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Prédica: Lucas 15.

1-10
Leituras: Êxodo 32.7-14 e 1 Timóteo 1.12-17
Autor: Ricardo W. Rieth
Data Litúrgica: 17º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação:01/10/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX

Quem são os perdidos?

1. Observações gerais

Neste cap. 15, Lucas reúne três parábolas que tematizam o reencontro daquilo que estava
perdido e a alegria daí decorrente. A introdução às parábolas (1-3) demonstra seu caráter
de apologia diante das acusações levantadas por fariseus e escribas contra Jesus, que se
escandalizam com a presença de pobres, aleijados, cegos e coxos na grande ceia (cf.
14.15-24). Uma observação ainda com relação a todo o capítulo: a sequência das três
parábolas corresponde à das afirmações divinas em Jr 31.10-20: 4-7 = Jr 31.10-14; 8-10 =
Jr 31.15s; 11-32 = Jr 31.17-20.

A parábola da ovelha perdida é apresentada numa forma mais complexa do que a de


Mateus (cf. Mt 18.10-14). Enquanto ali Jesus apresenta aos discípulos sua tarefa em
relação aos menores na comunidade, no Evangelho de Lucas o tema é a tarefa de Jesus
em relação aos perdidos. O fato de o texto apresentar na verdade uma dupla parábola
demonstra que se quis colocar o agir do homem ao lado do da mulher. É como se se
quisesse dizer: Assim age toda pessoa, seja homem ou mulher.

2. Interpretação do texto

VV. 1-3: Publicanos e pecadores se aproximam de Jesus, que fala ao povo (cf. 14.25-35).

Os publicanos eram cobradores de impostos, que obtinham uma concessão oficial do


império para fazê-lo numa jurisdição fiscal maior ou menor. De acordo com a concessão
recebida, eram obrigados a repassar periodicamente uma determinada quantia ao tesouro
imperial. Havia cobradores que colocavam a seu serviço outros cobradores, sendo
necessário diferenciar entre essas duas categorias de publicanos. Os tributos cobrados
eram variados: taxas para uso de pontes, para navegação, impostos urbanos. Taxavam-se
peças de vestuário, pérolas, pescado, grãos, óleo, animais e escravos. Por causa de seu
envolvimento com o dominador gentio e, mais ainda, por suas arbitrariedades e ganância,
os publicanos eram odiados. Não eram considerados aptos a comparecer diante de
tribunais na qualidade de testemunhas. Um fariseu que viesse a se tornar publicano era
excluído da comunhão. Ser publicano virou sinónimo de ser enganador e ladrão, alguém
sobre o qual repousaria a ira de Deus.

Quanto aos pecadores, estes, por sua vez, eram vistos de duas maneiras. Por um lado,
eram gente cuja conduta era considerada imoral (p. ex., ladrões, assassinos, fraudadores
— o último acabou levando à conexão entre publicanos e pecadores). Os fariseus tinham
uma lista de pecadores segundo os diferentes ofícios: jogadores de dados, usurários,
organizadores de competições com pombas eram considerados os principais; mas a lista
também incluía pastores de ovelhas, cobradores de impostos, tecelães, tosquiadores,
enfermeiros que aplicavam sangrias, proprietários de banhos, curtidores e até mesmo
médicos, navegadores, transportadores, condutores de camelo e açougueiros. Também os
gentios eram considerados pecadores (cf. Gl 2.15). Por outro lado, pecadores eram todos
aqueles que não seguiam as regras farisaicas de conduta. Nesse sentido, também Jesus e
seus discípulos eram pecadores.
Jesus é apresentado como companheiro de todos os publicanos e pecadores. Esse todos
deixa evidente o preconceito: onde quer que Jesus esteja, ele se mete com essa gente.

Justamente isso é visto como escândalo pelos fariseus e por seus mestres da lei, os
escribas. Eles murmuram (cf. em 5.30 o mesmo comportamento), como seus
antepassados murmuraram antes de entrar na terra prometida. Sujeitam-se, assim, a
colocar-se de igual modo contra a vontade salvífica de Deus. Trata-se do comportamento
de quem não suporta essa vontade, como dizem ao censurar Jesus: Este recebe
amigavelmente os peca¬dores; ele se alegra e se sente bem por estar junto ao pecador,
que o procura. A comunhão de mesa com pecadores — que não tivessem manifestado
previa¬mente sinais visíveis de arrependimento, praticando jejum e penitência — era
totalmente reprovada pelos fariseus (cf. Mc 2.15ss.). Lucas, por sua vez, dá a entender
que Jesus senta com os pecadores para uma ceia festiva, concretizando deste modo o
que é imagem da comunhão escatológica do reino de Deus (cf. Lc 13.25-29; 14 e 15.23-
32).

Pelo escândalo com a ausência de sinais visíveis de arrependimento por parte dos
pecadores, dá-se o confronto. Em decorrência disso, Jesus conta as parábolas que se
seguem.

Vv. 4-7: Jesus começa a parábola com uma pergunta retórica, convidando o ouvinte a
pensar junto sobre a ação do dono de cem ovelhas, para dizer ao final: E verdade, é assim
mesmo que se faz. A preocupação do proprietário — que quer ser transferida ao ouvinte
— se dá em função do que foi perdido.

Na literatura rabínica podem ser encontrados diversos exemplos de parábolas


semelhantes a esta — inclusive algumas delas usam os números cem, um, noventa e
nove. Seu objetivo, porém, é demonstrar o modelo de correção no cumprimento da lei ou
então ilustrar o pensamento relativo à eleição por Deus.

Aqui, em contrapartida, a ênfase está na alegria por encontrar a ovelha perdida. O animal,
enfraquecido, precisa ser carregado nos ombros (uma imagem freqüen (emente presente
em narrativas do Oriente antigo), algo que o proprietário faz em meio a grande alegria. A
alegria e a ação daquele pastor de ovelhas, cujo ofício era considerado pecaminoso pelos
escribas legalistas, são comparadas à alegria e à ação de Deus. Cumpre-se a promessa
de Ez 34.12 e 23 no momento em que Lucas — como já fizera em 2.14 — relaciona o
acontecimento terreno com o evento celestial.

O v. 7 revela que o pecado dos fariseus brota de sua falta de misericórdia para com os
desprezados, justamente no momento em que Deus estende a eles sua graça e se alegra
por recebê-los. Enquanto textos rabínicos falam da alegria de Deus com os justos e com a
decadência dos ímpios, Jesus acentua a grande alegria de Deus pela conversão do
pecador, sem, contudo, desprezar o amor à palavra e a obediência ao mandamento
divinos.

Vv. 8-10: A partir do v. 8, Lucas coloca a mulher ao lado do homem, a pobre dona de casa
ao lado do pastor relativamente bem de vida. A duplicação da parábola sublinha a vontade
de Deus em recuperar o que está perdido; duplica-se a força do testemunho de Lucas. As
dez dracmas provavelmente constituíam um modesto adorno — talvez de casamento —
daquela mulher. Ela acende uma luz, não porque seja de noite, mas porque na pobre casa
não há janelas e tão-somente um facho de luz passa pela porta. Ao varrer a casa, ouve
então o tilintar da moeda. Novamente instaura-se grande alegria com o achado; amigas e
vizinhas são convidadas a compartilhar dessa alegria. O nome de Deus, que no v. 7 se
ocultara sob o termo céu, encontra-se agora no v. 10 sob a imagem diante dos anjos.

3. Meditação
a) Quem são os perdidos?

Quem gosta de ir sozinho a um lugar desconhecido? A uma cidade onde nunca esteve,
sem estar na companhia de alguém, algum conhecido que vive lá? Acho tremendamente
desagradável passar por isso. Sinto-me inseguro diante da possibilidade de perder-me
numa cidade desconhecida, sem saber por que rua ir, que ônibus tomar; sem saber para
onde telefonar ou se o lugar por onde passo é perigoso ou não.

Você está completamente perdido! — Quem já não ouviu algo assim? São palavras que
me dizem que estou indo na direção errada, ao enfrentar uma situação, ao tentar resolver
um problema. Quando ouço uma frase desse tipo, a primeira sensação é de
desorientação.

Para melhor compreender o evangelho de Lc 15 é bom ter presente na mente essas


situações: estar perdido, sentir-se perdido. A partir daí se pergunta: quem são os
perdidos?

b) Nós somos os perdidos

Os cobradores de impostos e pecadores estavam junto de Jesus, tinham-no buscado.


Jesus tinha comunhão com eles, comia com eles, se alegrava junto com eles. Quem eram
cobradores de impostos? Quem eram pecadores? Isso irrita os fariseus e os professores
da lei (exigentes, defensores da perfeição, moralistas: desprezadores dos que não o
faziam). Por causa dessa situação de conflito (eles murmuram), Jesus conta as parábolas
dos perdidos.

Central nas parábolas é a alegria por encontrar o que estava perdido. São alegrias que
podem ocorrer no dia-a-dia. Para'o dono das cem ovelhas, perder uma delas era algo que
poderia ocorrer qualquer dia. O mesmo vale para a dona de casa com suas moedas.
Quem de nós já não encontrou, algum dia, algo que tinha perdido e estava procurando há
muito tempo? Não se trata de um momento de alegria? Com o que diz sobre o dono das
ovelhas e a dona de casa com suas dez moedas, Jesus quer mostrar aos que o escutam
como se sente quando vê que gente que antes estava completamente perdida —
cobradores e pecadores — vêm em sua direção, desejando estar com ele. Ele sente uma
tremenda alegria.

Assim se sente Deus em relação a nós, que agora vivemos na e a partir da fé em Jesus
Cristo. Estávamos antes — e muitas vezes voltamos a estar — em situação de total
afastamento em relação a Deus e ao próximo. Um comportamento de exploração do
semelhante, de querer levar vantagem em tudo, demonstra isso claramente. Tirados desse
tipo de comportamento por Cristo — quando fomos balizados e quando nos arrependemos
diariamente —, nos achamos em sua companhia. Daí a grande alegria, que deve ser a
marca de nossa vida diária, de nossa vida na comunidade de fé, litúrgica e eucarística. O
texto de l Tm 1.12-17 deixa transparecer tal sentimento.

Quem são os perdidos?

c) São os que, por meio de nós — agora achados —, Deus busca

A alegria que Deus tem por estar junto a nós, por nos ter reencontrado, não se limita só a
nós. Ele quer estendê-la a todos. Quer se alegrar, encontrando os que se encontram
perdidos. Isso ele quer fazer por meio de nós, do nosso testemunho, já que não mais está
presente do jeito como estava na época em que os cobradores de impostos e pecadores
sentavam com ele. Ele agora está presente em nós, comunidade (cf. Mt 18.20). Jesus está
no meio da nossa comunidade, graças à ação do Espírito Santo, pela Palavra e
sacramentos.
Se nós, comunidade de fé, somos instrumentos para que ele encontre, se reúna e festeje
com os perdidos, temos que perguntar novamente: quem são os perdidos?

— São os que estão bem próximos de nós, mas se encontram perdidos: os da família, da
comunidade.

— São os que estão desorientados, que precisam, necessitam. Há os que se sentem sós,
desorientados, perdidos e buscam auxílio no que só agravará sua situação já
desesperadora: em promessas de milagreiros, no álcool, nas drogas, na violência.

— São os que estão na miséria, passando fome, doentes, desabrigados, perderam o


pouco que tinham, os que são injustiçados.

Que o exemplo de Moisés em Êx 32.7'-14 nos motive. Temos que buscá-los para estarem
junto à mesa, para que Deus se alegre na sua presença.

d) Quem são os perdidos?

Cada qual, cada comunidade precisa constantemente fazer e responder essa pergunta. A
inspiração para isso se dá na esperança da grande alegria do Reino, que ainda não se
concretizou totalmente, mas já se manifesta em alegrias menores, como a de um homem
que carrega uma ovelha recém-encontrada às costas ou a de uma mulher que acha uma
moeda perdida na escuridão de sua casa.

4. Subsídios litúrgicos

Confissão de pecados: Esta poderia lembrar que no arrependimento — como retomada


do afogamento do pecado por ocasião do Batismo — se dá a passagem da situação de
perdidos para a comunhão festiva à mesa, na companhia de Jesus Cristo.

Coleta: Esta poderia pedir que Deus inspirasse a liturgia da comunidade de fé reunida,
para que esta expressasse uma alegria representativa da alegria que ele sente ao
encontrar o perdido.

Oração final: Esta poderia pedir pelo auxílio de Deus na tarefa da comunidade em servir
de instrumento para que ele encontre os perdidos.

4. Bibliografia

GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Lukas. 8. Aufl. Berlin,


Evangelische Verlagsanstalt, 1978. (Theologischer Handkommentar zum Neuen
Testament, 3).
HÕLLER, Otto B. S. 3° Domingo após Trindade: Lucas 15.1-7 (8-10). In:
Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal. v. X, p. 361-367.
JEREMIAS, Joachim. As Parábolas de Jesus. São Paulo, Paulinas, 1976.
NÕR, Ricardo. 3a Domingo após Trindade: Lucas 15.1-10. In: Proclamar Libertação.
São Leopoldo, Sinodal. v. IV, p. 106-111.
SCHLATTER, Adolf. Das Evangelium des Lukas; aus seinen Quellen erklärt. 2.
Aufl. Stuttgart, 1960.
Prédica: Hebreus 11.1-3,8-16
Leituras: Gênesis 15.1-6 e Lucas 12.32-40
Autor: Aline Steuer
Data Litúrgica: 12º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 27/08/1995
Proclamar Libertação - Volume: XX

1. Introdução

Estamos no meio do ano. Ainda é inverno e desconfiamos, às vezes, que a primavera não
virá nunca. Sabemos que no decorrer do tempo a primavera, e depois o verão, seguem-se
ao inverno como o dia segue-se à noite. A nossa experiência nos ensina isso. Mas, na
ausência de alguns sinais do revigoramento da natureza, podemos até desconfiar daquilo
que sabemos. Os textos de hoje querem dialogar conosco sobre essa nossa tendência de
fraquejar diante das dificuldades que duram tempo demais, diante do tédio que diminui a
energia do nosso seguimento de Cristo. Onde estão os sinais da presença do Reino?,
perguntamos. Será que devemos continuar a acreditar nas promessas de Deus? É de se
esperar que continuemos lutando por uma sociedade mais humana, apesar de todos os
sinais de derrota que experimentamos?

A liturgia de hoje nos coloca diante de testemunhas fiéis do passado e diante das palavras
exigentes de Jesus. Mas este domingo nos coloca, também, diante de um outro grupo de
testemunhas fiéis: pessoas que têm que aceitar o desafio de enfrentar a vida inteira em
condições de desigualdade. Hoje é o dia dedicado às pessoas portadoras de deficiências,
os excepcionais. Hoje essas pessoas também podem querer entrar num diálogo sobre a
fútil facilidade de desistir diante de obstáculos e dificuldades. Deus queira que possamos
aprender desses dois diálogos: o da liturgia e o das pessoas excepcionais.

2. Contexto

O texto indicado para hoje vem no fim de Hebreus, após a obra ter estabelecido com
firmeza a superioridade e a fidelidade de Jesus. A comunidade à qual Hebreus foi dirigida
parece estar enfrentando um período comparável ao inverno comprido antes de qualquer
sinal da chegada da primavera. Já enfrentou perseguições (10.32-39). O tempo passa.
Jesus não retorna. O efeito provocado na comunidade não é bom. Parece que há quem
valoriza revelações transmitidas por anjos (2.1-4) mais do que as palavras e a presença de
Jesus (2.14-18). Há quem está ameaçado de cair na incredulidade, na revolta, no
endurecimento do coração (caps. 3-4), apesar da certeza que Jesus se compadece de
nossas fraquezas (4.15-16).

Também na comunidade há membros atraídos pelos cultos mistéricos, que, ao colocar


toda a ênfase na alma, provocam a alienação da pessoa de sua realidade. Diante dessa
situação, o autor insiste que Jesus é completamente humano e solidário com a
humanidade (2.11-18; 3.15; 4.14-16; 5.1-5) e ao mesmo tempo superior aos anjos (1.5ss).
Ele nos deu um caminho novo e vivo que ele mesmo inaugurou através (...) da sua
humanidade (10.19). Os cristãos estão chamados a seguir o mesmo caminho através da
práxis da fé.

3. O texto

O texto inicia com uma dupla afirmação sobre a fé: ela é a segurança (hypostasis) daquilo
que ainda não está presente, mas que é esperado com confiança; e ela é a convicção
(eleghos) da realidade presente que só é conhecida pela fé. Esta frase resume o
pensamento do autor. Cristo veio ensinar o caminho que leva ao Pai (2.1-4) e abrir um
caminho novo e vivo (10.19). É pela fé que esse ensinamento e esse caminho são
reconhecidos.

A segurança de receber o que ainda não está presente (o Reino e tudo que este implica) é
fundamentada na promessa de Deus e garantida pela morte, paixão e ressurreição de
Jesus. A convicção da realidade presente (a vitória de Jesus sobre as forças da morte)
está fundamentada em fatos do passado que permitem ver a realidade presente como
uma caminhada de transformação que leva à comunhão de todos (10.19-25). O fato
principal que garante tal fé é a morte salvífica de Jesus e o seu sacerdócio eficaz. O autor
enfatiza que tais eventos (cf. também 2.4) são fatos e não uma ilusão.

Tendo estabelecido a função da fé, o autor passa a apresentar exemplos do passado de


pessoas que esperavam com confiança a realização das promessas. O texto de hoje
seleciona Abraão e Sara da grande nuvem de testemunhas ao nosso redor (12.1) que
encorajam os leitores a correr com perseverança na corrida, com os olhos fixos em Jesus,
que é o autor (iniciador) e realizador da fé (12.1d-2). Abraão é lembrado porque acreditou
na promessa de terras e migrou, mesmo sem saber para onde. Permaneceu fiel numa
terra estrangeira, terminando a vida com apenas um túmulo. Sara concebeu, na sua
velhice e na de Abraão, porque teve fé na promessa de uma descendência incalculável.
Ela e Abraão acreditaram, apesar de enumerar somente Isaque como filho. É evidente por
que Paulo, citando Gn 15.6, escreve: Abraão (e Sara) teve fé em Deus e isso lhe foi
creditado como justiça (Rm 4.3).

4. Textos auxiliares

A complementaridade entre Gn 15 e Hb 11 é evidente. A frase citada por Paulo é o


versículo final do trecho: a fé de Abraão e de Sara serve para encorajai a nossa fidelidade
enquanto perseveramos no caminho, apesar das dificuldades c da escassez de sinais da
realização das promessas. O texto de Lucas parece iniciar o diálogo exatamente nesse
ponto. Não tenha medo, pequeno rebanho, porque o Pai de vocês tem prazer em dar-lhes
o Reino. (Lc 12.32.) Como c difícil proclamar esta palavra no meio do sofrimento sócio-
econômico que nos assola! Como é difícil crer na vida quando a morte nos cerca tanto! Daí
o exemplo de Abraão e de Sara, que deixaram suas terras (cf. Lc 12.33-34) e
envelheceram sem ter filhos, mas cuja fé nas promessas de Deus resultou num povo
numeroso e numa terra onde correm leite e mel.

5. Sugestões para a pregação e a liturgia

Todos os que se comprometem com a construção do Reino enfrentamos a dificuldade de


manter tal compromisso no meio de desapontamentos, de traições, de pouca realização e
da oposição ferrenha de quem não compartilha a visão de uma sociedade igualitária.
Porém a maioria de nós enfrentamos tais decepções e desanimes com razoável saúde
física e mental.

Neste domingo somos convidados a pensar sobre as pessoas que têm que fazer o mesmo
compromisso, ser fiéis da mesma forma, mas carregam um peso a mais. São as pessoas
excepcionais, portadoras de deficiências. São vistas como diferentes, e a nossa sociedade
exclui, marginaliza o diferente. Carregam o peso de serem vistas como pessoas sem
sonhos, sem os desejos comuns a todos nós, até sem capacidade de pensar e tomar
decisões. Será que as promessas de Jesus não valem para essas pessoas tanto quanto
para nós (ou até mais)? Como é que a liturgia de hoje pode tornar-nos mais solidários com
essas irmãs e irmãos nossos?

a) Em nossa sociedade muitas pessoas excepcionais ainda são escondidas, guardadas no


interior da casa. Faça um levantamento do número de pessoas portadoras de deficiência
que moram na sua paróquia/cidade. Organize um encontro com elas para conversar sobre
o tema das leituras. Talvez haja a possibilidade de ter uma homilia feita por elas ou
dialogada com elas.

b) Organize uma equipe da Igreja para trazer para a celebração as pessoas portadoras de
deficiência e planejar uma recepção depois a fim de começar a entrosá-las na paróquia.

c) Convide alguém de uma organização que trabalha com pessoas excepcionais (APAE,
Pestalozzi, etc.) para falar sobre o seu trabalho.

d) Organize um dia para os membros da paróquia/cidade se tornarem mais sensíveis às


pessoas com deficiências. Cada membro pode assumir algum tipo de limitação física
(cegueira, surdez, paralisia, etc.) e passar o dia experimentando as dificuldades que tal
limitação traz.

e) Confissão de pecados: convide a refletir sobre a insensibilidade às necessidades e


dificuldades das pessoas que encontramos no dia-a-dia. Reconhe¬cendo que todos
somos deficientes, fazer propósitos de solidariedade.

f) Organize grupos para continuar a socialização com as pessoas excepci¬nais da


paróquia/cidade.

6. Bibliografia

DOBBERAHN, Friedrich E. Cristo e o Materialismo Histórico. Estudos Bíblicos, Petrópolis e


São Leopoldo, 34:15-23.
HOEFELMANN, Verner. Alento para os Cansados e Atemorizados. Estudos Bíblicos,
Petrópolis e São Leopoldo, 34:9-14, 1992.
LIMA, Cyzo Assis. A Fé: Força dos que Crêem no Deus Libertador e Salvador. Estudos
Bíblicos, Petrópolis e São Leopoldo, 34:73-79.
McKENZIE, John L. Hebreus, Epístola aos. In: Dicionário Bíblico. São Paulo, Paulinas. p.
406-408.
VANHOYE, Albert. A mensagem da Epístola aos Hebreus. São Paulo, Paulinas, 1983.
VOLKMANN, Martin. 12e Domingo após Pentecostes. In: Proclamar Libertação. São
Leopoldo, Sinodal, 1991. v. XVH, p. 183-188.
Prédica: Lucas 16.1-13
Leituras: Amós 8.4-7 e 1 Timóteo 2.1-8
Autor: Christoph Schneider-Harpprecht
Data Litúrgica: 18º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 8/10/1995
Proclamar Libertação - Volume: XX
Tema:

1. Introdução

As leituras do AT e do Evangelho no 18e Domingo após Pentecostes enfocam o tema da


relação dos cristãos com o dinheiro. Os paralelos entre a mensagem de Amos e Lucas e a
situação atual do povo brasileiro são óbvias. A dinâmica da exploração que o profeta
detecta e critica na sociedade de Israel 2.800 anos atrás não é muito diferente dos
mecanismos que obrigam trabalhadores rurais no Brasil hoje a trabalharem em condições
de escravos ou semi-escravos: a venda de sementes estéreis é apenas um dos truques
que faz com que eles se endividem cada vez mais e permaneçam dependentes de seus
patrões, de negociantes e bancos. Prestando serviço, eles pagam a dívida durante anos e
anos com poucas perspectivas de melhorar e sendo não raras vezes forçados a ficar.

Também aquele administrador corrupto usa práticas que hoje em dia são bastante
comuns. Ambos os textos servem à primeira vista como um espelho que reflete as
injustiças econômicas gritantes de nossa sociedade. Eles desafiam a fazer uma análise
crítica da relação entre a fé cristã e os bens materiais, desembocando não na visão
horrível de Amós, que anuncia o juízo cruel de Deus para o seu povo, mas na
admoestação séria de que ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro ao mesmo tempo. A
atualidade dos textos obriga o pregador a assumir uma postura profética frente à
comunidade. Porém com que objetivo? Existe o perigo de afogar o evangelho num mar de
queixas e acusações, provocando a resistência dos ouvintes e, no final das contas, não
mudando nada. Seria pura ingenuidade identificar os membros da comunidade
simplesmente com negociantes exploradores ou administradores fraudulentos. Também
seria ingenuidade oferecer à comunidade o comportamento do administrador desonesto
como alternativa subversiva para acabar com o abuso do dinheiro que divide o povo em
pobres e ricos. O escopo da parábola quer dizer algo diferente: a situação do homem
perante Deus é parecida com aquela do administrador que, sendo culpado, não tem mais
nada a perder e, sem vergonha, escolhe a vida tirando o melhor partido da sua situação. A
parábola diz o que significa viver da graça.

2. Anotações exegéticas

1. O texto aparece exclusivamente em Lc (cf. o paralelo do v. 13 com Mt 6.24. Lc apenas


acrescenta a palavra escravo, destacando o caráter submisso da relação da pessoa com o
dinheiro). Jesus dirige-se aos discípulos, sinal de que o texto é um ensaio para a
comunidade. Na estrutura pode-se diferenciar entre a parábola (vv. 1-8a), explicação e
resumo do sentido moral (vv. 8b,9), e regras para a maneira de lidar com o dinheiro (vv.
10-12,13). Essa aplicação ética da parábola para a vida de cada dia enfoca a fidelidade
em coisas pequenas (provavelmente a economia) (cf. Lc 19.17). Ela parece contradizer o
sentido da parábola, que elogia o comportamento fraudulento do administrador (cf. Lc
12.42s.). Parece que a redação de Lc aplica a parábola de Jesus à questão da ética
econômica.

2. Observando a relação entre texto e contexto, descobre-se o significado do lugar de Lc


16.1-13 na estrutura do Evangelho. Na parábola continua o tema do filho pródigo. O
administrador faz o que ele fez: gastar dinheiro. O texto retoma Lc 14.33 aplicando o
perdão à questão do dinheiro em geral. Nos textos em que Lc fala do tema riqueza e
dinheiro, Lc 13.1ss. situa-se entre a parábola do homem rico (Lc 12.16ss.) e a do rico e
Lázaro (Lc 16.19ss.) e o jovem rico (Lc 18.18ss.). Observa-se uma sequência: Lc 12.16ss.
mostra que não tem sentido recolher riquezas porque elas não dão sossego e não ajudam
na hora da morte. Lc 16.1ss. serve de contra-exemplo positivo: como o administrador
gasta dinheiro para ganhar amigos, assim também os discípulos devem fazer amizade
com o dinheiro que os ajuda a entrar no céu. No destino horrível do rico no inferno Lc
mostra drasticamente o que acontece com aqueles ricos que não usam o seu dinheiro
para fazer amizade com os pobres.

3. Esses textos aprofundam de maneira narrativa os princípios teológicos de Lc sobre o


tema dinheiro, riqueza e pobreza:

— A verdadeira vida (= vida eterna) não depende do dinheiro e das coisas materiais (Lc
14.15), pois o dinheiro perece e estraga (Lc 12.33) e não ajuda na hora da morte a receber
a vida.

— O dinheiro é um dono que escraviza a pessoa (Lc 16.13). Ele exige e faz com que a
pessoa o sirva totalmente. A relação com as riquezas é uma relação de coração e de amor
(Lc 12.34; 16.13).

— Para o cristão, servir ao dinheiro é idolatria. Ser discípulo de Jesus e buscar riquezas
são opostos que se excluem. O dinheiro é um dom estranho e a verdadeira riqueza é a
vida eterna que Deus dá após a morte àqueles que seguem Jesus (Lc 12.32ss.; 18.18,22).

— Para mostrar a sua fieldade a Jesus os discípulos são obrigados a dar todos os seus
bens aos pobres (18.18,22; 14.33; cf., porém, Lc 19.8s.).

— O ato de dar o dinheiro aos .pobres serve para ganhar amigos para a eternidade (16.9),
pois os amigos ou os anjos (Lc 16.22) receberão aqueles que, dando dinheiro, mostraram
a sua fieldade a Jesus.

4. Em si a parábola (Lc 16. l-8a) não está ligada ao tema do dinheiro. Ela descreve o
administrador como um negociante que faz os seus cálculos sem emoções. Ele não
respeita o seu dono, não é submisso. Buscando sempre a sua vantagem e sabendo que o
jogo acabou, que não pode permanecer no seu trabalho, ele calcula também como pode
sobreviver de maneira agradável depois de sua despedida. Não hesita em motivar os
devedores do seu senhor a falsificar os certificados de dívida. Sobre esses valores
corrigidos ele vai prestar contas sem culpa. Os outros cometem a fraude e ele tem a
vantagem. Agora eles têm uma dívida com ele. Existe a interpretação de que ele tinha o
direito de emprestar os bens do seu senhor. No presente caso, apenas desconta os juros
elevados e exige a devolução do valor emprestado.

O senhor o demite por causa dos juros elevados e não por causa dos recibos falsificados.
Essa interpretação contradiz o interesse do texto, que enfoca a alteração dos recibos. O
elogio do senhor para o administrador rompe a lógica da história. O leitor espera desprezo
e punição do administrador. Aqui transparece que a parábola fala de um outro Senhor,
Deus. Como o filho pródigo, o administrador é o ser humano cujo jogo acabou, porém que
não se preocupa com a culpa. Fazendo o bem aos outros no seu próprio interesse ele
assume a culpa e arrisca-se a viver. Elogiando aquele homem, a parábola rompe a moral
do sentimento de culpa. O arrependimento frente à vinda do reino de Deus mostra-se
através de um comportamento diferente e não através de uma vivência dramá¬tica de
culpa e perdão. O senhor chama de sábio aquele que entendeu os sinais dos tempos e
começa a agir conforme a vontade de Deus.
5. No contexto da redação de Lc o administrador torna-se um exemplo para a fieldade do
discípulo que gasta as riquezas injustas adquiridas por juros eleva¬dos. Dar o dinheiro,
para Lc, não é uma obra salvífica, é uma consequência da salvação. Trata-se apenas de
uma coisa pequena. Entretanto, ela mostra onde bate o coração da pessoa.

3. Contexto

A mensagem radical da justificação pela graça serve de base do discurso sobre a ética
econômica: Você não precisa mais se culpar, nem por sua maneira de lidar com o
dinheiro. Deus alegra-se quando você aceita a si mesmo e assume a coragem de viver. A
relação com ele dá a você liberdade em questões financeiras. O dinheiro não vem em
primeiro lugar na vida. Serve para viver com a família, com amigos, a comunidade,
pessoas carentes. A liberdade de compartilhar os bens lhe traz a riqueza de outras
qualidades de vida que não se conseguem pagar com dinheiro.

Essa mensagem concretiza-se em diferentes contextos, na vida particular, na Igreja, na


atuação dentro da sociedade e nas relações políticas nacionais e internacionais. Quanto
menos dinheiro uma pessoa tem, tanto mais importante torna-se a preocupação financeira.
O perigo da dependência do dinheiro existe para ricos e pobres. Por exemplo: João é um
homem de 50 anos. Chamam-no de picareta. Ele faz qualquer negócio em sua região:
vende, troca, empresta. No negócio tenho que ser mais esperto do que os outros para
sobreviver, pois eles querem enganar a gente. Esse é o princípio de sua vida. Nascido
numa família pobre, começou com 7 anos a fazer negócios na rua. Em casa passava
fome. Vive numa grande insegurança, nunca sabe se vai ter dinheiro no mês que vem e
várias vezes já esteve falido. Não sonho mais em ficar rico. Quero segurança econômica,
uma aposentadoria que chegue, comida, casa, um carro, uns dias de férias.

A maioria dos brasileiros concorda com ele. Não tem riquezas injustas para dividir. Luta
para sobreviver, passa fome ou fica nervosa lembrando-se da pobre¬za pela qual passou
na infância. Para João será difícil entender por que Lc insiste tanto em dar o dinheiro. O
evangelho o questiona numa postura básica de sua vida: confiar em Deus, livrar-se do
medo permanente de passar fome, de ser enganado e precisar lutar contra todo o mundo.
Ele pode convencer-se de que sobreviverá mais facilmente quando abrir mão dessa
preocupação com o dinheiro.

Existem exemplos bonitos e efetivos de cooperativas de pequenos agricultores e outros


produtores: juntando o dinheiro e compartilhando o lucro, conseguem manter-se mais
facilmente. Pedro e Maria, donos de uma empresa, bem de vida e engajados na
comunidade, sentem o mesmo incômodo causado pela desconfiança e pela luta
permanente no mercado. Pedro deseja que a economia fosse mais estável e que os
parceiros no negócio fossem mais confiáveis. Amigos temos bastante, diz ele, só que não
sabemos se ficarão com a gente na hora do sofrimento. Colaboramos com a Igreja, mas,
pressionados pelo mercado, temos que pagar salários baixos. Pedro e Maria podem
aprender de Lc que a propriedade, a riqueza inclui uma obrigação social do empresário.
Sendo cristão, ele mantém a empresa e faz lucros para melhorar a vida dos empregados.
Essa ideia ainda não é muito familiar a empresários cristãos. E, aprofundando a ideia,
Pedro não concorda com a necessidade de uma reforma salarial e agrária para achar uma
solução para os pobres? Lc não permite dispensar-se dessas implicações políticas do
evangelho de Cristo. Essa mensagem vale também para os países ricos no mundo. Seria
um grande gesto se eles diminuíssem a dívida externa dos países pobres. Ou o Brasil
deveria seguir o exemplo do administrador e simplesmente diminuir o pagamento da dívida
externa? A questão está sendo discutida no país.

Na Igreja a questão financeira é delicada. O que significa o fato de 40% dos membros de
uma comunidade não contribuírem financeiramente? Segundo o texto, isso é algo
impossível. O realzinho da viúva vale mais do que muitas doações grandes. Problemas
financeiros bloqueiam muitos trabalhos e dominam a pauta dos conselhos, dando um
grande poder a negociantes que trazem uma mentalidade capitalista para dentro das
comunidades. Um lar para mães solteiras, o trabalho com meninos e meninas de rua não
trazem lucro. O argumento de que falta dinheiro torna-se facilmente um instrumento
político para reprimir trabalhos não-desejados. Quem, se não a comunidade cristã, vai
gastar dinheiro para aqueles que não trazem lucro?

4. Pistas para a prédica

É necessário trabalhar a resistência dos ouvintes contra o texto. Pode-se, por exemplo,
contar o que ele significa para ouvintes em diferentes situações sociais. É possível fazer
uma pregação narrativa, contando a história do administrador como se ela acontecesse
hoje no Brasil. Colocando essa narração antes da leitura do texto, o pregador pode discutir
com os membros sobre como eles avaliam o comportamento daquele homem e confrontá-
los com a reação surpreendente do senhor. Existe a possibilidade de falar uma vez sobre
a contribuição financeira para a comunidade. Neste caso sugere-se uma reunião depois do
culto para que os membros possam colocar a sua visão. Para não se perder na variedade
dos contextos, é preferível escolher um problema de comportamento cristão para aplicar a
ética do texto.

5. Bibliografia

DREHER, Martin N. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1983. v. IV, p. 147-
52. JEREMIAS, Joachim. Gleichnisse. Göttingen, 1956.
SCHMITHALS, Walter. Das Evangelium nach Lukas. Zürich, TVZ, 1980. p. 166-8. (Zürcher
Bibelkomrnentare, 3.1).
SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Lukas. 19. Aufl. Göttingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, 1986. p. 167-70. (Das Neue Testament Deutsch, 3).
Prédica: Lucas 16.19-31
Leituras: Amós 6.1-7 e 1 Timóteo 6.6-16
Autor: Clemente João Freitag
Data Litúrgica: 19º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação:15/10/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX

Ai de vós, ricos!
Ai de vós, os saciados!
Ai de vós, que rides!
Ai de vós, que estais seguros de vós mesmos! - Lucas.

1. Introdução

Não é implicância com os ricos. Não é marcação para cima dos ricos e da riqueza. É
apenas o segundo grito de liberdade dos humilhados. O também querer ser feliz, hoje, de
fato, e não só na ilusão. É o outro extremo da luta sócio-política armada tão em voga no
Império Romano. Ou seja, é o mexer na crença, na formação e na sustentação ideológica
de um povo massacrado económica e religiosamente pelos seus e por cruéis estrangeiros.
Um povo que não via mais na luta armada uma saída honrosa. Nem por isso desistiu ou
acomodou-se ao poder da força opressora. Numa metamorfose brilhante, na ação do
Espírito de seu Deus, despertou para a purificação de sua crença. Com isso lutou contra a
crença, o ensino e a prática dos dominadores. Assim podemos entender o texto rei de
Lucas 16.19-31, escoltado pelos dizeres do primeiro príncipe Amos 6.1-7 e os conselhos
do segundo príncipe l Timóteo 6.6-12, enquanto a vinda do Senhor não se consuma. Esta
perícope já é trabalhada no PL IV, p. 88ss., sob a perspectiva de Werner Fuchs.
Aconselho o uso deste trabalho para uma melhor compreensão.

2. Um tema da perícope

V. 19: Este versículo conta a vida normal de uma pessoa e seus convidados. Diria que é a
vida de uma pequena parcela da população, em que a exuberância do viver em púrpura e
linho finíssimo, com festas luxuosas, convivia tranquilamente com a crença religiosa
ensinada e praticada pela elite governante.
Poder viver assim era uma bênção. Mas por dentro deste versículo esconde-se um poder
conflitivo. Um contraste de valores. Para uns, uma força motora de ódio e esperança de
ser um dia também feliz, e, para outros, não precisar abrir mão dessa situação, era algo
divino e sagrado.

Vv. 20-21: Aqui nos é relatada a situação de um miserável. Acredito que seja a situação da
grande maioria da população no tempo de Jesus e da comunidade cristã primitiva. Um
contraste, uma provocação e agressão ao texto anterior. Uma situação de dependência
total, mas com esperança de ser feliz. Pois tinha o '' desejo de alimentar-se.

Estes dois versículos iniciais propiciam um suspense agradável. Refletem o viver tornado
normal da sociedade humana e deixam em aberto o rumo da discussão milenar entre ter
riqueza e ter sido feito pobre. No meu entender, além da luta sócio-econômica, está
presente o conflito ideológico propiciado pela religião dos dominantes. De um lado,
consagrava a riqueza como bênção e, do outro, a pobreza como recompensa da vida sem
Deus. O negar os bens materiais aos humilhados era o resultado, era o conjunto do ensino
e prática religiosa existente. Ou ainda, a religião apenas confirmava ideologicamente essa
maneira de se viver. Apesar de pobre, Lázaro não se conformou e foi até a porta, ou foi
levado onde até os cachorros estavam ao seu lado. O caso de Lázaro não podia mais ser
tratado pela força das armas, mas, sim, pelo poder das migalhas que os fortes jogavam
fora. Rumamos assim para o desenrolar ideológico de um assunto material que envolve a
crença e a prática religiosa de dois personagens e o rumo de muitas vidas. Isto nos mostra
o versículo seguinte.

V. 22: Aqui nos é relatada a realidade que ultrapassa a capacidade e poder humanos. O
jugo da morte. Vejo, neste versículo, a morte como instrumento clareador do engano, da
ilusão sócio-religiosa imposta aos humildes e aceita de bom grado pelos abastados.
Aceito, neste versículo, a morte como sendo o grande instrumental ideológico, de força
escatológica, para os humilhados na revisão e releitura da situação humana. A morte faz o
véu da recompensa em vida partir-se, desnudando o poder opressor da religião, da
riqueza e da pobreza em benefício de poucos. A interpretação e a conclusão referente à
morte de Lázaro e do rico atestam a função-chave, o instrumental novo que Jesus/a
comunidade cristã usou para desmistificar o viver sócio-religioso em vigor.

Além disso, é evidente o poder escatológico que a morte desempenhou na vida da


cristandade. Agora nada mais impede a felicidade. E é a leitura do poder ideológico da
religião na vida material que nos leva a afirmar o poder da fantasia escatológica ser
superior às lutas sócio-políticas-militares até ali ocorridas. As lutas armadas matam o
corpo. A luta ideológica agride o coração da opressão, enchendo os sofredores de
esperança. A explicação de Jesus transformou o poder, a autoridade da riqueza em algo
fraco e vazio diante da morte, desestimulando a ambição por tal vida e tal uso da riqueza.
Lázaro foi dependente até após a morte. O rico usufruiu até o último dom da riqueza, o
sepultamento. Além disso, sobra um aviso que pode ser assim entendido no tocante à
demora da parúsia: com a demora da vinda de Cristo e com a ausência de uma proposta
material para a distribuição da riqueza, voa-se direto para o mundo dos mortos, via sentido
escatológico. Com a escatologia se explica o que ainda não vingou na prática. Graças ao
poder do Espírito, os versículos seguintes não permitem essa derrapada e acomodação
junto ao além, por parte da Igreja primitiva.

Vv. 23-30: Nestes versículos encontramos um diálogo que apresenta ideologicamente a


versão antiga do Deus de Abraão, Moisés e profetas (fim da recompensa e amor aos
humilhados). E, ainda, por que não dizer, o desejo interno da pobreza em relação aos
opressores e sua falsa segurança, ou seja: agora era tarde demais para qualquer
alteração no ramo da eternidade vivenciada. Quando a morte chegou, pôs a vida a limpo,
nada mais era possível fazer. Nem interceder pelos que ainda viviam, aceitavam e
defendiam a religião e os disparates sociais existentes. Onde primeiro se cuidava da lei de
Deus e, depois, se praticava o amor ao próximo.

Ainda, estes versículos não levam em conta o reconhecimento tardio da incredulidade, da


filiação e da tentativa do rico de mandar Lázaro parar mais uma vez na porta da casa de
seus irmãos. Tudo inútil, como atesta o próximo versículo.

V. 31: No meu entender, este versículo, juntamente com o v. 22, são o cerne da nova
proposta acerca da proclamação de um reino sem sofrimento, morte e dor. Um reino cheio
de felicidade e paz para todos. O v. 22 intercepta e põe fim ao poder do opressor, do
explorador e da religião dominante. Já o v. 31 desautoriza a religião dos fariseus, que
apresenta um deus que faz sofrer.

O v. 31 faz voltar a religião de Abraão, de Moisés e dos profetas. Ainda mostra a quase
impossibilidade de os outros ricos fazerem parte das promessas de um futuro melhor junto
ao pai Abraão. Isto está expresso no não ouvem e no não vão crer na mensagem de Deus.
O evangelho não lhes é negado. Mas também não é adaptado para confirmar seu jeito de
viver (Am 6.1-7 e l Tm 6.6-12). Eles não ouvem os Lázaros a clamar e não crêem numa
vida nova e diferente para os outros.
Assim, no mundo da comunidade cristã ainda é tempo de ouvir o clamor dos Lázaros
como mensageiros de Deus; ainda é tempo de crer no poder transformador da palavra
deste Deus que ama os fracos e muda a sorte dos que se sentem seguros; assim, ainda é
tempo de agir além daquilo que se ouve. É tempo de oferecer bem mais do que os
Lázaros estão a pedir. Pois eles são a materialização visível e palpável de Moisés e os
profetas, como palavra de Deus. Moisés e os profetas nunca comungaram com a religião e
a economia do rico. Menos ainda l Tm 6.6-12, que diz: (...) o amor ao dinheiro é a raiz de
todos os males.... Aconselha, dizendo: (...) ó homem de Deus, foge destas cousas, (...)
toma posse da vida eterna....

3. Motivação para o anúncio falado

A perícope de Am 6.1-7 relata a histórica acomodação de uma parte do povo de Deus no


berço da riqueza; seu desprezo para com os fracos e humilha¬dos socialmente. Lc 16.19-
31 apresenta um fato particularizado e oferece o instrumental, morte, para trabalhar a fé e
o lidar com os bens materiais numa perspectiva imediata de futuro. Tudo deve mudar, até
a morte. Vive-se o futuro, mas o hoje quer ser mudado, l Tm 6.6-12 nos fala como podem
ser a vida de fé e a prática material dos cristãos no mundo-e na comunidade cristã,
enquanto a parúsia demora.

Diria que são textos dirigidos e ditos exclusivamente para os/as balizados /as e crentes em
Jesus Cristo. Não são ainda de utilidade prática para o mundo que nos cerca. Precisam
ser vivenciados pelas igrejas. Nesta perspectiva as três perícopes nos dizem que ainda é
tempo de ver a situação dos Lázaros; suspender a vida luxuosa e o apoio religioso ao
abandono dos humilhados; mudar na prática e crer que a vida em Cristo é diferente. Pois a
morte ainda não chegou para dar fim a tudo.

Dito isto, rumamos ao texto específico de Lc 16.19-31. Na minha atual compreensão desta
perícope em apreço, vejo o maior mérito, não no combate aos ricos, à riqueza, mas, antes,
num ataque ao componente ideológico que leva os ricos e sua riqueza a expulsar Deus e
as criaturas de seu círculo. O viver em púrpura e linho finíssimo e festas luxuosas é algo
muito antigo e palpável ao ser humano que se rebela contra Deus. Já o componente
ideológico que dá sustentação a esse amor destruidor é passível de conteúdos e
convicções diferentes. No seio, na vida da comunidade cristã primitiva o amor ao dinhei¬ro
também era algo suscetível a aceitação.

A realidade dos cristãos primeiros ainda é de sofrimento, sem perspectiva de mudança. É


nesta circunstância que Lucas verbaliza na boca de Jesus a história em questão. O relato
estimula uma fantasia (vv. 23-30) para mostrar que a realidade vivida não é da vontade do
Deus de Abraão, Moisés e dos profetas. O adiamento da parúsia não é vitória do mal, mas
tempo de repartir riqueza e fazer ouvir a Escritura. Tempo de atender o desejo de Lázaro.
Para mostrar a urgência dessa mudança e o seu resultado, Lucas articula o que a morte
desvendou no rico: sepultura; e no Lázaro: seio de Abraão. Assim, para o meu raciocínio,
o v. 22 passa a ser a expressão, o elemento central da expectativa escatológica. Neste v.
22, a morte como poder é a mola propulsora da ação dos cristãos. É ela, a morte, que
desnuda a força ideológica da religião, como opressão aos Lázaros. E na morte brilha o
sinal de Deus para os humilhados ingressarem no seio de Abraão. É ela, a morte, que
mostrou ao rico sua surdez ao clamor de Lázaro e às palavras de Moisés e dos profetas,
apesar de ser filho de Abraão.

A morte mostra que é necessário primeiro zelar pelas criaturas de Deus. O resto será
acrescentado. A religião ensinava a primeiro cuidar da lei de Deus. Lei que os
dominadores verbalizam e ensinam. Jesus ensina e pratica o contrário. É isto que a morte
desvenda. E os cristãos são convidados a praticar o amor de Deus e o ensino da Palavra.
Isto para todos/as. Na morte de Lázaro, a comunidade cristã renova as suas forças e
fortalece a crença numa vida melhor.
Urge, como Igreja, recuperar o poder, o sentido escatológico da morte. Não permitir que a
morte seja simplesmente o poder do fim e a força que dá sentido aos disparates sociais
existentes. Mas que ela, a morte, volte a clarear o rumo de cada um, tendo o exemplo de
quem já partiu: o rico foi sepultado e Lázaro foi levado pelos anjos para o seio de Abraão.
Ainda mais que a vinda de Cristo não está consumada ou descartada até os dias de hoje.
Existem sinais nessa direção. Líderes desanimados. Movimentos reprimidos pela força. No
texto, o novo, o diferente, é que o poder libertador da morte se manifestou num ser
incapaz — Lázaro.

Nós costumamos lembrar e reverenciar os líderes mortos. Aqui é lembrada aquela parcela
que é dependente de tudo. É na morte das figuras folclóricas que precisamos aprender o
sentido novo da vida. Como Igreja temos medo de articular o poder da morte' nesses
casos extremos. Como no passado, hoje isso também vai mexer e desafiar a ideologia da
riqueza e do consumo. Ideologia atraente que está muito forte na vida dos batizados e no
conjunto das igrejas e suas práticas. Por isso não vislumbramos o poder libertador que a
morte representa, contentando-nos com o caráter doloroso e final que ela aparenta e
imprime. A passagem bíblica conclama a sairmos dessa situação antes que seja tarde,
como se deu com o rico. Agora precisamos anunciar a palavra de Deus, ouvir e ver os
clamores dos Lázaros nas ruas de nossa vida cristã.

4. Bibliografia

FUCHS, Werner. Meditação sobre Lucas 16.19-31. In: Proclamar Libertação. São
Leopoldo, Sinodal, 1979. v. IV, p. 88-95.
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Lukas. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt.
v. HL
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento. São Paulo, Paulinas, 1977. v. 1. —.
As Parábolas de Jesus. São Paulo, Paulinas, 1976.

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