completo. Pode
acreditar quando digo que na primeira vez que vi um filme, achei que fosse
mágica. É assim que eu sou com novas invenções. É tudo mágica para
mim. — Ele suspirou. Então, como se tivesse se decidido a respeito de
alguma coisa, se levantou. — Então não veja minha ausência como um
sinal de que não gosto de você, Buddy.
— Não vejo, senhor. — Não mencionei como ele parecia ter se
esquecido completamente de quem eu era apenas um momento antes.
Provavelmente porque não queria pensar a respeito. Queria acreditar nele.
— Bom. Venha comigo. Tenho algo para lhe mostrar.
Me levantei e o segui porta afora. Achei que estávamos indo para o
elevador, mas ele virou no corredor depois da mesa da Srta. Rodriguez. Eu
o segui até uma pequena despensa que ele destrancou com um sorriso no
rosto, puxando então a corrente para acender a lâmpada fosca e empoeirada
em meio ao teto. Havia uma série de latas de sopa de bacon novinhas em
folha em uma prateleira mais ao lado e um recorte de Alice Angel. Junto à
parede dos fundos, havia uma pilha de caixas amontoadas até o topo e o Sr.
Drew logo começou a desempilhá-las.
— Poderia me dar uma mão aqui, Buddy? — disse, passando-me
uma caixa. Era grande, mas leve. Quase como se estivesse vazia. Eu a
coloquei ao lado e peguei a próxima, depois mais uma, e foi quando notei
um buraco atrás delas. Quando tiramos a última caixa, o Sr. Drew se voltou
para mim com um dedo nos lábios e então fez sinal para que eu o seguisse.
Ele desapareceu pelo buraco, em meio à escuridão mais adiante.
Admito, me aproximei com cautela, um pouco preocupado. Devia ter
confiado nele, eu acho, mas aquilo tudo era tão estranho. Tirar um monte
de caixas casualmente de dentro de um armário e depois entrar num buraco
gigante no meio da parede. E quando me aproximei, pude ouvir sons
esquisitos do outro lado. Eram ocos e ecoavam. Vozes?
Mas não podia simplesmente ficar ali parado sem fazer nada. Pensei
na Dot. Pensei em todas as coisas que já tinha feito. Eu conseguia. Além do
mais, quando o seu chefe te diz pra fazer alguma coisa...
Passei pelo buraco e saí numa pequena plataforma de ferro fundido,
meio parecida com uma daquelas escadas de incêndio. Olhei para baixo,
entre os meus pés. O chão parecia bem longe lá em baixo, em meio à
escuridão. Conseguia ver as sombras de cordas balançando suavemente
embaixo de mim.
Em frente, havia uma passarela com um brilho mais ao longe. O Sr.
Drew olhou para mim e eu o segui por ela, segurando firme nos corrimões
em ambos os lados, sem olhar para baixo. Eu não chegava a ter medo de
altura, mas talvez tivesse um pouquinho de medo de altura. As vozes que
tinha ouvido ficaram mais altas agora e me dei conta de que estavam vindo
lá de baixo, mas continuei olhando em frente, para as costas do Sr. Drew e
para o que havia à nossa volta. Agora havia várias cordas, além de alguns
cabos por ali também. Uma cortina escura se abriu mais ao lado.
Nós paramos.
— Eles fecham no próximo final de semana — disse ele, a voz baixa,
e olhou para baixo. Então eu também finalmente olhei para baixo outra vez.
E foi só aí que entendi.
Nós estávamos sobre um palco. Olhei para o palco lá embaixo em
meio aos equipamentos de luz. Bem abaixo de nós, talvez a uns 15 metros
de distância, pude ver dois atores andando em volta num cenário que
parecia uma sala de estar chique. Era legal porque, de onde estávamos,
podíamos ver o topo da parede dos fundos do cenário, então dava para ver
ambos os lados: a parte da frente, coberta com aquele papel de parede
pomposo e com uma grande janela cortada no meio, e a parte de trás, um
amontoado de compensados lisos sustentados por suportes de madeira. Os
atores estavam embaixo de luzes bem brilhantes que contrastavam bastante
com a escuridão do outro lado. Em meio às sombras, havia dois assistentes
de palco sentados em caixas de maçãs, ambos vestidos de preto, sem fazer
muita coisa.
— Eu gosto de vê-los assim — disse o Sr. Drew.
— Sim, é legal — respondi na mesma voz baixa.
— Ah, é mais que legal, Buddy — respondeu ele.
— É?
O Sr. Drew se inclinou sobre o corrimão da passarela, ainda olhando
para baixo em meio ao labirinto embaralhado de cabos e cordas.
— Eles têm papeis a cumprir. Eles fazem tudo igual em todos os
shows. Todo padrão que fazem no palco é repetido. — O público riu
naquele instante, uma onda abafada contra a cortina baixa diante de nós. —
Ouviu isso?
É claro que tinha ouvido.
— Sim.
— O público ri toda vez na mesma parte. Estão enfeitiçados. Eles
não sabem que vão rir exatamente naquele ponto da peça, mas vão. É o
destino deles. — Foi a vez do Sr. Drew rir.
Era interessante ouvir o que ele tinha a dizer. Era verdade. E uma
forma diferente de pensar. Uma forma bizarra, com a qual eu não estava
acostumado.
— Quem está no controle? — ele me perguntou, virando-se então
pela primeira vez para olhar para mim. Olhei de volta para ele. Estava nas
sombras e a expressão no seu rosto era difícil de ler. Não tinha certeza se a
pergunta era retórica, mas tentei dar o meu melhor para responder:
— Os atores? — perguntei.
O Sr. Drew sacudiu a cabeça e olhou para baixo novamente.
— Os atores não, Buddy. Eles precisam ser ditos aonde ir. Lembra?
Eu me lembrava.
— Certo, hm. Acho então que a pessoa que os diz isso?
— O diretor — disse o Sr. Drew.
— Sim, o diretor.
Observamos os atores por mais um tempo. Um deles caiu por cima
de um sofá sem derramar sua bebida e então um alçapão se abriu sob ele,
que desapareceu embaixo do palco. O público riu e aplaudiu.
— Alegria. Diversão. Prazer. É tudo coordenado e cuidadosamente
planejado. Todos sabem disso e todos trabalham juntos. Funciona porque
eles confiam na visão.
Assenti.
— Sabe o que é isso? — ele me perguntou.
— O quê, “visão”?
— Sim.
— Claro.
— E o que é?
Olhei para ele e ele estava me fitando atentamente.
— Ah, uh, é ter um sonho, eu acho. Querer uma coisa e vê-la como
se fosse real. Como quando pessoas falam sobre visões que tiveram, às
vezes religiosas ou às vezes estão doentes e veem coisas e... — parei
porque percebi que estava divagando. Sabia que ninguém gostava quando
eu divagava.
— Continue.
— Mas, uh, o jeito que você tá falando é como ver alguma coisa na
sua imaginação e querer fazer com que aconteça.
O Sr. Drew então abriu um sorriso e estalou os dedos para mim.
— Exato. Tornar seu sonho realidade.
— Sonhos ganham vida — disse, automaticamente. Já tinha visto
isso no pôster do Bendy diversas vezes.
— Eles ganham, Buddy. Eles ganham. — Ele olhou para o palco
outra vez, então eu fiz o mesmo. — Mas isso não acontece sem trabalho. E
ambição. Você tem que lutar pelos seus sonhos. Lutar duro.
Agora eu não conseguia dizer se o Sr. Drew estava falando consigo
mesmo ou não. Mas aí ele parou de falar por completo, então não tive que
me preocupar mais com isso. Num primeiro momento, seu silêncio me
deixou desconfortável, mas me acostumei com ele e comecei a curtir o fato
de que podia assistir mais da peça. Não sabia o que estava acontecendo ou
quem os atores estavam fingindo ser ou sequer porque a plateia ria. Mas,
por algum motivo, assistir daquele ângulo era algo muito fascinante.
Também me dava uma sensação meio que de vazio, uma onde eu me dava
conta de que estava perdendo algo que não sabia que estava perdendo.
Eu nunca tinha visto uma peça. Sempre achei que as luzes da
Broadway e da Times Square eram o suficiente. Meio que como um
quadro, eu acho. Mas também havia magia dentro dos prédios. Nunca tinha
pensado muito a respeito. Até agora.
De repente, meu corpo inteiro foi lançado em frente, minhas mãos se
soltando da barra e meus pés escorregando embaixo de mim. Pensei que eu
ia cair no palco. Bater com a cabeça numa das lâmpadas e bater com tudo
no chão, minhas pernas torcidas embaixo de mim. Foi um pensamento tão
vívido que, por um momento, achei que tinha acontecido. Eu gritei, de
medo e pela dor que não estava realmente sentindo, e então o mundo
recuperou o foco e eu percebi que ainda estava na passarela. O Sr. Drew
estava rindo, rindo muito. Notei então sua mão segurando a parte de trás da
minha camisa. Me segurando.
Olhei para baixo. Os atores estavam olhando para mim. Ou pelo
menos para a escuridão sobre eles. A magia havia parado. Tudo havia
acabado. Pelo menos por ora.
— Desculpe, Buddy, foi uma pegadinha terrível. Não devia ter feito
isso. Mas vê agora o que eu quis dizer? — perguntou o Sr. Drew,
oferecendo-me sua outra mão para ajudar a me erguer.
— O quê? — perguntei. Estava sem fôlego, mesmo sem ter ido a
lugar algum. Ainda estava tentando entender a natureza da pegadinha.
— Quando todos trabalham juntos, tudo funciona perfeitamente.
Quando uma pessoa não o faz, tudo para.
— Você me empurrou? — perguntei.
— Nah. Te joguei rapidinho para frente e depois puxei para trás, só
de brincadeira, Buddy. Como uma iniciação. Sabe como é.
Eu não sabia, mas me senti melhor por ter sido uma piada, por ele
não ter me colocado em perigo de verdade, mesmo sentindo que o havia
feito. Na verdade, era meio engraçado, agora que tinha me acalmado.
Imaginei que devia ter parecido um bobo achando que ia cair para a morte
e gritando daquele jeito. Sendo que estava seguro.
Tão bobo.
— Eu comprei este teatro — disse ele.
— Você o quê?
— Isso. É tudo meu. — Ele fez um gesto com o braço em meio ao
espaço escuro.
— É impressionante. — Foi tudo o que consegui pensar em dizer.
Ele assentiu e deu um passo em minha direção.
— Ainda é um segredo, então não conte a ninguém. Ainda preciso
resolver algumas coisas, mas está tudo mudando, Buddy. Tudo. — Ele pôs
uma mão no meu ombro e olhou intensamente para mim.
— Isso é uma coisa boa — disse, mas foi meio que uma pergunta.
O Sr. Drew sorriu e assentiu.
— Ah, sim, Buddy. É uma coisa muito boa.
CAPÍTULO NOVE

A princípio, não consegui acreditar que não tinha sido demitido. A


Sra. Lambert também não conseguiu acreditar quando voltei lá pra baixo e
me sentei na minha mesa.
— Bem, eu não entendo — disse ela, parada junto a mim. — Acho
que ele gosta de você, hein?
Eu assenti.
Ela também assentiu.
— Bom, tudo bem, eu entendo como é. E você pode ter a confiança
do Sr. Drew, mas ainda vai demorar um tempo para ganhar a minha —
disse, juntando as mãos.
Assenti outra vez.
— Certo — disse ela. — Vá até a Redação e veja se já estão com o
roteiro novo.
Eu me levantei num instante, pronto para mostrar que a fé que o Sr.
Drew tinha em mim não era à toa. Pronto para mostrar à Sra. Lambert que
eu não era alguém com quem tinha que se preocupar.
— Entendido — disse. Imediatamente segui para o elevador.
— Buddy! — Ela me chamou quando saí andando.
— Sim?
— Continue trabalhando no Bendy Cowboy — disse ela. — É
melhor que valha tudo isso. — Sua expressão continuava tão severa quanto
de costume, mas, ainda assim, eu finalmente estava recebendo a minha
primeira tarefa artística. Estava apavorado imaginando se conseguiria fazer
direito, já que nem tinha de fato conseguido fazê-lo pra início de conversa.
Mas estava tão empolgado por não ter sido demitido e por poder desenhar
que não consegui evitar e abri um sorriso gigantesco.
— Sim, senhora!
Passei o resto do dia fazendo atividades de office-boy, o que não
chegou a me incomodar porque eu não podia de fato trabalhar no Bendy
Cowboy. Estava animado por finalmente estar recebendo a chance de
desenhar, de fazer mais que só ficar correndo de um lado para o outro, mas,
ao mesmo tempo, não conseguia fazer o que o meu avô tinha feito e será
que as pessoas não iam notar a diferença na habilidade se eu começasse a
desenhar minhas próprias coisas?
— Então tu tá numa enrascada daquelas — disse Dot, depois que eu
expliquei tudo. Ela tomou um gole de refrigerante e se recostou em sua
cadeira. Não queria admitir nada para ela, mas ela ouvira falar sobre a
minha quase demissão e exigiu que fôssemos ao pub juntos de novo para
poder me passar seu roteiro do Bendy Cowboy e ouvir a história completa.
E eu contei. Era como se não conseguisse esconder as coisas dela.
— É — disse. — Tenho que praticar, mas não acho que vá conseguir
ficar bom da noite pro dia.
A porta atrás de nós se abriu e eu ergui o olhar, deparando-me com
Jacob, Richie e mais uns caras da Contabilidade entrando no bar. Arqueei
um pouco os meus ombros. Não queria ser visto por eles. Mas não sabia
por quê. Talvez me sentisse um pouco intimidado. Eles desapareceram em
meio à multidão pelo bar e eu olhei de volta para Dot.
— Então, descobri mais sobre aquele tal de Tom — disse ela.
— Ah! — Tinha esquecido que perguntara sobre isso para ela.
— Pois é, e até que é bem interessante. Ele trabalha pra uma empresa
chamada Gent. Parece ser um dos bam-bam-bans da empresa. Ele parece
estar trabalhando com o Sr. Drew em algum tipo de máquina.
— Com o Sr. Drew?
— Não sei o que é, não consegui descobrir nem onde está. Mas vou
continuar procurando.
— Que tipo de máquina?
Dot deu de ombros e tomou mais um gole.
— Talvez um jeito mais eficiente de filmar desenhos?
Assenti.
— Talvez.
— Olha só vocês, tão aconchegados! — De repente, Jacob estava se
sentando do meu lado, batendo com sua cerveja na mesa, de forma que a
espuma transbordou e escorreu pelo copo.
Dot revirou os olhos.
— Nesse calor, não ia querer me aconchegar com ninguém. Sem
ofensa, Buddy.
— Pior que é verdade — respondeu Jacob, tirando o chapéu e
secando o suor em sua testa com um lenço estampado. — E aí, Buddy, —
perguntou, — o que tem achado de trabalhar no estúdio?
— Tem sido interessante — respondi.
— Bom, vou te contar: fico feliz que você não tenha sido demitido. E
fico feliz por ter feito aquele desenho. Porque às vezes é difícil ser notado.
Acredite, eu sei. As pessoas vão te subestimar a todo momento, filho. —
Ele olhou para a Dot. — Certo?
— Com certeza. — Ela assentiu.
— Se alguém sabe como é ser ignorado é a mulher e o negro. Pode
confiar na gente com relação a isso. — Ele ergueu o copo para Dot e ela
bateu com o seu no dele. Continuava tão divertida como sempre a via
sendo. Mas, de certa forma, era como se não estivesse se divertindo.
— Você tem uma garota, Buddy? — perguntou Jacob, após beber
um gole.
— Nah — respondi.
— Sério? Um garotão bonito feito você?
— Não estou muito focado nesse tipo de coisa agora — disse. O fato
era que eu não estava nada focado nisso. Claro, tinha uma ou outra garota
lá no bairro que eu era a fim, mas não tinha tempo para chamá-las pra sair...
e também não tinha dinheiro. E agora, com esse novo emprego e tudo
mais... Na verdade, eu me sentia bem desconfortável de falar sobre isso
com pessoas do trabalho. Com qualquer pessoa.
— Dá pra focar em mais de uma coisa de cada vez, sabia? — disse
Jacob.
— Eu sei, mas... eu preciso organizar algumas coisas. — E eu moro
na casa da minha mãe. E divido a minha cama com o meu avô. E preciso
me tornar um artista profissional da noite pro dia.
— Como é a sua vida amorosa, então? — perguntou ele, voltando-se
para Dot.
Ela não disse nada, apenas olhou para a sua bebida.
— Você parece meio tristinha, Sapatinhos de Rubi. Eu disse algo
errado?
Ela riu um pouco diante dessas palavras e então olhou para ele.
— Não me chame assim. E não, eu não tenho uma vida amorosa.
Não estou pronta pra isso.
— Pronta? — perguntei.
Dot respirou fundo.
— Vocês dois. Garotos. Pressionando, sempre fazendo perguntas.
Não gostam de respondê-las, mas adoram perguntar.
— Desculpa — disse a ela. Àquele ponto, toda a conversa já tinha
meio que fugido de mim. Não sabia bem o que estava fazendo ou o que
devia dizer.
— Qual é, Dot — disse Jacob, cutucando-a com o cotovelo.
— Eu disse não, Jacob — disse ela, com firmeza, encarando-o.
— Tá bom, tá bom, eu sei quando não sou desejado. — Ele se
levantou, pegou sua cerveja e tomou mais um gole. — Vejo vocês por aí.
— Ele sacudiu a cabeça como se fôssemos dois doidos e então passou por
entre a multidão, seguindo de volta para a mesa com os outros caras.
Dot olhou para mim por um momento e então apoiou os cotovelos na
mesa, inclinando-se um pouco.
— Não gosto de falar sobre essas coisas.
— Não te culpo — respondi.
Ela fez outra pausa, bebendo então mais um pouco do refrigerante.
Olhou de volta para mim.
— O meu marido morreu na guerra — disse ela, sem rodeios.
— Você foi casada? — perguntei. Sabia que não era essa a questão.
Sabia também que não devia estar surpreso. Muitas garotas do meu bairro,
as que cresceram comigo, já tinham arrumado alguém e eram agora donas
de casa. Mas tinha algo na Dot que parecia... bom, não era igual a elas.
— Não por muito tempo. Éramos namorados no ensino médio. Então
ele fez dezoito e foi recrutado. Nós nos casamos no cartório pouco antes de
ele ter que partir. — Ela girou devagar o que ainda restava do refrigerante
no fundo do copo. — Um mês depois, ele faleceu. E um mês depois disso,
a guerra acabou.
Não sabia o que dizer. Não sabia por que ela estava compartilhando
isso comigo. Ainda mais depois do que disse sobre garotos pressionarem
demais.
— Meu pai morreu na guerra. Bem no início. Em 42. — Foi tudo o
que consegui pensar em dizer. Mesmo que não quisesse pensar a respeito,
pra início de conversa.
Ela então ergueu o olhar para mim e me abriu um sorriso triste.
— Eu lamento, Buddy.
— Também lamento por você. Você quer...?
— Nah, não quero falar sobre isso agora.
Me senti bem desconfortável. Não sabia como continuar com uma
conversa como se as coisas estivessem normais. Não sabia se Dot queria
que eu o fizesse. Não sabia de nada. Como alguém simplesmente mudava
de assunto assim? Era só... mudar?
— Bom, o que você acha que eu devo fazer? — perguntei, só para
tentar.
Dot olhou para mim por um momento. Então:
— Tá falando do Bendy Cowboy?
Assenti, aliviado por estarmos na mesma página. Aliviado por ter
funcionado.
— Acho que você só tem que treinar. Acho que você também devia
perguntar ao seu avô se ele pode te ensinar.
— Não posso fazer isso — disse, sacudindo a cabeça enquanto dava
a última golada na minha Coca.
— Por que não?
— Ele mal fala a nossa língua.
— E o que ele fala?
— Polonês.
Dot pensou a respeito.
— Não sei se vocês precisam falar a mesma língua. Quer dizer, seria
diferente se fosse escrita, mas arte... é universal. Ele não pode só, você
sabe, te mostrar?
Dei de ombros. Eu não sabia. Talvez pudesse. Mas esse não era o
maior problema. O maior problema era o simples fato de ele estar lá. De
que ele me assustava, tirava o meu espaço, de que a minha mãe nem sequer
me disse que ele estava vindo. De que tínhamos mais uma boca para
alimentar. De que eu me sentia ressentido com ele. Era difícil pedir favores
a alguém assim.
Mas talvez ela estivesse certa.
Talvez não importasse como eu me sentia.
Foque na sua visão. Seja ambicioso. Sonhos ganham vida.
Faça o que precisa fazer.
— Vou pensar no assunto. Ele acabou de chegar nos Estados Unidos
e ainda está todo confuso. Pode não conseguir me ajudar, mesmo que eu
pedisse.
— Você é judeu, não é, Buddy? — perguntou Dot.
Senti aquele aperto tão familiar no estômago. Aquele escudo protetor
se desdobrando ao longo da minha espinha. Fiquei um pouco mais reto na
cadeira, mas tentei soar ainda mais casual:
— Sou sim. Isso é um problema? — Não soei casual. Soei bravo e
sabia disso.
— Claro que não — disse Dot. — É que você disse que o seu avô era
da Polônia.
— Somos poloneses — repliquei. Era óbvio que éramos.
Dot ergueu as mãos.
— Esquece. Desculpa. Não quero levar pro lado pessoal.
— Bom, eu já te disse que o meu pai morreu, que sou judeu, mas
claro, não vamos levar pro lado pessoal. — Não consegui não ficar bravo.
Sabia que ela estava me julgando. Simplesmente sabia. Como os valentões
no pátio da escola quando eu era criança. Como aqueles mesmos valentões
já mais velhos. Me xingando enquanto eu passava pelo bairro deles. Como
eu odiava aquilo.
Dot sacudiu a cabeça.
— Já entendi. Me desculpa. — Ela empurrou seu copo para o meio
da mesa. — Vou indo embora agora. — E aí ela se levantou, simples assim.
Então se virou e foi embora.
Me senti mal. Aquela atitude defensiva desapareceu e eu logo me
levantei, seguindo-a até o lado de fora. Ela já estava a meio quarteirão,
andando daquele jeito rápido que andava. Finalmente a alcancei e segurei
pelo ombro. Ela se virou e me lançou um olhar de morte.
— Ah, — disse ela, sua expressão se suavizando, — é você.
— Olha, eu não quis te deixar chateada — disse.
— Eu sei.
Olhei para ela.
Ela olhou para mim.
— Ainda está zangada comigo? — perguntei.
— Não fiquei zangada com você. Só me senti mal. Eu te aborreci.
Achei que era melhor ir embora. Além do mais, já está ficando tarde. —
Ela me olhou como se fosse eu quem estava fazendo algo estranho.
— Ah, achei que você estivesse me afastando.
— Não.
Não. Então tudo bem.
Eu disse boa noite e ela também e essa foi a primeira vez que vi quão
direta ela era.
Quão direta você é.
Uma vez, você me disse que gostava de escrever nas entrelinhas nos
seus roteiros, mas que não tinha tempo para entrelinhas na vida real. Eu
sempre me lembrei disso.
Então, caso eu ainda não tenha sido claro, Dot, e seguindo o seu
exemplo sempre tão incrível, vou dizer da forma mais direta possível: Você
tem que salvá-los.
Você tem que detê-lo.

Era final de semana, mas não que isso importasse muito pra mãe. Ela
estava sentada ao lado da janela em sua máquina de costura, junto à mesa
da cozinha, costurando um paletó para o Sr. Schwartz. Tinha que admitir
que eu também ainda estava me acostumando com a ideia de ter o final de
semana livre. Ao invés disso, tinha passado as últimas semanas fazendo
tarefas para a mãe, indo ao mercado para fazer compras, pagando o leiteiro,
esse tipo de coisa.
Estava pensando no que a Dot tinha dito quando meu avô passou por
mim com seu paletó e chapéu já bem gastos.
— Aonde está indo? — perguntei.
Ele olhou para mim daquele jeito que sempre olhava.
— Aonde ele vai? — perguntei à mãe.
Ela não ergueu o olhar do seu trabalho.
— Provavelmente à biblioteca.
Me virei e o vô já tinha aberto a porta. Tive aquele sensação de que
“era agora ou nunca”.
— Ei, vô, eu vou com o senhor.
Isso fez a mãe erguer o olhar. Ela me abriu um sorriso, pequeno mas
perfeitamente pleno. Era um agradecimento. Não entendia por quê, mas ela
estava feliz.
Não me preocupei em colocar uma camisa já que só estávamos indo
na biblioteca. Ela ficava subindo o quarteirão e todo mundo também estaria
usando só a camiseta de baixo. Estava quente demais para se importar.
Enfiei meus pés nos sapatos e lhe segurei a porta. Ele me olhou um pouco
enquanto seguia para a saída. Então assentiu.
Quando saímos em meio ao ar espesso do meio-dia sob o sol quente
do meio-dia, eu ainda não tinha certeza se devia lhe pedir ajuda.
Obviamente, minhas entranhas achavam que era uma boa ideia e a Dot
sempre dizia que era preciso confiar nas suas entranhas. Mas, ao mesmo
tempo, como sequer seria possível que ele me ajudasse?
Me lembrei que ele se oferecera para me “ensinar”. Que talvez eu
devesse respeitar isso. Mas ainda assim.
Atravessamos a rua para desviar do hidrante de incêndio aberto que
disparava água nas crianças locais e eu nunca pensei que seria uma
daquelas pessoas que atravessavam a rua para desviar disso. Acho que
queria dizer que eu estava ficando mais velho.
— Legal — disse ele, apontando para as crianças gritando e rindo em
meio à água.
A biblioteca era um edifício de tijolos de quatro andares mais ao
canto. Uma mãe e sua garotinha estavam sentadas nos degraus que levavam
até ela, lendo um livro de canções infantis. A garota acenou para mim
quando estava passando e eu acenei de volta. Lá dentro, o ar era um pouco
mais fresco, graças aos ventiladores de teto que giravam lentamente sobre
nós e às paredes brancas e altas, feitas de alvenaria. Foi um grande alívio.
O silêncio também era relaxante. Não dava para ouvir nem o
burburinho da cidade. Era como quando a mãe desligava o rádio quando
estava na hora de dormir.
Segui o meu avô até as prateleiras dos fundos. Ele parecia ter um
propósito. Fomos até a seção infantil e foi quando ele parou para dar uma
olhada na coleção. Examinou cuidadosamente cada um dos livros que
tirava da prateleira, abrindo as capas, folheando as páginas e colocando-os
ordenadamente no lugar onde havia encontrado. Era um processo um tanto
demorado, mas fascinante de observar.
Ele finalmente recolheu uma pequena pilha de livros. Três livros
ilustrados, incluindo um do George, o Curioso e um da Píppi Meialonga.
Foi quando ele olhou para mim, satisfeito com sua coleção, que finalmente
me dei conta do que estava fazendo.
Estava aprendendo a nossa língua por conta própria.
É claro.
Se podia ensinar algo difícil assim para si mesmo, então eu não devia
ter medo de pedir a ele. Ou pelo menos foi assim que funcionou a minha
linha de raciocínio.
— Vô? — sussurrei enquanto seguíamos para a mesa da biblioteca.
Ele olhou em minha direção.
— Pode me ensinar a desenhar melhor? — Ele parou de andar e me
fitou. — Você sabe — disse, mexendo a mão, fingindo que estava
desenhando num pedaço de papel. — Arte.
Ele sorriu.
— Arte.
— Sim. Pode me ajudar? — perguntei.
Ele não assentiu, nem disse nada. Apenas pôs os livros na mesa de
retirada e falou com a bibliotecária ali sentada:
— Separe para mim?
Ela assentiu.
— Com certeza, Sr. Unger.
Ela o conhecia. Claro que conhecia.
— Venha — ele disse para mim, ao que eu o segui. Dessa vez, ele foi
em direção às escadas e nós as subimos bem devagar.
Fomo ao segundo andar, passamos por uma série de prateleiras e
então paramos. Estávamos na seção de artes. Devia saber. Mais uma vez,
meu avô examinou os livros cuidadosamente, sem pressa. Sorriu para eles e
os tocou como se tivesse uma boa recordação de cada um. Então começou
a tirar livros das prateleiras. E passá-los para mim. Um atrás do outro e
atrás do outro.
A pilha foi ficando pesada nos meus braços e, quando vi os títulos,
não entendi exatamente por que os estaria segurando a menos que quisesse
aprender tudo sobre a história da arte, o que não queria. Roma Antiga.
Grécia Antiga. Renascença. Da Vinci. Monet. Nem um único livro sobre
como desenhar. Nada desse tipo.
Meu avô parou e olhou para mim. Então disse:
— Bom. — E se virou para as escadas.
— Vô, isso é tudo bem legal e tal, mas eu não quero ser um artista,
artista. Só quero aprender a fazer aqueles desenhos cartunizados — disse,
mesmo sabendo que ele provavelmente não entenderia.
— História. Bom — respondeu.
História era bom.
Quando chegamos em casa, eu estava todo suado e cansado, mas
meu avô só estava começando. Ele se sentou na mesa da cozinha e olhou
para mim.
— Papel — disse.
Então peguei o papel, a caneta e a tinta do nosso quarto e levei para
ele. Ele tirou um pequeno livro bastante grosso com o título “A História da
Arte” escrito na capa. Abri. As letras eram pequenas e muito bem apertadas
em cada uma das páginas. Parecia impossível de ler. Fiquei entediado só de
passar as páginas.
— Ler e praticar. Hoje, círculo. — Ele pegou um dos livros maiores
e mais brilhantes e então o abriu. Encontrou uma página onde havia uma
foto lustrosa de uma pintura. Era de uma mulher que parecia um pouco
deprimida, sentada com um cachorrinho no colo. Meu avô olhou para mim
e apontou para a pintura. Então começou a recriar a pintura na página com
círculos. E ovais. E outras formas geométricas. Ela não tinha expressões
faciais, mãos, nada. Era quase como se fosse uma sombra de si mesma. —
Vê? — disse.
— Ah, círculos — disse a mãe, olhando por cima do meu ombro. —
Começando com o básico. — Assenti. — Água? — perguntou ela.
Assenti outra vez.
Enquanto ia até a pia, ela disse:
— Sabe, eu sempre disse que você tinha herdado as suas habilidades
artísticas do seu avô.
— Pra quem? — perguntei, vendo meu avô desenhar.
— Para todo mundo — respondeu ela, colocando dois copos de água
embaçados na mesa.
— Para mim não — disse. — Não me lembro de você falar sobre ele.
— Eu falava — respondeu ela. — Talvez você não se lembre.
— Não falava. — Me senti incomodado outra vez. Lembrei de como
ela simplesmente tinha convidado aquele estranho para morar conosco sem
sequer falar comigo a respeito. Sem sequer me avisar a respeito.
Escutei ela suspirar.
— Vou comprar as coisas para o jantar. — Ela deu meia-volta e saiu.
— Buddy — disse o meu avô e então eu olhei de volta para ele,
chocado. Nunca o ouvira dizer meu nome antes. — Certo, trabalho agora.
Ele me passou algumas folhas e empurrou o livro em minha direção,
trocando de página. Era estranho ver aquelas pinturas tão vívidas em preto-
e-branco. Era como se só contassem metade da história.
— Trabalho.
Ele me passou a caneta e olhou atentamente para a minha folha. Eu
finalmente assenti.
— Círculos? — perguntei.
— Sim. Círculos.
CAPÍTULO DEZ

Foi divertido. Foi sim. Aprender com o vô. Com certeza frustrante, e
às vezes até tedioso, era tudo muito técnico, eu não podia desenhar o que
quisesse. Mas, é, também foi divertido. E quanto mais empolgado eu ficava
quando aprendia algo novo, melhor. Em alguns dias, ele acrescentou mais
coisas às lições. Ainda estávamos fazendo círculos, mas avançamos para as
linhas. Linhas que ajudavam com perspectiva. Não me pergunte como ele
conhecia essa palavra, ele só conhecia.
Traçamos um bocado de linhas, uma do lado da outra, até o meio da
folha. Então fomos desenhando coisas como retângulos para prédios e
cones para árvores em meio às linhas. Desenhamos as mesmas coisas em
menor escala conforme nos aproximávamos do centro da folha. E deu
certo! Parecia que as “árvores” estavam ficando mais distantes.
— Pirâmide — disse o vô. — Perspectiva.
Ele estava apontando para uma pintura de da Vinci. Da Virgem
Maria sentada numas pedras enquanto segurava o menino Jesus.
Assenti.
— Pirâmide — repeti.
Continuamos praticando juntos depois do trabalho, nos finais de
semana e eu também praticava nos meus intervalos no estúdio. Não tinha
mais Bendys Cowboys para dar à Sra. Lambert e às vezes podia senti-la
olhando para mim, me julgando, duvidando de mim. Eu realmente queria
me provar para ela. Talvez até mais agora que para o Sr. Drew, de certa
forma. Sentia que ela não achava que eu salvara meu trabalho porque
merecia. Sentia como se ela achasse que o Sr. Drew simplesmente gostava
de mim. Aquela coisa do clube do Bolinha.
Achava isso porque ela disse uma vez. Só “aquele velho clube do
Bolinha de sempre” e não foi bem pra mim, mas eu escutei. E eu pensei
sobre isso. Pensei sobre como o Sr. Drew a dispensara naquele dia no
escritório dele. Eu estava tão confuso. Qual era a verdade, afinal? Ele
respeitava talento ou não? Ou talvez respeitasse, mas era mais complacente
com pessoas que eram como ele? Que o faziam lembrar de si mesmo?
Não, não. Não queria pensar desse jeito.
Enfim, imaginei que estava na hora de começar de fato a fazer uns
Bendys e planejei pedir ajuda ao meu avô em casa. Estava me sentindo
empolgado e saí correndo pelo saguão de entrada no final do dia quando
ouvi uma voz familiar:
— Buddy!
Derrapei até parar e me virei. O Sr. Drew estava parado junto à
recepção com um grande sorriso no rosto.
— Senhor! — disse, chocado. Imediatamente fui até ele.
— Aonde vai com tanta pressa, tem um encontro? — perguntou ele,
em meio a uma risada.
Senti meu rosto ficar quente como sempre ficava quando alguém me
fazia perguntas pessoais como aquela.
— Ah, não, senhor, não tenho namorada.
O Sr. Drew assentiu frente a isso.
— Provavelmente é melhor assim. Nesse momento, é importante
para nós focar no trabalho.
— Sim — disse. Eu imaginava. Na verdade, não era exatamente isso,
mas também era. Quando eu teria tempo para isso?
— Tenho algo para você. Peço desculpas pela demora, mas te dei um
pequeno bônus para compensar. — Ele me entregou um pedaço de papel
branco.
Olhei para ele.
Meu cheque de pagamento.
Meu primeiro cheque de pagamento.
Fazia três semanas e, é, acho que tinha demorado um pouco, mas eu
estivera tão enrolado com tudo o que acontecera com o desenho, a mentira
e depois com dar o meu melhor para encobrir a mentira que acho que meio
que esqueci. O motivo primordial para aquilo tudo.
O dinheiro.
Quarenta pratas.
Quarenta dólares, redondinho.
Na minha mão.
— Espero que seja o suficiente; nunca chegamos a falar sobre quanto
o Schwartz te pagava. Uma boa lição, Buddy. Sempre discuta números.
Sempre discutir números.
Quarenta pratas.
Senti como se não conseguisse respirar.
— Está ótimo — consegui botar para fora.
— Ótimo! — respondeu o Sr. Drew. Ele me deu uma boa batida nas
costas e eu tossi. — Venha, vamos comemorar!
Vamos?
Sem sequer esperar que eu dissesse alguma coisa, ele partiu em
direção à porta e eu o segui lá para fora, em meio ao calor escaldante. Por
algum motivo, ele não pareceu tão completamente sufocante, para variar.
De alguma forma, parecia até que bom.
Alcancei o Sr. Drew e o acompanhei enquanto ele ia caminhando
depressa pela calçada.
— Aonde estamos indo? — perguntei.
— Comemorar — respondeu ele, sorrindo novamente.
Sim, mas como e onde, eu queria saber. Não perguntei outra vez.
Não era para perguntar. Eu só tinha que confiar nele. E assim o fiz, confiei
nele.
Seguimos por uma série de quarteirões e então viramos para o sul.
Finalmente chegamos a um restaurante com um grande toldo vermelho. A
palavra “Sardi’s” estava escrita nele.
— Acho que já ouvi falar nesse lugar — disse, enquanto passávamos
pelas portas e adentrávamos o interior vermelho-escuro.
— Esperava que sim — disse o Sr. Drew, em meio a uma risada.
— Ah, Sr. Drew, a mesa de sempre? — perguntou o recepcionista na
bancada.
— Com certeza — respondeu o Sr. Drew e, quando ergueu a mão
para apertar a dele, notei um vislumbre de uma nota de dólar passando
entre os dois.
— Por aqui! — disse ele, com um largo sorriso.
Nós o seguimos até os fundos do restaurante, até uma mesa para dois
junto à uma parede cheia de caricaturas de pessoas famosas.
— É o Sinatra! — disse, enquanto me sentava.
— Algum dia, garoto, seremos nós — disse o Sr. Drew.
— Bom, pelo menos você — respondi. Não notei como o Sr. Drew
reagiu a isso, estava com os olhos arregalados demais enquanto olhava em
volta. Havia desenhos de pessoas famosas cobrindo todo canto das paredes.
E eu tinha certeza que também devia haver algumas pessoas famosas de
fato sentadas em algumas das mesas, não que eu as tivesse reconhecido.
Homens com seus ternos, mulheres com seus vestidos, jantando antes de
ver um espetáculo.
Olhei acima da minha cabeça para as caricaturas ali. Reconheci
Lauren Bacall. Estava muito boa. Para ser franco, eu não tinha esse desejo
de estar em um dos desenhos, mas a ideia de ter um dos meus desenhos ali
em cima? Para que todos vissem? Isso deixou meu estômago empolgado.
Um garçom de jaqueta vermelha se aproximou.
— Bebidas, cavalheiros?
— Me veja um old-fashioned — disse o Sr. Drew. — Buddy?
Ele olhou para mim e percebi que, se quisesse, podia ter pedido o
mesmo. Mas simplesmente não consegui.
— Um refrigerante? — perguntei ao garçom. — Uma Coca?
O garçom sorriu para mim como se eu tivesse feito a escolha mais
perfeita que qualquer um já tivesse feito antes e se retirou para buscar as
nossas bebidas.
— Buddy, você precisa começar a beber como um homem — disse o
Sr. Drew.
— Eu, uh, tenho umas coisas que preciso fazer quando chegar em
casa. Tenho que estar sóbrio — respondi. Achei estranho. Como o que eu
bebia me fazia mais ou menos homem? Eu já não era um homem
simplesmente por que era um?
Ainda assim, por algum motivo, eu me senti mal.
O garçom voltou com as nossas bebidas e se foi tão rápido quanto.
— Como a Lambert tem te tratado? — perguntou o Sr. Drew,
pegando seu copo e bebendo um gole. Ele fechou os olhos e suspirou. —
Que belezinha — disse para a bebida.
Bebi um gole da minha Coca de canudo.
— Ah, ela é legal. Está me deixando trabalhar no Bendy Cowboy —
respondi.
— Bom, bom. Bem, se ela ficar se achando muito pra cima de você,
me avise. Ela pode ser difícil — respondeu ele.
Eu não pensava exatamente isso sobre ela. Só a achava séria.
— Bom, eu acredito que você tenha um grande potencial, Buddy, de
verdade. Vejo quão duro você trabalha. O jeito como percorre o estúdio.
Aposto que vê todo tipo de coisa. — Ele me deu uma piscadela.
— Uh, na verdade não, senhor, só gosto de cumprir com o meu
trabalho.
Não sabia exatamente o que ele queria dizer com “todo tipo de
coisa”, mas tomei um grande gole da minha Coca, tentando acalmar minha
garganta que começava a se apertar. Não era uma mentira, de toda forma,
eu não tinha visto nada. Só escutado. Escutado conversas.
Sobre máquinas.
E tinta.
O Sr. Drew se inclinou sobre a mesa, meio como se fosse me contar
um segredo.
— Se vir algo... interessante... ou algo que ache que eu devia saber,
me conte.
— Claro. — É claro que eu imediatamente senti que devia contar
tudo a ele naquele exato momento. Especialmente sobre o Tom e o Sammy.
Mas isso envolveria a Dot. E ela gostava de segredos. Sentia que eram
necessários. Ela devia ter um bom motivo, ainda que eu não entendesse.
Mas naquele rápido momento, eu soube que não podia contar a ele.
Não ainda.
— Bom — disse o Sr. Drew. Ele se recostou na cadeira quando o
garçom voltou à nossa mesa.
— Prontos para pedir? — perguntou ele.
Olhei para o cardápio que ainda não tinha aberto.
— Uh...
— Vamos querer bifes, ao ponto, e não economize nas batatas —
anunciou o Sr. Drew, devolvendo o seu cardápio. O garçom riu, como se o
Sr. Drew tivesse feito a melhor piada que já tinha ouvido. — E mais um —
disse o Sr. Drew, batendo com o dedo no copo vazio.
— Outra Coca para você, senhor? — perguntou o garçom, voltando-
se para mim.
Eu ainda estava na metade da que tinha pedido.
O Sr. Drew riu.
— Vamos, Buddy, viva um pouco!
— Certo — disse ao garçom.
— Muito bem, senhor.
E então ele se foi em mais um de seus rápidos movimentos.
Enquanto esperávamos pela comida, o Sr. Drew começou a falar.
Não me refiro a falar como na conversa que estávamos tendo antes. Mas
falar mesmo. Do jeito que tinha falado quando fomos ao teatro. Do jeito
que tinha falado no dia que me contratou. Estava começando a me
acostumar com isso, a ouvi-lo falando. Ele tinha muitas filosofias de vida
pessoais. E tinha necessidade de compartilhá-las. Eu podia ouvir, embora
nem sempre conseguisse entender do que ele estava falando.
— Foi por isso que escrevi o livro. É tudo uma ilusão, compreende?
A vida. Viver. Está tudo aqui. — Ele deu uma batidinha na lateral da
cabeça e tomou um grande gole do novo old-fashioned que havia se
materializado diante dele. — As pessoas acham que existem regras, mas
regras são coisas criadas pelo homem. Para tentar manter a sociedade em
ordem. Isso não é ruim, mas também não é algo com que pessoas como nós
precisem se preocupar.
Ele sempre dizia isso, dizia “nós”. Não sabia bem se eu era uma
pessoa como nós. Mas gostava de como isso soava.
— Eu não entendo — respondi.
Foi quando os bifes chegaram e eu olhei para eles, boquiaberto. Não
que quisesse fazer isso e, quando o garçom riu, imediatamente fechei a
boca, sentindo-me envergonhado. Mas eles eram enormes. Os maiores
pedaços de carne que já tinha visto. Aquilo facilmente poderia alimentar
eu, a mãe e o vô num jantar.
— Parece fantástico — o Sr. Drew disse ao garçom, que abriu um
sorriso e partiu. Então ele se voltou para mim e sorriu. — Não tenha medo,
Buddy, caia dentro!
— Não estou com medo — respondi enquanto pegava meu garfo e
faca. Mas, honestamente, eu meio que estava.
Cortei uma fatia e comi. Foi o sabor mais incrível que eu tinha
sentido em muito tempo. Macio e suculento, com a quantidade certa de
condimentos. Me parecia quase errado que uma comida pudesse ser assim
tão gostosa e nem todo mundo tivesse a chance de experimentar. Não. Não
era quase errado. Era errado.
— Dizem que as regras são feitas para serem quebradas — disse o
Sr. Drew, mastigando. — Mas eu digo, por que não reescrever as regras?
Por que quebrá-las quando se pode controlá-las? Trata-se de ter o controle
sobre o nosso próprio destino.
Assenti enquanto pegava uma batata. Tinha um gosto diferente, um
toque especial.
— Rabanete — respondeu o Sr. Drew, sem que eu sequer tivesse que
perguntar. — Incrível, não é?
— Sim — disse de boca cheia.
E então ele continuou. Foi um jantar no qual o Sr. Drew queria falar
sobre coisas profundas que eu não entendia de fato e no qual tudo o que eu
queria fazer era degustar. Queria saborear. Guardar tudo na memória. Pra
ser sincero, eu mal o escutei. Ouvi a palavra “visão” outra vez. E mais
coisas sobre ilusões. Mas depois do terceiro old-fashioned, tenho certeza
que até o Sr. Drew já não estava mais acompanhando o que tentava dizer.
Quando atacamos o cheesecake que pegamos de sobremesa, não
achava que o meu estômago fosse aguentar mais comida. E certamente não
achava que o meu cérebro fosse aguentar mais dos discursos do Sr. Drew.
Finalmente, a maratona acabou e ambos nos recostamos em nossas
cadeiras. O Sr. Drew tinha parado de falar, eu tinha parado de comer. Nós
dois simplesmente ficamos ali sentados. Cheios.
— Isso sim é vida — disse o Sr. Drew.
— Ou uma boa ilusão dela — respondi, meio sem pensar. Mas acho
que todas as coisas que ele dissera de alguma forma tinham conseguido
entrar no meu cérebro.
O Sr. Drew apontou para mim e começou a rir, muito. Mais do que
eu já tinha visto alguém rindo antes. Ele se inclinou para frente e se curvou,
rindo tanto que começaram a sair lágrimas de seus olhos, mas o som da
risada não saía.
— Puxa vida, caramba, Buddy — disse ele, limpando o rosto com
um guardanapo. — Você é bom, garoto. Você é dos bons.
Eu também sorri, embora me sentisse mais inquieto que qualquer
outra coisa.
O garçom foi até nós com um livrinho preto fino.
— Quando estiver pronto, senhor. — Ele entregou o livro ao Sr.
Drew.
— Sim, claro. Buddy? — disse o Sr. Drew, estendendo a mão por
cima da mesa.
— Sim? — perguntei.
— Você precisa assinar a conta — explicou ele.
Olhei para ele. Ele me olhou de volta.
E foi então que entendi.
Eu tirei meu cheque de pagamento do bolso enquanto o garçom me
passava uma caneta.
— Uh, quanto ficou? — perguntei.
O Sr. Drew abriu o livrinho preto.
— Com a gorjeta, vamos arredondar para quinze.
Olhei para ele. Quinze dólares. Por uma refeição.
— O dinheiro vem acompanhado de responsabilidades, Buddy. É
assim que funciona.
— Sim... s-senhor — gaguejei, ainda olhando para o número
“quinze”.
— Vamos, garoto, ambos temos lugares aonde ir — disse o Sr.
Drew. O tom de sua voz ficara sério agora, quase irritado.
Eu peguei a caneta da mão do garçom devagar e assinei o livro da
conta. Entreguei a ele.
— Muito bem, senhor — disse o garçom. — Vou trazer o seu troco.
Olhei de volta para o Sr. Drew, meu coração acelerado. Esperava que
ele não conseguisse ver o pânico nos meus olhos.
— Isso sim é o que eu chamo de comemoração, não é, garoto? —
perguntou ele, em meio a um grande sorriso.
— Sim, senhor — respondi, a voz baixa.
— Mas não vá gastar desse jeito toda vez que receber o pagamento.
— Ele riu. — Não seria responsável.
— Sim, senhor — disse outra vez. Mal conseguia falar as palavras.
O Sr. Drew olhou por cima do ombro. Podia ver que estava ficando
impaciente. Ele suspirou.
— Olha, Buddy, tudo bem por você se eu voltar ao escritório? Vou
receber uma pessoa em meia hora.
Ele ia me deixar ali? Quer dizer, por que não, não é? O jantar já tinha
terminado. E eu não precisava de ajuda para ir para casa ou coisa do tipo.
— Ah, sim, claro.
O Sr. Drew jogou seu guardanapo na mesa e se levantou enquanto
assentia com firmeza.
— Excelente. Continue com o bom trabalho, garoto. Te vejo amanhã.
— E com isso, foi a sua vez de partir, apertando a mão do garçom e do
recepcionista enquanto ia embora.
Todos riram.
Eu não entendia qual era a graça.
— Seu troco, senhor — disse o garçom, voltando e me entregando o
livrinho preto.
— Obrigado.
Eu o abri. Vinte e cinco dólares, em espécie. Ainda era bastante
dinheiro. Mas era mais. Muito mais.
Enfiei as notas no bolso e saí daquele restaurante o mais rápido que
pude. Peguei o metrô para casa, mantendo a mão no bolso. Não precisava
de ninguém surrupiando o resto.
Cheguei em casa quando a mãe estava limpando a mesa. O vô me
abriu um sorriso da pia e acenou para mim com a mão ensaboada.
— Buddy! Achei que você vinha jantar em casa — disse a mãe
quando me viu.
— Eu também — respondi. Fica firme, Buddy, não pode deixar que
eles saibam que está se sentindo culpado. Olhei para a cortina empoeirada,
a pilha de pratos sujos, o velho sofá-cama onde a mãe dormia. Não, aquilo
não ia ajudar com a culpa. — Uh, o Sr. Drew me levou para comemorar.
Recebi o pagamento hoje.
— Finalmente! — disse a mãe. Ela me abriu um sorriso. — Estava
ficando preocupada.
— É, eu também. Enfim, aqui. — Eu rapidamente coloquei a pilha
de notas amassadas na mesa.
— Nossa, uau, Buddy — disse a mãe, olhando para elas.
Aquilo me fez engolir em seco.
— Sim, vinte e cinco pratas. Mas vai ser mais, agora que ele confia
em mim. — Uma mentira. Vai ser mais agora que não vou ter mais nenhum
jantar chique. — É tudo seu.
A mãe recolheu o dinheiro com cuidado, desamassando cada dólar.
Ela estendeu dez para que eu pegasse.
— Você precisa de alguma coisa, roupas novas. Talvez levar um dos
seus novos amigos para comer uma fatia de bolo.
Eu quis fugir de tão envergonhado que estava.
— Não, mãe, por favor. Não dessa vez. Talvez da próxima — disse.
E então fui para o meu quarto o mais rápido que pude. Me escondi lá
dentro. Meu coração não estava acelerado, mas doía.
Era o tipo de vergonha que nunca tinha sentido antes. Estava bravo
comigo mesmo. E com o mundo também. Todas aquelas pessoas naquele
restaurante, elas tinham dinheiro para comer lá, não estavam tendo uma
crise por causa de uma refeição. Não era justo. Simplesmente não era justo.
Nunca mais, eu disse a mim mesmo. Não até que eu pelo menos
conseguisse bancar aquilo de verdade. Não até que pudesse levar a mãe,
comprar um vestido chique para ela. Levar o vô também, claro. Comprar
um terno novo para ele. Uma nova camisa de manga comprida, já que ele
gostava tanto delas.
Nunca mais.
Não até lá.
CAPÍTULO ONZE

Era por causa dos canos. Agora eu sei disso. O meu cantinho do
Departamento de Artes onde ninguém queria sentar. Aquele afastado de
qualquer fonte de luz. Não era só por ser pequeno e apertado. Era porque os
canos que percorriam o prédio passavam pela parede e pelo teto em cima
dele. Eles faziam um som metálico quando a temperatura mudava ou
quando uma válvula era virada em algum lugar. Mas não era algo que eu
pensava que devia achar incômodo. Afinal, o nosso apartamento era cheio
de rangidos lentos, o constante ajuste da fundação do prédio. Quando era
pequeno, eu meio que sempre pensei que o apartamento estava vivo, que
estava respirando e suspirando, com frio no inverno e suando no verão.
Então os canos ficarem fazendo aqueles barulhos estranhos enquanto
eu ficava ali sentado trabalhando no meu canto naquela noite na verdade
sequer me fizeram piscar. Não me fizeram nem olhar para cima.
Até que fizeram.
Começou com um estrondo. No sentido literal da palavra. Eu estava
debruçado na mesa, trabalhando a questão da perspectiva. Desenhando um
monte de linhas. Não estava indo muito bem; tinha sido um dia longo e eu
estava cansado. Mas também estava determinado. Tinha ficado até tarde,
mesmo depois de todos os outros já terem ido embora. Determinado a
acertar naquilo. E toda vez que ficava um pouco cansado ou entediado,
tinha uma visão do Sr. Drew me empurrando da beira da passarela. Tá,
talvez essa não fosse a melhor coisa para se ver e talvez os outros fossem
dizer que ele tinha um jeito estranho de motivar a equipe, mas eu posso
afirmar com certeza que não achava que tinha sido essa a intenção dele.
Afinal, tínhamos saído para jantar na semana anterior, conversamos como
verdadeiros amigos. Tinha sido só uma piada.
Só isso.
Mas ainda assim, funcionou. Me deu uma agitada, me deu um novo
foco. E então houve um momento em que comecei a desligar, meus olhos
ficando um pouco pesados, quando subitamente imaginei que estava caindo
em direção ao chão do palco e no exato momento que ia me espatifar, um
bang! alto e forte soou sobre minha cabeça. Me joguei tão para trás na
minha cadeira que quase caí. Meu coração estava palpitando e, à medida
que as sombras do Departamento de Artes foram voltando a clarear na
minha visão, eu não soube dizer se tinha imaginado o som ou se fora
mesmo real.
Até que aconteceu outra vez.
Me levantei instintivamente. Não era uma caldeira se sentindo
frustrada. Era outra coisa. Mas o que era, isso eu não fazia ideia.
Bom, o que eu sabia era que não era da minha conta. Então voltei a
me sentar e foquei na minha folha.
Foi quando o gemido começou.
Não era como o vento nas árvores. Ou como o rangido do piso
quando um vizinho precisava usar o banheiro. Era como um animal, como
quando um cachorro faminto uiva num beco. Mas não exatamente desse
jeito. Desse jeito, mas também como quando um gato vê um inimigo e solta
aquele som lá do fundo das entranhas.
E talvez também o que parecia uma única nota, bem baixa, tocada
num violino.
Não era como nada que eu já tivesse escutado antes.
E eu fiquei curioso.
E também me lembrei do que o Sr. Drew havia dito. Que tomar a
iniciativa era importante. Estava tarde, a ponto de já estar escuro lá fora,
mesmo no verão. Os outros já tinham ido para casa e a Sra. Lambert teve
que reacender a luz quando notou que eu ainda estava ali. Tinha feito isso
de propósito, é claro. Para mostrar ao Sr. Drew e a todos os outros que eu
tinha a vontade. E com isso em mente, se eu era o único que ainda estava
no prédio e algo estranho estava acontecendo no estúdio do Sr. Drew,
naquele estúdio que significava tanto para ele, então certamente era meu
dever investigar.
Fiquei ali sentado em silêncio por um momento, escutando. Então
ouvi aquela batida determinada outra vez e logo me levantei. Não ia ficar
pensando muito a respeito, simplesmente ia fazê-lo. Ainda que fosse acabar
me assustando um pouco no processo.
Não tinha muita certeza de por onde começar, mas imaginei que a
sala da caldeira podia ser um bom lugar e então segui para o elevador.
Enquanto descia em direção ao porão, me dei conta de como estava
sozinho. Todos os andares estavam vazios, uma única luz acesa no prédio,
o resto tomado por sombras profundas. Talvez aquilo tudo fosse muito
ambicioso da minha parte. Talvez eu tivesse ficado até tarde demais.
Tarde demais.
O porão estava completamente negro e tive que tatear a parede para
encontrar o interruptor. O nó no meu estômago deu uma afrouxada quando
a sala se iluminou, parecendo bastante normal. E me senti mais confiante
conforme seguia para a sala da caldeira.
Tinha estado lá uma vez, procurando pelo zelador, o Wally, porque
um dos vasos do banheiro estava transbordando. Wally tinha montado uma
espécie de escritório improvisado ali embaixo, então era sempre lá que
dava para encontrá-lo quando ele não estava fazendo rondas. Mas o
expediente já tinha acabado agora, então é claro que quando eu tentei abrir
a porta, ela estava trancada. Não tinha pensado bem a respeito.
Ouvi mais uma daquela batida alta. Ergui o olhar e foi só então que
percebi que tinha ido fundo demais. Parecia que o som não estava vindo da
caldeira, afinal. O que era uma boa notícia, já que eu não tinha acesso a ela.
Ao invés disso, o som parecia estar vindo de algum lugar logo acima de
mim, um andar acima. E quase que para confirmar esse pensamento, houve
outro bang bem em cima da minha cabeça. Algumas partículas de poeira
começaram a flutuar sobre mim, caindo das tábuas do teto.
Foi quando um pranto veio em minha direção. Como o gemido, só
que mais angustiado. Soava bem menos como um problema com o
encanamento e bem mais como um problema com algo vivo. Isso fez os
meus pelos do braço se arrepiarem, mas também me impulsionou ainda
mais a entrar em ação. Se fosse alguém com problemas, não só um cano
com defeito, então eu tinha que me apressar. Tinha que ajudar.
Pressionei o botão do interruptor novamente para apagar as luzes
enquanto me enfiava de volta no elevador. Me senti inquieto vendo as
paredes descendo devagar enquanto eu subia. Quando o chão do próximo
andar se materializou diante de mim, notei que a minha respiração estava
rasa. E quando o elevador parou num solavanco, já estava me perguntando
quão certo eu estava do meu plano. Mas saí no corredor escuro e acionei
um interruptor. Mais uma vez, a claridade fez eu me sentir um pouco
menos tenso.
O pranto veio flutuando em minha direção outra vez. Soava como se
estivesse vindo de algum lugar mais à frente no corredor. Saber que estava
seguindo a pista certa fez o meu estômago revirar. Não sabia bem se era de
medo ou empolgação.
Provavelmente medo. Por algum motivo, sempre que ia no andar do
Departamento de Música, tinha alguma coisa que não me fazia, não me
deixava sentir nada além de desconforto.
Ouvi um baque alto. Esperei. Então o gemido começou de novo.
Bom, eu definitivamente estava no andar certo dessa vez.
Não tinha certeza se isso era uma coisa boa.
Enquanto seguia o som, me lembrei da primeira vez que estive ali
embaixo, perdido num labirinto de corredores. Quando fiz uma curva e me
deparei com um lance de escadas que levava para baixo, senti um grande
pavor tomar conta de mim.
Pendurada ao final das escadas havia uma placa com a palavra
“Enfermaria” escrita. Uma enfermaria? Nem sabia que o estúdio tinha uma.
Desci pelas escadas devagar, os degraus rangendo sob os meus pés, e
então entrei no saguão da enfermaria.
A sala era bastante grande, com cadeiras de madeira duras, uma
cama mais ao canto e uma mesa coberta de prontuários junto à parede. As
paredes no geral estavam vazias, com exceção de um pôster amarelado que
fora colocado sem muito zelo perto da sala de espera. Era uma imagem do
Bendy vestido de médico, da Alice Angel com um uniforme de enfermeira
e do Lobo Boris deitado numa maca, com o título “Leitos e Penicos”
escrito em cima com aquela típica fonte dos desenhos do Bendy.
Crash.
Dessa vez mais alto e vindo do corredor no alto das escadas. Isso me
trouxe de volta a mim. Não sabia o que era mais inquietante, o som em si
ou não fazer ideia do que o som podia ser. Esperava que fosse só um cano
frouxo. Esperava de verdade que não fosse alguém invadindo o lugar. Eu
não era um cara durão, não achava que conseguiria afugentar alguém.
Ainda assim, eu segui o som. Imediatamente acendi a luz do corredor
e vi uma série de portas alinhadas de ambos os lados. Esperei. E esperei.
Mas é claro que agora, quando eu precisava, não teve som de batida, não
teve gemido. Não teve nada.
Decidi que a única coisa a ser feita era checar cada uma das salas. Se
estivessem destrancadas. Não acreditava que estariam. Mas a primeira
porta se abriu, revelando um pequeno escritório com algumas mesas e uma
cadeira.
Chequei mais duas salas, ambas iguais. Então encontrei um escritório
maior. Esse tinha alguns diplomas emoldurados na parede e por um
segundo me perguntei a quem deviam pertencer.
Fechei a porta atrás de mim. Ela fez um barulho alto, mais alto do
que esperava, e então, imediatamente, eu ouvi. O pranto de novo. Mas
dessa vez soou mais como um grito. Como se alguém tivesse me ouvido.
Como se estivesse me alertando.
Parecia vir do fim do corredor.
Atrás de uma porta.
Com dois grandes pedaços de madeira cruzados na frente, formando
um “X”. Como se a porta estivesse sendo protegida de uma tempestade ou
coisa do tipo. Exceto pelo fato de que a tal porta obviamente ficava dentro
do prédio.
De repente, alguma coisa se atirou contra a porta. Ela sacudiu. Houve
um grande baque e uma sombra apareceu e então desapareceu na fresta
embaixo da porta.
Definitivamente tinha alguém preso lá dentro. Ou seria... alguma
coisa? Notei que estava segurando o fôlego e botei tudo para fora de uma
só vez, começando a puxar o ar de volta logo depois.
Alguma coisa? Como um animal? Como um... fantasma?
Que idiotice. Eu só precisava ver com os meus próprios olhos, saber
que o que quer que aquilo fosse fazia todo o sentido. Impedir que a minha
imaginação fizesse das coisas maiores do que eram.
O pranto recomeçou, dessa vez definitivamente vindo de detrás da
porta. De perto, havia alguma coisa nele que parecia diferente. Quase triste,
quase como um choro. Mas não um choro humano. Um choro animal.
Soava quase desamparado e me fez me sentir mal. Quase tão mal quanto o
quão assustado eu estava.
Levantei a mão devagar e a levei à maçaneta. Estava trancada. É
claro que estava. Quem deixaria uma porta destrancada com uma coisa
daquelas do outro lado?
O fato de estar trancada devia ter sido um sinal. Nem um sinal, na
verdade. Não era mágica, não era uma mensagem de uma força superior.
Era uma porta trancada. E uma porta trancada significava “fique longe”.
A menos que você tenha a chave.
Pensei na Dot. Pensei na chave dela.
Não parecia provável que uma cópia da chave daquela porta estaria
simplesmente jogada por aí em qualquer lugar. Ainda mais quando todas as
outras portas estavam abertas. Era uma sala na qual não era para se entrar.
Comecei a divagar. Nunca tinha perguntado a ela, mas o fato de que a Dot
tinha aberto uma sala no porão e então um depósito parecia indicar que era
uma daquelas chaves que podia abrir muitas fechaduras: uma chave mestra.
Diversos pensamentos me passaram pela cabeça nos momentos
seguintes. Dentre eles, preocupações e, é claro, aquela sensação de que não
devia estar fazendo isso, mas, ao mesmo tempo — não sei dizer por quê —
eu senti um impulso. Não sentia mais que tinha algo a ver com o Sr. Drew.
Eu precisava desvendar aquilo.
Quando cheguei ao Departamento de Roteiro, indo à mesa da Dot,
imaginei que ela ficaria impressionada comigo e não se importaria que eu
fizesse aquilo. Ela provavelmente teria me encorajado se estivesse ali.
Provavelmente teria levado a chave junto, para caso uma situação como
aquela acontecesse. E lá estava ela. Na gaveta de baixo, em meio às folhas
de uma cópia de A Obra Completa de Sir Arthur Conan Doyle.
Não me lembro como cheguei de volta à porta com o “X” na frente.
Não me lembro dos pensamentos que tive. Talvez eu me lembrasse em
algum momento, mas do jeito que a minha mente está agora, com tudo
misturado, eu realmente não lembro.
Só sei que eu estava lá.
Na frente da porta.
Com a chave.
Seja lá o que fosse o que estava lá dentro me ouviu outra vez porque
se atirou de novo contra a madeira e pareceu chacoalhar o corredor inteiro.
O pranto era mais insistente agora.
Encaixei a chave na fechadura e bam! De novo, a coisa se jogou
contra a porta, ameaçando quebrar tudo em pedaços e me fazendo tremer
dos pés à cabeça. Engoli em seco.
Virei a chave.
Click.
Silêncio. Nem mesmo o pranto. Nada.
Respirei fundo, girei a maçaneta e empurrei. Em meio a um alto
rangido, consegui abrir uma fresta e então empurrei com mais força, até
que decidi me jogar em cima dela para abrir tudo de uma vez.
Imediatamente acendi as luzes com o interruptor ao lado.
Fiquei parado sob o batente da porta, olhando para uma sala vazia.
Parecia uma sala de operação em miniatura. E estava tudo revirado. Lixo
no chão, a lixeira virada ao lado. Instrumentos cirúrgicos estranhos estavam
espalhados desordenadamente pelo balcão, com uma cadeira de madeira
quebrada em pedaços mais ao canto.
O que não parecia haver lá era... alguém. Ou alguma coisa.
— Olá? — disse. É o que as pessoas tendem a dizer, tinha notado,
quando não sabem se devem entrar num lugar. Ainda que talvez receber um
“olá” como resposta não seja o que você quer.
Naquele momento, eu não sabia o que queria. Mas aquela sala vazia
definitivamente não estava na lista.
Entrei na sala com cautela e então, mais que depressa, chequei atrás
da porta, porque é onde as pessoas sempre se escondem, atrás da porta.
Mas não tinha ninguém lá. Não tinha ninguém em lugar nenhum. Então
fiquei parado de frente para a porta aberta, confuso, sozinho e me sentindo
ainda mais inquieto. Senti um arrepio me subir a espinha, como se uma
mão gelada estivesse passando os dedos pelas minhas costas.
Foi quando a luz escureceu. Ou talvez “escureceu” não seja a palavra
certa para descrever exatamente. Diria que era mais como se sombras
tivessem começado a se espalhar pela sala. Começaram devagar, então
pensei que a lâmpada estivesse para queimar, mas então olhei para baixo e
vi a escuridão se fechando em volta do meu pé. Puxei o pé para cima,
achando que fosse algo molhado, mas era só uma sombra.
Só uma sombra.
Ergui o olhar e observei enquanto ela subia pelas paredes. Ia para o
teto. Cobria a sala na mais absoluta negritude. Como uma sala cheia de
tinta derramada.
Me virei e olhei para o corredor e, como era óbvio, a negritude
estava escorrendo porta afora.
Segurei o fôlego e fiquei completamente imóvel. Estava congelado,
em estado de pânico. Nunca tinha visto nada como aquilo antes e também
não achava provável que alguém já tivesse. Não sabia o que queria dizer ou
como estava acontecendo, mas sabia de uma coisa.
Parecia ameaçador. Perigoso.
Como se aquelas sombras gotejantes fossem o mal encarnado.
Não sei explicar como você sente que algo é o mal. Você só sente.
Eu simplesmente sabia.
Meu sangue gelou.
Todas as luzes se apagaram. Na sala. No corredor. As sombras
tinham vencido e eu mal conseguia ver o batente, só alguns centímetros à
minha frente.
Devia ter ido embora.
Mas o medo me fez ficar plantado no lugar. Medo da escuridão.
Medo das sombras.
E um medo arrastado e crescente. Me fazendo cócegas na nuca.
Medo de que houvesse algo na sala comigo.
Uma respiração suave e aquosa. Quieta e calma, mas distinta. Em
algum lugar atrás de mim. E agora eu podia ouvir o som de algo raspando o
chão, como passos arrastados, travados, mancos.
Então o silêncio.
Houve então um súbito estrondo quando algo pousou no balcão atrás
de mim, seguido pelo tilintar de metal caindo no chão. Os instrumentos
cirúrgicos, pensei. Lâminas afiadas e precisas no chão. Mas ainda não
consegui me mexer. Tinha a impressão de que, se não me mexesse, talvez o
que quer que fosse aquilo não fosse me ver.
O som de algo raspando o chão recomeçou. Foi ficando mais alto,
conforme a coisa se aproximava. E então, enquanto continuava ali parado
tentando ser invisível, pude sentir sua presença. Não só ouvir. Pude senti-la
logo atrás de mim. Ela se inclinou em minha direção.
A respiração quente e molhada na minha bochecha.
E então um outro tipo de som de respiração. Inalações rápidas.
Estava sorrindo para mim.
Eu não estava invisível. Eu precisava correr. Precisava correr mais
rápido do que já tinha corrido na vida.
Vai, Buddy, corra.
Corra!
Me lancei em direção à porta, erguendo um dos pés como se o
estivesse tirando de dentro de um lamaçal. Apoiei meu braço no batente da
porta para tentar me atirar mais longe. Não conseguia entender; não estava
fisicamente preso. Mas minha mente estava fazendo o meu corpo agir
como se estivesse.
A coisa atrás de mim me fez então um estranho grunhido, como se
tivesse se dado conta de alguma coisa. Senti ela se afastar.
Foi quando senti um súbito peso nas costas, me empurrando para
frente, seguido pelo som de passos pesados passando por mim à toda
velocidade. Eu tinha sido empurrado e caí com tudo no chão. Tinha a
mesma força que eu vira ser aplicada contra a porta e isso me tirou o ar.
Mas não fiquei de cara no chão por muito tempo. Logo me levantei. Meu
cérebro finalmente desprendeu meus pés e eu saí correndo pelo corredor
atrás do som de passos.
Em transe, olhei para tudo que era canto. De um lado, uma parede.
Do outro, um corredor que levava de volta à sala de espera. Não tinha nada.
Corri até a mesa da frente e derrapei para parar diante dela.
De novo.
Nada.
Foi quando notei a claridade à minha volta. A falta da sombra negra
feito tinta. Me virei e vi que o corredor atrás de mim também estava muito
bem iluminado. Levemente ofegante, voltei andando devagar para a sala.
Sem sombras.
Nada.
Esfreguei as mãos uma na outra, notando agora que estavam doendo
pela queda e vendo o rasgo na altura do joelho das minhas calças. Agora
estava com uma camisa e dois pares de calças a menos. Tinha só a camisa
do corpo que estava limpa e inteira o suficiente para trabalhar. De todas as
coisas, não era isso que devia estar me preocupando naquele momento.
Mas era.
Uma onda de exaustão tomou meu medo num abraço.
Vagando por Nova York tarde da noite, meu único pensamento era
chegar em casa. Olhando para as sombras escuras em meio a becos e
vitrines gradeadas, senti um pavor diferente de tudo o que já tinha sentido.
Não conseguia entender o que tinha acontecido. Não tinha nada naquela
sala, mas então algo respirou em mim. Me empurrou.
Era a minha cabeça me pregando uma peça? Eu estava assim tão
cansado? Eu tinha caído? Tropeçado no meu pé? Não teria sido a primeira
vez. “Pés de palhaço”, costumavam me zoar na escola.
Mas e quanto aos sons? Às batidas na porta? Às sombras crescentes?
Tinha sido real. Mais que real. Aquelas sombras estavam vivas, tinha
certeza disso. Respiravam, existiam.
Não era um sonho. Não era uma mentira. Eu tinha ouvido os sons.
Tinha visto a porta sacudir. E tinha sido empurrado ao chão. Tudo isso
tinha acontecido. Eu sabia que tinha. Não ia duvidar da minha mente.
Estava tão seguro com relação à minha mente naquele momento.
Me lembro do que senti.
Era quase como se estivesse sentindo de novo.
Fui andando para casa. Demorei pouco mais que uma hora, mas
precisava disso. Precisava de tempo para acalmar os nervos, para entrar
naquele ritmo familiar, para ver outras pessoas sendo só pessoas, não
pesadelos. As sombras me perseguiam, mas eu andava rápido. E quando
finalmente cheguei em casa, o medo estava muito pequeno e a exaustão já
tinha tomado conta. Isso era bom. Eu só precisava dormir.
Subi as escadas e me enfiei no nosso apartamento escuro. Todos já
tinham ido para a cama. Bom. Não estava no clima para falar com o meu
avô ou tentar fazer a mãe achar que estava tudo bem.
Abri a porta do meu quarto cuidadosamente, tentando não acordar o
velho. Deitado do seu lado da cama com a luz do poste lhe iluminando o
rosto, ele quase parecia um cadáver. Me perguntei se estava respirando.
Não consegui me segurar — levei a mão sobre seu nariz e boca e senti um
ar ligeiramente quente contra ela.
Graças a Deus por isso. Me sentei do meu lado da cama, encarando a
porta fechada, e vi novamente a porta trancada do estúdio. Não. Sacudi a
cabeça; não ia mais pensar naquilo naquela noite. Puxei lentamente os
suspensórios dos meus ombros e os rolei para trás, arqueando o pescoço e
ouvindo um estalo bastante satisfatório.
Suspirei.
Então algo me segurou com força por trás.
Pulei em meio a um berro e então me virei, vendo meu avô ali
sentado, fitando-me com aqueles olhos vazios, arregalados e assombrosos.
Sua boca estava aberta no que parecia medo ou angústia.
— O quê? — perguntei, um pouco alto demais, mas meu coração
estava extremamente acelerado. — O que foi?
Ele ergueu a mão devagar e apontou. Apontou direto para mim.
— Vô, sou eu. Sou o Buddy. O Daniel. — Coloquei a mão no meu
peito e dei uma batidinha. — Sou só eu. Seu neto.
Ele continuou apontando, seu dedo indicador sacudindo de leve. Sua
expressão continuava congelada.
Me inclinei em sua direção para tentar, sei lá, confortá-lo? Achei que
talvez ele não conseguisse ver muito bem, então se me visse de perto...
— Viu? Sou só eu.
Com outro súbito movimento, ele me agarrou pela gola com ambas
as mãos. Sua velocidade me impressionou. Ele estava puxando a minha
camisa. Podia ouvir as costuras na altura do ombro começando a rasgar.
— Para, vô, para com isso! — Puxar o braço de volta só piorava as
coisas e seus longos dedos esqueléticos só apertavam com mais força. —
Para com isso!
— Tire! — disse ele, a voz rouca.
— O quê?
Ele finalmente conseguiu passar um botão pela casa.
— Você precisa ver, precisa ver. — Ele agora estava determinado,
mas eu finalmente entendi e então coloquei minhas mãos sobre as dele, que
continuavam trêmulas.
Ele não me soltou e, enquanto tentava me levantar, cedi e desabotoei
a camisa enquanto o fazia. Ele continuou me puxando até que finalmente
consegui puxar meus braços das mangas, desemaranhando-me do tecido e
recuando em direção à porta aos tropeços.
Meu avô segurou a camisa junto a seu colo e a fitou.
Olhei para ele com os olhos esbugalhados, vestindo apenas a minha
camiseta de baixo amarelada.
— Qual o teu problema, velho? — Eu quis gritar, mas não queria
acordar a mãe, então sussurrei entredentes.
— Veja — disse o meu avô. Olhei para mim mesmo. Só o que vi foi
eu mesmo. E o buraco no joelho das minhas calças.
— Não. Koszula.
Ergui o olhar. Ele segurou minha camisa dobrada em seu colo por
mais um instante e então, com as mãos trêmulas e envelhecidas e os dedos
finos feitos pincéis, a ergueu para que eu pudesse ver.
E eu vi.
E fiquei olhando.
— Veja — disse o meu avô.
A luz lá fora iluminou a camisa, deixando-a transparente. Permitindo
que eu enxergasse as costas da camisa facilmente. Que visse a sombra
negra que fora marcada nela.
Ergui a mão e peguei a camisa dele. Ele a soltou facilmente.
— Você viu — disse o meu avô, soando satisfeito e deitando-se
novamente no travesseiro.
Uma marca de mão.
Exatamente onde eu tinha sido empurrado.
Nas costas da minha camisa.
Uma grande marca de mão, preta e manchada de tinta.
CAPÍTULO DOZE

Hoje, eu não sabia o que era isso.


Hoje, olhei para essas páginas e esqueci por que estavam aqui. O que
era para ser esse objeto. Fiquei confuso.
Tive que escavar no fundo da minha mente.
Os cinco sentidos:
Tato: folhas de borda áspera.
Olfato: tinta e papel.
Paladar: sem sabor algum.
Audição: silêncio absoluto.
Visão: palavras nas páginas.
Palavras nas páginas. Buddy. Dot. Mãe. Vô.
Joey Drew. A minha história.
Essa não é só a minha história, é a sua história também, Dot. Queria
poder contá-la do seu ponto de vista às vezes. Queria saber por que você
acreditou em mim e me procurou naquela primeira vez. Queria que a
resposta fosse mais que as suas “entranhas”.
Queria entender você do jeito que você parecia me entender.
Talvez fosse tudo uma mentira.
Mas você nunca mentiu para mim. Essa era a questão, não era? Você
escolheu não mentir.
As pessoas podem fazer essa escolha.
Queria saber por que você acreditou em mim quando te contei sobre
a Enfermaria. Sobre a criatura na escuridão. Sobre a minha camisa. Fui um
idiota por não tê-la trazido ao trabalho comigo no dia seguinte, mas não
importava, porque você acreditou em mim. Não era só um conto de fadas
macabro.
Era real.
Você foi comigo ao corredor da Enfermaria no horário do almoço.
Eu te mostrei a sala. Não tinha nada lá, claro, mas isso não fez você não
acreditar em mim. Só fez você querer investigar mais.
Você, Dot, sempre fazia perguntas.
E ela fazia mesmo. Caso seja outra pessoa. Caso não seja ela quem
está lendo. Ela era ótima fazendo perguntas.
— E quanto ao Sammy e ao Tom? — perguntou ela, rapidamente
guardando sua chave mestra no bolso depois que a devolvi a ela. Ela não
parecia ter ligado que eu a tivesse pegado, mas talvez fosse porque estava
muito interessada no que eu havia encontrado.
— O que tem eles?
— Aquela conversa que você escutou. Sobre a tinta. — Eu sacudi a
cabeça, não tinha certeza do que pensar. — Qual é, Buddy. Esses caras
estão guardando segredos sobre tinta desse jeito esquisito e aí você acaba
com uma marca de mão manchada de tinta nas costas. Pode ser que não
tenha conexão, mas você acha mesmo que não tem? Pois eu acho que tem.
Era verdade.
Mas tinha uma coisa que eu não contara a ela. Porque me deixava
meio desconfortável. Eu não confiava completamente no que tinha visto e
detestava tirar conclusões precipitadas, parecer idiota. Mas se alguém ia me
escutar, esse alguém era a Dot. Então contei para ela depois da conversa.
Sobre ir até o Sammy e ver o frasco de tinta do lado dele e a mancha preta
no canto de sua boca.
— Como se estivesse com a caneta pendurada na boca? — perguntou
ela. Me senti num conflito ainda maior ao dizer a próxima parte:
— Talvez, mas acho que me lembro de ter visto o frasco mais cheio
e aí, quando olhei de novo, ele tinha menos tinta. — Não queria dizer isso
diretamente.
Fiquei preocupado que ela fosse me olhar engraçado, mas, ao invés
disso, ela imediatamente perguntou:
— Você acha que ele bebeu? Mas seria tóxico, não seria?!
Ela fez a pergunta que eu não ousara fazer a mim mesmo.
— Não sei.
— Bom, já é um lugar pra começar. Primeiro o Sammy, depois o tal
do Tom.
Assenti.
— Uma coisa de cada vez.
Assenti de novo.

No fim do dia, eu e Dot decidimos ir ao Departamento de Música


para dar uma olhada. Foi a primeira vez que me senti realmente a bordo de
um de seus planos, principalmente porque fora um plano que bolamos
juntos. Àquele ponto, eu podia simplesmente ter fingido que nada tinha
acontecido. Tantos outros no estúdio fingiam. Isso se sabiam que algo
estranho sequer estava acontecendo. Mas eu não conseguia. Em parte, com
certeza porque queria impressionar o Sr. Drew e mostrar a ele que alguma
coisa estava acontecendo no seu estúdio. Mas em parte por conta da minha
própria curiosidade. Minha própria necessidade.
Tinha também alguma coisa na minha amizade com a Dot, quando
eu a via interagindo com as pessoas, todas aquelas perguntas diretas que ela
fazia. Me fazia imaginar por que as pessoas não falavam mais daquele
jeito. Por que as pessoas não eram tão diretas o tempo todo. A Dot me fez
começar a fazer perguntas e agora eu queria saber as respostas.
Então lá estava eu, de volta ao Departamento de Música. Dot me
lançou um olhar enquanto atravessávamos o corredor em direção à escada
da Enfermaria. Como se tivéssemos um segredo. Que tínhamos. Tentei
lançar um olhar similar de volta para ela, mas eu meio que só franzi a testa.
Não conseguia fazer igual a ela. Tinha algo que sempre me deixava
desconfortável no Departamento de Música. Os corredores pareciam
desnecessariamente escuros e vazios. Os músicos não estavam sempre lá
gravando, então todo aquele grande espaço necessário para eles parecia
assustador e vazio o resto do tempo.
Além disso, eu nunca consegui tirar aquele meu primeiro encontro
com o Sammy da cabeça. Se é que se podia chamar aquilo de encontro. Seu
corpo mergulhado em tinta. Se debatendo no chão daquele jeito. Tinta nos
ouvidos, na boca, nos olhos.
— Você está bem, Buddy? — perguntou Dot, enquanto entrávamos
na grande sala. O palco estava cheio de instrumentos, como sempre. Mas
agora, por algum motivo, a imagem me deixou mais inquieto. Me deu a
impressão de que os músicos haviam estado lá, mas então, de repente,
simplesmente desapareceram. Do nada. Para o nada.
— Sim. — Tentei lhe abrir um sorriso reconfortante, mas me lembrei
como era horrível com sorrisos reconfortantes. — O que você acha que
estamos procurando?
— Não sei. — Ela seguiu para a mesa junto à parede do outro lado.
Nunca tinha visto Sammy sentar lá, me dei conta, enquanto ela começava a
abrir gavetas e examinar papéis. Até então, eu só o vira junto a seu suporte
de partituras na beira da plataforma. — Não tem muito aqui — disse ela.
— Talvez no armário de suprimentos?
Dot se ergueu e, fechando a gaveta, assentiu.
— Boa ideia. Quer dar uma olhada enquanto eu termino por aqui? —
perguntou ela, levando as mãos aos quadris.
Me lembrei de tentar limpar aquela tinta, me lembrei do Sammy
gritando comigo, me lembrei da respiração quente e molhada no meu rosto
na noite anterior.
— Não — respondi.
Dot olhou para mim por um momento. Então disse:
— Tá, deixa comigo. Veja se tem mais alguma coisa que pareça
suspeita por aqui. — E ela saiu marchando de volta ao corredor naquele seu
passo cheio de propósito.
Fiquei ali parado admirando sua coragem. Então me dei conta:
— Dot!
Sua cabeça apareceu novamente da curva que ela tinha feito.
— Sim?
— Você quer que eu... Quer dizer... ir sozinha... — Não consegui
nem me oferecer para protegê-la, porque a expressão em seu rosto me fez
me sentir um bobo. É claro que ela ficaria bem. Ela sempre ficava bem.
Ela sacudiu a cabeça e suspirou. E então desapareceu outra vez.
Foi só quando me virei e olhei em volta que me lembrei que ficar
sozinho na Sala de Música também não fazia eu me sentir particularmente
bem.
Subi no palco com toda a cautela e dei a volta nos instrumentos,
observando seus estojos, tentando ver se algo parecia deslocado. Mas eu
não era músico. Como é que eu ia saber o que era normal e o que não era?
Só o que eu sabia era o que parecia sinistro e o que não parecia e, embora
as tábuas do palco rangessem sob mim e meus passos ecoassem de um jeito
que fazia parecer que tinha alguém na sala comigo andando exatamente na
mesma velocidade que eu, nada parecia estranho.
Na verdade... tudo parecia estranho.
Eu eventualmente dei a volta até o posto de regente do Sammy.
Achei que talvez ele tivesse alguma coisa com tinta mais ao lado ou algo
do tipo, talvez até mesmo uma gotinha derramada. Mas só o que ele tinha
eram suas notas musicais. Sabia o que eram porque ele tinha rabiscado
“Notas Musicais” na frente do livro. Era forte o bastante para ver, mesmo
sendo tinta preta na capa preta. Inclinei a bancada um pouco mais para
cima e a tinta reluziu. O que me intrigou. Porque tinta normalmente não é
brilhante assim. Talvez ainda estivesse molhada. Toquei na beira do “N”
com todo o cuidado. Estava tão cansado de ficar coberto de tinta, do
Sammy. Da marca de mão. Não precisava de mais. Ainda mais agora que
estava usando uma das camisas do meu avô, depois de ficar sem mais
nenhuma das minhas.
Seca.
Inclinei ainda mais a bancada, mas lentamente, só para ver. Notei
algo no canto de baixo. Peguei o livro e olhei mais de perto. Estava me
sentindo ousado agora. Parecia... parecia um par de chifres do Bendy.
Como a parte de cima da cabeça do Bendy, sem o círculo. Era difícil dizer.
O desenho reluziu e desapareceu em meio à luz. E parecia quase ter
escorrido da capa.
Não consegui me deter, precisava ver mais.
Então abri o livro.
Dentro, havia fileiras de linhas com notas musicais em meio a elas. O
título “Bendy e os Piratas” estava escrito no topo. Era no que o Richie
estava trabalhando lá em cima. Não havia nada de incomum, exceto pelo
fato de ver a música daquele jeito. Eu nunca tinha visto uma partitura antes.
Era interessante. Mas não estranho.
Virei uma página. Agora estava escrito “Canção da Alice”.
Outra. “A Dança da Gangue do Açougueiro”.
E mais uma. “Boris e o Agito da Noite”.
Tinha esquecido que sequer estava procurando alguma coisa em
geral, até que virei a página outra vez e quase derrubei o livro. A diferença
espantosa entre as músicas normais e aquilo era um soco no estômago.
Chocante de verdade.
Parecia, se fosse para colocar de um jeito agradável, um monte de
rabiscos. Mas era muito mais que isso. Mais pareciam marcas de arranhões,
imagens desenhadas às pressas com respingos e borrões de tinta, tudo
jogado ali como se quem quer que tivesse feito aquilo fosse um maníaco.
Como se estivesse com toda a pressa do mundo. Como se tivesse que
colocar as imagens no papel antes que alguma coisa acontecesse. Eu
entendia a sensação.
O que não entendia era o que estava olhando.
No meio das folhas, havia um grande esboço de um símbolo que eu
nunca tinha visto antes, um círculo com uma parte cortada e com uma série
de linhas ao redor e outro círculo em volta de tudo. Sammy parecia ter
desenhado por cima dele tantas vezes que o papel estava rasgado perto do
meio. A tinta ali brilhava como a tinta da capa, mas também estava seca.
Mas não foi isso que me fez gelar até o osso. Ocupando toda a página do
lado direito havia o que eu só podia descrever como um desenho de um
Bendy deformado. Mas ele pouco tinha em comum com o personagem
animado fofinho. Seus membros eram compridos, quase como os de um
louva-a-deus, com mãos que tinham garras, não as luvinhas brancas e fofas.
Pior ainda era seu rosto, parcialmente obscurecido com — o que era
aquilo? Sangue? O desenho estava em preto-e-branco; era difícil dizer o
que era tudo. Só o que eu conseguia ver era como seus chifres de demônio
agora eram muito maiores, como seu sorriso estava cheio de dentes afiados.
Seus olhos completamente ocultos atrás de uma gosma negra gotejante.
Sangue.
Não.
Tinta?
As páginas estavam cheias de outros desenhos, coisas que não
consegui reconhecer. E palavras também. “Sonhos ganham vida”, como no
pôster do Bendy. E também “Nos libertar”. Essa eu não me lembrava de ter
visto antes.
Mais símbolos, e tudo parecia estar escorrendo da folha. Como se
Sammy os tivesse desenhado enquanto era arrastado para longe.
Como se as imagens também estivessem sendo puxadas.
Olhei para baixo. A ilusão de que as coisas estavam escorrendo da
folha era tão intensa que não consegui evitar.
Olhei para o chão por um bom e longo momento. Nada. Claro que
nada. Só um piso de madeira velho, coberto de riscos. Ergui o olhar e
sacudi a cabeça, aproximando-me para colocar o livro de volta na bancada.
E foi quando eu vi o símbolo estampado nela. Mais que só um. E então só
círculos e linhas, desconexos, mas em todo lugar, cobrindo a madeira por
inteiro. Cobrindo, eu vi quando me abaixei para olhar, até lá embaixo. Me
ergui novamente. E notei também um pequeno esboço do Bendy. E as
palavras “Ele vai”. Coloquei o livro com todo o cuidado de volta na
bancada, onde o havia encontrado.
“Ele vai”.
E se alinhava perfeitamente com “Nos libertar”.
— Buddy, preciso te mostrar uma coisa.
Eu quase pulei para fora do corpo. Me virei e olhei para Dot, meus
olhos esbugalhados. O medo corria pelas minhas veias e ela podia ver.
Sabia que ela podia ver.
— O que foi? — perguntou.
Não consegui falar, só apontei para o livro. Dot deu a volta em mim
para dar uma olhada. Houve um momento silencioso em que eu a observei
passar o dedo delicadamente sobre as imagens, se curvar, examinar o papel
com toda a atenção.
— O que você tá tramando, Sammy? — ela disse a si mesma.
— Estranho, não é? — Finalmente consegui dizer.
— Mais que estranho — respondeu Dot, erguendo-se para olhar de
volta para mim. — Vem comigo.
Assenti e a segui como sempre fazia quando ela dizia isso. Seguimos
pelo corredor e fomos até o armário de suprimentos. Quando vi a porta de
madeira, meu estômago apertou como se alguém tivesse enfiado a mão pela
minha garganta e o espremido com tudo. A simples maçaneta de bronze.
Olhei para baixo. Ainda tinha tinta preta derramada no corredor, onde eu
não conseguira limpar. A mão dentro de mim espremeu com mais força.
— Está tudo bem, Buddy — disse Dot. — É seguro. Mas você
precisa ver isso.
Ela abriu a porta.
E nós olhamos.
Diante de nós, do chão cheio de tinta até o teto, cobrindo todas as
prateleiras pintadas de preto, havia frascos.
Frascos de tinta, o vidro completamente limpo. Frascos vazios.
— Ei! O que estão fazendo aqui?
Eu nunca tinha visto a Dot se virar de surpresa antes. Nada nunca
parecia perturbá-la, mas dessa vez perturbou, ao que ela rapidamente
fechou a porta do armário e se virou. Jacob vinha marchando pelo corredor
em nossa direção a passos largos. Não parecia bravo, mas estava com um
olhar intenso no rosto. Talvez até de preocupação.
— Tentando achar o Sammy — disse, quando Dot não respondeu.
— Certo, bem, Buddy, precisam de você no saguão — disse ele, sem
parecer ligar muito para a resposta.
— De mim?
— Ah, sim — disse Jacob.
— Por quê?
— Eu... — Ele parou. Parecia desconfortável. O que não era bem o
estado normal do Jacob. Na verdade, eu nunca tinha visto ninguém tão
confortável consigo mesmo. Aquela mudança nele também me deixou
desconfortável.
— O que foi?
— Acho que é o seu avô — disse ele, levando a mão para trás da
cabeça e coçando a nuca.
A mão que me espremia o estômago soltou no mesmo instante, mas
ao invés de me sentir aliviado, senti que estava respirando facilmente
demais agora. Vi estrelas brilhantes nos cantos da minha visão antes de
sacudir a cabeça para tirá-las de lá e sair correndo imediatamente em
direção ao elevador. Pude ouvir a Dot e o Jacob vindo atrás de mim.
Uma vez lá dentro:
— Tem certeza? — perguntei.
— Não — disse Jacob. — Mas ele é velho, estava perguntando de
você e... bom, ele parece um pouco com você.
Não queria que ele entrasse muito no assunto. Não com todos os
insultos que eu costumava receber quando criança.
— Certo — foi tudo o que disse.
Não tinha me preparado para a parada súbita e acabei trincando os
dentes de novo. A primeira vez em semanas que isso me acontecia. Estava
irritado comigo mesmo. Mas não tinha tempo para estar. Corri pelo
corredor e cheguei ao saguão.
— Buddy! — disse uma voz alegre, alta e muito familiar.
Lá estava ele, sendo segurado pela dobra do cotovelo por Wally, que
não parecia exatamente nenhum tipo de segurança assustador. Estava até
segurando a vassoura com a outra mão.
— Vô, o que está fazendo aqui? — perguntei, correndo até ele. —
Pode soltá-lo agora. O que acha que ele vai fazer, tomar o lugar?
Wally sacudiu a cabeça.
— Nunca se sabe — disse, dando de ombros.
— Está bem? — perguntou o vô, olhando de perto para mim.
Examinando meu rosto atenciosamente.
— Claro, sim, estou ótimo. Olha, você não pode ficar aqui. Afinal,
como foi que...? — Senti a Dot do meu lado.
— Buddy — sussurrou ela.
— Agora não, Dot.
— Buddy, ele está aqui.
— Quem...? — Ergui o olhar e parado ao lado da Sra. Lambert junto
à mesa da frente estava o Sr. Drew. Ele estava recostado na mesa, os braços
cruzados frente ao peito. A expressão em seu rosto era ilegível. — Sr.
Drew! — disse, assustado.
— O que é tudo isso? — perguntou ele. Ele sorriu, mas não tinha
certeza se era um sorriso feliz.
— Não é nada, é só o meu avô... — respondi, a voz baixa. Foi a
minha vez de pegá-lo pelo braço. Mas quando o fiz, o vô se soltou da
minha mão e foi até o pôster do Bendy na parede. Olhou para ele. Então se
aproximou para olhar ainda mais de perto.
— O que ele está fazendo? — perguntou Dot.
— Está... olhando. É assim que ele olha.
O vô se voltou para mim e apontou para o pôster.
— Cowboy! — disse ele.
Respirei fundo. Não, não. Precisava tirá-lo dali rápido. Antes que de
alguma forma ele deixasse escapar que ele era o verdadeiro artista. De
alguma forma. Com o seu vocabulário de três palavras.
Eu rapidamente fui até ele e o segurei pelo cotovelo.
— Vamos, vô, hora de ir para casa.
O vô olhou para o pôster outra vez e então para o Sr. Drew. Depois
olhou de volta para mim.
— Chefe?
Assenti.
O Sr. Drew ouviu isso e, afastando-se da mesa devagar, veio até nós,
subitamente com um largo sorriso no rosto.
— Olá, senhor. Eu sou Joey Drew. É um prazer conhecê-lo. O seu
neto é muito talentoso. — Ele ergueu a mão para apertar a dele.
Meu avô olhou para a sua mão por um momento e então a segurou.
Mas não a apertou. Ele levou a mão até o rosto e a olhou de perto. Ele a
virou e olhou o interior da palma do Sr. Drew. O Sr. Drew olhou para mim
com um sorriso intrigado. Sorri de volta, esperando que fosse a escolha
certa. O que meu avô estava fazendo?
Finalmente, ele ergueu o olhar para o Sr. Drew.
— Chefe — disse novamente. O Sr. Drew assentiu. E nesse instante,
o vô finalmente apertou sua mão.
Então a soltou, quase como se tivesse esquecido que a estava
segurando, e se virou para mim outra vez.
— É um prazer conhecer a sua família, Buddy, mas não fazemos isso
aqui. Está na hora de ele ir para casa — disse o Sr. Drew. Ele deu meia-
volta e foi embora, me fazendo me sentir inquieto de novo. Como se algo
tivesse dado errado. Como se eu estivesse encrencado.
— É melhor levá-lo para casa — disse Jacob, observando enquanto o
Sr. Drew partia. — Antes que a Sra. Lambert venha te perturbar.
— É, vai lá, Buddy — disse Dot.
— Mas e quanto...? — Parei. Eu obviamente não podia dizer o que
queria dizer. Não na frente de todo mundo. Mas nós só tínhamos começado
a nossa investigação.
— Temos tempo — respondeu Dot.
Não achava que tínhamos, mas por outro lado, que escolha eu tinha?
— Vem, vô, vamos para casa — disse. Podia contar o que aconteceu
para a mãe, pedir que ela explicasse por que aquilo não era algo que as
pessoas faziam em Nova York. Sair aparecendo nos lugares. Mas claro,
isso era meio que a especialidade dele, não era? Aparecer de repente.
O vô assentiu com um sorriso e então se virou para olhar para todos.
— Bom conhecendo a vocês — disse ele.
— Também foi um prazer conhecê-lo — disse Dot.
Ele sorriu para ela, então olhou para mim e me deu uma piscadela.
Ah, não, velho, não. Não era assim. Mas senti meu rosto ficar quente.
Eu o escoltei para fora do prédio, em meio à rua cheia de gente. Ele
parou e olhou para o tráfego por um momento e então ergueu o olhar para
os prédios que se assomavam à nossa volta. Também ergui o olhar.
— Por aqui — disse ele. Ele virou para a esquerda, que não era o
caminho certo. Era norte.
— Não, vô — disse, mas, de repente, ele estava andando rápido. O
que me surpreendeu, porque ele normalmente demorava para ir a qualquer
lugar. Imaginava que fosse por conta do quão frágil ele era. Mas agora eu
não fazia ideia. Porque aquele homem era rápido. Não tive escolha senão
segui-lo e, quando o alcancei, tentai pará-lo.
Mas ele não parou.
Ele virou à direita. Não fazia ideia do porquê e não tinha noção de
qual era o seu plano. Se ele sequer tinha um plano. Nós atravessamos a
Broadway, com todas aquelas luzes piscando e buzinas buzinando, e
continuamos andando em silêncio pelo que pareceu uma eternidade, mas
que provavelmente não foi mais que dez minutos, até que paramos. Por
algum motivo.
O vô sorriu.
— Aqui — disse ele, apontando. Ele gostava de apontar.
Olhei para a fachada diante de nós.
Era impressionante como ela se sobressaía a todos os prédios em
volta. Muito moderna. Não havia outra descrição para ela. Um retângulo
sólido feito de retângulos de vidro dentro de retângulos de concreto. Não
consegui decidir se era bonita. Só sabia que era bem diferente.
— Onde estamos? — perguntei.
O vô olhou para mim como se eu fosse doido. Ele sacudiu a cabeça e
me levou para dentro do salão silencioso.
— Arte — disse ele, a voz baixa, enquanto nossos passos ecoavam
no chão de concreto.
Arte?
Finalmente, meus olhos pousaram numa placa. O Museu de Arte
Moderna.
Ah.
Arte.
Eu não tinha tempo para arte.
— Vamos, vô — disse. Minha voz estava baixa, mas soou alta e
clara. Olhei para a mulher sentada atrás da mesa de informações.
Mas ele não parou de andar e eu não tinha poder para detê-lo. Parecia
que ninguém tinha, já que ninguém disse uma única palavra, mesmo eu
achando que tínhamos que pagar para entrar. Nós simplesmente seguimos
em frente.
Estava me sentindo cada vez mais inquieto. Esse não era o plano. Ele
não entendia que coisas sérias estavam acontecendo? Tinha que entender,
senão não teria ido ver como eu estava. Por causa da noite anterior. Por
causa da marca de mão. Mas ainda assim...
Nós finalmente paramos e ele se sentou num banco em frente a um
quadro. Me sentei junto a ele.
Diante de nós havia uma tela. Parecia a margem de um rio ou algo
assim. Era estranha. Era o que era, mas era também...
— Pontos? — perguntei.
— Para fazer arte, precisa fazer coisas novas — disse o vô. — Ver
mundo de jeito diferente. Entende?
Assenti. Acho que sim. Talvez? Mas não sabia o que aquilo tinha a
ver com desenhos animados.
— Não pintura bonita. Pintura grande. História. Ideia. Mente. Alma.
— Ele estava tentando ao máximo se comunicar. E eu escutei. É claro que
escutei. Me senti idiota. Não só pelo quanto eu não sabia sobre arte ou
mesmo sobre o mundo, mas pelo quanto não sabia sobre o vô. Não só da
vida dele na Polônia e tudo mais, mas também sobre como ele pensava. E o
que ele pensava.
— Vô, eu tenho que ir.
— Chefe — disse ele, assentindo.
— Sim.
— Tinta.
— O quê?
Ele pegou minha mão e apontou para a tinta no meu dedo. Ele ergueu
sua mão e me mostrou o exato mesmo ponto na dele. Por estar me
ajudando, imaginei.
— Tinta — disse ele.
Assenti.
— Sim. Ainda estou treinando.
Então ele pôs sua mão nas minhas costas. Abriu bem os dedos.
— Tinta — disse outra vez.
Minha respiração ficou mais fina, sentindo-o tocar no mesmo lugar
que na noite anterior. Sentindo sua mão me pressionar as costas. Ele abriu
um breve sorriso e afastou sua mão, erguendo-a diante de mim.
— Não essa mão, mão do chefe — explicou.
— Certo — disse, sem entender muito bem.
— Tinta.
Assenti. Claro, sim, o Sr. Drew também tinha tinta nas mãos. Ele
também era um artista. Ou pelo menos... era o que tinha insinuado quando
eu o conheci. Quer dizer, ele tinha inventado o Bendy, não tinha?
Não tinha?
— Tinta do chefe, mesma tinta — disse o vô.
— Mesma tinta? — Mesma tinta do quê? Da marca de mão? Não, eu
sabia que aquilo definitivamente não era o Sr. Drew.
— Tinta má.
Olhei para ele. Queria que ele explicasse. Precisava entender. Alguns
dias atrás, aquilo tudo seria loucura para mim. Teria olhado para ele como
se fosse só um velho maluco.
Mas não depois do que tinha acontecido na noite anterior.
Não depois do caderno do Sammy.
— Tinta má — repeti.
O vô abaixou sua mão e assentiu solenemente.
Tinta má.
CAPÍTULO TREZE

Não vi a Dot pelo resto do dia. Quando voltei ao escritório, faltava só


umas poucas horas até a saída. E eu tinha trabalho a fazer, de verdade.
Fiquei até tarde, mas não tão tarde quanto na noite anterior. Não ia mais
ficar no estúdio sozinho, isso era certeza. Quando vi Richie se recostar na
cadeira e estalar os punhos por cima da cabeça, soube que estava na hora de
recolher minhas coisas também. E fiquei feliz em fazê-lo.
Quando cheguei em casa, o vô estava dormindo e tive que me
esgueirar por ele para dar uma olhada nos nossos desenhos. Achei que
talvez estivesse na hora de tentar só um cavalo. Talvez. Fiquei parado de
frente para a cômoda, me curvei um pouco até sentir o pescoço doer e
copiei um cavalo de uma pintura, primeiro em forma de círculos e depois
desenhando lentamente por cima deles. Transformando-os em feições de
verdade.
Meio que funcionou.
Funcionou melhor que o velho-cavalo-gordo-em-forma-de-cachorro-
burrico que criei na primeira tentativa. Mas ainda parecia que eu tinha um
longo caminho pela frente, mais que nunca. Especialmente depois da visita
à galeria de arte. Quanto mais eu aprendia, mais me dava conta do quanto
não sabia.
Sentia praticamente o mesmo com relação ao estúdio.
Com relação à tinta.

No dia seguinte, eu estava exausto — mal conseguira dormir. Os


pensamentos não me deixavam em paz e eu odiava isso. Odiava pensar
demais. Quanto mais eu pensava, mais embaralhados os pensamentos
ficavam. Meio que como quanto mais eu olhava para os quadros no museu,
menos eu conseguia ver da pintura.
Não conseguia mais ver o contexto geral.
Fiquei grato por não ter muitas entregas a fazer pelo estúdio. Quase
me pareceu que a Sra. Lambert podia ver como eu estava indisposto. Como
se estivesse me dando uma folga. Decidi praticar desenhando a Alice
naquele dia. Porque nunca sequer havia tentado. E ela era bonitinha. Era
divertido desenhá-la.
Eu precisava de um pouco de diversão.
E como precisava.
Eu fui o primeiro a ver o Sammy.
Ele veio às pressas do corredor que ficava junto à minha mesa e eu
imediatamente passei de exausto para aterrorizado. Imaginei que tivesse
descoberto que eu a Dot o estávamos espionando. Que sabia que tínhamos
visto os desenhos estranhos em sua música, os frascos vazios em seu
armário. Que estivesse vindo para arrumar briga. E eu não sabia o que faria
nesse caso porque, pra começar, não achava que brigar fosse considerado
profissional ou algo que as pessoas fizessem no centro, mas também
porque fui um péssimo lutador a vida toda. Só tinha conseguido vencer
umas desavenças aqui e ali porque era difícil me derrubar.
Ao invés disso, ele passou direto por mim, sem sequer parecer me
notar ali sentado no meu canto escuro, e disparou em direção à sala mais
clara do Departamento de Artes.
A Sra. Lamber se levantou da cadeira devagar, sua testa franzida. Ela
podia ler a fúria em seu rosto. Não era difícil de ver. Provavelmente dava
pra notar mesmo do topo do Empire State Building.
— Sr. Lawrence — disse ela, meticulosa.
— Abby — respondeu ele.
Ela mordeu o lábio inferior, mas não disse nada. Me lembrei do
Sammy chamando o homem da Gent de “Tom” ao invés de “Sr. Connor” e
me perguntei se era um hábito dele. Se era algo que fazia com todo mundo.
Ou talvez... fosse o que Jacob dissera no bar sobre como mulheres e negros
não recebiam o mesmo respeito, sobre como precisavam trabalhar duas
vezes mais duro. Pensei a respeito enquanto me virava na cadeira para
olhar o que acontecia depois.
— Como posso ajudá-lo?
— Cadê a minha tinta?
Ajeitei minha postura no assento.
— Sua tinta? — perguntou a Sra. Lambert.
— A tinta. Aonde ela foi?
A expressão da Sra. Lambert não parecia mais suspeitosa, agora
parecia preocupada.
— Está pedindo um pouco da tinta do Departamento de Artes
emprestada? Podia só falar, Sr. Lawrence; não precisa agir de forma tão
autoritária.
Sammy bufou alto e enfiou as mãos nos bolsos. Ele sacudiu a cabeça
violentamente e, após pressionar os lábios um contra o outro algumas
vezes, finalmente disse:
— A tinta do seu armário de suprimentos.
— Nós não guardamos tinta no armário de suprimentos.
Tá, isso era estranho. Nós não guardávamos tinta no armário de
suprimentos? Então o que o Departamento de Música fazia com um
armário cheio dela quando as pessoas que realmente precisavam de tinta, os
artistas, as guardavam a sete chaves? Mas eu não achava que fazia sentido
tocar no assunto agora. Certamente não queria lembrá-la de toda aquela
história do roubo. Não depois de conseguir minha segunda chance. Além
do mais, talvez ela estivesse mentindo para manter o Sammy longe das
nossas coisas. Ele tinha mesmo um lance estranho com a tinta. Claramente.
Sammy parecia a ponto de dizer alguma coisa, mas não disse. Era
como se estivesse tendo dificuldades para falar. Um estranho murmúrio
veio dele, como se as palavras quisessem sair, mas ele as estivesse
contendo.
— Olha, nós guardamos nossa tinta aqui, embaixo da minha mesa,
no cofre. Posso lhe dar um frasco, se quiser. Mas você precisa se acalmar.
Não vale à pena se estressar tanto assim com isso.
Sammy sacudiu a cabeça, seu pescoço tão rígido que seu corpo todo
começou a virar loucamente de um lado para o outro. Então ele passou por
mim às pressas e disparou pelo corredor escuro. E desapareceu.
— Mas o que diabos foi isso? — perguntou a Sra. Lambert.
Jacob se levantou, seus olhos arregalados e sobrancelhas erguidas.
— O sujeito ficou lé-lé. Quer que eu vá dar uma olhada no armário
de suprimentos?
A Sra. Lambert assentiu.
— Sim, por favor. Obrigada.
Jacob lhe lançou um sorriso brilhante e então passou por mim. Ele
então também me lançou um e por um momento me peguei pensando quão
impressionante era como ele conseguia abrir um sorriso tão grande para
todos e ainda parecia real. Como ele estava genuinamente feliz em ver
você. Os meus sorrisos só faziam parecer que eu estava com algum tipo de
dor. Ou gases. Eu o observei atravessar o corredor e segurei o fôlego. Não
o fiz de propósito e não sabia sequer porque o estava fazendo. Não sabia o
que queria que ele encontrasse. De toda forma, imaginei, era estranho.
Ele voltou bem depressa e sorriu enquanto voltava a se sentar em sua
mesa.
— Não, nada. Deu a louca no sujeito.
Senti um forte aperto no estômago. Não entendia o que estava
acontecendo. Por que não tinha tinta no nosso armário? Por que estava tudo
no Departamento de Música?
— Buddy — disse a Sra. Lambert, me chamando. Me levantei um
pouco rápido demais, ao que meu pé escorregou embaixo de mim enquanto
eu me forçava a não cair.
— Bela agilidade — disse Richie, rindo.
Assenti, mas não disse nada.
— Pegue aquele rascunho do Bendy Cowboy enquanto vem aqui —
disse a Sra. Lambert.
Assenti outra vez e, levando a mão até a mesa, peguei o pedaço de
papel enquanto me apressava em sua direção.
— Então, vamos prosseguir com a ideia do Bendy Cowboy e a
Redação gostaria de alguns rascunhos de exemplo para inspiração. Acha
que consegue dar conta? — perguntou ela. Havia um brilho maroto em seu
olhar que me fez pensar que talvez ela de fato estivesse orgulhosa de mim.
Ou empolgada. Eu definitivamente estava empolgado por mim.
— Claro — disse o mais calmamente que pude e lhe entreguei o
papel.
Ela o examinou e assentiu.
— Isso, algo assim, mas certifique-se de centralizar a imagem.
Precisamos do cavalo inteiro, não pode faltar os cascos nem nada.
Decidimos quanto queremos mostrar depois. Tudo bem? — Ela me passou
o papel de volta.
Assenti, mas estava um pouco confuso.
— Então me dê talvez uma meia dúzia de ideias diferentes para o
Bendy Cowboy.
Assenti de novo.
— Isso é tudo. — Ela me dispensou e eu voltei à minha mesa.
Agora estava nervoso. Tinha praticado bastante no curto período
desde que o meu avô desenhara o Bendy Cowboy pela primeira vez. Mas
seis Bendys em momentos diferentes? Será que eu conseguia fazer isso?
E o que ela queria dizer com “o cavalo inteiro”? Meu avô tinha
esquecido alguma parte?
Coloquei o desenho na minha mesa e olhei para ele. Estranho. Ela
estava certa. O desenho estava bem na ponta de baixo, as pernas cortadas.
Não fazia sentido. Eu estava lembrando errado? Achava com toda a certeza
que ele tinha desenhado os pés. Achava com toda a certeza que ele estava
bem no meio da folha, como um único quadro numa série de animação.
É incrível o quão frequentemente nós supomos que a nossa mente
nos está pregando uma peça. Que quando coisas estranhas e impossíveis
acontecem, nós de alguma forma devemos estar errados.
Mas as coisas às vezes são estranhas e impossíveis.
E nós não fazemos a conexão até que seja tarde demais.
Eu não fiz a conexão naquele momento. Acabei fazendo depois e não
sei se devia contar isso agora ou esperar até o momento que aconteceu. De
que adianta esperar?
Não. Não posso sair pulando demais. Se eu der um salto na história,
posso acabar esquecendo de voltar. As memórias podem mudar. Minha
preocupação é de que eu já as tenha mudado. Eu fui mesmo ao museu de
arte e vi a pintura de Seurat com o meu avô ou conversamos sobre esse
quadro na cozinha, vendo-o em um de seus livros?
Sei que ele foi me ver naquele dia e sei que ele estava preocupado.
Mas talvez ele simplesmente tenha ido para casa depois.
Talvez isso faça mais sentido.
Talvez o cavalo não estivesse escorrendo da folha.
Talvez eu tivesse pensado no caderno do Sammy naquele momento,
não depois. Lembrado de como as figuras nele também pareciam estar
escorrendo.
Talvez eu tenha feito a conexão então.
Nem tudo continua fazendo sentido para mim.
Mas eu ainda me lembro disso. Me lembro de estar sentado, olhando
para frente, me sentindo assustado e confuso e então ouvindo:
— Eu nunca vou me cansar desse cowboy, me faz sorrir toda vez!
Me virei um pouco rápido demais, tencionando o pescoço para ver o
Sr. Drew pairando sobre mim.
— Sr. Drew! — disse depressa e me levantei.
— Olá, filho. Animado com o Bendy Cowboy? — perguntou ele,
com um sorriso no rosto.
— Com toda a certeza, senhor. Obrigado.
— Uma boa ideia é uma boa ideia. — Ele continuou sorrindo para
mim e eu não tinha certeza se devia dizer algo de volta porque, bem, não
havia muito para dizer, exceto...
— Obrigado. Mas na verdade veio tudo do roteiro da Dot...
— Então! Você trabalhou para o tal Sr. Schwartz por um tempo. Sua
mãe fazia trenos para ele, você mencionou — disse o Sr. Drew, recostando-
se na parede junto à minha mesa.
— Sim. — O quê?
— Então você entende de ternos — disse ele. Não era uma pergunta.
Nunca tinha pensado nisso desse jeito. Sentia conhecer muito mais as
bolsas nas quais os ternos eram carregados. Mas acho que já tinha visto a
mãe costurar ternos o suficiente para ter algum tipo de conhecimento.
— Claro — respondi. Parecia a coisa certa a dizer. Não era
exatamente um sim. Não era exatamente um não.
— Ótimo, venha comigo — disse ele, juntando as mãos.
Olhei para a Sra. Lambert, que nos observava atentamente. Ela
assentiu devagar, apesar do olhar reprovativo, dando sua permissão, mesmo
não tendo como eu dizer não. Ela também sabia disso. É claro.
— Sim, senhor — disse.
Foi uma sensação estranha a de segui-lo até o elevador, todo mundo
nos olhando. Jacob parecia estar a ponto de cair na gargalhada e imaginei
que provavelmente tinha algo a ver com a expressão no meu rosto. Sabia
que estava atônito. Me sentia atônito.
— Seu avô está bem? — perguntou o Sr. Drew enquanto seguíamos
pelo corredor.
— Ah, sim, está ótimo.
— Família pode ser difícil — disse ele, com uma risada.
— Sim, quer dizer, é diferente. Tê-lo por aqui agora.
— Ele veio morar com você recentemente? — perguntou o Sr. Drew.
Assenti.
— Ah, sim, obrigações. Eu entendo. Mas não as deixe segurá-lo. Os
mais velhos o fazem sentir-se culpado, mas eles viveram seus sonhos, não
viveram? Por que você não deveria?
Pensei a respeito.
— Sim, ele viveu. — Tentei me lembrar do que a mãe me dissera
anos antes. — Meus pais tentaram convencê-lo a vir aqui para os Estados
Unidos com eles quando eu nasci. Ele recusou. Tinha suas próprias coisas a
fazer, eu acho.
O Sr. Drew tamborilou os dedos na parede do elevador.
— Exatamente.
Ele parou por um momento e escutamos o som engasgado das
correntes nos levando para baixo.
— Bom, ele parece um bom velhinho. Só não podemos deixá-lo
interromper o expediente daquele jeito outra vez. — Ele riu. Como se fosse
uma piada.
Mas era sério.
— Sim, claro. Ele só estava preocupado comigo — disse. Então
estremeci. Porque é claro que a pergunta seguinte seria:
— Preocupado?
Droga.
Fiquei parado, pensando a fundo. Estava pronto para contar alguma
mentira, mas parando para pensar, por que simplesmente não contava ao
Sr. Drew o que tinha visto? Ele gostaria disso. Talvez.
— É pessoal — acabei dizendo. Soou tão idiota.
— Eu entendo, garoto, eu entendo. Mas estou sempre aqui — disse
ele, pondo a mão no meu ombro. — Se precisar conversar sobre alguma
coisa, a porta do meu escritório está sempre aberta.
De repente, senti que talvez eu quisesse conversar com ele. Sobre as
minhas ambições e talvez sobre o que eu podia fazer como parte da
companhia no futuro. Mas não só sobre isso. Queria compartilhar coisas
sobre o meu avô e como eu me sentia confuso com como a minha mãe
simplesmente o jogou em cima de nós. E sobre como não era justo ela ter
que trabalhar tão duro. E como eu agora era forçado a vestir as camisas
dele porque não conseguia pagar por mais nada. Me sentia culpado demais
para gastar mais dinheiro comigo mesmo. Ou pelo menos por enquanto.
Não disse nada disso, é claro. Apenas o segui pelo saguão e entrei no
carro que estava à nossa espera. O interior era extremamente limpo e
cheirava a couro. Os assentos eram macios ao toque. Tinha também tanto
espaço que eu quase conseguia esticar minhas pernas por inteiro.
— Belo carro, não é? — disse o Sr. Drew, sorrindo para mim.
— Belíssimo carro, senhor — disse.
Ele me deu uma piscadela e então se recostou no assento, virando a
cabeça para olhar pela janela. Então eu fiz o mesmo e observei enquanto
minha cidade passava por mim de uma forma nova e singular. Nunca tinha
entrado em muitos carros na vida. Claro, nos fundos da caminhonete do Zip
por uma quadra ou duas e até me segurando no para-choque do velho
calhambeque surrado do Nick. E eu pegava um táxi de vez em quando, mas
não muitas vezes e sempre às custas de outra pessoa. Então ver o mundo do
meio da rua, fazer parte do tráfego para variar, ao invés de ficar desviando
dele, fez eu me sentir grande, sabe? Fez eu me sentir bem.
Seguimos até a Quinta Avenida e paramos em frente a uma loja do
outro lado do parque. Saímos em meio à calçada. Uma mulher com um
grande chapéu quase esbarrou em mim, seu cachorrinho branco e felpudo
quase esmagado embaixo dos meus pezões de palhaço.
— O que acha? — perguntou o Sr. Drew, enquanto olhávamos para a
pequena e luxuosa loja de ternos. Na janela, havia um terno risca de giz
perfeitamente alinhado, com mocassins pretos e brilhantes que reluziam ao
sol da tarde.
— Acho que não faz o menor sentido o senhor ter escolhido o Sr.
Schwartz — respondi.
O Sr. Drew riu e me deu um tapinha nas costas.
— Vamos entrar, Buddy — disse ele.
Entramos. Estava escuro, mas não vi nem uma única partícula de
poeira flutuando nos fachos de luz. Ao invés disso, tudo brilhava, mesmo
as prateleiras de madeira. Havia um brilho em tudo.
Um homem calvo com pequenos olhos redondos num terno azul-
marinho simples veio até nós. Tinha uma fita métrica envolta em seu
pescoço e ficava tão bem nele que imaginei que talvez aquela fosse a nova
moda que as pessoas estavam usando nas ruas.
— Sr. Drew, entre — disse ele. — Vamos ver como este smoking
fica no senhor.
Foi quando entendi melhor. O Sr. Schwartz não fazia trajes de luxo.
Não tinha clientes o suficiente para isso.
Esperei enquanto o Sr. Drew se trocava para vestir um smoking
completamente negro e fiquei maravilhado com quão belo e bem-acabado
ele era. Ele ficou ali parado de braços abertos enquanto o alfaiate o media
com a fita, fazendo pequenas anotações em seu bloco enquanto isso.
— Tirando as medidas de um homem — disse o Sr. Drew, em meio a
uma risada.
— Sempre, Sr. Drew — respondeu o alfaiate.
— Aprendeu alguma coisa?
— Algumas pessoas têm braços bastante compridos — respondeu o
alfaiate.
O Sr. Drew deu uma grande gargalhada frente a isso. Então se virou
para mim.
— Como está, Buddy?
— Muito bom — disse. Senti uma pontada nas entranhas, sentado ali
com a camisa do meu avô que coçava ao toque. E com os calções com o
buraco costurado no joelho.
— Vamos dar uma festa, o estúdio. Uma grande festa de gala.
Cobertura de hotel. Dançarinos. Tudo incluso.
— Parece ótimo — disse. Porque parecia.
— Tem que estar bem apresentado. Tem que fazer eles pensarem...
— Ele fez uma pausa. — Tem que fazer eles saberem, Buddy. Saberem
que não estamos de brincadeira. Expansão em todos os sentidos.
— O teatro — disse, me lembrando.
O Sr. Drew olhou para mim e assentiu.
— Exatamente.
— Então o estúdio está indo bem — disse, sentindo-me aliviado.
O Sr. Drew me olhou meio engraçado.
— O que quer dizer com isso?
— Ah, bem, você sabe. As pessoas têm dito que... bem... você sabe...
— Parei de falar porque a expressão engraçada tinha se tornado algo menos
engraçado. Mais severo.
— Quem tem dito?
Olhei para o alfaiate, que havia seguido até o balcão por um
momento para riscar alguma coisa em seu bloco. Seus olhos se ergueram
em minha direção e então voltaram a se abaixar.
— Uh, ninguém em específico. É que quando eu fui pego pegando as
coisas do armário, me foi dito que não podíamos arcar com os custos de
desperdiçar suprimentos e... bem... você sabe...
— A Sra. Lambert? Bom, sim, ela é uma boa funcionária, mas é uma
mulher, Buddy — disse o Sr. Drew, olhando para frente e inclinando o
pescoço para o lado, a fim de estalá-lo.
— O que quer dizer?
— Quer dizer que elas nem sempre entendem de negócios.
Não tinha certeza se eu acreditava nisso. A mãe era muito boa com
dinheiro e ela trabalhava duro. E a Dot parecia saber tudo o que acontecia
no estúdio. Às vezes até mais do que o próprio Sr. Drew parecia saber.
— Olha, eis aqui a verdade, garoto — continuou o Sr. Drew. Estava
olhando para si mesmo no espelho agora e quase parecia estar falando com
seu reflexo. — Sempre haverá pessoas que tentarão derrubá-lo. Talvez seja
sabotagem, o que acaba sendo mais fácil, porque você consegue ver bem
ali, diante dos seus olhos. Talvez sejam burburinhos e fofocas. O pior é a
traição, Henry, traição é o pior. Quando você acha que alguém entende o
plano, quando acha que alguém é parte do time. Quando você acolhe uma
pessoa e divide com ela todas as suas visões para o futuro. É como
compartilhar uma parte da sua alma, garoto.
— Visão é importante — respondi, lembrando-me daquela vez na
plataforma do teatro. Mas não conseguia ignorar a estranheza de ter sido
chamado de “Henry”. As pessoas cometiam deslizes o tempo todo. Quer
dizer, caramba, mesmo eu confundia os nomes dos meus amigos do bairro
e os conhecia desde que tinha nascido. Mas aquele nome... o nome talhado
na minha mesa. Aquilo me assustou um pouco.
O Sr. Drew se voltou para mim. Era um olhar extremamente
profundos. Olhando através dos meus olhos, nem mesmo dentro deles.
— Exatamente, você entende, com certeza. — Ele desceu da
pequena plataforma sobre a qual estava parado e veio até mim. — Buddy,
você virá a essa festa.
— Virei?
— Estou te convidando. Você precisa ver o que estamos fazendo.
Precisa fazer parte disso.
Eu queria fazer e estava empolgado em fazer. Não sabia se precisava
fazer, mas era totalmente a favor.
— Sabe do que mais você precisa? — perguntou o Sr. Drew.
Sacudi a cabeça. Eu tinha uma lista de necessidades na minha vida:
dinheiro, segurança, comida. Mas não achava que era disso que o Sr. Drew
estava falando.
O Sr. Drew me abriu um sorriso.
— Você precisa de um smoking.

Eu nunca coubera num terno antes. Bom, isso não era inteiramente
verdade. A mãe sempre soltava as bainhas e tinha um jeito mágico de
estender a vida de todas as minhas roupas, me fazendo ficar lá parado feito
um manequim numa vitrine. Mas eu nunca tivera um smoking antes e com
toda certeza nunca tivera um de uma alfaiataria do Upper East Side. O
smoking não era feito do zero, como o do Sr. Drew. Era um que por algum
motivo fora devolvido ao alfaiate, um que ele estava revendendo. Então ele
soltou a bainha das calças, o que sempre acontecia comigo, e apertou um
pouco a cintura, tudo tão rápido que eu e o Sr. Drew mal tivemos que
esperar até que ele me entregasse uma bolsa preta chique com um cabide
brotando do topo.
Estava acostumado a carregar esse tipo de bolsa para outras pessoas.
Mas aquela era minha.
E isso fazia toda a diferença.
— O que acha, garoto? — perguntou o Sr. Drew, enquanto
voltávamos para seu carro.
— Acho que é incrível, obrigado, senhor. — Ainda estava em
choque com aquilo tudo.
— Não foi nada — disse o Sr. Drew com um aceno de sua mão. — E
então, garoto, onde você mora?
Não soube o que dizer naquele momento. Não que eu não soubesse a
resposta, era só que...
— Ei, Buddy — disse ele, pondo uma mão no meu ombro. — Eu sei
como é. Não precisa ter vergonha.
Olhei para ele. Era difícil não ter. Não era só o fato de ter crescido no
meu bairro e ser pobre. Isso já era ruim o suficiente. Era morar num
apartamento de cortiço que eu dividia com a minha mãe e avô. Onde todos
os apartamentos do meu andar e do debaixo dividiam um único banheiro
pequeno. Onde às vezes a água era cortada por algum motivo aleatório e a
luz zumbia alto demais.
Como eu poderia me orgulhar disso?
— No Lower East Side — disse.
— Ótimo! — Ele se inclinou para frente para falar com o motorista e
eu me recostei no meu assento, querendo desaparecer em meio a ele.
Nós logo partimos e o Sr. Drew começou a falar sobre como Nova
York era a maior cidade do mundo, como Los Angeles não tinha nada do
que estávamos fazendo ali com animação, como os atores eram muito
melhores e como ele amava as estações e odiava palmeiras. E eu não podia
concordar ou descordar porque nunca tinha deixado a cidade e, ainda que
tivesse deixado, meu estômago estava dando um nó atrás do outro à medida
que íamos nos aproximando do meu bairro.
Onde nós eventualmente chegamos. Eu odiava o quanto ele era feio.
Quão altos eram os prédios. Como pareciam que podiam cair um por cima
do outro. As roupas lavadas penduradas nas janelas, as barracas de comida
ao longo das ruas estreitas. E as pessoas. Tantas pessoas gritando umas
com as outras. Ainda que não estivessem bravas. Só o barulho, o calor e
aquele cheiro. Aquele cheiro que eu tinha contado antes. De mijo. E
vômito. E suor.
— Qual é a sua rua, Buddy? — perguntou o Sr. Drew.
— Tem certeza? — disse. Não estava muito empolgado para mostrar
isso a ele.
— Não quer mostrar a essas pessoas como é o sucesso de verdade?
Não quer que eles vejam o que se ganha com trabalho duro? Eles têm que
ficar maravilhados com você, Buddy — disse o Sr. Drew, enquanto
passávamos pelo Açougue do Singer.
Até onde eu sabia, todos no meu bairro trabalhavam duro. Até onde
eu sabia, trabalhavam até não conseguir mais ficar de pé. Era por isso que
éramos um bairro de corcundas com peles bronzeadas e rostos magros e
angulosos. Era por isso que nunca ficava quieto por ali. As pessoas estavam
sempre com pressa, mesmo às duas da manhã. Mas eu tinha entendido o
que ele quis dizer. Ele quis dizer que eu tinha conseguido sair e que isso era
algo a se invejar. Eu com toda certeza invejava aqueles que tinham
escapado antes de mim. Havia uma diferença entre bom trabalho duro e
mau trabalho duro.
Pelo menos... foi o que eu senti na época. Naquele momento.
Naquele carro chique com o meu smoking novo, eu me senti... bem, eu
agora tenho vergonha disso, mas naquele momento, eu me senti... superior.
Guiei o Sr. Drew até a porta da frente do nosso prédio. Foi difícil
chegar lá com as pessoas que começavam a se aglomerar e o motorista teve
que avançar devagar. Cabeças brotaram das janelas acima e eu notei
Timmy Sharp sair correndo da loja de seu pai para espiar o carro. Acenei
para ele, que se ergueu e exclamou:
— Buddy Lewek está naquele carro!
Bom, isso só atraiu a multidão para ainda mais perto e pude ver que a
expressão no rosto do Sr. Drew não estava mais tão feliz. Ele parecia
inquieto. Talvez estivesse preocupado que pudéssemos acabar batendo em
alguém com o carro.
Nah, não era isso. Isso foi o que disse a mim mesmo na época.
Mas essa é a minha história e eu não preciso mais inventar mentiras.
Não depois do que sei agora.
Não era preocupação.
Era nojo.
Nós paramos.
— Bom, é melhor você sair, Buddy. Seus fãs estão esperando —
disse ele. Estava sorrindo, mas parecia impaciente agora. E eu estava
confuso porque, afinal, a ideia fora dele.
Assenti e, pegando a bolsa, saí do carro. Quase no mesmo instante
que meus pés tocaram o pavimento, o Sr. Drew já estava indo embora. Não
o culpei por querer dar o fora daquilo tudo. A situação só me deixou com
ainda mais vergonha.
— Ei, Buddy, posso pedir três desses? — perguntou Timmy,
apontando para o carro do Sr. Drew.
Eu sorri, mas não sabia o que dizer. Não era muito bom com piadas.
— Quem era aquele, Bud? — perguntou Molly O’Neill.
— Meu chefe — respondi, tentando abrir caminho pelas pessoas para
chegar à minha porta.
— Você trabalha naquele estúdio chique, né? — perguntou Timmy.
— Sim.
— Você vai se lembrar da gente, não vai? — disse o Sr. Goldman,
do outro lado da rua. — Ei, Buddy, não se esqueça da gente!
Acenei para ele e sorri. Passei pela porta.
— O Billy vai dar uma festa no sábado, vê se aparece — disse
Molly.
— Talvez — disse, mas não ia acontecer. Eu não ia a uma das
festinhas do Billy onde todo mundo ficava bêbado e sempre acabava dando
em briga.
Eu então fechei a porta. Acho que se pode dizer que a fechei na cara
deles, mas eles não estavam recuando e eu estava me sentindo esmagado.
Eu sempre quis impressionar a vizinhança, mas nunca me dera conta de
quanta coisa sentiria com isso.
No geral, o que eu mais conseguia pensar era no rosto do Sr. Drew e
no quão rápido ele foi embora com seu carro. Estava começando a me dar
dor de cabeça.
Subi até o apartamento, encontrando-o vazio, e fiquei grato por isso.
Não estava a fim de conversar com ninguém, explicar “como tinha sido
meu dia”. Também não estava a fim de praticar meu traço. Só queria deitar
na minha cama e olhar para o teto. Pendurei o smoking cuidadosamente no
guarda-roupas, junto aos dois ternos surrados do vô.
Fui até a cama e olhei para ela. Olhei para a cômoda ao lado. Para as
folhas de desenhos em cima dela. Me arrastei por cima da cama e peguei
um punhado antes de me virar e deitar de costas no colchão, olhando para a
mancha de água lá em cima. Quando criança, costumava fingir que era um
rio e criava cidadezinhas na minha imaginação que viviam à sua margem.
Confabulava cavalos e até escolhia um para mim, para a mãe e para o pai.
Algum dia, íamos morar num lugar que tivesse espaço para todo mundo.
Espaço para respirar.
Peguei um dos meus desenhos. Um de um anjo gorduchinho de um
teto em algum lugar da Europa. Tinha começado como círculos, mas agora
estava bem parecido com a pintura. Nunca imaginei que eu desenharia
anjos gorduchinhos. Nunca imaginei que era necessário. Mas agora estava
começando a entender melhor. As linhas simples que compunham o Bendy
ainda eram baseadas em figuras humanas. Em ângulos clássicos. Eu
conseguia desenhá-lo andando e realmente parecia que ele estava andando.
Foi quando notei que metade de uma das asas do meu anjo estava
para fora da folha. Aquilo não fazia sentido para mim. Por que eu não teria
desenhado a asa por inteiro? Aquilo fazia parte do exercício.
Me sentei. Isso me lembrou do cowboy do vô daquela tarde. A forma
como ele parecia ter escorrido da folha.
Olhei para a próxima folha na minha mão e então para a próxima. Eu
estava ficando louco? Eles todos estavam mesmo parecendo um pouquinho
diferentes? Todos os desenhos estavam escorrendo?
Ou era só coisa da minha cabeça? Só um deslize da minha mente...
Joguei as folhas no chão a frente e lancei meus antebraços sobre os
olhos. Tudo estava quente demais. Meu braço, minha cabeça, meu cérebro.
Eu precisava que tudo esfriasse.
Que todos ficassem frios, na deles.
Mas é claro que isso não ia acontecer.
Da frigideira para o fogo, como dizem.
Direto para as chamas.
CAPÍTULO
QUATORZE

O tempo passa. As pessoas dizem que quando as coisas estão indo


bem, o tempo passa mais rápido; quando as coisas vão mal, ele passa mais
devagar. Consigo ver isso. Mas às vezes acho que o tempo toma suas
próprias decisões a respeito das coisas.
Não sei dizer quanto tempo se passou aqui. Na escuridão gotejante.
Não sei dizer o que o tempo fez, se aconteceu tudo ontem ou se aconteceu
tudo anos atrás. Ou, sei lá, se ainda nem aconteceu.
Quero contar sobre o Sammy. Sobre quando ele desapareceu. Quero
chegar a essa parte da história. Mas a questão é que só notamos que alguém
sumiu quando o tempo passa. É como quando o relógio vai batendo
normalmente e de repente ele pula uma batida. E a gente olha para cima. E
a gente não chegou de fato a escutar algo acontecendo. Mas algo dentro de
nós notou. E ficou encucado.
Não foi bem assim com o Sammy. Não exatamente. Não foi uma
pequena batida pulada. Embora isso até que fizesse algum sentido para um
diretor musical. De uma forma engraçada. Mas não foi engraçado.
Tudo começou duas semanas depois que eu peguei o meu smoking.
Depois que o Sr. Drew me convidou para a festa. Eu estava seguindo para a
parte do estúdio que eu menos gostava, o Departamento de Música, quando
me deparei com a estranha violinista que encontrara no meu primeiro dia.
Nunca descobri o nome dela. Os músicos não ficavam muito por ali e, de
toda forma, ela me dava arrepios. Sempre parecia perturbada.
Seu cabelo continuava uma chapa negra e ela vestia aquela longa
saia negra e um suéter, apesar que, é, talvez o clima estivesse alguns graus
mais fresco agora que era setembro, mas não estava assim tão melhor. Ela
não parou. Não sabia nem se tinha me notado. Ela passou por mim de lado
e continuou em frente. E foi isso.
Mais tarde naquele dia, ouvi o Dave, de todas as pessoas, falando
sobre como os músicos tinham ficado trancados do lado de fora da Sala de
Música.
— Mas que papo é esse? — perguntou Richie, erguendo a manga
amarrotada e coçando um bíceps. — Arranjem uma chave-mestra.
— Eles arranjaram. Parece que tinha alguma coisa barrando a porta
— respondeu Dave. Todos olhamos para ele. O velho nunca falava, nunca
parecia lembrar que estávamos ali. — Só o que eu sei — acrescentou ele e
então, como se um interruptor tivesse sido desligado, voltou ao trabalho,
folheando entre suas duas páginas, certificando-se de que a mudança de
traço no braço de Boris estivesse correta de um quadro para o outro.
— Tem que ter algo mais nessa história — Jacob disse para mim.
Algo a ver com a tinta, imaginei, mas não disse em voz alta. Porque
seria algo bizarro a se dizer.
Três dias depois, quando tempo o suficiente havia se passado, mas
não tanto a ponto das pessoas chegarem a notar, o Toby da Contabilidade
mencionou que o Sammy não tinha ido pegar seu cheque de pagamento.
Novamente, nós funcionários só ficamos sabendo algo a respeito porque o
próprio Sr. Drew estava correndo por todo lado, esbravejando a respeito
disso. Interrogando todo mundo que encontrava no meio-tempo. Não sentia
que a raiva fizesse sentido com a situação, mas então me dei conta de que
talvez ele tivesse mais em mente do que apenas o desaparecimento de um
diretor musical.
— É a máquina — disse Dot, enquanto almoçávamos.
— O que tem ela? — perguntei. Ela sempre dizia as coisas de
repente desse jeito.
— Algo não está funcionando direito. Ouvi ele gritando com o Tom.
— Ele grita com todo mundo — respondi.
— Sim. Mas confia em mim. Queremos respostas? Temos que
encontrar essa máquina — disse ela.
Não consegui exatamente dizer a ela que não estava mais interessado
em continuar com a investigação. Como a criatura perto da Enfermaria não
me deixava mais curioso, só me fazia querer manter distância. Depois de ir
à alfaiataria com o Sr. Drew, só o que eu queria era desenhar e mostrar ao
Sr. Drew o que conseguia fazer. Só queria trabalhar.
Mas então o Sammy desapareceu.
Oficialmente.
Ele estava sumido há mais de uma semana. Mas quando a polícia
apareceu e começou a falar com as pessoas, foi aí que notamos que era
mais que só alguém tirando um dia de folga.
As perguntas eram diretas:
— Quando foi a última vez que você o viu? — E foi quando me
lembrei que a última vez que o havia visto fora quando ele entrou com tudo
no Departamento de Artes, procurando por tinta. Isso me deixou muito
desconfortável.
Mas então houve uma reviravolta.
Me lembro de ir ao trabalho e a polícia estava do lado de fora, o
estúdio estava fechado. Me lembro do Richie dizer que alguém tinha
invadido o lugar e que estava tudo revirado. Que estavam investigando um
possível assalto. Me lembro do Sr. Drew saindo às pressas de seu carro e
gritando na cara do detetive alguma coisa sobre sabotagem. Como vê-lo
gritando daquele jeito era pior que ver o Sr. Schwartz perder a cabeça. Pior
até que ver o Sammy perder a cabeça. Era chocante e um pouco assustador.
Especialmente em comparação a como ele normalmente se portava.
Me lembro de encontrar a Dot em meio à toda a confusão. Ou talvez
ela tivesse me encontrado.
— Você acha que foi um assalto, Buddy? — perguntou ela.
— É claro que não — disse, soando mais convicto do que me sentia.
— Então você vem comigo, hoje à noite, quando todos tiverem ido
embora. Para darmos uma olhada — disse ela. Nem sequer perguntou. Se
tivesse perguntado, eu provavelmente teria dito não. Se bem que eu ainda
podia ter dito a ela que não queria ir. Ela não tinha poder sobre mim.
O fato era que, apesar das minhas preocupações, eu ainda estava
curioso. Mas era mais que isso. Ver o Sr. Drew tão alterado, vê-lo
tremendo de raiva, trancado para fora do próprio estúdio. Bom, isso me fez
querer consertar as coisas. E se a Dot e eu conseguíssemos descobrir o que
havia acontecido, se desvendássemos o mistério, ele ficaria grato. Eu tinha
ambição, afinal.
E a Dot tinha uma chave.

As barreiras da polícia ainda estavam montadas à noite. Mas não


havia nenhum policial. Ninguém em volta vigiando o estúdio.
— Queremos mesmo fazer isso? — perguntei. Não conseguiria
desenhar uma cena mais sinistra nem se tentasse. Apesar que àquela altura,
bom, estava começando a achar que os meus esforços com desenhos não
eram lá tão impressionantes. Ainda assim. O exterior escuro e iminente. A
placa de “Não Entre”. O fato de que mesmo a lâmpada do poste sobre nós
estava apagada. Uma lâmpada queimada ou coisa do tipo.
Dot acendeu uma lanterna.
Porque ela tinha trazido uma lanterna.
Porque ela sempre pensava a frente desse jeito.
— Não acho que devemos acender alguma luz lá dentro. Não
queremos chamar atenção para o prédio — disse ela, começando a andar.
— E fique longe das janelas, certo?
— Sim — disse, o que não era a coisa certa a dizer, mas estava me
sentindo tão inquieto agora. Sabia que Dot estava segura de que Sammy
estava por trás de tudo de estranho e bizarro no estúdio. E eu queria confiar
nela, assim como com a maioria das coisas.
Mas não conseguia me esquecer da respiração no meu rosto.
Da grande marca de mão na minha camisa.
Não fazia sentido para mim que isso tudo fosse... bem... humano...
Acontece que também não fazia sentido que não fosse.
Mas eu não queria assustá-la. E não queria me assustar. Mas estava
com medo do que se escondia nos cantos escuros.
Entramos no elevador. Foi uma experiência estranha. Sentir o
movimento, mas ver apenas a Dot e parte do teto iluminado. Era difícil
acreditar que sequer estávamos nos mexendo. Dot não disse nada, mas
parecia tão determinada quanto de costume, segurando a lanterna pouco
abaixo da altura dos ombros. Seus óculos criavam grandes sombras em
volta dos olhos, cobrindo-os de forma que parecia que ela estava usando
uma máscara. Era uma super-heroína.
O elevador parou em meio a um ruído e saímos no corredor escuro.
Lá vamos nós de novo, pensei. Caminhamos por aquele corredor familiar e
Dot lançou a luz em volta para mais do que só para onde estávamos indo.
— Buddy, veja — disse ela. Sua luz apanhou o brilho de algo na
parede. Ela se aproximou, mas não precisava. Eu sabia o que era. — Tinta
— disse.
Ela acompanhou a marca com a lanterna e lançou a luz na parede
mais afastada de nós. Ela cresceu, revelando grandes rastros de tinta, como
se uma mão tivesse sido arrastada por ela, mas maiores. Havia respingos
maiores mais ao final da parede, como se alguém tivesse jogado baldes de
tinta nela. Atirado no chão e salpicado tinta por toda parte.
— Não me surpreende terem fechado tudo. Não sei nem como
começariam a limpar isso. Isso é coisa de alguém com raiva — disse Dot.
— Acha que foi o Sammy? — perguntei.
— Quem mais? — Ela começou a andar de novo.
Não achava que o Sammy fizera aquilo.
Me sentia mais convicto a cada instante. Sammy não tinha feito
aquilo tudo e então simplesmente desapareceu. Outra coisa tinha feito
aquilo... e então feito alguma coisa com o Sammy.
E no instante em que pensei nisso, eu ouvi.
Agora que paro para pensar, me pergunto se aconteceu mesmo desse
jeito. Que eu pensei nisso e então ouvi a respiração. Talvez eu tenha ouvido
a respiração primeiro. Faria mais sentido. Não sou assim tão esperto.
A princípio, achei que fosse minha mente me pregando peças. Como
a tinta escorrendo do papel. Mas então a Dot parou e disse:
— Shh.
E eu soube. Soube que ela também tinha escutado.
Nós paramos de andar e ficamos em silêncio absoluto.
Só que não podíamos ficar parados em silêncio.
Não com aquele som de respiração úmida vindo de algum lugar atrás
de nós. Não com o súbito baque no chão. E outro.
Notei que a luz da lanterna da Dot estava se ofuscando. Belo
momento para a lâmpada falhar. Me virei para olhar e vi o rosto da Dot
iluminado pelo brilho, olhando apavorada enquanto as sombras começavam
a avançar em meio ao feixe de luz. Podia ser água se fechando à nossa
volta, mas eu sabia que não era.
Outro baque e mais outro.
A respiração ficava cada vez mais alta.
A luz ficava cada vez mais fosca.
— Corre! — sussurrei alto e dei um empurrão na Dot. Nem pensei a
respeito, só fui lá e fiz. E ela correu. Não perguntou por quê, não tentou
bolar um plano melhor. Só correu. E eu corri.
A luz que restava saltitava pelas paredes, fazendo difícil dizer em
que direção estávamos indo. Ela iluminou um pôster e de repente Bendy
estava sorrindo para nós, como se tivesse saltado de detrás de uma curva.
Arquejei, mas o pôster logo ficou para trás. Assim como a respiração, que
ficava cada vez mais alta. Ofegante. Um animal grande e pesado nos
perseguindo. E chegando perto.
Mal consegui ver a palavra “Música” quando Dot exclamou:
— Por aqui!
Nos lançamos pela porta para a Sala de Música e — seja lá como foi
que entramos, seja lá como conseguimos passar — estávamos dentro e a
porta se fechou com tudo atrás de nós. Me lancei de costas contra ela com
toda a força, ainda sem fôlego, o pavor emanando de cada poro.
— Buddy, olha — disse Dot, a voz baixa, mas urgente. Ela estava
apontando a lanterna para os meus pés. Olhei para baixo. As sombras
estavam se infiltrando por debaixo da porta e a luz vacilou outra vez.
Me empurrei para longe da porta rápido, tropeçando em meio à sala e
esbarrando na Dot, que acabou cambaleando. Agarrei sua mão por instinto,
para não me perder dela. Ela não reclamou. Sua lanterna iluminava a
parede, a luz ainda titubeante.
Mais tinta.
Ela então se virou para iluminar a sala.
Cadeiras e suportes de partituras quebrados. Instrumentos espalhados
por todos os cantos.
E tinta.
Tinta para todo lado.
— Consegue ouvir? — sussurrou ela. — Não tô ouvindo.
Forcei meus ouvidos a escutarem a respiração úmida, os passos.
— Não. Vira a luz para a porta de novo — sussurrei de volta.
Ela o fez e arfou. Ambos recuamos um passo imediatamente, ainda
segurando um no outro. As sombras negras estavam ainda mais compridas
e agora pareciam estar vindo em nossa direção, quase como se estivessem
subindo pelo feixe da lanterna. Como dedos tentando nos agarrar.
— Desliga, desliga! — disse, em pânico.
Pude ouvir o tatear pela lanterna e então houve um click. Ficamos lá
parados, na escuridão absoluta. As únicas respirações que conseguia ouvir
eram a dela e a minha. Encolhi meu corpo todo, preparando-me para que as
sombras nos encontrassem, nos envolvessem por inteiro.
Nada aconteceu.
— O que foi isso? — perguntou Dot, num sussurro frenético.
— Foi a coisa. A coisa da Enfermaria — sussurrei de volta, tentando
desesperadamente responder e também não fazer barulho.
— Eu não entendo — sussurrou Dot, sua mão tremendo junto à
minha. — Não faz sentido. As sombras, os sons.
— Shh!
Ela ficou quieta no mesmo instante. Eu não sabia o que tinha ouvido,
mas alguma coisa, alguma coisa aguçou meus sentidos. Fechei meus olhos.
Mesmo no escuro absoluto, fechei meus olhos. Tentando ouvir em meio à
escuridão, como se a própria escuridão fosse espessa e estivesse abafando o
som.
Muito quieto.
Quieto demais.
— Acha que foi embora? — perguntou Dot.
Crash.
Ambos gritamos.
— Acende a luz! — disse e houve um movimento de pânico atrás de
mim enquanto Dot se atrapalhava com a lanterna. O feixe de luz estava
fraco, fraco demais, quando se estendeu pelo chão.
Mas foi o suficiente para pegar a figura coberta de tinta espessa no
chão diante de nós.
— Buddy — arfou Dot.
Me abaixei. Já tinha feito isso antes. Estava experienciando a mesma
coisa que antes. Na Sala de Música. Me curvando sobre uma figura coberta
de tinta.
A cabeça sacudiu e eu caí para trás, em cima da Dot. Ela tropeçou e a
luz tremulou por um momento.
Olhei para a figura.
Estava se erguendo com as mãos, os cotovelos dobrados e as
omoplatas sobressalentes. Uma cortina de cabelo lhe caía sobre o rosto,
gotejando agora em meio à tinta, como se o próprio cabelo fosse de tinta.
Eu conhecia aquele cabelo.
— Ele está aqui — disse uma voz áspera e familiar.
A cabeça se retorceu de súbito e então o corpo caiu em meio a um
baque nauseante contra o chão de madeira.
— O que é isso? — perguntou Dot, sua voz alta e trêmula.
— A violinista — respondi, mal conseguindo colocar as palavras
para fora.
— Quem?
Ergui a mão para Dot; precisava da lanterna. Precisava. Estava
completamente em pânico e só o que sabia que ele estava ali. A coisa
estava ali.
De alguma forma, Dot entendeu e pôs a lanterna na minha mão
trêmula. A apontei ao redor da sala loucamente, mal parando para ver se os
cantos estavam vazios, ignorando as sombras que se erguiam, a luz que
ficava mais fraca, o lampejo. Todas as direções, todos os lados possíveis.
Apontei para baixo, por tudo à minha volta, de volta para a porta e o caos
na sala fez com que tudo parecesse ter sido só um sonho febril, como se eu
estivesse tonto.
Nada. Ninguém.
Parei, o fraco feixe de luz pousando novamente sobre a violinista.
— De onde ela veio? — sussurrou Dot. — Não pode simplesmente
ter aparecido.
Sacudi a cabeça. Não fazia ideia.
— Foi como se ela simplesmente tivesse sido... — Não terminei meu
pensamento.
Houve uma pausa e então Dot concluiu minha frase:
— ...jogada aqui.
Devagar e com uma longa e profunda respiração, virei o feixe de luz
titubeante para cima de nós e vi.
Algo molhado. Preto. Gotejante. Uma figura. Com algo pontiagudo
que brilhava frente à luz. Como dentes.
E então a lanterna se apagou em meio às sombras.
CAPÍTULO QUINZE

O gemido. O mesmo gemido da Enfermaria, mas dessa vez estava


mais para um rugido. Ele cortou a escuridão, perfurou meu cérebro e eu
senti aquela sensação tão familiar de paralisia tomar conta de mim. Estava
preso. Era o fim. Era o fim. Dot assumiu o controle e puxou meu braço
com força, me forçando a me mexer, a segui-la em sua corrida maluca pela
sala, enquanto um alto estrondo e o som de coisas se quebrando e daquela
mesma respiração úmida enchia o lugar. Continuamos correndo, fugindo de
tudo, sem saber o que estava acontecendo ou onde estávamos. Batemos
com força na beira do palco, caindo nos suportes de partituras, derrubando
a lanterna e eu me debati para voltar a me erguer enquanto ainda a segurava
pela mão.
— Buddy, pare, pare, escute — ela sussurrou no meu ouvido.
Eu não conseguia parar, não ousava parar. Tínhamos que dar um
jeito de fugir.
— Escute.
Eu arrastava as unhas pelo palco, sentindo as farpas embaixo delas.
— Pare! — gritou ela. Alto. Alto para que qualquer um ou qualquer
coisa pudesse ouvir.
Eu parei. Parei, ainda que meu corpo inteiro estivesse tremendo.
Ainda que tudo dentro de mim estivesse implorando para que eu fugisse.
Silêncio.
Não o terrível silêncio de antes.
Um tipo diferente de silêncio.
Escutei a Dot em meio ao silêncio. A escutei procurando por alguma
coisa e então... um feixe de luz sólido.
Me virei para olhar para ela, para seu rosto ainda escurecido pelas
sombras, mas agora visível no raio de luz. Foi tão bom ver seu rosto outra
vez. Ela assentiu para mim, para me dizer que estava bem, e então virou o
feixe de luz.
A violinista tinha desaparecido.
A coisa tinha desaparecido.
Só o que restava era uma mancha de tinta preta.
Dot ergueu o feixe de luz.
Nada.
Só mais tinta. Gotejando um pouco. Agora eu conseguia ouvir. Uma
única gotícula que ia caindo vez ou outra, bem baixinha.
Ela vasculhou a sala com a lanterna de novo, mas, mesmo enquanto
o fazia, eu sabia que ambos sabíamos que, seja lá o que fosse aquilo, seja lá
o que fosse aquela coisa, não estava mais lá. As sombras se foram.
Finalmente, Dot se virou, abaixando o feixe outra vez, e então disse:
— Você está bem?
Não sabia como responder à pergunta. Não estava ferido. Mas o
medo, o pavor do que tínhamos visto. Sentia como se estivesse. Como se
estivesse por dentro. Como quando uma pessoa está com uma hemorragia
interna.
Uma forte luz subitamente inundou a sala, me ofuscando. Ergui a
mão sobre o rosto. O que estava acontecendo agora? Meu coração estava
acelerado e eu não conseguia sequer engolir em seco. Morrendo de medo
da fera.
— Norman? — bradou Dot.
Tirei o braço da frente do rosto. Ainda estava brilhante demais para
ver muita coisa, mas podia enxergar a Dot do meu lado olhando para cima,
em direção à parede dos fundos. Então fiz o mesmo. Só o que consegui ver
foi um círculo de luz branco sobre mim. Brilhando.
— Norman, é você? — Dot berrou outra vez.
— Olá, mocinha — disse uma voz familiar do andar de cima.
— O que diabos está fazendo aqui? — Ela pôs a mão sobre os olhos
para protegê-los da luz, então fiz o mesmo.
— Ora, eu poderia te perguntar a mesma coisa — disse ele.
Eu olhava para a luz brilhante. Me parecia errado, quase como se
estivéssemos falando com o projetor e não com uma pessoa de verdade.
— Você viu? Viu o que aconteceu? — perguntou Dot.
Houve uma pausa.
— Vocês dois estão bem? — respondeu ele.
— Estamos bem. Você viu o que aconteceu? — perguntou Dot.
— Não dessa vez — disse ele. — Mas escutei. Foi por isso que vim.
Dot se voltou para mim.
— Vamos falar com ele. — Eu imediatamente sacudi a cabeça. A
entrada da cabine de projeção ficava do lado de fora da porta. De jeito
nenhum. Eu não ia sair daquela sala de jeito nenhum, não agora, não com
aquela coisa lá fora. — Vamos, é seguro — disse ela, a voz suave. — Só
precisamos ficar de olho na luz.
— Seguro? — perguntei. Não conseguia acreditar. — Tá de
brincadeira? Temos que sair daqui!
— Vocês dois provavelmente deviam esperar um pouco antes de
voltar pro elevador, só pra garantir — disse Norman. — Ela está certa com
relação à luz.
— Como você sabe? — perguntei, me virando abruptamente. As
palavras soaram gritadas, furiosas. O que qualquer um de nós realmente
sabia sobre aquela... coisa? Não fazia o menor sentido, pra começo de
conversa, então como eles podiam saber que estaríamos seguros lá fora?
— Eu sei — disse Norman.
— Vamos — disse Dot. Sacudi a cabeça outra vez, mas é claro que
não consegui deter a Dot. E eu definitivamente não ia ficar para trás. Eu a
segui até a porta e ela a abriu com cuidado, lançando a luz da lanterna pela
curva a frente. Olhou de volta para mim. — Tudo certo, feixe estável.
E então, lá estava eu, o coração na boca, saindo às pressas da Sala de
Música atrás da Dot, subindo pelas escadas e entrando na pequena área
aberta que servia como a cabine de projeção do Norman, batendo a porta
depressa e com força atrás de mim.
Uma onda de alívio tomou conta de mim, mas no lugar do medo, a
realidade de tudo o que havia acontecido conosco me veio à tona. Aquela
coisa. Aquela coisa coberta de tinta. A violinista. Seu corpo no chão.
Caído. Era demais para mim, demais. Olhei para fora da cabine, para a sala
lá embaixo, segurando com força no parapeito. A luz forte e intermitente
do projetor fazia um retângulo perfeito na parede dos fundos da Sala de
Música. Ela tremeluzia e iluminava a sala, revelando o caos em ainda mais
detalhes. A tinta nas paredes, no chão.
Aquele ponto no chão. Onde estivera a violinista. Me reclinei sobre o
parapeito e olhei mais de perto. A mancha de tinta parecia borrada, como se
seu corpo tivesse sido arrastado para... algum lugar. Até que a tinta ficava
cada vez mais fraca e então desaparecia.
— Oi, Norman — ouvi Dot dizer. Ela soava tão exausta quanto eu
me sentia. Me virei e a vi se sentando numa caixa cheia de rolos de filme
de metal. Eu não tinha onde ficar, então me apoiei desconfortavelmente no
parapeito.
— Felizes consigo mesmos agora? Viram o que acontece quando
ficam bisbilhotando o tempo todo? Vocês dois e essa mania de meterem o
nariz onde não são chamados — disse ele, sacudindo a cabeça. Tomou uma
golada de uma caneca, mas eu não tinha certeza se era café lá dentro.
— Esteve nos observando? — perguntou Dot.
Norman riu consigo mesmo.
— Nunca vi uma dupla de adolescentes bisbilhotar tanto quanto os
dois aí sem nunca dar uns amassos.
Engasguei com nada e então comecei a tossir.
— Garoto sensível ele, né não? — perguntou Norman, desviando o
olhar para Dot.
— Se bem que o que você disse foi bastante vulgar — retrucou ela.
Norman deu de ombros.
— Você sabe o que está acontecendo? — perguntou ela.
Ele deu de ombros outra vez.
Dot deu um longo suspiro.
— Norman, você nos convidou aqui para cima. Achei que quisesse
conversar.
— Bem — disse ele, tomando outra lenta golada de sua caneca e se
recostando em sua cadeira. Parecia tão extremamente casual, nada como o
que eu estava sentindo. E isso só me deixava mais tenso.
Norman pensou por um momento e foi quando notei o quanto ele
parecia um personagem de uma história em quadrinhos. Um velho
cavalheiro sentado em sua varanda. Ele tinha um lenço no pescoço, ao
invés de uma gravata.
— Se eu disser que estão certos, o que acontece depois? — Seu rosto
enrugado brilhava à luz bruxuleante do projetor e suas sobrancelhas
peludas tinham uma pontinha tão acentuada no meio que o faziam parecer
quase diabólico.
— Depois, você nos conta — disse Dot.
Norman olhou para mim, aquelas olhadas de cima a baixo. Como as
pessoas faziam naquela minha primeira semana aqui. Mas foi como se não
tivesse chegado a olhar de fato para mim antes de agora.
— É o que querem saber? — ele me perguntou.
— É claro. — Foi uma resposta fácil. Estava me sentindo tenso e
tinha certeza que tínhamos que estar dando o fora dali imediatamente, mas
se tínhamos que ficar esperando até sabe-se lá quando, então, sim, é claro
que queríamos saber o que diabos estava acontecendo.
— É claro — Norman disse a si mesmo. Tomou mais uma golada. —
E ele fala desse jeito, sabendo que foi ele que trouxe essa criatura a nós. É
claro. É claro.
Então eu senti frio, como se a temperatura tivesse abaixado e fosse
inverno. Como se, caso eu falasse, minha respiração fosse congelar.
— O que quer dizer? — Mas eu sabia o que ele queria dizer. Estava
falando da Enfermaria. Da coisa na sala com a porta trancada. Da porta que
eu tinha aberto.
Eu a deixara sair.
Eu.
Era tudo culpa minha.
— O que vocês dois sabem sobre a tinta? — perguntou Norman, ao
invés de responder.
— Sabemos que o Sammy está obcecado por ela — disse Dot.
— Então não muita coisa — disse Norman.
— Quanto você sabe? — perguntei, tentando me recompor.
— Tudo.
Dot se ajeitou onde estava sentada e não consegui dizer se era porque
estava empolgada por estar descobrindo a verdade ou incomodada por ele
estar sendo tão evasivo.
— Conte-nos — disse.
— Quanto? — perguntou ele.
— Tudo — respondi.
— Sim — disse Dot, a voz um pouco tensa.
— Tá, tá, calma. Vocês tão agindo como se tivessem algum lugar pra
ir. Quando todos sabemos que ninguém nesse estúdio tem para onde ir.
Eu não sabia o que ele quis dizer com isso.
— Do começo, Norman — disse Dot.
Norman assentiu.
— Do começo. — Ele se recostou na cadeira com sua caneca em
mãos e pôs o pé na beira da mesa onde ficava o projetor. — Quão
familiarizados vocês estão com o Henry?
CAPÍTULO
DEZESSEIS

Henry.
O nome que me assombrava desde o primeiro dia. O nome talhado
na minha mesa. O nome do qual o Sr. Drew me chamara quando estávamos
provando os smokings. Aquele nome que eu acreditara ser simplesmente de
um ex-funcionário e que, bom, quem precisava saber desse tipo de coisa,
afinal?
— O antigo parceiro de negócios do Sr. Drew — disse Dot. —
Ajudou a fundar o Joey Drew Studios. Ele criou o Bendy.
— Ele criou o Bendy? — disse. — Eu achava... quer dizer... sempre
acreditei...
— Um monte de gente acredita — disse Norman. — Não é do feitio
do Sr. Drew corrigi-las.
Isso me fez me sentir desconfortável. A implicação nisso.
— Ele criou os grandes três, não foi? — perguntou Dot.
— O Bendy e o Boris. Até a Alice, mas só começaram a incluí-la
depois que o Henry já tinha ido embora. Sim. Ele era um artista talentoso.
Um sujeito decente também. Na medida do possível.
— Vindo de você, é um baita elogio — disse Dot.
Norman deu risada.
— Acho que sim.
— Mas o que o Henry tem a ver com a tinta? — Eu queria prosseguir
com a história, não precisava saber do Henry e do Sr. Drew.
— Bom, o Henry foi embora. Disso vocês sabem. Ele pediu as
contas, queria passar mais tempo com a esposa, a Linda. Vocês entendem,
esse trabalho pode ser... consumidor.
— Claro — disse Dot.
Assenti, mas engoli em seco. Pensei em todas as noites em que
ficava até mais tarde. Pensei em como tentava provar o meu valor. Pensei
em como não tinha uma boa conversa com a mãe há um bom tempo.
— Como vocês acham que um homem como Joey Drew lida com
isso?
— Lida com o quê? — perguntei.
— Com a partida. O Sr. Drew tinha a visão. Mas o Henry, ele tinha o
talento. O talento se foi, e agora? Não é pessoal, mas o Sr. Drew lida como
se fosse. Talvez ele decida que não precisa do Henry. Nunca precisou. Só
precisa do talento.
Nada disso estava fazendo o menor sentido e, com tudo o que tinha
acabado de acontecer, a ideia de ter um monstro do lado de fora da porta, e
essa sensação, essa sensação que mais parecia um soco no estômago ao
ouvir a palavra “visão”... Eu não conseguia juntar as peças.
— Certo, então o Sr. Drew contrata pessoas talentosas, sabemos
disso — disse Dot.
— E sabemos que os desenhos vão bem por um tempo, depois que o
Henry vai embora. A Alice foi popular por um tempo. Assim como sua
atriz original, a Susie. Chegou a vê-la? — Norman perguntou a Dot.
— Uma vez — respondeu ela.
— Um doce de menina. — Ele terminou sua bebida e pôs a caneca
na mesa. — Mas enfim. Não durou. Todo o talento do mundo, e não durou.
Ele começa a gastar dinheiro com um parque de diversões que nunca vai
construir.
É claro que Norman também sabia sobre isso.
— E com o teatro — disse, quase mais para mim mesmo.
— Que teatro? — perguntou Norman.
— O estúdio começa a decair — disse Dot, colocando-nos de volta
nos trilhos.
Norman assentiu.
— Ele precisa de alguma coisa, qualquer coisa. Para colocar o
estúdio de volta nos jornais. Deixar os investidores empolgados de novo.
Foi quando finalmente estalou.
— A máquina — disse. — Tom Connor.
— Sim — disse Norman, olhando para mim. — Então vocês sabem
sobre a máquina — disse ele, como em aprovação.
— Mais ou menos — disse. Não pude evitar e acabei olhando por
cima do ombro, só para checar se a luz continuava brilhante.
Continuava.
— Sabemos que existe uma. Sabemos que Tom Connor está
trabalhando nela — disse Dot.
— Estava — corrigiu Norman.
— Estava? — perguntei.
Norman me ergueu uma sobrancelha.
— Estava.
Houve um silêncio no qual imagino que devíamos ter perguntado a
ele por quê. Mas então a Dot fez uma pergunta diferente. Nos colocando de
volta nos trilhos. Como sempre fazia.
— O que a máquina tem a ver com a tinta?
— Ela precisa de tinta para funcionar.
— O cano — disparei.
— Que cano? — perguntou Dot.
— Eu achei estranho, naquele primeiro dia, quando o Sammy estava
coberto de tinta e eu tive que limpar tudo. A tinta era de um cano que tinha
estourado no depósito. Tinha tinta passando pelo cano. Mas como...?
Norman me interrompeu:
— Não sei como e não sei o que está acontecendo. Só o que sei é que
toda essa tinta entra e então sai e, quando sai, de algum jeito sai diferente.
— Tinta diferente. — Pensei a respeito. Agora que as peças
começavam a se juntar, as coisas faziam mais sentido na minha cabeça
bagunçada. Eu conseguia resolver mais problemas. — A tinta que o
Sammy estava procurando... pela qual estava doido... — disse com cautela,
fazendo contato visual com a Dot.
— Sim — disse ela. — É claro. Por que ele se importaria tanto com
tinta normal? Tem por todo lado. Somos um estúdio de animação, temos
tinta por todo lado.
— Por todo lado — repeti.
— A máquina — disse Dot, virando-se de volta para Norman e se
inclinando em sua direção. — Você disse que o Sr. Drew precisa de tinta
para a máquina. Norman, o que a máquina faz?
Segurei o fôlego esperando pela resposta. Quase senti que não queria
saber qual era ela.
Norman apenas sacudiu a cabeça. Ele tirou o pé da mesa e voltou a
se sentar.
— Queria saber. Só observo o que posso ver. E o Sr. Drew e aquele
tal do Tom Connor, eles são mais sorrateiros que vocês dois. Só sei que o
Sammy não é mais o Sammy. A tinta, bem, eu não sei, mas me parece que
a tinta está tomando controle dele. Acho que foi a tinta que o levou.
— Acha que ele está vivo? — perguntou Dot.
— Não sei, mas vou contar uma coisa. Aquela tinta tem uma mente
própria. Vai aonde quer...
— Escorre da folha — disse, pensando no meu Bendy Cowboy.
Pensando no caderno do Sammy. Pensando...
Um tipo de pânico que nunca tinha sentido antes, nem mesmo
quando o monstro estava nos perseguindo. Algo animalesco e profundo,
algo que ia além das minhas entranhas, bem na minha espinha, me tomou
em meio a um momento de pura e profunda percepção.
— Eu tenho a tinta — disse. — Peguei um frasco do armário de
suprimentos, do estoque do Sammy.
— Bom, a essa altura o estúdio já foi tomado por ela. O Sr. Drew se
certificou disso — disse Norman.
— Não, ele não fez isso, não é justo! — gritei, mas mesmo enquanto
o fazia, me lembrei do meu avô olhando para a mão do Sr. Drew, das
palavras “tinta má”. Não, não era verdade. Não podia ser verdade. — Você
mesmo disse que ele contrata pessoas com talento, — disse a Norman, —
que ele é o homem de visão, então nada disso foi culpa dele. Foi desse Tom
Connor. Ou talvez do Sammy. — Eu estava tremendo agora. Todos os
meus sentimentos misturados em forma de medo. Não conseguia dizer qual
era qual. Não conseguia separar a minha percepção a respeito da tinta da
conversa sobre o Sr. Drew ou da criatura e da violinista e das sombras. As
sombras em forma de garra que tentavam nos pegar. Era tudo uma única
grande bola de medo.
— Buddy, acalme-se — disse Dot.
— Não consigo, você não entende. Eu tenho que ir! — Eu tinha, eu
tinha que ir.
— Está tudo bem, Buddy, mas temos que esperar um pouco mais —
disse Dot, levantando-se e vindo até mim, pousando uma mão gentil sobre
o meu ombro.
— Eu não posso! Você não entende? Eu tenho a tinta. Tenho a tinta
em casa. Está no meu apartamento. — Tirei sua mão de mim e saí correndo
da cabine de projeção. Não me preocupei se a havia machucado. Não me
preocupei se Norman ia achar que eu estava louco. E também não me
preocupei com a ideia de que a criatura podia me achar e me pegar. Não me
preocupei com nada disso porque não estava pensando. Não estava
processando. Só estava fazendo.
Estava correndo para casa.
CAPÍTULO
DEZESSETE

Não sei como cheguei lá ou quanto tempo demorei. Não sei se


peguei o metrô ou se corri o caminho todo. Não estava sem fôlego quando
cheguei, mas estava encharcado de suor, mas se era por conta do medo ou
do calor, eu não saberia dizer.
Eu não sei.
Só sei que estava em casa. E entrei com tudo no apartamento escuro.
E não conseguia ouvir o silêncio ou o som dos meus pés pisando com força
no chão de madeira, só o meu coração bombeando o sangue pelo meu
corpo, retumbando nos meus ouvidos.
Corri para o meu quarto.
Meu avô fantasmagórico estava deitado de costas, como de costume,
a luz do poste lá fora o fazendo parecer extremamente pálido, só pele e
osso. Dei a volta pela cama e fui até seu lado para dar uma olhada nos
desenhos. Estavam como eu os havia deixado, espalhados pelo chão, depois
que fui passando freneticamente por cada um deles, vendo as mudanças,
me sentindo ansioso.
Me ajoelhei e os recolhi. Mas assim que o fiz, meu medo voltou
pulsando. Estavam em branco. Todas as folhas no chão estavam em branco.
As virei para trás, examinando ambos os lados. Só papel branco.
Ergui o olhar, tenso. E foi então que a vi. Uma trilha de tinta que
subia pelo lado da coberta, avançando pela longa manga do pijama do vô e
marcava seu pescoço à medida que seguia para sua boca. Como veias, ou
talvez um rio de sangue, mas que subia. Em direção a ele. Dedos. Se
aproximando.
— Não! — gritei. Dei um pulo para cima do meu avô e o sacudi.
Erguendo-o para que se sentasse.
Seus olhos se abriram e ele começou a se debater, arranhando meus
braços que seguravam os dele. Ele gritou de terror, ou de dor. Ou ambos.
— Tá tudo bem, tá tudo bem! — disse, mas ele não parava de se
mexer e não estava tudo bem. Ele ainda estava coberto de tinta. Ergui
minha mão, tentando limpar a tinta em seu pescoço com os dedos, mas ele
me agarrou pelo pulso e então me empurrou com força, com mais força do
que eu achava que um homem da idade dele conseguisse empurrar. Caí
para trás.
— Mas o que é isso?! — De alguma forma, a mãe estava no quarto,
na cama, indo até seu pai. — Papa! — Ela segurou seu rosto firme, porém
gentilmente em meio a suas mãos. — Papa, wszystko w porządku!
Só o que consegui fazer foi observar, um pouco ofegante, enquanto o
velho finalmente se acalmava e olhava nos olhos da minha mãe. Ele ergueu
a mão devagar e segurou o rosto dela junto ao seu, de forma que ambos
ninassem um ao outro.
— Irena — disse ele, a voz suave.
— Tak, Papa, tak — disse ela. — Irena.
Ele então abriu um sorriso, devagar. E assentiu. Ele olhou para mim.
— Buddy.
Sorri de volta, esfregando meu pulso onde ele havia apertado.
— Sim — disse.
Ele assentiu outra vez.
— Está tudo bem — minha mãe finalmente disse, na nossa língua.
Ela olhou para mim. — O que houve?
Foi quando vi a tinta na bochecha do vô.
— A tinta — disse, voltando a mim. — Temos que limpar a tinta.
Ela a viu e então olhou para sua mão. Também havia tinta nela, de
quando ela o segurara e então a passara em seu rosto.
— Mas o que é isso...? — repetiu ela, a voz baixa. Ela olhou de volta
para o vô e foi só então que notou a tinta que subia pelas cobertas,
passando por sua mão, seu pijama, seu pescoço. — O que é tudo isso,
Buddy?
— Eu explico enquanto o limpamos. Vamos tirar esse pijama. —
Movimentei o vô para que ele erguesse os braços.
Ela assentiu e explicou a ele o que estávamos fazendo. Era muito
mais fácil se comunicar com ele quando se podia se comunicar com ele.
Nós retiramos a camisa do pijama e, como eu já imaginava, a tinta
tinha se enfiado por baixo, deixando um rastro fino que ia do pescoço até a
ponta dos dedos. Peguei seu braço e a examinei, aquela negritude viva e
brilhosa. Passei o dedão pela tinta e a borrei um pouco. Foi bom.
Peguei o próprio pijama, já que estava arruinado mesmo, e comecei a
esfregar o braço.
— Buddy, não — disse a mãe.
Mas eu não escutei porque não fazia sentido. Não tínhamos tempo.
Tínhamos que tirar toda aquela tinta.
Toda ela.
Não havia tempo a perder.
— Pegue um pano molhado, mãe — disse, ainda esfregando.
— Buddy, pare!
Ela me segurou pelo ombro. Olhei para ela, confuso. Ela olhou para
mim e então para o braço. Eu parei.
E também olhei para o braço dele.
A tinta fora removida, mas, embaixo dela, mais tinta se revelara.
Números.
Uma tatuagem.

Quando descobrimos que o pai tinha morrido, a mãe não me contou


até aquela noite. Não sabia que ela tinha passado todos os dias apenas
vivendo sua vida, fazendo seu trabalho, suas tarefas, cuidando de mim, com
todo aquele peso no coração. Que um homem de uniforme tinha vindo à
nossa porta. Que tinha ido direto ao ponto. Que lhe havia dito a verdade.
Ela me contou à noite, na cama, para que pudesse me fazer me sentir
melhor, me cobrir, se deitar ao meu lado, acariciar o meu cabelo. Porque
ela queria que eu estivesse pronto para ficar triste. Mas nem sempre você
pode se preparar para a tristeza. Só tem que viver com ela.
Me lembrei disso agora, sentado ali com ela, o relógio batendo na
parede, meus ombros pesados, minhas costas doendo depois de esfregar
toda a tinta do vô.
Embaixo da única lâmpada sobre a mesa da cozinha, as sombras no
rosto da mãe a faziam parecer muito mais velha do que era e bastante
cansada. Imaginei que se tivesse um espelho ali para olhar, eu veria o
mesmo efeito em mim. Parecia que o verão havia durado uma eternidade
— e talvez realmente tivesse. Eu não sei. Não tenho certeza se o tempo
funciona do jeito que sempre achei que funcionava.
— Por que você não me contou? — disse, enfim.
— Tinha tanto a contar e você pegou esse trabalho novo e eu nunca
te via. E eu também tinha trabalho a fazer. E aí vocês dois pareciam estar se
dando bem e de que adiantaria? — disse ela. Notei que sua frase longa e
enrolada era como um reflexo dos meus pensamentos, também longos e
enrolados. Devo ter puxado isso dela, imaginei.
— Comece do início.
Começar do início.
Como se isso existisse. Não há um início. Há apenas um momento
que faz com que os momentos seguintes importem.
A mãe sacudiu a cabeça porque ela entendia isso.
— Você sabe quantas vezes eu tentei descobrir quando foi o início?
— Ela suspirou. — Oh, Buddy. É tão triste.
Me inclinei para frente e segurei sua mão.
— Tudo bem, eu aguento a tristeza.
— Seu pai queria vir para cá. Queria oportunidade. Muitas pessoas
querem. Eu vim com ele e trouxe você, esse pequeno embrulho nos meus
braços, porque ele era o meu marido. Porque ele me fez acreditar na
aventura. Eu queria que o seu avô viesse conosco. Mas ele tinha seu
trabalho, seus alunos.
— Ele era professor? — perguntei.
— Você não notou? — Ela sorriu.
— Artes...
Ela assentiu.
— Então... então quando as coisas começaram a ficar assustadoras
por aqui, eu implorei a ele para que viesse, eu implorei. Ele era a única
família que eu ainda tinha e eu achava que ele precisava de mim tanto
quanto eu precisava dele. Mas ele recusou. Ele não veio. Precisava ficar
pela sua comunidade, ele disse. Mas ele nos mandou sua coleção de arte.
Isso ele queria proteger, não a si mesmo. — Ela parecia brava, triste e
extremamente cansada.
— Eu não entendo. Só porque eles valem alguma coisa? O que tem
de tão importante nesses quadros? — Olhei para um que estava pendurado
logo abaixo do relógio, sua moldura dourada, o desenho abstrato e
multicolorido.
— Para ele, arte é mais que só um quadro bonito. É história. É...
— Sua alma — disse, me lembrando agora.
— Sim. Os alemães tinham invadido e estavam levando tudo. Ele
não ia deixar ninguém para trás, mas não queria que pusessem as mãos no
seu trabalho. Fiquei tão brava com ele na época, mas agora eu entendo.
Quando escuto sobre o que aconteceu por lá, quando escuto sobre tudo o
que foi destruído... Ele estava certo em enviar sua arte. Mas nunca poderei
perdoá-lo por não se enviar. — Seus olhos estavam úmidos com lágrimas.
— Consigo entender isso. — Segurei sua mão com a minha.
— Então ele desapareceu. E eu não ouvi mais notícias suas. — Ela
desviou o olhar para a mesa, sua cabeça bem abaixada. — Estava de luto
pelo seu pai, estava cuidando de você, estava trabalhando para poder nos
sustentar, e essas pinturas me assombravam. Estava com raiva, achava que
ele estava morto e me sentia magoada. Então não pensei em procurar mais
a fundo. — Uma lágrima caiu no tampo de madeira manchado da mesa.
Bem no meio de um círculo feito por um copo molhado.
— Tudo isso faz sentido, mãe — disse. Não estava acostumado a
confortá-la. A ser quem consola. Eu sempre quis cuidar dela, mas via isso
como ganhar dinheiro, para que ela não tivesse que trabalhar tanto quanto
trabalhava. Cuidar de sua tristeza, de seus medos, isso era algo para o que
eu não estava preparado. Era difícil. Minha garganta doía. — Você não
devia se sentir mal.
— Eu digo isso a mim mesma. Mas me sinto. Porque é como devo
me sentir.
Ela apertou minha mão e ergueu o olhar para mim.
— Quando a guerra acabou, o irmão do seu pai estava procurando
pela família. Porque é o que bons meninos fazem. Ele descobriu tanta
coisa. O que tinham feito, para onde tinham mandado pessoas como nós.
Coisas terríveis. Me sinto tão envergonhada. Ele achou o vô. Uma família
numa cidade perto do acampamento onde ele estava preso estava cuidando
dele. Uma família, não a família dele. Não eu. — Ela respirou fundo e
secou as bochechas depressa. — Seu tio me ajudou a trazê-lo para cá. E
você sabe o resto.
— Mãe, você devia me contar essas coisas — disse.
— Assim como você está me contando as coisas do seu trabalho?
Como você e a sua namorada não têm seus projetos secretos? — disse ela,
sorrindo por entre as lágrimas.
— É diferente e você sabe disso — disse. Segurei ambas as suas
mãos agora com as minhas.
— Oh, Buddy, eu sinto tanta vergonha disso. Mas você precisa
aprender com os meus erros. Precisa lutar pelas pessoas que ama. Certo?
— Sim. — É claro que eu lutaria. Sempre lutaria por ela, pelo vô.
Foi tão fácil naquele momento fazer essa promessa a ela, a mim
mesmo. Parecia tão óbvio. Tão evidente de que era claro que isso era o
certo a se fazer. Não fazia ideia de que dentro de meras vinte e quatro
horas, essa promessa seria testada.

Mais uma vez, eu não sabia como chegara aonde estava indo. Mas
não era por extremo medo ou pânico agora, mas por nunca ter me sentido
tão extremamente sobrecarregado antes. Tanta coisa me havia sido dita
num espaço tão curto de tempo. Eu tinha vivido tanto. Meus olhos foram
abertos para coisas que eu nunca sequer havia imaginado e minha própria
culpa e confusão me pressionavam com tudo.
Quando cheguei ao East River, me dei conta de duas coisas: que eu
julgara meu avô de uma forma tão horrível e, no fim, acabei descobrindo
que não sabia nada sobre ele ou sobre a minha própria família. E que eu
também não sabia nada sobre o Sr. Drew, então como poderia conseguir
entender suas motivações, o que estava acontecendo no trabalho? Precisava
conhecer sua história.
Todos tinham uma história a contar.
Ainda que fosse fictícia.
Joguei a bolsa com os papéis, a caneta, o frasco de tinta, os panos e a
camisa do pijama do meu avô na água negra diante de mim. Ela boiou por
um momento, mas então foi afundando devagar.
Não me senti bem com isso. Só mais inquieto. A água parecia tinta.
CAPÍTULO DEZOITO

Não havia nada em mim que estivesse a fim de ir a uma festa. Era
tudo pelo que eu mais esperara nas últimas semanas e agora mais parecia
uma nuvem negra num dia ensolarado. Estava quase torcendo para que,
com todo o caos no estúdio, essa coisa toda acabasse sendo cancelada, mas
o estúdio reabriu dois dias depois e todos voltaram ao trabalho como se
nada tivesse acontecido.
É claro que para a maioria das pessoas não tinha sido nada de mais,
dois dias de folga, um pequeno descanso. Mas o que eu e a Dot tínhamos
experienciado? O que tínhamos visto? Voltar ao prédio foi algo realmente
aterrorizante. Eu não estava em qualquer posição para pedir demissão —
tinha que continuar fazendo dinheiro para a minha família. Mas também
sabia que não ia mais ficar vasculhando cantos escuros. Ia ficar de cabeça
baixa e ir embora antes de escurecer. Focar no meu trabalho.
E se o Sr. Drew achava que era seguro o suficiente para que todos
voltássemos lá para dentro, bom, eu confiava nele.
Ainda.
Mais ou menos.
O Sr. Drew deu um pequeno discurso motivacional no saguão:
— Sei que esses últimos dias foram complicados, mas já reabrimos e
o trabalho continua! Deixem que essa seja uma lição para aqueles que
acham que podem mexer com o nosso estúdio! — Ele deu uma boa
gargalhada e todos aplaudiram enquanto eu trocava um olhar com a Dot.
Ela foi até mim quando a plateia começou a se espalhar.
— Oi — disse ela. — Como você está?
Não consegui fazer contato visual com ela. Não queria falar sobre
nada. Só queria fingir que nada daquilo tinha acontecido. Tinha que focar
na vida real. Já estava farto de monstros.
— Tenho que voltar ao trabalho — disse e passei por ela em meio a
um empurrão.
Ela não me seguiu. Dot não era do tipo que seguia as pessoas.
O engraçado é que estou sentado aqui escrevendo isso na esperança
de chegar até ela.

A festa era na quinta-feira e, conforme o dia se aproximava, nuvens


tempestuosas iam se formando na minha cabeça. O Departamento de
Música ainda estava fechado e ninguém ouvira falar nada sobre o Sammy.
Dot e eu nem sequer conversamos sobre aquela noite porque eu a vinha
evitando. Não acho que ela entendia por quê. Quer dizer, por que
entenderia? Bom, ela provavelmente deve ter pensado que eu ainda estava
com medo por conta da criatura aterrorizante no escuro, por conta da
violinista. E eu estava. Mas não podia conta a ela a outra parte. Que eu
ainda estava processando tudo o que a mãe tinha me dito. Sobre o que tinha
acontecido com o vô durante a guerra.
Dito isso, o vô parecia estar muito bem. A tinta não o afetara em
absolutamente nada. Acho que depois de tudo pelo que ele passou, uma
noite estranha como a que tivéramos não era lá uma grande coisa. Ele havia
voltado a si e só estava um pouco decepcionado por eu ter jogado os
desenhos e a tinta fora. Ele queria praticar mais. Mas eu disse a ele que não
podia. Não agora.
Talvez nunca mais, disse uma parte de mim.
Me sentei na cama logo pela manhã do dia da festa, segurando a
bolsa do terno em meus braços. Nunca me sentira tão pesado antes. Com
tamanho fardo sobre os ombros. Por conta... de algo que eu não sabia
explicar o que era. Só tinha a sensação de que aquela noite não iria bem.
Queria ter fé no Sr. Drew, mas quanto mais eu descobria, mais difícil era
para mim e isso me fazia me sentir um bobo. Mas então eu pensava em
todos no estúdio que pareciam confiar nele, acreditar nele. Não sabia o que
pensar.
— Triste? — perguntou o vô, sentado ao meu lado. Não sabia nem
que ele estava ali.
— Cansado.
Ele assentiu.
— Sim — disse. Podia dizer que estava olhando para mim, mas não
quis olhar de volta. Ele segurou minha mão na sua e disse: — Buddy. Seu
coração é bom. Sua alma é boa. Isso é bom.
Eu finalmente olhei para ele, para aqueles olhos que um dia me
aterrorizaram e que agora pareciam calorosos e atenciosos. Desejava poder
falar com ele direito. Queria dizer a ele que não tinha certeza. Não tinha
certeza de mais nada. Que o mundo me deixava confuso e assustado. Mas
não sabia como expressar isso a ele.
— Vô, me desculpa — disse, ao invés disso.
Ele olhou para mim, um pouco confuso.
— Desculpa? — Ele sacudiu a cabeça. — Não, não precisa desculpa.
— Não, é sério. Eu estava com raiva por você estar aqui, com raiva
da arte, eu não entendia.
O vô se virou e olhou para o quadro no pé da cama. Não fazia ideia
se as minhas palavras estavam fazendo algum sentido para ele.
— Tudo bem ter raiva — disse ele.
Tudo bem? Não tinha certeza se isso era verdade. Não me parecia
ser, isso eu podia garantir.
— Raiva pode inspirar pessoa. Pode fazer mudança. Pode fazer arte.
— Ele ergueu a mão e tocou o quadro, só a ponta dos dedos, mas eu fiquei
chocado. Quem era aquele que tinha tocado o quadro? — Paixão.
Assenti. Não tinha certeza aonde ele queria chegar com isso, mas
precisava escutar. Precisava do que ele estava dizendo.
— Tanta raiva... — Ele empurrou a tela gentilmente, ainda apenas
com as pontas dos dedos. A tinta rachou e a tela foi para trás, como uma
porta oculta. Havia um buraco na pintura. Fiquei olhando. Como ele sabia
que aquilo estava lá? Espera. A menos...
— Foi você... esse quadro é seu? Foi você que pintou? — perguntei.
O vô assentiu. Ele fitou o buraco atentamente. Fechou o punho e o
colocou devagar lá dentro. Encaixava perfeitamente.
— Ódio — disse, voltando-se para mim.
Não sei como eu finalmente o compreendi, depois de todo esse
tempo. Mas compreendi. Era uma pintura dele, ele a havia criado. Algo o
deixou muito furioso. Ele tentou destruí-la. O vô me abriu outro sorriso e
então se voltou novamente para o quadro, tirando a mão de dentro com
todo o cuidado. Ele delicadamente pegou a ponta da tela partida entre seus
dois dedos e puxou a peça solta lentamente de volta para o lugar.
— Raiva inspira. Ódio destrói. Amor conserta. — Ele então abriu um
largo sorriso. — Lição chique — disse ele, quase em meio a uma risada.
Não consegui me segurar e acabei rindo também, vendo-o consciente
desse jeito. Me perguntei como eram seus pensamentos; seriam como os
meus? Confusos e dispersos? Comentando a respeito de tudo? Teriam
talvez sido assim antes e agora eram calmos?
Ele pegou minha mão e deu umas batidinhas nela.
— Você bem.
Isso eu não achava que era verdade. Mas talvez eu fosse ficar. Talvez
eu fosse ficar bem.
O vô abriu mais um sorriso e deu mais uma batidinha na minha mão
antes de soltá-la. Ele se levantou, me deu uma última olhada e com um
aceno satisfeito de sua cabeça, deixou o quarto.
Despedidas são difíceis. Principalmente quando você não sabe
quando vai ver alguém outra vez. Se sequer vai voltar a ver essa pessoa.
Me despedir do pai me pareceu impossível, como se eu tivesse que
espremer as palavras do meu peito. Segurar sua mão porque soltá-la era
difícil demais.
Mas agora eu conheço algo pior.
Não poder se despedir.
CAPÍTULO
DEZENOVE

Levei meu smoking para me trocar no trabalho porque não queria


uma repetição de quando o Sr. Drew me levou de carro até em casa.
Também não conseguia me imaginar sentado no metrô com aquele terno,
com todo mundo olhando para mim. E ir andando estava fora de questão.
Eu apareceria num lugar todo elegante encharcado de suor.
Então eu levei a bolsa comigo, o que significava, é claro, que todos
que me viram imediatamente souberam que eu havia sido convidado.
A Sra. Lambert não disse nada. Só olhou para a bolsa, sacudiu a
cabeça e voltou ao trabalho. Mas tanto o Richie quanto o Jacob se
divertiram tirando sarro de mim. Não sei, talvez na verdade estivessem com
um pouco de inveja e quisessem esconder, mas pareciam bem decentes
enquanto o faziam.
— Bom, nós íamos te convidar para a nossa própria festinha hoje à
noite, no Duke’s do outro lado da rua. Mas acho que não, Sr. Chiquérrimo
— disse Jacob.
— A Dot sabe? — perguntou Richie, recostando-se na minha mesa.
— A Dot? — perguntei.
— Ela é sua acompanhante, é isso que ele está perguntando — disse
Jacob, olhando para Richie.
— Ah, não, não. Só eu. Sozinho. Eu... meio que queria não ter que ir.
— Não quis ser tão honesto, mas meio que saiu desse jeito.
— Tá brincando, um jovem solteirão na cidade? Cercado de damas
lindíssimas, todas extremamente bem-arrumadas? Você tem que ir, por
mim — disse Richie.
Bom, eu não podia não ir, de toda forma. Engraçado como o normal
pode ser estranho. Às vezes, as coisas não deviam ser normais. Depois de
tudo pelo que eu passei, as brincadeiras, o trabalho, ir a uma festa me
parecia muito estranho.
Eu não vi a Dot o dia inteiro. Nem uma única vez. Não sei por quê.
Fui à Redação várias vezes, mas ela não estava lá. Sei que ela foi ao
trabalho naquele dia, outras pessoas me disseram. Era quase como se
estivesse me evitando. Talvez estivesse. Afinal, eu a estivera evitando a
semana toda. Era justo.
Queria esperar até que o resto da equipe fosse embora antes de me
trocar e pôr o smoking, mas eles tinham outros planos em mente e então fui
forçado a dar uma voltinha para exibir meu terno enquanto eles assobiavam
para mim. Devo admitir que usar aquele terno me fazia me sentir muito
bem. Havia algo a respeito de roupas feitas sob medida e que te deixavam
bonito que acabava afetando o seu humor.
Nós finalmente partimos e foi então que eu vi a Dot. No saguão.
Esperando os outros caras para ir ao Duke’s Pub com eles.
— Você tá de smoking — disse ela, franzindo as sobrancelhas.
— Sim, o Buddy vai à festa chique do Sr. Drew — disse Jacob, me
dando um tapinha nas costas.
— Sério? — Ela estava me encarando com firmeza.
— Sim — disse. — Mas nem queria ir.
— Ótimo — disse ela. — Acho que devíamos volta essa noite, com a
festa e todos os outros saindo mais cedo. Temos que encontrar aquela
máquina. Descobrir o que faz.
Meu rosto começou a ficar quente e meu estômago apertou. Mas não
era medo. Para variar. Me dei conta de que estava sentindo raiva. Dela.
— Por quê? Por que temos que fazer isso? — perguntei de forma
abrupta.
Ela pareceu surpresa.
— Porque temos que descobrir o que está acontecendo no estúdio —
respondeu ela, devagar.
— Não, não temos. Não temos — retruquei. Não deixe que a raiva se
torne ódio, Buddy, disse a mim mesmo, ouvindo as palavras do meu avô no
meu ouvido. Não a deixe crescer. — E ainda que por algum motivo o
mistério precise ser desvendado, não temos que ser nós a fazer isso.
— Buddy — disse Dot. Ela parecia estar se sentindo desconfortável,
inquieta. Não gostava de vê-la inquieta. — E quanto à violinista?
Minha garganta fechou quando tentei engolir. Me inclinei em sua
direção e sussurrei:
— É exatamente por isso que temos que parar.
— É exatamente por isso que não podemos — ela sussurrou de volta,
a voz intensa.
Sacudi a cabeça. Não. Não valia a pena arriscar minha vida por isso.
Tinha uma família para cuidar. Precisava protegê-los.
— Por que você precisa fazer isso? O que significa pra você?
— Eu preciso — disse ela, sua voz tremendo de emoção.
— Mas por quê? — De todas as coisas que ela não podia ser direta.
— Porque eu consigo! — Ela ainda estava sussurrando, mas parecia
um grito. — Porque é algo que eu consigo fazer. Eu realmente posso fazer
a diferença. Não tenho só que ficar ali sentada, esperando, preocupada,
vendo pessoas morrerem. Eu posso impedir. E ajudar. Você não faz ideia
de como é não ter nada que você possa fazer.
Não pude evitar, eu ri. Era loucura, se tinha uma coisa que eu sabia
era como era se sentir impotente, sem controle da situação.
— Não ria de mim — disse ela.
— Eu vou à festa. Estou cansado e não quero ir, mas é importante
para o Sr. Drew.
Dot riu.
— Depois de tudo o que o Norman nos disse, você ainda acha que
ele se importa com você, Buddy?
Aquilo estava indo longe demais.
— Acho. Acho que ele se importa. Acho que ele se importa pelo
menos comigo. Ele pode não ser perfeito, mas ninguém é. Eu não sou. Ele
não é. Você não é.
Dot mordeu as bochechas por dentro. Recuei um passo quando Jacob
veio em nossa direção.
— Beleza, vamos começar essa festa! — disse ele, juntando as mãos.
— Achei que você não fosse — disse, distraído pela expressão no
rosto da Dot.
— Não a festa chata que você vai, Buddy, a festa divertida. A minha
festa. — Ele meu deu um tapa nas costas.
Dot continuou olhando para mim.
— Bom, divirta-se — disse ela. Então se virou com tudo em direção
à porta e começou a sair do prédio.
— Ei, Dot, espera aí! — exclamou Jacob. — Foi mal, Bud, tenho que
ir. Vem se juntar à gente no Duke’s se não beber até cair! — Ele correu
atrás dela, ao que Richie rapidamente o seguiu, me dando uma piscadela.
E então eu fiquei sozinho no saguão. Me sentindo terrivelmente
frustrado e terrivelmente idiota.
É claro que o nível de idiotice não era nada comparado a como me
senti quando cheguei ao hotel para a festa. Primeiro, eu peguei um taxi e
depois que paguei o motorista e saí na rua, me senti um burro por gastar
meu dinheiro desse jeito. Só porque não queria amassar o meu smoking. E
aquela elegância no fim das contas nem pareceu importar porque, em
comparação com os casais perfeitamente bem-vestidos que adentravam o
salão reluzente, eu subitamente senti que as roupas não faziam o homem.
Bom, talvez fizessem, se esse homem fosse o porteiro. Que era o que eu
mais estava parecendo. Ou um garçom. Basicamente qualquer outra coisa,
menos um convidado. Não era só a qualidade do meu smoking, que eu
notei não ser tão boa quanto a do smoking do cavalheiro parado ao meu
lado, esperando os elevadores. Foi o jeito como ele se portou. O jeito como
ele e sua esposa olharam para mim. O jeito como ela puxou sua estola de
pele um pouco mais para perto do corpo e a apertou junto a si.
Eles provavelmente conseguiam sentir o cheiro do meu bairro em
mim. Ainda que não pudessem ver. Eles sabiam.
As portas do elevador se abriram e um atendente com um uniforme e
um chapéu de um vermelho vibrante as segurou para que entrássemos.
— A festa do Joey Drew Studios? — perguntou ele.
Assenti. A mulher com a pele disse “sim” de um jeito que dava mais
duas sílabas para a palavra.
As portas se fecharam.
Ficamos parados em silêncio por um momento, subindo pelo prédio.
— Bom, isso vai ser interessante — disse o homem, suspirando.
— Oh, quieto — disse sua esposa.
Ele revirou os olhos e olhou para mim, como se quisesse que eu
também revirasse os olhos, em solidariedade.
— Você conhece o Joey? — perguntou.
Eu não queria falar, não queria que eles ouvissem o meu sotaque.
Então apenas assenti outra vez e meio que pigarreei um som de sim com a
garganta.
— Não sei o que ele acha que está tentando provar. Ele sequer pode
pagar por isso?
— Querido, quieto — disse a esposa, com um pouco mais de ênfase.
O marido olhou para mim e suspirou. Consegui revirar meus olhos
dessa vez, o que pareceu agradá-lo.
As portas se abriram.
— Cobertura — anunciou o operador do elevador com um sorriso.
Saímos numa pequena e luxuosa sala de espera, toda cor-de-rosa, tanto o
carpete quanto o papel de parede vibrante. Uma espreguiçadeira estava
recostada na parede oposta e uma mulher de vestido roxo estava sentada,
checando seu batom em seu estojo de maquiagem.
Segui atrás do homem e sua esposa para um conjunto de portas
duplas, onde dois homens vestidos quase exatamente como eu as abriram
para uma gigantesca e barulhenta festa na cobertura, já rolando à toda.
Literalmente. A pista de dança estava cheia de casais que dançavam e
rodopiavam e uma banda tocando ao vivo para eles mais ao fundo. Me
perguntei por um momento se algum daqueles músicos trabalhava para o
Sr. Drew.
Me lembrei da violinista.
Então instantaneamente tentei esquecê-la e só assimilar tudo o que
estava vendo.
Essa é outra ocasião em que eu queria poder desenhar a cena. Era
impressionante, mas o que significa quando eu digo isso? Posso dizer que
estávamos no pátio da cobertura com as luzes da Cidade de Nova York
espalhadas diante de nós. Era como estar no céu, cercado de estrelas. Havia
luzes brilhando na pista de dança, no bar espelhado, nos convidados que
vestiam todas as cores do arco-íris. Floreiras gigantescas, cheias de jacintos
amarelos emolduravam todos os quatro cantos do lugar. Eu só conhecia
aquele tipo de flor porque passamos um tempo recebendo várias delas.
Depois que o pai morreu. O único jeito de não querer jogá-las pela janela
era aprendendo um pouco sobre elas.
Havia risada, conversa e o tilintar de copos de champanhe.
Fiquei ali parado, paralisado em admiração, boquiaberto. E naquele
momento me dei conta do quão diferente eram as vidas das outras pessoas.
Não que eu já não soubesse disso desde sempre. Mas foi meio que como
um chute no saco. Um chute no saco depois de você ter sido socado e está
encolhido no chão. Eu sacudi a cabeça e pisquei com força, decidindo
então que pegar uma bebida talvez pudesse ajudar.
Então me virei e percebi que estava cara a cara com o Bendy.
Olhei para o grande sorriso, os dentes, os olhos negros sólidos. Olhei
para aquele rosto que conhecia tão bem diante de mim. Vivo, bem na
minha frente. Senti uma onda de náusea tomar conta de mim e tropecei,
cambaleando para frente.
— Ei, cuidado! — disse ele. Ou acho que foi a voz abafada dentro do
Bendy que disse. Foi difícil para mim naquele momento entender o que
estava acontecendo, meu coração estava batendo rápido demais. Mas
quando ele me segurou pelo ombro e começou a se afastar, tudo entrou em
foco mais claramente. Me virei às pressas para vê-lo vagando por entre as
pessoas, que o notavam e riam com gosto. Um homem com uma enorme
fantasia de Bendy.
Foi quando vi um grande Boris na pista de dança, meio que tentando
dançar Charleston de uma forma bem desajeitada. E Alice, parada junto à
banda, fingindo reger. Cada uma das mascotes tinha cerca de um metro e
oitenta, talvez mais. Pareciam estranhas. Não tinham as proporções certas.
Suas aparências não estavam de acordo com as imagens que eu tinha na
cabeça. Não estavam de acordo com os desenhos. Eles não deviam ser
grandes daquele jeito. Não deviam ser do tamanho de uma pessoa.
— Eles nem sequer trabalham, não é mesmo? — disse uma voz
familiar. Olhei para a minha direita e, obviamente, o Sr. Drew tinha
aparecido do meu lado.
— Não — respondi, esperando que ele não fosse se importar. Mesmo
tendo acabado de dizer o que havia dito.
— Venha dar uma olhada nessa vista comigo, Buddy — disse ele,
acenando com o braço.
Eu o segui em meio aos convidados. Ele disse oi a todos, apertou
mãos, deu tapinhas em costas, riu de piadas das quais só tinha escutado o
final. Era quase uma dança, assim como a das pessoas girando com a
música. Ele me levou até onde alguns casais estavam reunidos na beira da
cobertura, olhando para o reluzente Empire State Building. A vista era,
bem, magnífica.
Uma palavra que eu acho que nunca tinha usado antes daquela noite.
— Incrível, não é? — disse o Sr. Drew, debruçando-se na grade de
ferro fundido. Tive um flashback de quando estava a seu lado na passarela.
Da pegadinha que ele fez. Fiquei alguns centímetros atrás dele.
— Sim — respondi.
— Cada um desses prédios lá fora, cada um deles foi construído por
alguém que tinha um sonho. Que trabalhou duro e nunca o perdeu de vista.
Assenti, embora ele não pudesse me ver. Mas também não achava
que ele precisasse que eu reagisse. Ele ia dizer o que queria dizer.
Mas, no fim, ele se virou e olhou para mim.
— Você não concorda?
— Não, eu concordo — disse depressa. — Eu fiz que sim com a
cabeça. Desculpa, eu concordo sim. — De repente, me senti extremamente
desconfortável.
Ele estreitou os olhos para mim.
— Porque algumas pessoas te dirão que você devia desistir. Que é
coisa de louco.
— Sempre vai ter quem diga isso — disse.
O Sr. Drew continuou olhando para mim. Então, ele subitamente
estava bem perto.
— Não deixe que ninguém te refreie — disse ele, num sussurro alto.
Podia sentir o cheiro de álcool no seu hálito.
— Bem, Joey, esta é uma festa e tanto, mas não tenho certeza se eu
mereço tudo isso. — Uma voz bombástica quebrou seu olhar intenso e o Sr.
Drew subitamente estava dando um grande abraço num homem grande e
corpulento.
— Bertie, seu velho filho-da-mãe! — disse ele, com uma risada. —
Então você finalmente chegou à sua própria celebração.
Eles se separaram enquanto o homem maior ria às gargalhadas.
— Claro, claro. Você diz isso agora, mas vai querer é me jogar pelo
lado desse prédio quando você-sabe-o-quê bater no ventilador e tivermos
que mudar o prazo.
— Bom, o que é justo é justo — disse o Sr. Drew e ambos riram
outra vez. — Buddy! — disse ele, virando-se para mim enquanto passava
um braço sobre o ombro do sujeito. — Este é Bertrum Piedmont. Ele é um
gênio.
— Bom, alguma coisa eu sou — respondeu Bertrum, erguendo uma
mão carnuda e apertando vigorosamente a minha. — É um prazer conhecê-
lo, Buddy.
— O Buddy é um aprendiz lá no estúdio. Um artista — disse o Sr.
Drew.
— Bem, nós sempre precisamos de um desses — disse Bertrum, mas
eu não sabia se estava realmente falando sério.
O Sr. Drew riu e então lhe deu um tapa nas costas.
— Vamos, agora que você chegou, está na hora do discurso.
— Ah, ótimo, eu adoro esses! — disse Bertrum e os dois riram
juntos enquanto seguiam em direção ao palco.
Como podiam duas pessoas que pareciam tão felizes e
despreocupadas me fazerem sentir o completo oposto?
Eu passei pela pista de dança, mas fiquei do lado oposto do palco,
perto das portas da sala de espera. Não sabia por que, mas sentia que
precisava de uma rota de fuga rápida. Só por precaução.
Quando a banda terminou sua música, o Sr. Drew subiu no palco e
recebeu o microfone antes em posse da cantora de roupas brilhosas. Ele
sorriu e a beijou em ambas as bochechas antes de se voltar para a plateia.
— Como estão todos esta noite? — exclamou ele. Sua voz ribombou
sobre a plateia e eu me perguntei por um momento se toda Nova York
podia ouvi-lo.
Houve uma alta aclamação por parte da audiência, mas não se
comparava ao nível de entusiasmo dele.
— Primeiramente, eu gostaria de agradecer a todos por terem vindo
esta noite. Gostaria de agradecer à banda, Janie e os Bandidos. E, acima de
tudo, gostaria de agradecer ao nosso convidado especial aqui esta noite,
Bertie Piedmont.
Houve outra grande salva de palmas. Se fosse possível que palmas
soassem confusas, aquelas soaram.
— Quem é Bertie Piedmont, vocês se perguntam? — disse ele,
claramente sentindo a confusão. — Ele é muitas coisas. Um gênio, alguns
poderiam chamar. Um amigo, é o que eu diria. Mas, acima de tudo, ele é
um homem de visão.
E lá estava aquela palavra de novo.
— Foi um projeto que passou seis anos sendo elaborado, mas, graças
ao Bertie, Bendy e seus amigos sairão numa aventura inteiramente nova.
Não temam, as histórias que vocês tanto amam não irão a lugar algum. Mas
agora vocês também poderão fazer parte delas!
Olhei em volta. Vi pessoas sussurrando e algumas risadinhas. Sim, o
homem podia ser maior que a vida. Mas aquela era sua festa. Eles eram
seus convidados. Deviam pelo menos mostrar um pouco de respeito.
— Sim, senhoras e senhores, eu lhes apresento a Bendyland! — Com
um floreio de seu braço, o Sr. Drew deu lugar a uma bela modelo morena
com um vestido preto curto, usando uma auréola brilhante no cabelo. Ela
empurrava um carrinho de mão no qual estava a maquete que eu e a Dot
tínhamos visto no meu primeiro dia no estúdio. Ela fora pintada, não estava
mais em preto e branco. E ainda que estivessem rindo dele apenas um
momento antes, pude ver que a audiência se esticava para olhar mais de
perto. — Imaginem: jogos, atrações, tirar uma foto sua com as próprias
estrelas dos desenhos! — disse ele, com um enorme sorriso no rosto. —
Mas isso não é tudo! Expansão em todos os sentidos, eu sempre digo! A
partir de amanhã, o Joey Drew Studios é agora dono do Court Theater.
Traremos todas as produções do Bendy de volta à Manhattan. Tudo será
produzido nesta única sede: animações, brinquedos e tudo relacionado ao
parque de diversões. Esta é uma nova era para o Joey Drew Studios e isso é
o que estamos celebrando esta noite!
A plateia voltou a aplaudir e, dessa vez, eu fiz o mesmo. Era
empolgante, como poderia não ser?
— Sim, sim, é mesmo incrível, não é? Nosso foco agora é a
mudança... tudo... — O Sr. Drew pareceu um pouco distraído. Como se
tivesse notado alguma coisa. — Uh... tudo vai mudar. Mas não esta noite!
Hoje, vamos dançar e... é, som na caixa! — Ele apontou o dedo para que a
banda voltasse a tocar, mas já estava andando em minha direção antes que
a música sequer começasse.
Não. Não, não era na minha direção. Ele estava olhando para trás de
mim.
Eu me virei.
Parado sob a soleira da porta havia um casal que acabara de chegar.
A mulher, notei, era Allison Pendle. A atriz que dava voz a Alice Angel.
Estava com um vestido que passava a impressão que alguém havia
derramado prata sobre seu corpo. Ele abraçava todas as suas curvas e
reluzia sob a luz do teto. Com o braço atado ao seu havia um homem que
mal consegui reconhecer, mas que também me parecia familiar.
— Você não devia estar aqui — disse o Sr. Drew enquanto se
aproximava de mim, seguindo em direção a eles.
— Tom, é melhor irmos — ouvi Allison dizer, mas o homem apenas
continuou parado lá, rígido feito uma pedra.
Tom Connor. É claro. Era Tom Connor.
CAPÍTULO VINTE

Fui empurrado para o lado enquanto o Sr. Drew se aproximava deles.


Ele foi diretamente para cima de Tom e parecia estar tremendo de raiva,
apesar do que deixava transparecer.
— Eu não vou embora enquanto não tiver o que é meu — disse Tom,
enquanto o Sr. Drew o encarava.
O Sr. Drew riu como se Tom tivesse contado uma excelente piada e
olhou em volta para as poucas pessoas que os observavam. Elas logo se
dispersaram. O Sr. Drew se voltou para Tom novamente e, numa voz baixa,
disse:
— Você está demitido, Tom. Eu disse para não chegar nem perto do
meu estúdio. Vamos para a sala de espera, pode ser?
— Não estamos no seu estúdio agora, estamos? — respondeu Tom.
Não havia como o Sr. Drew intimidar esse homem fisicamente. Tom não
era corpulento feito um urso, como Bertrum Piedmont. Estava mais para
uma muralha. Ainda assim, o Sr. Drew o agarrou pelo cotovelo e disse
entredentes:
— Lá fora. Já.
— Vamos, Tom, não precisa fazer uma cena — disse Alisson, a voz
suave, pondo uma mão gentilmente sobre seu ombro.
Tom permitiu que ele o escoltasse ao salão cor-de-rosa. Eu os segui.
Tinha que descobrir o que estava acontecendo. Nem pensei a respeito ou
me dei conta do quão estranho era o fato de eu estar indo junto.
O Sr. Drew sinalizou para que as grandes portas fossem fechadas e,
tão logo os recepcionistas o fizeram, ele se virou com tudo, seu sorriso
desaparecendo, e disse:
— Você precisa ir embora imediatamente, antes que eu chame a
segurança para jogá-lo para fora!
— Eu quero a minha patente de volta — disse Tom, direto na cara do
Sr. Drew. Eles estavam quase encostando os narizes. Ou melhor, o nariz de
um no queixo do outro.
— Ela é minha, legal e eticamente. Agora, saia. — Ele se virou para
Alisson. — E, Alisson, estou envergonhado de você. Está demitida.
Alisson apenas abriu aquele seu sorriso deslumbrante que me fez
derreter um pouco, apesar da cena estar me deixando incrivelmente tenso.
— Conversamos sobre isso pela manhã, Joey. Venha, querido. — Ela
deu um empurrãozinho no ombro de Tom e era evidente que ela conseguia
mover montanhas porque, mais uma vez, ele cedeu e recuou um passo.
— É a minha máquina, Drew, minha.
— Você arruinou tudo e eu vou ter que consertar. É a minha máquina
e a sua bagunça. Agora vá embora.
Eu ouvi tudo. Tudo o que o Sr. Drew disse. Mas não consegui
absorver na hora porque só conseguia focar na palavra “máquina”.
Observei enquanto Tom e Alisson seguiam lentamente em direção aos
elevadores. O Sr. Drew se virou e abriu uma das portas, sem sequer notar
que eu estava bem ali. Ele entrou de volta na festa com tudo. E fechou a
porta atrás de si.
Eu logo me virei, afastando-me rapidamente das portas, da festa.
Seguindo Tom e Alisson. E então eu estava segurando o sujeito pelo
ombro. Tentando fazê-lo parar. Precisando fazê-lo parar.
E assim o fiz.
Ele deu meia-volta, furioso, e me encarou como se eu fosse louco.
— Ouvi você dizer alguma coisa sobre a máquina — disse, enquanto
ele se soltava da minha mão.
— Tire as mãos de mim, filho. — Ele estava me olhando com facas
nos olhos.
— Tom, está tudo bem. Ele é o office-boy do estúdio. O Buddy —
disse Alisson.
Olhei para ela por um momento. Como diabos ela se lembrava de
mim? Fiquei embasbacado com a ideia de que alguém como ela sequer
notaria que eu ocupava espaço no planeta.
— Não me importa. Ninguém me segura desse jeito — disse Tom.
— Desculpa, desculpa, mas você disse alguma coisa sobre a máquina
e eu preciso saber. — Eu parei. Pude notar que os dois foram pegos de
surpresa com isso. Com o que eu disse. Não tinha certeza se eu devia
continuar.
— Como sabe sobre a máquina? — perguntou Tom, aproximando-se
um passo em minha direção. Ele podia parecer elegante, mas notei quão
bem ele preenchia suas mangas, como seus braços forçavam o tecido. Eu
definitivamente não queria brigar com esse homem.
Não consegui pensar em nada que fizesse sentido. Não podia lhe
contar sobre o Norman ou sobre quando fiquei escondido no armário.
Então deixei voar a única palavra na qual consegui pensar:
— Sammy.
Tom suspirou alto e Alisson lhe apertou o braço.
— Devia ter imaginado — disse ele. Mas não disse nada mais.
Não sei onde encontrei a coragem, mas acho que canalizei um pouco
da objetividade da Dot naquele momento. Estava tão cansado de pessoas
que não diziam logo as coisas. De só receber parte da história.
— O que é a máquina? Para que ela serve? E por que o Sr. Drew te
demitiu? — Eu queria fazer ainda mais perguntas. Queria perguntar se ele
achava que o Sr. Drew era bom ou mau. Queria perguntar sobre a tinta e o
Sammy. Sobre a criatura, a violinista. Mas também sabia que perguntas
demais confundiam as pessoas.
Eu agora sei que quando faço perguntas demais para mim mesmo, eu
começo a desligar. Ele começa a lamuriar. Não gostamos disso.
Tom respirou fundo e deu uma olhada pela sala luxuosa.
— Certo. A máquina foi feita para criar... — Ele fez uma pausa. —
Personagens.
— Como as mascotes lá dentro? — perguntei. Não parecia algo tão
esquisito. Eles já faziam brinquedos, por que não uma máquina que fazia
grandes fantasias do Bendy?
Tom sacudiu a cabeça. Pela primeira vez, me dei conta de que ele
não estava se segurando apenas por teimosia. Ele estava... com medo.
— Eu não devia estar te contando isso... — disse ele, ainda
sacudindo a cabeça.
— Olha, eu sei sobre... a tinta — disse. — E sei... sobre... — Parei.
Tom olhou para mim com cautela. Era difícil manter contato visual
com ele. Eu queria desviar o olhar. Para qualquer coisa. Finalmente, ele
disse:
— Você sabe sobre aquilo.
— Não tenho certeza — respondi. Porque não sabia o que eu sabia.
Tom respirou fundo outra vez.
— Certo. Certo — disse ele, decidindo-se. — Certo. Não eram
mascotes. Nada desse gênero. Era... um jeito de pegar os desenhos e torná-
los reais. Não pessoas em fantasias de mascotes, mas versões reais, vivas,
dos personagens. — Ele olhou para mim como se para perguntar se eu
tinha entendido. Eu não achava que tivesse.
Alisson interrompeu:
— Pense nela como uma impressora, mas... para pessoas.
— Pessoas? — perguntei.
— Não pessoas, Alisson. Por favor — disse Tom, sacudindo a
cabeça. — Não quero você envolvida nisso.
— Eu já estou, Tom. Você não pode me fazer não me importar
porque eu me importo com você. O que você ajudou a criar foi algo
extraordinário.
— O que eu ajudei a criar foi algo monstruoso e você sabe disso —
disparou ele, voltando-se para ela. Então sacudiu a cabeça. — Desculpe,
desculpe.
— Tudo bem. Mas devíamos ir. Tenho certeza que ele já chamou a
segurança.
Tom assentiu.
— Não foi minha culpa — disse ele. Então me fitou com aquele
olhar intenso outra vez. — Não foi minha culpa.
— O que não foi? — perguntei, cauteloso.
— Ele me demitiu porque não foi minha culpa — continuou Tom,
sem mais de fato me ouvir. — Ele me demitiu para pôr a culpa em qualquer
um que não ele mesmo. — Ele olhou para mim por cima do ombro. — Mas
ele ainda está com a máquina. Mesmo depois de tudo. E aquela é uma
invenção da Gent, eu ajudei a inventá-la e ele me tirou os meus direitos, o
meu design, tudo.
— Como ele pôde fazer com que você fizesse isso? — perguntei.
Ele se virou devagar e sacudiu a cabeça.
— Nem todos nós temos boas conexões, filho. Nem todos nós temos
chances. Especialmente para conseguir emprego como engenheiro quando
não tive uma boa formação e treinamento. Ninguém em qualquer posição
me dera aquele tipo de respeito desde o tempo que trabalhei com aviões
durante a guerra. Eu confiei nele. Ele me pagava extra. Tinha um contrato
legal com a Gent. Me tratava como um verdadeiro homem de negócios.
Mas eu não li as letras miúdas.
Eu não soube o que dizer frente a tudo isso. Só fiquei ali parado.
— Todos nós confiamos nele — disse Alisson. — Não conheço
ninguém que realmente entendesse o que estava assinando. Acho que o Sr.
Drew gosta de encontrar pessoas que são talentosas mas que também
precisam do emprego. Que realmente precisam do emprego.
Eu agora sentia algo engraçado no estômago. Não mais um aperto,
nem borboletas, só uma dor estranha.
— Não vamos nos esquecer da Susie — acrescentou ela.
Tom suspirou.
— Quem é Susie? — perguntei. O Norman também não tinha
mencionado algo sobre ela?
Alisson olhou para mim com uma expressão triste no rosto e sacudiu
a cabeça.
— Não é essa a questão, Buddy. A questão é que todos aqui
concordam que o Sr. Drew é dono de tudo o que produzimos. Desenhos.
Histórias. Canções. E... — Ela olhou para Tom. — Invenções. Começou
com o Henry e continua com o resto de nós. É o sacrifício que fazemos.
Eu estava processando tudo o que eles estavam me contando. Estava
tudo desabando sobre mim, todas as muralhas que eu erguera em defesa do
Sr. Drew. Eu já não conseguia mais sustentá-las e estava sendo enterrado
embaixo delas.
— Agora nós temos que ir e você vê se se cuida. E cuide daquela
escritora. Ela é supimpa — disse ela, em meio a um sorriso pequeno e
entristecido.
— Normalmente é ela que cuida de mim... — respondi.
A sensação no meu estômago ficou mais forte.
— Dê o fora enquanto pode, filho — disse Tom, quando o elevador
se abriu e eles entraram.
As portas se fecharam e eu estava sozinho. Os sons da festa vazavam
pelas portas, mas eles agora já não me tentavam mais. Só deixavam a
minha inquietação pior. Eu não devia estar aqui, pensei. Não devia. Eu
devia estar com a Dot. E com o Jacob. Esse não é o meu lugar. Meu lugar
é com as pessoas que são importantes para mim. Que se importam comigo.

O Duke’s Bar estava tão cheio quanto de costume quando eu fui me


espremendo pelo bar. Pela primeira vez, as pessoas lá me notaram.
Algumas riram, algumas assentiram, como se tivéssemos algum tipo de
segredo compartilhado a respeito do meu smoking, enquanto outras só me
encararam. Senti falta de ser um zé-ninguém invisível.
— Ei, garoto — disse o barman, um sujeito feliz com entradas no
cabelo que se recusava a aceitar. — Uma Coca como sempre?
Sacudi a cabeça.
— Estou procurando pela Dot — disse.
O barman sorriu.
— É claro que está. Bom, não os vejo vai fazer uma hora.
— Ah — disse, sentindo-me murchar. Apoiei meu corpo no bar,
agora com um grande peso nos ombros.
— É, acho que eles voltaram pro escritório. — O barman se voltou
para o próximo cliente que o estava chamando.
Pro escritório?
— Espera! — gritei. — Todos eles? A Dot, o Jacob e o Richie?
O barman estava puxando uma caneca e assentiu em minha direção,
a parede de som entre nós densa demais para que pudesse dizer algo que eu
fosse escutar.
Girei sobre os calcanhares e segui para o lado de fora, onde então
atravessei a rua. É claro que estava entrando em pânico outra vez. E é claro
que, de alguma forma, Dot tinha convencido os caras a voltarem com ela
para o estúdio. Me perguntei se ela tinha explicado tudo. Me perguntei se
eles entendiam o que os estava esperando.
Ela tinha que ter explicado. Não era mentirosa e não ia colocar
alguém em perigo sem que essa pessoa soubesse o que estava acontecendo.
Ainda assim. Sendo assim. Por que diabos eles foram com ela? Não tinha
como eles saberem o que se escondia em meio às sombras negras, ou que
as próprias sombras estavam vivas.
As luzes do estúdio estavam todas acesas, embora, por algum
motivo, ele não parecia menos sinistro que na noite em que eu e a Dot
ficamos presos lá dentro. Especialmente porque eu tinha sacado, elas
estavam acesas para que, se o monstro aparecesse, houvesse um sinal.
O pensamento não me segurou ou me fez desacelerar. Era incrível
como entrar no covil de um monstro de repente me pareceu o certo a fazer,
mas ir a uma festa num hotel chique me parecera o juízo final.
A porta da frente estava aberta. Talvez a Dot a tivesse deixado assim
de propósito, caso eu aparecesse. Porque ela sabia que eu ia aparecer.
Disparei pelo saguão e segui em direção o elevador, olhando para os
pôsteres ao longo do caminho. Me lembrei das versões em tamanho real
dos personagens na festa e sua esquisitice absoluta. E então do que Tom
havia dito. Sobre o propósito da máquina. E sobre “aquilo”.
Comecei a correr e derrapei quando vi a grade do elevador, batendo
nela com tudo. Suspirei enquanto a abria e entrei. Precisava ir com calma,
não ficar tão em pânico. Mas era difícil não ficar. Eles estavam em algum
lugar lá embaixo, procurando aquela fera sozinhos.
Cheguei ao andar onde ficava o Departamento de Música e dei um
passo cheio de cautela pelo corredor. As luzes estavam acesas com força
total e isso me deu confiança para avançar cuidadosamente em direção ao
Departamento de Música. Não sabia com certeza absoluta se eles estavam
lá, mas acreditava que estavam. Afinal, era onde tudo parecia acontecer.
Estava com tanto medo das luzes bruxuleantes que às vezes a minha
imaginação me pregava peças — achava que tinha visto um tremeluzir pelo
canto do olho, mas, quando me virava, as luzes continuavam zumbindo
com força. Estáveis. As sombras não estavam vindo atrás de mim. Não
estavam lá. Ainda. Enquanto as luzes permanecessem brilhantes eu estaria
bem, lembrei a mim mesmo. Mas eu tinha me esquecido a respeito da tinta
nas paredes. Se eu achava que ver aquela tinta reluzente de relance com o
feixe de luz da lanterna era mais assustador que vê-la com a iluminação
normal, bem, eu estava muito enganado. Quando fiz uma curva e me
deparei com a tinta, havia algo extremamente inquietante no fato de
simplesmente vê-la... ali. Sem tentar se esconder. Sem tentar ser nada. Só
orgulhosamente espalhada por todo lado.
E havia algo novo também. Algo que não estivera ali antes, quando
eu e a Dot cruzamos as barreiras da polícia. Algo escrito na tinta,
desenhado por um dedo, imaginei:
“Ele Nos Libertará.”
Parei e olhei para aquilo. Como o caderno. Como a tinta que
escorrera das notas de música, metade na folha, metade na bancada.
“Ele Nos Libertará.”
Tive um pensamento repentino. Um pensamento estranho, profundo
e perturbador.
E se o Sammy não tivesse desaparecido? E se...
E se estivesse se escondendo?
— Olá, Departamento de Artes — disse uma voz atrás de mim.
Eu me virei no mesmo instante, apenas para ver que estava cara a
cara com o Bendy.
De novo.
CAPÍTULO
VINTE E UM

Eu já tinha sido deixado inconsciente antes, uma vez numa briga. Ou


talvez não estivesse tanto para uma briga, foi mais uma surra mesmo. Por
ser diferente. Como sempre. Eu já estava conseguindo me defender melhor.
Fugir melhor. Mas daquela vez, os valentões me pegaram de surpresa.
Pularam em cima de mim enquanto estava virando a esquina de casa.
Eles não queriam me desacordar. E tenho certeza que os valentões
ficaram assustados com isso. Não com as consequências. Mas com o seu
próprio poder. Eles me deixaram em paz por um tempo depois disso.
Mas eu não me lembrava muito de como tinha sido. A parte de ter
sido espancado. A parte de acordar. E quando abri os olhos na Sala de
Música, no palco, amarrado numa cadeira, eu tinha certeza absoluta de que
não me lembrava daquela dor de cabeça ardente que parecia queimar os
meus olhos naquele exato momento.
— Ei, Buddy, você tá bem?
Pisquei algumas vezes para tentar me reorientar e então me virei na
cadeira, onde encontrei Richie olhando para mim, amarrado assim como
eu. Ele sorriu aliviado. Não acho que ele já tivesse sorrido para mim de
forma sincera assim antes. Seus sorrisos costumavam ser sempre um
pouco... sarcásticos.
— Richie, o que está havendo? — perguntei, em pânico.
— É o Sammy. Ele perdeu a cabeça. Ou o que restou dela — disse
ele, seus olhos vasculhando a sala escura.
Também olhei em volta, mas estávamos sozinhos.
Estávamos sozinhos.
— Cadê a Dot e o Jacob? — perguntei. As cordas à minha volta
ficavam mais apertadas à medida que eu tencionava o corpo.
— A Dot fugiu. — Meus músculos instantaneamente relaxaram. —
Não sei onde ela está. O Jacob... ele pegou. Ele o levou... Buddy, acho que
ele planeja... — Richie parou de falar, como se tivesse ouvido alguma
coisa.
Eu também ouvi. O som da porta se abrindo.
Nós nos viramos e olhamos ao mesmo tempo.
— Esse é o Sammy? — sussurrei.
Richie assentiu de um jeito meio louco e apressado, mas não disse
nada. Seus olhos estavam arregalados, seu corpo inteiro tremendo.
— Ora, ora, vejam o que a fera trouxe pra cá — disse Sammy,
naquela sua voz superior. Era ele. Era ele atrás da máscara.
Era tão estranho e errado. Ele estava usando o que parecia uma
máscara de papelão, do tipo que se destaca da parte de trás de uma caixa de
cereal para o Halloween. Como uma máscara de gatinho ou coisa assim.
Mas aquele não era um gato.
Era o Bendy. O rosto do Bendy. Com aquele sorriso. Aquele grande
sorriso cheio de dentes. Pela segunda vez naquela noite, eu estava olhando
para aquele rosto e começava a notar como ele não era nada fofo.
Mas a máscara não era a única coisa perturbadora nele. Sammy
estava usando seus calções e suspensórios, como de costume, mas não
estava de camisa. Ao invés disso, seu peito, suas mãos, seu pescoço e —
acreditava eu — seu rosto atrás da máscara estavam cobertos de tinta negra
e brilhosa. Era difícil dizer se estava seca ou molhada, já que ela reluzia à
luz das lâmpadas. Mas, de alguma forma, parecia parte dele. Já era parte
dele há algum tempo.
— Sammy, o que está fazendo? — perguntei quando ele começou a
seguir lentamente em direção a seu suporte de partituras, olhando para nós.
Sua voz soou como se ele estivesse sorrindo atrás da máscara. Como
se estivesse feliz:
— Apenas eu sei o que ele quer.
Aquilo era loucura.
— O que aconteceu com você?
— Ha! — Sammy vociferou uma risada. — O que aconteceu
comigo? Você sabe o que aconteceu comigo! Você estava lá! Você viu!
Eu estava? Eu vi?
— Naquele dia, quando a tinta me encontrou. Ela me queria. Ele me
queria. No início, eu tive medo. No início, conseguia senti-las dentro de
mim, as gotas que eu engoli por acidente. Por sorte. Conseguia senti-las se
mexendo dentro de mim. Não devia ter tido medo. Fui um tolo. — Ele
estava acelerando, jogando as palavras quase mais rápido do que conseguia
dizê-las. — Então começou o desejo. Eu precisava de mais tinta. Não havia
escolha. Era preciso. E quanto mais eu consumia, mais eu entendia. Mais
eu o sentia. O escutava. Precisava agradá-lo.
Sammy começou então a dar a volta pela sala e se eu conseguisse
fazê-lo continuar falando... Comecei a puxar minhas mãos em meio às
cordas. Tentando me soltar à força.
— Vejam vocês dois nessas suas vidinhas tristes. Vivendo um dia
atrás do outro. Para quê? Para agradar Joey Drew? — Ele deu outra risada,
dessa vez mais longa e pesada. Ele respirou fundo. — Por que agradar um
homem quando se pode agradar um deus?
Fui puxando as cordas com cada vez mais força.
— Onde está o Jacob? — indaguei.
— Onde tudo começou. Um pequeno gesto no início. E então, bem...
Então...
— Onde é isso?
Sammy parou de andar. Estava no meio da sala, longe o bastante
para que ficasse quase completamente oculto nas sombras. Os olhos do
Bendy olharam para mim, olharam para a minha alma. Ainda que fosse só
papelão e tinta.
Tinta.
Maldita tinta.
— Shhhhhh. Chega de perguntas, carneirinho. — Ele riu depois de
dizer isso. — Carneirinho, carneirinho, está na hora do soninho — disse
ele, numa voz cantarolada.
Crash.
E então, Sammy estava estirado no chão, embaixo de um grande
projetor, inconsciente e, graças a tudo que é mais sagrado, quieto.
CAPÍTULO
VINTE E DOIS

— Vocês estão bem, garotos? — disse uma voz familiar do alto da


cabine de projeção.
— Dot! — exclamei.
— Ele gosta mesmo de falar, hein? — comentou ela, sacudindo a
cabeça enquanto se debruçava no parapeito.
— Sim — respondi, aturdido, mas me sentindo também um pouco
eufórico por vê-la.
— Já desço aí. — Ela desapareceu em meio à escuridão outra vez.
Olhei para Richie com um sorriso, mas ele estava branco feito papel,
como se tivesse visto um fantasma.
— O que diabos foi isso? — berrou ele.
Assim que abri a boca para responder, Dot abriu a porta e entrou
correndo na sala.
— Desculpa ter demorado tanto, precisava que ele estivesse no lugar
certo. Não sou forte, mas sou estrategista. E eu só tinha uma chance —
disse ela, indo para trás de Richie e desamarrando as suas mãos. Então foi
até as minhas.
— O que houve? — perguntei.
— Quando ele atacou, não sei nem se notou que eu estava lá, só os
garotos. Eu consegui fugir e fiquei escondida por um bom tempo, mas aí o
vi arrastando o Jacob e soube que não podia simplesmente ficar escondida
para sempre. — Ela finalmente desamarrou as minhas mãos. Eu logo as
trouxe para frente e esfreguei os pulsos por um momento. — Você veio.
Não conseguia olhá-la nos olhos, me sentia envergonhado.
— Sim.
— Por quê?
— O Sr. Drew... Acho que não confio mais nele — disse. Estava
minimizando a situação, mas, ao mesmo tempo, me sentia um verdadeiro
idiota. Como se fosse um tonto por ter acreditado nele. — E não foi por
isso. Foi também... — Eu não sabia como dizer.
— Tudo bem... — disse Dot. Mas eu sacudi a cabeça.
— Vou falar bem rápido. Direto. Como você faz — disse. — Eu
achava que cuidar das pessoas que importam para mim era fazer dinheiro
para a minha mãe e o meu avô, era zelar por eles. E é. Mas é mais que só
isso. Eu posso conseguir outro emprego, sempre vou ajudá-los. Mas você
precisava da minha ajuda esta noite. Você estava em perigo. E eu estava
numa festa idiota. O que eu te disse antes, o que eu fiz, foi errado e eu sinto
muito.
Eu finalmente a olhei nos olhos.
— Tá tudo bem — disse ela. — Eu entendo. Você não faz ideia do
quanto eu entendo. — Ela tinha no rosto uma expressão que eu não
consegui ler, não era nada que já tivesse visto antes. Triste, mas doce. E
cansada.
— Pessoal — disse Richie. Tinha esquecido que ele estava ali.
— Temos que salvar o Jacob — disse Dot, sua voz toda determinada
outra vez. Assenti e me curvei depressa para soltar meus pés enquanto ela
ajudava Richie, que ainda estava lá sentado, desnorteado.
— Você sabe para onde ele o levou? — perguntei, me levantando.
— Não sei. Acho que para onde está a máquina. Mas sinto que já
vasculhei cada canto do estúdio nessas últimas semanas. Já fui pra tudo que
é lugar, Buddy. É como se ela fosse invisível ou coisa do tipo. — Richie
estava livre e alongou o corpo inteiro enquanto se levantava.
Foi quando me ocorreu. O discurso. Na festa.
— O teatro — disse. — Só pode estar no teatro.
— Que teatro? — perguntou Richie.
— O prédio ao lado. O Sr. Drew o comprou. As peças pararam faz
uma eternidade. Talvez... Não, não acho que seja um talvez. Ela está lá.
Dot assentiu, concordando comigo instantaneamente. Ela se virou
para Richie.
— Certo, Richie, você precisa ir à festa e contar a alguém o que está
acontecendo aqui. Traga o Sr. Drew — disse ela.
Senti meu estômago revirar. Aquilo me parecia errado.
— Tem certeza? — perguntei. Pensei no Tom, talvez ele pudesse
ajudar. Mas então me dei conta de que eu não tinha como saber onde ele
estava ou como contatá-lo.
— Não sei o que mais fazer.
Assenti. Não tínhamos tempo para ficar ali parados discutindo todas
as nossas opções.
— Bom, sim, ele não vai aprovar o que o Sammy está fazendo, então
seja lá o que mais ele fosse pensar, ela ia querer impedir isso — disse.
— Exato. Ele não pode chamar a polícia — disse ela. — Isso é tudo
estranho demais e vai saber quem eles culpariam.
Àquela altura, todos nós podíamos ser presos, por invasão, por...
simplesmente estar no lugar errado na hora errada.
— Certo. Richie, vá trazer o Sr. Drew. Ele está na festa.
— Sim — disse Richie. Ele estava tremendo.
— Você consegue — disse, colocando uma mão no ombro dele do
mesmo jeito que a Dot sempre colocava uma no meu. Pareceu surtir o
mesmo efeito nele.
— Eu consigo — disse ele, um pouco mais confiante.
— Bom. — Dot se virou para mim. — E você e eu, bem, acho que
vamos ao teatro.

— Estamos bem alto, então toma cuidado — avisei a ela. Ela


assentiu e entramos pela passarela escura. Dot imediatamente acendeu sua
lanterna e eu senti uma onda de alívio por saber que tínhamos um pouco de
luz para nos manter em segurança. Ou pelo menos para nos avisar que não
estávamos.
Ficamos ali parados, assimilando nossos arredores. O teatro era
muito mais intimidador no escuro. Eu não conseguia ver tão claramente. As
sombras das cordas mais a frente brincavam com a minha imaginação, às
vezes quase parecendo vivas, como uma floresta de cobras. Então Dot
passou a luz pela passarela gradeada, voltando-a para o palco bem lá
embaixo. O cruzamento das sombras que cresciam e então sumiam em
meio à luz me lembrou das sombras vivas na Sala de Música. E então a luz
iluminou alguma coisa. Foi um vislumbre rápido, mas logo desapareceu.
— Dot, traz de volta — murmurei. Ela ergueu a luz novamente e foi
então que nós vimos. Alguma coisa. Alguma coisa balançando mais abaixo,
pendurada em uma das barras usadas para sustentar os cenários. — O que é
isso? — sussurrei.
Sem responder, ela partiu em direção à massa no centro do espaço e
eu a segui de perto. A coisa embaixo de nós sacudiu devagar em resposta
aos nossos movimentos que balançavam a passarela. Como se uma brisa
leve a estivesse soprando. Estávamos bem em cima dela agora e a Dot
então se abaixou. Mais uma vez, segui suas ações e nos deitamos de barriga
para baixo na passarela, olhando por entre as grades.
A luz ricocheteou na massa suspensa em meio a uma série de cordas
que vinham de várias direções diferentes, feito uma mosca numa teia de
aranha. Ela brilhou frente à luz, aquele brilho asqueroso de tinta molhada.
— É uma pessoa? — perguntei, me sentindo subitamente enjoado.
— Não sei. — Dot não parecia assustada ou enjoada.
— É o Jacob?
— Não sei. Não importa. Seja lá o que ou quem for, temos que tirar
daí. Tem que ter um jeito de levar lá para baixo. Afinal, teve um jeito de
trazer aqui para cima.
Nos levantamos e rapidamente seguimos para o outro lado da
passarela, em direção a uma escada estreita presa à parede externa do
teatro, que nos levaria até a altura do palco. Dot desceu primeiro,
desligando a lanterna enquanto o fazia. Eu a segui. Descer no escuro
daquele jeito, pisando em cada degrau da escada à medida que eles iam
surgindo, me fazia sentir que o tempo tinha parado. Eu conseguia ouvir
cada rangido daquele lugar. Segurei o fôlego para ouvir mais que isso.
Muito mais.
— Estou no chão — Dot sussurrou para mim e logo eu também
estava. Ficamos ali parados por um momento. Conseguia escutar sua
respiração que, embora estável, por algum motivo não me parecia calma.
Soava mais como se ela estivesse tentando mantê-la sob controle, mas
estivesse falhando.
Ela acendeu a lanterna mais uma vez e lançou a luz para cima. Ela
arquejou.
E eu entendi por quê.
Não havia apenas uma massa suspensa lá em cima. Havia pelo
menos três. Figuras de tinta negra, cada uma delas em meio a uma teia cuja
silhueta perfilava nas cortinas do teatro.
— Três — disse em voz alta.
— Olha! — Dot apontou. Ela iluminou uma das figuras com a
lanterna. Estava se debatendo em meio às cordas. Não com muito esforço,
mas estava se mexendo.
— Temos que trazer todos aqui para baixo — disse, mas Dot já
estava correndo em direção às roldanas enfileiradas na parede. Me sentia
feliz por ela estar comigo, mas também aterrorizado com a ideia de que a
qualquer momento podíamos ser nós lá em cima. De que podíamos ser
atacados por trás e subitamente estar numa teia nossa, cobertos como eles.
Com tinta em nossos rostos, em nossas bocas, pingando por dentro de
nossas gargantas.
— Buddy, me ajuda!
Tentei me livrar do medo, mas ele persistiu mesmo enquanto eu me
juntava a ela e contávamos as cordas até encontrarmos as que pareciam
corresponder à barra. Dot cuidadosamente desfez o nó que segurava a
corda no lugar e, juntos, começamos a abaixar a barra. As teias começaram
a descer. Os guinchos por onde as cordas passavam chiaram enquanto o
fazíamos e, ainda que não fosse alto, foi o suficiente para que a minha
frequência cardíaca aumentasse ainda mais. Abaixei o olhar em direção à
luz da lanterna que brilhava no chão. Um feixe estável. Bom.
Mais alguns instantes e as massas estavam no chão. Corri até elas
imediatamente e, assim que o fiz, as luzes se acenderam num forte zumbido
lá no alto. Me virei e olhei para Dot, que corria para me alcançar.
— Não dava pra ver nada e imaginei que a luz ajudaria a nos manter
mais seguros.
Era verdade. Mas havia algo aterrorizante na ideia de que agora
estávamos expostos daquele jeito, no meio de um palco todo iluminado. Eu
logo olhei em volta, só para ver. Caso a criatura estivesse ali em algum
lugar. Caso a tinta estivesse se arrastando lentamente em nossa direção,
como eu a vira se arrastar pelo meu avô. Não havia ninguém. Os assentos
da plateia eram um buraco negro de nada. Mas tinha uma coisa. Lá, bem no
meio do palco, no meio de tudo, estava a máquina.
Segurei o fôlego enquanto olhava para ela. Era grande e quadrada,
com um enorme tubo curvo do qual uma tinta espessa e pegajosa pingava.
Parecia ser possível entrar e subir pelo tubo com a maior facilidade, caso
alguém quisesse fazê-lo. A máquina também parecia rústica, caseira, como
se não tivesse sido finamente trabalhada. Os parafusos eram grandes e
destrambelhados e as laterais estavam soldadas uma na outra, arqueando e
borbulhando nas juntas.
— Buddy, é o Jacob! — Dot tinha ignorado completamente a
máquina e correu em direção às massas.
Logo me juntei a ela e vi do que se tratava. Ela estava certa. Era o
Jacob. Coberto da cabeça aos pés com bolhas espessas de tinta. Me
lembrou um pouco da primeira vez que eu vi o Sammy. Daquele primeiro
dia. Do dia em que a tinta o tomou.
— Temos que limpá-lo — disse, rapidamente retirando minha
jaqueta e esfregando seu rosto. Suas feições se materializaram embaixo da
gosma e Jacob subitamente respirou fundo, puxando o ar para dentro.
— Fujam, vocês tem que fugir — disse ele, ofegante.
Dot sacudiu a cabeça.
— Está tudo bem, as luzes estão brilhantes. Estamos bem. — Ela
então tirou seu suéter e continuamos a esfregar a tinta dele. — Eu faço isso,
você desamarra as cordas — ela me disse.
Olhei para a teia. As cordas estavam amarradas por todo o seu corpo,
encharcadas de tinta. Parecia impossível.
— Preciso de alguma coisa para cortar.
— Tem um machado na caixa de incêndio — disse Dot.
— Já vejo, vou dar uma olhada nos outros.
Me levantei depressa e corri até os outros corpos. Comecei a limpar a
tinta. Um rosto apareceu. Era o Dave. Do meu departamento.
— É o Dave — disse. O bom e velho Dave, sempre quieto, sempre
fazendo o seu trabalho.
Dot ergueu o olhar, chocada.
Eu nem sabia que ele tinha desaparecido. É claro que não. O sujeito
ia para casa cedo toda noite. Às vezes, nem parecia estar lá, sempre de
pausa ou coisa do tipo. Eu o sacudi pelo ombro.
— Dave — disse. — Vamos, acorda! — Sua cabeça pendeu para o
lado, inerte. Há quanto tempo ele estivera lá em cima? Há quanto tempo
estivera sufocando naquela tinta? Lutando para fugir? O horror era demais
para imaginar. — Eu sinto muito, Dave — disse. Precisava checar o outro
corpo, mas estava profundamente aterrorizado. Com medo de que houvesse
uma ordem para a loucura. O jeito como os corpos tinham sido pendurados
na barra. Tentei limpar a tinta o mais rápido que pude, mas eu sabia, bem lá
no fundo, que não faria diferença.
Um rosto apareceu.
Norman.
Essa não.
Ah, Norman.
É claro que ninguém notaria que ele havia desaparecido. De todos no
prédio. Ele observava todo mundo, mas ninguém nunca o via. Ou pelo
menos não muito.
Me levantei devagar e olhei para os dois corpos lado a lado. Uma
grande tristeza pareceu tomar forma dentro de mim. Eu não tinha tempo
para luto e também não conhecia nenhum daqueles homens muito bem.
Mas mortos. Realmente, verdadeiramente mortos. Seja lá o que fosse o que
aquela máquina tinha feito, seja lá como aconteceu, pessoas estavam
morrendo. Pensei na violinista. Me lembrei dela caída no chão. Não tinha
imaginado que ela podia muito bem estar morta agora.
O Sr. Drew não podia saber daquilo. Não podia. Aquilo era demais,
ele nunca quis aquilo. Ele ia destruir a máquina. Agora que sabia.
Não ia?
— Não, Jacob, por favor, mantenha a calma — ouvi a Dot dizer. Isso
me trouxe de volta ao presente e eu fui até ela.
— Vocês têm que me escutar — disse ele, tentando se erguer, sem
sucesso, escorregando na tinta embaixo de si e caindo com tudo sobre seus
cotovelos. Ele gemeu de dor e se deitou novamente.
— O que foi? — perguntei à Dot.
— Ele está traumatizado, é óbvio. Por causa da criatura. Temos que
tirá-lo daqui. Temos todos que sair daqui.
Assenti e me virei outra vez para pegar o machado. Mas assim que o
fiz, Jacob chamou meu nome:
— Buddy, me deixe.
Desviei o olhar por um momento para o chão do palco, para a luz.
Ainda estava brilhante. Ainda era seguro.
— Não antes de te desamarrarmos. — Corri então até os bastidores,
procurando freneticamente pelo machado. Eu o encontrei trancado em sua
caixa de vidro.
Corri de volta até a Dot, pequei sua lanterna e, sem nem pensar a
respeito, voltei às pressas. Com um rápido movimento, eu quebrei o vidro.
Recuei um passo quando os cacos voaram pelo ar. Senti uma pontada de
dor na bochecha, onde um deles me cortou. Passei a mão pelos cacos
quebrados e agarrei o machado, rasgando minha camisa no processo. Mas
não me importei, com nada disso. Só corri de volta até o Jacob.
— Deite. — Dot o empurrou um pouco pelos ombros. Ele ainda
estava resistindo.
— Não! — Seus olhos pareciam quase vermelhos de fúria. — Vocês
não entendem. Essa coisa está brincando com a gente. — Ele se debatia
com força e eu logo me aproximei e golpeei a primeira corda com o
machado. A atingi em cheio e me senti muito satisfeito quando a vi se
partindo em duas. Continuei fazendo isso, de novo e de novo. Foi difícil, já
que Jacob não parava de puxar e se debater, mas mantive o foco e quando
finalmente cheguei à última corda, disse, satisfeito: — Pronto!
Jacob se jogou para cima num pulo, com a mesma energia de quando
estava amarrado. Ele deu de cara com a Dot e ela caiu com tudo de costas
no palco.
— Dot! — exclamei.
Jacob estava tentando se levantar, brigando com as poças de tinta à
sua volta, totalmente fora de si. Sua linguagem corporal parecia bastante
com a do Sammy. Podia muito bem ser o Sammy ali.
A tinta. A tinta o havia tomado. Mas ele também estava lutando
contra ela. Observei enquanto ele se encolhia e balançava os braços, como
se tentasse jogar a tinta longe. Ele se retorceu e então berrou, um tipo de
berro sobrenatural, inumano. Ele ergueu uma mão em direção à Dot, como
se para agarrá-la, mas a segurou com a outra mão, puxando-a para trás. Me
preparei para jogar o machado longe e disparar para cima dele.
— Para trás, Buddy! Não quero te machucar! — ele berrou outra vez.
Não parava de se debater, atirando seu corpo em todas as direções. E então
fizemos contato visual por um momento. Por um breve momento. E eu vi o
Jacob lá dentro. Eu o vi. E ele estava com um olhar estranho nos olhos,
como se estivesse triste, mas feliz, determinado. E ele então virou a cabeça
para o teto e urrou bem alto, se jogando com tudo no chão do palco.
E ele parou de se mexer.
Corri até seu lado, pondo o ouvido em seu peito. Estava se mexendo
um pouco e eu conseguia ouvir seus batimentos.
Dot imediatamente correu até o meu lado.
— Ele ainda está vivo — disse a ela.
— Ele fez isso por nós. Ele se desacordou para nos proteger.
Assenti, ainda em choque.
— Vem — disse. — Vamos tirá-lo daqui.
Foi quando as luzes se apagaram.
CAPÍTULO
VINTE E TRÊS

Meus olhos se ajustam às diferenças na luz muito melhor agora.


Deve ser a única coisa boa. Mas então, naquela época, uma mudança súbita
na luz me ofuscava por tempo demais, deixava difícil de entender o que
estava acontecendo.
Eu ouvi um urro que era diferente de tudo que já tinha escutado, um
grito gutural, mas também agudo. Nenhum animal no zoológico, nenhum
trem chiando por um túnel no metrô, nada se comparava àquilo. E então um
alto estrondo no palco. Algo me agarrou e, a princípio, tentei me soltar com
tudo, mas então notei que era a Dot segurando a minha mão, certificando-
se de que sabia onde eu estava. Apertei sua mão com a minha.
A puxei para que me seguisse e, enquanto meus olhos se ajustavam à
luz turva, começamos a engatinhar em direção à máquina, para nos
escondermos atrás dela. Conseguimos nos levantar junto a ela do lado
oposto à criatura, que estava atravessando o palco a passos pesados.
— Tinta — sussurrou Dot, apontando. Olhei para a direção que ela
estava indicando e vi quatro grandes baldes cheios dela. Fomos para o mais
longe deles que podíamos.
Meus olhos finalmente estavam acostumados com a iluminação. Via
agora que não estava completamente escuro. As lâmpadas em cima do
palco ainda estavam acesas, mas estavam obscurecidas agora em meio às
sombras de tinta que pareciam seguir a criatura. Elas ficavam mais claras e
mais escuras à medida que as sombras se movimentavam e eu então me dei
conta de que precisava saber como era a aparência da tal criatura. Se agora
eu conseguia enxergar, então conseguia vê-la. E precisava saber o que
estávamos enfrentando. Finalmente.
Eu cuidadosamente me inclinei junto ao canto da máquina, apenas o
suficiente para que conseguisse dar uma espiada, boa parte da minha visão
cortada pela lateral.
A criatura estava parada no meio do palco. Como se estivesse nos
farejando, como daquela primeira vez na Enfermaria. Na verdade, eu não
estava pensando muito sobre isso porque o que vi na minha frente me fez
congelar por inteiro. Não só o meu corpo, mas também a minha mente. O
meu coração. Meu tudo.
Parada mais à frente estava a criatura do caderno do Sammy. Não era
só um rabisco inventado, era real. E era...
O Bendy.
Ou pelo menos uma estranha versão do personagem animado. A
cabeça era o que mais parecia com ele. Tinha a mesma forma, redonda com
suas pontas para formar os chifres. Tinha também o mesmo sorriso. Grande
e branco, com linhas separando cada um dos dentes, mas aqueles dentes
eram reais. Eles reluziam com saliva. O resto? Bom, o resto do rosto estava
coberto de tinta, tinta que escorria por sua cabeça, em cima de onde seus
olhos deviam estar. Queria dizer que ele era cego? Não achava que
precisava haver lógica para uma criatura como aquela.
Seu corpo era alto, magro e também pingava tinta dele. Não, não era
só magro, era quase como um esqueleto gotejante. Dava para ver a
reentrância embaixo de suas costelas. Mas ele ainda era em partes um
personagem de desenho, o que provavelmente era a coisa mais aterrorizante
nele. Ainda tinha aquela gravata-borboleta e uma luva branca, como
aquelas que todos os personagens tinham.
Ele continuou ali parado. Com um rosnado bem lá no fundo, como
um motor em pleno funcionamento dentro de si. Ele sabia que estávamos
em algum lugar. Observei enquanto voltava a andar pelo palco. Andar em
meio aos corpos no palco.
Jacob.
Mas, ao invés de ir até ele, foi em direção ao Dave. Ele cheirou a
figura meticulosamente. De repente, ele urrou, agarrando-o, e então puxou,
arrancando o braço direito do Dave de uma só vez e atirando-o do outro
lado do palco.
Senti a Dot me agarrar pelo ombro e apertar. Assenti, mas não sabia
mais o que fazer. A fera agora parecia estar crescendo. Seus braços e
pernas se alongando, sua cabeça se alongando, seus dentes ficando mais
afiados. A criatura então se arrastou em direção a Jacob. Não, não, não,
não. Isso não podia acontecer.
— Ei! — exclamei, levantando-me e aparecendo em meio ao palco.
As luzes ficaram quase negras quando a criatura se virou para mim.
— Ei! — Dot gritou então. Me virei e vi que ela tinha saltado do
outro lado da máquina. Eu a encarei. — Ele não pode caçar nós dois — ela
sussurrou para mim.
Ela estava certa, é claro. Como sempre. A fera olhou para ela, então
de volta para mim, com os olhos que não tinha. Ou talvez tivesse.
Eu penso sobre esse momento todos os dias. Tento me lembrar dele
com todos os detalhes. Mas é difícil. Tinha tanta coisa naquele momento.
Tanta coisa acontecendo. Não só com a criatura, a Dot e o Jacob, mas
dentro de mim. Meu medo, minha necessidade de acabar com aquilo tudo,
minha culpa. Minha culpa por ter sido eu quem soltou a criatura pra início
de conversa.
Eu me lembro de algumas coisas, mas não de tudo.
Me lembro que ele decidiu seguir a Dot, não eu. Me lembro dele
correndo atrás dela enquanto ela fugia e me lembro de sair correndo atrás
dele. Eu tropecei num cano que devia fazer parte da máquina e, por um
momento, me senti impotente enquanto o via caçar a Dot. Mas então a fúria
que senti ao vê-lo perseguindo a Dot me deu força outra vez e eu peguei o
machado. Eu tinha uma arma.
Me atirei contra ele. Dei um pulo e ataquei, atingindo-o com tudo nas
costas. Ele nem vacilou. Sequer parou de ir para frente. Caí de costas, como
se tivesse dado de cara numa parede. Não, eu não ia me sentir impotente de
novo, ainda que me parecesse impossível vencer. Tinha que ter outro jeito,
eu tinha que encontrar outro jeito.
Ele agora tinha encurralado a Dot no canto mais afastado do palco,
em meio às sombras mais profundas dos bastidores. Estava longe demais
para golpear com o machado, então o joguei contra ele ao invés disso.
Sabia que não ia machucá-lo, mas talvez, só talvez...
Ele o acertou na parte de trás da cabeça e o monstro se virou com
tudo e rosnou para mim. Nesse momento, Dot mergulhou por debaixo de
suas pernas e fugiu do canto onde estava. Fiquei impressionado por um
único momento, até que a fera percebeu o que havia acontecido e atacou.
Dot estava correndo em minha direção e eu fiz o mesmo, erguendo a mão
para ela.
Mas no instante que segurei sua mão, a criatura agarrou seu pé.
— Dot! — gritei. Tentei achar sua outra mão e ela se agarrou à
minha, seus dedos começando a se soltar dos meus. Eu não ia conseguir
segurá-la por muito mais tempo. Tinha medo de que, se conseguisse, eu e a
criatura acabaríamos partindo-a em duas. Ela soltou minhas mãos e saiu
voando pelo ar quando o monstro a atirou pelo palco.
Ela pousou em meio a uma forte pancada.
— Dot!
— Buddy — eu a ouvi dizer, a voz suave. Tentei correr até ela,
saltando sobre canos e dando a volta por baldes de gosma negra e espessa.
A criatura disparou entre nós e me atingiu com força no peito. Derrapei
para trás, batendo de cabeça na lateral da máquina. — Você tem que sair
daqui — exclamou ela, sua voz rouca e fina. — Pegue o Jacob e saia daqui.
— Não — respondi. — Isso é culpa minha. Eu deixei essa coisa
fugir. Nós vamos consertar isso juntos.
— Isso não... não foi você quem o criou. Você não...
A criatura rugiu entre nós. Saliva saiu voando de sua boca e pousou
em meio às bolhas negras diante de mim. De repente, vi a Dot no ar outra
vez, seu grito ecoando pelo teatro. A criatura a havia pegado com uma de
suas mãos em forma de garra e a apertara com força.
Essa coisa está brincando com a gente, Jacob tinha dito.
Era como um gato torturando um rato. Não apertava com força o
bastante para matá-la, mas com o suficiente para machucá-la.
— Pare! — berrei. Saí correndo em direção ao monstro e agarrei sua
perna. Tentei derrubá-lo, mas ele estava sólido no chão, quase como se
estivesse plantado lá. Ele então ergueu a perna e, com um chute selvagem,
fui jogado longe outra vez.
Caí novamente em meio a um forte estrondo. Estremeci de dor. Tudo
doía — meus ombros, minhas costas, minha cabeça. Olhei para o chão na
minha frente, para a tinta por todo lado. Para... o machado.
De alguma forma, a dor desapareceu quando peguei a arma. Corri em
direção à fera outra vez e a golpeei na perna. Ela cambaleou e rugiu. E eu
vi que tinha criado uma grande ferida negra e profunda de onde agora
vazava tinta. Ainda assim, a coisa não soltou a Dot. Mas me sentia melhor
agora. Golpeei a perna outra vez e a criatura então me atacou com sua mão
livre. Me esquivei num salto e tentei recobrar o fôlego.
Então, para o meu horror, observei enquanto a ferida na perna do
monstro, em meio a um som de sucção asqueroso, começou a se curar, a
tinta se reformando e remodelando. Ele não podia ser destruído, não podia
ser derrotado.
Olhei para a Dot. Ela parecia tão distante.
Não, esse não era o fim. Não era impossível. Mesmo que tudo
indicasse que era.
Olhei para a máquina, furioso. Eu a odiava tanto. Odiava o fato de
que ela existia e odiava os tonéis de tinta que a cercavam.
Nunca pensei que algum dia fosse odiar tinta tanto assim.
Poças de tinta por todos os lados, cobrindo minhas roupas. Onde eu
começava e a tinta terminava?
Dot gritou outra vez.
— Dot! — exclamei. — Eu vou afogá-lo!
Não sabia se ela tinha me escutado, mas então eu me lembrei; me
lembrei do alçapão por onde o ator tinha caído na peça que eu assistira lá
de cima com o Sr. Drew. E pensei em toda a tinta que tinha saído do cano
no depósito de partituras. E talvez... talvez se eu conseguisse prender a fera
embaixo do palco, talvez se eu conseguisse encher aquela sala lá embaixo
de tinta...
Cambaleei pelo espaço à minha frente para me aproximar o máximo
que pudesse do monstro sem ser atacado por ele.
— Você precisa se soltar — gritei para a Dot. Ela não estava se
mexendo muito. Senti meu estômago revirar. Não, ela não pode estar
morta. Por favor, não esteja morta.
Sua cabeça se mexeu um pouco. Houve uma pausa e então ela se
virou um pouco mais. Ela conseguia me ouvir.
— Preciso que você pegue o machado. Preciso... jogá-lo pra você. —
Plano imbecil. Imbecil, imbecil, que plano imbecil.
— Certo — disse ela. Estava tentando elevar sua voz, mas ela soava
fina e sem fôlego.
Eu não podia. Não podia simplesmente jogar o machado para ela. Ia
acabar lhe matando.
— Eu consigo pegar — disse ela. — Só joga... devagar. — Ela meio
que fez um som de risada.
Isso não me fez me sentir melhor. Me fez me sentir petrificado. Mas
ela ainda era a Dot. E ela ainda estava lutando. Eu não podia decepcioná-la.
A fera urrou e, sacudindo os braços loucamente, se aproximou um
pouco mais de mim. Ótimo, mais alguns passos e ele estaria bem em cima
do alçapão.
— Pode vir! — gritei para ele, recuando mais um pouco. Abaixei o
olhar e vi o ponto onde o palco tinha um quadrado demarcado. As
extremidades do alçapão. De repente, a criatura parou. Não se mexeu mais.
Só ergueu a Dot um pouco mais alto, como se a estivesse mostrando para
mim. Estava com tanta raiva, tão cheio de fúria que simplesmente gritei.
Abri a boca e gritei com ele do fundo das minhas entranhas, com toda a
minha garganta. Com tudo o que havia dentro de mim.
E a criatura rugiu de volta e deu um passo em frente. Ela estava bem
no ponto certo, a Dot tinha conseguido soltar sua mão e aquilo tudo parecia
extremamente impossível, mas era tudo o que eu tinha.
— Pronta? — gritei.
— Por que não? — ela gritou de volta, a voz rouca.
— Um, dois, três...
Joguei o machado e me encolhi com a ideia de que ela podia acabar
batendo com a mão na lâmina. Mas ela o pegou, pouco abaixo da lâmina, e
quase o derrubou imediatamente, mas conseguiu segurar na parte de baixo
quando ele tombou de sua mão. Ela sorriu. Senti uma onda de alívio que
logo foi embora quando me virei e corri em direção aos bastidores,
tentando achar a alavanca do alçapão.
Aquele plano ia me parecendo cada vez mais imbecil. Mas eu não
tinha outro. Finalmente encontrei a alavanca, vermelha escura, mas, em
meio às sombras, quase preta.
— Achei! — exclamei. Esperava que ela conseguisse me ouvir, me
entender. Era provável que não, mas pelo menos sabia que uma coisa ela
conseguia fazer: — Agora! — gritei. Dot golpeou o pulso do monstro com
o machado uma, duas, três vezes enquanto eu puxava a alavanca. O chão
caiu embaixo da criatura enquanto eu disparava em sua direção e ela
ergueu a cabeça, chocada, enquanto Dot caía no palco, ainda envolta na
mão da criatura, mas a mão já não fazia mais parte dela.
O monstro caiu na escuridão e Dot saiu correndo em direção à
máquina. Ela golpeou o cano que a alimentava pela lateral até que ele
estourou. A tinta começou a vazar aos montes e disparou rumo ao buraco.
Meus ombros doíam, minha respiração estava ofegante, meus pés
escorregavam no chão molhado à minha volta. Levantei a cabeça e vi a
criatura tentando sair do alçapão com a mão boa que lhe restava,
agarrando-se à beira do buraco enquanto a tinta a engolia. Estava lutando
fervorosamente contra ela.
— Buddy! — disse Dot. Ela subitamente estava do meu lado, me
ajudando a redirecionar o fluxo de tinta para o buraco. Vê-la ali me deu
força outra vez.
Era isso, era tudo o que podíamos fazer. E nós olhamos. E
observamos. Observamos enquanto o braço da fera pareceu derreter em
meio à tinta. Seu rosto voltou a aparecer na superfície por um momento e
ele disparou para nós um rugido que foi engolido por um gorgolejar. Sua
boca ficou mais larga, então se achatou e, no fim, já não era mais uma
boca.
Estava se misturando com a tinta.
Era tinta.
As luzes clarearam e pareceram quase claras demais depois de ter me
acostumado tanto com a escuridão. Eu e a Dot ficamos olhando para o nada
em silêncio por um momento.
Foi quando percebi que ela estava olhando para mim. Então olhei
para ela.
— Você conseguiu — disse ela, com um grande sorriso.
— Bem, nós conseguimos... — respondi e então, de repente, ela
estava me abraçando. Completamente do nada. Eu só meio que fiquei ali
parado e então me dei conta de que provavelmente devia abraçá-la de volta.
O que eu fiz. Pela primeira vez em muito tempo, senti meus medos
recuarem. E apenas me deixaram relaxar e curtir o momento.
— Acha que a coisa se foi? — perguntou Dot, quando finalmente
nos soltamos.
Eu não fazia ideia. Não acreditava que tivesse. Não conseguia
acreditar que tudo tinha acabado.
— Não acho que a gente tenha tempo para descobrir. Vamos pegar o
Jacob e dar o fora daqui — disse.
— Sim. — Ela imediatamente se voltou para o Jacob, que eu notei
que estava se mexendo um pouco.
Me virei para o buraco outra vez. A tinta continuava lá, como um
lago embaixo do palco. Me perguntei se havia algum jeito de se livrar dela.
Se ela simplesmente ficaria ali. Para sempre. Assombrando o estúdio.
Esperando.
Paciente.
Com fome.
Respirei fundo. Estava botando medo em mim mesmo de novo. Era
hora de partir. Era finalmente hora de confrontar o Sr. Drew.
Uma mão irrompeu da tinta e agarrou minha perna.
— Buddy!
Aconteceu tão rápido que não sei dizer muito bem como foi. Só sei
que eu subitamente estava passando pelo alçapão, com aquela tinta espessa
na altura do pescoço, e a Dot agarrou minhas mãos bem na hora. Ele pegara
minha perna em cheio, agarrando-se a ela com uma força assombrosa. Não
havia como me soltar.
Dessa vez, era a Dot quem estava me puxando, tentando me salvar.
Segurei suas mãos com força, mas não havia como ela vencer. A criatura
era forte demais. E toda a tinha à minha volta também estava me puxando.
Quase como uma sucção que ao mesmo tempo me espremia e me arrastava.
Ela tinha que me soltar, se não eu a acabaria puxando para baixo. Nós a
puxaríamos para baixo.
— Me solta — disse, a tinta respingando na minha boca quando a
abri. Tossi e me engasguei com ela. Tinha um gosto amargo, salgado.
Queimava o fundo da minha garganta.
— Buddy, eu não posso — disse ela, ajustando sua mão ao redor do
meu pulso, seus dedos escorregando e então segurando os meus no último
momento.
Meu corpo doía, uma sensação pungente, como um aperto que me
subia pela espinha. Senti algo afiado fincando na altura da minha coxa,
como se tivesse sido esfaqueado. As garras da criatura. Eu não podia gritar,
não sem inalar mais tinta. Chutei e arrastei meu pé pelo braço da coisa nas
profundezas negras. Então senti uma dor ardente. Algo diferente. Tão
avassalador que tudo simplesmente parou. O monstro tinha afundado seus
dentes afiados no meu peito, mordendo a minha carne, meus músculos,
meus tendões. Arfei em silêncio e a tinta encheu minha boca outra vez.
Tudo começou a perder o foco e eu já não entendia o que estava
acontecendo. O olhar de horror da Dot pairava pela minha visão.
Salve-se, pensei e precisava que ela lesse a minha mente. Do jeito
que ela sempre parecia ser capaz de ler. Está tudo bem. Está tudo bem.
Apenas salve-se. Salve o Jacob.
Está tudo bem.
Olhei para ela, engolindo cada vez mais tinta, tossindo e incapaz de
respirar à medida que ela enchia os meus pulmões. Não havia ar. Não havia
nada. Só tinta.
Então houve um momento em seus olhos. Um momento que eu
reconheci.
Ela entendeu. Ela sacudiu a cabeça e eu apertei sua mão. Foi a minha
última escolha de verdade.
Está tudo bem.
Você precisa ir agora.
Você precisa se salvar. Salvar o Jacob.

Precisa salvar a todos.

E você soltou a minha mão. Fiquei tão grato. A escuridão se ergueu


depressa à minha volta e eu te vi só por mais um momento e me senti
orgulhoso e sortudo por ter te conhecido. Por ter tido essa chance. E então
você se foi. Ou eu me fui. E eu afundei na tinta, que preencheu meus
ouvidos enquanto a criatura me puxava para baixo e a dor era tanta que eu
quase já não conseguia mais senti-la. Não conseguia sentir nada.
Os cinco sentidos:
Tato: nada.
Paladar: nada.
Audição: nada.
Olfato: nada.
Visão: negritude.

E então:
Nada.
CAPÍTULO
VINTE E QUATRO

Não tenho respostas para todas as suas perguntas, Dot. Sei que você
achava que eu estava morto. Sei como é achar que alguém está morto. Sei
como é esse vazio absoluto. Como é a descrença. A forma como você luta
contra a sua própria mente. Como se não entendesse. Como se fosse tudo
mentira. Ou um sonho ruim.
A questão é que, claro...
Sonhos ganham vida.
Eu não estou morto.
Mas também não estou vivo.
E você não pode me salvar.
Mas pode salvar todos os outros.

Não sei qual foi o momento que eu acordei. Veio em estágios, o que
não é normal. Normalmente você está dormindo e então está acordado. Mas
descobri que quando se tem duas mentes vivendo juntas, quando se tem
dois conjuntos de memórias, às vezes uma mente acorda antes da outra.
Na primeira vez que acordei, estava confuso com relação a onde eu
estava. O mundo à minha volta estava escuro e sombrio e eu estava
acostumado com as coisas sendo brilhantes. Toquei o chão e vi a minha
mão. Ela estava diferente. Eu a virei. Parecia mais arredondada. Não era
tão plana quanto como a que eu estava acostumado. Também tinha mais
lados. Não conseguia entender. Me sentei e olhei em volta, agora em
pânico, e havia alguém parado ali. Ele tinha uma forma estranha, sua
cabeça muito pequena, seu corpo muito alto. Estava envolto em sombras,
era difícil de identificar. Quem era ele? O que queria de mim?
— Buddy? — perguntou.
Quem era Buddy?
Na segunda vez que acordei, era a minha mente. Não a dele. Eu
estava olhando diretamente para o Sr. Drew.
Isso me deixou confuso. Por que ele estava aqui? Ainda estava
usando seu smoking.
Foi quando me dei conta de que estava sentado e não me lembrava
de como fizera isso. Onde eu estava? Fechei meus olhos por um momento e
então me lembrei. Do teatro. Da criatura.
Da Dot.
De me afogar.
Da morte.
Do monstro. Eu rapidamente me virei para olhar, mas ele não estava
mais lá. Estávamos sozinhos. Soltei um longo suspiro e foi muito bom
fazê-lo. Nunca tinha me dado conta antes do quão bom era respirar.
Olhei para o Sr. Drew outra vez e ele estava sorrindo para mim.
Notei então que eu não estava embaixo do palco, estava em cima dele. Bem
no meio. Os assentos da plateia se estendiam num vórtice negro atrás dele.
Me virei para olhar para o outro lado. Em cima de mim pairava a máquina.
Gigantesca desse ângulo. Gotejando insistentemente. O som era hipnótico e
também um pouco doloroso.
Esse tempo todo, o Sr. Drew não disse nada. Ficou só me
observando. Era estranho e perturbador. Olhei de volta para ele.
— Estou morto? — perguntei. Era uma pergunta tola e, depois de
perguntar, percebi que já sabia a resposta. Era óbvio que não estava. Eu
sabia onde estava, sabia quem eu era. A menos que fosse assim que era
estar morto.
O Sr. Drew então se aproximou de mim a passos lentos.
— Buddy? — disse ele.
— Sim? — respondi.
— É você, Buddy? — Ele estava parado bem na minha frente agora,
pairando sobre mim. Sua pele era enrugada. Ele parecia quase inumano.
— Sim, sou eu — disse a ele. É claro que era eu.
Ele me agarrou por debaixo do queixo e manteve minha cabeça
imóvel. Tentei afastá-lo, mas ele segurava forte feito um torno. Ele ergueu
sua outra mão e me segurou com ainda mais força. Então veio mais perto e
me fitou atentamente nos olhos. Seu cheiro era poderoso. Nunca tinha
chegado a notar isso antes. Mas agora, por algum motivo, conseguia sentir
seu cheiro claramente. Não era só a fumaça do cigarro e a pomada do
cabelo. Podia sentir o cheiro do seu jantar, dos hors d’oeuvres da festa. O
cheiro do uísque e do champanhe. O cheiro do ar da cidade e do calor do dia.
Seu suor.
Sua loucura.
— Consigo senti-lo aí — sussurrou ele.
— Do que está falando? Me solta! — gritei na cara dele. Já não
ligava mais se ia impressioná-lo ou ofendê-lo. Não ligava para o que ele
pensava de mim. Sua máquina tinha feito isso com todos nós. Tinha
matado eles. Tinha me matado.
E agora... agora lentamente me ocorreu. A máquina tinha me trazido
de volta à vida?
— É claro que você não consegue me responder — disse ele,
subitamente se dando conta de alguma coisa. Seus olhos brilhavam e ele
mordeu o lábio. — É claro que não consegue. Ah, isso é mesmo incrível,
Buddy.
Não consigo respondê-lo? Mas que diabos?
Ergui as mãos e o empurrei, com força. Com mais força do que já
tinha empurrado qualquer um antes, e ele caiu de costas no palco de
madeira em meio a um grande estrondo. Me senti estranhamente poderoso.
Também já não estava mais sentindo dor alguma. Me levantei. Marchei até
ele. Era a minha vez de pairar sobre ele.
Ele se encolheu. Ele realmente se encolheu de medo. Me senti muito
bem com isso.
— O que você fez comigo? — perguntei.
— Vamos, Buddy — disse ele, erguendo uma mão, — não fique
bravo. Lembre-se que eu salvei a sua vida.
— O que você fez? — Me aproximei um passo, pondo minhas mãos
nos quadris. Gostei do fato de que a minha sombra o encobria por inteiro
daquele jeito, enchendo seu pequeno mundo de escuridão.
— Você está bravo, está frustrado. Não consegue se expressar, eu
entendo, mas não vê que eu te consertei? E agora você está, você está...
perfeito!
— O que quer dizer com isso? — Aquela palavra me tirou o ar dos
pulmões, acabou com a minha confiança.
— Vê? Não é tão ruim, certo? — disse o Sr. Drew, com um pequeno
sorriso no rosto.
— Do que você tá falando? — disse. Sentia agora que estava falando
com uma parede. Por que ele não podia me dar uma resposta direta? —
Diga o que você fez. Diga o que há de errado comigo. — Suspirei de
frustração e me virei para olhar primeiro para a máquina e depois de volta
para ele. — Diga... — Nesse momento, eu finalmente notei a minha
sombra. — Diga... — De repente, fiquei distraído.
Diga...
Recuei aos tropeços. Minha sombra era alta e magra, como sempre
havia sido. Ela cobria o Sr. Drew, agora se levantando, não mais encolhido
de medo. Me observando atenciosamente. Estava curioso, não com medo.
Parecia entender algo que eu não entendia. Algo que eu estava para
descobrir.
Toquei o topo da minha cabeça. O que era aquilo na minha sombra?
Duas pontas altas e curvas que pareciam crescer de ambos os lados do meu
crânio. Eram macias ao toque. E quando meus dedos as tocaram, eu senti
meus dedos. Aquelas pontas eram parte de mim. Assim como meus braços
ou minhas pernas.
Abaixei minhas mãos e olhei para elas.
Recuei outro passo.
— Atrás de você, Buddy — disse o Sr. Drew.
Me virei devagar. Não queria fazer o que ele dizia, mas, ao mesmo
tempo, eu sabia que precisava.
No chão, havia uma figura coberta de tinta. Esparramada em meio ao
palco. Inanimada. Encharcada. Me aproximei dela com cautela.
— Quem é esse? — perguntei, mas soou mais como um gemido.
Sem palavras. Só a sensação por trás das palavras.
Eu não queria saber a resposta.
Porque eu já sabia a resposta.
Me inclinei para olhar mais de perto.
O corpo no chão era meu.
CAPÍTULO
VINTE E CINCO

Acho que a minha história está chegando ao fim. A minha parte nela,
pelo menos. Acho que estou quase terminando de escrever. Não acho que
vá conseguir fazer isso por muito mais tempo. Ele está gostando da
história, mas também está com fome. Eu estou com fome.
Dot, se você encontrar isso, compartilhe.
Espero que consiga dizer a eles se essa história é verdade.
Sei que nem tudo é verdade.
Mas acho que a maior parte do que escrevi é real.

Minha mente e a mente dele.


A nossa mente.
Eu não estava sozinho, o Sr. Drew estava parado ao meu lado.
Olhando para o corpo. Para o meu corpo. Meu cadáver.
Ninguém pode ver a si mesmo morto. Ninguém chega a vivenciar
isso. Como a minha mente poderia sequer compreender?
Eu estou morto. Esse é o meu cadáver.
— Vê? Eu te salvei — disse o Sr. Drew.
— Eu não entendo — respondi.
— Shh, pare de tentar. Só vai frustrá-lo.
— Eu já estou frustrado. Preciso entender isso. Você tem que
explicar para mim — disse, voltando-me para ele.
— Por favor, me escute. Pare de tentar falar, Buddy. Só vai
conseguir se machucar.
— Do que está falando? Não estou frustrado com a minha fala... —
Então eu parei. Parei para escutar de verdade. — Não estou... — Um
grunhido. — Sr. Drew. — Outro grunhido.
Abri minha boca. Tentei dizer o meu nome:
— Buddy. — Um som que quase parecia um latido. Congelei. Não
conseguia respirar. Caí de joelhos e agarrei a minha garganta. Ergui o olhar
para o Sr. Drew e, por um momento, achei que ele parecia preocupado.
Mas não parecia, não mesmo. Só parecia feliz consigo mesmo.
Me virei de volta para o corpo, meu corpo. Não sabia mais ao certo o
que fazer. Não sabia nem mais o que pensar. Parte de mim se sentia
estranhamente fascinada com tudo, como se eu estivesse vendo o mundo
pela primeira vez. Parte de mim estava aterrorizada, desesperada.
Rastejei, me arrastando pelo chão até o corpo. Meu corpo.
Olhei para as minhas mãos, não as do meu corpo antigo, as do meu
novo. Minhas mãos enluvadas.
Eu não tinha luvas. Nunca usava luvas. Nem no inverno. Só enfiava
minhas mãos nos bolsos.
Não conseguia entender nada. E, ainda assim, entendia. Sabia
exatamente o que tinha acontecido agora, mas ainda era inacreditável.
Só porque algo é inacreditável, não quer dizer que não seja verdade.
Lembre-se disso, Dot. Oh, por favor, acima de todo o resto, lembre-
se disso.
Toquei o meu rosto. Não o rosto do qual eu estava olhando, mas o
morto e gelado que pertencia ao corpo no chão.
Você já viu um cadáver antes? Não é só assustador do jeito que
histórias de fantasmas são assustadoras. É assustador porque é a pessoa
bem ali na sua frente, mas você sabe que não é exatamente ela.
Falta alguma coisa.
— Este é o seu corpo, Buddy. Mas não é você — disse o Sr. Drew,
agachando-se ao meu lado. Ele disse essas palavras como se pudesse ler a
minha mente.
Olhei para ele, furioso. Sabia agora que não conseguia falar. Sequer
me incomodei em tentar. Ao invés disso, apontei. Apontei para o corpo.
Seu rosto, seu peito, suas pernas...
— Isso são só partes. O verdadeiro você. O verdadeiro você está
aqui. — O Sr. Drew ergueu o braço e me tocou no peito, pondo a palma da
mão com firmeza sobre as minhas costelas. — Sua alma.
Me afastei.
Não.
— Me escute, Buddy, me escute — disse ele, pondo uma mão no
meu ombro. Queria tirá-la de lá, mas não consegui. Simplesmente não tinha
a força. — Vou explicar de forma rápida. Eu fiz a minha máquina para
criar versões reais dos meus personagens. — “Minha” e “meus”, ele disse.
Mas não eram dele. A máquina era do Tom e os personagens eram do
Henry. — Usei a minha tinta especial. Era para funcionar. Mas a criatura
que saiu, aquele demônio de tinta. Aquele não era o plano. Percebi que o
homem que eu contratara para ajudar tinha me desorientado. Foi culpa dele,
por não entender a máquina. — Uma mentira. — Faltava alguma coisa.
Quase tinha funcionado. Então o que podia ser? Bem, era aquilo que dá
vida a cada um de nós.
A alma, pensei de imediato.
— Consegue adivinhar? — perguntou ele.
Eu sabia a resposta. Não era tão difícil.
— A alma. Mas como eu consigo uma alma? O Sammy trouxe
aquelas pessoas aqui para baixo... Achei que pudesse usá-las, mas a tinta as
infectou por dias. Já não restava mais alma nelas. Eu precisava de alguém
real. Alguém bom. Nunca pensei que teria tanta sorte de ter você, Buddy.
Mas era o destino. Era o plano desde o começo. Foi por isso que você foi
enviado para mim. Quando cheguei aqui, quando vi você, nas garras da
fera... eu entendi o seu propósito.
Não. Aquele não era o meu propósito. Senti a raiva crescer dentro de
mim e finalmente empurrei sua mão do meu ombro. Fiquei onde estava, a
fúria ardente agora me energizando, quase me dando medo de me levantar.
Do que eu poderia fazer.
— Eu salvei a sua alma, Buddy. E você me salvou. Você vai salvar o
Bendy.
Eu não fiz isso. Minha intenção era salvar a Dot e os outros. Esse era
o meu propósito. Ele não podia e não iria me tomar isso. Meu propósito
agora era e sempre seria proteger o mundo daquela fera. Daquela máquina.
— Isso vai ser maravilhoso. Você vai ver, você vai ver — disse o Sr.
Drew. — Agora venha comigo. Eu preparei um belo quartinho para você.
Um lugar bacana. Vai gostar. Tem comida.
Ele estava falando comigo como se eu fosse idiota. Como se eu fosse
ele, o lobo bobo alegre que divide a mente comigo. Sei que ele ficou
empolgado com isso naquela hora. Podia senti-lo me empurrando,
querendo que eu fosse com o Sr. Drew. Mas então, naquele momento, eu
era muito mais forte que ele. O Sr. Drew não entendeu isso.
Essa era a minha vantagem.
Me virei para ele. Ficamos cara a cara. Ele sorriu.
— Venha comigo. — Ele estendeu o braço em minha direção e eu o
agarrei. Segurei com força, ao que ele berrou de dor. Não ia matá-lo. Não
posso matar. Não é quem eu sou. Apenas o joguei no chão.
Fiquei parado sobre ele.
E respirei por um momento.
Então eu corri. Saí correndo. Pela escuridão do teatro, passando por
alçapões e dutos de ventilação. Simplesmente corri. Desapareci em meio ao
prédio. Em meio a seus segredos, segredos que nem mesmo o próprio Joey
Drew sabia. Me escondi.
Me escondi e ele não me encontrou.
Não conseguiu me encontrar.
E então eu conheci o mundo subterrâneo. Conheci o teatro e o
estúdio. Observei, escondido, enquanto os dois se fundiam. Vi o Sr. Drew
demitir pessoas e contratar outras e o observei enquanto tentava fazer a
máquina funcionar.
Descobri que desenhos ganhavam vida. Como eu sempre havia
temido. Como sempre soubera.
E então decidi escrever isso.
E eu acho, acho que terminei.
Acho que devo ter terminado porque, Dot, estou tão cansado. E ele
está ficando mais forte. Agora eu já não sou mais o Buddy.
Sou também o Boris. Caindo cada vez mais fundo nesse mundo de
loucura que só vai envelhecendo e amarelando.
E temos que continuar fugindo porque...
O Monstro de Tinta.
Porque ele ainda está vivo.
E ainda está com fome.
Detê-lo. Você precisa...
Detê...lo...
Salve-os.
Salve...

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