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Teresina (PI)
2012
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Teresina (PI)
2012
3
TERMO DE APROVAÇÃO
______________________
Prof. Dr. Luizir de Oliveira – UFPI (orientador)
______________________
Prof. Dr. André Luis Muniz Garcia (examinador externo)
______________________
Prof. Dr. Daniel Arruda Nascimento (examinador/PPGEE)
Agradecimentos
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo investigar como o filósofo Arthur Schopenhauer
apresenta a compaixão (Mitleid) como fundamento da moral. Para isso,
realizamos uma análise de suas principais obras, mas especificamente das obras
O mundo como vontade e representação e Sobre o fundamento da moral, nas
quais, acreditamos poder identificar o cerne de seu pensamento ético-moral.
Buscamos situar o pensador dentro de um cenário panorâmico histórico e
filosófico mais amplo a fim de compreendermos melhor sua filosofia que,
centrada numa proposta de Pensamento Único, intenciona decifrar o enigma do
mundo por meio de sua concepção de vontade e representação. A partir disso,
delineamos os pontos centrais da crítica de Schopenhauer ao Imperativo
Categórico kantiano, fundamento moral vigente em sua época, a fim de que, com
base nesse exame, possamos enfatizar a resposta schopenhaueriana de que a
moral não pode estar fundada nem em compreensões teológicas, nem
normativas, nem deontológicas, pois são expressões acabadas de motivações
antimorais. Mas, a partir de uma metafísica dada, concluir-se-á que a única e
genuína motivação moral, para Schopenhauer, será a compaixão, fonte das
virtudes da justiça e caridade autênticas.
ABSTRACT
This study aims to investigate how the philosopher Arthur Schopenhauer presents
the compassion (Mitleid) as the foundation of moral. For this, we performed an
analysis of his major works, but works specifically The world as Will and
Representation and On the basis of morality, in which, we believe we can find the
core of his ethical and moral thought. We seek to situate the thinker into a panoramic
historical and philosophical wider in order to better understand his philosophy, that
centered on a proposal for a Single Thought intends to decipher the riddle of the
world through his conception of Will and representation. From this, we outline the
main points of criticism of Schopenhauer to Kant’s Categorical Imperative, prevailing
moral foundation in this time, so that analysis, we can emphasize the response
schopenhauerian that morality can not be founded neither on understandings
theological, normative or deontological, because they are expressions of motivations
antimorais finished. But, from a metaphysical given. It will conclude that the only
genuine motivation and moral, for Schopenhauer, is compassion, the source of the
virtues of Justice and Charity authentic.
SUMÁRIO
1 Introdução..............................................................................................................10
5 Considerações finais..........................................................................................132
6 Referências bibliográficas..................................................................................137
10
1. Introdução
O idealismo alemão, por sua vez, foi um movimento espiritual que teve seu
início na década de oitenta do século XVIII até a metade do século XIX, e que teve
como berço a Universidade de Iena na Alemanha, considerada por muitos como a
capital deste mundo espiritual, e que mais tarde viria a agregar para junto de si a
Universidade de Berlim como um segundo momento de desenvolvimentos de suas
atividades intelectuais. Esse grupo homogêneo de pensadores tinha como ponto de
partida a filosofia de Immanuel Kant e o objetivo comum de criar um sistema
filosófico estruturado em fundamentos últimos e irrefutáveis que revelassem um
sistema ideal à prova de equívocos que pudesse responder às questões mais
fundamentais da filosofia numa perspectiva de totalidade e consistência,
estabelecendo de uma vez por todas as bases para uma doutrina unitária na forma
sistemática. Não obstante o Idealismo haver surgido numa atmosfera de dualismo
entre o espírito e a matéria, para Safranski (2010, p. 121), “O idealismo alemão foi
uma tentativa de superar o dualismo, e os românticos deram a essas tentativas
ainda uma nota especial”. Tal nota seria, apresentar uma abordagem que se
dirigisse, inicialmente, em direção à crítica da totalidade numa perspectiva
profundamente metafísica e especulativa e, posteriormente, dirigir-se a um despertar
sistemático.
Essa ênfase crítica inicial pós-kantiana por uma sistemática construtiva foi
uma reação à crítica destrutiva nascida dos primeiros esforços por entender a
filosofia de Kant como um pressuposto para todo o sistema idealista, em
conseqüência direta dos inúmeros trabalhos que surgiam a cada pesquisa ou estudo
realizados. Inicialmente, os esforços eram por analisar e entender a obra Crítica da
razão pura e aprofundar suas investigações, o que não se revelou trabalho tão
prontamente realizável. Em seguida, na segunda metade do século XVIII, por meio
19
não da teoria, mas da prática vislumbrados que estavam a respeito das análises
éticas.
1
Em 1807, após dois anos da morte do pai em Hamburgo, inicia seus estudos no Liceu de Weimar,
(mesmo ano em que Hegel publica a Fenomenologia do espírito e Fichte o Discurso à nação alemã).
Em 1809 Schopenhauer matriculou-se na Faculdade de Medicina de Göttingen na qual adquiriu
formação científica. De 1809 a 1813, em Göttingen, depois em Berlim, acompanhou, paralelamente,
aos cursos de Gottlob Ernst Schulze, Fichte e Schleiermarcher, além dos cursos dos anatomistas
Hempel e Blumenbach, do astrônomo Bode, dos naturalistas Horkel e Rosenthal. Época que de
acordo com Safranski (2011, p. 205) começou a ler Platão e Kant.
22
pelo véu das inúmeras interpretações parciais e incompletas apontando para uma
sabedoria de vida de cunho filosófico.
Um pensamento único deve comportar muitas vias de acesso, comparáveis a
uma estrutura hermética com muitas entradas, como Schopenhauer (1986, p. 484)
nos diz, “Minha filosofia é semelhante à Tebas de cem portas: pode-se entrar na
cidade por todos os lados e todas as vias que se tomarem levam diretamente até o
centro”. Entendemos, a partir desta afirmação, que sua filosofia tem muitas
dimensões, apresentadas como algumas dessa tantas portas, ou entradas, pelas
quais podemos ter acesso, a fim de compreendermos melhor sua proposta filosófica.
Esse constructo citadino, fruto da reflexão, deve atuar, como ele mesmo nos avisa,
diferente de um sistema, pois,
continuidade das idéias tal qual uma produção em série. Nessa disposição, cada
elemento depende da série anterior para poder concluir seu objetivo. Para
Schopenhauer, sem este sustentáculo, todo o edifício ruirá.
Em contrapartida, o pensamento único guarda uma interdependência entre as
partes, e ao mesmo tempo, uma unidade inalterável em seu modo próprio de operar,
capaz de fazer progredir a reflexão de qualquer lugar que se parta. Com esse
desenho, seu funcionamento deve ser semelhante a um organismo de funções
integradas no qual prevalecerá a clareza e a compreensão do todo. Utilizaremos a
imagem de seu Pensamento Único e suas muitas portas de acesso, sugerida pelo
próprio filósofo, como imagem corrente durante nosso texto a indicar os muitos lados
e portas que deveremos cruzar até alcançar o seu centro.
Em seu pensamento único, Schopenhauer entendeu o mundo pela ótica de
sua metafísica da Vontade, reino do fenomenal e do noumênico. O mundo, para o
pensador, era a seara da dor e do sofrimento. A existência humana, enraizada
nesse mundo, estaria fadada aos três temas que abrem suas reflexões na obra Do
sofrimento do mundo, Da morte e a Metafísica do amor, que, escrita em 1844 como
partes da obra Parerga e Paraliponema, expressaria uma enigmática sensibilidade
e, ao mesmo tempo, um profundo interesse por assuntos existenciais.
A humanidade, circunscrita apenas ao mundo representacional, sempre teve
certa dificuldade em enxergar a verdadeira essência e fonte do mundo e dele
próprio, pois este mesmo mundo encontrava-se eivado pela ilusão da aparência.
Essa limitação foi denominada por Schopenhauer de principium individuationis, que
se refere ao aspecto dinâmico do movimento do mundo fenomênico que guarda
consigo a multiplicidade e a efemeridade que impede a compreensão da verdadeira
essência, e que está reservada apenas à esfera da Vontade, contida nas coisas e
que só é permitida na consciência liberta da temporalidade, espacialidade e
causalidade e que teria seu respectivo correspondente no hinduísmo como Véu de
Maia.
O mundo é resultado do ato cognitivo processado pelo sujeito que percebe os
objetos ao seu redor e os representa na medida do possível. Mas este possível está
fadado ao fracasso, tendo em vista que o que se pode conhecer dentro do campo
fenomenal é apenas o temporário, o ilusório. O fluxo incontrolável do tempo que
destrói lugares turva a memória, dificulta também as possibilidades do conhecimento
24
[...] Ainda que a demonstração feita por Leibniz de que de todos os mundos
possíveis, este é o melhor, fosse correta, ele não forneceria uma teodicéia.
O criador não criou apenas o mundo, mas também a própria possibilidade:
dessa forma, deveria ter disposto essa possibilidade de maneira a permitir
um mundo melhor. (2003c, p. 123)
2
Expressão cunhada por Eduardo Gomes Siqueira Sobre o senso de realidade brutal (rude e
apurado) de Schopenhauer: Wittgenstein, a verdade do solipsismo e a falsidade do livre-arbítrio. In:
26
REDYSON, Deyve (org.). Arthur Schopenhauer no Brasil em memória dos 150 anos da morte de
Schopenhauer. 2010.
3
Assunto que será explanado na secção 4.5 “A ascese” desta Dissertação.
27
4
Os Upanixade são os cento e oito tratados filosóficos que aparecem nos Vedas. Os Vedas, por sua
vez, são os textos considerados sagrados pelos hindus que contém o fundamento da doutrina. são
compostos por quatro textos: Rgveda; Samaveda, Yajurveda e Athrvada; em El mundo como
voluntad e representación II p. 668 utilza-se o termo Oupnekhat para designar Upanixade .
5
“Murdoch helps lend some support to the argument that Schopenhauer frequently crosses that
bridge for, as many commentators have pointed out, Schopenhauer´s ethical theory should be seen
as a forerunner of the recent renaissance in virtue ethics”. (MURDOCH, 1992, p 481 apud MANNION,
2003, p. 216).
28
6
Para aprofundar a relação de Schopenhauer e o pensamento oriental indicamos a leitura de The
Influences of Earstern Thought on Schopenhauer´s Doctrine of The Thig-in-itself In Cambridge
companion. (JANAWAY, 1999, p. 171); ou The katha Upanishad: An Earstern Classic on Death In
Death, Contemplation and Schopenhauer. (SINGH, 2007, p. 54).
29
periférico com sistemas religiosos como fundamento para a sua visão filosófica que
intencionava decifrar (entzifern) o enigma do mundo.
Ao contrário, o pensador dialogou com outras culturas e tradições, e manteve
paralelos entre perspectivas existenciais, apontando para uma correspondência
entre seu idealismo filosófico e o idealismo oriental numa tentativa de consolidar sua
visão de todo. A partir das inferências da leitura de suas obras, notamos que
Schopenhauer, buscou decifrar o mundo, e, igualmente decifrar, dentre outras
coisas, o enigma da moralidade, portanto, o enigma ético, por meio de uma
metafísica filosófica, e o fez dialogando com outras metafísicas também de cunho
idealista. De modo análogo, o pensador buscou apontar para algumas equivalências
entre os modos possíveis de se compreender a existência e encontrou no
pensamento oriental uma correspondência metafísica de cunho idealista para a
interpretação do mundo.
Desde a adolescência o filósofo mantinha essa apreciação da existência,
como lugar de dor e sofrimento, e ao entrar em contato com a visão de mundo na
perspectiva oriental, por meio de algumas leituras sugeridas por orientalistas de
renome próximos a ele, encontrou uma convergência entre esses pontos de vista.
Mas, importa afirmar, não aderindo a nenhum deles. Permaneceu assim, seu
pensamento, independente, autônomo, porém, fazendo referência ao oriente apenas
a título de similaridade entre as perspectivas idealistas.
Acreditamos sim, que houve uma influência literária que serviu como referente
respectivo quando das muitas analogias que este apresentou, mas que, quando
conjugada em sua totalidade, ou seja, em relação a toda a sua obra, não representa
nem fundamento, nem necessidade para as conclusões filosóficas a que chegou.
7
“These sheets, written at Dresden in the years 1814-1818 show the fermentative process of my
thinking, from which at that time my whole philosophy emerged, rising gradually like a beautiful
landscape from the morning mist. Here it is worth nothing that even the unimportant ones, were
established”.
8
“Por metafísica entiendo todo presunto conocimento que va más de la posibilitad de la experiência,
es decir, de la natureza o del fenómeno dado de las cosas, para ofrecer una clave sobre aquello po lo
que, en uno u outro sentido, estaríamos condicionados; o, dicho popularmente, sobre aquello que se
oculta tras la natureza y la hace posible”.
31
sensu stricto et proprio, o que configura uma gama de interpretações por meio de
uma realidade estabelecida imediatamente de modo a promover uma expressão de
pensamento e de convicção que exclua contradições. A utilização dos conceitos
define o modo se sensu a ser focado.
Com relação à segunda classe, as religiões são apontadas por Schopenhauer
(2009, p. 205), como uma tentativa de responder à questões existenciais de modo
alegórico da verdade sensu alegorico estruturado numa abordagem dogmática,
fideísta e imaginativa, o que caracteriza uma mediação, porém com o objetivo de
ganhos ou recompensas em mundos vindouros o que caracteriza uma metafísica
rude como expressão de uma metafísica do povo (Volksmetaphysik)9. Esse modo de
verdade se dá por meio de revelações, escrituras sagradas, milagres, sacerdotes,
juramentos e muitos meios que facilmente podem seduzir e se tornar “uma das mais
tenebrosas formas de contradição a que a humanidade está sujeita”
(SCHOPENHAUER, 2009, p. 204).
A metafísica que se pretende aprofundar é sem sombra de dúvidas a sensu
proprio por ter a capacidade de ir, imediatamente, de encontro à razão das coisas e
proporcionar efeitos práticos com relação à retidão e à virtude, fazendo diminuir o
sofrimento da vida de modo eficaz, elevando o homem sobre si mesmo e ajudando-o
a “manifestar esplendorosamente seu grande valor e seu caráter imprescindível”
(2009, p. 205).
Cessa-se, a partir disso, qualquer possibilidade de confusão entre a
compreensão filosófica e religiosa no pensamento de Arthur Schopenhauer, pois
filosofia para Arthur Schopenhauer tem dois aspectos fundamentais que a religião
não tem, ou seja, a de ser uma ciência com discurso racional estabelecido a respeito
da constituição das representações conceituais, e o de ser uma arte, na qual
evidencia-se uma exposição interpretativa do mundo. Há, pois uma junção entre o
sujeito que filosofa e seu objeto, no qual, por meio da arte, o filósofo torna-se
espelho do mundo. A partir desta consideração, percebemos a distinção
estabelecida na obra Fragmentos para a história da filosofia, por Schopenhauer
(2003a, p. 18) acerca da noção e do papel da Filosofia. Desse modo, o pensamento
schopenhaueriano, por extensão, tem o objetivo de superar as distâncias entre a
filosofia teórica e a filosofia prática, bem como o de ter unido ocidente e oriente,
9
Para aprofundar a questão das verdades sensu proprio e sensu alegorico leia-se O mundo como
vontade e representação II, Capitulo 17, intitulado Sobre la necessidad metafísica del hombre, p. 198.
32
10
“O conectivo ‘als’ denota a expressão que significa ‘na condição de’, ‘no sentido de’, ‘entendido
como’, ‘tomado como’, o que enriquece o quadro geral de apreciação de um mundo tomado tanto
como Vontade, quanto como representação. Para Schopenhauer, é a identificação dos termos
basilares inicialmente utilizados por Kant quando na distinção entre fenômeno e coisa-em-si”.
(CACCIOLA, 1994, p. 43).
34
posto de juízos sintéticos a priori, e em fim, à condição de ciência, pois estas geram
regularidade por meio de suas leis, regras11.
A epistemologia de Schopenhauer foi uma tentativa de conhecer a coisa-em-
si reformando esse conhecimento do mundo, pois o filósofo considerava-se legítimo
herdeiro de Kant. Encontrou também apoio em alguns pontos do platonismo para
reformar a compreensão sobre o conhecimento, como por exemplo, de que sujeito e
objeto demonstram uma compreensão indissociável de termos, interdependentes no
qual o sujeito só existe em função do objeto, e o objeto só existe em função do
sujeito.
Em sua obra Ueber das Seben und die Farben, ou, Sobre a visão e as cores
de 1816, Arthur Schopenhauer buscou apresentar uma crítica a partir da leitura e
análise da obra de Göethe A doutrina das cores de 1814, na qual discute o mérito da
visão newtoniana sobre as cores e aprofunda sua concepção de intuição no
processo do conhecimento. No título do ensaio Sobre a visão e as cores, salta aos
olhos a proposta do autor em trabalhar uma noção de mundo alicerçada nos pilares
de sua epistemologia, ou seja, o sujeito que vê, e o mundo que é visto, de modo
direto, o sujeito que conhece, e o objeto conhecido.
Schopenhauer buscou alargar sua compreensão de conhecimento e de
mundo, e por que não dizer, conhecimento de mundo, via intuição 12. E a partir disso,
tentou explicar como aprendemos a intuir este mundo que se nos apresenta. A partir
dessas considerações, poderemos analisar o que vem a ser intuição no pensamento
de Schopenhauer, bem como inferir como o filósofo demonstra o que é, e como atua
o entendimento no processo de intuir. Para ele, o entendimento (Verstand) é a
operação da faculdade humana responsável por tornar a simples sensação em
intuição (Anschaaung) e é responsável pela função que possibilita a união entre
tempo e espaço, e que são, respectivamente, os sentidos interno e sentido externo.
Essa faculdade, o entendimento, que consta nos seres capazes de conhecimento, é
11
A tábua das categorias para Kant está expressa desse modo: Da quantidade: Unidade, Pluralidade,
Totalidade; Da qualidade: Realidade, Negação, Limitação; Da relação: Inerência e Subsistência
(substantia e acccidens), Causalidade e dependência (Causa e efeito), Comunidade (ação recíproca
entre agente e paciente); Da modalidade: Possibilidade - Impossibilidade, Existência - Não-existência,
Necessidade – Contingência. (KANT, 2001, p. 110); veja também em OS PENSADORES (1991, p,
74).
12
Dentre outras questões, Schopenhauer analisa, nesta obra, como, pela intuição, é possível o
esclarecimento dos inúmeros fenômenos dos sentidos, como por exemplo, o das ilusões produzidas
pela visão como o estrabismo, a justaposição dos objetos em distâncias desiguais, a duplicidade e
simultaneidade dos fenômenos com relação à mudanças súbitas entre sentidos. (SCHOPENHAUER,
2003d, p. 31).
37
munida de uma propriedade tal que é capaz de apreender ‘num só golpe’ (2005, p.
54) as sensações que se encontram fora dos seres, advindas da exterioridade por
meio dos sentidos.
A simples sensação percebida pelos sentidos, é um fluxo abafado de
impressões que, por si só, e sem a faculdade do entendimento, é incapaz de gerar
as possibilidades para o intuir, pois estas mesmas sensações devem ser
consideradas apenas como dados. É preciso que haja alguém preparado
cognitivamente para, ao receber esses feixes de informações que passam pela
audição, pelo paladar, pelo tato, pelo olfato e pela visão, cada um a seu modo,
remetê-las ao entendimento.
Para Schopenhauer, nas sensações não há ainda o que poderíamos já
considerar intuição. Ou seja, enquanto sensação há apenas flashes de toda
multiplicidade que, depois, poderemos conceituá-los como imagens, cores, sons,
gostos e etc. Mas, ainda neste momento inicial, como sensação, tem-se tão
somente, uma rajada de, ‘sensações abafadas’ que em nada podem assegurar
conhecimento de nenhuma monta.
Assim sendo, os sentidos, para Schopenhauer, não passam de uma
sensibilidade potencializada, ou enfatizando melhor, não passam de pontos do corpo
receptíveis à influência de outros corpos num grau elevado, o que nos levaria e
deduzir que eles, em nada mais podem contribuir para o conhecimento intuitivo, a
não ser no fornecimento da matéria a ser trabalhada. Desse modo, cada sentido
deve receber um tipo específico de dado em sua efetividade, pois o contrário
implicaria numa desordem cognitiva, ou seja, o tato poderia ouvir, o paladar poderia
cheirar, e a pele poderia ver, o que de fato não ocorre, caracterizando um modo de
influência e de excitação que só um aparelho adaptado pode captar conforme sua
aptidão natural.
A partir da entrada desse feixe, que se torna um amálgama de sensações
pelos sentidos, o entendimento passa do efeito à causa, ou seja, do efeito da
sensação à causa da mesma, do som à causa do som, da luz à causa da luz, do
cheiro à causa do cheiro. Neste exato instante, na atuação do entendimento, vemos
surgir a intuição que tem a capacidade de unir ‘a um só golpe’ o sentido externo e o
sentido interno, conceituados como espaço e tempo na representação da matéria. É
a propriedade de fazer efeito (Wirksamkeit), ou melhor, é a competência de deixar
de constar como mera sensação e passar a ter eficácia. Tudo o que existe, deve ser
38
13
“First there is the principle sufficient reason of becoming, or the causal principle in the traditional
sensem that governs physical objects in relation to the understanding; Being, governing mathematical
objects in relation to pure intuition; […] knowing, concerning logical objects, or logical relations
between objects, based on reason. Finally, there is the principle of the sufficient reason of doing or
acting, which holds between psychological objects or affective mental states and their outward
manifestations, based on inner sense or empirical self-consciousness. In each case, the principle
specifies the connections (real, mathematical, logical, and psychological, respectively) between
representations or represented objects as so many instances of the principle´s general point that
nothing is without a ground or reason.
42
[...] indagamos sobre a razão por que isso acontece, ou seja, a Razão do
Acontecer (Grund des Werdens); quando questionamos sobre todos os
juízos (conhecimentos, conceitos), indagamos sobre o que esses juízos se
alicerçam. “Não perguntamos aqui qual a razão por que eles sejam
concebidos assim, mas de fato, qual é a razão por que afirmamos que
sejam assim” (Ibid,). Quando perguntamos sobre qual é a razão por que
afirmamos que sejam assim, perguntamos sobre qual é a Razão do
Conhecimento (Erkenntnisgrund); quando nos referimos ao âmbito da
geometria e da aritmética puras perguntamos sobre a demonstração do ser
no tempo e no espaço pela Razão de Ser (Satz vom zureichenden Grundle
dês “Seyns”); quando perguntamos pelo motivo pelo qual uma ação
humana foi praticada, perguntamos sobre a causalidade vista de dentro (die
Kausalität Von innen).
14
A análise das nove premissas será realizada no capítulo terceiro secção 3.4 “A Lei de Motivação”
desta Dissertação.
44
15
Para aprofundar a questão da cognoscibilidade e do acesso à coisa-em-si consultar El mundo
como voluntad e representación II Suplementos Cap. 18; José Tomás Brum analisa a via subterrânea
proposta por Schopenhauer em O pessimismo e suas vontades p. 23.
45
Mas então podemos nos perguntar: o que vem a ser a Vontade? A resposta a
essa questão nos possibilitará adentrar os portões da metafísica. Essa resposta vem
de modo a contrariar a afirmativa kantiana de que seria impossível conhecer a coisa-
em-si, rompendo com a epistemologia e a metafísica estabelecida até então e
apresentando a essência íntima dos fenômenos que Schopenhauer não apenas
assinalou, mas, ainda, ousou nominá-la: A coisa-em-si chamar-se-ía Vontade.
Para Schopenhauer (2005, p. 45) ao afirmar que “o mundo é minha Vontade”,
significa que Vontade vem a ser a coisa-em-si, essência íntima do mundo, da qual
os atributos não podem ser conhecidos de forma direta, mas por oposição ao
fenômeno que segue o princípio de individuação, pois a Vontade está para além da
ação possível do sujeito cognoscente. Sendo assim, ela é entendida como una,
universal, indestrutível, livre e sem fundamento o que a contrapõe ao fenômeno, que
é múltiplo, plural e determinado. Ela é una por não poder fragmentar-se na
multiplicidade. Estando em todas as formas existentes mantém uma unidade
essencial. Ela é indestrutível porque não nasce, nem perece, mas é auto-
mantenedoura. Ela é livre porque não encontra-se circunscrita no terreno da
necessidade. Ela é cega porque é destituída de qualquer conhecimento e por isso
mesmo irracional e inconsciente.
O conceito de Vontade não é uma escolha aleatória, mas uma exigência, e
tida pelo autor mesmo como palavra mágica, pois qualquer outro conceito que fosse
tomado como nomeação da coisa-em-si, como por exemplo, força, potência ou
semelhantes conduziriam a compreensão do conceito para o terreno da causa e do
efeito, além de não expressarem o entendimento devido e necessário acerca da
relação entre o corpo, o fenômeno e a essência (SCHOPENHAUER, 2005, p. 170).
Esta única e mesma Vontade que manifesta-se na natureza na forma de
representação é denominada por Schopenhauer pelo neologismo de objetidade, ou
seja a compreensão aproximada que esta Vontade se manifesta no mundo em
muitos graus e modos de objetivação, do inorgânico ao orgânico, do simples ao
complexo em todo o reino da natureza mantendo ainda sim sua unidade e
imutabilidade. O corpo é o lugar da manifestação da Vontade16.
16
Há uma Importante e sutil distinção a ser feita entre a vontade com ‘v’ minúsculo e a Vontade com
‘V’ maiúsculo que correspondem respectivamente ao ato volitivo particular e ao princípio metafísico
46
Essas objetidades não são outra coisa que as Idéias de Platão (2005, p. 236),
ou melhor, o eidos17. O eidos é a verdade, a essência ou o conhecimento
verdadeiro. É o que se mantém inalterável em oposição ao dinamismo e à
transformação daquilo que é temporal.
A Vontade objetiva-se de modo gradual por meio de uma tensão entre as
Idéias que são como que modulações ou gradações específicas desta mesma
Vontade, porém, ao tornarem-se forças naturais como gravidade, energia,
temperatura, passando pela matéria até chegar aos organismos propriamente ditos.
Tudo o que existe é resultado da relação estabelecida de complexidade ou
simplicidade entre estas idéias. Cada organismo seria formado pela tensão
resultante da reunião e do conflito entre as Idéias. Diz Schopenhauer (2005, p. 210):
“Não haveria vitória sem luta”. Este conflito nasce da luta entre cada idéia, pois no
fundo, tudo isso se assenta no fato de a Vontade ter de devorar a si mesma, numa
demonstração de autofagismo, já que nada existe exterior a ela, e ela é uma
Vontade faminta por natureza. Deste conflito surgem a caça, a angústia e o
sofrimento (SCHOPENHAUER, 2005, p. 219). Esse conflito revela-se de modo mais
direto por meio da imagem da serpente que devora a si mesma, ou seja, ‘serpens,
nisi serpentem comedirit, non fit draco’ (SCHOPENHAUER, 2005, p. 209).
Por isso, entre a Vontade e os organismos animais humanos, enquanto luz,
calor, eletricidade, magnetismo, pressão, gravidade, tudo é Vontade, porém
dispostas em graus mais sutis de apresentação e expressos pelas leis da química,
da física e da biologia. Da união mais simples à união mais complexa a Vontade se
dá afirmativamente. Do mundo mineral, passando pelo mundo vegetal até chegar ao
mundo animal, ou se quisermos do microcosmo bacteriano até o macrocosmo do
universo, forma-se gradualmente a objetivação da Vontade, desde sempre, a
afirmar-se em seu sim perpétuo. É a afirmação da vida.
Esta Vontade quer sempre a vida, pois, vontade é sempre ‘vontade de vida’
(Willen zum Leben) e por isso ela busca em tudo afirmar-se, pois ela é auto-
afirmativa. Schopenhauer acentua assim, como se tal afirmação soasse como um
identificado como a essência do mundo. Porém, em cada vontade particular também se encontra a
manifestação integral da Vontade em sua inteireza.
17
A obra A república, embora seja um diálogo de transição de Platão, enfatiza a íntima relação entre
ética e política como uma forma única e global de conduta de um indivíduo, de uma comunidade ou
de um Estado dentro dos ditames da virtude. A virtude, então, é uma conquista, via conhecimento, e
é exaltada justamente por conseguir manter imutável aquilo que há de melhor nos seres por meio do
Eidos, ou seja, a essência, a forma, a idéia.
47
pleonasmo vicioso ou uma redundância que por se só fosse evitável, pois Vontade é
sempre Vontade de vida. Em verdade, onde existe Vontade, existe sempre a vida e,
deste modo, existe sempre o mundo. Não há nada fora dela e tudo está
compreendido nela, tanto o mundo orgânico quanto o inorgânico. Esta Vontade é
compreendida como “totalmente livre e mesmo todo-poderosa” (SCHOPENHAUER,
2005, p. 355), pois puramente em si, é destituída de conhecimento e estabelecida
como um ímpeto cego, irracional e irresistível para a existência. A partir destas
afirmações há o reconhecimento de uma filosofia que ficaria conhecida como
irracionalista ao apontar a essência da existência pela via do não racional e do não
intencional.
A vontade é também a-temporal, pois não conhece o tempo ou o espaço
justamente por não estar condicionada a eles e, deste modo, parece fitar com a
eternidade. Nela, o tempo se consome, pois quando nos atemos ao presente,
imediatamente este torna-se passado, assim como o futuro, completamente incerto
e indefinido despeja-se no presente.
E para nos provar seus argumentos, Schopenhauer nos convida a olhar para
a natureza e constatar com nossos próprios olhos como o querer manifesta-se de
forma latente, nos seres de toda espécie e variedade que lutam entre si e contra a
morte. Do ponto de vista físico o ato de andar é um desejo de evitar a queda, o de
comer e o de beber, atos de um desejo por atrasar a fome e a sede. O respirar nada
mais é do que uma tentativa de se defender da morte. A cada ato de qualquer ser,
orgânico ou não, manifesta-se o querer que tem por base a necessidade, a carência
e trás como conseqüência o sofrimento. Por isso, o querer é sofrer. “Todo querer
nasce de uma necessidade, portanto de uma carência, logo, de um sofrimento”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 266).
Assim, a vontade deseja tudo, quer tudo e, destituída como é de
conhecimento, cega, portanto, busca alimentar-se de cada desejo realizado que
quando saciado, e em seguida, volta-se para outro desejo de forma incessante.
Incansavelmente ela nunca pára. A Vontade existe no mundo, e é o próprio mundo,
que traga a tudo e a todos indistintamente, exatamente por não ter critérios, nem
planos ou organização. Aliás, planejar ou organizar derivaria de uma ação analítica
que dividiria em partes algo para compreender ou abarcar. A Vontade não é assim.
Ela é indivisível e nunca pára, mas projeta-se como um pêndulo armado que oscila
entre a dor e o tédio (SCHOPENHAUER, 2005, p. 401).
48
[...] por fim, lá onde a Vontade atingiu o grau mais elevado de sua
objetivação e não é mais suficiente o conhecimento do entendimento, do
qual o animal é capaz e cujos dados são fornecidos pelos sentidos, dos
quais surgem simples intuições ligadas ao presente, um ser complicado,
multifacetado, plástico, altamente necessitado e indefeso como é o homem
teve de ser iluminado por um duplo conhecimento para poder subsistir. Com
isso, coube-lhe, por assim dizer, uma potência mais elevada do
conhecimento intuitivo, um reflexo deste, vale dizer, a razão com faculdade
de conceitos abstratos. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 341).
19
Esses modos de negação da Vontade serão analisados no terceiro capítulo desta Dissertação.
50
20
As primeiras tentativas que se tem registro na história humana vieram por meio de codificações em
forma de poemas que descreviam uma espécie de teogonia por meio dos quais os mitos
apresentados revelavam uma codificação que serviria como normas de conduta para o bem viver.
Outros textos, como o Código de Hamurabi foram os primeiros com organização jurídica da
Antiguidade que remonta a o século XVII a.C. um poema recitado a Shamash; Na Suméria de Uruk,
Gilgamesh a 2.600 a.C.; no Egito, o ma’at, documento que serviu para formar o comportamento
estabelecendo uma proposta de ordem correta para a vida naquela época, era um mescla de poesia
e estabelecimento de códigos de conduta para o primeiro milênio. No oriente, os Vedas: textos
considerados sagrados, apresentavam uma mescla de doutrina ética, social e religiosa revelados pelo
deus Brahma que viabilizou o surgimento do hinduísmo como uma proposta de doutrina filosófica:
duas formas de culto surgiram, a mahavira e buda. A mahavira; A de Gautama Buda expondo quatro
verdades: a realidade é constituída de dor e sofrimento, este sofrimento advém do apego ao mundo
material, que é possível suprimir a fonte deste sofrimento, ou seja, o querer, e por fim, a
demonstração de como deve ser a prática deste exercício de supressão. Na China o Taoísmo de
Lao-tse. O Confucionismo uma abordagem ritualística conhecido como Li que a partir de 1912 tornou-
se proibido na China. No ocidente, propostas de fundamentações morais a partir de referenciais
religiosos e políticos. Com Zoroastro ou Zaratustra na Pérsia com o masdeísmo século VII a.C. O
Talmud estabelecia 613 normas codificadas que ficaram conhecidas como o Antigo Testamento. O
53
kantiana. Para Arthur Schopenhauer, o mundo antigo viveu por muito tempo sob a
égide do eudemonismo que buscava apresentar uma proposta moral na qual o
cultivo das virtudes areté aparecia como consonante à discussão e aquisição da
felicidade21.
Alcorão expôs uma proposta da religião islâmica que ganhou notoriedade por meio de seu profeta
Maomé, considerado profeta, 610 e 632 a.C., e os Sunna, livros sagrados.
21
O conceito de eudemonismo advém da junção das palavras ‘bem’ e ‘espírito’ que, especificamente
para os gregos, indicava esta busca pela felicidade ou vida feliz alicerçada numa compreensão
natural dos homens para alcançar a perfeição por meio do exercício das virtudes. Schopenhauer
exime apenas a Platão desta crítica, pois para o filósofo de Dantzig este, dentre todos os antigos,
alicerçou sua ética numa mística e num pensamento profundamente complexo. Dentre os demais,
especificamente entre cínicos e estóicos haveria, em contrapartida, um tipo especial de
eudemonismo. Na Grécia temos a noção de eudaimonia na qual a equação ética que descreve a
felicidade como o resultado da soma entre virtude, mais liberdade, mais saber, reafirma a íntima
relação entre virtude e felicidade, eudaimonia. Desta forma, o bem racional é capaz de conduzir à
felicidade em contraposição ao mal que desemboca na infelicidade. E não seria de outra forma, pois,
para os gregos, mais especificamente para Platão, a felicidade era a finalidade última de toda ação
virtuosa, porém, ação advinda de uma escolha racional. Logo, felicidade era sinônimo de
racionalidade. A virtude socrática era benéfica àquele que a praticava, pois este deve ter consciência
do seu feito, pois a ação virtuosa é sempre desejável principalmente por quem a praticou. A palavra
virtude vem da raiz da palavra areté, superlativo de distinto e escolhido, que no plural era
constantemente utilizado para designar tudo aquilo que era nobre, bom e melhor principalmente no
que tange às qualidades humanas. Da palavra areté advém também a palavra “aristós”, que denota
uma significação aristocrática e peculiar das capacidades humanas elevadas aos níveis da
excelência.
54
teologia especulativa, até então tido como firmemente válido, pois este se
encontrava alicerçado na ameaça do castigo ou na promessa de recompensas.
Schopenhauer considera periférica a obra Primeiras razões metafísicas da
doutrina da virtude de 1781 em que se encontra a Doutrina do Direito de Kant e
dedica-se a analisar a obra Fundamentação da metafísica dos costumes datada de
1785. Para Schopenhauer, nesta última obra, Kant já com sessenta anos não
manifestava mais o mesmo gênio expressivo de sua juventude quando realizou as
primeiras obras, ou seja, a Crítica da razão pura, de 1781 e a Crítica da razão
prática, de 1788 e talvez por conta disso, tenha incorrido em tantos erros e
contradições.
Immanuel Kant fundamentou a moral no Imperativo Categórico da Razão
Prática alicerçada na fórmula do dever e confirmada na máxima de um Imperativo
categórico que afirmava peremptoriamente o “Devo proceder sempre de maneira
que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal” (Kant,
1980, p. 33). Esse imperativo, profundamente racional, precedia a experiência, mais
ainda, na verdade independia dela, pois para ele, a razão não precisava do
elemento empírico para fundamentar a ética, ou seja, a racionalidade foi elevada ao
seu nível máximo na generalização de um fundamento moral que se estenderá para
todos os seres racionais o que levou Kant a enxergar o mundo por um filtro de
sensibilidade (espaço e tempo) e de entendimento, que priorizou a normatividade do
“dever” acima do “ser”.
Na crítica schopenhaueriana, esta concepção impossibilitou conhecer as
essências das coisas e fundamentou a busca pela objetividade racional que, embora
estivesse calcada nos critérios de universalidade e necessidade, estava mais
voltada para a conduta privada e momentânea na qual a realização dos atos estava
circunscrita sob a forma de uma constituição subjetiva da autodeterminação do
indivíduo. Assim, o imperativo categórico de Kant, tornou-se meramente uma
generalização hipotética e sem conexão causal entre o “eu” individual e o “todo”, e
que intencionava transformar uma escolha privada numa lei geral.
Schopenhauer asseverou sua crítica afirmando que o pensamento kantiano
pretendeu defender a existência de leis morais puras e de conceitos que de fato
eram inalcançáveis, e que na verdade não passavam de suposições sem poder de
demonstração. Para Schopenhauer (1995, p.18), Kant apresentou uma ética
independente do real, excessivamente transcendental e metafísica, na qual o agir
55
Por isso, confesso o prazer especial com que ponho encosto e declaro
francamente minha intenção de demonstrar que a Razão Prática e o
imperativo categórico de Kant são suposições injustificadas, infundadas e
inventadas para provar que também a ética de Kant carece de um
fundamento sólido. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 16).
22
Também conhecido como Dialelo, ou Petição de Princípio, esta é uma expressão latina com origem
na lógica clássica, inicialmente trabalhada por Aristóteles, que ficou conhecida pela denominação de
Petição de Princípio e que pode ser entendida como uma falácia. Portanto não é entendida como um
erro desproposital, mas, ao contrário, uma estratégia intencional na qual o debatedor utiliza-se de sua
habilidade em lidar com um conceito para iludir o opositor. Também é entendida como um sofisma
enumerado entre os extra dictionem, ou seja, que não dependem da expressão lingüística, e que
consiste em assumir como premissa a proposição que se quer provar. Logicamente se,
exemplificando, uma questão que foi combatida anteriormente, é posteriormente resgata para que, de
56
Esse tipo de versão moral com uma ênfase num imperativo e numa doutrina
dos deveres também foi largamente utilizado na filosofia com uma fundamentação
na vontade de muitos deuses ou de um único Deus, mas que de modo geral deveria
ser entendida como uma perspectiva metafísica. A proposta kantiana era a de
estabelecer uma fundamentação que não fosse assegurada pela metafísica,
portanto, a partir desta crítica, o filósofo de Königsberg “não mais se estava
modo vicioso, seja novamente trazida a juízo, formalmente criticada, revisada e aceita como
verdadeira, o opositor demonstrará aparente erudição e habilidade na manipulação dos conceitos,
contudo, este incorrerá, na verdade, em um erro intencional lógico no qual a resposta é tida como o
mesmo e único problema, para novamente impor a ela o peso que ela continua a ter, posto que foi
reconduzida ao centro da questão.
57
autorizado a por como fundamento, sem outro modo de dedução, aquela forma
imperativa, aquele ‘tu deves’ e ‘é teu dever’” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 28).
De acordo com Schopenhauer (1995, p. 31), a forma imperativa categórica
kantiana poderia ser comparada a uma receita de um remédio que começa e ser
indicada para várias outras doenças, e este médico, por sua vez, que é Kant, que
muito embora tenha dado uma das maiores e mais importantes contribuições ao
conhecimento, ou seja, a distinção entre conhecimento a priori e conhecimento a
posteriori, no entanto, começa a aplicar tal fórmula em todas as áreas e campos do
saber em suas muitas dimensões. No campo da ética, por exemplo, percebemos
claramente a distinção entre sua parte pura e sua parte empírica, e em seguida,
passa a rejeitar toda relação estabelecida com o mundo da experiência a fim de
fazer valer o seu intento de analisar apenas aqueles considerados a priori. A lei
moral, que passou a presidir o fundamento desta forma imperativa, ganha uma
dimensão apriorística desligando-se da experiência e “repousando simplesmente
sobre conceitos da razão pura e a partir disto torna-se uma proposição sintética a
priori” (1995, p. 32). Este conteúdo, então, passa a manter relação única e
“meramente na forma e não no conteúdo das ações”, pois, como dito, desliga-se
completamente de quaisquer possibilidades de relação de necessidade com a
experiência (SCHOPENHAUER, 1995, p. 32). Kant chega mesmo a radicalizar tal
separação afirmando que para êxito de uma ciência moral que se queira
verdadeiramente pura como é esta que ele almeja expressar, nenhum tipo de
pensamento que remonte à disposição natural da humanidade, sentidos, inclinações
ou tendências que derivem da vontade de seres racionais pode fundamentar a lei
moral. Para Kant (1980, p. 52), o imperativo categórico “não se relaciona com a
matéria da ação e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de
que ela mesma deriva; e o essencialmente bom na ação reside na disposição
(Gesinnung) seja qual for o resultado”. Ao contrário, esta lei, enquanto fundamento
moral, deve manter-se ilibada de toda possibilidade de proximidade com o que é
concreto e real.
A rejeição da experiência externa proposta por Kant é uma prova irrefutável
da sua suposição de que a lei moral também não é um fato da consciência, pois ao
rejeitar a experiência externa, igualmente rejeita a experiência interna. Não tendo
relação nenhuma com a experiência externa, nem com a experiência interna, este
fundamento moral, ou seja, a lei, só pode ser entendida como um conceito puro a
58
priori, ou seja, “conceitos que não têm nenhum conteúdo da experiência interna ou
externa, que são, portanto, puras cascas sem caroço” (SCHOPENHAUER, 1995, p.
33). Este fundamento moral kantiano, após ser apresentada como mera forma de
ligação de juízos torna-se completamente descomprometida com a idéia de
necessidade e universalidade, pois de acordo com Schopenhauer (1995, p. 33)
seguindo o itinerário de desligamento entre fundamentação moral e contexto
empírico tal proposição passa a ser entendida como sintética a priori de mero
conteúdo formal, noutras palavras, uma coisa só da pura razão que só conhece a si
mesma e o princípio de contradição.
Essa razão pura tornada hipostasiada como se se mantivesse a si mesma de
forma autônoma e inalterável tinha a pretensão de apresentar-se não só como um
conhecimento para o gênero humano, mas ao mesmo tempo, para todos os seres
racionais. Schopenhauer entendeu que tal afirmação por parte de Kant ressaltava
este caráter hipostasiado das condições de possibilidade de conhecimento para
outro gênero, que não se sabe bem ao certo qual era, se anjos ou outras alegorias,
e que em geral apenas pode ser uma propriedade dos animais. Demarca
Schopenhauer (1995, p. 34) que estamos autorizados a pensar a racionalidade
apenas com relação ao ser humano, pois qualquer outra consideração fora deste
limite alijará suas conclusões entre aquelas que podem ser definidas como
perniciosas ou nocivas à crítica.
Embora para Kant a racionalidade fosse entendida como a essência íntima e
eterna do homem, para o filósofo de Dantzig, esta era entendida apenas como uma
faculdade do conhecimento humano que ocuparia uma condição secundária e
condicionada, responsável unicamente pelo funcionamento do intelecto. Para
Schopenhauer, esta essencialidade humana residiria noutra dimensão do homem,
ou seja, na vontade.
A transposição do método kantiano, da filosofia teórica para a filosofia prática,
resultou, na visão de Schopenhauer, numa absolutização do conceito de dever que
maximizou, igualmente, o conceito de obrigação. Porém, este apriorismo da lei moral
reforçou ainda mais a incompreensão daquilo que o próprio Kant havia estabelecido
como limite para a experiência, ou seja, o mundo como fenômeno. Como ele mesmo
nos diz,
59
Um ato pode, e deve, ser definido não com base numa inevitável relação de
necessidade com uma lei como queria Kant, mas a partir de uma tentativa de
interpretação das intenções dos indivíduos por mais difícil que esta missão possa se
apresentar. Com isso, o filósofo busca retirar os elementos que possam vir a
dificultar uma possível interpretação sobre o real valor de uma ação moral mesmo
que dentre estes elementos esteja a linguagem como o sugere que Kant o tenha
feito. Ou seja, para Schopenhauer, Kant utilizou-se do conceito de ‘respeito’ como
sinônimo de ‘obediência’, o que caracterizou uma tentativa de se “ocultar a
proveniência da forma imperativa e do conceito de dever a partir da moral teológica”
(SCHOPENHAUER, 1995, p. 39). Agir por respeito à lei, na visão schopenhaueriana,
não seria outra coisa a não ser agir por obediência, o que não justificaria a permuta
de um termo por outro, pois “[...] o dever significa uma ação que deve acontecer por
obediência em relação a uma lei, este é o nó da questão” assevera Schopenhauer
(1995, p. 40).
Nesse sentido, para Schopenhauer, a linguagem, as regras sociais, e os
imperativos, podem ser utilizados como máscaras e omitir o verdadeiro valor moral
das ações humanas. E, após este esforço inicial de compreender a fundamentação
de Kant na forma e conteúdo, Schopenhauer (1995, p. 40) questiona: “E agora a lei,
esta última pedra de toque da ética kantiana! Qual é seu conteúdo? E onde está
escrita? Esta é a questão principal”. Este questionamento de Schopenhauer parece
apontar para uma moralidade que está totalmente desamparada de seu fundamento
e, a partir disto, inicia sua digressão rumo à uma proposição que possa preencher-
lhe o vazio.
Para tentar resolver a questão Schopenhauer afirma que existem duas
condições que devem ser devidamente evidenciadas e conseqüentemente
avaliadas, ou seja, uma referente ao princípio da ética e outra que diz respeito ao
fundamento, noutras palavras, forma e conteúdo. A primeira quer responder à
questão ‘o que’ de uma ação moral, a outra o ‘porque’ daquela.
Como explica o filósofo, o “hó, ti”, ou ‘o que’, refere-se à proposição que
pertence à virtude. O “dióti”, por sua vez, refere-se à noção do ‘porque’ da virtude,
ou seja, a razão pela qual a ação se realizou. O fundamento de uma ética deve ter
por base esta separação e análise na qual o “dióti”, ou seja, o ‘porque’ da virtude
seja a sua base e sustentação qualquer que seja a situação, tempo e lugar. Para
Schopenhauer, muitos filósofos moralistas incorreram no erro de não separar a
62
questão a ser analisada de sua razão de ser. Dever-se-á, por conta disso, separar o
princípio de seu fundamento como ponto de partida para uma análise bem sucedida
da moralidade.
A proposta schopenhaueriana é reconduzir a discussão para o seu modo
correto de procedimento no qual o “hó, ti”, ou seja, o seu princípio primeiro será
aquele que desde há muito inúmeros éticos concordam como sendo o mais simples,
o mais fácil e igualmente o mais puro de todos os princípios humanos expressos
como “neminem laede, imo omines, quantum potes, iuva”, ou, “não faças mal a
ninguém, mas antes ajuda a todos que puderes!”. A busca pelo “dióti” a partir de seu
“hó, ti” é a solução para o problema do fundamento da ética ‘que se procura há
séculos como pedra filosofal’, assevera Schopenhauer (1995, p. 41).
Esta consideração traz consigo a marca de uma simplicidade, mas também
de uma verdade inegável que pode conduzir ao fundamento da moralidade e ‘deste
modo, todo o outro princípio moral deve ser visto como uma perífrase, ou mesmo
uma expressão indireta ou mesmo figurada daquela posição vista como simples’.
Schopenhauer (1995, p. 42) assinala que Kant “ligou estreitamente o princípio
da moral com o seu fundamento de modo bastante artificial”, pois tomou o princípio
por fundamento. Tendo em vista que Kant exigiu a separação de seu princípio moral
de toda consideração a posteriori abrindo mão de sua relação material com o
mundo, sua objetividade por parte do mundo externo e de sua subjetividade por
parte do mundo interno, então, assim, Schopenhauer (1995, p. 43) pergunta: “como
é que algo surge do nada, ou seja, como devem se concretizar as leis das ações
materiais dos homens a partir de puros conceitos a priori, sem qualquer conteúdo
material?”.
Para o pensador de Dantzig (1995, p. 43), “os kantianos se enganaram
quanto ao fato de que Kant estabeleceu o imperativo categórico como um fato de
consciência”, pois se isto realmente fosse verdade, ele teria agido de modo a fundar
a moralidade antropológica e empiricamente, e mesmo que a via fosse a interna,
ainda assim, o acesso teria de derivar de um fundamento mais consistente, ou seja,
petição de princípio, e deste modo também ele, tendo assim tomado o imperativo
categórico, inclui-se naquele equívoco condenável” que apresenta-se por meio de
dois erros fundamentais.
O primeiro é o de afirmar que o homem, por si só, poderia chegar a uma idéia
da existência de uma lei que não nasce de motivação positiva nenhuma, de nenhum
ser existente, de nenhuma coisa ou razão, nem está condicionada a situação de
forma alguma, mas apesar disso, este mesmo homem submete e conforma sua
vontade a esta lei moral nascida de si mesma. Ela é sustentada por si mesma. Ao
considerarmos tal afirmativa, podemos até mesmo imaginar que “o nada surge do
nada e que um efeito não exige uma causa” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 48). Ora,
tal pensamento faz do homem o ‘punctum saliens’, ou seja, o ponto de destaque da
moralidade o que conseqüentemente abre a perspectiva de que o egoísmo é que
pode conduzir o agir dos homens. O agente de uma ação buscará em vão pela
existência de uma razão para não agir de uma maneira ou de outra, olhará ao redor
e, efetivamente, só encontrará uma gama de motivações a lhe determinar cada ato.
Schopenhauer repreende como censurável uma fundamentação da moral
como é a fundamentação kantiana, justamente por ser ela erigida sobre uma noção
de que o homem por si só alcance um patamar de compreensão de sua vontade na
qual ele possa encontrar uma lei a que possa submeter-se e conformar-se a ela.
Esta lei partiria de sua cabeça desligada de qualquer motivação moral, positiva e
real, ou seja, o homem daria origem por meio de processos de pensamento a todos
os conceitos morais sem jamais tocar o chão, o que provocou a acusação desferida
por Schopenhauer de que Kant havia trocado os resultados pelas proposições, o
que de fato é um erro, pois, arremata,
a moral tem a ver com a ação efetiva do ser humano e não com castelos de
cartas apriorísticos, de cujos resultados nenhum homem faria caso em meio
ao ímpeto da vida e cuja ação, por isso mesmo, seria tão eficaz contra a
tempestade das paixões quanto a de uma injeção para um incêndio
(SCHOPENHAUER, 1995, p. 48).
23
Sugerimos a leitura da Secção Da faculdade de a razão ter no uso prático uma ampliação que no
uso especulativo não lhe é por si possível, parte II da Crítica da razão prática, p. 80.
66
confundida com a perversidade moral, pois, quem não conseguiu delinear os limites
deste imperativo e, vasculhando sua própria consciência não foi capaz de encontrá-
la, só tem como saída cultivar o silêncio e esperar que um outro possa demonstrá-la
com maior segurança e propriedade.
Assim, quem não divisou muito bem o imperativo categórico na sua própria
consciência preferiu não divulgar nada disto, porque acreditava, em silêncio,
que nos outros, ele teria se evidenciado mais claramente. Pois ninguém
gosta de virar para fora o mais íntimo de sua consciência.
(SCHOPENHAUER, 1995, p. 52).
Disto segue-se que muitos homens não identificam a consciência moral com o
imperativo categórico por justamente este mostrar-se como um fato hiperfísico da
mente humana quase como uma manifestação oracular infalível na qual, pela lei,
tudo deve acontecer de acordo com ela, ou seja, de acordo com a lei.
Fichte e Schelling são citados por Schopenhauer como anti-heróis desta
época em que a filosofia, buscando mais seduzir do que instruir o público,
transformou a razão na pedra fundamental para os edifícios filosóficos posteriores e
Kant em seu mais proeminente profeta.
Embora a razão tenha sido concebida desde o começo dos tempos como a
faculdade de representações gerais, abstratas e não intuitivas capazes de entender
(Vernehmen) e de perceber os fenômenos ao seu redor como própria e natural do
homem, era também criadora de conceitos e assim, deveria ser vista apenas como a
única faculdade que põe a humanidade à frente dos demais animais, estas são aqui
tomadas por Kant e seus seguidores como os alicerces deste edifício. Para
Schopenhauer, esta supervalorização da razão como faculdade humana que
determina ou não o valor de uma ação moral acabou gerando uma dependência
entre elementos que não são necessariamente complementares, ou seja, a razão
deve ser entendida apenas como uma faculdade capaz de criar conceitos e de
condicionar a linguagem, sendo, portanto entendida como uma representação
abstrata que coloca a humanidade à frente apenas dos animais irracionais que
dispõem apenas de representação intuitiva.
Como esta análise, Schopenhauer empreende uma tentativa de reconduzir a
razão para seu devido lugar, ou seja, para a condição de uma mera faculdade
humana que tem a função criadora de conceitos que são incapazes de definir o valor
67
de uma ação moral, mas ao contrário, o seu essencial seria simplesmente a sua
capacidade distintiva da qual todo o ser humano é munido na criação de conceitos.
Essa faculdade, a razão, na visão de Schopenhauer, é totalmente dependente
das intuições que temos do mundo exterior e deve ser entendida como uma forma
do próprio entendimento. Como ele mesmo nos menciona sobre a razão,
24
São obras interligadas: Sobre o fundamento da moral, embora publicada em 1840, é a continuação
das reflexões da obra Sobre a liberdade da Vontade de 1939 e Contestação ao livre arbítrio de 1841.
68
coisa-em-si e a razão, por sua vez, apenas o seu modo de análise, crítica ou
julgamento.
Estando o homem preso a um determinismo e a uma necessidade empíricos,
torna-se impossível qualquer tipo de liberdade, pois essa, ao contrário, deve
encontrar-se apenas em níveis inteligíveis, noutras palavras, em níveis essenciais,
ou seja, com relação à Vontade.
Desse modo, não se pode falar de liberdade de modo direto e positivo, mas,
de modo inverso, de uma liberdade que se manifesta de modo indireto e negativo.
Assim, não é possível ao homem desfrutar da liberdade empírica, pois para
Schopenhauer esta não existe. Pode, em contrapartida, remeter-se à liberdade da
Vontade, a única possível a que o homem pode lançar mão.
O conceito de liberdade torna-se negativo nesta consideração, pois que só
pode ser alcançada num patamar de essencialidade que não existe no mundo
empírico e que se deixa ver de um modo indireto ou negativo em sua manifestação
no mundo do determinismo e da necessidade.
Este mundo tomado como representação e Vontade, tem em seu primeiro
momento uma constituição totalmente submetida ao princípio de razão do devir, e,
por conseguinte, à lei de causalidade. Com base nessa afirmação, Schopenhauer
opera uma apreciação na qual entende o indivíduo como um fenômeno entre os
outros fenômenos, e por conta deste status fenomênico não pode romper direta e
positivamente as amarras do reino da necessidade causal, justamente por estar
totalmente inserido nesse universo de causalidade e condicionamentos que
reforçam sempre e mais tais amarras, impossibilitando qualquer noção de liberdade.
Como o próprio pensador afirma (SCHOPENHAUER, 2005, p. 308) “a
conduta humana está fixamente determinada desde o nascimento e no essencial
permanece a mesma até o fim da vida”. Schopenhauer ilustra essa questão com um
exemplo no qual uma vara é posta na posição vertical e quando retirada de seu
equilíbrio, objetivamente, ela só poderá cair para um determinado lado já
determinado necessariamente. Essa oscilação independe de significações e
relativismos subjetivos, mas ao contrário, depende unicamente da constituição da
índole interior do caráter inteligível. Nesse caso, “o intelecto apenas pode clarear e
tentar entender os motivos que o levaram a realizar tal ação” (SCHOPENHAUER,
2005, p. 376).
69
Por conta desse rigor causal imposto pela condição dos fenômenos, torna-se
impossível falar de liberdade individual ou livre arbítrio, pois esta apresenta-se
apenas como uma ilusão, ou ainda, um engodo assimilado ao longo dos tempos.
Essa ilusão se mostra mais evidente nos discursos em que há uma defesa de uma
liberdade absoluta dos atos humanos assim como de seu querer, ou seja, que os
indivíduos são sempre livres para querer e para agir de acordo com suas
deliberações. Para o pensador, essa liberum arbitrium indifferentae, ou seja, a
liberdade absoluta do querer não pode oferecer uma explicação plausível para a
moralidade, não resistindo a um exame profundo e atento, mostrando fragilidade e
ausência de fundamento.
Para Schopenhauer, o indivíduo jamais é livre para não querer algo, pois ele
pode não efetivar aquilo que quer, porém, jamais será livre para não o querer.
Sempre querendo, o indivíduo jamais pode ser considerado livre, pois agir e querer
manifestam-se de maneira unívoca, como sendo um condição para existir do outro.
Assim sendo, agir e querer permanecem condicionados intimamente nas discussões
posteriores em que Schopenhauer aprofunda a discussão na obra Contestação ao
Livre arbítrio, datada em 1839, no qual reafirma que tudo o que acontece, acontece
necessariamente e a partir disso concorda com a proposta kantiana de que o
problema da liberdade é indissociável do problema da moralidade, pois a liberdade é
a ratio essendi da lei moral e a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade.
pois ao perceber que nada pode ser feito para alterar o curso dos eventos, o homem
descobre que o esforço para mudar o mundo rapidamente perde sua força.
Schopenhauer nega enfaticamente a concepção comum de que ser livre
significa poder fazer as coisas exatamente como escolhemos fazê-las. O pensador
vai mais longe ao afirmar que é uma ilusão pensarmos ter uma certeza inabalável de
que somos senhores dos nossos atos, pois o nosso senso de responsabilidade
revela um caráter inato auto-determinado e independente da experiência. Da mesma
forma como as árvores e as flores são manifestações efêmeras da Idéia platônica,
cada ação pessoal e individual é a manifestação espaço-temporal do caráter inato e
inteligível da pessoa (SCHOPENHAUER, 2005, p. 28). O desenvolvimento do
caráter envolve a expansão da nossa individualidade inata, o que traz como
conseqüência uma maior paz de espírito
25
possui . Os indivíduos são fenômenos das Idéias no tempo, no espaço e na
pluralidade.
Disto podemos analisar que a Idéia de cada ser obedece a uma gradação da
Vontade, sendo assim, o caráter empírico é a atualização do caráter inteligível de
modo temporal, espacial e plural. O caráter inteligível reside na Vontade livre e
imortal, pois coincide com a Idéia, ou de acordo com as palavras de Schopenhauer,
“com o ato originário da Vontade que nela se objetiva” (2005, p. 221). Schopenhauer
alarga a compreensão de caráter empírico afirmando que:
conduzir-se no modo mais consciente, pois sabe o que é e o que quer. O caráter
adquirido pode nos levar a entender nossa conduta.
Em cada homem de maneira isolada o caráter pode ser visto como uma Idéia
particular e em cada Idéia particular, por sua vez, identificamos um ato próprio da
objetivação da Vontade, ou seja, o ato particular a que fazemos alusão é tão
somente o seu caráter inteligível, e o caráter empírico viria a ser o fenômeno deste
ato. Inteligível e empírico são, pois dois momentos de uma mesma variação. O ato é
o caráter inteligível e o fenômeno o caráter empírico deste. Com tal identificação,
podemos considerar, na perspectiva do autor que o caráter empírico é
absolutamente determinado pelo caráter inteligível, e que aquele não subsiste sem
este. Schopenhauer (2005, p. 224) chega a asseverar que o caráter empírico não
pode tomar outra direção no decurso da vida, pois ele é ‘imagem-cópia’ do
extremamente essencial que constitui o caráter inteligível e não do inessencial.
noutras palavras, não existem ações desinteressadas, sejam elas quais forem.
Andar, comer, escovar os dentes, ajudar uma idosa a atravessar a rua, servir uma
xícara de chá a alguém ou abrir uma correspondência, todas as ações têm um
motivo suficiente para acontecer.
A segunda, afirma que um motivo suficiente só se efetua quando um outro
motivo não torna necessária sua cessação, de outro modo jamais conseguiríamos
atualizar nenhuma ação, pois embora desejemos inúmeras coisas, só podemos
querer atualizar uma vontade por vez, sendo que esta vontade atualizada é superior
àquela que foi cessada. A atualização de uma, incorre na interrupção de outra.
A terceira premissa afirma que uma ação só acontece basicamente por dois
motivos, ou por bem-estar ou por mal-estar com relação à vontade do agente,
significando com isso que não há, na visão de Schopenhauer, outro móvel possível
para sua consumação e estes jamais podem coincidir, ou melhor, nunca um agente
pode querer seu bem e ao mesmo tempo o seu mal-estar. Trata-se de uma condição
“ou” e não de uma conexão “e”, ou seja, ou age-se por bem-estar ou por mal-estar
do agente. Nisto assemelha-se à quarta premissa que como conseqüência da
primeira, afirma que estabelece-se o bem-estar ou o mal-estar como fim último de
qualquer ação um determinado ser suscetível. De acordo com a quinta premissa,
este ser suscetível, podem ser ou o próprio agente, ou um outro ser. No segundo
caso, este outro ser participa passivamente da ação e não ativamente.
Temos na sexta premissa uma determinação de que uma ação, seja ela qual
for, se realizada tendo como fim último o bem-estar ou mal-estar do agente, é
considerada por Schopenhauer egoísta. Noutras palavras, sempre quando agimos,
queremos ou assegurar nossa manutenção e saciar nossas necessidades básicas
de sobrevivência ou queremos evitar o desconforto ou a dor. O conteúdo da sétima
premissa contempla a ações por omissão, que na visão de Schopenhauer ou são
efetivadas por motivos ou por contramotivos incluindo-se entre todas as premissas
anteriores.
A oitava premissa estabelece que uma ação com o fim egoísta opõem-se
naturalmente à uma ação de valor moral, pois uma ação nunca pode ter dois fins
últimos, mas apenas um e como conseqüência um anula o outro. Neste ponto
Schopenhauer afirma que uma ação verdadeiramente moral não pode ter como fim
um motivo egoísta mediato ou imediato de nenhuma forma. Para uma ação ter
motivo moral é necessário que o seu motivo seja totalmente desligado do agente da
77
natural ou motivação legitimamente moral, mas por medo recíproco e por via
negativa. A negatividade é a acesso pelo qual, na visão schopenhaueriana, surgem
o Estado e a justiça, como veremos a seguir.
Reconhecida por Schopenhauer, como “a primeira e a mais importante
potência que deve ser combatida” (1995, p. 117), o egoísmo deve ser mais
duramente enfrentado e, portanto, mais profundamente estudado. Cabe à motivação
moral, ladeada pela virtude da justiça e da caridade, combater esta potência.
A primeira das virtudes apontadas é reconhecida por sua cardealidade desde
a Antiguidade, como será visto adiante, e a segunda, embora não conste entre
aquelas, encontra-se, para o filósofo, num patamar de excelência, nobreza e
dignidade. É por meio da virtude da caridade que é possível combater as motivações
antimorais em suas muitas gradações, a saber, a malevolência, fruto da colisão
entre egoísmos, a cólera, ou ira, e por fim, a maldade. Tendo esse diagnóstico como
parâmetro, por vezes, parece incompreensível crer no nobilitar das motivações
humanas, mas não de todo impossível, pois com freqüência vemos repercutir no
mundo as duas motivações, morais e antimorais, não obstante “neste mundo, a
indiferença e a aversão estejam em casa” (GOETH apud SCHOPENHAUER, 1995,
p. 118).
Dessa condição profundamente centrada em si mesmo, e ao mesmo tempo,
tão natural, que é o egoísmo, surge um leque de vícios, erros, fraquezas e
imperfeições de toda espécie que são capazes de conduzir o indivíduo à vilania,
maldade e crueldade, ou noutras palavras, à alegria maligna (Schadenfreude). Esta,
por sua vez, enquanto grau elevado da potência antimoral, não tem sua raiz na
natureza, mas na preponderância daquilo que escapa dela, ou seja, no não-natural.
Nas palavras de Schopenhauer (1995, p. 120), “a primeira raiz é mais animal, a
segunda mais diabólica”. A inveja, embora seja reconhecida pelo filósofo, como uma
fraqueza humana, portanto, partícipe do egoísmo, quando graceja com a alegria
maligna, torna-se uma ‘alta potencia antimoral’ elevada à sua máxima revelação. Por
isso, Schopenhauer chega a afirmar que ‘num certo aspecto a alegria maligna é o
oposto da inveja’, pois esta, busca sua felicidade nos bens e vantagens alheios,
aquela, busca o sofrimento e a dor do outro. É neste ponto que separam-se as duas
motivações antimorais: enquanto uma tem como objetivo final o bem próprio, a outra
sente desmedido prazer no sofrimento do outro. Prazer para si e dor para o outro
são as tônicas que delimitam estas motivações.
81
Do que foi visto, vimos que a maldade, então, quer o mal alheio, enquanto
que a compaixão (Mitleid), quer o bem-estar alheio (SCHOPENHAUER, 1995, p.
131). Estes são seus motivos que juntamente com as situações, vemos guiar as
ações humanas para seus fins de acordo com cada caráter específico.
O auxílio para essa questão o buscado em Rousseau que, especificamente
sobre os seres humanos, nos comunica que: “Não é próprio do coração humano pôr-
se no lugar de pessoas que são mais felizes que nós, mas somente daqueles que
são mais dignos de pena” (ROUSSEAU apud SCHOPENHAUER, 1995, p. 131).
Essa relação se estabelece por que o ser humano identifica-se com a dor, que pode
ser entendida como falta, como carência, como necessidade e, ou, como desejo de
modo que sua participação é positivamente encarada, pois estes ativam a profunda
identificação do espectador rumo à dor do sujeito sofredor. Cessada a dor e o
sofrimento, surge o alívio ou contentamento. Não só o ser humano é capaz deste
salto, mas também, os animais não-humanos. Como vimos anteriormente,
compartilhamos com estes o universo representacional intuitivo.
O que se segue logo após, é que a natureza do contentamento, ou de outro
modo, a felicidade, é na visão schopenhaueriana, uma ação negativa, sendo que
naturalmente não dispomos de condições para a inclinação à dor do outro, a não ser
pela percepção positiva da dor e em seguida a felicidade positiva que esta desperta.
Felizes e satisfeitos, no modo de ver de Schopenhauer, somos indiferentes à dor
daquele que sofre. Sendo assim, podemos nutrir uma afeição profundamente
identificada com quem sofre, abandonando a indiferença natural que reside em todo
ser humano em seu estado de tranqüilidade cotidiano, como podemos perceber
nascer uma alegria maldosa em nossos corações. Isto dependerá do caráter a que
cada um está sujeito.
222), em sua obra The Nature of Sympathy, entendeu compaixão como ‘pena’ ou
‘sentimento simpático’.
Para Nietzsche, um dos maiores críticos da compaixão, a compaixão era uma
doença, como pena, como piedade enquanto um sentimento depressivo. “Eu
compreendi a moral da compaixão, cada vez mais se alastrando, capturando e
tornando doentes até mesmo filósofos, como o mais inquietante sintoma dessa
nossa inquietante cultura européia” (NIETZSCHE, 2009, p. 11). Para Cartwright
(1989 apud MANNION, 2003, p. 206) como Nietzsche analisou não é possível
alcançar sucesso, pois sua crítica circunscreve o Mitleid ao mundo imediato e à uma
realidade. Nietzsche tinha formação literária, logo o problema revelou-se pelo viés
do universo lingüístico, tanto quanto a partir do estilo. Note-se também que
Nietzsche teve acesso à leitura do Mitleid a partir, não da própria obra Sobre o
fundamento da moral, em alemão, mas, por meio de intérpretes ingleses Kaufmann
e Hollingdale que usaram o conceito de Mitleid como pena o que se tornou uma
interpretação negativa e não válida de Mitleid.
Por isso, é preciso, neste ponto, detalhar bem os conceitos, afim de que não
nos percamos em definições ambíguas e distorcidas naquilo que envolve o sentido
real do termo compaixão no pensamento de Arthur Schopenhauer.
O termo simpatia vem do grego, sympátheia, significa conformidade de
gênios, ou uma tendência semelhante a uma inclinação capaz de reunir pessoas;
uma relação sempre agradável ou, mesmo, instintiva, que atrai pessoas ou idéias.
Empatia, por sua vez, que também tem origem grega, empátheia, notabiliza-se como
uma leitura psicológica na qual há uma tendência para sentir o que se sentiria caso
se estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa. O termo
pena tem origem latina e significa sofrimento, padecimento ou aflição. Misericórdia,
de origem latina, misericordia, ou seja, coração miserável, é sinônimo de compaixão
quando esta é suscitada pela miséria alheia. O termo compaixão tem origem latina
compassione, que significa um pesar que em nós desperta a infelicidade, a dor, o
mal de outrem e pode ser sinônimo de piedade, pena, dó ou condolência.
Diferentemente da definição trivial de dicionário, que entende a compaixão
como um pesar que em nós desperta a infelicidade, a dor, o mal de outrem, o
caminho da proposta schopenhaueriana segue outras veredas. Freqüentemente um
termo é utilizado pelo outro o que pode provocar conclusões díspares em seus fins.
Arthur Schopenhauer (2005, p. 417), em algumas passagens, faz uso de conceitos
84
humano por meio de uma lente cujo caráter pragmático está incrustado no tempo
presente e no existente real, como ele mesmo nos diz: “somente o presente é aquilo
que existe e se mantém firme e imóvel”, pois é só com isso que podemos contar no
processo de análise do agir moral (SCHOPENHAUER, 1995, p. 363). Para o
pensador (2005, p. 24-362), só existe o tempo real, ou seja, o ‘agora’. E, só pode
haver um modo de analisar o fenômeno ético, e esse modo encontra força na ética
descritiva.
Ética descritiva é uma ética que se opõe às éticas normativas, prescritivas ou
mesmo formalistas e busca descrever um ato moral. Por isso preocupa-se em
entender o que as pessoas fazem, por que elas o fazem, quais suas motivações e
não o que devem ou não fazer. Essa ética questiona o agir em lugar do agido ou o
fazer em lugar do feito. Daí a rejeição ao fundamento moral kantiano. A partir disso,
a filosofia tem a tarefa teórica de manter uma atitude puramente contemplativa, não
obstante a proximidade do objeto investigado e sempre inquirir, sem jamais
prescrever regras (SCHOPENHAUER, 2005, p. 353). Em sua tarefa teórica, a
filosofia deve interpretar e explicitar o existente, trazendo-o ao conhecimento e
buscar fazer todas as relações em todas as dimensões possíveis, sob todos os
pontos de vista (SCHOPENHAUER, 2005, p. 354).
86
4.1 A estética
28
Há uma diferença básica entre a Idéia para Platão e a Idéia para Schopenhauer: a Idéia para
Platão há um contraponto da idéia no mundo fenomênico como que um respectivo correlato. Já para
Schopenhauer, não existe esta correlação entre o mundo e a idéia, pois esta se constitui na espécie e
não na multiplicidade das coisas.
88
predisposição para tal. A genialidade desse sujeito puro é aquilo que Schopenhauer
chamou de objetidade mais perfeita da vontade, justamente porque nela o sujeito
pode perder-se na intuição de seu objeto e tornar-se um com a essência do mundo
num estado de contemplação comparável a uma iluminação. Para Schopenhauer,
quando o sujeito puro entra nesse estado de contemplação e de conhecimento, um
outro sentido muito mais intenso do que os outros surge. Um sentido que o filósofo
denomina olho cósmico. Nesse instante, ao despertar esse sentido cósmico, tudo se
revela como claro e consciente, fazendo ampliar o campo de visão para além do
fenomenal no qual o gênio pode, por meio desse estado contemplativo, apreender
as Idéias contidas nas coisas e identificar-se com o que há de mais eterno na
existência.
A arte para Schopenhauer será assim definida como um momento áureo da
exposição de Idéias, ou modo de consideração das coisas independentes do
princípio de razão, e a genialidade como aquela faculdade cognitiva do conteúdo
dos objetos, ou seja, dos fenômenos, capaz de tornar sua verdade exponível numa
obra artística. O substrato do mundo pode ser assim, apreendido por meio do belo
em sua positividade, mas ainda por meio da via artística, através da qual podemos
comunicá-lo à humanidade e, a partir disso, possibilitar a satisfação do
conhecimento intuitivo.
Essa comunicação artística é capaz até mesmo de apresentar-se de modo
sublime (Erhaben), momento em que o espectador pode se elevar (Erhebung) de um
estado de determinação, para um estado de consciência e conhecimento. Ao entrar
em contato com a arte sublime o espectador pode manter um nível de consciência e
ainda assim desligar-se momentaneamente do horizonte de relação do Princípio de
Razão. Durante o estado sublime, o sujeito pode abandonar toda sua subjetividade e
satisfação pessoal e elevar-se para além da condição fenomênica negando a
determinação conscientemente.
A arte, para Schopenhauer (2005, p. 505), proporciona um estado em que o
sujeito, perdendo-se na contemplação consciente, é capaz de captar e intuir a
espécie e não o particular, ou seja, por meio da arte alcança-se o grau mais elevado
de humanidade, ou seja, a Idéia de homem. A contemplação estética possibilita ao
sujeito puro do conhecimento, livre de toda e qualquer determinação, entrar em
contato com essas idéias eternas e expressá-las por meio das artes, pois nisso
reside sua finalidade. Ou seja, a finalidade da arte é poder comunicar, via intuição, a
90
Idéia. De outro modo, não é possível comunicá-la, ou seja, a Idéia jamais pode ser
expressa por meio de conceitos, cálculos ou discursos controlados pela faculdade
racional, mas por uma instância anterior a toda abstração, sendo ela de caráter
exclusivamente intuitivo. Por isso, as muitas tentativas de se expressar a Idéia fora
da esfera do conhecimento intuitivo não alcançam êxito, pois manifestam apenas
uma experiência instrumental ou mesmo superficial daquilo que verdadeiramente
viria a ser a Idéia enquanto objeto exclusivo da intuição.
A partir do contato do sujeito com a Idéia é possível abandonar a condição
efêmera dos objetos particulares e elevar a consciência para níveis mais universais.
Nesse nível, aquele que alcançou, via intuição, um conhecimento mais intenso e
significativo, é capaz de libertar-se das amarras da dor e do sofrimento impostos
pela existência e redimir o sentido da vida. Ora, uma existência assim tomada como
dor e pesar só pode ser carente de sentido e, sendo assim, só pode ser resgatada
de tal absurdo por meio de um conhecimento que seja livre de toda dependência e
servidão para com o mesmo mundo. Assim, a contemplação estética pode oferecer
ao homem a possibilidade de libertar-se de todo o desejo, fonte das dores, e
alcançar as Idéias, fonte da redenção, pelo menos momentaneamente.
Em sua obra Metafísica do Belo, que é uma série de anotações de aulas
ministradas por Schopenhauer, estabelece-se um vínculo entre a estética e a
possibilidade de libertação do sofrimento do homem que se dá tanto por meio da
fruição da natureza quanto da arte. Nessa obra, o belo natural antecede ao belo
artístico, ou seja, um espectador humano, inicialmente volta-se para a admiração
das belas formas dispostas na natureza intuindo-as de modo espontâneo e imediato,
e apenas posteriormente as comunica por meio da arte a Idéia apreendida em sua
visão.
Dentre as artes, Schopenhauer considera a música como a primeira
manifestação da Idéia, por ser ela a mais excelsa de todas as artes, justamente por
que ela não é uma cópia ou repetição de alguma Idéia das coisas do mundo, mas
uma linguagem universal da coisa-em-si que é capaz de reproduzir todos os graus
de objetivação da Vontade constituindo-se num análogo deste mesmo mundo,
fazendo às vezes do inorgânico e do orgânico, sobre o qual se assentam os demais
sons e vozes. A música correspondente a uma organização paralela que é a
organização das Idéias dentro da hierarquia das artes, pois funciona como um
91
4.2 O ético
29
Jair Barboza resgata a frase de Thomas Mann na qual comparou a obra de Schopenhauer O
mundo como vontade e representação com “uma sinfonia em quatro movimentos”.
(SCHOPENAHUER, 2003, p. 20).
92
Não há posse moralmente fundada, a não ser que haja uma cessão
voluntária da parte de todos, algo assim como uma recompensa por
serviços prestados, o que pressupõe uma comunidade regida por
convenção, O Estado. – Em contrapartida, o direito de propriedade
moralmente fundamentado nos termos acima deduzido dá, de acordo com a
sua natureza, ao possuidor um poder sobre o próprio corpo. Infere-se daí
que sua propriedade pode ser transmitida através de troca ou doação a
outros, os quais possuem a coisa com mesmo direito moral que o
transmissor”.
95
A razão reconhece, a partir daí, que tanto para diminuir a dor e o sofrimento
espalhados por toda parte ou reparti-los de maneira mais equânime
possível o melhor e o único meio é poupar a todos a dor relacionada ao
sofrimento da injustiça, fazendo-lhes renunciar ao gozo obtido com sua
prática. – Esse meio, facilmente divisado e gradualmente aperfeiçoado pelo
egoísmo, o qual, usando a faculdade da razão, procedeu metodicamente e
abandonou o seu ponto de vista unilateral, é o contrato de Estado ou a Lei.
30
Indicamos para aprofundar essa questão do Estado, jurisprudência e legislação e da possibilidade
de uma ‘consciência melhorada’ a leitura de JANAWAY, Christopher; NEIL, Alex. (org.)Better
Consciousness, Schopenhauer´s Philosophy of Value. Wiley-Blackwell, 2009.
97
31
Ver também José Thomaz Brum, O pessimismo e suas vontades, p. 44.
98
“uma moral sem fundação, portanto um simples moralizar, não pode fazer efeito,
pois não motiva e o que nasce daí não tem valor moral algum”. Uma moralidade sem
motivos pode simplesmente ditar normas e projetar regras, mas jamais pode
fundamentar a ação de nenhum homem, tendo em vista a ênfase conceitual que se
deseja impor sobre as virtudes. Antes, adverte-nos Schopenhauer (2005, p. 224-
468),
pode-se pouco formar um virtuoso por meio de discursos morais e
sermões quanto o foi formar um único poeta com todas as estéticas
desde Aristóteles, [...], pois o conceito é infrutífero para a verdadeira
essência íntima da virtude, assim como o é para a arte.
homens ocasionou, sem sombra de dúvidas, uma mudança nos hábitos e costumes
dos homens, mas jamais conseguiu transformar a sua disposição de caráter.
As proposições morais anteriores, de acordo com Schopenhauer, não podem,
de modo exato, produzir no homem nenhuma ação boa e correta, nem deter as
ações que sejam más e injustas, assim como não podem suster o homem em seu
equilíbrio. Antes, essas combinações artificiais de conceitos jamais servirão para
impulsionar qualquer homem às virtudes da justiça e da caridade. Para isso, lembra-
nos a máxima senequiana ‘Velle non discitur’, ou, o querer não se ensina, pois este
traz consigo um caráter já predisposto e, portanto, seu agir deriva de seu ser, ou na
frase latina, ‘operare sequitur esse’, ou melhor, o agir deriva do ser32.
O Mitleid schopenhaueriano, enquanto fundamento moral, exige menor
reflexão, exercícios meditativos ou abstrações, e mesmo o homem menos preparado
para especulações poderá verificar tal assertiva. Portanto, para Schopenhauer,
tornar-se-á uma exigência imprescindível para aqueles que buscam uma
fundamentação mais sólida e consistente para a ética, abandonar as velhas
convicções morais e lançar-se em busca de outra menos sofrível na qual repousa
simplesmente a apreensão intuitiva, impondo-se imediatamente a partir da realidade
das coisas. Com base nisso, Schopenhauer observa que, uma moral que se queira
fundamental, deve atuar contra o amor próprio, pois atuando contra tais abstrações
individualistas torna-se, o investigador, capaz de apontar para virtudes realmente
autênticas e não o seu contrário.
Atentemos nesse sentido que, o fundamento da compaixão não é uma
simples emoção ou um superficial sentimento, mas ao contrário, um princípio real e
uma experiência intuitiva, pois muito embora a palavra em alemão sentimento
(Gefühl) nos leve a reduzir a compreensão da extensão do conceito de compaixão a
uma mera emoção, isto não será possível, pois sua explicação denota muito mais do
que superficialmente possa parecer. Essa conotação apresentada por
Schopenhauer parece nos instigar a vôos mais largos com respeito à discussão da
moral.
32
Sêneca, como preceptor de Nero, tinha a missão de prepará-lo para o exercício da política prática
por meio de uma educação esmerada, sob os princípios de humanidade, coragem, justiça, domínio
próprio e prudência para que ele fosse capaz de demonstrar ser soberano na posse de todas as
virtudes. “A realidade mostrar-se-ía refratária aos ideais estóicos plantados por Sêneca durante a
educação do discípulo”. (OLIVEIRA, p. 79-82).
102
Porém, em si, todos os atos (opera operata) são meras imagens vazias; só
a disposição de caráter que conduz a eles fornece-lhes sentido moral. Este,
por sua vez, pode em realidade ser o mesmo, apesar da diversidade
exterior dos fenômenos. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 470).
33
Schopenhauer reserva o § 66 e § 67 da obra O mundo como vontade e representação
especificamente à discussão sobre a compaixão como fundamento para a moral. E o § 68 para a
discussão sobre a ascese.
104
Ao contrário, pelo seu modo de ação, o homem justo mostra que reconhece
seu essência, a Vontade de vida como coisa-em-si, também no fenômeno
do outro dado como mera representação, portanto reencontra a si mesmo
nesse fenômeno em certo grau, ou seja, desiste de praticar a injustiça, isto
é, não inflige injúrias. Exatamente neste grau vê através do Véu de Maia e
iguala a si o ser que lhe é exterior, sem injuriá-lo. (SCHOPENHAUER, 2005,
p. 471).
No íntimo dessa justiça, que não tem mais um caráter meramente negativo,
brota uma profunda intenção de refrear e negar o ímpeto afirmativo da própria
vontade, com a clara finalidade de servir à vontade alheia como a efetivação de um
grau supremo de disposição para a justiça associada à uma autêntica bondade que
ultrapassa questões de direito de propriedade, manutenção das próprias forças
físicas, assim como de satisfações pessoais. Nesse grau de negação, serão
repreendidas todas as possibilidades de realização de ações que objetivem o luxo, o
prazer ou o ganho pessoal, podendo inclusive direcionar o homem, ao cabo, a uma
vida de pobreza voluntária e renúncias, como no caso daqueles que assumiram uma
orientação ascética.
Essa justiça voluntária quebra as barreiras da ilusão impostas pela
temporalidade e pela espacialidade possibilitando um olhar que se eleva
gradativamente a níveis em que encontram a benevolência, a beneficência positiva,
e a caridade independente do vigor e da energia daquele que a dispõe. O
conhecimento que emana dessa experiência pode conduzir à igualdade e à
equanimidade e, por fim, ensinar ao homem a resignação como ponto de equilíbrio
existencial (SCHOPENHAUER, 2005, p. 472).
Em contrapartida, essas características manifestas em seus graus de
negação trazem como conseqüência da comparação entre o homem bom e o
homem mau uma superioridade do último com relação ao primeiro. Para
Schopenhauer, o homem bom deve ser considerado como um fenômeno da
106
Vontade originalmente mais fraco do que o homem mau, justamente por ser este o
exemplo mais cabal e a expressão mais intensa da efetivação da cegueira e do
domínio auto-afirmativo. Todavia, o homem bom, por meio do conhecimento, pode
dominar aquele ímpeto cego e diferenciar-se de indivíduos que externalizam ações
aparentemente bondosas, mas que, assim que seja possível, por conta da
debilidade de sua vontade, mostram-se em sua essencialidade basicamente por não
conseguirem manter uma consistência em sua auto-abnegação e em sua prática de
bondade e justiça.
De outro modo, e com rara exceção, quando alguém não mais estabelece
diferenças entre si mesmo e os outros, e efetiva ações tais como doações
generosas aos carentes, ajuda e socorre aos necessitados, ou ainda, protege com a
própria vida a vida de outros seres, racionais ou não, independente de
considerações abstratas, dogmas ou discursos, mas de modo imediato e intuitivo, e
quase impulsivamente a um só golpe, pode ser considerado como alguém que
venceu a barreira da diferença e da individualidade, e pode ser chamado justo. Seu
motivo não é nem o sofrimento alheio, como um modo de alegria imediata, assim
como se dá com o malvado, muito menos a satisfação do próprio bem-estar, como
se dá com o injusto, mas muito diversamente, o homem justo busca furtar-se a
provocar sofrimento a qualquer tipo de vida, chegando mesmo a decidir-se por
aliviá-los se em situação de privação sofrida.
O ‘eu pessoal’ cede lugar ao ‘eu alheio’, quebrando a rede causal de
diferenças e estabelecendo uma condição de identidade entre ‘eus’. Para o homem
nobre essa diferença e essa individualidade são insignificantes, posto que nascem
da forma fenomenal expressa pelo principium individuationis e consagram a tônica
da ilusão e da separabilidade (SCHOPENHAUER, 2005, p. 473). O homem bom, ou
nobre, não se prende mais ao enredo daquele princípio, mas sente-se totalmente
afetado pela dor do outro como se aquela dor fosse realmente a sua. Tal afetação
provoca uma retomada do equilíbrio, ou seja, esse homem busca restabelecer o
equilíbrio por meio de uma conduta de renúncia dos gozos pessoais, da aceitação
das privações existenciais, e por fim, da tentativa de alívio do sofrimento dos outros
como um modo de reconhecimento de que o que é mais essencial do seu fenômeno
identifique-se com o que é mais essencial do fenômeno alheio. Isso, sem recorrer a
cálculos ou planos, mas de modo imediato. Isso inclui todo o que vive, racional ou
não, pois
107
34
Schopenhauer aprofunda a questão do amor Eros no Capítulo 44, Metafísica do amor sexual. El
mundo como voluntad y representacion II, p. 584.
109
(SCHOPENHAUER, 2003c, p. 82). Já o amor que é Ágape, tal qual ocorre no campo
da arte, exalta o que há de mais excelso e sublime e que só pode ser encontrado
por meio da negação da vontade. Um é oposto do outro. Um afirma a Vontade,
enquanto o outro a nega enfaticamente. A capacidade de amar compassivamente
permite ao homem modular o querer, enquanto ato volitivo particular, com relação
aos outros quereres possibilitando uma convivência significativa a nível coletivo. Por
isso mesmo, Schopenhauer nos apresenta a idéia de compaixão, como amor, ou
seja, o único e genuíno fundamento moral para a motivação dos seres humanos.
Distintos são os entendimentos de amor enquanto Eros, e amor enquanto Ágape.
Nessa distinção, o amor a si próprio é Eros, e o amor a outrem, desprovido de
qualquer mediação, é Cáritas ou Ágape. Um é mediado e o ouro imediato.
A visão privilegiada que se dá por meio do princípio de individuação viabiliza,
em um grau menor, a justiça e, num grau maior, uma disposição de caráter
propriamente boa e é capaz de igualar os homens num único modo de
consideração. Para o autor, entre indivíduos desconhecidos e estranhos uns para os
outros, não há fundamento algum que conduza estes mesmos a preferirem
voluntaria e conscientemente o bem-estar e a vida de outrem em detrimento da sua
própria. E, há apenas uma tipo indistinto de caráter capaz de manifestar uma
bondade suprema e uma nobreza perfeita, neste grau de pureza. Schopenhauer
denomina esse caráter de compassivo.
E quando sacrifícios assim descritos ganham proporções maiores, e
indivíduos caminham em direção à morte certa em amparo da comunidade, ou da
pátria, defendendo importantes verdades universais ou impedindo que maiores
catástrofes aconteçam, então, este indivíduo de caráter compassivo terá atingido
níveis mais excelentes em seu agir de maneira a alcançar a Idéia de humanidade. A
compreensão de que o sofrimento é parte constitutiva da realidade, e que a
felicidade só pode ser alcançada de modo negativo, ou seja, por uma espécie de
reação existencial, outro tipo de contentamento deve tomar o seu lugar. Este é o
conhecimento da condição de padecimento de um outro que torna-se o único motivo
possível para a satisfação e a alegria.
Schopenhauer afirma que são, portanto, dois graus distintos que podem ser
percebidos aqui, um grau de efetividade que é negativo, no sentido de que a dor
daquele que sofre desencadeia uma tal estupefação naquele que assiste ao
espetáculo de dor que este, ou seja, o espectador, sente-se remetido imediatamente
113
Aqui paira uma distinção também importante, na qual a razão é tida como
mantenedora das máximas oriundas da reflexão racional, tomadas ‘de uma vez por
todas’ para o agir humano assegurando que por meio dos assentimentos ‘não minta,
não mate, não roube, não violente e etc.’ sejam seguidos e relembrados
constantemente, mas nunca confundidos com o fundamento da moralidade, que é a
compaixão. Os princípios têm valor, sim, na constituição das ações morais, pois é a
partir deles que podemos traçar um plano seguro para as ações que serão
executadas diariamente e que nem sempre podem estar asseguradas pela
compaixão.
Sem tais princípios, fruto da racionalidade e da reflexão, poderíamos mesmo
até ser abandonados às motivações antimorais quando assaltados pelas impressões
externas e submetidos à espera da experiência da compaixão. Aqui Schopenhauer,
ao corrigir Kant, parece fazer também as pazes com ele, pelo menos quanto ao valor
dos princípios nas ações morais, que nunca podem ser confundidos com o
fundamento. É preciso ter esta distinção clara aos nossos olhos para que possamos
114
outro que é capaz de estender-se até mesmo aos seus inimigos, pois o sofrimento
dele, a partir da proposta de revisão da justiça como virtude vinculadora, pode
tornar-se o meu também.
Um segundo grau de efetividade como esse, se nos apresenta, porém, com
caráter positivo. Por meio da caridade somos impelidos tanto a não causar dano a
ninguém, como a ajudar se preciso. Essa virtude é uma participação imediata, tendo
em vista que não se apóia em nenhuma argumentação, pois, para Schopenhauer
(1995, p.152), “nem dela precisa, pois tem origem clara” na experiência intuitiva dos
homens e mulheres. Por meio da máxima ‘omnes, quantum potes, iuva’, ou, ‘ajuda a
todos quanto puderes’. Ela é a resposta se existem, ou não, valores morais, pois,
livre de todos os motivos egoístas, desperta um contentamento íntimo conhecido por
‘consciência boa’, ou ‘consciência pacificadora’. É, para Schopenhauer, uma
participação direta e mesmo instintiva no sofrer alheio. O que nos leva a perguntar
qual o critério utilizado por ele para distinguir uma ação caritativa de uma não-
caritativa. Este estabelece uma condição básica, ou seja, a ação, de acordo com as
motivações originárias, cada uma com seu motivo, deve ser a condição de análise.
Segundo essas motivações, egoísmo, maldade ou compaixão, elas
apresentam seus respectivos motivos, ou seja, o bem próprio, o sofrimento alheio, e
o bem alheio. A caridade tem, portanto, um caráter de gratuidade, generosidade,
altruísmo e imediatêz que pode mesmo parecer que estamos a falar de algo não
humano, o que é contradito por Schopenhauer quando este apresenta a caridade
com uma das experiências mais comuns e cotidianas da humanidade.
Assim, podemos indagar: É natural proceder de modo que o sofrimento do
outro torne-se o meu motivo para agir? É normal um móvel totalmente outro que não
o ‘eu’, para que se possa provocar minha comoção e minha atividade
desinteressada? Schopenhauer (1995, p. 155) nos diz que,
Esse é o critério que melhor pode explicar uma ação dotada de valor moral
para Schopenhauer. O autor chama este processo de mística, ou seja, uma verdade
que a razão não consegue descobrir pelo caminho da experiência. E, no entanto, é
algo cotidiano. Ou seja, em vários lugares e em todos os tempos, os homens ajudam
e socorrem outras pessoas sem muita reflexão, pois isto deriva-se de um misterioso
processo íntimo da ética. Desta intimidade, um conjunto de outras virtudes pode fluir
justiça e a caridade, formando uma unidade com estas e possibilitando mesmo uma
discussão sobre uma ética das virtudes em Schopenhauer35.
Parece-nos paradoxal, como mesmo nos alerta Schopenhauer, esta
discussão sobre uma fundamentação da moral por meio da compaixão, porém, em
sua perspectiva, é a mais legítima das questões éticas, pois para o mesmo, a ética
é, na verdade, “a mais fácil de todas as ciências, já que não há nada mais para
esperar a não ser que todos tenham a obrigação de construir a si mesmos” (1995, p.
155). Na visão do autor, muitas determinações religiosas têm, assim como no
cristianismo, prescrições “semelhantes, pois estão fundadas no sentimento do que
deduzi aqui (o Mitleid) e em que, aliás, só a necessidade alheia e nenhuma outra
consideração tem de ser o meu motivo quando minha ação deve ter valor moral”
(SCHOPENHAUER, 1995, p. 154).
Schopenhauer (1995, p. 157) chama de ‘confirmação’ ou ‘prova decisiva’ um
exemplo hipotético no qual dois jovens, Caio e Tito, que podem realizar um
homicídio sem correrem o risco de serem capturados, mas que desistem de levarem
a cabo seus projetos. A decisão de Caio reflete as propostas morais mais variadas
como as religiosas, os sistemas filosóficos, os deontológicos, os normativos e etc. Já
a decisão de Tito expressa a opinião de Schopenhauer quando da razão de uma
escolha compassiva. Ou seja, uma ação que surgiu de uma fonte pura e que está
alicerçada sobre critérios de justiça espontânea e de caridade desinteressada,
alcançando assim o status de nobreza moral e generosidade autênticas
(SCHOPENHAUER, 1995, p. 122). Um tipo de decisão, qualquer que seja ela,
expressa empiricamente o caráter inteligível de um indivíduo. O caráter egoísta
efetivará sem mais problemas o seu desejo de conservação de si e de satisfação
35
Richar Taylor faz um prefácio, New Essays in honor of his 200th Birthdays obra de 1988 descrito na
nota de rodapé nº 152 de Mannion. “Talvez ganhássemos mais se lêssemos sua ética da compaixão
como uma possível ética da s virtudes”. A possibilidade de uma ética das virtudes (virtue ethics) em
Schopenhauer pode aliviar a compreensão e o peso de seu pessimismo e desvelar uma nova
perspectiva, a do pessimista virtuoso. (MANNION, 2003, p. 216).
119
básica de sua condição existencial sem preocupar-se com o outro que sofre. O
caráter compassivo será capaz de revoltar-se contra uma ação de crueldade e
vilania e colocar-se no lugar daquele que sofre.
Na última parte de sua obra, obra Sobre o fundamento da moral,
Schopenhauer (1995, p. 196) ousa apresentar à Sociedade Real dinamarquesa o
seu fundamento moral, agora, por via analítica, pois, em seu entendimento, este
fundamento moral proposto também clama por um esclarecimento metafísico, na
verdade é urgente, pois este tem condições de lhe oferecer uma visão de totalidade
de mundo que o método sintético não pode dar. Por isso, “a exigência de que a ética
se apóie sobre a metafísica é incontestável” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 199).
Para o filósofo, o conhecimento que temos de nós mesmos não é de forma
nenhuma completo e deve ser esclarecido, não só pelo conhecimento empírico que
se esgota em si mesmo, mas por meio da metafísica enquanto conhecimento que
ultrapassa as condições de espaço e tempo, as manifestações fenomenais, e
vislumbra um nível de consciência que permite se sobrepor a esta multiplicidade
dada. Para o filósofo, é por meio da metafísica que é possível ao homem enxergar
este mundo como Vontade e Representação e, a partir desta essencial distinção,
reconhecer sua própria existência enquanto fenômeno que está em ligação vital com
tudo e com todos compreendendo que a individuação nada mais é do que uma
racionalização das coisas que existem. Sendo assim, para Schopenhauer, a
metafísica esclarece o fenômeno originário da moral, a compaixão.
36
“what is important here is Schopenhauer´s transcendental idealism, because Mitleid only makes in
reference to the phenomenal, whereas the individuality that is transcendental is only so annihilated in
the realm of the noumenal”. A questão metafísica deve ser compreendida dentro de seu Idealismo
Transcendental. (MANNION, 2003, p. 207, tradução nossa).
37
“A participates imaginatively in B´s suffering”.
121
feita pelo filósofo italiano Ubaldo Cassina38 em que sustenta que a compaixão
surgida é fruto de uma ilusão momentânea entre aquele que sofre e aquele que
observa. Schopenhauer (1995, p. 133) afirma que,
Não é assim, de jeito nenhum. Mas fica claro e presente, em cada momento
preciso, que ele é o sofredor e não nós: e justo na sua pessoa e não na
nossa sentimos sua dor, para nossa perturbação. Sofremos com ele,
portanto nele, e sentimos sua dor como sua, e não temos a imaginação de
que ela seja nossa. E, mesmo, quanto mais feliz for nosso estado e, pois,
quanto mais contrasta a consciência dele com a situação do outro, tanto
mais sensíveis seremos para a compaixão. A explicação deste fenômeno
altamente importante não é porém tão fácil de alcançar apenas pela via
psicológica, como o tentou Cassina. Só metafisicamente é que ela pode dar
bom resultado [...]
[...] Aquele primeiro aspecto é o que encontramos como sendo aquilo que
está no fundamento da compaixão e mesmo como expressão real dele.
Seria portanto a base metafísica e consistiria no fato de que um indivíduo se
reconhece a si próprio, a sua essência verdadeira, imediatamente no outro.
(SCHOPENHAUER, 1995, p. 207).
mais perfeito, o ser humano, alcança uma tal elevação de seu grau de conhecimento
que consegue repetir essencialmente o que há de mais límpido no que diz respeito à
apreensão das Idéias, ou seja, a plena consciência de si. Tal qual a arte, este
conhecimento promove a única e verdadeira liberdade a que podemos ter acesso, a
liberdade noumenal que é exclusiva da Vontade, que por sua vez, é liberta de
necessidade, pois circunscrita no campo fenomenal a liberdade é determinada,
portanto ilusão, presa que está à necessidade espaço-temporal.
A partir disso, dentro da relação entre ética e estética, o conhecimento
intuitivo é apresentado por Schopenhauer (2005, p. 468) como a via pela qual brota
o Mitleid. Maria Lucia Cacciola (1994, p. 164) afirma que:
4.5 A ascese
a morte, esta diferentemente das outras muitas que todos os dias acontecem, é uma
morte muito bem vinda, pois com esta não morre apenas o fenômeno, mas a
essência mesma do mundo que por meio do fenômeno é suprimida revelando a
“alma iluminada em sua mais completa redenção” (SCHOPENHAUER, 2005, p.
485).
Kleverton Bacelar (2010, p. 193) no artigo Sobre a quarta motivação na
psicologia de Schopenhauer, defende que “a quarta motivação moral seria a dor
própria [Eigenes Wehe], ou seja, cada disposição implica em uma disposição de
caráter e que essa quarta motivação induz-nos a pensar em uma disposição de
caráter ascética. Se assim for, alguns indivíduos seriam predispostos ao próprio
mau, à própria dor, ou seja, alguns indivíduos seriam predeterminados à santidade”.
Schopenhauer apresenta Jesus Cristo, Francisco de Assis, além de místicos
hindus como exemplo de homens que negaram a Vontade de vida e suprimiram a
sua própria existência alcançando uma espécie de redenção, ou o nada do nirvana
que supera o sansara 41.
SINGH (2007, p. x) analisa a conexão entre a morte, contemplação e vida
contemplativa na filosofia de Schopenhauer por meio do binômio morte-
contemplação como uma atividade eminentemente do filósofo em basicamente
quatro pontos: primeiro que, quando se reconhece a morte se é impelido a
contemplar a existência humana e a realidade não mais de modo fragmentado e
parcial, mas em sua completude numa perspectiva holística. Segundo, pensar sobre
a morte realça questões referentes ao valor da matéria e da condição da existência
humana, o que pode responder ao enigma da vida quando confrontado com o
pensamento filosófico. Terceiro, isso inspira um modo de vida moderado e
voluntarioso que se opõe ao descuidado materialismo vulgar, propiciando uma vida
prática filosófica autêntica na qual o filósofo pode inspirar-se genuinamente vivendo
com moderação, simplicidade e distanciamento do mundo. E por último, o pensador
é inspirado a invocar o que é mais fundamental em toda a realidade como a crença
em Deus ou em uma transitoriedade em uma carência de substancialidade
41
O nada sansara: significa mundo dos renascimentos contínuos, dos apetites e dos desejos, da
ilusão dos sentidos, dos fenômenos do nascimento, do envelhecimento, da doença e da morte.
Nirvana: va soprar com o vento, e nir ausência de vento, como adjetivo é extinto, ao pé da letra
extinção como a de um fogo. Neravana ou seja, nera sem, vena, vida significando aniquilação.
Nirvana é a contraparte de sansara.
131
42
Schopenhauer aprofunda a questão da morte por meio da negação da vontade e a morte por meio
do suicídio no § 69, p. 504. O mundo como vontade e representação.
132
5 Considerações finais
Destaca o filósofo que, uma ação autenticamente moral jamais pode ocorrer
forçosamente apenas por meio de leis ou regras, pois quase sempre as ações
realmente morais acontecem independentes delas, ou seja, por via intuitiva e não
abstrata. Ao conhecimento abstrato, caberá apenas a análise e interpretação da
mesma. Uma ação autenticamente moral, vista pela ótica de seu idealismo
transcendental não pode acontecer a partir da afirmação da Vontade, mas, ao
contrário, deve acontecer unicamente por meio da negação da Vontade de vida,
que, por sua vez, não está submetida a leis ou regras. Em contrapartida, quase
sempre essas leis e regras têm servido apenas para conter o ímpeto de dominação
dos homens, e manter a condição de contrato estabelecida por meio do Estado.
A negação da Vontade é uma ação que acontece por meio de um tipo de
conhecimento anterior à razão que apreende a realidade de modo imediato, ou seja,
num só golpe, proporcionando uma experiência sensorial e intuitiva que, tanto no
campo da estética, quanto no campo da ética, é capaz de propiciar ao agente
negador da Vontade um lenitivo momentâneo das causas das dores e do sofrimento
existenciais, ou seja, o querer. O Mitleid é um modo de negação da Vontade
apontada por Arthur Schopenhauer como fundamento autêntico para a moralidade e
que revela-se misterioso como uma espécie de experiência sublime de elevação e
de conhecimento comparáveis à experiência do amor. O filósofo destaca uma sutil
distinção entre o amor que é sexual, Eros, e o amor que conduz à redenção, Ágape.
O amor que é Éros perpetua a existência, o amor que amor que é Ágape liberta da
existência. Este último é o único capaz de ver através do principii individuationis e
renunciar completamente à sua própria Vontade de vida e doar-se inteiramente em
prol da Vontade de vida de outrem. Tal feito ético culmina numa sublimidade tal qual
ocorre na estética, fazendo suspender toda dor e todo sofrimento causado pelo
querer que é a essência do mundo. Da elevação da compaixão surge a ascese que
conduz ao summum bonum, ou seja, à total supressão da Vontade negada de modo
absoluto, assim como na arte.
A proposta de Schopenhauer é a de que a ética não possa ser uma ciência
prescritiva, mas descritiva, o que possibilitará à filosofia exercer seu verdadeiro
papel. A filosofia exercerá, assim, sua tarefa por excelência, ou seja, a de ser arte e
ciência quando, por meio desses dois aspectos, poderá elaborar um discurso
racional constituídos pelas representações conceituais, e, do mesmo modo, expor
interpretativa o mundo a ser decifrado. Fincada no solo da realidade, a filosofia
136
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