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O texto que segue são as minhas primeiras impressões sobre o encontro

que tive com a Semiótica Cognitiva.

SEMIÓTICA COGNITIVA: UM BICHO DE SETE CABEÇAS!?

Começo este texto apropriando-me dos ensinamentos de Lakoff e Johnson


(1980, p. 3), os quais afirmam que “nosso sistema conceptual ordinário, em
termos de como pensamos e agimos, é fundamentalmente de natureza
metafórica”. Daí ter escolhido o título em epígrafe para me referir ao que passou
por minha cabeça quando ingressei no curso de Linguística/Língua Portuguesa da
PUC Minas e comecei a fazer a disciplina Semiótica Cognitiva – práticas
expressivas em gêneros multimodais da comunicação humana, ministrada pelos
professores doutores Milton do Nascimento (PUC Minas) e Per Aage Brandt
(Case Western Reserve University). Aquele teve a tarefa de preparar os alunos da
disciplina para “dialogarem” com este no minicurso realizado de 21 a 23 de
outubro na PUC MINAS – Coração Eucarístico, aberto às comunidades interna e
externa.
Assim como Hércules recebeu a árdua tarefa de enfrentar a até então
invencível Hidra de Lerna1 sem lograr êxito nas primeiras tentativas de matar
seu adversário, eu me senti diante de um “monstro” desconhecido e semelhante
a essa personagem mitológica. A cada uma das primeiras aulas, quando pensava
ter aniquilado “uma das cabeças da fera” (as muitas dúvidas que me vinham à
mente), outras “cabeças” (dúvidas) iam surgindo. Perguntas como “O que é, de
fato, Semiótica Cognitiva?”, “Qual o objeto da Semiótica Cognitiva?”, “Qual a
relação entre agência e consciência?”, “Por que a linguagem não é um
sistema?”, entre outras, me levaram a pensar: – É melhor fugir dessa criatura
gigantesca enquanto ainda tenho chance!
Não sei se por gostar de desafios ou se pelo fato de “o veneno do hálito
da besta” já começar a fazer efeito deixando-me mais insano do que
costumeiramente sou, resolvi enfrentá-la. E, a exemplo de Hércules, também
recebi algumas ajudas nessa luta que comecei a travar com o meu monstro. A
primeira veio do professor Brandt, por meio dos textos que seriam discutidos no
minicurso referido acima. Depois, a dos autores João Ranhel, José Augusto
Mourão e Marco Antônio de Oliveira.
Dos textos enviados por Brandt, dois deles me chamaram mais a atenção:
a entrevista concedida por ele à Revista Digital de Tecnologias Cognitivas e Os
Prolegômenos de Saussure: Rumo a uma Semiótica da Mente.
No primeiro, ao responder, entre outras perguntas, “O que é Semiótica
Cognitiva?”, o autor apresenta a evolução da semiótica clássica “como uma
extensão do paradigma linguístico [...] ou do paradigma behaviorista [...] e,
1
Monstro com corpo de dragão e várias cabeças de serpente, cuja principal característica era a
regeneração dessas cabeças quando eram cortadas.
excepcionalmente, de ambos”. Ele reconhece ter havido descobertas
importantes durante essa evolução, mas que, nessas estruturas, havia uma
limitação fundamental: “a crença na autonomia da linguagem e do discurso
como origens do significado”. Em relação a isto, foi discutido em sala de aula a
importância da consciência para que haja discurso, o que possibilita a produção
de sentido. “Se o bicho é defunto, não tem consciência, não se pode esperar que
haja discurso”, disse o professor Milton em sala de aula.
Prosseguindo em sua reposta, Brandt aponta o que não é Semiótica:
“não pode ser entendida como produção de significado sem um estudo mais
profundo dessas propriedades semióticas subjacentes da mente humana como tais,
que são inseparáveis das propriedades da cognição humana”. Em seguida, arremata:

Encontrar os princípios que tornam os sinais possíveis e os tipos


de sinais necessários; encontrar as leis representacionais da mente
que permitem que a imaginação humana e a criação de significado
se desenvolvam e se diferenciem nos múltiplos discursos e
práticas que caracterizam nossas culturas e gêneros [...] que nos
permitem fazer sentido (ou absurdo) do mundo em que vivemos -
essas são perguntas desafiadoras em aberto que motivam o que
chamamos de semiótica cognitiva.

Quando perguntado sobre a relação entre agência e consciência, Brandt


responde que, enquanto a agência está ligada à primeira edição da Semiótica
Cognitiva, a Consciência está relacionada à segunda edição. Para Brandt, a
agência nasce em um esquema dinâmico de causação intencional. Aqui abro um
parêntese para expor a afirmação da professora Ana Abrantes sobre
consciência:

Esta precisa acomodar essa experiência de agência e identidade, a


sensação de que existe um eu que é o protagonista desse jogo
existencial adaptado individualmente. É improvável que a
experiência consciente seja a mesma em dois assuntos diferentes.
Talvez o exemplo mais óbvio disso seja os qualia, o processo de
experimentar sensações e sentimentos, desde a vermelhidão de
uma rosa até o cheiro do oceano, a saciedade da sede ou a
experiência de ser movido por uma peça musical. (ABRANTES,
2010)

No segundo texto, Os prolegômenos..., o autor tem como objetivos


apresentar seus modelos experimentais das arquiteturas de linguagem, de signos
e da mente figurativa, e sugerir a possibilidade de interpretação das intuições de
Ferdinand de Saussure no que se refere a uma semiótica da mente.
Embora Brandt, para consubstanciar suas ideias em relação a esses novos
modelos, faça algumas críticas ao linguista suíço, percebe-se nesses
prolegômenos que aquele reconhece a importância deste para os estudos atuais
quando afirma: “Saussure via a linguística como uma ciência social e insistiu
também que suas unidades básicas eram psíquicas, ou seja, mentais e
conceituais, em oposição a materiais ou espirituais”; ou
a importância primordial da palavra na interação entre linguagem
e pensamento, e a importância do signo na interação
correspondente entre o comportamento expressivo e a semiótica
da mente, confirmam com mais profundidade a alegação de
Saussure de que a linguística é o modelo exemplar de uma
‘semiologia’ geral, vista como o estudo da mente, da significação
e da humanidade [...]. As ideias prospectivas do linguista suíço
podem ser entendidas hoje como seus prolegômenos para uma
semiótica geral, para compreender o objeto da linguística, e, sem
dúvida, indispensável para a compreensão do ser humano.
(BRANDT, 2019, p. 99-100).

Entre as críticas de Brandt a Saussure, destacamos:

1) Palavra em vez da sentença;


2) Langue e não linguagem em geral (signo);
3) Língua como sistema de signos. O signo em questão é a palavra;
3) Língua em vez da parole (discurso);
4) Linguística da palavra: pesquisa fonética marcante, acentuado interesse em
semântica, foco em etimologias e dicionários, tradição da filologia;
5) Falta de consenso confiável sobre a definição de palavras e sentenças pela
inexistência de uma teoria unificadora;
6) Palavras como signos mínimos na linguagem: significante (plano
expressivo) e significado (plano do conteúdo);
7) Considera que o signo seja conceitual, ou seja, social e psicológico
(psíquico); os seguidores de C. S. Peirce estão convencidos de que os signos
conectam coisas, não necessariamente conceitos, sempre que eles se ‘apoiam’
uns aos outros. Se certas coisas ou situações nos permitem inferir outras coisas
ou situações, então, a lógica das coisas, como Peirce considerou, é uma
semiótica e, portanto, independente de qualquer consideração de linguagem e
línguas;
8) Palavras são símbolos (não ícones), estes são arbitrários, convencionais e
codificados. Como se dá a ligação entre o convencional e o codificado? Como
isso aconteceu na evolução humana?
Cito aqui os autores que, embora não constem da lista enviada por
Brandt, me permitiram, pela forma bastante didática, compreender alguns
conceitos que me pareciam obscuros.
O primeiro com quem mantive contato, por meio do artigo Princípios
para Processos Cognitivos, foi João Ranhel (Escola Politécnica da USP), que
me ajudou na construção de aprendizado, por exemplo, de que “nos primeiros
estágios do desenvolvimento da vida os organismos não possuíam sistemas
especialistas no tratamento de dados. Podemos inferir que eles necessitassem e
possuíssem vários laços (loops) de controle para manterem-se num estado
operacionalmente estável (chamado homeostase).
Com esse autor, aprendi ainda que
três fatores influenciam na produção de modificações ontogênicas,
adaptações e variações. A primeira é agência física e influências
do meio ambiente que operam sobre o organismo, produzindo
modificações na sua forma e funções. [..] propõe chamar tais
fatores “físico-genéticos”. A segunda refere-se à disponibilidade e
à capacidade por parte do organismo de sobrepujar-se, de
sobressair-se [...] e tirar proveito das circunstâncias que ocorram
em sua vida. Baldwin propõe chamar tais fatores de “neuro-
genéticos” [...]. A terceira classe de modificações é um conjunto
de adaptações asseguradas pela “agência consciente”, que o autor
propôs ser chamada “psicogenética”.

Meu segundo contato, por meio do artigo Cognição e Semiótica:


Convergências e Tensões, foi com José Augusto Mourão (Universidade Nova
de Lisboa). A leitura do trecho seguinte me ajudou a vislumbrar por que a
língua não pode ser um sistema, afirmação que vem sendo sustentada por
Brandt. Eis o excerto de Mourão (2010):
[...] Um sistema é um conjunto finito. Permite operações,
equações entre sistemas: homologias, transcodificações, traduções.
E o estruturalismo é a hipótese de trabalho mais interessante
quando se trata de sistemas. Porém, se partimos de categorias
peirceanas, podemos perfeitamente falar de signo e de semiosis
sem ter de recorrer à noção de sentido. No seu lugar podemos
introduzir a noção de "interpretável". [...] Do mesmo modo, a
noção de interpretação apela para uma atividade cognitiva. O
sistema está sujeito a todos os paradoxos dos conjuntos, [...] um
sistema não será nunca ao mesmo tempo coerente e completo. Um
sistema postula, pois, necessariamente, outros sistemas. É verdade
que a noção de ‘sistema’ se adapta bem às necessidades das
linguagens artificiais para que foi criada. Mas a linguagem
ordinária não é um sistema.

O encontro com o autor Marco Antônio de Oliveira (PUC MINAS), por


meio do artigo A Auto-Organização como Mecanismo para a Resolução da
Variação Linguística, foi o mais esperado. A expectativa se justifica pelo fato de
esse artigo, além de tratar de Semiótica Cognitiva, tem a Sociolinguística como
tema, mais especificamente a variação linguística, minha área de atuação.
Fiquei mais entusiasmado com a leitura desse texto quando percebi que a
Semiótica Cognitiva me pode ser útil nas pesquisas sobre a variação dos
pronomes “tu/você”, que venho desenvolvendo.
A afirmação de que “há um constante estado de inovação nas línguas
naturais, percebida na variação (e na mudança) linguística, bem como de que estas
buscam ‘resolver a variação criada”’ (OLIVEIRA, 2016) está de acordo com o
pensamento de Brandt quando afirma que “[...] uma linguística da sentença coloca a
gramática e a pragmática em primeiro plano; ela trata do estudo de dialetos,
socioletos, sexoletos etc. e de fenômenos conversacionais, incluindo os atos de fala”
e com o de Labov, para quem
os estudos da Sociolinguística Variacionista interessam-se pelos
dados de fala que se realizam em circunstâncias reais e que
apresentam possibilidade de variação. Tal variação sofre
influências das comunidades em que os falantes estão inseridos e,
diferentemente do que se pensava antes dos estudos labovianos,
ocorre de forma regular e pode ser descrita e explicada. (LABOV
apud COSTA, 2013)

Retomando a metáfora da Hidra de Lerna, Hércules recebeu a ajuda do


sobrinho IoIau, que, cada vez que o tio cortava uma cabeça da besta, colocava
um tição logo após o corte, cicatrizando desta forma a ferida, não permitindo
que a cabeça regenerasse. Segundo a lenda, depois dessa estratégia, restou
apenas a cabeça central, considerada imortal. Todavia Hércules mais uma vez
logrou êxito cortando a cabeça do animal e enterrando-a com uma enorme
pedra.
Diferentemente do herói mitológico, ainda estou em plena luta com a
minha Hidra, mas, com as ajudas recebidas, consegui cortar algumas de suas
cabeças e já consigo ouvir uma voz que vem do futuro dizer-me: – Se não
conseguimos matar por completo o nosso adversário, pelo menos este nos deu
forças e estratégias para continuar a luta!
Meus agradecimentos aos professores Milton do Nascimento e Sandra
Cavalcante, e aos colegas de turma pelas discussões durante a disciplina.

REFERÊNCIAS

ABRANTES, Ana Margarida. Consciousness and self in language: a view from


cognitive semiotics. Revista Digital de Tecnologias Cognitivas, n. 4, jul.-dez.,
2010, p. 7-18.
BRANDT, Per Aage. Os Prolegômenos de Saussure: rumo a uma semiótica da
mente. In: CAVALCANTE, Sandra; MILITÃO, Josiane (Org.). Linguagem e
Cognição: desafios e perspectivas contemporâneas. Campinas, São Paulo:
Mercado de Letras, 2019, p. 79-101.
COSTA, Lairson Barbosa da. Variação dos pronomes “tu”/“você” nas capitais
do Norte. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal do
Pará, 2013.
MOURÃO, José Augusto. Cognição e Semiótica: convergências e tensões.
Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n. 13, Lisboa, Edições
Colibri, 2000, p. 385-402.

OLIVEIRA, Marco Antônio de. A Auto-Organização como Mecanismo para a


Resolução da Variação Linguística. Cadernos de Estudos Linguísticos, v. 58, p.
383-399, 2016.
RANHEL, João. Princípios para Processos Cognitivos. Revista Digital de
Tecnologias Cognitivas, ed. 5, 2011, p. 30-68.

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