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Capítulo 10

Em 1850, Th.-H. Barrau dá os seus Conselhos aos operários sobre os


meios que eles têm para serem felizes 1. O segredo dessa felicidade assenta,
segundo ele, no cuidado de «poupar os minutos». O operário «não tem outro
capital além do tempo, não tem outro rendimento além do emprego deste
mesmo tempo; dissipando-o, destrói cientemente os seus próprios recursos,
torna-se, até certo ponto, homicida de si próprio». O facto é que, neste meio,
a vacuidade do tempo resulta em tédio ou suscita a tentação do deboche.
Anne-Marie Thiesse recordou-o: este conjunto de convicções ordena o
discurso então consagrado às «classes trabalhadoras», depois aos
«trabalhadores». O lazer culto, a meditação solitária, o verdadeirofarniente
relevam de uma outra sensibilidade ao escoar das horas, implicam a
aprendizagem de um certo cuidado de si, pressupõem o hábito do frente-a-
frente consigo próprio.
Não convém a ninguém submeter-se, sem reflexão, a este conjunto de
normas que negam a própria possibilidade do projecto individual, o desejo
de realizar uma obra, o uso pessoal de um tempo que não o tempo de tra-
balho. Impõe-se então a demanda de um eventual tempo pessoal, fora dos
meios onde ele está acantonado.
Infelizmente, o mutismo dos actores, a raridade do registo de vestígios
que possam ter deixado, a perspectiva disciplinar de observadores, 393
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aliás pouco preparados para ler os desejos e os prazeres autênticos outrem, Balbucios de um tempo pessoal
condenam aqui o investigador ao rodeio e à dedução.

A.

A pesca à linha e a polarização das horas

«Parece ser na prática da pesca à linha», escrevem Joffre Dumazedier Aline


Ripert na conclusão do seu inquérito sobre o lazer em Annecy, «que a ruptura
com a vida social encontra as suas formas extremas [ ... ].
ão numerosos os pescadores [ ... ] que afirmam que este isolamento resulta
numa verdadeira liquidação de todas as preocupações quotidianas» 1. Melhor
que a jardinagem, melhor que o bricolage, a pesca à linha simboliza um tempo
pessoal. Esta actividade, que se manteve à margem do circuito comercial, sem
referência aos gestos do trabalho e que em nada constitui uma demonstração de
competência ligada à produção, induz, dada a sua relativa autonomia, emoções
e prazeres de um sabor especial. Mais que outras, suscita o relato e o
comentário. Ora esta via de acesso ao estudo da disponibilidade do tempo
constitui um ponto cego da pesquisa histórica. A pesca à linha não pertence à
gama das actividades abertamente defendidas pelas classes dominantes. Não
entra no seu projecto pedagógico. Pior, foi, desde cedo, marcada pelo estigma
da futilidade, da inutilidade. Desenhou-se como figura ridícula do tempo
desperdiçado, como uma desoladora imagem do vazio das horas.
Além disso, a pesca à linha é uma prática opaca. O obstáculo que ela opõe
ao investigador deve-se à pobreza do registo dos desejos que inspira

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e das emoções que suscita. O seu historiador vê-se portanto forçado a re correr, vel. Quanto ao resto, os discursos tecem-se de zombaria, até de desprezo
para o essencial, ao discurso normativo. Ora os autores de obras consagradas à recíprocos. Ao longo das décadas, vai-se operando a pouco e pouco uma
pesca afirmam, paradoxalmente, que tratam de uma prática que não se aprende transferência cultural que submete uma pesca tradicional à influência de uma pesca
pelo livro e que convém sobretudo a indivíduos que leiam pouco. É certo que a desportiva, elaborada além-Mancha. Encontramos aqui um processo já evocado a
ficção tratou amplamente este assunto, basta. para disso nos convencermos, pensar propósito do futebol.
nos contos de Guy de Maupassant Mas, aqui como nos quadros impressionistas, o
personagem do pescador é quase sempre subordinado à evocação pitoresca do
cenário à beira da água. Estes textos constroem-se segundo formas de apreciação e
o passatempo do «povinho»
de satis fação que não são exactamente as que inspiram o amador. A diversidade
quase infinita das práticas segundo a idade, o sexo, a inserção social, o ca lendário, Em França, observa em 1858 Charles Massas, um dos grandes teóricos do
a estrutura afectiva dos indivíduos faz da pesca à linha, seja ela concebida como momento, a pesca com mosca artificial não se pratica. Aliás, a pesca em geral é,
uma prática individual ou como uma actividade associa tiva, um objecto de neste país, o passatempo do «povinhos". É esta uma das razões que aqui justifica o
extrema complexidade. nosso interesse. O pescador à linha é, nesta data, alvo de incessantes louvores. Por
Posto isto, e para nos atermos a um quadro esquemático, consideremos dois outro lado, a pesca da margem integra-se num conjunto de práticas que tornam as
tipos de pesca que coexistem e interactuam, num jogo complexo de trocas, de imediações de rios e ribeiras lugares muito frequentados. Na zona de Paris,
citações e de piadas. Os defensores de cada um destes modelos esforçaram-se por mistura-se com o passeio dos curiosos, com as excursões ao campo, eróticas ou
legitimar a sua prática. Assim, a pobreza da descrição pessoal encontra-se aqui familiares, com as corridas de canoagem. Desta proximidade nascem muitos
compensada pela super-abundância de obras técnicas, de perspectiva didáctica e conflitos. Insultar, atirar pedras são as sanções que traduzem estes antagonismos.
moralizadora-. Antes de tentar analisar cada uma das duas pescas convém dizer o No fim do século, as marginais estão a tal ponto cheias de gente, agitadas e, por
que as une. Ambas constituem práticas masculinas que se mostram como isentas de essa razão, empobrecidas que é preciso ser-se um verdadeiro campeão para
qualquer perspectiva erótica. Ambas implicam, repita-se, uma franca ruptura com a conseguir apanhar peixe na região parisiense.
actividade quotidiana e uma total polarização do tempo. A pesca à linha basta para A pesca à linha é concebida como uma arte que implica ao mesmo tempo uma
encher as horas. Os autores repetem, por exemplo, que não se consegue ler vocação e uma prática prolongada. A crer nos bons autores, todos os grandes
enquanto se espera que o peixe morda. Sejam quais forem as suas modalidades, a pescadores são velhos cheios de experiência, «lobos-dos-mares» ou «capitães» cujo
pesca à linha implica uma aprendizagem efectuada segundo as vias normais do saber silencioso contrasta com a gabarolice imbecil de todos os vadios e
autodidactismo. É a busca de um saber que se transmite pela observação e escuta debitadores de sentenças da beira-rio+ A chamada pesca tradicional confronta-se
de outrem, numa relação de mestre e discípulo. Em qualquer caso, pressupõe uma com «os mistérios das vagas». Implica o conhecimento de segredos e truques. Não
disciplina, a do silêncio. Sob todas as suas formas, é apresentada como um se associa, como a pesca desportiva, à qualidade do gesto. O savoir-faire que a
passatempo salubre, moral e agradá- constitui mescla-se de desafio, de astúcia, de habilidade, de subtil acordo entre a
mão e o cérebro.

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A aprendizagem desta arte resulta da observação e de uma lenta revelação. A seguir, impõe-se sondar bem e sobretudo iscar bem, ou seja, preparar
Baseia-se na demonstração de competência adquirida. Kresz Senior, grande bem o lugar de véspera ou, não sendo possível, pelo menos umas horas antes da
pescador à linha e teórico desta arte em França na primeira metade do século pescaria. Convém, enfim, respeitar as conveniências e evitar «o sítio
XIX, gosta de evocar cenas de aprendizagem e de transcrever as lições dadas frequentado e o pesqueiro de outro pescador» 12.
aos seus «alunos pescadores-f na margem do rio. O mestre, pelo seu lado, deve A pesca tradicional «exige um grande dispêndio de tempo» 13. De todas as
praticar a humildade e saber, se necessário, «tornar-se aprendiz mesmo de um actividades de lazer, esta é então entendida como a que devora mais tempo.
pescador menino» 7. A variedade dos hábitos do peixe impõe uma incessante Penetrar no mistério das águas pressupõe um encadeado de deduções
aquisição de conhecimentos. Seja qual for o seu nível, o pescador deve necessário à decifração do enigma. É por isso que o «campónio» é quase
«enriquecer-se pessoalmente junto dos mais competentes do sítio»8. sempre um péssimo pescador. Com excepção dos que moram em «zona de
Uma relação complexa com o espaço define a chamada pesca tradicional. É trutas» (Alpes, Vosges, Borgonha, Normandia ... ), não consagrou tempo
certo que se trata de uma prática qualificada como «estacionária», o que lhe suficiente à sua aprendizagem; a sua pesca, no dizer dos autores de manuais,
vale a acusação de passividade. Os seus detractores vituperam as suas raízes, não passa quase nunca de «rotina atávica».
que a tornam acessível às idades vetustas". Riem-se da «pesca dos inválidos», É certo que o pescador à linha tem que estar constantemente atento, o que
própria para «consolar a velhice». Com efeito, mesmo quando opera no meio lhe alimenta o «nervosismo». Nem por isso o seu passatempo deixa de ser uma
da água, o amador deve saber «parar» a sua barca, conforme a profundidade e escola de paciência. Há até quem pergunte «se a vida é assim tão longa, se o
natureza dos fundos. Esta pesca pratica-se em águas tranquilas, agitadas, tempo tem tão pouco valor que assim se possa gastá-lo impunemente» 14. A
quando muito, por uma ligeira corrente. Impõe, portanto, um sentido do lugar-v. pergunta sobre o estatuto de uma prática que alia a tal ponto «abnegação
Ao cabo de uma paciente observação do rio, ao longo de prolongadas intelectual» e «desprendimento físico» adequa-se à vontade de legitimar a
deambulações, o pescador à linha deve eleger «o bom poiso». É a pesca desportiva. No decurso deste debate, são dadas a ler concepções
impossibilidade deste estudo prévio que faz a mediocridade do «pescador de antagónicas dos usos e qualidades do tempo. Para uns, esta paciência excessiva
domingo». Com efeito, é preciso «percorrer um pouco as margens, examinar a conduz à resignação: resulta de uma espécie de abandono, de renúncia ao
corrente, escolher com toda a tranquilidade, isto é, fugir tanto das águas mortas desejo. Outros, em contrapartida, como Cunisset-Carnot, o grande jurista do
como da água demasiado rápida, evitar as árvores - que ensarilham a linha - [ ... início do século XX, sublinham a força do fascínio. O pescador «hipnotizado»,
], ter cuidado com as ervas [ ... ], procurar também estar ao abrigo do vento e siderado, fica ali, «o olhar preso à água que corre, leva e traz ao seu ponto de
do sol em cheio, preferir um fundo liso e com boa profundidadevU. O pescador partida o seu pensamento que navega como a cortiça num perpétuo vaivém»
deve adivinhar o peixe segundo a topografia: numa palavra, tem que conhecer 15.
perfeitamente o terreno em que opera. Há-de saber que a densidade das even- Tudo isso liga o tempo da pesca ao silêncio e à solidão. Os amadores não
tuais represas é grande junto dos lavadouros, nas proximidades das praias, dos gostam de pescar acompanhados e «o pescador solitário tem sempre melhores
cais e dos esgotos. resultados do que aquele que está acompanhadovtô. Vai-se sozinho para o rio e
bem cedo. O verdadeiro amador instala-se no seu lugar ao nascer do so117. É o
inverso do noctívago. Fica isolado durante todo o

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dia 18. Coíbe-se até de levar o cão. Evita falar ou fazer barulho com os pés. mulheres da burguesia ousam mesmo praticá-la quando um curso de água corre
Numa palavra, é um passatempo individual. Aliás, os pescadores respeitam junto da sua propriedade. Enquanto a pesca de amador é invadida pelos cânones
uma boa distância entre eles, correspondente ao comprimento da cana e linha. da pesca desportiva, a pesca «ao miúdo» permite a ascensão social de uma
É indispensável ao pescador saber que tempo faz. Com efeito, o peixe morde prática tradicional. O processo é o mesmo que faz, há mais de um século,
melhor «com tempo húmido, quente e tempestuoso do que após um tempo encontrarem-se na praia os pescadores a pé e os burgueses que apanham
seco, frio ou quente», o que se deve, nomeadamente, às variações na conchas-c.
quantidade de insectos aéreos. O peixe tem medo de muita luz; por isso, mais Nos meios populares, o mês de Julho é o da pesca heróica, um dos tempos
vale pescar em águas turvas. Este necessário saber meteorológico, esta privilegiados pelos relatos, que fala da luta com a carpa. O mês de Agosto, pelo
sensibilidade ao tempo que faz induzem por vezes longas séries de contrário, corresponde ao reinado do barbo e dos peixinhos fritos, dois grandes
observações. O campeão Jho Pâle (l-H. Perreau) afirma, em 1910, ter «entre símbolos desta pesca de amador. Claro que é difícil ser-se daqueles que
mãos o caderno de um pescador escrito dia a dia e hora a hora» durante dez apanham em média cem peixes por hora, mas é uma pesca simples. É uma
anosl? pesca «de sorte»24. Quanto ao peixinho frito, faz salivar os pescadores. Nos
Estreitamente ligada ao ciclo cósmico, a pesca obedece a um calendário meios populares, constitui uma refeição apreciada que se associa ao sol, ao
preciso. Por isso os manuais revestem muitas vezes a forma de almanques-'', campo e ao vinho branco. Nas fileiras da burguesia, é mais um aperitivo.
Esta é uma pesca de muitos peixes que se revezam no cesto do pescador. De Setembro é a altura da pesca à truta. Aí voltaremos. O calendário associa
Inverno, pescar é desagradável: as águas estão revoltas, «o peixe esconde-se». então pesca e caça, os discípulos de Sto. Huberto e os de S. Pedro->. Em
Na Primavera, os aguaceiros frequentes engrossam os rios. Aliás, por volta de Outubro, tempo dos troféus, vai-se ao lúcio para encerrar o rico calendário da
15 de Abril, a pesca está fechada-I. A abertura, a meio de Junho, é uma ocasião pesca tradicional.
de verdadeira festa que envolve muito mais que o círculo dos amadores. Em A pesca está intimamente associada ao pegajoso, ao sujo, ao orgânico.
1862, formara-se nesse dia «de Bezons até Bougival, um verdadeiro cardume Pela multiplicidade dos seus preparativos, é semelhante à culinária. Tem como
de pescadores». Estavam «junto à água, escalonados de quinze em quinze principais ingredientes o sangue, a carne podre, o pão, as ervas aromáticas.
passos, uns de pé, outros agachados. Uns pescavam ao lanço, outros ao fundo, Além disso, implica uma pequena criação de minhocas. Para a praticar, convém
outros ainda com chumbeira. Por toda a parte havia canas a levantar e a baixar. ter boa resistência ao noj026. Impõe-se manejar coisas sujas e trejeitos
As mulheres, sentadas mais atrás, liam ou tricotavam. Jornaizinhos com orgânicos quando se prepara os iscos, sobretudo os de fundo. O sangue que o
imagens formavam uma toalha sobre a erva. Uma gravura tinha queijo, outra carniceiro recolhe quando abate um boi, os miolos de carneiro, o queijo, o pão,
rábanos [00']' As crianças colhiam margaridas e, para não usarem os iscos do o trigo, a cevada, o milho, as favas são, conforme os métodos de pesca e
papá, punham nos seus anzóis essas flores»22. Por volta das seis o cardume de conforme os pescadores, utilizados como isco. Bolas de barro misturadas com
pescadores desfaz-se, à hora em que as casas de pasto começam a propor fritos larvas, devidamente amassadas, constituem bons iscos de fundo. Em suma,
e caldeiradas. como diz Cunissot-Camot em 1910, é preciso aceitar o sujo. Quando muito,
É então o tempo da pesca ao «miúdo», a mais fácil de todas. É a alegria aconselha a utilização de luvas de bor-
dos avozinhos; os colegiais de férias entregam-se-lhe com paixão. Certas

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racha-". Mas a partir dos meados do século aumenta nestes meios a denúncia avenidas. À beira do rio sente-se «emoções tão profundas que são calmas e
do infecto, uma vez mais associada ao popular, e a diatribe contra os pequenos puras». Pode-se fruir aí um prazer que não deixa a seguir «arrependimento nem
pescadores que se juntam na proximidade dos lavadouros c das zonas remorsos+'. Esta figura da inocência de um prazer saboreado «longe da torpeza
pestilentas-ê. dos homens»35 organiza a rede de topoi que opõe a «pesca amadora» ao jogo e
Esta pesca é também deselegante. Os «molha-minhocas» praticam a re- a beira-rio à taberna e ao bordel. Posto isto, este prazer sem imoralidade
cuperação e a reutilização. Recusam a especialização. Desdenham o objecto esconde uma verdadeira paixão. Repita-se: a pesca amadora «basta-se a si
manufacturado e o vestuário desportivo. Já em 1836 o desenhador Roehn opõe própria» 36. Exclui a companhia e a distracção. À parte o jogo, nenhuma outra
o sportsman, dinâmico e distinto, ao pescador «estacionário», sentado à beira actividade «dá tão profundamente, tão absolutamente como ela uma alternativa
do seu litro de tinto e do seu naco de pão no qual enterrou a faca-". Os próprios às esperanças e desesperanças-F.
autores de manuais nunca aconselham a busca da elegância aos que praticam Esta força de atracção baseia-se numa série de emoções. A mais acesa é a
este tipo de pesca. O «pequeno pescador» que vai para o seu «bom proporcionada pelo «toque», sinal de luta, «lembrança de prazeres atávicos»,
lançamento» parece ridículo aos olhos de muita gente, ajoujado com o seu sensação do contacto directo estabelecido entre o homem e o animal; o que um
cesto, o seu farnel, o seu camaroeiro, as suas caixas com minhocas e moscas. O amador qualifica de «comunhão íntima, eléctrica»38 com o peixe e um outro de
seu vestuário heteróclito designa-o aos mirones, tanto mais que suporta o peso «telegrafia da linha»39. «O toque proporciona um gozo inefável, um deleite
das suas vitualhas, já que tem que levar que comer. Ao contrário do desconhecido do comum dos homens». Dilata «até o fazer rebentar o coração
excursionista e do pescador de domingo, o verdadeiro amador não é homem de do verdadeiro pescadoo-w.
restaurante. Numa perspectiva muito diferente, a quietude da pesca à linha tradicional
Pelo final do século, os autores de manuais esforçam-se, é certo, por tornar incita, ao que dizem, ao devaneio e à emoção poética. Adequa-se naturalmente
apresentável o «pequeno pescador»: passam a aconselhar roupa de fazenda com à pintura de paisagens. Daubigny, instalado na marginal do Oise, põe-se à
muitos bolsos, calças à ciclista, sapatos grossos de solas pregadas e o boné de procura, indiferentemente, do «bom pesqueiro» e do bom ponto de vistas. Além
couro curtido em vez do tradicional barretew, Mas Jho Pâle continua a disso, afirma-se, muitos são os músicos e os escritores que são também
aconselhar, em 1910, o velho guarda-pó pela altura do joelho e o papel de pescadores: Walter, Scott, Ambroise Thomas, Emile Augier, Jules Sandeau,
jornal que o pescador poderá furar em caso de tempestade para passar a cabeça Alphonse Karr, Jean Richepin, Octave Feuillet, Victor Hugo e muitos outros+I.
e assim se abrigar da água3l. No dizer de velhos cheios de experiência, o A «pesca amadora» constitui uma figuração muito acessível da aventura:
verdadeiro amador fabrica ele próprio os seus aprestos, isto é, a cana e as permite, a preço módico, a heroicização pessoal e a gabarolice. O relato das
linhas, que deve saber montar, chegado ao síti032. façanhas e dos «incidentes vários» - como hoje o da aventura automóvel -, a
Esta pesca tradicional, quase sempre depreciada pelos membros das classes descrição do peixe, o cálculo do seu tamanho, a sua constituição em troféu
dominantes, é também muito enaltecida pelos que se dedicam a promovê-la e segundo o modelo da caça constituem, segundo Kresz Senior e segundo Charles
por vezes a transformá-la. Vêem ali um meio de aceder a uma «ventura de Massas, o relato de pesca, um género autónomo desde o fim do século
pacfficas-f que se inscreve em simetria com a agitação das XVIII.
O essencial do abundante discurso consagrado aos benefícios da «pes-

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ca amadora» não deixa de se debruçar sobre as suas virtudes higiénicas c Já no eclodir da Revolução foi reconhecida a igualdade do direito de pescar.
terapêuticas+ê, bem como as suas qualidades morais. Para o operário e para o Foi ratificada pela lei de 14 floreal ano X, depois, apenas com algumas reservas
empregado, participa da higiene do domingo. Para o desocupado, viva ele de relativas ao respeito pelos direitos dos proprietários privados e à protecção das
rendas, seja proprietário ou reformado, constitui o mais salubre dos espécies, pelas que se lhe sucederam ao longo do século (15 de Abril de
passatempos. A pesca, que permite esquecer a taberna+', é escola de paciência 1829,31 de Maio de 1865).
e de destreza; desenvolve o sentido de observação. A denúncia de novas Se reunirmos as principais características que desenham este passatempo -
ameaças confirma as suas virtudes terapêuticas. A pesca, insista-se, é soberana origens na tradição, real ou decretada, saber autodidacta, reivindicação da
contra o surmenage e a neurastenia. Compensa a vida trepidante e a aceleração igualdade de direitos, defesa dos costumes, jogo com o ilegalismo, paixão
dos ritmos. Melhor ainda que a equitação e melhor que o sono, proporciona, reconhecida como inocente e salubre - podemos avaliar com que força esta
«nestes tempos de neuroses-+', uma pausa benéfica no funcionamento do pesca banal se torna então componente da identidade dos que a praticam. Mas
cérebro. Permite gozar a calma, a tranquilidade, o sossego. estamos a sair do estrito âmbito do nosso tema.
A pesca tradicional é também entendida como uma forma de lazer es-
treitamente associada à liberdade e à igualdade. Em 1903 «está-se lá [à beira-
rio] como em sua casa sem pedir nada a ninguémv">. Esta pesca permite a A pesca desportiva ou a difícil transição para um
libertação das idiossincrasias. Os comportamentos que inspira variam conforme novo uso do tempo
os temperamentos. Enquanto certos amadores não podem ficar no mesmo sítio
mais de quarenta minutos, outros, que amam a solidão e o repouso, podem, sem Foi pelo cuidado de simplificar a análise que isolámos este tipo de pesca. Com
se aborrecerem, ficar na margem oito ou dez horas, de linha na mã046. É a efeito, a partir dos meados do século XIX, propõe-se um outro modelo que, a
dedicação «à mais inocente das nossas liberdades-t? que está na base, no pouco e pouco, tende a impor-se no seio do grupo dos especialistas. Os
dealbar do século XX da viva oposição à instauração da licença de pesca. comerciantes desempenharam, neste domínio, um papel decisivo de
A referência à igualdade também está sempre a ser reafirmada. A exaltação mediadores. O facto é que os vendedores de artigos de pesca importam produtos
da «pesca amadora» integra-se num feixe de reivindicações que evocam uma de além-Mancha. Imitam-nos. Promovem-nos nos seus textos. Em breve
mítica sociedade igualitária, no seio da qual todos podem livremente dar uso passam a sugerir um tipo de actividade baseado em valores diferentes dos da
aos produtos da natureza, considerados res nullius. A questão da pesca surge pesca tradicional. O personagem Kresz Senior ilustra este movimento. Este
portanto associada à da caça e a todos os debates suscitados pelos múltiplos campeão é também comerciante e pedagogo. Pratica a sua actividade favorita
direitos de uso a que os habitantes da França rural se revelam ainda muito desde 1802. Dezasseis anos mais tarde, alinha pela escola inglesa e inicia-se na
ligados. Esta pesca tradicional, cujas práticas estão insidiosamente ligadas às pesca desportiva, que descreve sumariamente, em 1836. Na nova edição do seu
da caça furtiva, convoca além do mais, em sua defesa, tudo o que tem a ver Pêcheur français, que saiu em 1847, consagra, pela primeira vez, um longo
com a tentação de um ilegalismo difuso. capítulo à «pesca com mosca artificial à superfície da água».
Nesse ano, Kresz Senior propõe já aos seus clientes de Paris mais de

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cem modelos de canas de pesca, cujos preços variam de 1 a 100 francos. Umas Implica, antes do mais, saber apreciar o tempo (weather) na sua mobilidade.
são de vime, outras de bambu da América, outras em madeira de hickory. Numa palavra, pressupõe uma minuciosa previsão meteorológica, quanto mais
Kresz possui em armazém perto de seiscentas dúzias de moscas realizadas não seja para decidir da mosca adequada. Esta sensibilidade ao mau tempo, à
segundo mais de cem modelos naturais. Não precisa de mais de vinte e quatro natureza e direcção do vento, à probabilidade de acalmia, determina, tal como o
horas, afirma, para fabricar exemplares artificiais, minuciosamente imitados, cálculo da transparência da água, a escolha da margem ao longo da qual
das moscas que lhe forem enviadas. Em contrapartida. os anzóis da sua loja são convém operar. Abordamos aqui um aspecto essencial dos usos do tempo livre:
directamente importados de Inglaterra. o que liga estas actividades à apreciação sensorial dos fenómenos
Em 1852 e em 1858, Charles de Massas consagra duas obras à nova pesca. meteorológicos.
Diga-se que na Grã-Bretanha, na mesma data, já esta tinha inspirado toda uma A pesca à mosca artificial está pois em harmonia com uma certa concepção
biblioteca. Os autores de manuais acham-se desde logo na obrigação de do mundo animaí-'', Implica dar, com toda a equidade, uma oportunidade ao
reservar à novidade um lugar importante. Assim começa a operar-se a transição peixe cujos hábitos o pescador trata de conhecer. Exige portanto que este
que, a pouco e pouco, acabaria por submeter a prática antiga ao modelo devolva a liberdade às presas demasiado pequenas. Esta actividade quer-se
concebido além-Mancha. indissociável da busca de lugares de devaneio, até de meditação no seio da
A pesca então importada pertence à gama dos rural sports constituídos no paisagem. Integra-se no turismo, como demonstra a prática das fishing trips>).
dealbar da Era Moderna no seio da gentry. Entra na série dos exercícios de ar O turista-pescador tem os seus territórios de eleição: Escócia, Irlanda,
livre destinados a lutar contra a rnelancolia+. The Complete Angler (O Normandia, Suíça; mais tarde, o Canadá e os Estados Unidos. Estuda os
Pescador Completo), de Isaac Walton, publicado em 1653, tivera um imenso costumes dos habitantes. Detém-se para examinar os vestígios antigos, ao
sucessos". Ao longo dos dois séculos seguintes, a pesca à truta - e mesmo tempo que se entrega à sua paixão.
secundariamente ao salmão - verga-se à evolução das modas de apreciação da Esta actividade de natureza aristocrática anda estreitamente ligada às formas
natureza, à dos códigos estéticos dominantes bem como às novas formas de de hospitalidade. O autor de uma obra consagrada à pesca com mosca artificial
turismo e de vilegiatura que estes induzem. não deixa de enumerar os anfitriões que lhe permitiram adquirir a sua
A pesca à mosca artificial baseia-se num prolongado hábito de contacto experiência-é. Na mesma perspectiva, este desporto implica um recurso a uma
com os elementos naturais, adquirido ao longo dos passeios (strolls), das domesticidade específica: quem o pratica faz-se geralmente acompanhar de um
marchas (walks), das curas de ar livre e das caçadas; bem como das formas de porta-rede, a menos que o recrute localmente. Em França, a zombaria sobre os
distracção associadas à moda do jardim inglês e ao gosto pela pintura de pescadores à cana toma para alvo a natureza social da prática nova. Pelos
paisagens. Vem assim ao encontro das convicções científicas dominantes em meados do século, o pescador com mosca artificial que transpõe a porta da
matéria de saúde, nomeadamente do ensinamento de Sydenham. Trata-se, estalagem vê-se, sob o olhar divertido dos clientes, qualificado de mylord pelo
afinal, de uma prática que vai buscar a sua legitimidade a referências antigas. patrão obsequioso.
Ovídeo e Marcial são regularmente invocados pelos autores de manuais. Esta Os praticantes desta pesca desportiva pretendem que ela pareça científica.
pesca desportiva é incompreensível para quem não levar em conta esta Embora não exclua o autodidactismo, baseia-se num saber difundido pelos
completa genealogia. mais nobres canais da vulgarização. Os amadores atentam na so-

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fisticação dos instrumentos muito caros que utilizam e cuja leveza reveja um rigado a vasculhar a terra, a fazer o isco de fundo; pode viajar várias léguas
desejo de luxo e uma preocupação de eficácia. Canas de madeira envernizada, sem nunca sujar os dedos, com uma carteira de moscas artificiais no bolso, uma
canas de viagem, canas retrácteis, linhas invisíveis, carretos - que estão sempre cana de pesca leve na mão e um cesto». Nestes meios, «parte-se para a pesca
a aperfeiçoar-se - constituem a seu ver instrumentos indispensáveis. como quem vai passear, sem que ninguém suspeite, e pode-se pescar todo o dia
Por isso a pesca chamada desportiva está intimamente ligada à indus- sem cansaço, de tal modo a cana é leve»55.
trialização. Constitui um mercado considerável que alimenta um complexo A pesca à mosca é um desporto e quem a pratica um sportsman, quase
circuito comercial. É indissociável da proliferação de lojas de artigos de pesca sempre membro de um dos clubes cuja principal actividade é organizar
e, como vimos, do comércio internacional destes mesmos produtos. concursos de lançamento. Esta formalização e este interesse pela competição
As modalidades de apreciação da natureza que inspiram a pesca desportiva contrastam com os costumes erráticos da pesca tradicional. O que distingue as
implicam eliminar, tanto quanto possível, qualquer manuseamento do sujo, toda duas práticas não deixa de recordar, num domínio muito diferente, o fosso que
esta culinária pegajosa e fétida que está na base das técnicas dos «molha- separa, ao longo do Sena e dos rios da Íle-de-France, os remadores tradicionais
minhocas». O contraste entre as duas práticas é o que distingue o orgânico do dos membros dos rowing clubs nascentes.
artificial. O essencial, em matéria de isco, tem portanto a ver com a habilidade Os adeptos de cada um destes modelos gozam-se reciprocamente. Em
para imitar o insecto. França, a pesca com mosca artificial é durante muito tempo considerada
O Flying Fish recusa a passividade da pesca estacionária a favor do ridícula. Falei já das piadas a que está sujeito o mylord acompanhado ou não
movimento. Nisso está de acordo com o que anteriormente suscitara a pelo seu porta-rede. O sportsman encontra a mesma hostilidade: os agrários
emergência dos rural sports e do turismo. O amador aprecia as correntes fortes. normandos acusam-nos de «pisar» a sua erva; os proprietários dos moinhos de
Pesca ao vento, no meio da água agitada. De certo modo, a nova moda roubar «as suas» trutas na «sua» água56. A maioria dos autores de manuais
assemelha-se à do «banho de lama». O pescador está também perpetuamente adoptam porém uma atitude inversa. Segundo uma série de estereótipos
em movimento. Realiza, ao longo do dia, uma grande excursão. A pesca à estabelecidos nos meados do século XIX, opõem a pesca «estacionária» e suja
mosca tem também a ver, tal como o yachting, com o prazer do obstáculo de velhos franceses ridículos à do inglês com mobilidade, limpo, elegante,
meteorológico superado. Na mesma perspectiva, trata-se, para o amador, de subtil analista do tempo que faz e bom técnico. Por isso a sua preferência vai
pescar «longe e bem». A sofisticação do gesto é aqui essencial. O lançamento para o homem de lazer.
possui uma elegância «que o pescador à minhoca, ao trigo cozido ou à larva Na prática, porém, a resistência à influência inglesa reveja-se tenaz>".
nunca teve»53. Uma subtil mistura de elasticidade e de força define esta «pesca No seio das próprias classes dominantes a nobreza da caça estorva a legi-
nobre e inteligentesãs. timação da pesca desportiva: esta não possui o prestígio da equitação nem o do
A elegância do gesto liga-se à do vestuário e do equipamento. O primeiro yachting. Por este motivo, acontece, nestes meios, o pescador à mosca
deve ser adaptado, especializado, cómodo. O segundo é leve e «pouco disfarçar-se de caçador. Os comerciantes vendem, para esse efeito, estojos em
complicado». «Quem pesca com mosca artificial», indica Kresz Senior em forma de espingarda no interior dos quais é possível introduzir uma cana. «Esta
1847, «tem muito poucas coisas para levar consigo; também não é ob- pesca tem bem poucos adeptos entre nós», indica um técnico em 1883, «e em
cada cem pescadores que encontrar não verá dois equi-

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pados com cana à mosca»58. Este desporto pratica-se ao longo das Gaves dos equipamento nestas práticas. O espírito de competição imposto pelos concursos
Pirinéus, no Sorgue ou no Loir. Pesca-se a truta no Jura, no Ain, em Saintonge, a expensas do lazer e do jogo facilitou a penetração da pesca de lançamento.
na Normandiac'', mas bastante pouco nos arredores de Paris, o que enfraquece a Graças à multiplicação dos clubes e sociedades, este desporto torna-se o meio
visibilidade das novas práticas. de integração num grupo de especialistas. Participa do grande movimento de
No início do século, a chamada pesca desportiva começa porém a estar na associação que caracteriza esta época. Nas povoações, a loja de artigos de
moda. Um pequeno número de aristocratas parisienses decidiram convencer os pesca torna-se centro de difusão de uma prática e centro de uma nova
seus amigos. La Pêche sportive, publicado em 1913 pelo visconde Henry de sociabilidade.
France e prefaciado pelo príncipe Pierre de Arenberg, testemunha esta Convirá determo-nos por momentos neste amplo movimento associativo,
mobilização'v. Nesta data, o Casting Club de França, com sede na praça da intimamente ligado ao que estrutura a caça no país profundo. Desde o início do
Concorde, publica um anuário e um boletim e possui uma biblioteca século XIX subia o sentimento de um despovoamento dos cursos de água, que
especializada. O montante elevado das cotas - 50 F em Paris. 25 na província - a legislação e a regulamentação não bastavam para erradicar. Esta impressão
indica bem que se trata de uma prática de distinção. O Fishing Club e o torna-se certeza durante o último quartel do século. Surge então a necessidade,
Casting Club de França organizam concursos de distância e precisão do vivamente sentida, de agir sobre o poder político para retardar a destruição e
lançamento. Com o correr dos anos, estas competições. cujo modelo é organizar o repovoamento dos rios e ribeiras. O movimento associativo, nesta
importado dos Estados Unidos e de Inglaterra, tornam apreciada «a elegância perspectiva, prova a tomada de consciência dos perigos que corre a fauna.
dos movimentos, a habilidade, a subtileza ou a força que exigem». Os Demonstra a eficácia dos novos processos de alerta. Traduz a atracção
concursos organizados pelo Casting Club são reservados aos amadores, o que excessiva exercida por formas de sociabilidade inéditas; mas não podia provar
equivale a excluir os comerciantes e fabricantes de artigos de pesca. a extensão das práticas. A história do desporto baseia-se, em parte, neste
Nestes meios mundanos, o esforço de organização é estimulado pelo desejo artefacto; ou, se se preferir, neste efeito de fonte. Por outras palavras, a
de proteger as trutas e os salmões. Além disso, acompanha-o a vontade, um produção nova de documentos escritos suscitada pelas associações de pesca
tanto condescendente, de transformar a pesca antiga, qualificada de passiva, não deve levar-nos a subestimar a amplitude de práticas anteriores que não
para a «tornar activa e tributária da destreza, simplificar o seu material, fazer estavam submetidas a qualquer processo de registo.
dela algo de limpo e agradávelevl. como deseja o visconde Henry de France. A ansiedade desperta sempre a diatribe. Os pescadores incriminamõ-, a
Numa palavra, trata-se de substituir o segredo, o truque. a experiência por uma eito, «o envenenamento industrial», os «resíduos» urbanos, o excesso de obras
destreza em tudo desportiva. A transição opera-se pouco a pouco. Uma série de de limpeza e diques, a regularização dos leitos que faz desaparecer as enseadas,
factores contribuíram para este sucesso. () desenvolvimento do circuito a multiplicação de canais e barragens, a irrigação, a cabotagem que rapa as
comercial desempenhou um papel determinante. A eficácia e o conforto do margens e destrói as ovas, o uso de redes cada vez mais mortíferas e a
equipamento foram-se impondo pouco a pouco. Um intenso «réclame» - intensidade da pesca furtiva. Em 1889, a Sociedade Central de aquacultura e
publicidade - deu a conhecer «o artigo de pesca». A este propósito, convém pesca inicia o combate. Cinco anos mais tarde, uma centena de sociedades
sublinhar o peso decisivo do esforçam-se por repovoar os cursos de água. Já em

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2.

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1885 tinham sido lançadas cinquenta mil trutas no Sena, no Mame e nos seus lares. Assim, importa não confundir este prazer com o proporcionado por estar
afluentes='. Em 1909, pela primeira vez, o Fishing Club obtém a condenação no jardim, prática aristocrática e burguesa cuja fruição há muito vem sendo
de um industrial, envenenador de um rio64. É então que a palavra «poluição» analisada com minúcia. O risco é tanto maior quanto, no seio das classes
começa a ser correntemente empregue para designar este delito. Tende a dominantes, simulacros de jardinagem e de criação de animais foram, desde
impor-se a expensas do vocabulário toxicológico. muito cedo, classificados entre as delícias do campo.
A multiplicação dos concursos acompanha a propagação das sociedades em Ao longo do período de que nos ocupamos, esta assimilação da jardinagem
todas as regiões de França. À imagem do de Thouars, organizado pela primeira a uma forma de lazer encontrou, no entanto, uma forte adesão popular66.
vez em 188665, estas competições depressa assumem o aspecto de festas locais Jardinar foi sendo pouco a pouco entendido como uma ocupação escolhida,
ou regionais. Juntam-se às que acompanham a realização de comícios como uma maneira de ocupar o tempo livre, ou seja um prolongamento da
agrícolas. actividade profissional. No início dos anos setenta, quando este tipo de
Convirá evocar rapidamente a complexidade da transição cultural que se foi questionamento começa a ser elaborado, a socióloga Françoise Dubost
operando pouco a pouco em matéria de pesca à linha. A força do modelo interroga jardineiros amadores sobre a natureza do seu prazer. É «para estar
profundamente enraizado na reivindicação das liberdades e no sentimento ocupado», é «um passatempo», é «para encher o tempo livre», «que mais quer
igualitário impediu durante muito tempo a penetração das novas práticas que eu faça?», é o que ouve responders". Mas convém não nos atermos a estas
desportivas. Até bem ao coração do século XX, a antiga pesca dos «molha- declarações um tanto desabusadas que tendem a apresentar a jardinagem como
minhocas», conhecedores dos «bons pesqueiros», detentores de truques, os que um simples meio de lutar contra o vazio das horas. As pessoas interrogadas
gozavam o mylord, continuou a inspirar os amadores. O contributo exterior foi puderam, com efeito, pensar que era mai legítimo definir assim a sua principal
reformulado, adaptado ao gue alimentava o sabor de uma arte popular cuja actividade de lazer do que confessar prazeres cuja futilidade poderia sujeitá-las
extensão e força de sedução são difíceis de medir. De qualquer modo, a pesca à à zombaria do inquiridor.
linha irá impor-se como a prática mais facilmente identificável com as figuras O facto é que a leitura de numerosos trabalhos consagrados à jardinagem
masculinas de um tempo pessoal, tal como pôde ser vivido no seio do povo. A popular leva a pensar que, num quadro proposto, instituído, pelo outro - quer se
jardinagem, tão louvada, tão estudada, surge, a este propósito, como muito trate de quintais operários ou dos lotes com barraca de alfaias - o jardineiro
menos significativa. Qual é exactamente o seu lugar numa reflexão consagrada amador, em função das suas curiosidade , dos seus desejos e da sua nostalgia,
aos usos do tempo disponível? É o que vamos agora examinar. soube inventar ou reformular formas de produção, de consumo e de troca, bem
como modos de expressão de si. Entre 1860 e 1950, trata-se realmente de uma
«invenção da jardinagem em ambiente popular»68.
Compreende-se pois a necessidade de precaução e de especificidade. «A
A felicidade no quintal jardinagem oferece um resumo de todas as ambiguidades das" culturas
populares": É ao mesmo tempo prazer e sacrifício, passatempo e ganha-pão. A
A ideia de que tratar do quintal pode ser considerado uma actividade de horta, espaço de produção, é também um espaço pessoal, onde há
lazer, mesmo uma distracção, é uma invenção tardia nos meios popu-

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bem-estar, tranquilidade-w, É o lugar de muitos prazeres, difícil de rele renciar, é e, segundo Richard Hoggart, quinhentos mil lotes são ainda cultivados na Grã-
certo, na medida em que qualquer tentativa de registo depara. neste contexto, com Bretanha nos meados dos anos cinquenta, se bem que esta prática não tenha
o hortelão a ridicularizar o seu próprio gozo 70. Na hor ta pode cultivar o que gosta cessado de declinar nestas últimas décadas">, Quase todos os governos, lê-se no
de consumir e, se necessário, sacrificar à nos talgia perpetuando os legumes de relatório da Conferência Internacional sobre a utilização dos Tempos Livres
antigamente. O trabalhador (o amador") na sua horta tem ao seu dispor liberdade dos Operários reunida em 1924, se preocupam com o cantinho de terra, as hortas
de escolha. Cabe-lhe criar uma ordem, definir um estilo. Canteiros, filas, e as capoeiras'õ.
resguardos, maciços e bordadu ras constituem marcadores à sua disposição e Nos países nórdicos e germânicos, a horta desde cedo adquiriu o estatuto de
garantem a legibilidade da ... suas opções 71. Aos olhos do seu criador, como aos equipamento social?", Serviu de embrião à casa de férias. Para aquele que dela
do espectador, a horta oferece a apreciação estética e moral do trabalho realizado. aproveitava, tratava-se antes do mais de dispor de um espaço privado que
Dá o prazer de ver crescer belos legumes. Propõe até gozos mais íntimos, cuja facilitasse a apropriação do tempo livre. Parece que em França o quintal popular
profun didade ultrapassa a do simples passatempo alegado pelo hortelão amador foi desde logo dotado de um estatuto simbólico mais autónomo. Participa, além
Faz com que se cruze o tempo dos homens e o tempo vegetal. Nisso, oh serva disso, de um dos mitos fundadores da identidade nacional: o seu êxito manifesta
Pierre Lepape, a horticultura é o inverso do jogo. É a inscrição tiluma totalidade uma das características próprias de um território no interior do qual se imagina que
num domínio atribuído ao lazer72. Assim se explica o ca rácter irreprimível do se pode cultivar de tudo, por toda a parte78.
desejo de criar alguma coisa, considerado por Ri chard Hoggart uma das Acontece que as análises do quintal popular se mostram por demais de-
componentes da cultura do pobret-. senvoltas a respeito da genealogia das representações e das práticas, como se
Por isso a horticultura é uma actividade solitária. «Cava-se sozinho». tal como estivessem resolvidas a negar, neste domínio, as trocas culturais, a esquecer que o
se pesca sozinho. «O prazer da horta pressupõe uma relação pcs soal, exclusiva, indivíduo que pertence ao povo vê o parque do castelo, passeia no jardim público e
entre o inventor e a matéria que ele faz crescer» 74. A so cialidade, aqui, releva do por vezes visita-o, passa todos os dias pela horta do burguês a que muitas vezes
antes - o empréstimo da semente ou do desc nho, o conselho - e do depois - o tem acesso. O modelo do quintal não é criação ex nihilo, inscreve-se numa longa
comentário, o cumprimento, ii censura; mas o acto propriamente criador exclui a história que é também a dos usos do olhar, das formas da arquitectura, das leituras
real participação. É (I que permite considerar a horta uma assinatura do indivíduo da paisagem, das modalidades do poder político e social.
responsável. Estudar a horta na perspectiva de um tempo pessoal não impede de O jardim do Renascimento, subordinado à heráldica, desenhado segundo uma
per ceber, como veremos, que os prazeres que induz ultrapassam largamente os da simbólica floral e olfactiva de acordo com os brasões dos castelos, entra nesta
jardinagem propriamente dita. longínqua ascendência a que importa dedicarmos aqui uma palavra. O mesmo se
Trata-se aqui da França. A escolha pode surpreender. A horta popular não é pode dizer do jardim aristocrático do século XVII, associado a uma ordem
uma especificidade deste país, longe disso. A Dinamarca, a Bélgica. a Alemanha arquitectónica que proclama o domínio do homem sobre a natureza, o triunfo da
serviram aqui de modelos. Em 1926, os Scherben-Gãrten são quatrocentos mil razão, a centralização monárquica e toma possível a realização dos rituais que
além-Reno, portanto, mais numerosos do que em França; definem a sociedade de corte.

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Basta pensar na ordem que reina no interior do jardim do presbitério rural, pósito. Sobretudo, o jardim tende cada vez mais, nestes meios, a integrar-se
rigorosamente sublinhado pelas cercaduras de buxo, para perceber a in- nitidamente na esfera privada, a tornar-se prolongamento do interior. Os
fluência dos modelos antigos. imensos vasos de flores, as fontes, o banco, o caramanchão, a estufa, a
O próprio jardim inglês, nas suas múltiplas categorias - o jardim pai- limpeza das ruas, o respeito pela contorno dos canteiros, a exigência da
sagístico, o jardim pitoresco, o jardim construído - influencia o desenho de monda, tudo obedece aos cânones que regem o interior da casa. O jardim
formas ulteriores, segundo filiações por vezes inesperadas. Elaborada em burguês constrói-se portanto contra a rua. É espaço protegido que se oferece
função de uma mecânica do olhar imposta pela voga do aerismo, esta à satisfação da necessidade de intimidade, ao desejo de leitura solitária, ao
paisagem «artializada», submetida à apreciação da qualidade do ar e do transporte amoroso. Voltamos a encontrar neste microcosmos o «desejo
vento e cujo pitoresco vem da variedade dos cenários disponíveis para re- engaiolado» que caracteriza o parque aristocrático. Além disso, ao abrigo de
flectir os estados da alma sensível, contribuiu também para desenhar os olhares indiscretos podem desenvolver-se aí formas de sociabilidade que
modelos apreciados ulteriormente. O parque paisagístico, onde os limites prolongam os rituais do salão 80. Sem ter em conta este modelo, é difícil
impostos à visão, a despeito da abertura falaciosa sobre a natureza, sim- captar bem a emergência do quintal com barraca.
bolizam a vontade de clausura social daqueles que o fruem, transferiu-se Certos traços do jardim popular reflectem a influência do que então se
para França no despertar do século XIX. O modelo começa então a de- chama jardim de padre - e é apenas um exemplo. Este espaço, em parte
senvolver-se aí com um nítido desfasamento temporal. destinado a facilitar a ornamentação da igreja, nomeadamente a do altar da
A compreensão do jardim popular do século XIX implica muito mais Virgem, contribuiu, a seu modo, para manter e tornar apreciado, sobretudo
levar em conta esta grande divisão que se impõe então entre espaço público no campo, o cultivo das flores e a aprendizagem da decoração floral8l.
e espaço privado. Os grandes parques concebidos para a ornamentação das Mais nitidamente ainda, o jardim popular parece situar-se na confluência
cidades ao tempo do Segundo Império atestam a permanência das teses de três outros modelos, que aqui distinguimos de um modo um tanto
aeristas. Mais ainda do que aqueles que os precederam, são submetidos ao artificial. O primeiro é constituído por um espaço pequeno-burguês de que o
primado da vista 79. O maciço de flores já não tem outra função que a de «jardim de rico» se tornou o protótipo. Oferece, a toda uma categoria de
instalar manchas de cor no desenho das curvas dos caminhos. Vastos indivíduos idosos, a experiência inédita de uma acção exercida sobre a
espaços oferecem-se aos processos de distinção e de ostentação, que natureza vegetal. Ora, a ascensão da categoria social do homem com ren-
correspondem às novas práticas da cidade e aos novos costumes sociais da dimentos e a desta prática correspondem à época de que nos ocupamosê-,
época. Trata-se porém de uma experiência incompleta. O pequeno-burguês jar-
São eles que conferem todo o sentido ao jardim privado de dimensões dineiroêà, viva ou não dos rendimentos, recebe geralmente a ajuda de um
mais reduzidas, um pouco apressadamente qualificado de burguês, cujo homem do povo. Este sacha, planta, monda, arranca e queima. O proprie-
desenho resulta, por sua vez, da confluência de modelos. A tradição aris- tário dá-lhe episodicamente uma ajuda. Rega, à noite. Se necessário, semeia
tocrática e clerical do jardim de flores, a preocupação de auto-subsistência e colhe. A horta é também para ele o lugar de uma permanente lição das
que foi durante muito tempo a de muitos «proprietários», certas práticas coisas, dada às crianças. Para estas, o jardim que protege da rua84 com-
populares introduzidas pelo jardineiro concorrem para este desenho com-

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pensa o seu isolamento pela revelação dos fenómenos da natureza. Aparar lhes pareceu poder retardar a integração na cidade. A «pequena criação»,
as cercaduras contribui, por sua vez, para a aprendizagem da ordem: prc que continua a ser promovida, é certo, pelos defensores da horta popular até
serva do tédio o tempo das férias grandes. Num jardim destes elas podem ao período entre guerras, encerrava também ameaças. Contribuía para a
ter brincadeiras - dir-se-ia hoje ter actividades - em que a planta, a flor. até o proliferação dos coelhos e para a multiplicação do roubo de animais.
animal constituem os principais elementos. O quintal operário é uma Favorecia a construção de barracas. O espectro da barraca rural e do bairro
criação social cujos autores receberam, com toda a probabilidade, este tipo de lata perfilava-se no espírito de muitos destes autores, hostis à mutação do
de aprendizagem, o que os leva a decretar, em benefício de outrem, a con- «caramanchão» do jardim operário em habitação permanente. Acrescente-se
figuração de prazeres que outrora sentiram. que estes decisores perceberam que convinha não subestimar a vantagem de
O quintal do camponês e do artesão rural constitui um modelo muito se ter conhecido anteriormente o trabalho da terra. Lavrador não significa
diferente. Infelizmente, nunca foi objecto de estudos85, passada a Re- jardineiro. O primeiro contenta-se geralmente com práticas de cultivo de
volução. Embora corresponda a uma perspectiva de auto-subsistência. está uma grande simplicidade. Os seus conhecimentos botânicos são muitas
muito mais francamente que o primeiro sujeito ao compromisso com o vezes medíocres. A intenção que o leva a estabelecer uma horta no coração
circuito mercantil. Alarga a gama dos produtos que o lavrador pretende de grandes espaços não corresponde exactamente à que o leva a cultivar a
reservar para venda. Um quintal deste tipo, muitas vezes, mal se destaca do parcela ínfima que constitui um quintal operário.
cultivo em pleno campo. Nem sempre é fechado. Os seus produtos, pouco Nos terrenos disponíveis dos arrabaldes, o quintal popular aproxima-se
protegidos, oferecem-se à roubalheira. Facilita portanto a aprendizagem de da horticulturas". Os conflitos que por vezes nascem desta proximidade há
um tipo de transgressão juvenil. Frequentemente. o jardim camponês muito são mencionados. Os produtores hortícolas, ao contrário dos jardi-
desdobra-se. Perto da casa, no prolongamento da cozinha, cultiva-se as neiros amadores, possuem uma técnica de tipo artesanal que assume a forma
alfaces, as ervas aromáticas, as plantas medicinais. as flores que se quer ter de uma ciência aplicada. Os espaços onde cultivam produtos destinados ao
à mão, bem como as primícias ou os produtos delicados que, como os circuito comercial são muito mais vastos do que as minúsculas parcelas de
tomates e certos legumes frescos, necessitam de uma vigilância especial. que dispõem os seus concorrentes. No entanto, os conflitos que estalam aqui
Esta horta, tal como a capoeira, é das mulheres. Mais afastada da habitação e além não devem ocultar o jogo de influências, a evidência das trocas, as
há outra horta, esta masculina. Aí são cultivados os produtos de longa muitas imitações, nem que estas sejam reformuladas. O modelo hortícola
conservação, nomeadamente cenouras. ensina ao amador as práticas do cultivo intensivo ou, se se preferir, as
"-
f b 86
formas de uma meticulosidade que anda a par com a produção em massa.
couves, eíjoes e atatas . Os horticultores difundem o culto da precocidade, o prestígio das primícias.
O modelo proposto por este jardim de lavrador foi sendo,
Sob a influência deste modelo, o bom hortelão tende a ser entendido como
sucessivamente, exaltado, temido e escarnecido pelos promotores da horta aquele que, na Primavera, começa a colher antes dos outros. Os produtores
operária que, animados pelo temor de ver os imigrantes vindos do campo hortícolas vulgarizam também práticas de cultivo que investem numa
romper total e brutalmente com a terra e os seus valores, começaram por
verticalidade bem adaptada às pequenas dimensões do quintal operário. As
desejar a persistência das práticas familiares. Viam aí um antídoto para o
árvores de fruto em espaldeira, os feijoeiros estacados
êxodo rural e um meio de acalmar a sua ansiedade. Mas bem depressa a
perpetuação dessa técnica
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que, é verdade, não são desconhecidos dos agricultores do campo, encOIl para que o seu tipo de vida, os seus hábitos intelectuais e morais lhe criam o
tram aqui um novo terreno de eleição. gosto»88. É inútil oferecer-lhe aqueles para que não está preparada. A boa
medida não é portanto procurar o «que seria interessante a priori instituir para
ela, mas adaptar e corrigir insensivelmente o que ela costuma apreciar».
As metamorfoses do «cantinho de terra» Compreende-se que a jardinagem se desenhe, pelo menos numa primeira fase, a
que inaugura a «lenta modificação dos hábitos», como a forma de lazer que
No termo da evocação das muitas influências que impendem sobre o merece ser promovida acima de todas.
quintal popular, convém tentar esboçar uma tipologia. O jardim operário O jardim constitui, para estes teóricos da aprendizagem do tempo livre, um
propriamente dito - que não deve confundir-se com o precedente, de que é dos melhores meios de adquirir o sentido do lazer, pressuposto indispensável ao
apenas uma das formas - tem sido objecto de muitos trabalhos. Tomamo-lo novo «arranjo de vida» proposto ao trabalhador. Muitas vezes a descrição toma-
aqui como exemplo de lazer promovido, pelos mesmos motivos da leitura, da se idílica. Georges-Picot acrescenta: «Nunca a vida pareceu tão doce nem a
arte popular e da prática desportiva. Entra no catálogo reafirmado por ocasião humanidade tão boa, nem Paris tão bela como no caramanchão dos quintais
dos inquéritos consagrados à «utilização dos tempos livres dos trabalhadores», operáriosvê''.
nomeadamente a seguir à votação da lei que institui o dia de oito horas (1919). Estes jardins constituem micro-sistemas concebidos segundo um imaginário
Com toda a evidência, é grande o risco de focar assim a atenção em actividades social, hoje bem conhecido. Em 1903, a Liga do Cantinho de Terra e do Lar,
desejadas por outrem. Não seria de somenos desqualificar certos prazeres fundada seis anos antes pelo abade democrata Jules Lemire'v, conta entre os
populares a pretexto de que foram sugeridos, organizados, até impostos do seus oitocentos aderentes eclesiásticos, beneméritos, políticos, na sua maioria
exterior. democratas-cristãos, médicos, professores. Esta análise dos efectivos deixa
As intenções, tal como as tácticas, dos promotores dos lazeres do tra- claramente perceber a configuração social do círculo inicial em cujo seio se
balhador foram desde o princípio enunciadas com toda a clareza. Por exemplo, elaborou, em França, esta forma de lazer. O historiador é aqui esmagado pelo
Borderel e R. Georges-Picot declaram a este respeito, em 1925: «Há petição de peso dos documentos'". O quintal operário apresenta-se como um maciço de
princípio em supor que o lazer existe em si, na sequência de uma diminuição muitos discursos dentro do qual falta quase por completo o do principal actor: o
do tempo de trabalho e independentemente de um arranjo de vida em que possa operário jardineiro. Este silêncio resulta de uma dupla lógica. Não lhe foi dada
ser apreciado como tal [ ... ] Na vida operária, que em geral se divide entre a palavra. Além disso, como vimos, o amador sente, ainda hoje, uma grande
trabalho, distracção exterior e repouso completo, o lazer real, isto é, uma meia dificuldade em falar da sua prática. A variabilidade do vocabulário botânico
actividade livre, pessoal - reconhece-se aqui o modelo do otium transposto - ou conforme as localidades bem como a vontade deliberada de o amador se
uma vida social regular, não tem lugar, porque não se enquadra ou enquadra-se depreciar e de rir de si próprio contribuem para explicar esta opacidade.
mal [ ... ] [É pois preciso] organizar um enquadramento que ele próprio [o Sobre esta inesgotável fala das fontes institucionais, as ciências humanas
operário] preencherá conforme os seus gostos e à medida da sua evolução vêm construindo, há uns vinte anos, um outro edifício discursivo, animado ora
intelectual e moral... » Ora, «os lazeres da classe operária nunca serão mais que pela vontade de desmascarar uma intenção de domínio que, mui-
aqueles

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ALAIN CORBIN

tas vezes, foi confessada pelos iniciadores da instituiçãov-, ora pela de des- nista» que visa manter, ou melhor, transpor valores da comunidade aldeã, cujo
cobrir, na selva das práticas quotidianas, os traços de uma cultura operária ou carácter tradicional acentua. Numa perspectiva vizinha, o quintal é apresentado
de uma cultura do pobre mais ou menos autónoma'ô. Tudo isso origina hoje o como um instrumento eficaz de moralização da classe operária. Tem a função
sentimento de uma dupla imposição e, assim, de um duplo despojamento. de lutar contra a taberna, o bordel, a reunião pública e a greve. A solidão do
Impõe-se então a necessidade de uma óptica de compreensão ou. se se preferir, jardim não pode, ao que se pensa, deixar de favorecer a consciência de si e o
de uma escuta das emoções, dos prazeres e dos sofrimentos dos principais progresso do indivíduo. Tal como é imaginado, este local de preservação está
actores. Nos meios burgueses preocupados em organizar os lazeres dos intimamente associado à ideia de «familiarização» que anima o meio a que
trabalhadores, o quintal operário aparece portanto como o modelo da pertencem os promotores. A reunião familiar no quintal constitui um
actividade «livre e responsável», do «trabalho inteligente e pessoa1»94. Além indispensável topos de todas as obras que à época lhe são consagradas.
disso, o desejo de ver o amador consagrar-lhe as suas tardes de domingo Acrescente-se que a horta pode, se necessário, ser escola de economia
incitava o clero católico a considerar este passatempo uma «ocupação» e não doméstica. Aconselha-se a esposa do jardineiro a registar todas as economias
um trabalho. Nesta mesma lógica, importava que o quintal operário não realizadas graças a este lazer benéfico?". Entre as duas guerras, a horta operária
estivesse ligado ao circuito comercial. é muitas vezes apresentada como um remédio para a vida cara. Este quintal
destinado ao pobre e que figura, pelo menos inicialmente, como obra de
Um sistema complexo de representações ordena a figura desta forma de
beneficência facilita a prática da caridade e da solidariedade. O bom hortelão
lazer, que sofreu a influência das teses higienistas e sanitárias. Cultivar o
deve cavar o terreno do seu vizinho doente ou o da viúva carregada de filhos.
quintal constitui desde logo um bom meio de apanhar ar, longe dos miasmas da
A Liga do Cantinho da Terra e do Lar não é a única obra deste tipo.
cidade. A horta tem a função de travar os três grandes flagelos biológicos que
Muitos são os quintais de fábrica que correspondem a uma intenção, aber-
são o alcoolismo, o perigo venéreo e a tuberculose. Sanatório em casa com os
tamente reconhecida, de fixação e de perpetuação da mão-de-obra. «Um outro
quintais operários, tal é o título de um livro publicado pelo doutor Louis
resultado feliz [desta instituição]», lê-se num relatório apresentado em 1922 e
Lancry. Aos olhos dos seus promotores, na sua maior parte católicos, o quintal
consagrado aos quintais operários de Montluçon, «foi estabilizar o operário que
aproxima o trabalhador de Deus. Impõe a submissão aos ritmos cósmicos e
se afeiçoa à sua fábrica e ao seu quintal. São poucas as localidades em que o
biológicos. Permite admirar a criação. Pode transformar-se em lugar de
operário é tão estável; todos os anos, são muitas as medalhas de honra do
contemplação. O quintal operário tem também a função de assegurar
trabalho; gerações de operários sucedem-se na mesma fábrica ... »98. As
simbolicamente a manutenção de uma ordem antiga. Recorda um passado
empresas mineiras, as sociedades de caminhos de ferro, algumas empresas
próximo que se apaga. Desvia da revolução e das teorias subversivas em
metalúrgicas esforçam-se por promover esta forma de lazer. Põem à disposição
proveito de um espírito de amor e de concórdia social. Georges-Picot declara
do operário um quintal pegado à casa ou propõem-lhe alugar um nas
portanto: «Cada um dos nossos grupos de jardins é uma ilha sólida de defesa
proximidades. Em 1922 calcula-se em cento e sessenta mil o número de
social e nacional-v>.
quintais operários cultivados e estabelecidos em todo o território. Oitenta e oito
N a roda do abade Lemire, o quintal operário é inicialmente visto corno
mil deles pertencem a empresas minei-
uma via de acesso à propriedade. Proporciona «a ilusão de estar no que é
nosso»96. Obedece à ideologia do retomo à terra e ao movimento «terra-

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HIST6RIA DOS TEMPOS LIVRES

ras e dezasseis mil e setenta e seis foram criados por oitenta e nove em presas
tureza da instituição. Entre 1896 e 1950, o quintal operário vai-se tomando a
recenseadas pelo Ministério do Trabalhof".
pouco e pouco «o quintal dos operários» 103. No período entre guerras, os
O quintal operário tem leis 100. No interior do seu espaço rigorosamente
detentores de parcelas emancipam-se das ideias moralizadoras iniciais ao passo
balizado, as parcelas são numeradas. Os organizadores mandam afixar a~ suas
que os promotores, e o próprio abade Lemire, abandonam a figura de um
ordens. Os responsáveis vigiam os comportamentos. Se necessário, infligem
quintal operário em proveito da de um quintal de família 104. Os actores
sanções. O cultivo obedece a normas precisas. O hortelão deve adoptar um
consideram-se agora aderentes de uma associação e já não protegidos por uma
vestuário respeitável e manter boas relações com os seus vi zinhos. Participa na
obra de beneficência. O jardim e a jardinagem são cada vez mais nitidamente
conservação das partes comuns. Concursos periódicos mantêm a emulação.
concebidos como um lugar e uma actividade de descontracçãolOS.
Incidem sobre a qualidade dos legumes, a sumptuo sidade de decoração floral,
É difícil, através dos documentos da obra, perceber bem o que se pratica
a manutenção das ruas, o encanto dos «caramanchões». Estas competições dão
realmente no interior das parcelas. No entanto, levar em conta os regulamentos,
ocasião a pequenas festas. Por vezes, um especialista de horticultura dá cursos
ignorá-los ou recusá-los terá suscitado um novo uso da horta e conduzido ao
aos hortelões amadores. Os or ganizadores distribuem gratuitamente panfletos
progresso de formas inéditas de lazer? Os inquéritos orais, infelizmente
e brochuras. Em suma, a história dos quintais operários é sobretudo a de uma
posteriores em algumas décadas ao período que nos interessa, permitem, não
obra construída com a ajuda dos documentos habituais neste tipo de instituição.
sem risco de anacronismo, enunciar algumas hipóteses. Nestas hortas - como
Esta relativa profusão de vestígios traz o risco de nos levar a sobrestimar a
num certo número de outros quintais populares - as práticas de cultivo baseiam-
importância desta forma de assistência que é apenas um dos elementos do
se num saber de forma enciclopédica, efeito de receitas justapostas 106. Isso
quintal po pular: aí voltaremos. O mesmo se pode dizer, a uma escala muito
contribui para explicar a inércia dos costumes, a força de resistência durante
diferente, da importância que lhe é concedida no âmbito dos inquéritos
muito tempo oposta pelo quintal popular ao progresso científico; e isso a
internacio nais promovidos pelo BIT.
despeito das tentativas de ensino hortícola.
Falámos do jardim desejado, organizado, vigiado. Resta considerar o
Nestes meios, a jardinagem permanece uma actividade sexualmente in-
jardineiro e a jardinagem, bem como o destino destas obras. Em França, elas
definida. Tende porém a masculinizar-se com o correr dos anos. A seguir à
surgem no início da década de 1860. São então estritamente localizadaslOl.
votação da lei que instaura o dia de oito horas, a crer num inquérito realizado
Assim, a fundação, em 1896, da Liga do Pedaço de Terra e do Lar é
pelo Ministério do Trabalho entre 1920 e 1923, apresenta-se mesmo como uma
geralmente considerada um verdadeiro ponto de partida. O número de quintais
actividade característica dos homens adultos. Os jovens preferem-lhe o
eleva-se lentamente até à instauração do dia de oito horas de trabalho (1919).
desporto, a aprendizagem, os passeio de bicicleta, as «recreações artísticas» e a
Cresce em seguida muito acentuadamente antes de estagnar. por causa da crise,
procura de parceiro sexual-v". São, na sua maior parte, operários pais de família
durante o decénio que precede a Segunda Guerra mundial. Os anos do conflito
quem, após o emprego, monta a bicicleta e vai trabalhar na horta. Ao sábado
correspondem a um novo período de crescimento. ao qual se segue um declínio
reúnem-se para cultivar os seus legumes mas também para jogar às boules,
regular102.
fazer uma patuscada e beber um copo, sob
A evolução da quantidade é acompanhada por uma modificação da na-

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o caramanchão, que substitui o café. A exemplo da pesca à linha, o culti vo da preensão. Muitos habitantes das cidades e vilas, que ignoram as instituições do
horta nada tem de erótico. É, repita-se, muitas vezes apresentado como quintal operário, nem por isso deixam de saber jardinar. Há que evitar
antídoto do deboche. A jardinagem prepara bons maridos ao mesmo tempo que minimizar a difusão de uma técnica assente na transmissão oral, confirmada
consola ou regozija os velhos. Nesta época e fora das grandes cidades. o pelo autodidactismo, aperfeiçoada na escola 112 e na leitura de numerosas obras
circuito de distribuição dos legumes frescos é muito pobre. Para o pai de sobre jardinagem que mereceriam um estudo sistemático.
família, a horta constitui por isso uma forma de participação alimentar que se Com a extensão dos arrabaldes, este saber desenvolveu-se. Em Limoges,
inscreve em simetria com as compras femininas. Ao mesmo tempo. a nas zonas suburbanas onde se instalam os operários das porcelanas vindos do
manutenção e utilização dos produtos do cercado facilita a aprendizagem campo, o aumento desta horticultura citadina data dos meados do século
culinária das raparigas'vs, XIX1l3. Na zona de Paris, é característica do período entre as guerras. Os
Mas claro que o essencial não está aí. O quintal operário, tal como outros hortelões amadores começam a utilizar, de um modo efémero ou até
jardins populares, proporciona prazeres que ultrapassam em muito o simples intermitente, terrenos abandonados ou, mais frequentemente, à espera de
cultivo109. Dá azo a uma expressão da personalidade que é, ao mesmo tempo, loteamento. Beneficiam, neste caso, de uma temporária tolerância que permite
resistência ao produto estandardizado. Permite o desenvolvimento de formas uma expansão anárquica do número de parcelas que contradiz o rigor da
de sociabilidade baseadas no convívio e numa gastronomia de certo modo organização do quintal operário.
imediata. O prestígio dos «produtos da horta» é constitutivo da cultura sensível Um mosaico de hortas e pomares, cuja aparência varia conforme o estatuto
dos Franceses. As trocas de sementes, de plantas, de utensílios, de conselhos, social do amador que os cultiva, conforme a sua profissão, conforme os seus
de olhares críticos, as colheitas em comum, as ajudas recíprocas sancionam gostos, conforme as tradições locais, constitui- e no interior e nas imediações
formas inéditas de vizinhança. No período entre guerras, a antiga excursão ao das cidades e vilas. Estes espaços cultivados têm as sua denominações próprias:
campo em família é reformulada segundo a figura dos «ricos domingos». Desta jardim modelo do professor primário, jardim do padre, de que já falámos, horta
vez num lugar privado, mas de convívio, situado na proximidade dos grandes do guarda-linhas que se alonga, em fila, pelas vias férreasí t+, horta do
caminhos que conduzem à floresta ou às margens de um lago, pode-se «pintar portageiro, inicialmente situada perto das barreira de portagem, quintal de
a manta, fazer barulho, rir e cantar-Uv, ao abrigo da vigilância dos pais e das marinheiro, quintal de operário. É difícil saber e todas estas denominações
comadres do bairro. A presença de uma pequena capoeira justifica, se correspondem a diferentes práticas de cultivo, mas elas atestam, pela sua
necessário, ir ao campo apanhar «erva para os coelhos». Mas, ter-se-á já própria variedade, uma idade de ouro da horta que o talhão com barraca
percebido, estes novos prazeres do quintal operário são também os do talhão propriamente dito veio encerrar tardiamente.
com barraca, que passamos a examinar. Este não possui a mesma autonomia dos precedentes. Serve para enquadrar
Sabe-se quanto ele pesa ainda nas práticas do tempo pessoal. Infelizmente, a casa. Constrói-se em função dela. Muito mais que o quintal operário, revela-se
por causa da sua complexa genealogial!t, é muito difícil de captar. submetido aos modelos sugeridos por uma imprensa especializada. É mais lugar
Contentemo-nos em traçar as suas grandes linhas. Importa antes do mais de expressão pessoal do que de demonstração de técnica. Ao longo das décadas,
evocar um período de anarquia e de proliferação, indispensável à sua com- tende a impor-se uma divisão quadripartida do espaço que pode ser lida como
uma compressão paradoxalmente com-

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plicada do espaço do jardim burguês. Somos assim levados a distinguir, na bons, comer ao ar livre sem ser visto da rua. Se necessário, pode-se acender um
parcela que enquadra a barraca, um jardim trabalhado, indispensável à fogo sumariamente instalado - o churrasco é mais tardio. Esta parte do espaço
constituição das três outras partest->. devolvido ao lazer familiar é também uma zona de recreio para os mais
As intenções que presidem ao desenho do talhão com barraca levam a pequenos. No período entre as guerras, quando o bricolage, na sua pré-história,
relegar, até a esconder, a horta nas traseiras da casa. A lógica ostentatória da se baseia na recuperação, este espaço de convívio entra em competição com
construção incita, por vezes insidiosamente, a uma desqualificação das uma zona de acumulação, de armazenamento e de reparações, cuja aparente
tradições populares de cultivol16 em proveito de sinais de modernidade que desordem pode ser fonte de tensão no interior do casal.
indicam uma nova relação social. A parte à frente da barraca é reservada a um Quanto à horta, relegada para trás do pavilhão, o seu recuo está longe de ser
trabalho de aparência. O canteiro - tardio -, a sebe decorativa e o murete, maciço e linear. A sua extensão durante e a seguir à Segunda Guerra mundial,
substitutos do muro do jardim citadino da burguesia, a profusão, até excessiva" até no interior do jardim burguês, demonstra a sua capacidade de resistência; e
de plantas de prestígio - entre as quais o indispensável cedro azul-, o poço não sabemos bem qual foi o efeito que teve sobre ela o aumento do número de
artificial, os moinhos minúsculos, os pneus pintados, os anões constituem um reformados durante a primeira metade do século. Tal como outrora a do quintal
espaço subtilmente arranjado, que se pretende um espectáculo agradável operário regulamentado, mas de um modo mais subreptício, a qualidade da
quando visto do interior e um prestigioso sinal da posição social quando visto horta do jardim com barraca continua a situar o seu proprietário na hierarquia
do exterior. A exiguidade do espaço impõe aqui uma miniaturização que era já moral que se estabelece no interior do bairro. A recompensa gustativa é apenas
a da cabana e do caramanchão do quintal operário. um dos benefícios do jardim bem cuidado. Há outras, estas simbólicas. O atraso
Esta parte do jardim induz uma forma de lazer, distinta do bricolage e e o fraca so das culturas continuam a ser sinais de desonra, quando não
totalmente consagrada à expressividade. O jardim com barraca abre-se ao constituem indícios de preguiça.
desejo de domar o espaço com a ajuda de marcadores, muitas vezes efémeros. Mas tudo isso não passa de considerações pouco seguras que relevam mais
Estes podem parecer heteróclitos, grotescos, até monstruosos ou, pelo do programa de pesquisa do que do balanço. Uma conclusão se impõe, porém:
contrário, miniaturizados em excesso, na medida em que, pelo menos por maior que fosse o desfasamento que se estabeleceu entre as intenções dos
inicialmente, parecem escapar a todos os cânones estéticos e traduzir uma promotores do quintal operário e as práticas de jardinagem popular e fosse qual
tentativa desajeitada de procura das formas-!". fosse a opacidade destas últimas, nem por isso elas deixam de ser um dos dados
Uma outra porção do espaço tem por função prolongar a barraca. A sua fundamentais da invenção dos usos do tempo livre. A jardinagem popular
constituição reporta-se ao mesmo desejo que levou, em França, à proliferação apresenta-se como um objecto de extrema ambiguidade. Para uns, tem a ver
do rés-do-chão elevado, moda arquitectónica que permite, nomeadamente no com as relações com a divindade e com considerações de ordem ética, para
Verão, descansar as peças nobres e fazer descer a vida quotidiana ao nível da outros com processos de distinção e de ostentação, para outros ainda com as
cave. Antes ainda de as lojas especializadas imporem as noções de «cantinho formas de dominação, real ou simbólica. Participa simultaneamente da história
de jardim» e de «sala-jardim», sob a influência de modelos vindos de além- do trabalho e da do
Atlântico, as traseiras da casa permitem, nos dias

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lazer, da luta contra o tédio, das tácticas de sujeição do desejo e de busca do hoje de «bricoler» [«artilhar»: NT] uma motorizada. Desde os meados do
prazer. Mas é um denominador comum. No interior da clausura do jardim, seja século XIX, a intermitência que desqualifica os trabalhos de «amador», do
ele qual for, oferece-se uma figura de felicidade íntima que releva sem dúvida «faz-tudo» não deixou de induzir, pelo contrário, o reconhecimento de uma
dos comportamentos de regressão, isto é, da convicção de que é possível certa habilidade e de uma inegável capacidade de adaptação aos problemas que
encontrar qualquer coisa de autêntico nestas actividades que reatam os prazeres se colocam na vida quotidiana.
da infância. Esta semântica complexa tem as suas funções. Inicialmente, participa das
tácticas de descrédito que visam o amadorismo e a mobilidade, quando estes se
referem ao homem do povo. Associar intimamente o bricolage à actividade
o bricolage: da arte doméstica ao sacrifício do tempo manual tem a ver, além do mais, com o etnocentrismo e reflecte o imaginário
social das classes dominantes. É lógico e tranquilizador formar uma
Tratar do bricolage numa obra consagrada ao tempo livre comporta um representação do operário, fora do seu trabalho, como um indivíduo
risco de anacronismo. Risco tanto maior quanto o desenho deste tipo de espontaneamente entregue, nem que seja sob uma forma degradada, a um tipo
actividade evoluiu muito rapidamente. Esforçar-nos-emos pois, aqui, por situar de actividade que define toda a sua existênciaüê. Melhor ainda que a
a emergência desta noção e traçar em grandes linhas as fases que ritmam a sua jardinagem, esta inversão espontânea dos sinais do trabalho pode parecer um
história. Mais uma vez, ficaremos pelo caso francês, esforçando-nos por remédio adequado aos riscos da vadiagem.
detectar as influências que se exerceram sobre ele. No período entre guerras, o bricolage beneficia, além do mais, da crescente
O uso dos termos «bricole» e «bricoleur» precedeu em muito o do termo dignidade reconhecida ao trabalho operário 1 19 e da bu ca de tudo o que tenha
«bricolage». Ademais, o Trésor de la langue française refere o emprego de a ver com uma cultura considerada popular. Sendo assim, acentua-se a
«bricoler» em 1859. Este verbo significa então executar, sem grandes cuidados hesitação entre depreciação e exaltação, em suma, a ambiguidade é perceptível
e conforme as necessidades, trabalhos menores cujo resultado tem pouco valor. ao longo dos anos quarenta. A título de exemplo, abramos um livrinho
Quando se torna de uso corrente, ao longo dos anos vinte, o termo «bricolage» publicado pela imprensa operária e destinado aos adolescentes da JOe. Intitula-
herda estas referências implícitas à insignificância e à intermitência que o se Viens bricoler! Pertence a uma série em que as outras obras são consagradas
tingem pejorativamente. Bricoler é nesse tempo trabalhar sem arte, «como ao canto, ao desporto, aos jogos, ao campismo. O bricolage conserva a sua
amador»: o emprego metafórico da palavra no campo das ciências humanas coloração pejorativa: «Já deves ter ouvido o teu pai ou algum operário dizer,
carregou-se depois com este tom depreciativo: o «bricolage intelectual» - como falando de alguém: "esse, é um bricoleur" . Quer isso dizer um indivíduo sem
qualquer bricolage - acaba precisamente de adquirir a sua carta de nobreza na profissão, que "toca a tudo". Na vida, não sejas" bricoleur" , aprende um
medida em que se associa à imaginação, à inventividade, à personalização de ofício, um verdadeiro ofício, um bom ofício - dez ofícios = onze misérias (sic).
uma busca e não apenas à incerteza conceptual. Ao longo das últimas décadas - Mas para já, à quinta-feira ou à noite, depois da escola, com os teus amigos,
o que ultrapassa o período estudado aqui - foi adicionada a noção de aprende a bricoler, isto é, a fazer toda a espécie de coisas com seja o que
falsificação, o que veio complicar o significado. É neste sentido que os jovens for»120; e isto para mais tarde poder organizar o lazer familiar para que haja
falam alegria no lar.

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Durante as décadas seguintes, o bricolage vai adquirindo, a pouco e pouco, importância concedida aos ritmos temporais.
a sua actual nobreza, enquanto a sua figura e as suas práticas c modificam Há outra maneira de abordar o vínculo que une bricolage e lazer: é recusando
profundamente. No início dos anos oitenta chega a constituir um verdadeiro afectar o primeiro a uma sequência temporal exacta. Para alguns122, o
estilo de vida. É esta série de metamorfoses que constitui aqui o nosso objecto. bricolage é uma maneira de ser. Monopoliza o t~mpo. O «verdadeiro bricoleur»
Querer integrar esta história numa reflexão sobre as representações c os exerce também na fábrica ou na oficina. E animado por uma «disposição de
usos do tempo livre não será dogmático? É isso que temos que considerar espírito» que lhe permite transformar tanto o tempo de trabalho como o tempo
agora. Todos os que, entre as duas guerras, se fizeram organizadores dos doméstico em tempo para si. O "verdadeiro" bricolage é uma maneira de ver o
tempos livres dos trabalhadores reconheceram que o bricolage pertence a esta mundo que se adquire ao longo de toda uma infância operária». Pressupõe uma
categoria; aí voltaremos. Por outro lado, para o «bricoleur de domingo», para o aprendizagem do olhar, pronto a captar o objecto recuperável. Implica o hábito
«quadro de empresa bricoleur», esta actividade constitui, hoje em dia, uma de não usar o que é novo. Exige um conhecimento precoce das ferramentas e de
incontestável ruptura. O tempo que lhe consagram difere radicalmente do do certas tácticas de arrumação. Institui uma relação específica com o objecto
seu trabalho. man~facturado, desafio aos condicionamentos e às limitações que este impõe. E
Nas conclusões de um inquérito oral realizado em 1985, Philippe Jarreau desejo de desestandardizar, depois de personalizar. O que leva a desmontá-lo e a
também não contesta a afectação do bricolage ao tempo livre121. Os indivíduos provar deste modo uma total ausência de fetichismo a seu respeito. Assim
que interrogou consideram o «bricolage de instalação» uma obrigação, uma entendido, o bricolage ultrapassa em muito a simples actividade manual. «O
limitação, um dever e, sobretudo, um sacrifício de tempo. A seu ver, «é lazer bricoleur calcula, compara cotas»; lê revistas; «desenha [ ... ] esboça planos que
sacrificado», ou mesmo férias massacradas. A pressão temporal que se exerce reproduzem o sistema existente e esquematizam o futuro» 123. Mais
sobre eles - com muito mais peso do que pensavam os «amadores» de outrora - nitidamente ainda que a jardinagem, o bricolage é uma maneira de manifestar
impede-os de lhe conferir outro estatuto. «O bricolage», afirmam vários gostos e, por isso mesmo, de enobrecer o indivíduo. «O bricolage é sobre
interlocutores, «seria um prazer se tivéssemos mais tempo». Este sentimento de manejar símbolose--".
constrangimento alimenta o sonho de «quando isto estiver acabado». O É tão grande a distância entre o bricolage dos anos vinte, período da
bricolage só indirectamente é associado ao lazer; quando muito, permite fazer difusão do termo, e esta actividade capaz de monopolizar o tempo, tal como foi
economias graças às quais é possível «ter dinheiro para férias». Perante isto, os analisada em 1991, que se impõe a necessidade de, pelo menos esboçar, este
sentimentos são aqui mais confusos do que se poderia pensar por este tipo de percurso complexo.
respostas. O bricolage continua a ser uma noção muito ambígua. À pergunta Consideremos o discurso dos que, entre as duas guerras, sublinham o
«Porque faz bricolage?» 51 % dos homens e 27% das mulheres interrogados imperativo de disposição racional dos tempos livres do operário para evitar a
respondem que o fazem «por gosto», 64% e 30% pelo desejo de economizar, vadiageml->, prelúdio à vagabundagem e à prática do vício. «A maior parte
18% e 6% por quererem qualidade, 18% e 10% para obter rapidez. Isto atesta a [dos operários]», escreve Edmond Labbé em 1928, «sentem que lhes falta uma
promoção desta actividade na ordem das representações e a nova ciência dos nobres lazeres. O homem desocupado, que fica a matutar em casa e
se aborrece, adivinha que está privado de riquezas desco-

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nhecidas. Se tiver ocasião, descobrirá um reino maravilhoso, as pequena~ artes Nesta perspectiva um tanto idílica, convém «interessar o trabalhador na
que permitem embelezar a casa, um jogo de ar livre, as artes, bel ~ construção de pequenos móveis com belas linhas: a prateleira, a mesa de
, livros» 126. Os membros das instituições internacionais que se debruçam sobre trabalho, a escrivaninha. Devolver-lhe o amor pela madeira maciça que se
este problema ao longo dos anos vinte vêem-se confrontados com um dilema. trabalha de raiz; os meios de encausticar, encerar, envernizar, forrar, pintar, etc.
A necessidade de organizar o lazer alheio depara com a vontade, vivamente [ ... ] Ensinar-lhe, pois ele já não sabe, que cor canta numa parede [ ... ] terá que
manifestada por alguns governos, nomeadamente o do Reino Unido, de evitar apreciar as fachadas floridas, as sardinheiras que caem em cachos, as petúnias
controlos excessivos. Trata-se de respeitar o trabalho «espontâneo e livre», de flores de veludo»132. E Edmond Labbé escreve por sua vez: a propósito
realizado «por gosto», «como distracção física ou exercício do espírito»127 ao desta habitação: «Crie-se um ambiente verdadeiramente operário, não uma
mesmo tempo que se condena o trabalho suplementar efectuado depois de sair decoração de luxo, capaz de falsear as ideias»133. Também neste domínio a
da fábrica ou da oficina. noção de cultura operária deve muito a este tipo de projecto que as análises se
A solução parece ser estimular o cultivo da horta e o arranjo da casa. esforçaram durante muito tempo por desmascarar, ao mesmo tempo que
O desejo de ver o lar ocupar «as horas de lazer» inspira os especialistas. Aliás, tentavam conciliar o que ele tinha por finalidade produzir e o que efectivamente
repetem, a casa basta para excluir qualquer uso real do tempo livre. Defende-se produzia por um jogo de conformidade com a imagem imposta. Este bricolage
um certo bricolage, adaptado a esta ideologia. Constitui 'a vertente masculina poderia lançar, pensavam alguns, uma ponte entre «os ofícios e as classes». O
da arte do lar, o simétrico incompleto desta arte doméstica cuja aprendizagem mesmo Labbé exalta, nesta perspectiva, «as instalações de certos intelectuais»,
«devia ser o grande descanso e lazer das raparigas» 128 e cujo exercício pode precisamente o tipo de «violino de Ingres» que convém promovertô+
«dar à mulher a matéria da sua vida» 129. É certo que o bricolage masculino Lendo-se o Relatório sobre a utilização dos tempos livres operários
não se reveste de tanta importância. Nem por isso a «ciência do lar» deixa de apresentado na 6a sessão da Conferência Internacional do Trabalho reunida
ser, capital também para o homem. «A organização racional dos dias e horas de em Genebra em 1924, torna-se claro que certos governos desejam fazer do
repouso» implica «cuidados domésticos, conservação do mobiliário, arranjo da embelezamento do lar (home) e dos «pequeno trabalhos ca eiro » - tal é aqui o
habitação, cultivo do jardim» 130. É portanto tarefa para os dois parceiros do sentido de bricolage - urna noção capaz de angariar votos. Muitos delegados à
casal. Conferência mostram-se animados do desejo de ver o operário possuído pela
Este bricolage obedece às representações da habitação operária ideal que o casa. A segunda metade do século XIX alimentara anteriormente o mesmo
gabinete da habitação económica e várias fundações privadas criadas pelos sonho. Em França, a seguir a 1880, uma abundante literatura popular tenta
Rotschild e por Jules Lebaudy se esforçam por realizar, depois difundir, em difundir as «artes domésticas» 135. Georges Roux, nomeadamente, autor de
França. Este esforço assenta num postulado sempre reafirmado: «O operário L'Habitation, consagra-se a esta empresa. Nos seus Petits manuels du foyer à
gosta de aumentar, durante as suas horas de lazer, o conforto e a beleza da sua l'usage des familles et des écoliers, que constituem uma colecção barata,
casa e da sua vida. Pode fazê-lo, quer aplicando-se a imitar o que a arte exalta os animais que arranjam o domicílio. As aves, os castores, as abelhas, as
representa, neste aspecto, para o burguês culto, quer esforçando-se por seguir formigas são dados como exemplo. O autor refere-se também às primeiras eras
uma tradição que lhe é própria, a da arte popular do seu país ou da sua região» do mundo, ao cui-
131.

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dado posto pelos homens primitivos na decoração das suas cavernas. litários, feitos por trabalhadores nos seus tempos livres». Terá ocasião de
O bricolage, que tem também a ver com o instinto, não deixa de ter um admirar objectos de «vidro assoprado, esculturas, pinturas, aparelhos de TSF,
alcance ético: o operário deve «utilizar os seus tempos livres para o maior bem lavores femininos, etc.» 139.
do seu lar» 136. Esta norma resulta da figura do povo virtuoso que percorre As realizações da província belga do Hainaut são apresentadas como
toda a literatura do século XIX em contraste com o espectro das classes exemplo. Nesta região, ao mesmo tempo que decorria um programa de
trabalhadoras e perigosas. Em Paris, no âmbito da Comissão Nacional dos construção de quinze mil habitações operárias, elaborou-se um mobiliário
Tempos Livres, funciona um gabinete da decoração do lar. Uma série de estandardizado de tipo «lazer operário» (sic). A finalidade é aqui manter o
revistas e brochuras, entre as quais La Maison Sociale, difundem o mesmo tipo bricolage afastado da imitação do interior burguês. «O operário da mina, da
de projecto. A tarefa do homem que pertence a um «ambiente verdadeiramente metalurgia é um operário rude. Precisa de mobiliário sólido» 140. Diversas
operário» é criar, decorar, ornamentar evitando o luxo. exposições itinerantes deste mobiliário standard percorreram a província.
Ao longo dos anos trinta esta política do lazer no lar leva a examinar o Cursos, conferências, vendas de barros de olaria e de molde, uma «exposição de
vínculo que convém firmar entre bricolage e arte popular. Neste contexto, artes domésticas e dos tempos livres do operário» bem como exposições locais
impõe-se facilmente um ponto de concordância: o bricoleur operário, que deve «de objectos artísticos fabricados por operários durante as suas horas de lazer e
evitar o luxo, deve também recusar a fancaria, o simili e o artigo de bazar»137. que podem servir para a decoração do lar» concorrem para firmar o vínculo
Dispõe de um meio para vencer este risco: visitar as exposições. É ainda entre a perspectiva utilitária e o projecto artístico.
Edmond Labbé que garante138: «É preciso levar as horas de lazer para o tomo, a A exposição internacional dos tempos livres organizada em Bruxelas
bancada, as ferramentas do encadernador ou do caixilheiro» mas também para dá efectivamente ocasião a uma reflexão sobre o bricolage ou, melhor dizendo,
as exposições de mobiliário tipo ou de casas modelos. Note-se de passagem a sobre a própria definição de cultura popular. O fosso que separa a ideia que se
importância concedida à encadernação, actividade que apresenta a vantagem de tem dela das práticas do operário é entendido e denunciado, o vestígios que
ser trabalho artístico e ponte para a cultura clássica. então se constituem como arte popular e tradicional associada ao fabrico do
A 15 de Maio de 1935, no âmbito da Exposição Universal de Bruxelas e do património das regiões e das nações diz respeito, note-se, ao pastor, ao lavrador,
Congresso Internacional dos Tempos Livres do Trabalhador a que deu origem, ao artesão. Interessa pouco o operário. Bem vi tas as coisas, não inspiram o
inaugura-se uma Exposição Internacional dos Tempos Livres. Como é então bricoleur. Quanto ao inquérito realizado pelo I1CI em 1934 e consagrado à arte
usual neste tipo de manifestações, trata-se menos de inquirir sobre os tempos popular, conclui pela defesa da «instalação de pequenos museus de arte local»,
livres dos trabalhadores - embora se aparente fazê-lodo que de apresentar o que pelas visitas a museus e organização de jogos, bailes, festas tradicionais,
eles deviam ser. Há um stand consagrado ao «mobiliário modelo» e à «arte concursos, oficinas, evitando sempre «criar artificialmente o espontâneo» 141 e
doméstica». Aí se pode contemplar «o mobiliário de uma sala de estar de uma permanecendo consciente de que «a arte do trabalhador deve adaptar-se aos
casa económica»; o visitante descobre também um «stand de exposição de seus gostos, às suas concepções e às suas possibilidades técnicas».
objectos de bricolage, artísticos e uti- Esta consciência vaga de uma certa inadequação remete-nos para o

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exame das práticas. À falta de um inquérito sociológico, forçoso é, uma vez tica das reparações acompanha então a difusão crescente do objecto ma-
mais, tentar deduzir a sua emergência de uma literatura normativa destinada, nufacturado. Este bricolage da primeira fase começa por ter o objectivo de
desta vez, ao bricoleur e já não ao trabalhador que se pretende incitar ao evitar, tanto quanto possível, comprar novo. «A grande vantagem da prática do
bricolage ou à arte popular. bricolage», afirma o Tio Joe, «é dispensar [também] as compras de material-
v'>. O bricolage começa por ser uma resistência declarada à aceleração dos
ritmos da usura, «à substituição contínua dos objectos domésticos» e às
Gestão das horas e sistemática dos objectos «repetidas despesas» 146 que esta renovação impõe. E apresentado como a
inversão da submissão ao consumo. Além disso, insiste-se, a reparação não está
Na realidade, o termo «amador» continua a ser o mais frequente nessa totalmente desligada da criação. Revela-se tanto mais benéfica quanto reforça a
época quando se trata de definir aquele que se entrega à actividade de que nos ligação ao objecto.
ocupamos. Opõe-se ao qualificativo de profissional. Quem deseja dirigir-se ao Esta reticência à compra suscita uma incessante recolha, o que implica a
bricoleur pretende assim demarcar-se da literatura dos ofícios. «A maior parte livre disposição de um espaço e a constituição de um stock de objectos
dos manuais consagrados às diversas especialidades das profissões», garante o heteróclitos que não estão directamente relacionados com o projecto do
Tio Joe no seu A B Cdu bricolage, texto fundador surgido em 1925, «foram momento. Convém ter à mão um tesouro constituído por tudo o que puder um
feitos por artesãos; e o amador, por falta de uma longa prática, por falta de dia servir. Nesta fase, o essencial não é actividade manual, mas a constituição
equipamentos caros, muitas vezes não pode tirar partido deles» 142. Impõe-se de uma colecção numa desordem mais aparente do que real.
uma literatura específica. É o que está por trás do sucesso da colecção Baudry Este stock tem então a sua fisionomia particular que resulta da gama dos
de Saunier. Basta um título para dar uma ideia do projecto: Como pode um materiais de recuperação. A sua lista ordena quase sempre o plano das obras
amador tratar manualmente os metais. Esta literatura distancia-se pois do jogo que constituem o nosso corpus. O período entre guerras corresponde aqui ao
da desqualificação e da incessante requalificação pelo autodidactismo, logo reinado da caixa de madeira. A caixa constitui o material fundamental da
imposto à classe operária. Jogo que introduz uma constante renovação dos primeira era do bricolage, que é também a da prateleira e da caixa de
desejos e das satisfações. ferramentas. Em caso algum o bricoleur deve deitar fora as suas caixas. Se mora
Nesta literatura, o alegado fundamento do bricolage é produzir o útil num apartamento, deverá, sugere o Tio Joe, metê-las «debaixo das camas e em
divertindo-se. Claro que as práticas sugeridas estão intimamente ligadas aos cima dos armários»147. Este tempo do primeiro bricolage é também o da lata de
ciclos da usura e às representações das sobras. E o Tio Joe acrescenta ainda: conservas de folha-de-flandresv'f - como hoje nos países em vias de
«Antes de deitar para o caixote do lixo qualquer lata vazia, qualquer utensílio desenvolvimento - e do arame. A recuperação implica ainda o cordel, com que
estragado, é preciso pois perguntar: "será que isto me pode servir para alguma se pode fazer tapetes e solas, o cartão sólido, como o das caixas de chapéus, o
coisa?" »143. dos calendários, os papéis de embalagem e os objectos de papel mãché. Certos
Neste período do seu aparecimento, o bricolage assenta, com efeito, na materiais mais elaborados suscitam também desenvolvimentos: o linóleo, a
recuperação, que se revela menos um desejo de criação do que uma borracha, nomeadamente um pneu usado, a chapa ondulada e, mais
preocupação de salvaguarda do «objecto estragado» 144. A ascensão da prá- timidamente, o fibrocimento.

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De momento, o bricoleur parece ter que se contentar com «uma pequena seus leitores, em 1924, As verdadeiras Chaves dos Sonhos, um manual,
banca de carpinteiro ou uma modesta barraca com tecto de cartão prensado ou Controlo na Natalidade [ ... ] filhos quando se quer, herdeiro da antiga ca-
de fibrocimento, se mora no campo-e? Tem que se rodear das ferramentas que lipedia - a arte de fazer filhos formosos -, O Mecanismo sexual, ilustrado com
tiver à mão. Aconselham-no a recusar a compra de um estojo, tal como se quarenta e uma gravuras, livros consagrados ao bricolage do automóvel, da
prescreve ao pescador à linha que se contente com uma cana fabricada por si. bicicleta e da TSF, bem como brochuras que se aproximam já do «Faça você
Tal como a pesca amadora, o bricolage assenta no truque150, no «achado» mesmo», como a obra de Albert Touvy, O meu electricista, sou eu! (1930) ou a
ensinados por um indivíduo experiente que nada tem de engenheiro. O do próprio Baudry de Saunier, O meu pintor, o meu decorador, o meu
bricoleur deve saber enfrentar e demonstrar um «desenrascanço natural», vidraceiro, sou eu!.
escreve Baudry de Saunier em 1924151. A aprendizagem do bricolage, tal como A influência anglo-saxónica e mais precisamente americana exerce-se com
a da pesca à linha, baseia-se em relações estabelecidas entre um mestre e o seu evidência sobre este saber do bricolage desde o seu aparecimento. É muito
discípulo. A constituição do ficheiro e da «pequena biblioteca» - nas classes perceptível no dicionário do Tio Joe, como o pseudónimo permite pressentir.
populares a biblioteca privada só pode ser «pequena» - representa a mais Neste tipo de obras encontra-se então a mesma rede de referências à Popular
elaborada destas práticas que relevam do autodidactismo. O bricoleur deve Mechanics, que surge nos Estados Unidos a partir de 1902, ao seu suplemento
aprender a recortar artigos que o interessem nos «periódicos consagrados à intitulado Shop Notes, à Popular Science, à Science and Inventionv+; bem
vulgarização das ciências»152. Deve-se classificá-los em camisas de papel de como à revista inglesa Wood Worker. O Tio Joe sugere como modelo um
embrulho com os títulos bem visíveis, apostos mediante um carimbo com letras barril-berço imaginado na Califórnia e cita, no seu capítulo consagrado ao
de borracha. Deve em seguida indexá-los em função dos seus projectos e das couro, The Jolly Art of Box Craft. Várias revistas francesas, como Le Petit
suas necessidades. O Tio Joe recomenda com insistência pormenores de Inventeur, reflectem então a mesma influência, adaptada às necessidades e aos
elaboração metódica deste ficheiro que pouco a pouco vai enchendo caixas cuja gostos dos bricoleurs franceses. Enfim, o dicionário do Tio Joe não é a única
madeira constitui também as prateleiras da «pequena biblioteca». dessas obra que tendem a conferir uma forma enciclopédica ao saber do
São muitas as raízes deste saber. Seja o que for que dizem os autores dos bricolage, como outra ao da jardinagem ou ao da arte culinâriat->, Certo jogos,
livros consagrados aos bricoleurs, estes vão beber aos manuais técnicos, mais ou meno de inspiração além-Atlântico, também contribuem sem dúvida
destinados ao ensino profissional. As colecções populares Garnier, para a pedagogia do bricolage. O Meccano e vários estojos de construções
nomeadamente a Bibliotêque d'utilité pratique, uma plêiade de obras intituladas poderiam considerar-se sob esta óptica, embora visem sobretudo os filhos das
A Arte do ... ou Artes e oficios do ... facilitam este resvalamento do profissional famílias abastadas.
para o amador153. Munido de sólidos conhecimentos, o candidato a bricoleur, no dizer dos
Mas este autodidactismo pode também inspirar-se numa literatura he- nossos autores, pode empreender «tirar partido de qualquer artigo» que repouse
teróclita que assegura a ligação entre os grandes temas do mercador ambulante «no fundo dos armários, em velhas caixas, nos suportes dos quartos de
de outrora e uma cultura técnica ancorada na modernidade. A colecção Baudry arrumos» 156. Não falamos aqui dos celeiros, que dizem respeito a um outro
de Saunier, editada por Flammarion, propõe portanto aos meio social. Na sua primeira fase, o bricolage assemelha-se à

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arte culinária de guardar os restos. Assenta na remodelação, a das portas do dividual - é menos de família - ordenado segundo um verdadeiro sistema de
quarto «que abateram», das gavetas empenadas, das fechaduras encravadas, objectos. A seu modo, a oficina-refúgio do bricoleur assemelha-se à do pintor
dos sofás que «descolam por baixo», das cadeiras para estofar de novo, dos e a arte do bricolage é balbuciante como uma vida de artista161. Mas talvez esta
tacos fendidost>". noção resulte de um simples efeito de fontes. Uma pesquisa no terreno,
Na ordem da criação, e já não da reparação, o bricoleur deve saber fazer realizada nesta época talvez permitisse atribuir um alcance social mais amplo a
tudo a partir de nada. A associação destes termos é então fundamental. A esta prática em vias de constituição.
imaginação tem que sugerir incessantemente a metamorfose. Para tal, ele corta, As privações da Segunda Guerra mundial e do imediato pós-guerra avivam
serra, ensambla, instala, assenta vidros, suportes, prateleiras, divisórias. O a necessidade da conservação, da recuperação, da reutilização. Trata-se então
máximo desta arte criativa culmina na realização de molduras com vidro. de prolongar tanto quanto possível o tempo de utilização dos objectos, de
Esta figura do bricolage alimenta uma pedagogia. A Biblioteca da Ju- imaginar e confeccionar sucedâneos. É o tempo do «verdadeiro
ventude Operária publica Bricolage, manual destinado ao futuro membro da desenrascançoat=, o apogeu do sistema D. Em França, este é então entendido
JOe. O autor dá os seus conselhos ao jovem: «Deves tirar partido de tudo. Por como um dos traços do carácter nacional. Toma-se mito compensador da
exemplo, poderás utilizar a madeira de caixotes para fazer armações, derrota. Exorciza, se necessário, os remorsos do mercado negro. É proposto à
brinquedos para o Natal, etc. Para recuperar a madeira dos caixotes precisas de admiração das crianças. Inspira mesmo a banda desenhada163. Em 1943 L.
um martelo, uma turquês e um alicate, se tiveres ... »158. O jovem leitor Besset publica, em Paris, o seu Mille et une recettes du systême D.
descobre neste livro a maneira de fabricar molduras e a de cortar Dictionnaire des trucs et astuces. Confectionner. Entretenir. Conserver.
contraplacado, «de certeza um dos mais agradáveis passatempos» que existem. Réparer: «Nas presentes circunstâncias», escreve o autor na introdução, «é de
Os manuais de bricolage são inspirados por uma ética que é a que ini- toda a necessidade saber tirar o máximo partido de todas as coisas»I64. Na
cialmente discernimos a propósito da jardinagem: «O bricoleur» - note-se, mesma colecção, encontra-se uma obra intitulada Faça qualquer coisa de nada.
desta vez, o emprego do termo constitutivo de uma identidade - «adquire uma Utilize a sucata. Assim se gera um outro mito ambíguo, o do sucateiro que
habilidade manual que é sempre útil possuir. Fica em casa em vez de ir para o enriquece logo a seguir à guerra, industrial desenrascado da recuperação, um
café. As coisas que fabrica são necessariamente simples e rústicas; se gostar pouco velhaco, até antigo açambarcador de guerra. Nas crianças, a procura
delas - e como não havia de gostar, uma vez que são obra sua (sic) - tomará o prestigiosa dos rolamentos de esferas participa então deste fascínio. Uma
gosto pela vida simples» 159. Em contrapartida, nesta literatura normativa que revista editada em Paris, Le Systême D, constitui uma verdadeira enciclopédia
data do período entre guerras, contrariamente ao que se verifica a propósito da periódica do bricolage.
jardinagem, não se trata de rede nem de solidariedade 1 60. Não se faz alusão à A recuperação raia o frenesim. A extensão social desta prática acompanha a
visibilidade de uma prática que se aloja sob o alpendre, no interior da «pequena da privação. O livro, editado em 1946 por Bloud e Gay e intitulado T'Hélêne et
oficina», até junto à mesa de trabalho. O bricolage é descrito como um ses amies. Le bricolage au service de l'action sociale. Petits travaux
exercício de estilo in- manuels, reflecte este processo. Inscreve-se, além disso, na tradição feminista e
mundana desses «pequenos nadas» que alimentam as vendas de caridade. A
obra é escrita por uma «ex-menina educada no precon-

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ceito ... » Ambiciona explicitamente difundir a noção de bricolage na e - fera Edições Jovem Rural, o seu livro intitulado Petites installations de la maison.
do «trabalho social». A Tia Hélêne e as suas amigas recuperam os trapos, os Ao contrário dos autores dos manuais anteriores à guerra, aconselha: «Nunca
papéis, as caixas, os cordéis, a ráfia, as penas, as embalagens, os pacotes, as recuem perante a compra destas ferramentas [de bricolage] dizendo que até
conchas e as algas. Ensinam a tirar partido dos caixotes, a transformá-los em agora passaram bem sem elas: é má aposta, muitas coisas que é fácil fazer não
móveis improvisados. São consagradas páginas inteiras a estes objectos de foram feitas, muitas coisas para reparar ficaram ao abandono»16S. Doravante, é
madeira. Tia Hélêne esforça-se por pôr a arte de bordar ao serviço da reparação. indispensável dotar-se de urna «panóplia de bricolage» e comprar estojos de
Graças a esta arte subtil, pode-se baixar a bainha a vestidos e aventais, ferramentas. Já não se trata de caixotes remendados. O essencial dos trabalhos
dissimular rasgões e nódoas, tudo isso na atmosfera jovial das reuniões já não consiste em objectos, mas nas paredes, armários, roupeiros, toucadores e
femininas próprias dos costumes mundanos. Em suma o bricolage inspira um electricidade. O bricolage é perseguido pela «arrumação» e pela modernidade.
insólito projecto de transferência cultural. Agora, o bricoleur tem que andar «actualizado» e saber «organizar-se. Segundo
Esta época é também a da recuperação do chatterton (o material isolante) Oudin, o bricolage implica urna mesa - pelo menos urna mesita pequena -, um
do celulóide e sobretudo do pneu. Brouillart publica, em 1947, um livro bloco-notas, um caderno de endereços, caixas de cartão, bolsas de papel. Esta
intitulado Réutilise: vos vieux pneus. Modeles d'objets utiles faits sans peine prática renovada é já uma gestão.
avec vos vieilles enveloppes et vieilles chambres. Propõe oitenta e cinco Consideremos, a título de exemplo, dois números de Mécanique populaire
utilizações diferentes. Trabalhar pneus velhos é, a seu ver, bricoler «distraindo- datados de Junho e de Dezembro de 1953, a vulgarização científica é
se» e dar provas do «mais eficaz civismo». omnipresente. Pouco tempo antes impusera-se o sucesso das Selecções - do
Mas depressa se acentua a influência dos Estados Unidos, que tende a Reader' s Digest - e da revista Science et Vie no seio da juventude das escolas
constituir o bricolage corno mercadoria e que, pouco a pouco, vai solvendo técnicas. Cada número de Mécanique populaire comporta uma rubrica
esta resistência ao circuito comercial que o definia anteriormente. A partir daí, consagrada ao «cantinho do bricoleur», Não há aqui imaginação,
o essencial deixa de ser as reservas, o tesouro, a recuperação, a imaginação. Já espontaneidade. Uma sub-rubrica intitula-se «Novidades em ferramentas». Aí
não truques e «achados». O bricoleur já não tem que andar atento às velharias. se aprende «Como usar urna lixadeira». Aí se apresenta uma serra eléctrica
Deixa de ser perseguido pela degradação dos objectos. Tem que adquirir o manual, um «cortador de relva accionado por um berbequim, um «laboratório
saber de um «Faça você mesmo» já constituído, dotar-se de uma panóplia de portátil para principiantes em rádio».
ferramentas especializadas que lhe são especialmente destinadas, comprar Os objectivos propostos à actividade do bricoleur são, simultaneamente, um
materiais preparados em sua intenção e aceitar modelos largamente difundidos. modelo reduzido do paquete United States, a construção de um «pequeno órgão
Inicia-se então a época de um bricolage de instalação e acabamento que serve a electrónico», a realização do «Ganso selvagem, pequeno reboque de fim de
reconstrução das zonas sinistradas, depois a edificação em massa de novas semana», a confecção de urna «mesa articulada para piqueniques». Um dos
habitações. artigos intitula-se «Faça você mesmo urna porta de garagem» ... Basta. Irrompe
Popular Mechanics é traduzido para francês a partir do mês de Junho de o american way of life ao mesmo tempo que o culto do hobby166.
1946 com o título Mécanique populaire. Começa a publicar-se a revista Tout
faire. Já em 1947 - é apenas um exemplo - Oudin publica, nas

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NOTAS
A história de que trata este livro interrompe-se no coração dos anos cin-
quenta. O período ulterior não nos interessa. Todavia, algumas palavra 1. T.-H. BARRAU, Conseils aux ouvriers sur les moyens qu'ils ont d'être heureux, Paris, Hachette, 1850, p.
permitirão captar a distância que separa o bricolage contemporâneo do do 60.
A. C.
período entre guerras. O primeiro, que beneficia da difusão de novas rni-
crotecnologias, continua a centrar-se no ritual, no relato, nas práticas de 3. J. DUMAZEDIER, A. RIPERT, Le Loisir et la ville, Paris, Editions du Seuil, 1966, p. 75.
4. Este estudo baseia-se em umas quarenta destas obras, principalmente de língua francesa, mas também de
instalação. Continua assombrado pelo sonho inacessível do acabamento língua inglesa. Damos as referências daquelas de que extraímos mais citações.
constitutivo da identidade do bricoleur. O acabamento, como a flecha de 5. C. DE MASSAS, Le Pêcheur à la mouche artificielle et le pêcheur à toutes lignes, 2' edição (a la data de
1852), Paris, 1858, introdução, e N. GUILLEMARD, La Pêche à la ligne et au filet dans les eaux douces de
Zenão, tem a particularidade de nunca chegar ao seu termo porque, pre- la France, Paris, Hachette, 1857, p. 4.
cisamente, é uma opção de vida perpetuamente relançada por um projecto de 6. Cf. A. MORICEAU, Le Guide et les droits des pêcheurs à la ligne, Paris, ed. do autor, fabricante de
utensílios de pesca, 1870, p. 14; ver também a obra citada na nota seguinte, p. 84.
recepção e de sociabilidade. O bricolage contemporâneo sonha com a 7. L. REMOND, La Pêche pratique en eau douce à la ligne et au filet, Paris, Firmin-Didot, 1883, p. 29 e p.
montagem de uma sala grande, quartos de hóspedes e barbecue'sl. Ora a 84-85. O autor descreve a figura emblemática do «molha-minhocas» de Asniêres. De Verão, todas as
manhãs (p. 30) partia com um imenso guarda-sol de algodão azul que plantava quando o sol estava alto.
extensão das lojas especializadas implica uma permanente sofisticação das Habitava uma estranha choupana em Saint-Ouen, à face do caminho de sirga, e fabricava o isco. Afogou-
práticas, a qual irá sem dúvida, com o tempo, acabar por abolir o próprio se, com a linha na mão.
8. C. KRESZ senior, Le Pêcheur [rançais, 5" edição, Paris, ed. do autor, 1847, p. 390 sq.
conceito de bricolage.
9. C. DE MASSAS, op. cit., p. 246.
Mas, como já vimos, no que respeita a instalação e acabamento, fiéi: ao 10.E. POISSON, Bavardages sur la pêche à la ligne en eau douce, Parmain, ed. do autor, 1910, p.
38.
sonho outrora alimentado pelas organizações dos tempos livres dos tra- 9. C. DE MASSAS, op. cit., p. 6 e 139.
balhadores, desenvolve-se um outro bricolage suscitado pelo desejo de 10. Noção essencial nos modos de apreciar e usar a natureza.
11. A. MORICEAU op. cit., p. 51. Ver também L. REYMOND, op. cit., p. 26-29.
personalizar o objecto, intimamente associado às combinações e inscrito na 12. lbid., p. 11.
descendência do sistema D. Esta outra prática continua a investir na re- 13. Cf. CUNISSET-CARNOT, La Pêche, Paris, Pierre Lafitte, 1912, p. 2.
14. C. DE MASSAS, op. cit., p. 4-5.
cuperação. Implica a existência de uma rede de solidariedade imperfeitamente
15. CUNISSET-CARNOT, op. cit., p. 9.
obediente às regras do mercado. Este bricolage, que se baseia no recurso aos 16.A. RENÉ, C. LIERSEL, Traité de la pêche à la ligne et au filet dans les riviêres et dans les étangs, Paris,
familiares, aos amigos, aos companheiros do trabalho escravo e que leva em Lefevre, 1882, p. 7.
17. Ver, a este propósito, E. DÉSOUDIN, La Pêche à la ligne, Verdun, Bertinet, 1883, p. 54.
conta a subtil hierarquia dos ofícios, continua a alimentar uma sociabilidade 18.Cf. CUNISSET-CARNOT, op. cit., que sublinha, nomeadamente (p. 11) que «as damas são francamente
muito viva168. [ ... ] inúteis na pesca». «A combinação do seu nervosismo com a sua emoção é funesta para as linhas.»
Também neste domínio se traduzem as representações dominantes da mulher.
A riqueza da evolução das figuras do bricolage, a multiplicidade da suas 19. J.-H. PERREAU, (lHO PÂLE), chefe da redação de La Pêche moderne, La Pêche pour tous, Guide du petit
formas, os efeitos que produziu em cascata sobre o conjunto das esferas da vida pêcheur, Paris, Nilsson, 1910, p. 31-32.
quotidianalv? sugerem o desejo de aprofundar a história das modalidades mais 20. Neste aspecto, há um parentesco entre o pescador e o pastor, o que sublinha como este tipo de pesca
pertence à arte popular. Sobre o que liga esta última aos pastores, cf. trabalhos de Daniel Fabre.
ricas da busca de um tempo pessoal diferente dos modelos antigos do otium e 21. São muitas as obras consagradas à legislação da pesca em França. A título de exemplo, ver o artigo
da recreatio. pesca em A. PICARD, Le Bilan d'un siêcle, Exposição universal de 1900, t. III, Paris, Imprimerie
Nationale, 1906. H. PETIT, Code de la pêche specialement établi à l'usage des

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pêcheurs à La ligne du département de Ia Marne, Châlons-sur-Marne, 1900 (muito rigoroso). 22. C. DE do químico erudito H. DAVY e do seu livro, Salmonia ar Days of Fly-Fishing. in a Series of Conversations,
MASSAS. Des Réglements sur la pêche à la ligne en France, Paris, Albessard e Bérard, 1862. p. 32-33. publicado em Londres em 1823.
23. A. CORBIN. Le Territoire du vide. L'Occident et le désir du rivage. 1750-1840, Aubier, 1988; Flammarion 49. I. WALTON, The Complete Angler ar Contemplative Man's Recreation, being a Discourse on Fish and
col. «Champs», 1990, p. 225-264. Fishing; Londres, 1653.
24. Cf. F. LAFFON. Le Monde des pêcheurs, (série de artigos publicados em Le Petit JournaL). 50. Cf. K THOMAS, Dans le jardin de la nature, la mutation des sensibilités en Angleterre, Paris, Gallimard,
Paris. Librairie illustrée, 1888. p. 74. 1985.
25. Ibid .• p. 110. 51. A título de exemplos de manuais para o período de que nos ocupamos: J. BICKERDYKE, The Book of the
26.C. KRESZ senior, A. MORICEAU, E. DESOUDIN, L. REYMOND, CUNISSET-CARNOT, op. cit .• todos allround Angler. A Comprehensive Treatise on Angling in Both Fresh and Salt Water. Londres, L. Upcott Gill,
explicam a maneira de arranjar ou criar minhocas e larvas. bem como a maneira de amassar os iscos de fundo. 1888; F. FRANCIS, Book on Angling ... , tradução: La Pêche à la Ligne, Paris, 1886. No que respeita ao
27. CUNISSET-CARNOT. op. cit .. p. 63. turismo de pesca: C. F. ORVIS, Fishing with the Fly: Sketches by Lovers of the Art, Manchester, Vermont,
28. P. MILLE. redactor no Temps, prefácio ao livro citado de Cunisset-Carnot, p. X. 1883, série de novelas sobre a pesca nos Estados Unidos. Obra cheia de referências literárias a Homero,
29.Sujets de pêche. Dessins d'aprês nature et lithographies par Roehn. Notice par C. Kresz ainé, Paris. 1836. Oppien, Thomson, Byron, etc. P. GEEN, What I Have Seen While Fishing and How I Have Caught my Fish,
30. JHO PÂLE (l-H. PERREAU, op. cit .. p. 45-46, e P. BONNEFONT. La Pêche anecdotique, Tours, Mame, Londres, T. Fisher Unwin, 1905. Livro característico que mostra a ligação entre turismo e pesca. O autor foi
1893, p. 29. durante vinte e seis anos presidente da Angler's Association, em Londres. Percorre a Irlanda e a Escócia. L.
31. JHO PÂLE. op. cit .. p. 48. CLEMENTS, Shooting and Fishing Trips in England, France, Alsace, Belgium, Holland and Bavaria,
32.A mesma opinião em A. DUBOIS, La Pêche à la ligne en eau douce, Paris, Imprimerie de l'armorial français, Londres, Chapman and Hall, t. II, 1876.
1894. p. 21. 52. A título de exemplo, C. DE MASSAS, op. cit., p. 268 sq.
33. La Pêche à La ligne, conseils pratiques par un ex-pêcheur vierzonnais, Vierzon, tipografia Jaillet 53. J.-H. PERREAU (JHO PÂLE), op. cit .• p. 125.
1893. p. 4. bem como a citação que se segue. 54. C. KRESZ senior, op. cit .. p. 313; N. GUILLEMARD, op. cit., p. 254.
34. L. REYMOND. op. cit .• prefácio, p. IV. 55. A. MORICEAU, op. cit., p. 10.
35. E. POISSON, op. cit .• p. 95. 56. C. DE MASSAS, op. cit., p. 114.
36. La Pêche moderne. EncycLopédie du pêcheur; Paris. Larousse, 1921, introdução de H. 57. N. GUILLEMARD, op. cit., p. 5.
FOUQUIER, p. IV. 58. L. REYMOND, op. cit .. p. 101.
37. E. POISSON, op. cit .. p. 57. 59. Cf. F. LAFFON, op. cit., p. 117.
38. L. REYMOND, op. cit .• p. 180. Ver também. a este propósito. CUNISSET-CARNOT. op. cit .• 60. Visconde H. DE FRANCE, La Pêche sportive, Paris, Lucien Laveur, 1913. Dado sobre o
p. 198-200. clubes e os concursos, p. 203-212.
39. E. POISSON. op. cit .. p. 100. 61. Ibid., p. XIX.
40. L. REYMOND. op. cit .. p. 180. 62. Cf. A. DUBOIS, op. cit., p. 6.
41.Cf. P. BONNEFONT, op. cit .. p. 14. No que respeita aos pintores: La Pêche moderne ...• op. cit, p. IX. 63.Em 1886, quarenta mil (e vinte e dois mil jovens salmões da Califórnia); em 1887, quarenta tainhas. F.
42. Cf. panegírico da pesca por E. BLANCHARD, do Instituto, in La Pêche ... par un ex-pêcheur vierzonnais, op. LAFFON, op. cit .. p. 300.
cit .• p. 4. 64. N.-E. BONJEAN, Fishing Club de France. Conservation et protection des eaux superficielles et souterraines;
43. M. Ehret, fundador da Federação dos sindicatos de pescadores à linha. ao qual se decide erguer um projet de loi, [. .. } enquête en vue de son application, Paris, Bibliothêque du Fishing Club de France, 1910. A
monumento em 1910, não pára de desenvolver este tema; cf. J.-H. PERREAU (JHO PÂLE). op. cit .• p. 12. decisão do tribunal de Saint-Dié e do tribunal de apelação de Nancy atinge um patrão e dois operários
44. E. RENOIR. La Pêche mise à la porté de tous, Paris. Librairie illustrée, s.d., p. 1. Panegírico condenados a dois meses de prisão com pena suspen a e quatro mil francos de indemnização por despejo de
inflamado. produtos químicos no Meurthe.
45. A. CHÊNE. Au bord de l'eau. Confidences d'un vieux pêcheur, Château-Thierry, 1903, p. 123. 65. F. LAFFON, op. cit., p. 318-321.
46. F. LAFFON, op. cit .. p. 76. 66. M. PLUVINAGE, F. WEBER, Les Jardins popuLaires: pratiques culturales, usages de l'espace,
47. A. CHÊNE, op. cit .. p. 122. enjeux culturels, Ministério da Cultura, 1992, p. 87.
48.O mesmo processo a propósito do banho. Cf., para o que se segue, A. CORBIN, Le Territoire C/U vide ... , op. 67. F. DUBOST. «Les jardins de Créteil», Traverses, 5-6 de Outubro 1976, p. 197.
cit .• passim. Os actores, no que se refere à pesca, sublinham também a importância 68. M. PLUVINAGE, F. WEBER op. cit., p. 34.
69. Ibid., p. 3.
70. Sobre a dificuldade que o jardineiro tem em reconhecer o seu labor, ver J.-R. HISSARD, F.
PORTET, «Les jardins ouvriers de Belfort», Traverses, op. cit., p. 180. 71. M.
PLUVINAGE, F. WEBER, op. cit .. p. 13.

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ALAIN CORBIN HISTÓRIA DOS TEMPOS LIVRES

72. P. LEPAPE, «La pensée de plate-bande», Traverses, op. cit .. 92. Cf. L. MURARD, P. ZYLBERMAN, Le Petit Travailleur infatigable ou le prolétaire régénéré.
73. R. HOGGART, La Culture du pauvre, Paris, Editions de Minuit, 1970, p. 383. Villes-usines, habitat et intimités au xIX" siêcle, Fontenay-sous-Bois, Recherches, 1976.
74. P. LEPAPE, art. cit., p. 34. 93. Cf. o conjunto da obra de M. VERRET ou de R. HOGGART.
75.R. HOGGART, op. cit., p. 383. Esta relativa inferioridade francesa neste domínio é entendida e 94. J. M. MA YEUR, op. cit., p. 579.
sublinhada por G. BOUTHOUL, La Durée du travail et l'utilisation des loisirs, Paris, Giard. 1924, p. 125. 95. J. BORDEREL, R. GEORGES-PICOT, op. cit., p. 21.
M. PLUVINAGE, F. WEBER, op. cit., p. 96. 96. 1bid., p. 16.
76. Rapport sur l'utilisation des loisirs ouvriers, Conferência Internacional do Trabalho, 68 sessão. 97. Ibid., p. 18. Lê-se na página 21: «Se vos lá levasse uma noite, por certo encontraríeis toda a
Genebra,. BIT, Junho de 1924, p. 93. família no jardim: o pai veio assim que terminou o trabalho e lá encontrou a mãe já a preparar, num
77. M. PLUVINAGE, F. WEBER, op. cit., p. 96-97. fogareiro, a refeição para a família; as crianças fazem os deveres escolares à sombra do caramanchão ou
78.Cf. intervenção de Christophe Charle no seminário «Histoire sociale et cultureUe», universidade de ajudam o pai no trabalho do jardim ... »
Paris-I, Junho 1994. 98. M. PALLAUD, «Les jardins ouvriers a Montluçon», Bulletin du ministêre du Travail, 1922, p.
79. No que se refere aos das grandes cidades francesas: L.-M. NOURRY, Les jardins publics en province: uri 311 sq.
élément de la politique de l'espace du Second Empire, tese, universidade de Paris-I, 1995. 99. Reproduzimos aqui os resultados do inquérito efectuado pelo Ministério do Trabalho em 1922, «Les
80. A. CORBIN, Le Miasme et la jonquille. L'odorat et l'imaginaire social (XVlIt-XI)( siêcles}, Paris, Aubier, jardins ouvriers depuis la guerre», Bulletin du ministêre du Travail Enquête sur l'utilisation des loisirs créés
1982, p. 223-229, coI. «Champs» Flammarion, 1986. par la journée de huit heures, 1922, p. 408 sq.
81. Uma evocação romanesca desta importância in E. ZOLA, La Faute de l'abbé Mouret. Nas regiões 100. Para o que se segue, B. COMPTE-CABEDOCE, op. cit., e «Jardins ouvriers et banlieue: le bonheur au
fervorosas, este tipo de cultura floral está ligado às cerimónias e responsórios do Corpo de Deus. Tudo jardin?», in A. FAURE (dir.), Les Premiers Banlieusards, Paris, Créaphis, 1 ~91, p. 249-280. Entre as
isso constitui uma descendência distante e degradada do «jardim litúrgico» que Durtal, o herói de I' fontes, doutor G. ETIENNE, Utilisation des loisirs des travailleurs, Paris, Belin, 1935, p. 25 sq. Para breves
Oblat, romance de J.-K Huysmans, se esforça por recriar. anotações E. LABBÉ, Les Loisirs ouvriers, Paris, Librairie de l'enseignement technique, 1928.
82. Observações interessantes sobre o que liga reforma e espaço rural in B. DUMONS, G. POLLET, «Le 101. Cf o caso de Montluçon supracitado.
retraité, une identité sociale nouvelIe? Le cas de la région Iyonnaise au début du siêcle», Ethnologie 102. J.-M. MA YEUR, op. cit., p. 577; M. PLUVINAGE, F. WEBER, op. cit., p. 96 q.
française, reforçadas pela tese de B. DUMONS, Retraite et retraités (fin XI)(-début xx: siêcle). Les 103. lbid., p. 50.
retraités sous la Troisiême République, Lyon et sa région (1880-1914). Populations, modes de vie et 104. F. DUBOST, «Le choix du paviJIonnaire», in A. FAURE (dir.), op. cit., p. 197.
comportements, tese Lyon-II, 1990. 105. B. COMPTE-CABEDOCE, art. cit., p. 279.
83. Um exemplo: J. PIZZETTA, Les Loisirs d'un campagnard, Paris, Hennuyer, 1889. 106. A este propósito, P. LEPAPE, art. cit., p. 33. Intere sante de envolvimento sobre o «pen-
84.Reveladora, neste contexto, a infância de P. Loti no jardim fechado da casa dos seus pais, em Rochefort. samento hortelão».
85. Com excepção do belo artigo de J.-C. FARCY, «Les jardins dans la France rurale au xrx" siêcle», um 107. «Les jardins ouvriers depuis la guerre», Bulletin du ministêre du Travail, 1922, p. 408, e F.
apanhado em G. GARRIER, Paysans du Beaujolais et du Lyonnais. 1800-1970, Grenoble, PUG, 1973, p. WEBER. «Le jardin éloigné ou le jardin ouvrier comme espace dome tique ma culin», Coléquio citado, 3-
144 e 659. 4 de Dezembro, 1993.
86. Sobre a gama relativamente reduzida de legumes destas hortas em pleno campo: P. 108. B. COMPTE-CABEDOCE, art. cit., p. 268.
LESHAURIS, Ceux de Lagraulet, la vie quotidienne d'une famille de paysans landais (1870- -1914), 109. Cf. J.-R. HISSARD, art. cit., passim.
Toulouse, Eché, 1984, p. 77-79 110. F. DUBOST, art. cit., p. 200.
111. Em que entram o cabanon dos marselheses no século XVIII e o «rnazeo de Nirne .
87. M. PLUVINAGE, F. WEBER, op. cit., p. 805 sq., e M. PLUVINAGE, «Les pratiques culturale et I'
112.R. THABAULT, 1848-1914, L'Ascension d'un peuple, Mon village, Ses hommes, es routes, son école,
opposition entre savoir paysan et savoir maraícher», Colloque consacré aux jardins [amiliaux; 3-4 de
Paris. PFNSP, 1982, p. 168. Sublinha o papel do profe or primário, em Méziêres-la-Gâtine, na difusão das
Dezembro, 1993. M. Agulhon havia já sublinhado este tipo de conflito em Bobigny.
técnicas de poda e enxertia das fruteiras.
88. J. BORDEREL, R. GEORGE-PICOT, L'Utilistuion des loisirs des travailleurs, Paris, Á-lcan, 1925, p. 6-7;
113. A. CORBIN, Archai'sme et modemité en Limousin au xIX" siêcle, Pari, Riviêre, 1975.
bem como as duas citações que se seguem.
114.A este respeito, G. RIBEILL, «Les jardins cheminots: histoire d'une institution corporative spécifique»,
89. Ibid., p. 22.
90.Cf. J.-M. MA YEUR, L'Abbé Lemire (1853-1928), un prêtre démocrate, Paris, Casterman, 1968, Colóquio citado, 3-4 de Dezembro, 1993.
nomeadamente p. 379 sq. e p. 576 sq. O que se segue deve muito a esta obra. 115. Cf. M. PLUVINAGE, F. WEBER, op. cit., p. 121.
91. Que permitiram a realização da tese de B. COMPTE-CABEDOCE, L'oeuvre de la Ligue du coin de terre 116.Pelo seu lado, J.-c. CHAMBOREDON (<<Les usages urbains de l'e pace rural: du moyen de
et du foyer, les jardins ouvriers du département de la Seine, 1896-1952, tese, Paris-I, 1984, sob a direcção production au lieu de récréation», Revue française de sociologie, XXI-X-1980, p. 79-119) analisa a
de M. Agulhon. desqualificação das artes populares do jardim tradicional, sublinha a desordem por excesso de plantas, a
multiplicação dos sinais de «provincianismo» e o primado do espectacular no espaço

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ALAIN CORBIN HIST6RIA DOS TEMPOS LIVRES

rural vizinho das cidades do Sueste. de main pratiques, Béziers, s.d., capítulo II.
117. J.-P. MARTINON, «Les espaces corrigés», Traverses, número citado, p. 147. 149. ONCLE JOE, op. cit., p. 8-9.
118. P. CAM, «Le bricolage un art pour l'art», Critiques sociales, Maio 1991, p. 33. 150. Cf. o título da obra citada de A. POUSSART.
119.Neste contexto, há que ser cauteloso: o último terço do século XIX corresponde, nomeadamente no 151.BAUDRY DE SAUNIER, Mon peintre, mon décorateur; mon vitrier; c'est moi!, Paris, Flammarion,
âmbito da escola primária, a um período de exaltação do trabalho artesanal, nomeadamente do trabalho 1924, prefácio.
rural. 152. ONCLE JOE, op. cit., p. 11.
120. Viens bricolerl, Paris, Editions ouvriêres, s.d., p. 5-6. 153.Os numerosíssimos livros publicados por H. DE GRAFFIGNY (Raoul Marquis) atestam claramente
121. Para o que se segue, P .. JARREAU, Du bricolage: archéologie de la maison, Paris, CCI, esta influlência: é o caso de Industries d'amateurs ... (1889), de uma série de Manuels pratiques ... , de uma
Centre Georges Pompidou, 1985; passim, nomeadamente p. 94-97, 99, 103 e 174. Petite encyelopédie éléctro-mécanique (1896) ou Petits travaux de mécanique et d'éléctricité pouvant être
122. Para o que se segue, o conjunto da obra de M. VERRET, P. CAM, art. cit., passim. éxécutés avec un outillage restreint par les jeunes gens et les amateurs, vendidos a treze francos e meio.
123.P. CAM, art. cit., p. 33. 154. A título de exemplo, um pouco mais tarde, G. BROUILLART (Réutilisez vos vieux pneus.
124.lbid. Modeles d'objets utiles faits sans peine avec de vieiltes enveloppes et vieilles chambres, Paris, 1947) também
125. A título de exemplo, Rapport sur L'utilisation des loisirs ouvriers, op. cit., Genebra, BIT, 1924. se inspira em Popular Mechanics e em Science and Invention.
passim. 155. Citemos, a título de exemplo, os Travaux de l'amaieur; obra inteiramente consagrada ao bri-
126. E. LABBÉ, op. cit., p. 10. colage.
127. Rapport sur l 'utilisation des loisirs ouvriers, op. cit., 1924, p. 90-91. 156. ONCLE JOE op. cit., prefácio.
128. Dr. G. ETIENNE, op. cit., p. 19. 157. Ibid., p. 144-145.
129. E. LABBÉ, op. cit., p. 12. 158. bricolage, Paris, Librairie de la Jeunesse ouvriêre, s.d., p. 2 e 14.
130. Dr. G. ETIENNE, op. cit., p. 15. 159. ONCLE JOE op. cit., prefácio, p. 1-2.
131.R. DUPIERREUX, «L'art et les loisirs du travailleur», Les Loisirs du travailteur. Rapports présentés au 160.Com excepção da obra destinada aos membros da Juventude Operária Católica (JOC) no qual se faz
Congrês international des loisirs du travailleur, Bruxelles, 15-17 juin 1935, BIT, Etudes et documents, alusão aos «camaradas».
série G, n? 4, Genebra, 1936, p. 30. 161. A este respeiito, P. BOURDIEU, «Invention de la vie d'artiste», Actes de la Recherche en Sciences
132. Dr. G. ETIENNE, op. cit .. p. 28. Palavras sublinhadas por nós. Sociales, 2 de Março de 1975. Ver também, J. BORDEREL, «L'habitation», L'Utilisation des loisirs des
133. E. LABBÉ, op. cit., p. 12. travailleurs op. cit., p. 11 sq. Este último deseja que o trabalhdor bricoleur disponha de um «local de
134. lbid., p. 13. refúgio ou de actividade livre», de um retiro que lhe permita exercer o «engenho». A «sala comum», na
135.A este propósito, P. JARREAU, op. cit .. p. 79-90 e 160 sq.; G. ROUX, L'Habitation. «Ma maison», sua opinião, presta-se mal a este tipo de actividade.
généralités et conseils, Paris. A. Colin, 1912. 162. A exaltação do desenrascanço é antiga. No início do século, está ligada à pedagogia do escutismo (cf.
136. Dr. G. ETIENNE, op. cit., p. 29. A. BAUBEROT, Le Scoutisme en France (1910-1920) de la Belle Epoque aux années folles, mestrado Paris-
137.Sociedade das Nações, Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (HCI), Art populaire et loisirs I, 1994).
ouvriers, inquérito realizado a pedido do BIT, Paris, 1934, p. 131 e 133 (relatório de M. G. JULIEN, 163. A. DE SAINT-OGAN, Monsieur Poche et le systême D.
respeitante a França). 164.L. BESSET, Mille et une recettes de Systême D. Dictionnaire des trucs et astuces. Confectionner.
138. E. LABBÉ, op. cit., p. 12. Entretenir. Conserver. Reparer., Paris, 1943, nota prévia.
139. Les Loisirs du travailleur, op. cit., Genebra, 1936, p. VII. 165. OUDIN, Petites installations de la maison, Paris, Editions Jeune rurale, 1949, p. 6.
140.Bem como a citação que se segue, relatório de P. PASTUR sobre as comissões provinciais dos tempos 166.A propósito da «devoção fanática» ao hobby na sociedade americana deste tempo, D. RIESMAN, La
livres na Bélgica, Ibid., p. 80-81. Foule solitaire, Paris, Arthaud, 1964, p. 360 sq. Nesta perspectiva, a história do fabrico de modelos
141. IICCI, Art populaire et loisirs ouvriers, op. cit., p. 37,44-48 e 83. reduzidos, nomeadamente em matéria de aviação, viria a ter o seu lugar.
142.anele JaE, ABC du bricolage, un guide pour les amateurs de «bric à brac», Paris, Delagrave, 1925, p. 11. 167. Cf. P. JARREAU, op. cit., passim, nomeadamente p. 120.
143. ONCLE JOE, op. cit., p. 5. 168. P. CAM, art. cit., passim.
144. A. POUSSART, Les Mille Trucs pour conserver et réparer les mille objets d'un ménage, Paris, 169. R. SUE, Temps et ordre social, op. cit., p. 241.
Garnier, 1921, prefácio.
145. ONCLE JOE, op. cit., p. 5.
146. A. POUSSART, op. cit., prefácio, p. 5-6.
147. ONCLE JOE, op. cit., p. 5.
148. A título de exemplo, A. PLANES-PY, Pour tout faire vous-même, formules, recettes et tours

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