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II

I A VIAGEM DE DUARTE PACHECO PEREIRA

EDGAR AVILA GANDRA*


MARCOS BORGES DA SILVEIRA**

o presente artigo tem como objetivo analisar a conjuntura sobre a


possível viagem de Duarte Pacheco Pereira, em 1498, às costas
brasileiras, portanto antes da "descoberta oficial" realizada por Pedra
Alvares Cabra!.
Para contextualizarmos a possível viagem de Duarte Pacheco,
enfocaremos o período que corresponde ao final do século XIV e
início do século XV, espaço de tempo que abarca os reinados de
D. João 11 e D. Manoel I. É a partir desse primeiro que Duarte
Pacheco Pereira vai participar efetivamente com atuações ultramarinas,
como na fundação da Feitoria-Fortaleza de São Jorge da Mina, em
1482. No reinado do segundo, em que possivelmente ocorre a
possível viagem às costas brasileiras, é o momento áureo de prestígio
do autor de Esmeraldo de Situ Orois', devido a seus feitos militares
ultramarinos.
Os reinados acima citados estão inseridos no contexto das
Grandes Navegações, como, por exemplo, a descoberta do Cabo da Boa
Esperança por Bartolomeu Dias, no reinado de D. João 11, e a descoberta do
caminho marítimo para as índias por Vasco da Gama, no reinado de
D. Manuel I.
A Espanha, no período acima descrito, esteve envolvida com sua
unificação e com a expulsão dos mouros, e seus governantes mais
significativos foram os Reis Católicos Fernando e Isabel, que também deram
impulso às conquistas ultramarinas. Como expoente desse impulso,
destacamos a "Descoberta da América", em 1492, pelo marinheiro genovês
Cristóvão Colombo. Por fim, destacamos que o momento das grandes
navegações é extremamente importante para caracterizar um aspecto
central de nossa análise, a "Política do Sigilo". Assunto de que trataremos no
decorrer deste ensaio.
O reinado de Dom João 11, também denominado o "Príncipe Perfeito",

* Professor Adjunto da Universidade de Cruz Alta - UNICRUZ. Mestre em História.


** Mestre em História Ibero-Americana - UNISINOS.
1 Obra escrita por Duarte Pacheco Pereira, em 1508.
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foi muito importante para a história de Portugal, visto que esse monarca deu Simplesmente adolescente seria Duarte Pacheco, quando fez, em Arzila e
Tânger, a sua aprendizagem de guerra; e também desde logo faria das
profundo incentivo às questões do mar. O "Príncipe Perfeito" atuou
causas do mar, pois de seu pai se sabe a elas ser dado, iniciando-senas de
decisivamente na defesa dos interesses marítimos portugueses, como na
cosmografia e náutica (...). Da sua juventude pode crer-se, como ele próprio
elaboração do Tratado de Tordesilhas, em que o soberano português deu a entender, ter sido ocupada em intenso estudo, estimulador da sua
conseguiu garantir um imenso império para sua Coroa. Cabe salientar que o inclinação para as tarefas de cosmógrafo e explorador geógrafo que depois
"Príncipe Perfeito" tinha, também, a pretensão de unificar a península sob o se notabilizou (apud de Pereira, 1988, p. XV).
governo de um rei português. Com esse fim, elaborou um projeto de
aproximação com os soberanos de Castela, visando, através de um Nos primeiros anos de reinado de D. João 11, Duarte Pacheco
casamento entre os herdeiros dos tronos, alcançar seus objetivos. Neste trabalhou em feitos ultramarinos, como na fundação da Feitoria-Fortaleza de
contexto, bem como nos assuntos das navegações, D. João 11 utilizou São Jorge da Mina, em 1482, bem como na exploração do litoral e interior
amplamente a tática do segredo, chegando ao ponto de ludibriar das terras "guineses". Em 1490, Duarte Pacheco estava incorporado à
I Cristóvão Colombo sobre o conhecimento náutico português. Segundo "guarda do monarca", e no final do reinado de D. João 11, por seu grande
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Jaime Cortesão, "(...) a política nacional de segredo, tão sabiamente prestígio, foi incluído no corpo de técnicos portugueses que participaram da
\111 urdida por D. João 11, explica os erros de Colombo" (Cortesão, 1960, negociação do Tratado de Tordesilhas.
p. 52). Em outras palavras, o "Príncipe Perfeito", maquiavelicamente, Com a morte de D. João 11, D. Manuel I assume o trono de Portugal e
elaborou uma trama e conseguiu ludibriar Colombo sobre o valor do Grau é nos primeiros anos do reinado desse monarca, mais precisamente no ano
Terrestre, com isso dificultando as navegações de Espanha (Cortesão, de 1498, que está a passagem mais polêmica da vida de Duarte Pacheco
1960, p. 52-53). Pereira, que seria sua viagem às costas brasileiras. Escreveu Pacheco, em
Após a morte de D. João 11, na qual paira a sombra de seu Esmeraldo de Situ Orbis:
envenenamento, assumiu o trono seu primo e cunhado, D. Manuel I. O novo
soberano continuou, no que se refere às navegações e à política de união E além do que dito é a experiência que é madre das causas, nos desengana
ibérica, a obra de seu antecessor. Conforme Cortesão, destacamos que "a e de toda dúvida nos tira; e portanto, bem-aventurado Príncipe,temos sabido
política de segredo não se deteve com o falecimento de D. João 11" e visto como no terceiro ano de vosso reinado, do ano de nosso Senhor
(Cortesão, 1960, p. 165). de mil quatrocentos e noventa e oito, donde nos Vossa Alteza mandou
II Destacaríamos que o trono espanhol também se utilizava de táticas descobrir a parte ocidental, passando além da grandeza do mar oceano,
de segredo em sua política nacional, e que o contexto diplomático da época onde é achada e navegada uma tão grande terra firme, (...) atravessando
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além todo o oceano diretamente a ocidente ou a oeste segundo ordem
:'1 estava marcado por intrigas, aproximações dinásticas e outras formas de
de marinharia, por trinta e seis graus de longura, que serão seiscentas e
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convívio entre as casas reinantes, que sempre motivaram suspeita e
quarenta e oito léguas de caminho, contando a dezoito léguas por grau,
11 vigilância recíproca. e a lugares algum tanto mais longe, é achada esta terra ...; e indo por esta
I costa sobredita do mesmo círculo equinocial em diante, por vinte e oito graus
de ladeza contra o pala antártico, é achado nela muito e fino brasil com
I 11 A VIDA E A OBRA DE DUARTE PACHECO PEREIRA
1 muitas cousas de que os navios nestes Reinos vêm grandemente
carregados (Pereira, 1988, p. XVII).
I Duarte Pacheco Pereira era descendente de família nobre, natural de
Lisboa, e provavelmente nasceu entre os anos de 1455 a 1460. Figura Posteriormente discutiremos de forma mais profunda a questão da
excepcional, destacou-se como cosmógrafo, militar, náutico, explorador e viagem supracitada de Duarte Pacheco Pereira. Em abril de 1503, Duarte
roteirista. Foi muito importante para a história portuguesa, tanto que Pacheco foi incorporado como capitão em um navio da armada de Afonso
Camões, em os Lusíadas, prestou-lhe homenagem denominando-o "Aquiles de Albuquerque, onde se destacou como militar, na defesa do território de
Lusitano". Seus antepassados ocuparam altos postos na corte portuguesa. Cochim, ao norte da África, cujo rei era aliado dos portugueses.
Seu avô, Gonçalo Pacheco, foi tesoureiro da Casa de Ceuta e armador no Regressando a Portugal em 1505, na armada de Lopo Soares, cujo o
período do Infante D. Henrique. Seu pai, João Pacheco, foi homem ligado às comando foi lhe dado, Duarte Pacheco recebeu inúmeras honrarias do
coisas do mar e "cabo de guerra dos soberanos de Portugal. Segundo o monarca português como prova de sua grande estima, bem como o convite
Prof. Damião Peres: para escrever um livro, que Duarte denominou Esmeraldo de Situ Orbis. No
1111\ ano de 1509, Duarte Pacheco foi incumbido de comandar uma frota para

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combater o corsário francês Mondragon, que derrotou perto do Cabo A POLÊMICA NA HISTORIOGRAFIA
Finisterra, em 18 de janeiro de 1509. Em 1511, Pacheco comandou outra
armada com o objetivo de socorrer Tânger, obtendo sucesso. Após essa A historiografia, principalmente a portuguesa, desenvolve há muito
expedição, contraiu matrimônio com dona Antônia de Albuquerque, filha de tempo uma discussão sobre a possível viagem de Duarte Pacheco Pereira
Jorge Garcez, secretário de D. Manuel I, Assim, até 1519, Duarte às costas brasileiras. Nessa polêmica é possível distinguir dois grupos
II permaneceu na corte em Portugal, quando recebeu o lucrativo cargo de antagônicos, um favorável à viagem de Duarte Pacheco Pereira e outro
capitão do estabelecimento português de São Jorge da Mina, função que desfavorável.
desempenhou até 1522, quando, acusado de atos ilícitos, foi preso e "trazido O grupo favorável tem como expoente o Prof. Luciano Pereira da
a ferros" para Portugal, e posteriormente foi absolvido, vindo a falecer em Silva, em sua obra Duarte Pacheco Pereira precursor de Cabral. Este grupo
fins de 1532, ou nos primeiros meses de 1533. defende a hipótese da viagem de Duarte Pacheco, alegando,
Sua obra, Esmeraldo de Situ Orbis, segundo alguns autores, é a principalmente, a precisão náutica dos portugueses, os avanços nos
passagem ao "pensamento moderno" da literatura portuguesa. Segundo descobrimentos ultramarinos e a já mencionada política do sigilo, que no
Joaquim Barradas de Carvalho, "Duarte Pacheco Pereira sugere-nos como período era dominante nas "Potências Ibéricas".
uma personagem revolucionária, e a sua obra, o Esmeraldo de Situ Orbis, Cabe destacar que o livro Esmeraldo de Situ Orbis foi escrito entre os
marca uma ruptura na mentalidade portuguesa do tempo. Muitos aspectos anos de 1505 e 1508 e, portanto, não necessitando mais manter sigilo sobre
distinguem a obra de Pacheco de todas as que a precederam" (Carvalho, os descobrimentos marítimos, visto que a conjuntura político-administrativa
1964, p. 303). dos reinos ibéricos era totalmente diferenciada, com um "refluxo na política
Neste contexto, Carvalho aproxima o pensamento e a obra de Duarte de aproximação", já mencionada, outrora vigente.
Pacheco a Leonardo da Vinci, visto que ambos os autores marcam o O grupo da historiografia que se mostra desfavorável à viagem de
desenvolvimento da "moderna literatura científica". Outra posição importante Duarte Pacheco às costas do Brasil em 1498 possui como base a obra
perante a obra de Duarte Pacheco é a de Jaime Cortesão, em seu livro sobre Viagens ao Sul, de Samuel Eliot Morison. Este grupo tece uma série de
1I a política de sigilo nos descobrimentos. Cortesão utiliza os dados fornecidos teorias sobre a impossibilidade da viagem de Pacheco, entre as quais,
I por Duarte Pacheco para comprovar o alto grau de conhecimento náutico destacamos a questão da aproximação em que se encontravam os tronos
dos portugueses durante os descobrimentos, ou seja, os dados contidos no ibéricos no período da referida viagem; ressalvamos, como já mencionado
Esmeraldo de Situ Orbis são, para Cortesão, sempre os verdadeiros e assim anteriormente, que existia uma possibilidade de união das coroas por via de
utilizados para confrontar os dados oficiais que a Coroa Portuguesa colocava casamento dos príncipes herdeiros. Outra questão abordada pelo grupo
ao público, no já mencionado contexto histórico. Segundo Cortesão, contrário à viagem é o Tratado de Tordesilhas, visto que este colocava as
costas brasileiras em território de domínio português. Neste contexto, na
o representante mais acabado em Portugal, ao findar o século XV, desse opinião dos autores contrários à viagem de 1498, não haveria motivo para
novo tipo social de navegante-cosmógrafo, profundamente absorvido pelos que o governo português não divulgasse a viagem logo após o retorno de
problemas da náutica e da geografia, que os descobrimentos dia a dia Duarte Pacheco, e com isso levantaram algumas hipóteses sobre o tema
suscitavam, é Duarte Pacheco. E um facto, que devemos relembrar, dá a
medida da ciência geográfica lusitana, naquela época: Duarte Pacheco
em questão.
calculava, como vimos, o valor do grau terrestre em 18 léguas, ou seja,
Uma primeira é que, se houve a viagem, foi mal-sucedida, pois:
106,56 quilômetros com erro por carência de 4% (o valor é de 111 "apesar da intensa pesquisa - Pacheco tornou-se, por via das últimas
quilômetros), enquanto Colombo, seu contemporâneo, adotava o valor de 56 explorações no Extremo Oriente, um herói nacional - não se encontrou uma
milhas e 2/3, isto é, pouco mais de 14 léguas e um pouco menos de 84 única referência, salvo a dele próprio, a qualquer viagem dos portugueses
quilômetros. Pacheco errava, pois, por 4 quilômetros e meio; Colombo, por para o ocidente em 1498. O fracasso é a explicação mais óbvia para o
mais de 27. silêncio" (Morison, [s.d.], p. 2).
Outra hipótese seria a de que Duarte Pacheco teria participado como
Com o exposto acima, percebemos que Duarte Pacheco Pereira é um observador do governo português da terceira viagem de Colombo, como
expoente para a sua época, tanto como figura política ou como cientista. prescrevia o Tratado de Tordesilhas, e assim, quando redigiu o Esmeraldo,
Destacamos, assim, o relevante papel que a análise de sua obra possui, fez alusão ao fato. Cabe destacar que a teoria supracitada, como outras,
para uma compreensão mais ampla do período histórico em que o autor tem por objetivo explicar o alto grau de conhecimento na descrição de
estava inserido. Pacheco em sua obra sobre a "Costa Ocidental".

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A terceira possibilidade é de que Duarte Pacheco Pereira teria Estes dois fatos, na opinião dos autores, tornam ilógico que, se a viagem
realizado a viagem e descoberto outras terras. Segundo Morison, "(...) tivesse realmente ocorrido, Portugal não revelasse tal fato ao público.
hipótese, que avanço com muitas reservas, é que Pacheco Pereira Entretanto, contrariando a opinião desse grupo, ressalvamos que,
descobriu a Flórida numa viagem feita em 1498 e que D. Manuel não a deu mesmo estando em clima de cordialidade, as coroas ibéricas nunca
a conhecer conquanto ficasse, obviamente, na esfera espanhola (Morison, perderam a desconfiança mútua, e que desde a conquista de Ceuta pelos
[s.d.] p. 3). lusos, "Castela espiara com ciúmes os movimentos sempre suspeitos e
Existe uma teoria de que Duarte Pacheco não teria realizado viagem secretos dos portugueses" (Cortesão, 1960, p. 19).
ao Ocidente e que sua citação no Esmeraldo não passou de uma forma de Destacamos ainda que na época das Grandes Navegações a tática
linguagem; constatamos essa teoria na introdução feita por Damião Peres de segredo estava sempre presente, como já mencionado. O governo
no livro de Duarte Pacheco, na edição da Academia Portuguesa de História: português chegou a ludibriar deliberadamente o marinheiro genovês
"(...) é crer que a viagem de 1498 não foi realizada por Duarte Pacheco, mas Cristóvão Colombo - que estava a serviço de Espanha - quanto ao valor do
por outrem; e isso tendo em vista que a frase 'nos mandou', por ele grau terrestre (Cortesão, 1960, p. 52-53).
empregada, não é forçosamente sinônima de me mandou (...) (apud Pereira, Em relação ao Tratado de Tordesilhas, descrevemos que nos anos de
1988, p. XX). 1497/98, ocorreu a viagem de Vasco da Gama, que colocou um fim no
Por fim, destacamos a hipótese de que Duarte Pacheco Pereira teria "sonho" de Colombo de ter chegado às índias, e, conseqüentemente, nas
participado da armada de Cabral e quando escreveu sua obra teria se pretensões da Coroa de Espanha. Não nos é possível abstrair que uma
enganado nas datas, visto que nos relatórios sobre a viagem de Cabral nova descoberta, mesmo em terras dentro do limite português, visto o clima
aparece o nome "Duarte Pacheco Pereira ou Pereira Pacheco" (apud de cordialidade, seria inoportuna e poderia ser prejudicial para os interesses
Pereira, 1988, p. XXI). lusos.
No final deste capítulo, gostaríamos de explicar o motivo de termos Discutindo, ainda, as teorias abordadas pelo grupo contrário à viagem
"privilegiado" a corrente desfavorável à viagem de Duarte Pacheco. de 1498, consideramos que todas apresentam deficiências. A tese de que
Acontece que no próximo capítulo utilizaremos muitos aspectos da corrente Duarte Pacheco Pereira teria se enganado quanto à datação é de difícil
favorável, para apoiar nossa análise, e assim omitimos muito neste capítulo, credibilidade, pois Pacheco em toda a sua obra foi extremamente criterioso
para não ficarmos repetitivos. e nos parece pouco provável que se enganaria quanto a um fato tão
importante quanto a data da viagem por ele realizada. Outra teoria levantada
discute a possibilidade de Pacheco ter sido incorporado na armada de
A VIAGEM PROVAVELMENTE ACONTECEU Cabral e com isso ter adquirido o conhecimento demonstrado em sua obra.
Renegamos essa hipótese pelo fato de Duarte Pacheco nesse momento ser
Neste capítulo, ressaltaremos os fatores que nos levam a acreditar uma figura de destaque em Portugal, o que nos leva a crer que se fosse
que a viagem de Duarte Pacheco realmente ocorreu. Uma primeira embarcado na armada, ocuparia um posto de destaque e seria ao menos
observação a ser feita está relacionada com as datas das navegações citado nos relatórios. Cabe ressaltar que na armada de Pedro Alvares
portuguesas. Percebemos que após a viagem de Bartolomeu Dias, que Cabral, como já mencionado, existia um tripulante homônimo de Pacheco,
dobrou o Cabo da Boa Esperança, houve, pelo menos oficialmente, um no entanto era uma figura de muito pouco prestígio, o que nos permite dizer
longo período de refluxo, que só terminou com a "descoberta" do Brasil por que não se trataria do autor de Esmeraldo de Situ Orbis. Existe, ainda, a
Pedro Alvares Cabral, Neste contexto nos indagamos qual o motivo dessa hipótese de Duarte Pacheco ter navegado em terras espanholas,
estagnação. Alguns autores atribuem ao momento de crise que ocorreu no provavelmente a Flórida, no entanto o conhecimento náutico português no
final do governo do "Príncipe Perfeito". Outros, os quais apoiamos, afirmam período nos dá subsídios para rejeitar essa hipótese. Os portugueses
que não ocorreu essa estagnação e que as viagens continuaram, entretanto possuíam um elevado conhecimento para o valor do grau terrestre, "com
em caráter de segredo. uma carência de 4%", e muitas vezes "mascaravam" esse conhecimento.
O grupo historiográfico que rejeita a veracidade da viagem de Duarte Segundo Jaime Cortesão, "( ...) é lícito supor que esta divulgação de latitudes
Pacheco apóia-se em dois argumentos principais, ambos já mencionados. O erradas representasse uma manobra sigilosa de D. João 11para fazer
primeiro diz respeito ao clima de cordialidade então existente entre as acreditar a Colombo, no primeiro caso, que o valor do grau era muito
potências ibéricas, e o segundo faz referência ao fato de que no período reduzido" (Cortesão, 1960, p. 51).
mencionado por Pacheco, já estava em vigor o Tratado de Tordesilhas. Acreditamos que outros aspectos podem ser abordados, como, por

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exemplo, o fato de que na época, Duarte Pacheco era, como já citado, figura que o autor, quando se refere aos indígenas, deixa transparecer que teve
de relativo prestígio em comandar uma missão desse tipo, e ainda, de que a um contato direto com eles, principalmente na utilização da frase "achamos,
viagem de Cabral ocorrera tranqüilamente, como se outras a tivesse pedido por experiência", portanto não deixando dúvidas de sua viagem para a costa
e indicado o caminho a percorrer. Cabe destacar que nos documentos sobre "ocidental" .
a viagem de Cabral não existe muita "surpresa" com a descoberta e que os Concluímos, conforme o exposto acima, que a viagem de Duarte
conhecimentos náuticos dos portugueses jamais permitiriam um erro de Pacheco às costas brasileiras, em 1498, realmente aconteceu, mas não fora
tamanha magnitude como errar o caminho para a índia e chegar às costas divulgada ao público, por razões político-administrativas.
brasileiras. É interessante ressaltar que só é possível atravessar a corrente
do Equador em um ponto específico, perto do arquipélago de Cabo Verde e
que Cabral não teve a menor dificuldade ao fazê-Io, o que permite concluir BIBLIOGRAFIA
que outros o precederam.
AZEVEDO, J. Lúcio de. Épocas de Portugal económico. 4. ed. Lisboa: Livraria Clássica
Um importante aspecto a ser lembrado é o fato de que Duarte Editora, s. d.
Pacheco escreveu sua obra a pedido do monarca português, e portanto não CARVALHO, Joaquim Barradas de. O Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira na
teria razões para mentir, visto que sua obra seria entregue para o rei luso. história da cultura. São Paulo: Ed. da Universidade-USP, 1964.
Outro aspecto de destaque é que o contexto histórico que impedia a CORTESÃO, Jaime. A política de sigilo no Descobrimento. Lisboa: Neogravura, 1960.
MORISON, Samuel Eliot. As viagens ao Sul. Lisboa: s/editora., s. d. (Fragmento de texto).
divulgação da viagem de 1498 não vigorava em 1505. PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo de Situ Orbis. 3. ed. Lisboa, 1988 (introdução e
Por fim, destacamos que a passagem referente à viagem de 1498, na anotações históricas pelo Académico Damião Peres). Academia Portuguesa de História.
obra de Pacheco, tem apenas o caráter ilustrativo de uma teoria sua, de que SERRÃO, Joaquim V. História de Portugal (1415-1495).3. ed. Lisboa: Verbo, 1980.
os oceanos são rodeados de terra. Isso nos leva a afirmar que Pacheco não ---o História de Portugal (1495-1580). 2. ed. Lisboa: Verbo, 1980.
se enganou sobre o fato, nem o dissimulou deliberadamente. Percebemos
isso em outra citação sua na obra Esmera/do de Situ Orbis, em que o autor
faz uma descrição detalhada dos indígenas. Segundo Duarte Pacheco,

Muitos antigos disseram que, se algua terra estevesse ouriente e oucidente


com outra terra, que ambasteriam o grau do Sol igualmente e tudo seria de
ua calidade. E quanto à igualezado Sol é verdade; mas como quer que a
majestadeda grande naturezausa de grande variedade, em sua ordem, no
criar e gerar das cousas, achámos, por experiência, que os homens deste
promopório de Lapa Gonçalves e toda a outra terra de Guiné são assaz
negros, e as outras gentes que jazem além do mar oceano ao oucidente
(que tem o grau Sol por igual, como os negros da dita Guiné) são
pardos quási brancos; e estas são as gentes que habitam na terra do
Brasil, de que já no segundo capítulo do primeiro livro fizemos menção. E
que algum queira dizer que estes são guadados da quentura o Sol, por
nesta região haver muitos arvoredos que lhe fazem sombra, e que, por
isso, são quási alvos, digo se muitas árvores nesta terra hã, que tantas
e mais, tão hã nesta parte ouriental daquém do oceano de Guiné. E se
disserem que estes daquém são negros por que andam nus e outros
são brancos por que andam vestidos, tanto privilégio deu a natureza a
uns como a outros, por todos andam segundo nasceram; assi que
podemos dizer que o sol não faz mais empressão a uns que a outros. E
agoraé pera saber se todos são da geraçãode Adão (Pereira,1988, p. 161).

Percebemos, na citação acima, que Duarte Pacheco faz uma


descrição detalhada dos indígenas do Brasil, o que reflete de forma
expressiva a possível estada do autor em terras do Ocidente. Cabe salientar

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