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Universidade do Estado de Minas Gerais

Departamento de Psicologia
Trabalho de Conclusão de Curso Psicologia

O FURO DO FEMININO EM YSÉ: UMA MULHER APAIXONADA PELO


ABISMO

Área de Concentração: Psicologia Clínica de abordagem Psicanalítica

Divinópolis
2019
Universidade do Estado de Minas Gerais
Departamento de Psicologia
Trabalho de Conclusão de Curso de Psicologia

O FURO DO FEMININO EM YSÉ: UMA MULHER APAIXONADA PELO


ABISMO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Departamento de Psicologia da
Universidade do Estado de Minas Gerais como
requisito parcial para graduação em Psicologia

Área de concentração: Psicologia Clínica de


abordagem Psicanalítica

Orientadora: Profa. Dra. Gesianni Amaral


Gonçalves

Divinópolis
2019
FOLHA DE APROVAÇÃO
AGRADECIMENTOS

Á minha orientadora Gesianni Amaral pela confiança em minha escrita não-toda


acadêmica, pela liberdade criativa e pela generosidade com seu saber. Sua docência
apaixonada move moinhos artísticos a quem se permitir inundar! Obrigada por aceitar
essa parceria e mais, ainda!

Á minha analista Gesianni Amaral, por tecer comigo esse mosaico, ás vezes tão
doloroso mas, não menos florido. Obrigada por ser escuta sutil e sensível quando pareço
me afogar nas próprias correntezas. E por fim, obrigada por enfrentar o dark continent
que habita em mim.
RESUMO

Sabe-se que a Psicanálise de Sigmund Freud não teria sua voz voraz se não fossem as
histéricas. Apesar de construir toda uma base epistemológica e uma clínica tão próxima
do feminino, Freud ainda assim manteve em aberto o enigma do que é e o que quer uma
mulher. Jacques Lacan, anos mais tarde, traz formulações mais esclarecedoras, contudo
mantém o mistério em torno da dúvida freudiana, uma vez que o vazio da significação
(o furo) é justamente uma das possíveis respostas para essa questão. Esse trabalho tem
como objetivo geral fazer um recorte de uma, dentre as várias formulações que Lacan
propõe acerca do feminino, por meio da revisão de literatura. Pretende-se analisar a
figura de Ysé, personagem principal de Partage du midi (Partilha do meio dia), do
dramaturgo francês Paul Claudel. Lacan apresenta esse caso de forma breve em O
Seminário, Livro 8: A transferência e, na narrativa de Ysé encontra-se elementos
importantes do que viria a ser para Lacan aquela que se parece com o que é uma
mulher. Objetiva-se elucidar de forma sucinta, o que enuncia o aforismo lacaniano em
que A mulher não existe e seus desdobramentos acerca do feminino. Ao contrário do
que pode sugerir em um primeiro contato, o aforismo de Lacan em questão não reduz ou
anula A mulher ou a condição feminina. Na verdade é uma afirmação que permite a
condição feminina caminhar em indizíveis graus de liberdade. A partir do extravio de
Ysé diante do que é simbolizável, Lacan aponta o que seria uma possível verdade da
sexualidade feminina.

PALAVRAS-CHAVE: Feminino; gozo Outro; falo.


ABSTRACT
It is known that Sigmund Freud's Psychoanalysis wouldn't have its voracious voice if it
weren't for the hysterical ones. Despite building an entire epistemological foundation
and clinic so close to the feminine, Freud still kept open the riddle of what a woman is
and wants. Jacques Lacan, years later, brings more enlightening formulations, yet
maintains the mystery surrounding Freud's doubt, since the emptiness of meaning (the
hole) is precisely one of the possible answers to this question. This work aims to make a
cut of one of the various formulations that Lacan proposes about the feminine, through
the literature review. It is intended to analyze the figure of Ysé, main character of the
French playwright Paul Claudel's Partage du midi. Lacan presents this case briefly in
The Seminar, Book 8: The Transfer, and in Ysé's narrative there are important elements
of what would become for Lacan what resembles what a woman is. The objective is to
briefly elucidate, what enunciates the Lacanian aphorism in which The woman do not
exist and their consequences around the feminine. Contrary to what it may suggest in a
first contact, Lacan's aphorism in question does not reduce or annul The woman or the
female condition. It is actually a statement that allows the female condition to walk in
unspeakable degrees of freedom. From Ysé's misconception of what is symbolizable,
Lacan points out what would be a possible truth of female sexuality.

KEYWORDS: Feminine; jouissance of the Other; phallus


SUMÁRIO
Introdução

Diante de uma clínica crescente da devastação feminina entre as mulheres, faz-


se necessário considerar as questões acerca dessa problemática e como se dá sua
apresentação na clínica nos dias de hoje. Nesse contexto, Marie Helène-Brousse (2004)
destaca o impasse e a dor experimentada por esses sujeitos diante do desfalecimento dos
semblantes. Com esse real clínico cada vez mais evidente, devemos nos perguntar como
se apresenta o feminino na atualidade.
Compreendendo o feminino como um vazio do significante que não é capaz de
representá-lo, parece difícil descrevê-lo e esgotá-lo por meio de uma perspectiva
científica e acadêmica. Dizer sobre o indizível do feminino parece, ao primeiro olhar,
paradoxal. Todavia, não se deve calar diante daquilo que seria impossível de dizer, uma
vez que por mais que A mulher não exista, isso não significa que a condição feminina
não possa existir. Apesar de construir toda uma base epistemológica e uma clínica tão
próximo das mulheres, Freud ainda assim manteve em aberto o enigma do que é e o que
quer uma mulher. Jacques Lacan, anos mais tarde, traz formulações mais
esclarecedoras, mas mantém o mistério em torno da dúvida freudiana, uma vez que o
vazio da significação (o furo) é justamente uma das melhores possíveis respostas para
essa questão.
A escolha pela área de Psicanálise se deu a partir de sua singularidade como
campo epistemológico e por esta dispor de meios teóricos que podem orientar a análise
de diversos fenômenos, culturais e subjetivos. Deste modo, para além da grande área
escolhida, a Linha de Pesquisa em Conceitos Fundamentais em Psicanálise e
Investigações no Campo Clínico e Cultura seria o espaço propício para realização do
tema proposto por esta pesquisa.

O enigma da sexualidade feminina na Psicanálise: um breve percurso

Se vocês quiserem saber mais sobre a feminilidade,


interroguem suas próprias experiências de vida ou
enderecem-se aos poetas (FREUD, 1933).

Freud (1925-31/1972) se deparou com as diferenças anatômicas do menino em relação à


menina ao longo de sua construção teórica e clínica e, aos poucos, percebeu que elas
ultrapassavam a anatomia. Na tentativa de compreender o feminino, usou do referente
fálico como ponto de partida, ou seja, o paradigma masculino. Pode-se questionar que
talvez justamente por ele ter se baseado nessa premissa o feminino permaneceu um
enigma a seus olhos. Ao se questionar quanto ao que quer uma mulher, Freud conclui,
no apagar das luzes, que não sabe a resposta. O psicanalista não respondeu a questão e
sustentou que a tarefa caberia às gerações vindouras, às analistas mulheres restaria a
tarefa de descortinar esse enigma, de forjar respostas ao que não se sabe desse
“continente negro”, como o chamou.
Freud (1925-31) descobriu que, no inconsciente, esta diferença anatômica é
transformada em significante no tocante ao ter ou não o falo. Porém, em matéria de
pulsões parciais, essa diferença nada tem que ver. O que é possível e passível de análise
seria a orientação que tem o desejo sexuado. O caminho que ele percorre e como se dão,
a posteriori, as escolhas amorosas.
Em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud (1905) chama
atenção para como poderia ser a constituição da libido nos seres humanos. Ele verifica
que, além da escolha de objeto na vida sexual infantil, há também uma “primazia do
falo” tanto para as meninas como para os meninos, ou seja, o único órgão genital
reconhecido seria o masculino. E, de forma bem direta, esclarece que essa hipótese só
poderá ser descrita na criança do sexo masculino, pois “os processos correspondentes na
menina não conhecemos” (Freud, 1923, p. 180).
Na tentativa de compreender o feminino, Freud (1925-31/1972) usou do
referente fálico como ponto de partida, ou seja, do paradigma masculino. Pode-se
questionar que, talvez justamente por ele ter se baseado nessa premissa, o feminino
permaneceu um enigma a seus olhos. Ao se questionar o que quer uma mulher?, Freud
conclui que não sabe a resposta. O psicanalista não respondeu a questão e sustentou às
gerações vindouras, às analistas mulheres, restaria a tarefa de descortinar esse enigma,
de forjar respostas ao que não se sabe desse “continente negro”, como o chamou.
Doravante, Lacan (1972-73/1985) reformula a diferença entre os sexos, opondo
duas lógicas: a toda-fálica, referente ao homem e a não-toda-fálica, referente a mulher.
E, se tratando de duas lógicas diversas, trata-se também de gozos diversos: o gozo fálico
(limitado e descontínuo) e o suplementar (não exclui a referência ao falo; soma-se a
ela). Em um além do Édipo, Lacan(1985) propõe um inconsciente que é pura lógica,
uma vez que só algo puramente lógico daria conta de algo absurdamente diverso: o gozo
dos corpos.
Retomemos as ideias de Freud, a fim de compreender a proposta lacaniana sobre
o desejo feminino. A respeito da feminilidade, a fórmula de Freud (1921/1980), diante
da divisão que a castração produz, envolve o ter/não ter o falo, sendo que a mulher
freudiana está do lado da falta-a-ter. O autor indica três destinos viáveis para o erotismo
feminino: a escolha pela neurose (histeria), a maternidade e o complexo de
masculinidade. A feminilidade da mulher freudiana deriva de sua castração que a
conduz à busca do amor de um homem. Nesta perspectiva, a mulher é definida por
intermédio de sua reivindicação fálica, ou seja, pela parceria com um homem.
No desdobramento lacaniano (1958/1998) da falta-a-ter para ser o falo,
compreendemos tratar-se de um desvio da questão do tornar-se mulher pela via da
estrutura edípica: a feminilidade fala de um ser que não se sujeita totalmente à
castração. Decorrente deste fato, Lacan (1972-73/1985), acentuará menos a castração do
que a divisão que o primado do falo impõe a um sujeito. Assim, um sujeito pode estar
por inteiro na função fálica – logo, ser homem –, ou estar não-toda inscrita na função
fálica – logo, ser mulher.
Subordinado à função do falo, Lacan (1958/1998) explica que é possível apontar
as estruturas a que as relações entre os sexos se submetem. Ser o falo é ser o significante
do desejo do Outro e apresentar-se como esse significante. Dito de outro modo, é ser o
objeto, o Outro de um desejo masculino, mas também é representar ou refletir esse
desejo. Para as mulheres, ser o falo significa refletir o poder do falo, significar esse
poder, incorporar o falo, prover o lugar em que ele penetra e significá-lo mediante sua
ausência, sua falta, construindo assim a dialética de sua feminilidade.
Ao propor uma releitura da teoria freudiana, Lacan (1972-73/1985) depreende
que não existe um significante no inconsciente que abarque o que é o feminino, ou seja,
não existe nenhuma representação psíquica para o feminino, visto que no inconsciente
só existe a representação fálica. Assim sendo, não tendo um significante que o
represente, o feminino ou encontra seu refúgio no artifício da máscara, ou se lança à
deriva encaminhando-se para além da dimensão da mascarada. No primeiro caso, o ser
mulher se ampara portando as insígnias fálicas capazes de construir um significante para
o vazio de sua condição feminina, ao contrário, põe fim às insígnias fálicas que portam
e que faziam dela um nome de mulher em sua conexão com um homem.
Diante da pergunta de como exatamente um homem pode amar uma mulher, o
Édipo freudiano tem a resposta que produz o homem, não a mulher. Freud (1924), deixa
claro que, para isso acontecer, o homem há de abrir mão do seu objeto primordial, que é
a mãe, e do gozo referido a ela. Todavia, ao tentar explicar o lado da mulher, abriram-se
mais perguntas que respostas.

O indizível do feminino em Lacan: conheçam Ysé

Muito antes de sua proposição do gozo não-todo, Lacan traz muitas formulações
sobre a mulher. O psicanalista busca na literatura, quatro figuras de mulheres que são,
segundo ele, de fato o exemplo maior das “verdadeiras mulheres”. São elas: Antígona,
heroína da tragédia grega de Sóflocles, Madeleine, mulher do escritor André Gide,
Medéia, personagem da tragédia escrita por Eurípedes, e Ysé, a heroína trágica de Paul
Claudel.

Na lição de 21 de janeiro de 1975 do Seminário livro 22, RSI (1974-1975) Lacan


menciona outra personagem literária. Neste momento ele faz menção “a mulher como
sintoma para quem tem o falo” (LACAN, 1975, p.22) e introduz a afirmação de que
uma mulher é um sintoma para um homem. Para tanto, sugere a leitura do romance
Ondine que, segundo ele, manifesta aquilo de que se trata em uma mulher ser sintoma
para um homem: é algo que ele crê. São muitos exemplos instigantes que Lacan nos
apresenta, para este trabalho, elegemos Ysé, como figura que possibilita ricas
problematizações acerca do desejo feminino.

Ysé é a personagem principal de Partage de midi (Partilha do meio dia), uma


versão contemporânea da tragédia nas fábulas de Coutfontaine, do dramaturgo francês
Paul Claudel. Lacan(1960-61) apresenta esse caso de forma breve em “O Seminário,
Livro 8: A transferência” e, na narrativa de Ysé, encontra-se elementos importantes do
que viria a ser para Lacan uma possível verdade da sexualidade feminina:

“na verdade Claudel, [...] não nos mostra que tenha dela [a mulher] uma ideia
conclusiva, longe disso. [...] Assim mesmo, façamos-lhe justiça, em outra parte, em
Partage de midi, Claudel nos fez uma mulher, Ysé, que não ficou mal. Aquela ali se
parece muito com o que é, a mulher”. (Lacan, 1960-61/1992, p. 302)

Lacan (1960-61) afirma que o escritor Paul Claudel conseguiu criar em Ysé (não
sem antes errar bastante) um verdadeiro personagem de mulher. Sua acurada
curiosidade e sua sagaz sensibilidade diante do que não se limita na mulher fizeram dos
escritos de Claudel uma fonte frutífera paras nossas questões:

A mulher é antes de tudo alguém sobre quem pesa a exigência prática. Mas ela é
também alguém em cuja fronte está inscrita a palavra: Mistério. Ela é a possibilidade de
alguma coisa desconhecida. Um ser secreto e cheio de significações. Um ser secreto e
ignorado por si mesma que postula, para sua realização, uma intervenção exterior. [...]
Para arrancar um homem de si mesmo até as raízes, para dar-lhe o gosto do outro, este
avarento, esse duro, esse egoísta, para fazê-lo preferir esse Outro que a si mesmo até a
perdição do corpo e da alma, só há um instrumento apropriado: a mulher (Claudel,
1967, p. 134).

Sabemos que, para além de uma personagem, ela traz em si várias mulheres de
carne, osso e voz. Em seu texto “As mulheres e os analistas são feitos para perturbar!”,
a psicanalista Márcia Rosa, acentua essa condensação multifacetada do feminino em
Ysé:

Que Ysé experimente o não-toda fálica no registro da devastação e que ela se pareça
muito com o que é, a mulher (aqui diríamos A mulher), isso não faz dela senão uma
personagem feminina que, tal como a Irma do sonho de Freud, condensa em ‘uma’
múltiplas faces do feminino, inclusive essa de ser tentada (e de se servir disso para
tentar o outro) pelo abismo como uma voragem, radical e absoluta! (Rosa, 2017, p.
117)

Ysé tem em si a trágica intuição de que o gozo da mulher é um gozo solitário e


não sabe bem o que fazer com isso. Seu homem, o marido, aparece como um ponto de
regulação, como algo que protege do ilimitado que não se conhece, como pode ser visto
nas passagens: “eu lhe peço que não me abandone mais e não me deixe sozinha” e “Não
confie muito em mim./Não sei, sinto em mim uma tentação. [...] E peço que não me
venha essa tentação, porque não me convém.” (Claudel, 1967, p. 1017-18).

Lacan vê aparecer em Ysé, o que poderia chamar de aquela que se parece muito com o
que é uma mulher, uma figura feminina que abre mão de todas as insígnias fálicas que
lhe são postas e apreendidas, uma vez que Ysé é esposa, é mãe, é amante e nega todos
os esses semblantes. Diante de tudo o que pode ser o desejo feminino, ela se desgarra do
simbólico, se extravia e deixa bem claro que esses bens não são passíveis de conter sua
solidão de mulher.

Ysé tem medo de si. Da Outra que lhe habita e pode querer escolher o caminho do gozo
não simbolizável. Ysé tem medo do marido a deixar sozinha e que a tentação que nela
reside, a movimente e a desproteja de toda a regulação. Regulação simbólica. Na
ausência do marido, ela se perderia em si mesma, o que não convém. Um afeto tão
radical, um desejo tão ilimitado que não pode ser reconhecido pela própria castração.
Um elemento disruptivo que ele entende como o cerne daquilo que é seu ser mulher.

Ysé tem em si a trágica intuição que o gozo da mulher é um gozo solitário e não sabe
bem o que fazer com isso. Em várias de suas falas, quando demonstra medo de ficar
sem seu marido que barraria a tentação, ou quando diz de poder responder por vários
nomes dentro dela mesma, Ysé diz também desse inapreensível que é o feminino. Seu
receio revela um saber sobre o que não conseguimos dizer e acaba aniquilando-a em um
empuxo mortífero. Ysé era apaixonada pelo abismo.
Ela passa a vida se entregando as fantasias de seus homens e, quando se depara com o
fato de que isso não garante sua regulação, se vê diante de uma liberdade assustadora.
Tudo passa a somente amansar esse elemento assustador que ela teme encontrar. Essa
devastação, esse aniquilamento é o que, para Lacan, marca essa posição que excede
todas as medidas. Excede todas as medias fálicas e coloca Ysé no lado do não-todo, o
lado em que marca seu extravio e seu caminho para um lugar que ela mesma não
conhece. O lugar do não simbolizável, do furacão, do furor, do furo. O lugar do
feminino que pode ser tão apaixonante por todo o sentido que ele não tem.

Devastação

Entendemos devastação como a tradução do termo francês ravage, que


significa “arrasar, fazer estragos”, segundo o dicionário Larousse (2005). Já em
português, no dicionário Aurélio (1993), tem como significado “ruína, destruição”.O
conceito de devastação é trabalhado na psicanálise tanto como efeito da relação entre
mãe e filha, quanto como um traço da vida amorosa da mulher que, presa na sua posição
de objeto para um homem, faz dele não o seu sintoma, mas o seu estrago. Em nossa
proposta de trabalho, daremos ênfase à segunda assunção.
Miller (1998) define, ainda, a devastação como uma outra face do amor; seria
um gozo substituto à resposta do amor. Ele afirma que “o incondicional da demanda de
amor, em seu caráter potencialmente infinito, retorna ao falasser feminino, precisamente
sob a forma da devastação” (Miller, 1998, p. 114).
Cristina Drummond (2011, p.11), em seu artigo homônimo ao conceito que
estamos apresentando, “Devastação”, diz que “a perda desse amor pode trazer a
irrupção de uma desfalicização do corpo, uma errância, uma despersonalização ou ainda
uma ameaça de autodesaparecimento.”. O que nos é bem escamoteado nos rastros da
trajetória escrita e vivida por Amy. O sujeito devastado é apaixonado pelo desregulado
do gozo feminino.
Na teoria lacaniana, encontramos o amor como uma possível saída para conter o
gozo feminino. Quando o parceiro não entra no lugar de uma devastação, ele pode ter
efeitos de contenção do gozo. O termo ravage aparece em L’étourdit de Lacan (1973).
Ravage (devastação) é um termo derivado de ravir (arrebatar), que Lacan (1965/2003)
também trabalha em sua homenagem à Maguerite Duras sobre o caso de Lol V. Stein,
uma de suas obras. Diz do arrebatamento que foi para Lol, a visão da traição de seu
homem em um baile. A psicanalisa Ana Lúcia Lutterbach Holk (2017), diz desse
arrebatamento como “quando a nãotoda perde seus enlaces e, sem nó, perde o sentido,
seu norte. Arrebatamento é quando a mulher perde o amor de um homem, e este era o
único nó que a enlaçava.” Ao perder o homem, perdeu-se também no desejo do Outro.
Dessa relação em que vivia como objeto, restou o vazio.
A devastação pode ser lida também como uma face daquilo que é o nãotodo no
lado feminino da tábua da sexuação. Ou seja, como uma dificuldade inerente à própria
inexistência do conjunto fechado mulher. Jacques-Alain Miller (1999, p.129), em seu
artigo “Uma partilha sexual”, afirma que “[…] uma mulher tem sempre um ponto de
devastação, que não há relação com a lei que possa poupá-la disso, no mesmo sentido
em que Lacan dizia que a verdadeira mulher tem sempre algo de perdida”. Logo, a
significação vazia, o buraco no real da relação sexual que não existe e que
necessariamente conduz ao enigma do feminino. A porta ficou aberta e cada mulher há
de inventar seu próprio feminino.

O furo do feminino e a possibilidade de invenção

Ysé age de uma forma que poderia ser comparada a da mulher mítica. Trai todos
os seus homens e, ao trair, trai assim todos os objetos que por ventura responderiam a
sua falta fálica. A tentação que teme não são novos amores e amantes e sim “a do amor
louco, de um amor total que, anulando tudo, aparenta-se com a morte” (SOLER, 2005,
p. 21). Renuncia a todos sem sacrifício uma vez que nada além do abismo tem valor.
Um amor absoluto pelo vazio, uma exaltação de um amor que teria como fim a morte; a
mortificação; o aniquilamento:

É a tentação de um amor tão total, tão absoluto quanto irrespirável, que varre
para longe não só as mediocridades do compromisso, mas esvazia de
substância os objetos mais diletos, mata qualquer diferença e se afirma sob a
forma de um aniquilamento – a ser distinguido da denegação, é claro – de
todos os objetos relacionados com a função fálica, ou seja, com a falta.
(SOLER, 2005, p. 21).

Esse horror diante da possibilidade assustadora de se encontrar com o que mora


no cerne de sua feminilidade, fez Ysé reduzir-se a nada, sustentando as fantasias de seus
amantes. Assumindo o lugar da mulher que encarna o impossível, Ysé é uma mulher
ultrapassada por seu gozo e, apesar de contar com um homem ou vários deles, ela está
ultrapassada pelo que há de pulsional na sexualidade feminina. O gozo que se produz
pelo coito ou na fantasia da qual ela participa enquanto parceira de cada um deles não
esgota seu ser de mulher. “É também por isso que é como única que ela quer ser
reconhecida pela outra parte; isso é mais do que sabido” (Lacan, 1972/2003, p. 476).

Sabemos que a histérica procura nomear-se como mulher através da mediação


fálica, buscando esgotar nas máscaras que utiliza a pergunta sobre a feminilidade. É
uma maneira de dar nome ao inominável no lugar do feminino. Sendo sua feminilidade
estranha a si mesmo, a mulher se defende através destas insígnias, do mistério da Outra
mulher que detém o segredo do que ela é, do que é ser uma mulher. Ao contrário da
posição histérica, Lacan vai nomear como uma verdadeira mulher a personagem
representada por Ysé, exatamente porque ela não sustenta uma posição histérica de
esquiva, nem de uma ambivalência contestadora, mas uma posição que se basta, sem o
privilégio dos objetos.

A tragédia contemporânea de Claudel se mostra muito atual em uma sociedade


na qual as mulheres são desvalorizadas e levadas a relações de subserviências em graus
tão pesados que encontrar com o silêncio da morte se torna viável. Morte simbólica e
morte Real. Como se não bastasse guardar o furacão infinito do desregulado em si, há
de ser calada por sujeitos que não suportam a imensidão de poder se reinventar a partir
do abismo.

Ysé existe de uma forma que ultrapassa a função fálica, rompendo com o
simbólico e se nomeando “eu sou o impossível”. Longe de se esgotar algo do feminino,
o impossível e a inscrição de Ysé em um não-todo fálico dizem de uma verdade
poeticamente subversiva da sexualidade feminina. É nesse não-todo que nasce o novo.
Que nasce a invenção. É do não-todo d’A mulher que ela pode ser o que ela quiser. Que
podemos ser o que quisermos. Ouvir sobre isso, dizer disso e tentar encontrar um
“saber-fazer” a partir daí. É uma verdadeira jornada de invenções que passa como
machado em terra fina e escancara o furo que mostra onde dói. Dor que pode matar mas
que também pode ensinar a viver. Há vida no não existir d’A mulher.
Referências

CLAUDEL, Paul. Théâtre I. Paris: Gallimard, 1967.


FREUD, Sigmund. A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da
sexualidade (1923). In:______. O ego e o id e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
1976. p.177-184. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud, 19).

FREUD, Sigmund. Sexualidade Feminina (1931). In: ______. O futuro de uma ilusão,
O mal-estar na civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 257-279.
(Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).
FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do ego(1921). In.:______. Além do
princípio de prazer, Psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
1980. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud,
v. 18, p-p.89-182).
HADDAD, Izabel. Uma mulher e seus extravios. Belo Horizonte: Cas’a’screver, 2017.
LACAN, J. A significação do falo (1958). In.: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.

LACAN, J. Deus e o gozo D’A Mulher (1972-73). In.: ______. O Seminário, livro 20:
mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. O aturdito (1972). In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. Le seminaire, livre XXII: RSI (1974- 1975).  (Inédito).
SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005.

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