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memoria Paulo Berten With Chibub nasceu em Andpolis no da 21 de outubro de 1948, Historiador ‘goiane Poul Bertran reimwentou 0 histéria da rego, ampkando seus honzonts. Prime, ‘oproximou se de uma reponalidade mais wackend!frmado pelo ahar de certa Geogr, Cenaro-Oeste Neutra perspec mas orguta,curhou a expresso cerratense, opraximenido «2 duersidade de cultures er tno do bora cerra.As cus copa (Goidria ¢ Basia) se ‘oproximara, evereciando Seu lugar de rigem e sua relago com o passade Sua Hiséria da terrae do homem do Planalto Central (1994) acangou maier unversaidade as indicar © Planalto Central como delimtacéo da repo pesquisada. Essa opgdo permit 00 autor responder dos anscios identtsios tanto de gianes quanto de resins Bernard Elem apresentor ao lo de Beran firma que, para excever su romance natrco Chegowe governador.valeu se mais dos escetoseadonados ts captanas de Minas Gerais, Bahia e Ro de Janeiro de que dos de Goid.A escassez documentale historiogrfica é Jamentade pele ramancista Sensagle semahante fi descrta pelo histoiador Victor Leonard, (00 ofirmar que o io repSe aided de Bros, uma vez que os letoreshunco mais Wo poder se sentir assim, coma uma espcie de habitants de um wari ronagico,ou de vidas cde uma arputago do prio pasado” (BERTRAN, 1997, p 307). Em um esforco de sintese, Poulo Bertran retrocede & préhistéria do Planalto Central «em diego 00s mites expicadores do mundo do cerado, acompanhand 0 movimento das bones eo funda ds vas © das sesmarias, Ness tempo largo, 0 exaust do ouro perde a dmensdo de moti entra iflncia minincula chante da heranca do homo cerratensis madema.A pubiicagdo da cooferéncia A meméria consi @ a goianidade (publcada engnolmente na Revista do ICHL. em 1994) & ura homenagem do Revises da UFG ao historaer falco em 2 de outubro de 2005, que reconheceu, no corpo toto @ <éspero das drvres do ceed, substnca de uma cura hstérica NO FREIRE SANDES Professor do Departamento de Hitéra da UFG A MEMORIA CONSULTIL EA GOIANIDADE e Paulo Bertran 1 =A meméria insuportavel Talver seja da humana natureza construir-se de mitos ¢ de mi ificacdes. a Essa parte ilusionéria responde talvez pelo melhor e pelo pior que a diversificada natureza do homem e de sua civilizagéo realizaram na Historia A disciplina da Histéria deveria unificar tudo isso, a0 real e 20 imaginario histérico, mas nfo pode fazé-lo porquanto as auto-imagens ou Os auto-esteredtipos sio indescoliveis da natureza humana e 0 Revita UFG fate 2006 /Ano Vn AMEMORIA CONSULTILEA GOIANIDADE @ Mmeméria homem é incapaz de ver-se sem isso. As vezes cogitamos se a lembranca da Historia nao ¢ insuportavel ao homem. Quem entre nés se lembra do que se passava neste dia, hd dez anos, ha cinco anos, hi mesmo um escasso més? Nossas hist6rias de vida so amontoados de impresses erraticas de pulses incompletas, de degeneragées da meméria. Alguém ao tentar reconstituir 0 passado acaba por transformé-lo em generalizagées, em coisas que existiram e as vezes em coisas que sequer existiram. E que passam a existir, sem que ocorra qualquer espanto com isso. A historia éa grande prostituta de todos nés: historia e desejo de historia é o que perseguimos. A histéria de nossas vidas e de nosso tempo acaba sendo pouco mais do que uma sua auto-imagem fragmentada, uma sintese tosca do individuo, talver feliz por libertar-se do peso da memoria através da quimica benevolente dos neurénios cerebrais. Ora, em indeterminado momento, as histérias do individuo e da coletividade se interpenetram. Em que pese haver os chamados relatos e crénicas comumente escritos ha quatro ou cinco mil anos, para efeitos praticos do cotidiano, © horizonte histérico individual e coletivo atinge no maximo trés geragdes, ou seja, 0 cidadio presente, seu pai e seu avd, com laivos de memérias, citagSes de seus tempos, somando um século no maximo. Em condiges normais, além de cem anos so hd registro de excepcionalidades muito marcantes, generalidades historicas que aprendemos na escola. Vamos exemplificar com um caso de histéria oral. 2--A historia vista no campo Ha muitos anos venho realizando uma pesquisa informal sobre a preservacio da meméria oral entre os roceiros do planalto brasiliense: 05 pirenopolinos, os formosenses, os luzianenses, os corumbaenses € 05 cocalinhenses. So analfabetos funcionais em geral. Em algum momento passaram por uma escola, mas em geral nio viram utllidade em ler e escrever. Em contar sim, pois é de utilidade econémica didria. Mesmo assim, “de cabeca”, no “rumo” do ato, quase sempre correto. Nao tém esses meus caros informantes nocao precisa de tempo. Para os mais curiosos o comego de tudo situa-se com a criagio do Pata UG / pt 2008 A VL 63 meméria e 4 MEMORIA CONSULTILEA GOIANDADE mundo por Jesus. Era um mundo muito plano, cheio de matos e de aguas abundantes. Mas o homem (e um pouco menos, a mulher) tinham aprendido a falar e a tudo corromper com palavras. Velo entéo a “correi¢io”, o dilvio e, quando baixaram as Aguas, surgiu a atual natureza tormentosa, cheia de morros e erosées, terras fracas e pobreza geral de aguas e de alimentos. E 0 fim de tudo também serd o dilivio, que esta para acontecer a uns tantos anos. Pois ha 0 dito de que de dois mil nio passara. Nao hi nogio de tempo, de século. Hé no comeco, que € 0 dilivio. Ha o antiguissimo, que é tempo dos bandeirantes. Ha no tempo dos antigos, que merece designar século XIX. E finalmente 0 tempo da “bisoravé” que 6 aquele desde o qual se faz a meméria presente, 0 ‘tempo encadeado até o hoje. E quase sempre um resgate matrilinear: quem contou foi a mie, a av @ essa estranha figura da “bisoravé". Ha familias de corigem setecentista no municipio de Cocalzinho, os Silva Moreira e os Abreu Lima em que nio é estranho vir 0 sobrenome pela linhagem materna A época do plebiscito sobre formas de governo, perguntei ao Sr. Henrique Moreira no que ia votar. No Rei nao, respondeu de bate-pronto, pois seria voltar a escravidio e a “recoluta”. Qual “recoluta”? Arrecruta da “guerra do Lopes", respondeu-me sem pensar. Eis a guerra do Paraguai lembrada em Cocalzinho de Goids, sem duvida por salvamento de alguma distante meméria familiar ou coletiva traumatizada pelo recrutamento compuls6rio. Na familia da minha mu- ther, que é mineira, também ha uma legenda parecida, lembrando um rapaz aparentado salvo da Guerra do Paraguai, por cujo milagre mandou-se fazer um oratério. ‘A meméria mais antiga porém é a dos indios e a dos “bandeirantes”. A denominacio bandeirantes ou ot bandeirstas parece ser um neologismo surgido em fins do século XVIII quando ja se ia extinguindo na Vida colonial esse tipo de instituigao. Em toda a regio do planalto, ha indicios de mineragio. Quem a fez é uma indagacio natural do roceiro. E a resposta socializada é © “bandeirante”. Na verdade foi seu sexto ou sétimo av6 o tal bandeirante, mas essa € uma meméria de todo extinta, irreconhecivel, pois que pertence ao reino antiguissimo das assombracées, dos vultos, da mae gua, do “entero” de ouro, do incognoscivel. Ha uma lembranga indigena: a bisavé Joana Teiera, fazedora de telhas, pega a lago na fazenda Mato Seco (DF) e mantida presa um ano, até domesticar-se. Ha as memérias mais recentes. A “recoluta” dos Caiado. Os “revoltosos” de 1925 (que prometeram voltar) de quem sio lembrados o Presto (Luis Carlos Prestes) e 0 “cancio (canhio?) de fogo” — Siqueira Campos. Isso porque andaram pela regido, fazendo, nna sua opiniéo, desordens e violéncias. Nao tem Henrique Moreira qualquer lembranga especial da colonizagio portuguesa, ou de Vargas ou de Juscelino ou dos governos militares, a ndo ser a do “Delfino Neto”, a partir de quando, na sua opinio, o préprio “Delfino”, em pessoa, manda comprar gado quando esta barato e manda vender quando fica caro, inviabilizando assim, nos lucros, a sua antiga profissio de comerciante de gado. 3-0 senso comum e a degeneragao da historia Fiz esta longulssima introducao para voltar ao tema da auto-imagem histérica do brasileiro e particularmente a auto-imagem historica do goiano, Diferente dos roceiros do entorno de Brasilia, nés aqui, professores e alunos universitarios, temos uma carga de informagées historicas incomparavelmente maior do que o Sr. Henrique Moreira, que por sua AMEMORIA CONSULTILEA GOIANIDADE® meméria vez 6 insuperavelmente mais safo que qualquer de nés no conhecimento agrostoldgico e ecossistémico e fitoterdpico e zooldgico e botinico, teis ao mundo em que vive. Nada impede porém que nossa carga maior de literaturas as trabalhemos em sentido tio estereotipado quanto o Sr. Moreira, como € proprio da natureza e do sentimento humano, seja ele culto no dominio da escrita, seja ele culto no dominio da oralidade. Em nenhum dos casos (novamente a imperfectivel e diversa ede natureza humana), & impossivel obter-se qualquer ciéncia humana sem passar-se pela tresloucada e comprometida figura de seu pesquisador. Fazer ciéncias humanas — acho eu, hoje — deve ser como a pritica do exorcismo, a ex-conjuracio tanto dos deuses quanto dos deménios da historia, até comecar a se ver mais limpamente, com mais intuigo aquilo que é 0 metabolismo real do homem pensando sobre si proprio. Nesse caso, ao pesquisar, refazer e escrever histéria, que é talvez a mais quantica reflexio do universo de Eisenberg, nao posso deixar de pensar sobre mim préprio enquanto brasileiro ¢ enquanto golano deste horizonte histérico probabilistico e irrazodvel, essa massa quente ¢ informe da ltima década do milénio. Mas prefiro abster-me de qualificar nossos lugares comuns, o discurso do senso comum, esse saco de gatos e pancadas que veste 0 flagelo de nossas auto-imagens neste fim de século, ‘Temos muito a aprender sobre o metabolismo das idéias, das ilus6es, da confusa natureza humana. Despoluir-se para ver o que existe. Despoluir-se para a experiéncia imediata, para ver 0 neto ou bisneto mi-grando para as estrelas. Ou para no ver bisneto nenhum, Antigamente chamava-se a isso Heuristica do discurso. Hoje & despolui¢go mesmo, se & que resolve. Temos que parar urgentemente de procriar e de poluir 4 ~ Gois: trés revisbes necessarias Nesse sentido ha duas ou trés coisas sobre a historia de Goids que é oportuno despoluir para obtermos objetos mais dteis e iluminados, para nosso deleite e sapiéncia, e para consumo de futuras geracdes. Um deles € 0 paradigma da decadéncia de Goids no passado, que conforme o sentir de alguns escritores iria desde a abrupta queda da minera¢o em 1780 até um variavel fim (segundo uns até 1914 com a Pata UG / pt 2008 A VL 6s meméria e 4 MEMORIA CONSULTILEA GOIANDADE 6 entrada da estrada de ferro), segundo outros até 1937, com o Estado Novo e a construcéo de Goinia, Haja decadéncia! No caso extremo nada menos do que 157 anos de “decadéncia”. Deve ser erro de denomina¢ao, ou erro de conceito. Deve ser, quem sabe, puro e simples desconhecimento, falta de pesquisas sobre um século inteiro, 0 século XIX. Em dois e meio séculos de istoria de Goids quase que de todo ignora-se um século inteiro, o da “decadéncia’, justo quando em todos os quadrantes nasciam centenas de fazendas e dezenas de povoados! Outro perigoso buraco negro da histéria de Gols que precisa ser urgentemente compreendido é o paradigma “Goiania”. E aqui a mitificagao ¢ mais complexa. Diriamos, para néo espichar 0 assunto, que a construgio da nova capital se deu justo no bojo da fortissima construgao ideolégica ¢ institucional da Revolucio de 30 e da ditadura de 37, que entre nés fixam, na verdade, a Repiblica autoritaria e o Estado patriarcal brasileiro E processou-se em tais condi¢ées, que arrasou, aniquilou por inteiro a nogao de continuidade na historia goiana. E no s6 de continuidade: provocou a ruptura do tecido cultural antigo, urdido com a velhice de dois séculos pregressos de historia. Ea ruptura daquilo que hoje se chama goianidade, um desejo de identidade que Golania, banalizada como qualquer outra capital brasileira, deseja assumir tardiamente, para transformar em mito, para fins diversos, econémicos e culturais. E muito provavel que toda visio, toda interpretacao, toda versio historica, econdmica, antropolégica sobre Goids, incluindo-se aqui o olhar astuto desta Academia, seja nos estudos de Histéria, de Ciencias Sociais ou os Literarios, quase todos se fizeram com os éculos reducionistas, estadonovistas, da visio de poder de Goiania. © paradigma “Goiania” vem claramente expresso em um ensaio do mestre de todos nés, Luis Palacin, quando confessa seu pasmo de no encontrar entre os goianienses qualquer trago que os ligasse & memeéria da mineragao do século XVIII, e muito pouco que aludisse a0, XIX. So os dculos de Goiania. A visio estadonovista todo-poderosa de Golania. Em certo sentido, a tica do opressor. Que vemos hoje, de outro Angulo, onde pesquisei. Gotis-Velho, Niqueléndia, o velho Descoberto de Porangatu, 0 arraial de Cavalcante, e as regiées do Planalto: © Distrito Federal, Piren6polis, Corumba, Formosa, Luziénia, Bonfim, Cocalzinho.. Emtodos esses lugares encontrei,apésanecessaria introjegio, o vernaculo da obscura goianidade, uma prosédia cultural descomplicada que considero ser mistério apenas na dtica goianiense. Encontré tecidos histéricos razoavelmente preservados, sobretudo nas memérias familiares. (© jé citado Sr. Henrique da Silva Moreira, meu indigitado historiador, natural do municipio de Cocalzinho, nunca veio a Goiinia, nunca precisou de Goiania, E segue sem maiores tropegos sua histéria de vida, desde 0 seu “bisoravo” Sebastido da Silva Moreira que em 1775 sesmariou mais de 100.000 hectares de terra em Santo Anténio do Descoberto, em que o “bisoraneto” nada veria para viver a larga @ aprazivel e pobre e viver feliz, do comércio de miudezas e de gentilezas. Finalmente, ha um ltimo paradigma das contradigées intelectuais de Goids que encontramos disseminado também na historiografia do Brasil que 6 uma tal de penetracao do capitalismo, seja em Goiés ou no Brasil. Ha por ai ainda escritores assegurando que a permanéncia da escravidao até 1888 impedia o surgimento das sociedades de capital e do capitalismo no Brasil. Pura invencionice historica. Por falta de espaco nao contestarei as bases teoricas desse exdtico conceito penetrante. Vamos a exemplos praticos. Comecemos por aquela perturbadora carta de Voltaire, 0 velho e bom Jean Francois Arouet, 0 campeto das liberdades humanas ~ em que se felicita a si préprio por ter salvo dezenas de africanos condenados morte, seja em virtude de guerras tribais seja em virtude das periédicas crises de fome da Africa — para transporté-los para as Américas, onde bem recebidos e alimentados pelos fazendeiros Pata UG / pt 2008 A VL AMEMORIA CONSULTILEA GOIANIDADE @ meméria das Antilhas e do Brasil escapariam da morte certa ‘em seus paises. Era uma sociedade por ages em um navio negreiro. Ao tempo de Voltaire, o tréfico de negros era uma agio humanitaria e ao mesmo tempo lucrativa, um negécio como outro qualquer, plenamente capitalizavel nos termos da época. Ha outras informagSes que trabalham contra ‘essa tese da penetracdo do capitalismo em Gols. Em 1892, ha cem anos, um membro da Comisséo Cruls ficou estupefato ao constatar quanto havia subido 0 preco do boi em Goids em decorréncia das recentes cotagées favordveis da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, Achamos, portant, que tal penetragdo do capitalismo esta pessimamente descrita, tanto na sua configuracao geral quanto nos seus particularismos. Asvezes é confusio como processo de modernizacio ou com os gigantescos__empreendimentos colonizatérios que a regiéo experimentou ao longo deste século, entre os quais Goiania e Brasilia. © povo goiano nao teve tempo para pensar em histéria. Esteve 0 século todo ocupado em construir cidades e montar fazendas. Agora que essas coisas estio prontas ¢ hora, talvez, de ter tempo para pensar em si préprio e encontrar sua imagem de historia. he Polestra proferida no Departamento de Ciéncias Sociais da UFG em 19/06/93 a

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