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(Re)significando pesquisa e pesquisador na urdidura da investigação de indígenas

transgêneras - Um processo de auto decolonialidade.

(re)meaning research and researcher in the transfer of indigenous indigenous


research - a process of auto decoloniality.

(Re)Significado investigación/investigador en la advertencia de investigación - el


proceso de descolonialidad automática.

Alexandre Araripe Fernandes1


Servidor público da Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins
araripeto@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-7328-8592

Idemar Vizolli2
Professor Doutor da Universidade Federal do Tocantins
idemar@uft.edu.br - https://orcid.org/0000-0002-7341-7099

Resumo: A tessitura deste trabalho de pesquisa tem se construído a partir também de


elementos pessoais e subjetivos desde os seus primeiros momentos: a identificação dos
marcos referenciais bibliográficos e teóricos, ajustes de suas diretrizes e organização
documental, representando um processo de desconstrução ou mesmo reconstrução para
iniciar a pesquisa propriamente dita. Ao abordar corpos e corporalidades no aspecto da
identidade de gênero somados ao recorte étnico, em relação à Educação/Currículo, no
processo de pesquisa-ação implicada de campo, ocorreu um auto estranhamento de saberes,
choque e confronto muito antes do estranhamento ou crítica aos documentos ou políticas
educacionais, que viria ao final da investigação. O que provocou a necessidade de
ressignificar ou mesmo deslocar-se de um suposto saber de pretenso pesquisador. Neste
artigo o autor dialoga as concepções e aprendizados pessoais frente ao objeto de pesquisa
elencado (transgeneridade entre indígenas), com textos/autores apresentados na disciplina
de Educação, Diversidade e Interculturalidade, do Programa de Pós-Graduação Profissional
em Educação, da Universidade Federal do Tocantins e comenta como estas e outras leituras
contribuíram para o processo de preparação não só da própria pesquisa como também, para
a formação do futuro pesquisador. O encontro com as temáticas da (inter)culturalidade, da
(de)colonialidade provocou de antemão, a ressignificação do espaço da pesquisa e do
pesquisador. Espera-se que ao final do artigo possibilite a reflexão crítica do quanto de
colonialismo se torna presente no fazer a pesquisa.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação pela Universidade Federal do
Tocantins, acadêmico em História pela Faculdade Educacional da Lapa (FAEL) e coordenador da implantação
do Observatório de Determinantes Sociais em Saúde da Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins.

2
Doutorado em Educação pela UFPR - Universidade Federal do Paraná, Mestre em Educação pela UFSC,
professor adjunto da Universidade Federal do Tocantins, professor e orientador nos Programas de Mestrado
Acadêmico em Educação e Profissional em Matemática; Coordenador estadual da REAMEC - Rede
Amazônica de Educação em Ciências e Matemática - Doutorado. Coordenador estadual do PNAIC - Pacto
Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC (2016).
Palavras-chave: pesquisa - estranhamento - povos tradicionais - interculturalidade -
formação.
Abstract: The structure of this research work has also been built from personal and
subjective elements since its first moments: the identification of bibliographical and
theoretical frameworks, adjustments to its guidelines and documentary organization,
representing a process of deconstruction or even reconstruction to begin the research itself.
When addressing bodies and corporealities in the aspect of gender identity added to the
ethnic cut, in relation to Education / Curriculum, in the process of action research implied in
the field, there was a self-strangulation of knowledge, shock and confrontation long before
the estrangement or criticism of the documents or educational policies, which would come
to the end of the investigation. This caused the need to reframe or even displace a supposed
knowledge of an alleged researcher. In this article, the author dialogues the personal
conceptions and learnings regarding the listed research object (transgenderity among
indigenous people), with texts / authors presented in the discipline of Education, Diversity
and Interculturality, from the Professional Graduate Program in Education, at the
Universidade Federal do Tocantins and comments on how these and other readings
contributed to the process of preparing not only the research itself, but also to the formation
of the future researcher. The encounter with the themes of (inter) culturality, of (de)
coloniality provoked, in advance, the resignification of the space of research and of the
researcher. It is hoped that at the end of the article it will allow a critical reflection on how
much colonialism is present in doing the research.
Key-words: research - strangeness - traditional people - interculturality.
Resumen: La estructura de este trabajo de investigación también se ha construido a partir de
elementos personales y subjetivos desde sus primeros momentos: la identificación de marcos
bibliográficos y teóricos, ajustes a sus directrices y organización documental, que
representan un proceso de deconstrucción o incluso reconstrucción para comenzar La
investigación en sí. Al abordar los cuerpos y las corporealidades en el aspecto de la identidad
de género agregada al corte étnico, en relación con la Educación / Currículo, en el proceso
de investigación de acción implicado en el campo, hubo una auto extrañeza del
conocimiento, shock y confrontación mucho antes del alejamiento o crítica de los
documentos o políticas educativas, que llegarían al final de la investigación. Esto provocó la
necesidad de replantear o incluso alejarse de un supuesto conocimiento de un supuesto
investigador. En este artículo, el autor dialoga las concepciones personales y los aprendizajes
con respecto al objeto de investigación enumerado (transgénero entre los pueblos indígenas),
con textos / autores presentados en la disciplina de Educación, Diversidad e
Interculturalidad, del Programa de Posgrado Profesional en Educación, en la Universidade
Federal do Tocantins y comentarios sobre cómo estas y otras lecturas contribuyeron al
proceso de preparación no solo de la investigación en sí, sino también a la formación del
futuro investigador. El encuentro con los temas de (inter) culturalidad, de (de) colonialidad
provocó, de antemano, la resignificación del espacio de investigación y del investigador. Se
espera que al final del artículo permita una reflexión crítica sobre cuánto colonialismo está
presente en la investigación.

Palabras clave: investigación - extrañeza - pueblos tradicionales - interculturalidad.

2
Introdução

Somos donos de um saber transmitido


espontaneamente pela oralidade, sem cobrar nada por isso.
Antonio Bispo dos Santos

Ao final da disciplina Educação, Diversidade e Interculturalidade, do Programa de


Pós-Graduação Profissional em Educação, desta universidade, tendo como produto final do
saber adquirido, um ensaio escrito. Já de antemão o foco deste é, dialogar o mais próximo
possível com o objeto da pesquisa a ser desenvolvida e à situação de sua problemática, a
pesquisa em si trata do fenômeno da transgeneridade entre indígenas Karajá Javaé. A
ressignificação a que se refere o título do ensaio tornou-se importante para a preparação não
só dos referenciais teóricos da pesquisa como para a reconstrução ou ampliação de saberes
para o pesquisador.
A necessidade surge a partir do estranhamento suscitado diante dos corpos
transgenerificados, residentes numa aldeia indígena, o que nos causou especial impacto. Tal
estranhamento naquele espaço específico e imaginado pelo autor _ uma aldeia indígena _
incomodou, desestruturou, des/formatou e desconfigurou o pensar sobre a situação,
ressaltando na própria reação de questionamento e dúvida dos porquês daquele espaço ser
para o pesquisador, improvável de tal fenômeno.
Ao longo do percurso de leituras, da pesquisa bibliográfica em novos referenciais,
principalmente os que abordam a interculturalidade e consequentemente os que versam sobre
a decolonialidade, provocaram reflexões sobre o próprio pensamento.
As atitudes de julgamento e reflexão em quase sua totalidade, colorida com nuances
colonialistas sobre os sujeitos e suas culturas, hábitos e costumes, seja para as concepções
do/de exotismo folclórico ou estranhamento das diversas maneiras de ser indígena, ou seja,
uma forma de pensar colonizado estava ali e se apresentava com toda sua pujança colonial.
O estranhamento frente ao diferente, à necessidade da classificação (ou a pobreza
dela) e o batismo sobre coisas, fenômenos e pessoas, chama a atenção de que talvez
considerar esses aspectos internos e pessoais eram também partes importantes de serem
assinaladas e aprofundadas em reflexão e problematização dentro da pesquisa. Corpos
estranhos que subjetivamente criticavam o aparato colonial construído desde o momento da
colonização até aqui.

3
A imposição de se reconstituir no processo de tornar-se um pesquisador, frente à
situação encontrada e também frente à implicação necessária na pesquisa antropossocial,
em/para a prática educacional, ficou clara em se tratando de um fazer decolonial, muito em
decorrência da própria pobreza de conteúdo e argumentação para apreciação do objeto da
pesquisa em si.
A partir dos autores estudados, considerando a base epistemológica no campo da
Fenomenologia, com metodologias da etnopesquisa, da pesquisa-ação e pesquisa implicada,
ou seja, retratar o fenômeno como ele se apresenta, por uma narrativa com os sujeitos e não
sobre/de/para estes, isto é, descrever o fenômeno observado e vivido, no “próprio fazer
reflexivo” tal qual ele se apresenta aos nossos olhos (ROCHA, apud BICUDO &
ESPÓSITO, 1997).
Dente os autores apresentados na disciplina que trouxeram o enfoque da
interculturalidade e dos estudos decoloniais, importantes para o processo preliminar de
pesquisa (revisão bibliográfica, observação das necessidades prioritárias e outros
elementos), Candau, Boaventura Sousa Santos, Quijano, Fleuri, Antonio Bispo dos Santos,
mereceram destaque.
A importância de se observar a transgeneridade entre indígenas é de (se) confrontar
que independente da formação curricular de um educador ou de qualquer área de
conhecimento que se utilize da Educação em sua práxis, que tenham como orientação de sua
atividade profissional, o respeito às tradições de povos originários como também o respeito
à diversidade sexual (e em como lidar com a autodescoberta das sexualidades no
desenvolvimento infanto juvenil, em ambiente escolar), caberia possivelmente ao
profissional se dispor a deslocar-se de suas raízes/saberes/crenças, para conhecer e entender
este e outros fenômenos que fujam de sua formação técnica, para avaliar se poderia estar
perpetuando-se a catequese colonial em seu fazer.
Conclui-se ao final deste ensaio examinando e/ou explicando da importância e
relevância que o fenômeno do estranhamento suscitou para o autor e sua pesquisa e o que
impacta na (sua) prática profissional enquanto educador. E o quanto esse material, O
ESTRANHAR Outros Sujeitos deve ser problematizado.

O estranhamento de cada dia

4
Setembro de 2014.
Corpos indígenas travestidos foram vistos pela primeira vez. Seios
siliconados/hormonizados, ausência de pelos cabelos longos, sobrancelhas feitas, quadris
arredondados e unhas longas pintadas, roupas femininas, comportamento da mulher indígena
comum _ em pares mãos e braços entrelaçados ao caminharem, quando não estão carregando
suas crias.
Este fato aconteceu numa ação pública de Saúde, na Ilha do Bananal, na Aldeia
Canoanã, realizada em conjunto entre a gestão do Tocantins, Mato Grosso, Ministério da
Saúde, Conselho Nacional de Mulheres Indígenas (CONAMI) e a Associação Brasileira de
Redução de Danos (ABORDA) com o tema: Redução de Danos ao Álcool e Drogas e
Prevenção às IST, em 2014. Nesta oportunidade foi realizada a primeira aplicação do teste
rápido em Fluido Oral para HIV no Estado.
Quatro corpos estranhados, quatro indígenas travestidas/transgenerificadas e muitas
perguntas sem respostas. Ao longo da permanência na aldeia afinar a escuta em conversas
com aqueles que se autodenominavam gays e outras figuras pertencentes à localidade, foi a
primeira busca de explicações, uma pequena amostra de informações peculiares que
suscitaram o desejo e a necessidade de saber mais.
Em Fernandes (2015) há o relato referente à escuta curiosa diante das narrativas e
um olhar de estranhamento dos/sobre os comportamentos e costumes até então
desconhecidos dos Javaé e Karajá da Ilha do Bananal. Este escrito parte do que foi
documentado durante a ação de saúde, destacando-se entre outras que:

● jovens rapazes mantém práticas homoeróticas com sua iniciação sexual


começando geralmente dessa forma, pois assim não seria necessário casar no
enquadramento tradicional de seu povo.
● para a relação sexual o jovem indígena, além das ritualísticas específicas aos
gêneros (ritual da Casa de Aruanã), comuns à tradição do povo Javaé e
Karajá, se compromete com a moça indígena pelo simples fato de ter contato
corporal (seja numa simples dança de forró), só então, após o compromisso
matrimonial assumido perante as famílias, pode ter relações com uma
parceira.

5
● as indígenas transgêneras participam das ritualísticas referentes ao
masculino, seu papel de gênero ainda é considerado pelo corpo biológico3.

Será de fato esse enquadramento tradicionalmente indígena?

Ao se observar Bordieu, um escritor representante do pensamento dos estudos


hegemônicos, mas ainda uma referência

A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo


feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode
assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre
os gêneros [...] Bordieu, A Dominação Masculina, 2012)

Cabe aqui a inserção de uma pesquisa relevante para este trabalho, descreve a

homossexualidade entre indígenas do Brasil, do pesquisador Estevão Fernandes.

FERNANDES (2016) identificou autores que por meio da etnografia (não imparcial),

relataram dentre as peculiaridades encontradas, o fenômeno em si. Mais precisamente, a

partir dos escritos à época da invasão dos portugueses e demais europeus. Nestes escritos,

mesmo com o valoramento de condenação sobre as práticas sexuais por parte dos europeus,

é possível perceber em Fernandes, que os relatos se referem a cenas em que as práticas

homoeróticas eram cotidianamente sabidas pela comunidade, repletas de muitos

simbolismos e identidade social variando em explicações específicas a cada povo.

São encontrados por Fernandes diversos relatos sobre os Tupinambá, Karajá, Javaé,

Xerente, Chambioá4 (Xambioá), Curajahis (Kurajahi), Bororo, Apocayuva-Guarani, Tikuna,

Guaicuru, Mbyá, Nambikwara, Tenetehara ou Teteara, Trumai, Guayaki, Tapirapé,

Mehináku ou Meinacu, Barasana, Krahó, Cudina, Kadiwéu ou Cadiuéu (subgrupo dos

Embaiás, Guarani-Nhandewá, Kaiowá, Terena, Aikewara, Kaxinawá.

3
Os Javaé possuem a ritualística da Casa de Aruanã, com os ritos de passagem da fase de menino a homem.
Todos os homens da aldeia participam desse ritual, permanecendo dentro de uma oca construída para tal
finalidade, onde são incluídas também as indígenas travestis/transgêneras (Fernandes, 2015).

4
Destaque para grafia obtida na transcrição de Fernandes ao relato de Couto de Magalhães (1876). Xambioá
etnia pertencente ao território outrora goiano, hoje tocantinense.

6
Com variedade expressiva de povos que revela a extensão territorial a que o

fenômeno foi encontrado, desde o alto Xingu às terras do centro oeste. Ao se observar a linha

do tempo em que os inúmeros relatos são registrados, e que o fenômeno das práticas sexuais

homoeróticas acontecem, permite o questionamento sobre a teoria que se construiu no relatos

dos europeus de que a homossexualidade tenha surgido em decorrência dos contatos com os

não indígenas, fazendo os seus próprios descendentes gerações após gerações acreditassem

que assim se sucedeu. Pode-se observar quando se testemunha a narrativa: “Eles aceitam?”

quando leigos questionam sobre indígenas transgêneras nas aldeias, indicando o seu

(des)conhecimento sobre a História, do mesmo modo que os próprios indígenas,

possivelmente também desconheçam os costumes pré-coloniais, já incorporados de um

enquadramento judaico-cristão a respeito da sexualidade. Esta confirmação se dá na

investigação de Fernandes que registrou que os indígenas afirmam que seus pares passaram

a assumir uma identidade LGBT apenas e a partir do contato com os não-indígenas, sendo a

orientação sexual homoafetiva e identidade de gênero trans, resultante de perda de cultura.

(2019, 191)

É possível observar na investigação feita pelo autor que os povos Karajá e Javaé,

no Estado do Tocantins, os quais representam a amostragem a ser pesquisada, são

identificados já no pós-colonialismo, como práticas condenadas, na descrição de Couto do

Magalhães.

Outras análises recentes também apontam para práticas homossexuais entre os


Karajá (Macro-Jê), grupo da mesma família linguística dos Xambioá
(mencionados aqui a partir de Couto de Magalhães, 1876). Entre os Karajá, Torres
(2011) aponta, partindo do relato de uma enfermeira, que “entre os Karajá tem
muitos bissexuais, é muito comum encontrar homem casado que mantém relações
sexuais com vários outros homens, os que se assumem como homossexuais nas
aldeias são muitos, eles sempre têm 5, 6 casos com homens casados nas aldeias”
(: 189). Entre os Javaé (também da família Karajá), a tese de Patrícia de Mendonça
Rodrigues (2008) aponta a existência de pajés homossexuais que cobram serviços
sexuais dos homens desejados, em troca das atividades xamânicas (:762), sendo
que os Javaé possuem um termo para homossexual (hawakyni) que significa “falsa
mulher”. (Fernandes, 2016, p. 26-27)

É possível observar na relação feita por FERNANDES dos relatores e seus escritos

que,

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A homossexualidade indígena aparece de múltiplas formas em diversas fontes
desde o início da colonização do Brasil. Autores como Gaspar de Carvajal (1540),
Padre Manuel da Nóbrega (1549), Padre Pero Correia (1551), Jean de Léry (1557),
Pero de Magalhães Gandavo (1576) e Gabriel Soares de Sousa (1587) fazem
referência à homossexualidade indígena [...] (Fernandes, 2016)

Tanto FERNANDES (2016) como também MOTT (2003) encontraram palavras as


quais os jesuítas e outros colonizadores batizaram as práticas sexuais dos indígenas na
época de sua chegada: “pecado nefando”, sodomia”, “lascívia”, “luxúria” e outras.

FERNANDES assinala não ter encontrado nenhum escrito entre os períodos entre
1639 e 1795, quando então passam a haver escritos de militares etnógrafos, já com
modificações do enquadramento europeu caracterizando histórica, cultural, econômica e
sociologicamente a transição das identidades nativas para o pensamento hegemônico.
Enquadramento este que assinala ainda que a homossexualidade é algo advindo do contato
(trocas interativas com modos e hábitos dos não-indígenas, incorporando-as), com funções
de barganha e interesses comerciais/sociais.

[...] registros como os de Francisco Rodrigues do Prado (militar) sobre os


Guaykuru (em 1795, referido aqui como Rosário, 1839), Adolfo de Varnhagen
(militar e historiador) sobre os Tupi (Varnhagen, 1854) e Couto de Magalhães
(militar e etnógrafo) sobre a homossexualidade indígena entre os Karajá,
Chambioá, Curajahis e Javaé (Magalhães, 1876). (Fernandes, 2016)

Aproximamo-nos da Ilha do Bananal, essa faixa territorial que pertence ao Parque

do Araguaia, a maior ilha fluvial da América. Próximo ao distrito do município de Formoso

do Araguaia, no Tocantins, está a Aldeia Canoanã (fig. 1).

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Fig. 1 – Visualização do Parque Nacional do Araguaia e localização da Ilha do Bananal, com as principais
aldeias da região, como Canoanã que foi visitada - Tocantins. https://www.bing.com

Nela encontram-se os corpos/sujeitos estranhos/estranhados, quatro

travestis/transexuais residentes na aldeia. Estranhamento marcado pelo olhar da

diferenciação, da distinção, da naturalização em buscar alguma nomenclatura classificatória

daquelas pessoas, dentro e fora do seu território.

[...] essa naturalização das diferenças está o fato de que o conservadorismo não é
tão somente um estilo de pensamento; mais do que isso, ele é um modo de vida,
um modo de estar no mundo que é típico da modernidade, muito embora, a rigor,
tal modo de vida está na contramão dos pressupostos iluministas. (VEIGA-NETO,
2002)

O estranhamento que o pesquisador se refere, define seu espaço de


ser/estar/pensar/falar no presente momento, circunscreve-se no espaço de fala marcado por
seu ativismo e militância LGBT, cuja experiência e vivência com pessoas trans e com o
fenômeno da transgeneridade/travestilidade propriamente dito, se deu no contexto urbano,
pela naturalização de que debates sobre gênero e sexualidade pertenceriam a espaços
acadêmicopolíticos, desconhecendo-se como fenômeno emergente em qualquer condição
humana, mesmo em povos tradicionais/originais. Num (su)posto saber de que a definição e

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(auto)descoberta de uma identidade de gênero trans seria fruto de uma formação e
conhecimentos intelectualizados e que tal coisa não seria pertencente a um contexto cultural
referentes a grupos “folclóricos”. Naquele momento estaríamos com um olhar de
regulamento do (trans)gênero no que afirma Butler,

De hecho, gran parte de la importante obra de los estudios gays y feministas se


ha concentrado en los reglamentos mismos, ya sean legales, militares,
psiquiátricos o de cualquier otro tipo. Las preguntas que se formulan en estos
estudios tienden a exa- minar cómo se regula e! género, cómo se imponen dichos
reglamentos, cómo se incorporan y cómo se viven por parte de los sujetos sobre
los cuales se imponen. (Butler, 2:67, 2006)5

Uma visão regrada de que a transgeneridade somente seria possível à condição


humana produzida nas cidades, onde cada maneira de ser possui uma nomeclatura, uma
categoria, uma classificação, uma letra. Onde um confere ao outro a sua denominação e
existência seguindo padrões de classificação.
Povos indígenas possuiriam, reiterando o pensamento do autor deste ensaio, um
formato diferenciado por suas culturas e tradições. Então esse fenômeno _ num pensamento
senso comum ou colonial _ não seria “coisa de índio”. E se assim o fosse, a identidade de
(trans)gênero seria um processo desenvolvido pelo indígena somente na cidade ou contexto
urbano, em contato com as politizações, grupos e movimentos identitários e ideológicos
LGBTQI+. Um olhar e (pre)conceitualização tipicamente coloniais: hegemônico, cristão,
branco, capitalista e patriarcal. Corroborando as teorias dos primeiros relatores europeus: a
prática homoerótica se deu por influência do contato com o não indígena.
Mais tarde se percebe que a direção da “identidade” foi inversa, da emersão e
identificação da própria pessoa com o gênero ao qual se enxerga e sente, quando uma
indígena trans na ação de saúde realizada na aldeia, afirmaria ao ser questionada como se
percebia menina/mulher, dizer que quando desde pequena queria seu cabelo grande, porque
achava que era menina, brincava com as meninas, mas sua mãe cortava seus cabelos, ela
reclamava dizendo que suas colegas tinham cabelos compridos e sua mãe dizia que ela era
menino e que iria casar, fazer filhos e formar família (sic).
Ainda da vivência pessoal do autor o processo conhecido na linguagem/gírias de
travestis com as quais trabalhou chamado de “montação”, “montar-se”, “montada” ou “estar
feita/o”, que se refere ao percurso em que a pessoa (trans)passa ou percorre para chegar a
adquirir um corpo e identidade (modificações corporais, vestuário, procedimentos estéticos

5
Formato itálico de uso nosso por se tratar de outro idioma.

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e cirúrgicos) ou simplesmente se travestir em concordância à imagem corporal desejada, só
seriam possíveis nos centros urbanos e nunca imaginada em uma aldeia.
A percepção de que o (pré)conceito torna o indivíduo dono e prisioneiro de uma
presunção e autoridades que o restringe, atreladas e contextualizadas. Segundo Arroyo,
(2014) que traz sobre o marcador social de raça, do qual se parte numa escala de cor, onde o
branco classificou a cor da pele como superior e ainda o é majoritariamente no inconsciente
coletivo, em relação às demais da escala cromática e cromossômica e que se estende aos
recortes e marcadores sociais que incluem o gênero.

Quais as funções dessas ignorâncias? Perpetuar uma das funções da autoidentidade


das teorias pedagógicas hegemônicas: ignorar os saberes, valores, culturas, modos
de pensar e de se afirmar e humanizar dos povos colonizados, dos trabalhadores
para, reafirmando sua inferiorização, afirmar a função da pedagogia de trazê-los
para a cultura e o conhecimento legítimos, para a civilização e maioridade.
Reconhecer que esses povos tem Outras Pedagogias produtoras de saberes de
modos de pensar, de se libertar e se humanizar desestabilizaria a própria
autoidentidade da pedagogia hegemônica. (ARROYO, 1:30, 2014)

Para circunscrever e problematizar este estranhamento nos valeremos de algumas


considerações a lembrar.
Tem-se na constituição como sujeito social, cultural e político brasileiro, um
arcabouço catequista/evangelizado/cristianizado, globalizado pelo pensamento ocidental,
branco, imerso no sistema econômico e de classes capitalista, patriarcal com naturalização
machista /sexista, de heterossexualidade compulsória, hegemonicamente com/nas
características da raça branca. Em SANTOS essa diferenciação é explicada como,
“Primeiro, a epistemologia dominante é, de facto, uma epistemologia contextual que
assenta numa dupla diferença: a diferença cultural do mundo moderno cristão ocidental e
a diferença política do colonialismo e capitalismo.” (2009, p. 8).
Ou seja, a observação regrada (no sentido de regulamentação) no/do pensar de
tempo, espaço, sociedade, tecnologias, economia, geografias, tradição, costumes e culturas,
que se constituiu ao longo dos séculos a partir da invasão do Brasil pelos portugueses,
iniciando a implantação do marco regulatório moldado por essas diferenciações, que se
sobrepôs aos que aqui viviam e nos educou/catequizou. Nesse contexto a configuração do
indígena é sobre um espaço (im)posto de tutela, submissão, sempre num olhar de
precariedade, falta, primitividade e atraso. Numa classificação que tem por base os critérios
fundantes anteriormente citados. Então antes de se direcionar para o enquadramento da

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sexualidade indígena se descobre a necessidade de (res)situar a partir de ter como
pensamento básico a pesquisa com as indígenas e não sobre elas.
No dizer de SANTOS, buscar epistemologias alternativas, diferentes das que foram
tratadas nos últimos séculos que não consideravam reflexões políticas e culturais na
produção do conhecimento (Santos, 2009, p. 8).
A (auto)percepção e dissecação do (auto)estranhamento tem revelado que ali existia
um sujeito cristalizado que enquadrava esses outros sujeitos a partir do olhar
colonial/catequista, que classifica com base em modelos de um único regramento permitido
(monocultura). Aos corpos de machos e fêmeas, só cabem ser homens e mulheres, Adões e
Evas. “Que indagações trazem esses Outros Sujeitos para as teorias pedagógicas? Se os
educandos são Outros, a docência, os docentes poderão ser os mesmos? Questões desafiantes
para a educação popular e escolar.” (ARROYO, 1:26, 2014)

O deslocamento - o que os autores acrescentam ao pesquisador e à pesquisa?

Por assim perceber, se quisermos entender porque eu e a moça somos tratados de


forma tão diferente na sociedade onde vivemos, embora pertencendo à mesma
espécie, a humana, precisamos dialogar profundamente com os conceitos de cor,
raça, etnia, colonização e contra colonização. (Santos, p. 26, 2015)

Aproximando-nos dos escritos dados na disciplina de Educação, Diversidade e


Interculturalidade, do PPPGE, como mencionado em nossa introdução, para a temática do
objeto de/da pesquisa: os autores observados que se destacaram são: ZÁRATE, SANTOS
(Antonio Bispo), SANTOS (Boaventura) & MENESES, CANDAU e FLEURI. Entretanto a
temática suscita que haja a transversalidade para além dos saberes acadêmicos (sociológicos,
históricos, antropológicos, etc.) se tenha a preocupação de buscar também a fala dos próprios
sujeitos e neste caso, seriam as próprias indígenas transgêneras. Aqui existem pouquíssimos
registros escritos de indígenas muito logicamente por sua oralidade tradicional. Mas de
antemão buscamos apoio em BUTLER (2006) para expor que a questão de gênero preexiste
ao regramento que o sujeita, pois este emerge do ser e não através de ou produzido a partir
da regra ou de seu regulamento. Ou mesmo MEAD para sinalizar, muito antes do conceito
de gênero decorrente da contribuição dos movimentos feministas da década de 60 e 70, que
em suas investigações acerca dos papéis referentes ao homem e à mulher diferiam conforme
as culturas e seus povos (2003).

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Quiçá se consiga em breve, completarmos este ensaio com os resultados da pesquisa
junto às indígenas trans em sua comunidade e trazer à visibilidade suas próprias narrativas
As leituras e os estudos realizados na disciplina de Interculturalidade, que
abordaram a interculturalidade e o decolonialismo, deram a dimensão da seriedade de se
reconstituir e auto reconhecer-se como pesquisador tendo um olhar preconcebido sobre os
sujeitos. Diante disso se reafirma que, o enfoque de examinar com exatidão a questão do
estranhamento dos corpos e, considerá-lo parte da própria pesquisa denota desde já um
requisito para quem pretenda abordar a decolonialidade como tema guarda chuva.
Voltando-se especificamente para o tema elencado compreende-se junto a HALL,
que o processo de desfazimento do pensar a identidade de forma antiquada, somente com os
saberes que originalmente foram tecidos sobre corpo e gênero, já não podem mais sequer
serem admitidas que o seja assim (HALL, 3:104, 1995).
Dentre os estudos dos textos apresentados CANDAU fala a respeito de alguns
desafios do/para o contexto da educação intercultural, considerando um estudo crítico e
autocrítico sabendo que a desconstrução é um dos elementos tidos como desafiantes.

Reconhecer o caráter desigual, discriminador e racista da sociedade brasileira,


procurando questionar o caráter monocultural e o etnocentrismo que, explícita ou
implicitamente, estão presentes na escola, nas políticas educativas e nos currículos
escolares. (CANDAU, 2003)

Chamam atenção as palavras Monocultural (oposto de intercultural) e


Etnocentrismo, características muitas vezes sinais da herança do pensamento e fazer
colonialistas presente não somente nas atividades educacionais hodiernamente, mas na
formação de toda a sociedade.
A constatação de que também, estas características/conceitos apontados por
CANDAU, permeiam os valores pessoais e a formação profissional dos que utilizam a
educação em suas práticas de trabalho, está sendo fruto do próprio estranhamento. Tem-se
observado este resultado em narrativas produzidas já desde o início da pesquisa, por
exemplo, em expressões como: _ Não sei lidar com as situações, é cada coisa! (de
profissional que atua na aldeia), _ Eles aceitam travestis entre eles? Que eu saiba eles não
aceitam! (educadora referindo-se àa saber da presença de indígenas transgêneras em aldeia).
São saberes que se revelam assentados nos aportes eurocêntricos, situando os
narradores num espaço de fala que se coloca sobre/no lugar do Outro e não com/desde o
Outro.

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Em RIBEIRO (2019) entendemos o conceito de “espaço” ou “lugar” de fala” que
configura o contramovimento para os discursos a partir de um posicionamento
hierarquicamente superior, muito em vista de ser naturalizado e irrefletido _ por entender-se
hegemônico, tido como verdade absoluta _. Ousaria-se dizer, a partir de RIBEIRO,
enraizado na cultura de povos colonizados, ou seja, etnocêntrico e monocultural valorando
o Outro geralmente, ainda com as justificativas da tutela colonial catequista/jesuítica. Essa
forma de ser que impede de enxergar o Outro como sujeito de si próprio e até de oportunizar
o espaço de protagonismo. “Ao persistirem na ideia de que são universais e falam por todos,
insistem em falar pelos outros, quando, na verdade, estão falando de si ao se julgarem
universais” (RIBEIRO, 1:31, 2019). Lugar de fala é o espaço discursivo daqueles que foram
os impedidos de falar ao longo da história.
Talvez a existência de corpos indígenas transgenerificados possam ser “a voz” mais
potente nesse momento, contra o colonialismo de suas/nossas vidas.
FLEURI (2006) ressalta um elemento importante que possivelmente se relaciona
com os estranhamentos diante dos Outros Sujeitos (como indígenas trans), o estereótipo.

O estereótipo representa uma imagem mental simplificadora de determinadas


categorias sociais. Funciona como um padrão de significados utilizado por um
grupo na qualificação do outro. Constitui imagens que cumprem o papel de criar
ou acentuar a diversidade. O estereótipo resulta, pois, como um instrumento dos
grupos, construído para simplificar o processo das relações entre eles e, nessa
simplificação, justificar determinadas atitudes e comportamentos pessoais e
coletivos. (FLEURI, 2006)

O estereótipo cria em nós uma imagem mental rígida e ao batizarmos pessoas em


categorias corremos esse risco de estabelecer rigidez mental (FLEURI, 2006, p. 498) que
passam a representar erroneamente, não somente limitando o entendimento ao Outro, mas
muito provavelmente estabelecendo um estado de sujeição para o Outro e um
aprisionamento de capacidade de entender o diverso universo humano.
WOODWARD (2008) irá então questionar, a identidade é fixa? Concorda-se com
ela e outros (HALL, SILVA, 2008) entendendo logicamente que não. E a autora explica o
conceituar dentro de perspectivas essencialistas e não-essencialistas, resumidamente e
respectivamente, identidades puras e identidades categorizadas por semelhanças e
diferenças. Isto significa que quem assume uma classificação essencialista incorre na ação
de julgar os grupos e culturas por oposição e/ou graus de superioridade, observando o seu
espaço e modos de ser como referência de padrão de valoração. Esse julgamento FLEURI
explica que foi herdado junto ao conceito de raça, utilizado para fundamentar uma base de

14
identificação não social ou culturalmente, mas biologicamente única ou predominantemente.
Já no caso da transgeneridade soma-se a (i)moralidade.
O que se quer ressaltar aqui como forma alternativa de prática de posturas/condutas,
é o fato destes autores acrescentarem, como SANTOS diz muito bem através das
Epistemologias do Sul, que são perspectivas de identificação da colonização que está
presente comumente no modo de ser, que é senso comum de grande parcela da sociedade
brasileira, como também, permanente no indivíduo apesar de haver ou não uma formação
técnico acadêmica.

A superação do pensamento abissal exige, de acordo com o autor, o


reconhecimento da persistência desse pensamento para que se possa pensar e agir
para além dele (p. 44) em direcção a «um pensamento pós-abissal» (p. 32), que
pense a partir do outro lado da linha, a partir de uma epistemologia do sul e
confrontando o monoculturalismo do Norte. (SANTOS,

Poucos espaços formais levam a se refletir no quantum de colonialismo está presente


em cada um e quando oportunizado, poucos se identificam ou se sentem compelidos a fazer
um auto exame.

La interculturalidad supone una relación isométrica entre dos o más culturas; es


decir, se relacionan y conviven en igualdad de condiciones, con respeto mutuo de
sus formas de vivir y pensar. Sin embargo, en la historia de las culturas estas
características, en la práctica, suelen ser efímeras o su realización simplemente
una utopía, porque rara vez dos culturas conviven en equidad, con el mismo grado
de poder, bajo las mismas condiciones y con relaciones harmoniosas y pacíficas.
La historia lo demuestra. Hoy, la interculturalidad fue reconceptualizada y
actualizada [...] ( ZÁRATE, P. 94, 2014)

Comentários finais
O HOMEM AS VIAGENS
Carlos Drumond de Andrade

“O homem, bicho da terra tão pequeno


Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua [...]”

15
Com a pesquisa Encontrados Corpos Estranhos na Ilha do Bananal - A
Transgeneridade entre Javaé Karajá, longe se está de uma conclusão. Este ensaio propõe
uma viagem para dentro de si mesmo _ pessoa, indivíduo e profissional _ para refletir sobre
o que foi dito e lido ao longo da disciplina de Educação, Diversidade e Interculturalidade,
ministrada pelo Prof Dr. Idemar Vizzoli, nos Programa de Pós-Graduação Profissional em
Educação (PPPGE) da Universidade Federal do Tocantins6.
O aprofundamento do tema de pessoas transgêneras associado ao recorte étnico tem
possibilitado enxergar que a instrumentalização técnica é menos importante do que a
disponibilidade interna de entendimento e reconhecimento da diversidade do Outro, esta
deveria ser precedente ou concomitante aos enquadramentos da graduação acadêmica e
formação profissional.
Uma (res)significação da visão de mundo compreendendo sua pluralidade ao
enxergar que, se há um grupo autodenominado em uma letra L.G.B.T.Q.I.A+ ou
QUILOMBOLA ou POPULAÇÕES VULNERÁVEIS ou POPULAÇÃO NEGRA, etc.,
possivelmente esse batismo ou nome se deve ao fato de que violações eram/são cometidas,
fazendo com que os sujeitos saiam de seus espaços originários, invisíveis ao sistema social,
e se apresentem divulgando seus modos de ser, suas culturas, os direitos a que não alcançam
ou lhes são negados ao longo dos séculos de História. Os caminhos do descobrir-se frente
aos estranhamentos pessoais cotidianos é para ambos os lados da linha que SANTOS chama
de abissal. Quijano explica,

[...] o estabelecimento da cultura dominante europeia sobre a América ocorreu


pautada na diferenciação racial dos povos no mundo, impondo sobre os negros,
indígenas e mestiços a condição de inferioridade frente aos brancos europeus. A
criação estratégica destas identidades, baseadas em aspectos naturais, foi pensada
de forma que elas expandiram para outros continentes sendo incorporadas pelos
próprios colonizados, havendo assim, uma “colonialidade do poder”. Neste
processo a população colonizada foi submetida à expropriação de seus valores
simbólicos e matérias e à repressão, sendo forçada a incorporar elementos culturais
da classe dominante europeia que servissem de mecanismos de controle. É nesta
mesma lógica que avançam as ideias políticas pautadas no discurso de
modernidade nos países colonizados. (QUIJANO apud SILVA; BISPO;
TAVARES, p. 178, 2017)

Antes de adentrar no campo da pesquisa, a Aldeia Canoanã, indígenas tomaram


conhecimento de sua realização a partir da autorização do Cacique responsável pelas Terras

6
A disciplina é parte da grade curricular do Programa de Pós-Graduação em Educação, modalidade acadêmico,
embora o autor curse o programa de modalidade profissional, ambos da mesma universidade.

16
Indígenas (TI), muito em decorrência de sua tradição oral e da participação coletiva nas
decisões locais, e de que o objeto de investigação se relacionava às indígenas trans. O
impacto gerado sobre estas pessoas desde então, já se fez sentir, quando as próprias se
manifestaram direta e indiretamente ao pesquisador de suas expectativas e necessidades de
se tornarem visíveis e de serem ouvidas. Notícias de agressões sofridas, a transfobia, é algo
que ocorreu e está atual nas terras indígenas fruto e desdobramento do colonialismo
sistemático das identidades outrora tradicionais.
Em suas narrativas é possível entendê-los, se se dispuser a escutá-los. A partir do
momento em que o espaço hegemônico e hierárquico de colonizador é ameaçado
(in)conscientemente, quando o choque do confronto daquilo que é negado à própria
consciência ocorre, emerge o estranhamento. Diversas reações podem advir do fenômeno do
estranhamento: ignorar, desdenhar, desqualificar, relativizar, agredir, proibir, ridicularizar,
debochar, calar, fingir, tolerar, distanciar, sorrir, perplexidade, ser “fofo” e... Matar!
Neste ensaio apenas alguns autores/pesquisadores foram comentados e diversos
outros, apontam caminhos alternativos acenando-nos possibilidades de outras relações e
construções sociais mais positivas e menos conflitivas para todos.
Os costumes quanto às sexualidades indígenas antes da invasão de seus territórios à
época do colonialismo: catequese/escravização/domesticação que foram estranhadas pela
sociedade européia, foram enquadradas ideologicamente, denominadas como valores sociais
e familiares num mundo líquido atual (parafraseando Baumam), legitimam posturas e
posicionamentos tão escravizadores quanto os do período colonial. É possível desconstruir
o colonialismo enraizado e naturalizado por séculos? Talvez e muito possivelmente não.
Talvez seja possível novos modos de ver/pensar/refletir/ouvir(se).
Finaliza-se transcrevendo aqui a questão que o incômodo causado diante daqueles
corpos estranhos _ indígenas travestidos _ provocou internamente e que ao invés de bater,
socar, chutar, agredir, se resolveu buscar respostas para si. O que está por trás desse
estranhamento em mim? E cada pergunta provocou a busca por suas causas até as suas
origens, histórias e vozes.
Isso ocorreu em/de uma sala de aula!

Referências

17
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2014.
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18
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ZÁRATE, A. Interculturalidad y Decolonialidad.. Tabula Rasa. Bogotá - Colombia,
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19

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