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Departamento de Psicologia
Trabalho de Conclusão de Curso Psicologia
Divinópolis
2019
Universidade do Estado de Minas Gerais
Departamento de Psicologia
Trabalho de Conclusão de Curso de Psicologia
Divinópolis
2019
FOLHA DE APROVAÇÃO
AGRADECIMENTOS
Á minha analista Gesianni Amaral, por tecer comigo esse mosaico, ás vezes tão
doloroso mas, não menos florido. Obrigada por ser escuta sutil e sensível quando pareço
me afogar nas próprias correntezas. E por fim, obrigada por enfrentar o dark continent
que habita em mim.
RESUMO
Sabe-se que a Psicanálise de Sigmund Freud não teria sua voz voraz se não fossem as
histéricas. Apesar de construir toda uma base epistemológica e uma clínica tão próxima
do feminino, Freud ainda assim manteve em aberto o enigma do que é e o que quer uma
mulher. Jacques Lacan, anos mais tarde, traz formulações mais esclarecedoras, contudo
mantém o mistério em torno da dúvida freudiana, uma vez que o vazio da significação
(o furo) é justamente uma das possíveis respostas para essa questão. Esse trabalho tem
como objetivo geral fazer um recorte de uma, dentre as várias formulações que Lacan
propõe acerca do feminino, por meio da revisão de literatura. Pretende-se analisar a
figura de Ysé, personagem principal de Partage du midi (Partilha do meio dia), do
dramaturgo francês Paul Claudel. Lacan apresenta esse caso de forma breve em O
Seminário, Livro 8: A transferência e, na narrativa de Ysé encontra-se elementos
importantes do que viria a ser para Lacan aquela que se parece com o que é uma
mulher. Objetiva-se elucidar de forma sucinta, o que enuncia o aforismo lacaniano em
que A mulher não existe e seus desdobramentos acerca do feminino. Ao contrário do
que pode sugerir em um primeiro contato, o aforismo de Lacan em questão não reduz ou
anula A mulher ou a condição feminina. Na verdade é uma afirmação que permite a
condição feminina caminhar em indizíveis graus de liberdade. A partir do extravio de
Ysé diante do que é simbolizável, Lacan aponta o que seria uma possível verdade da
sexualidade feminina.
Muito antes de sua proposição do gozo não-todo, Lacan traz muitas formulações
sobre a mulher. O psicanalista busca na literatura, quatro figuras de mulheres que são,
segundo ele, de fato o exemplo maior das “verdadeiras mulheres”. São elas: Antígona,
heroína da tragédia grega de Sóflocles, Madeleine, mulher do escritor André Gide,
Medéia, personagem da tragédia escrita por Eurípedes, e Ysé, a heroína trágica de Paul
Claudel.
“na verdade Claudel, [...] não nos mostra que tenha dela [a mulher] uma ideia
conclusiva, longe disso. [...] Assim mesmo, façamos-lhe justiça, em outra parte, em
Partage de midi, Claudel nos fez uma mulher, Ysé, que não ficou mal. Aquela ali se
parece muito com o que é, a mulher”. (Lacan, 1960-61/1992, p. 302)
Lacan (1960-61) afirma que o escritor Paul Claudel conseguiu criar em Ysé (não
sem antes errar bastante) um verdadeiro personagem de mulher. Sua acurada
curiosidade e sua sagaz sensibilidade diante do que não se limita na mulher fizeram dos
escritos de Claudel uma fonte frutífera paras nossas questões:
A mulher é antes de tudo alguém sobre quem pesa a exigência prática. Mas ela é
também alguém em cuja fronte está inscrita a palavra: Mistério. Ela é a possibilidade de
alguma coisa desconhecida. Um ser secreto e cheio de significações. Um ser secreto e
ignorado por si mesma que postula, para sua realização, uma intervenção exterior. [...]
Para arrancar um homem de si mesmo até as raízes, para dar-lhe o gosto do outro, este
avarento, esse duro, esse egoísta, para fazê-lo preferir esse Outro que a si mesmo até a
perdição do corpo e da alma, só há um instrumento apropriado: a mulher (Claudel,
1967, p. 134).
Sabemos que, para além de uma personagem, ela traz em si várias mulheres de
carne, osso e voz. Em seu texto “As mulheres e os analistas são feitos para perturbar!”,
a psicanalista Márcia Rosa, acentua essa condensação multifacetada do feminino em
Ysé:
Que Ysé experimente o não-toda fálica no registro da devastação e que ela se pareça
muito com o que é, a mulher (aqui diríamos A mulher), isso não faz dela senão uma
personagem feminina que, tal como a Irma do sonho de Freud, condensa em ‘uma’
múltiplas faces do feminino, inclusive essa de ser tentada (e de se servir disso para
tentar o outro) pelo abismo como uma voragem, radical e absoluta! (Rosa, 2017, p.
117)
Lacan vê aparecer em Ysé, o que poderia chamar de aquela que se parece muito com o
que é uma mulher, uma figura feminina que abre mão de todas as insígnias fálicas que
lhe são postas e apreendidas, uma vez que Ysé é esposa, é mãe, é amante e nega todos
os esses semblantes. Diante de tudo o que pode ser o desejo feminino, ela se desgarra do
simbólico, se extravia e deixa bem claro que esses bens não são passíveis de conter sua
solidão de mulher.
Ysé tem medo de si. Da Outra que lhe habita e pode querer escolher o caminho do gozo
não simbolizável. Ysé tem medo do marido a deixar sozinha e que a tentação que nela
reside, a movimente e a desproteja de toda a regulação. Regulação simbólica. Na
ausência do marido, ela se perderia em si mesma, o que não convém. Um afeto tão
radical, um desejo tão ilimitado que não pode ser reconhecido pela própria castração.
Um elemento disruptivo que ele entende como o cerne daquilo que é seu ser mulher.
Ysé tem em si a trágica intuição que o gozo da mulher é um gozo solitário e não sabe
bem o que fazer com isso. Em várias de suas falas, quando demonstra medo de ficar
sem seu marido que barraria a tentação, ou quando diz de poder responder por vários
nomes dentro dela mesma, Ysé diz também desse inapreensível que é o feminino. Seu
receio revela um saber sobre o que não conseguimos dizer e acaba aniquilando-a em um
empuxo mortífero. Ysé era apaixonada pelo abismo.
Ela passa a vida se entregando as fantasias de seus homens e, quando se depara com o
fato de que isso não garante sua regulação, se vê diante de uma liberdade assustadora.
Tudo passa a somente amansar esse elemento assustador que ela teme encontrar. Essa
devastação, esse aniquilamento é o que, para Lacan, marca essa posição que excede
todas as medidas. Excede todas as medias fálicas e coloca Ysé no lado do não-todo, o
lado em que marca seu extravio e seu caminho para um lugar que ela mesma não
conhece. O lugar do não simbolizável, do furacão, do furor, do furo. O lugar do
feminino que pode ser tão apaixonante por todo o sentido que ele não tem.
Devastação
Ysé age de uma forma que poderia ser comparada a da mulher mítica. Trai todos
os seus homens e, ao trair, trai assim todos os objetos que por ventura responderiam a
sua falta fálica. A tentação que teme não são novos amores e amantes e sim “a do amor
louco, de um amor total que, anulando tudo, aparenta-se com a morte” (SOLER, 2005,
p. 21). Renuncia a todos sem sacrifício uma vez que nada além do abismo tem valor.
Um amor absoluto pelo vazio, uma exaltação de um amor que teria como fim a morte; a
mortificação; o aniquilamento:
É a tentação de um amor tão total, tão absoluto quanto irrespirável, que varre
para longe não só as mediocridades do compromisso, mas esvazia de
substância os objetos mais diletos, mata qualquer diferença e se afirma sob a
forma de um aniquilamento – a ser distinguido da denegação, é claro – de
todos os objetos relacionados com a função fálica, ou seja, com a falta.
(SOLER, 2005, p. 21).
Ysé existe de uma forma que ultrapassa a função fálica, rompendo com o
simbólico e se nomeando “eu sou o impossível”. Longe de se esgotar algo do feminino,
o impossível e a inscrição de Ysé em um não-todo fálico dizem de uma verdade
poeticamente subversiva da sexualidade feminina. É nesse não-todo que nasce o novo.
Que nasce a invenção. É do não-todo d’A mulher que ela pode ser o que ela quiser. Que
podemos ser o que quisermos. Ouvir sobre isso, dizer disso e tentar encontrar um
“saber-fazer” a partir daí. É uma verdadeira jornada de invenções que passa como
machado em terra fina e escancara o furo que mostra onde dói. Dor que pode matar mas
que também pode ensinar a viver. Há vida no não existir d’A mulher.
Referências
FREUD, Sigmund. Sexualidade Feminina (1931). In: ______. O futuro de uma ilusão,
O mal-estar na civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 257-279.
(Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).
FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do ego(1921). In.:______. Além do
princípio de prazer, Psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago,
1980. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud,
v. 18, p-p.89-182).
HADDAD, Izabel. Uma mulher e seus extravios. Belo Horizonte: Cas’a’screver, 2017.
LACAN, J. A significação do falo (1958). In.: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.
LACAN, J. Deus e o gozo D’A Mulher (1972-73). In.: ______. O Seminário, livro 20:
mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. O aturdito (1972). In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, J. Le seminaire, livre XXII: RSI (1974- 1975). (Inédito).
SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005.