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PERSPECTIVAS, JOURNAL OF POLITICAL SCIENCE, SPECIAL ISSUE 2017 36

O state-building no contexto do Império em Negação:


o caso da CPA no Iraque (2003-2004)
Natali Laise Zamboni Hoff, Universidade Federal do Panamá
e Ramon Blanco, Universidade Federal da Integração Latino-Americana

Abstract—Os processos de state-building vêm adquirindo cada vez mais relevância no cenário internacional, convertendo-
se em importantes ferramentas para a estabilização de países pós-conflitos e promoção da paz. Apesar da centralidade
que esses processos ocupam na política internacional, as compreensões sobre eles são majoritariamente compostas por
análises técnicas e administrativas sobre a construção de instituições estatais por intermédio de atores externos. Esse tipo de
abordagem permite que o caráter político do de state-building seja subtraído e o exercício do poder seja negado. Por isso,
David Chandler diz que o Império está em negação e busca através das fórmulas burocráticas e terapêuticas do state-building
evadir a sua responsabilidade, mas sem deixar de regular e controlar os Estados não-ocidentais. Tendo isso em conta, esse
artigo busca compreender as dinâmicas e práticas envolvidas no processo de (re)construção do Estado no Iraque (2003-2004),
liderado pela Coalitional Provisional Authority (CPA). A pesquisa busca observar se o caso iraquiano pode ser entendido a
partir das contribuições de David Chandler sobre o Império em Negação. Para isso, o trabalho está divido em três seções,
na primeira apresenta-se a definição de Chandler sobre o Império em negação e quais os principais mecanismos de regulação
e controle contidos em seu contexto. A segunda seção concentra-se na atuação da CPA no Iraque, observando as medidas e
estratégias utilizadas pela organização no país. A terceira seção trata da construção do Estado de Direito no Iraque e como
ele foi utilizado pelas forças de ocupação para negar o poder exercido e evadir a responsabilidade frente às dificuldades do
processo.

Index Terms—State-Building, Iraque, CPA.

1 Introdução disso os processos de state-building têm ocupado


um espaço central nas discussões de política inter-

O state-building pode ser definido como o


processo através do qual são construídas ou
nacional nas últimas décadas. No entanto, apesar
do foco concedido ao envolvimento externo na
construção de um Estado, o compromisso teórico
reconstruídas as instituições de governança de com o entendimento do state-building como um
um Estado, sendo essas instituições responsáveis quadro político ainda é limitado (Chandler, 2006,
por proporcionar a segurança física e econômica p.4). Isso ocorre, principalmente em virtude da
dos cidadãos que habitam esse Estado (Chandler, primazia concedida às questões técnicas envolvi-
2006, p.1). A construção de Estados por atores das no state-building.
internacionais tem sido largamente utilizada após A construção de instituições estatais, com o
o fim da Guerra Fria como uma importante es- fim de capacitar Estados está no centro “de uma
tratégia para estabilizar países pós-conflitos e pro- narrativa triangular que funde noções, aparente-
mover a paz (Newman, 2013, p.142). Por conta mente distantes, de segurança, desenvolvimento
e paz” (Blanco, 2017, p.83). Estas noções são
• Natali Hoff, mestranda no Programa de Pós-Graduação abordadas tradicionalmente pelos estudiosos de
em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná relações internacionais a partir de perspectivas e
(PPGCP/UFPR). Ramon Blanco, Docente da Universi-
dade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). expectativas de resultados diferentes. No entanto,
E-mail:Natali.hoff@gmail.com e ramon.banco@gmail.com como destaca Blanco (2017, p.83), a fusão dessas
DOI:http:// dx.doi.org/ 10.21814/ perspectivas.99 concepções permite, através dessa narrativa tri-
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angular, a conclusão de que sem segurança não Authority - CPA) durante o período que esteve
haverá desenvolvimento; e, como o desenvolvi- à frente da (re)construção do Iraque. Busca-se
mento é imprescindível para a consolidação de um observar através de quais práticas o poder assume
ambiente seguro, sem ele não há segurança e tanto a forma da negação nesse processo.
o desenvolvimento, quanto a segurança são essen-
ciais para a transformação de conflitos violentos O estudo do caso iraquiano foi escolhido por
e para a consolidação da paz. Nesse sentido, o de se constituir em um least likely case. Como aponta
state-building é cada vez mais compreendido como Renato Perissinoto (2013, p.156), os least likely
uma ferramenta técnica e burocrática essencial cases “são aqueles que, de acordo com uma teoria,
para transformação de cenários violentos. menos deveriam produzir um resultado, mas o
A compreensão do de state-building como um produzem”. Dessa maneira, se a teoria passa por
mecanismo capacitador de Estados acaba por de- esses casos menos favoráveis, ela deverá conseguir
spolitizar o processo e invisibilizar as relações passar também por outros casos mais simples. O
de poder que permeiam essas intervenções. Para caso do Iraque, como já mencionado, constitui-se
David Chandler (2006, p.8-9), em sua descrição em uma invasão de um país soberano por potên-
do Império em Negação, essas práticas acabam cias internacionais e na consolidação de uma ocu-
por constituir um novo quadro de dominação, pação formal do território após o fim do conflito.
baseado na negação do poder e da responsabili- A CPA tornou-se o órgão responsável não apenas
dade ocidentais. Desse modo, o exercício do poder pela reconstrução das instituições iraquianas, mas
na atualidade é disfarçado através da construção também pela administração e governo do Estado
discursiva da ideia de parceria entre os Esta- entre 2003-2004. Esses fatores indicam um exer-
dos intervindos e os agentes internacionais. Esse cício direto e formal do poder, de modo que o
fato não torna essas intervenções menos invasivas; Iraque não deveria ser entendido a partir da con-
muito pelo contrário, acaba permitindo a instau- cepção do Império em Negação. Todavia, quando
ração de métodos de regulação e controle muito observamos mais profundamente o caso, percebe-
mais profundos do que os tradicionais. A forte se que a atuação da CPA e do governo ameri-
ingerência de atores externos acaba impedindo cano estiveram imbuídas por ações que visavam
o estabelecimento de vínculos entre os Estados a negação do poder e evasão da responsabilidade.
que sofrem a intervenção e as suas sociedades. A própria transição do poder da CPA para um
O resultado disso é o fenômeno dos “Estados governo interino iraquiano foi acelerada, de modo
Fantasmas”, que constituem-se em Estados que que a soberania iraquiana voltasse para atores
possuem o reconhecimento internacional de sua nacionais o mais rápido possível.
soberania, contudo, carecem de legitimidade e
representatividade internas. Para demonstrar essas relações e dinâmicas de
Mesmo em situações nas quais o poder é exer- regulação e poder nas relações internacionais, este
cido por meio de mecanismos tradicionais, como artigo está dividido em três seções e ampara-se
a invasão e ocupação de um país por poderes na análise de documento emitidos pela CPA e
estrangeiros, há um grande esforço para negar de fontes secundárias sobre o caso. Na primeira
o poder e evadir a responsabilidade por parte seção apresenta-se a ideia do Império em negação
das potências ocupantes (Chandler, 2006, p.8). desenvolvida por David Chandler (2006). Já na
A invasão do Iraque em 2003, por uma coalizão segunda seção, aborda-se a atuação da CPA no
internacional liderada pelos Estados Unidos, é um Iraque, observando através de quais mecanismos
ótimo exemplo disso. A vitória das forças ocu- o Estado iraquiano foi reconstruído após o fim
pantes foi comemorada discretamente e a sobera- do conflito. Na terceira seção é analisado como
nia iraquiana foi devolvida aos agentes locais em a atuação da CPA pode ser entendida a partir da
junho de 2004. Tendo em conta tal referencial, esse concepção do Império em negação, demonstrando
artigo analisa o processo de de state-building no como a construção do Estado de Direito foi uti-
Iraque, concentrando-se na atuação da Coalizão lizada como um mecanismo de negação do poder
de Autoridade Provisória (Coalitional Provisional no Iraque.
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2 O Império em Negação e o exercício amente institucional e capacitador de instituições,


do poder através da prática do State- deixando de lado questões políticas e sociais.
Building no cenário Internacional Nesse tipo de interpretação, foca-se no fortaleci-
mento da governança interna a partir da recon-
Para compreender a ideia de David Chandler strução dos aparelhos burocráticos do Estado. Sob
sobre o Império em Negação, primeiramente é este entendimento, a primazia do processo está na
preciso se aprofundar no estudo do mecanismo de criação de instituições legitimas e efetivas, capazes
poder mais utilizado nesse contexto: os processos de exercer autoridade e proporcionar segurança
de (re)construção de Estados. O de state-building aos seus cidadãos. Por conta disso os processos de
é visto como um processo de fortalecimento das construção de Estados optam por uma arquitetura
capacidades do Estado através da intervenção ex- estatal pequena, ancorada nos modelos de democ-
terna, tornando-se um conceito central nas ações racias liberais e interconectados com a rede global
e nos discursos dos atores internacionais (Gue- de governança (Richmond, 2014, p.64).
vara, 2008, p.348). Ele ganhou força no cenário Essas escolhas advém da abordagem mais téc-
internacional à partir das intervenções human- nica e funcional do Estado feita pelos agentes
itárias da década de 1990, passando a se con- internacionais. Nesse sentido, o Estado é enten-
solidar com as políticas de combate ao terror- dido como um conjunto de instituições que podem
ismo norte-americanas, após os Ataques de 11 ser construídas e fortalecidas por atores externos
de Setembro de 2001. Segundo Chandler (2006, e/ou assumidas temporariamente por adminis-
p.32), o debate, nos anos 1990, pautava a inter- trações internacionais (Guevara, 2008, p.348). As-
venção internacional a partir do embate entre o sim, o state-building implica o desenvolvimento de
direito a intervenção e o direito à soberania de vários mecanismos internacionais que objetivam
um Estado. No decorrer desse período, o Estado enfrentar os casos de colapso de Estados, ou ainda,
não-ocidental foi alvo de inúmeras intervenções os Estados autoritários e que representam uma
externas e abertamente coercitivas, relacionadas ameaça às suas próprias populações (Chandler,
à responsabilidade de proteger1 . Atualmente, a 2006, p.26). Os agentes internacionais intervém
retórica mais recorrente no meio internacional nesses Estados a fim de capacitar as suas insti-
refere-se ao state-building em termos de respon- tuições e fomentar o exercício da boa governança.
sabilidade compartilhada ou pela ideia de novas Essas interações são descritas em termos de parce-
parcerias entre Estados e Organizações Interna- ria e de empoderamento. No entanto, representam
cionais. Essa abordagem permite a consolidação a forma mais profunda de regulação e controle de
de novas formas de regulação e intervenção em Estados no sistema internacional. Isso decorre da
Estados pós-conflito. ideia de que a fragilidade institucional de Estados
O state-building, como uma prática aplicada pós-conflitos ou autoritários é uma preocupação
em cenários pós-conflitos, pode ser definido como mundial e deve ser combatida através das práticas
o processo através do qual são reguladas as re- capacitadoras do state-building.
lações de um Estado com a sua própria população Grande parte da literatura sobre o state-
(Blanco, 2014, p.302). Contudo, nos últimos tem- building se concentra em apresentar soluções téc-
pos ele tem sido entendido como um processo mer- nicas e burocráticas para a problemática da frag-
1. Responsabilidade de Proteger é um compromisso político ilidade do Estado, indicando caminhos e insti-
firmado por todos os Estados membros da Organização das tuições a serem seguidos. Essas críticas seguem
Nações Unidas (ONU). Esse compromisso está representado no o modelo teórico das problem solving theories
relatório The Responsability to Protect publicado no ano de
2001. O princípio central do relatório baseava-se na premissa descritas por Robert Cox (1981). As teorias do
de que a soberania implica a responsabilidade de proteger a tipo problem solving enfatizam a necessidade de
populações e não apenas o Estado. Assim, quando uma popu-
lação sofre algum dano grave, como resultado de uma guerra
se representar o mundo como ele é e, por inter-
interna, da insurgência, da repressão ou até mesmo do fracasso médio desse caráter normativo e assertivo sobre
do Estado, e o Estado em questão não está disposto a deter ou a realidade, fixar padrões e parâmetros para um
evitar, o princípio da não intervenção cede a responsabilidade
internacional de proteger (The Responsability to Protect, 2001, problema particular de um sistema social (Cox,
p.XI). 1981, p.208). Assim, as abordagens tecnocratas do
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state-building acabam conformando uma forma de dade estatal (Chandler, 2006, p.26). A soberania
entender e fazer os processos de construção das passou a ser associada com uma série de fatores
instituições estatais em países pós-conflitos. Esse que vão além da independência política e jurídica
movimento favorece a despolitização do state- de um Estado. Tradicionalmente, a soberania é
building e justifica a forte ingerência externa no definida como a posse de autonomia jurídica e
mesmo. Chandler (2006, p.5) ressalta que o state- política, sendo ela um conceito legal incondicional
building é encarado como uma questão de desen- e indivisível (Ibidem, p.32). Isso pode ser visto na
volvimento de conhecimento especializado inter- definição de Robert Jackson:
nacional, que busca melhorar os quadros de gov- "[...] legal, que estabelece um que um
ernança dos Estados não Ocidentais. Isso acaba estado soberano não é subordinado a outro, mas
por encobrir o propósito de regulação e controle é necessariamente igual pelo direito internacional
existentes nessas prerrogativas. [...] A soberania é absoluta (incondicional) e ou
Para mascarar esse quadro político, a fragili- está presente ou está ausente. Quando um país é
dade estatal é descrita como oriunda de institu- soberano, ele é independente categoricamente: não
ições e sistemas de governança fracos e com falta há condição intermediária. Unitária (indivisível)
de liderança, vontade política e capacidade para na medida em que um Estado soberano é uma au-
produzir bens públicos essenciais (Blanco, 2014, toridade suprema dentro da sua jurisdição" (1990,
p.293). De acordo com Francis Fukuyama (2004, p. 32).
p.IX), a fragilidade estatal pode ser entendida Dessa maneira, antes do processo de descoloniza-
como uma fonte de ameaças a toda sociedade ção no século XX, o Estado soberano era ape-
internacional. Assim, as ações internacionais, em nas uma das formas de status jurídico existentes,
busca da consolidação da paz em sociedades pós- havendo ainda os protetorados, as colônias, os
conflitos, acabam por tornarem-se um exercício domínios e os mandatos (Jackson, 1990, p.33).
de construção de Estados. Por conseguinte, o Todas essas formas jurídicas se assemelhavam
objetivo não é somente perseguir a pacificação pela subordinação a um poder estrangeiro e pela
dessas sociedades, mas também, a estabilidade no negação da soberania jurídica a essas localidades
cenário internacional, evitando que Estados con- (Ibidem, p.33). Contudo, após a descolonização do
siderados fracos exportem insegurança para o oci- Terceiro mundo, o conceito de soberania passou a
dente (Newman, 2013, p.142). Os Estados Unidos, ser redefinido em termos de capacidades estatais.
após o 11 de Setembro, foram grandes difusores Isso aconteceu, sobretudo, devido às dificuldades
dessa ideia. Os temores americanos quanto aos na consolidação de instituições governamentais
Estados frágeis podem ser observados na Estraté- fortes nos Estados pós-coloniais. Dessa maneira,
gia de Segurança Nacional dos Estados Unidos a soberania passou a designar mais do que o re-
de 2002, a qual dizia que "a América está agora conhecimento internacional da autonomia de um
menos ameaçada pelos Estados conquistadores do Estado, mas também, a capacidade de um Estado
que pelos fracassados" (NSS, 2002: Seção 1). em prover um ambiente seguro, democrático e fa-
Essas compreensões são de suma importância vorável para o desenvolvimento econômico (Chan-
para o desenvolvimento e legitimação das práticas dler, 2006, p.33).
de state-building nos dias atuais. Elas possibili- Para Chandler (2006, p.33), essa reconceptu-
tam o alargamento das intervenções para além alização da soberania é feita de três maneiras.
das localidades marcadas por conflitos armados, Primeiro, a soberania é redefinida como uma
incluindo grande parte dos países não-ocidentais, capacidade variável, e, não mais, como um di-
que não se adequam as normas ocidentais de boa reito indivisível. Isso acaba por minar o princí-
governança. Foi através da mudança nas aborda- pio de igualdade presente na Carta das Nações
gens teóricas sobre o Estado, que o state-building Unidas. Em segundo lugar, a soberania, ao ser
passou a ser entendido como a melhor resposta redefinida como um dever ou uma responsabil-
aos problemas internos de Estados pós-conflitos. idade legitima os mecanismos externos de regu-
Essa mudança se deu com a relação estabelecida lação e intervenção. E, em terceiro lugar, acaba-se
entre o conceito de soberania e a ideia de capaci- por exagerar a importância formal da soberania
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jurídica internacional, facilitando, assim, o en- estabelecer um conjunto de técnicas e estratégias


quadramento da dominação externa como uma voltadas para a administração e governança do
parceria ou um contrato voluntário. Todo o Estado é reconhecida por Chandler como uma
quadro normativo e político envolvendo a sobera- forma de despolitizar o processo e, com isso, es-
nia favorece o exercício do poder de uma forma in- capar da responsabilidade contida nele (Chandler,
direta. As potências ocidentais não assumem mais 2006, p. 52). Os impactos das práticas do state-
a responsabilidade legal para com um território, building no contexto do império em negação são
embora não deixem de exercer sua influência e profundos e corrosivos, ocasionando a dependên-
controle pelo globo. cia dos Estados que sofrem intervenções aos atores
A redefinição da soberania permite que o internacionais. Além disso, os laços entre o Estado
state-building seja entendido como um processo e a sociedade são enfraquecidos, já que o state-
capaz de estabelecer os arranjos institucionais building não responde às exigências internas, mas
necessários para manter a ordem doméstica de sim, aos interesses externos. Esses Estados não são
um país e, consequentemente, a sua soberania o resultado das lutas políticas locais e acabam não
interna, sem abdicar dos direitos ao autogoverno refletindo os aspectos sociais, culturais e políticos
e da soberania internacional (Chandler, 2006, de suas populações. Os atores locais convertem-
p.42). Contudo, essa forma de compreensão acaba se em receptores passivos da construção de suas
por ofuscar a deterioração da soberania interna instituições e buscam adaptar-se às condições es-
dos Estados alvos das intervenções internacionais. tabelecidas pelos agentes internacionais. A inter-
Nessa nova roupagem, a soberania jurídica é man- nacionalização e um certo grau de informalidade
tida, permitindo que as instituições internacionais do estado são dinâmicas relevantes em tempos de
se apresentem como facilitadoras do desenvolvi- construção do Estado (Guevara, 2008, p.349).
mento e não como poderes externos coercitivos As intervenções internacionais são agora mas-
(Ibidem, p.43). As intervenções passam a ser caradas através discursos e técnicas de parceria.
compreendidas nesse contexto como formas de As práticas de state-building buscam (re)construir
reforçar a soberania e não de enfraquecê-la. as instituições desde a base da administração
As novas relações envolvidas no state-building pública, estabelecendo novos sistemas de gover-
acabam por dar origem ao fenômeno dos Estados nança e regulação nos Estados. As reformas imple-
Fantasmas (Chandler, 2006, p.43). David Chan- mentadas dizem visar o fortalecimento do Estado,
dler (200,6, p.43-47) define os Estados Fantasmas porém acabam por corroer a sua capacidade de
como aqueles que possuem a soberania jurídica autogoverno e as possibilidades de representar a
internacional, mas que acabam cedendo poder sua sociedade. O state-building trata de prob-
político às instituições ocidentais, perdendo a sua lemas políticos e sociais de forma técnica, ofus-
representatividade e legitimidade internas. Dessa cando as relações reais de poder que existem para
maneira, esses Estados possuem estruturas ad- além dos discursos de empoderamento e parceira.
ministrativas e de governança sólidas no papel, (Chandler, 2006, p. 51-53). O Império está em ne-
após o processo, no entanto, a esfera política gação não por não intervir e regular, mas sim, por
é atrofiada, impedindo a coesão interna dessas traduzir a sua ingerência em um tom tecnicista e
sociedades e dificultando a superação das divisões burocrático de auxílio a Estados com dificuldades.
sociais e políticas. A falta de autogoverno impede Nesse contexto, o state-building converteu-se em
que esses Estados se relacionem de maneira mais um dos principais meios de regulação e imposição
profunda com as suas populações e representem a da ordem internacional a Estados não Ociden-
expressão coletiva de suas sociedades. Os Estados tais por parte das instituições internacionais e
do Afeganistão, Iraque e Bósnia são bons exemp- das potências Ocidentais (Chandler, 2006, p.9).
los desse fenômeno, já que possuem a soberania O state-building é o modo pelo qual os Estados
formal e até mesmo governos eleitos, contudo, Ocidentais se apropriam dos processos decisórios
a dependência da intervenção externa impede o internos dos Estados não Ocidentais, regulando a
desenvolvimento da esfera política doméstica. ligação entre essas instituições e suas sociedades
A característica do state-building, de buscar (Ibidem, p.10). Tendo esses mecanismos de poder
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e regulação apresentados em mente, na próxima Iraque, em vez de ceder o poder para uma admin-
seção analisaremos a atuação da CPA no processo istração civil da ONU. Esse fato poderia indicar
de (re)construção do Iraque. que o caso do Iraque contrariou a análise proposta
por David Chandler. Todavia, a maneia como o
3 O Império em Negação e o exercício governo norte-americano e demais agentes inter-
nacionais lidaram com a ocupação do país, acabou
do poder através da prática do State- por enunciar as formas de poder e regulação do
Building no cenário Internacional império em negação.
A Guerra do Iraque (2003) constituiu-se em um É importante destacar que a invasão do Iraque
dos eventos mais polêmicos e contestados no início e a consequente queda do regime ba’athista oca-
do século XXI. A invasão do território iraquiano sionaram um profundo vácuo de poder no país.
foi parte da estratégia norte-americana2 de com- O plano inicial para o Iraque pós-conflito en-
bate ao terrorismo e não contou com o total apoio volvia a ideia de que a coalizão eliminaria Hussein
da comunidade internacional. Pelo contrário, a e seus associados do poder, mas as estruturas
guerra foi considerada ilegal de acordo com as burocráticas do Estado permaneceriam no lugar
regras do direito internacional e do sistema in- (Ward, 2005, p.3). Contudo, após a queda do Sad-
ternacional de paz e segurança estabelecido no dam, constatou-se que as instituições iraquianas
pós Segunda Guerra Mundial (Bali, 2005, p.433). haviam se deteriorado a tal ponto que não pode-
O governo de George W. Bush justificou o con- riam servir de base para as reformas previstas para
flito devido à suposta existência de armas de o Iraque. Esse cenário exigiu das forças ocupantes
destruição em massa no Iraque e pela “ligação” o compromisso com a (re)construção do Estado
entre o governo de Saddam e a Al-Qaeda3 . Ainda, iraquiano (um processo de George W. Bush colo-
a invasão do Iraque e destituição de Saddam, cou o Iraque, juntamente com Irã e Coréia do
faziam parte da estratégia estadunidense para Norte, dentro de um grupo de países considerados
levar a democracia ao Oriente Médio, servindo apoiadores ou facilitadores do terrorismo, o qual
de exemplo para outros regimes autoritários da foi denominado de “eixo do mal”.4 ). Por conse-
região (Hiltermann, 2007, p.5). Essas justificativas quência, as duas questões mais importantes no
acabaram sendo motivos de controvérsias entre os início da ocupação americana no Iraque foram:
atores internacionais, sobretudo pela não autor- “como governar e como sair” do país (Bali, 2005,
ização da operação pelo Conselho de Segurança p.434). Essas questões são primordiais em pro-
da ONU e, por não terem sido encontradas armas cessos de state-building, ainda mais em um caso
de destruição em massa no Iraque após a invasão. contestado como foi o Iraque. Esses dois question-
O conflito teve uma evolução rápida e, menos amentos e as respostas dadas a eles interferem
de um mês após a invasão, o regime de Saddam diretamente nas estratégias e práticas adotadas
havia sido derrotado. Diferentemente de outras para o Iraque. Por um lado, a ocupação buscou
intervenções internacionais, o Iraque foi tratado estabelecer as bases jurídicas e administrativas
legalmente como uma nação conquistada e um para a consolidação de uma democracia liberal
território ocupado. No dia 22 de maio de 2003 conciliatória para o país. Já por outro lado, man-
o Conselho de Segurança da ONU reconheceu teve uma postura de confrontamento diante da
formalmente os Estados Unidos e o Reino Unido
como os poderes ocupantes no país (Dobbins et al, 4. O governo norte-americano denominava os esforços de
2009, p.XIII). A estratégia pós-guerra das forças reconstrução no Iraque de nation-building. Porém, o nation-
building prevê ações e políticas que articulem elementos cultur-
ocupantes foi a de assumir o governo direto do ais, sociais e linguísticos, capazes de fomentar uma identidade
coletiva que não precisa estar contida apenas no Estado. Já o
2. A Guerra do Iraque fazia parte da Doutrina Bush, state-building caracteriza-se como um processo mais limitado,
política de segurança neo-conservadora norte-americana após focado na reconstrução das instituições burocráticas que com-
do Ataques de 11 de Setembro de 2001. põem o Estado, sem necessariamente buscar consolidar uma
3. George W. Bush colocou o Iraque, juntamente com Irã e identidade comum. É possível concluir que os esforços amer-
Coréia do Norte, dentro de um grupo de países considerados icanos no Iraque configuraram-se com um processo de state-
apoiadores ou facilitadores do terrorismo, o qual foi denominado building, focado na reconstrução das instituições estatais no
de “eixo do mal”. país.
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resistência iraquiana às reformas impostas. (Dobbins et al, 2009, p.XIV). No entanto, a guerra
Para que processos de reconstrução ou con- e a queda do partido ba’ath ocasionaram um
strução de Estados sejam efetivos, é primordial profundo vácuo de poder no Iraque e as forças
a criação de uma visão compartilhada sobre as ocupantes precisaram assumir um processo mais
instituições e respostas administrativas que es- extenso e complexo de reconstrução. Ao perceber
tão sendo implementadas (Barakat, 2005, 576). a existência da necessidade de uma intervenção
No caso iraquiano, a idealização do que seria o mais profunda, em junho de 2003, o ORHA foi
“Novo Iraque” foi desenvolvida dentro do governo substituído ou subsumido pela CPA. A CPA foi
dos Estados Unidos. A participação iraquiana liderada em um primeiro momento também por
na concepção das instituições e redes de gover- Garner, mas em maio de 2003 o embaixador L.
nança que estavam sendo criadas foi limitada. Paul Bremer passou a ser o administrador civil do
Segundo Bakarat (2005, p.577), a reconstrução Iraque. As operações da CPA foram até junho de
foi planejada antecipadamente como uma parte 2004.
integrante da operação militar. Assim, após a “de- Segundo o documento que estabeleceu a
sconstrução” do Iraque por meios militares, focou- CPA5 , promulgado e assinado por Bremer em 16
se na reconstrução nos moldes de uma econo- de maio de 2003, a missão primordial da orga-
mia liberal, favorecendo os interesses econômicos nização era restaurar as condições de segurança
dos Estados Unidos no Oriente Médio. Esse fato e promover a estabilidade no Iraque. A CPA ob-
não só corroborou a insatisfação da população jetiva assim, a criação das condições necessárias
iraquiana com o novo modelo de Estado criado, para que o povo iraquiano pudesse vir a deter-
como também fortaleceu o surgimento da resistên- minar livremente o seu próprio futuro político.
cia armada no Iraque. Outro ponto destacado no documento eram os
Para compreender melhor a reconstrução do esforços para a (re)construção das instituições
Iraque é preciso analisar as instituições que foram de governança nacionais e locais, facilitando a
responsáveis por esse processo. Dentre os muitos recuperação econômica, política e o desenvolvi-
atores que estiveram envolvidos com a recuper- mento do Iraque. Assim, a CPA possuía duas
ação do Iraque pós-guerra, a Autoridade Pro- missões simultâneas e por vezes concorrentes no
visória da Coalizão (Coalition Provisional Au- Iraque. Primero, deveria dirigir o país, ocupando
thority - CPA) foi diretamente encarregada pela o vazio político deixado pelo fim do regime de Hus-
(re)construção das instituições estatais do país. sein. Mas também, a agência era responsável por
Tendo isso em conta, esse artigo passa agora a (re)construir as instituições políticas e econômicas
analisar essa organização e suas principais ações do Estado, possibilitando ao povo do Iraque o
no Iraque. Inicialmente a responsabilidade de su- autogoverno após o fim da ocupação (Bensachel
pervisionar a reconstrução do Iraque pós-conflito et al, 2015, p.332). Essas atribuições conferidas à
recaiu sobre o Escritório de Reconstrução e As- CPA durante o seu mandato no Iraque estavam
sistência Humanitária (ORHA - Office for Re- em conformidade com a Resolução 1483 do Con-
construction and Humanitarian Assistance). Esse selho de Segurança da ONU, como pode-se notar
escritório foi estabelecido pela Diretoria Presiden- no trecho abaixo:
cial da Segurança Nacional 24 (National Security "A Organização das Nações Unidas
Presidential Directive - NSPD) em janeiro de [...] solicita o estabelecimento de uma autoridade
2003 e foi liderado pelo tenente-general Jay M. que, em conformidade com a carta das Nações
Garner. O documento de criação do ORHA conce- Unidas e outras normas pertinentes do Direito
dia responsabilidade ao Departamento de Defesa Internacional, promova o bem estar do povo
Americano (DoD) para o controle pós-guerra do iraquiano mediante uma administração efetiva do
Iraque (Halchin, 2005, p.1). território, em particular tratando de reestabelecer
A idealização do ORHA foi amparada na as condições de segurança e estabilidade e de criar
crença de que uma administração iraquiana per-
maneceria em vigor após o fim do conflito e qual- 5. Coalition Provisional Authority Regulation Number 1
quer ocupação americana seria de curta duração cpa/reg/16 may 2003/1.
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condições através das quais o povo iraquiano possa de lei:


decidir livremente o seu próprio futuro político" "Ao executar a autoridade e a responsabilidade
(CS, Resolución 1483, 2003, p.2). adquiridas no CPA, o administrador, conforme
necessário, emitirá regulamentos e ordens. Os
A Resolução 1483 do CS não apenas indicava regulamentos serão os instrumentos que definem
a forma que a autoridade provisória deveria tomar as instituições e as autoridades da CPA. As ordens
no Iraque, como também conferia reconhecimento são instruções vinculativas emitidas pelo CPA.
tácito à instauração da CPA como o governo Os regulamentos e as ordens permanecerão em
temporário no país. Tendo isso em conta, a CPA vigor até serem revogados pelo administrador ou
pode ser entendida como uma organização gover- substituídos por legislação emitida por instituições
namental dos Estados Unidos e simultaneamente democráticas do Iraque. Os regulamentos e ordens
uma agência internacional (Bensachel et al, 2015, emitidos pelo administrador da CPA prevalecerão
p.323). O seu quadro de funcionários era composto sobre todas as outras leis e publicações, na medida
por pessoas oriundas dos vários países da coalizão. em que essas outras leis e publicações sejam
No entanto, em última instância a organização inconsistentes. O administrador também pode, de
se reportava ao Departamento de Defesa norte- tempos em tempos, emitir Avisos Públicos [...] O
americano. Uma vez que as Forças da Coalizão administrador poderá ainda emitir memorandos
estabeleceram e exerceram a autoridade sobre o relacionados a interpretação e aplicação de
território do Iraque, de acordo com as leis de qualquer Regulamento ou Ordem" (CPA, 2003,
guerra e ocupação, a autoridade formal sobre o p.1).6
território iraquiano passou às mãos das Forças
da Coalizão (Halchin, 2005, p.13). A CPA de- Percebe-se que a CPA propôs um modelo de
sempenhou as funções de governo no Iraque até administração no qual a tomada de decisão sobre
junho de 2004, seguindo a especificação contida o state-building era extremante centralizada e ver-
nas resoluções das Nações Unidas e na normas tical. A autoridade atribuída ao embaixador Paul
estabelecidas na Convenção de Genebra de 1949 Bremer indicava que a organização não priorizaria
(Halchin, 2005, p.1). um processo horizontal e participativo de recon-
O embaixador americano chegou a Bagdá em strução. E, de fato, o que se observou ao longo
maio de 2003 e possuía poderes plenos com relação do mandato da CPA foi a construção das insti-
a administração da CPA. Ele, à frente da CPA, tuições no Iraque a partir das concepções norte-
era o braço civil da ocupação militar estabelecida americanas de Estado, não refletindo necessari-
no Iraque. Sua incumbência era a de governar amente as necessidades da sociedade iraquiana.
o Iraque e promover o desenvolvimento de uma Essa abordagem não priorizou a reconciliação en-
democracia, que serviria de modelo para todo o tre os diferentes grupos existentes no Iraque. Paul
Oriente Médio. Bremer poderia dispor de todos os Bremer e sua equipe concederam privilégios aos
bens e funcionários do Estado iraquiano e possuía grupos preteridos pelo regime de Saddam, como os
autoridade executiva, legislativa e judicial. As in- Curdos e os Xiitas. Esse fato deixou grande parte
struções que recebia de Washington costumavam dos árabes sunitas à margem dos processos de-
ser bastante gerais e, em sua maioria, orais (Dob- cisórios. Hashim (2003, p.3-4) destaca que a iden-
bins et al, 2009, p.XIII). tidade do país foi construída pelos sunitas. Muitos
Paul Bremer exerceu a autoridade de regu- desses indivíduos se beneficiaram do Estado com
lamentação, que aparentemente foi derivada da características neo-patrimoniais7 instituído pelo
autoridade executiva investida na CPA pelo gov- partido Ba’ath e, embora se ressentissem do au-
erno americano (Halchin, 2005, p.28). O primeiro
regulamento emitido pela CPA delineou a forma 6. Coalition Provisional Authority Regulation Number 1:
como seria formalmente conduzido o processo de CPA/reg/16 may 2003/1.
reconstrução do Iraque e definiu a autoridade do 7. Um estado neo-patrimonial caracteriza-se por uma ampla
rede de patrocínio (bens materiais, dinheiro e influência) que
administrador para a emissão de regulamentos, oferece aos seus apoiadores em troca da lealdade (Hashim,
memorandos, ordens e avisos públicos com poder 2003).
PERSPECTIVAS, JOURNAL OF POLITICAL SCIENCE, SPECIAL ISSUE 2017 44

toritarismo de Saddam, sentiram a perda de seus autodefesa no Iraque livre. Assim, em agosto de
privilégios após a invasão americana. Através das 2003 é aplicada a Ordem n 229 para a criação
políticas adotadas pela CPA houve um grande do novo exército iraquiano e a Ordem n 2310
redirecionamento dos recursos políticos para longe que apresentava o novo código de disciplina mil-
dos grupos sunitas, fazendo que muitos acabassem itar (CPA, 2003, p.3). Essa medida não apresen-
optando pela confrontação ao novo governo. tou resultados positivos, já que o novo exército
A primeira política implementada pela CPA iraquiano levou vários anos para se tornar uma
no Iraque envolveu a De-ba’athification das estru- instituição confiável e competente, deixando a
turas políticas e sociais do país, estando contida segurança iraquiana comprometida. Esses erros
nas Ordens no 1, 4 e 5, nos Memorandos no 1 e estratégicos converteram-se em fontes de instabil-
7, todos da CPA. Essa estratégia foi planejada e idade nos primeiros anos de ocupação.
implementada com o objetivo de eliminar as estru- Essas duas medidas, aliadas a deterioração
turas do partido Ba’ath e remover a sua liderança da situação securitária no Iraque nos primeiros
de cargos de autoridade, garantindo que eles não meses de ocupação favoreceram o distanciamento
retornassem ao poder. Para isso, os indivíduos que entre a CPA e as reais necessidades da sociedade
ocupavam posições nas três primeiras camadas iraquiana. Para tentar resolver esse afastamento,
administrativas do governo nacional, corporações foi criado o Conselho de Governo Interino do
afiliadas e outras instituições governamentais (por Iraque (Iraqi Interim Governing Council - ICG),
exemplo, universidades e hospitais) seriam entre- em julho de 2003, através da Regulação Número
vistados, para averiguar uma possível afiliação 611 . O ICG era um corpo multiétnico e multi-
com o Partido Ba’ath e sujeitos a investigação por sectário, composto por 25 membros. Ele tentava
conduta criminal e risco para a segurança (CPA, abarcar a diversidade étnica e religiosa do Iraque,
2003, p.1-2). Essa ordem afetava milhares de pes- no entanto, os curdos eram dominantes no con-
soas que estavam relacionadas com o regime de selho e os sunitas sentiam-se sub-representados.
Saddam. Ela eliminava efetivamente a liderança, A maior parte dos membros do ICG eram líderes
mas junto com ela, ceifava também a capacidade exilados durante o regime do partido Ba’ath
técnica iraquiana para a composição dos setores (Hashim, 2003, p.4). Mesmo com todos os esforços
de educação, saúde, transportes, eletricidade e co- para buscar a representatividade da sociedade
municações (Pfiffner, 2010, p.78-79). Essa medida iraquiana, o ICG atraiu muitas críticas. Criticava-
foi considerada demasiadamente severa e desper- se a aceleração da transferência de poder da
tou o sentimento de insatisfação com a ocupação CPA para atores iraquianos, devido à falta de
em grande parte da sociedade iraquiana, sobre- preparo dos mesmos para governar o Iraque.
tudo, nos grupos sunitas. Muitos iraquianos questionaram o grande número
A segunda estratégia utilizada pela CPA foi de ex-exilados entre os membros do conselho e a
a dissolução do exército iraquiano, a partir da falta de clareza nas formas de nomeação do ICG.
Ordem n 28 e a constituição de um novo corpo Esse último ponto de divergência, aumentou as
militar para o país. A desagregação das forças dificuldades para se encontrar sunitas dispostos
armadas iraquianas se deu em maio de 2003 e a integrar o ICG, diminuindo ainda mais a sua
incluíam 385.000 soldados nas forças armadas, representatividade (Ward, 2005, p.5). A principal
285.000 de funcionários no Ministério do Interior função do ICG era a elaboração de uma constitu-
(polícia) e 50.000 em unidades de segurança pres- ição iraquiana até novembro de 2003. De acordo
idenciais. Essa medida deixou milhares de pessoas com este plano, após a redação da constituição,
sem trabalho, criando um grupo significante de o documento seria ratificado em um referendo, e
cidadãos hostis a ocupação americana (Pfiffner, então um governo iraquiano soberano poderia ser
2010, p.80). A Seção 5, da Ordem Nuber 2, definia
a criação de um novo exército iraquiano, como 9. Order 22: Creation of a New Iraqi Army (7 August 2003)
10. Order 23: Creation of a Code of Military Discipline for the
o primeiro passo para a capacitação nacional da New Iraqi Army (7 August 2003)
11. Coalition Provisional Authority Regulation Number 6:
8. Order Number 2: Dissolution of Entities (23 May 2003). CPA/reg/13 July 2003/06
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eleito (Ibidem, p.6). entanto, as forças ocupantes têm autoridade para


Em novembro de 2003, a CPA em conjunto revogar leis consideradas injustas e promulgar
com o ICG emitiu um acordo que previa o fim novos regulamentos, a fim de garantir a segurança
do seu mandato até junho de 2004. Ficou deci- e manter a administração do território ordenada,
dido que um governo interino iraquiano assumiria (Ibidem, Art. 64, p.190).
controle do Estado após a saída da CPA. Esse Os Estados Unidos legitimaram as suas ações
acordo também contemplava a elaboração da lei de (re)construção do Iraque priorizando o esta-
de transição (TAL), uma espécie de constituição belecimento da ordem e da regra da lei. Assim,
provisória. A TAL estabeleceria as estruturas do buscou-se a criação de um Estado de Direito,
governo interino e os processos relativos a seleção correspondente ao valores democráticos e liberais
de um governo permanente através de eleições ocidentais. O Estado de Direito é um princípio
diretas até fim de 2005. Essa aceleração do pro- de governança através do qual todos os indiví-
cesso de transição se deu em grande medida por duos, instituições públicas ou entidades privadas,
pressões externas e internas. No entanto, também incluindo o próprio Estado, são responsáveis e ao
denotou que os Estados Unidos estavam dimin- mesmo tempo submetidos às leis públicas, que
uindo o seu nível de comprometimento com o são aplicadas e/ou julgadas de forma igualitária
Iraque. Dessa forma, a próxima seção concentra- (Pregent, 2010, p.324). Dessa forma, a consoli-
se na análise da construção de um Estado de dação de um Estado de Direito efetivo em um
Direito no Iraque e como essa estratégia denota território pós-conflito faz com a regra da lei seja a
uma tentativa de evasão da responsabilidade e condutora das ações de reconstrução. No cenário
negação do poder. internacional, fixou-se o entendimento, após in-
úmeras intervenções anteriores, de que o primeiro
4 A (re)construção do Estado passo para o state-building é a quebra do ciclo
iraquiano através da Regra da Lei: o de impunidade para aqueles que cometem atos
violentos e criminosos (Perito, 2003, p.3). Por-
Estado de Direito como uma estratégia tanto, os governos que emergem nesses Estados
para a negação do poder. pós-conflitos devem ser enraizados em um Estado
O momento imediato pós-guerra no Iraque se de direito forte, compatível com os direitos hu-
caracterizou pela intensificação dos problemas de manos e o mercado liberal. Para Chandler (2006,
segurança no país. O desmantelamento das es- p.170), a essência da construção do Estado na
truturas estatais, dentre elas as instituições de atualidade está na crença de que o Estado de
segurança iraquianas, favoreceram o aumento da Direito pode ser desenvolvido e implementado por
violência no período inicial da ocupação. Os anal- poderes externos, separadamente dos processos
istas internacionais entendiam que o restabelec- políticos internos.
imento da ordem pública deveria ser priorizado, Assim, a criação de um Estado de Direito
proporcionando segurança e garantindo a efetiva dentro do modelo das democracias liberais é uma
aplicação da lei como parte de suas obrigações. prática recorrente e essencial para o state-building.
A ocupação seguiu além da Resolução 1483 do Através dela são estabelecidas as bases jurídicas
Conselho de Segurança da ONU, as diretrizes da para as instituições que estão sendo construídas.
Quarta Convenção de Genebra de 1949 (Perito, Para além disso, o Estado de Direito busca de-
2003, p.2). De acordo com essa convenção, a Lei limitar as ações dos cidadãos dos Estados pós-
de Ocupação deve ser aplicada sempre que uma conflito, estabelecendo o código de conduta que
força militar estrangeira está em um país sem o deve ser implementado e seguido após a ocupação.
consentimento de seu governo (Geneva Conven- No Iraque, a CPA se apoiou nessa estratégia para
tion, Art. 2, 149, p.169). Os poderes de ocupação reformular e reconstruir as instituições do país.
possuem a responsabilidade de manter a ordem O state-building foi realizado buscando o estab-
pública, respeitar os direitos humanos e promover elecimento das leis e formas de organização que
um ambiente estável para os cidadãos do país o governo soberano deveria assumir após o fim
ocupado (Ibidem, Art. 39-59, 1949, p.182-189). No da ocupação. A administração de Paul Bremer se
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pautou pela implantação de um modelo interna- quência a criação de mais instabilidade e fragmen-
cional de Estado, criando instituições democráti- tação. No caso do Iraque, se observou que o foco
cas e liberais. Esse caminho de ação acabou se na criação do Estado de direito adiou a confor-
mostrando mais complexo e problemático, sobre- mação de quadros políticos, capazes de dar voz ao
tudo pela dificuldade em se estabelecer a ordem no povo iraquiano sobre o funcionamento do seu país.
pós-guerra e pelo não reconhecimento por grande Assim, a população do Iraque não experimentou,
parte da população do Iraque dos poderes ocu- com a queda do regime autoritário de Saddam,
pantes. A dificuldade em se estabelecer um Es- uma participação política efetiva. O modelo de
tado de Direito efetivo no Iraque vai de encontro gestão da CPA, caracterizado pela centralização
com as proposições de David Chandler. Para o do poder decisório e baixa participação popular,
autor, os processos de state-building são pensados não foi suficiente para fomentar o sentimento de
e implementados a partir de técnicas burocráticas inclusão nos iraquianos.
que visam a consolidação de um Estado de Direito "Ao entender
(Chandler, 2006, p.166). Como já foi visto, o state- as soluções legais ou administrativas como um
building acaba por despolitizar processos que são atalho para enfrentar os problemas políticos, faz
essencialmente políticos e sociais, dificultando o um fetiche do quadro legal ao mesmo tempo que
estabelecimento de uma conexão entre os Estados marginaliza a esfera pública, produzindo institu-
intervindos e suas populações. O quadro de leis e ições estatais internacionalizadas, mas isoladas de
instituições produzidos refletem os laços de gov- suas sociedades" (Chandler, 2006, p.166).
ernança e modelos ocidentais e nem sempre aten- Esse tipo de mecanismo corrobora o surgimento
dem às demandas especificas daquelas sociedades. de Estados Fantasmas e dificulta a consolidação
Nesse sentido, a construção do Estado de Direito da paz nessas sociedades. No Iraque, as forças
por atores externos impõe uma agenda externa ocupantes utilizaram a estratégia de primeiro con-
de regulação aos países intervindos e, ao mesmo struir as instituições do país, seguindo os modelos
tempo, nega a responsabilidade política dos atores das democracias ocidentais, para depois transferir
internacionais com relação a esse processo (Chan- o poder para agentes domésticos. A função da
dler, 2006, pp.166). Isso ocorre já que essas inter- CPA foi a de pensar, instituir e fomentar a lei e
venções usam um quadro normativo burocrático a ordem no Iraque pós-Saddam, fixando as bases
como forma de fortalecer o Estado, e, traduzem jurídicas e políticas para o governo interino e para
as suas ações em termos técnicos e capacitadores, o futuro governo eleito. O estabelecimento da lei
marginalizando a esfera política. é utilizado pelos atores internacionais ocidentais
Chandler (2004, p.314) destaca que atual- para negar a sua agenda reguladora e interven-
mente existe um consenso entre os decisores políti- cionista (Chandler 2006, p.166). Uma vez que
cos internacionais de que o Estado de Direito apenas estão cumprindo um papel capacitador e
deve ser a base para o estabelecimento de uma empoderador nos países pós conflitos, auxiliando
paz duradoura, sobretudo, visando a reconstrução na reconstrução de suas instituições e instauração
institucional em Estados pós-conflito. Portanto, de mecanismos de governança efetivos.
as autoridades intervenientes devem inicialmente As ações de regulação são disfarçadas por uma
se concentrar em estabelecer o controle sobre o narrativa capacitadora e de empoderamento. For-
território e fixar as raízes institucionais de um talecendo o entendimento de que as intervenções
modelo de Estado democrático e liberal, para só internacionais buscam fortalecer a soberania de
então investir na transição do poder para atores Estados considerados frágeis e fomentar uma mel-
locais. Nesse tipo de concepção, entedia-se que a hora nos quadros de governança, tanto a nível
transição do governo para agentes nacionais no domésticos, quanto internacional. No entanto, a
Iraque, antes da consolidação de um quadro da imposição da lei por atores externos não produz
"lei do direito", deixaria o caminho aberto para os efeitos esperados, criando-se o paradoxo do
que elites sem interesse na construção da paz Estado de direito (Chandles, 2004, p.314). Esse
consolidassem o seu poder. Porém, esse tipo de paradoxo acontece porque existe uma grande fis-
abordagem, destaca o autor, pode ter como conse- sura entre as leis impostas internacionalmente
PERSPECTIVAS, JOURNAL OF POLITICAL SCIENCE, SPECIAL ISSUE 2017 47

e as vontades e necessidades políticas expressas o mais cedo possível, para que então pensar no
nas sociedades intervindas. E mesmo a lei sendo desenvolvimento econômico e social do Estado.
priorizada em detrimento dos processos políticos, Pregent (2010, p.324) diz que o estabeleci-
acaba sendo enfraquecida e não fortalecida, já mento do Estado de Direito demanda sete efeitos
que não representa os interesses coletivos daquela para ser considerado efetivo. O primeiro é a ne-
população. Por mais que as leis aparentem ser cessidade do Estado monopolizar o uso da força.
uma grande conquista no papel, elas não refletem O segundo efeito garante que os indivíduos vão
uma melhora na prática (Ibidem, p.315). estar seguros e a propriedade será assegurada. O
O desenvolvimento do Estado de direito terceiro diz respeito ao Estado estar vinculado a
“através da imposição externa da legislação acaba lei, não podendo agir e legislar arbitrariamente.
por prejudicar o processo de produção de con- O quarto designa que a lei deve ser estável, para
senso, necessário para que as populações pós- que as pessoas possam planejar as suas vidas
conflito participem do processo de consolidação de acordo com ela. O quinto efeito garante aos
da paz” (Chandler, 2004, p.315). A ideia de que indivíduos acesso fácil a um sistema legal efetivo e
o lei pode ser definida a partir de um conjunto imparcial. O sexto define que os direitos humanos
de soluções elaborados desde o exterior, e, depois e as liberdades serão protegidos pelo Estado. O
impostas aos Estados pós-conflitos, legitima as sétimo diz que as pessoas devem depender da
práticas do Império em Negação (Chandler, 2006, existência dessa instituições jurídicas e do con-
p.169). Nesse processo a lei é desassociada do pro- teúdo da lei para condução das suas vidas diárias.
cesso político de produção do consenso social, de Percebe-se que a CPA não conseguiu fomentar
modo que a emissão de leis e códigos é facilitada. praticamente nenhum desses efeitos no Iraque
Todavia, mesmo que a construção do Estado de pós-conflito. Isso se deve porque esses fatores
Direito seja feita sem muitas dificuldades, a sua desenvolvem-se através de processos de discussão
consolidação acaba sendo um ponto problemático. e deliberação políticas. No Iraque, em virtude da
Como as leis e instituições criadas não corre- imposição da lei por atores externos, o campo
spondem às expectativas e interesses dos atores acabou se tornando atrofiado e incapaz de respon-
locais, acabam sendo amplamente contestadas. No der às complexidades locais.
Iraque, o que se viu foi o surgimento e crescimento Assim, o state-building não só impôs os mecan-
de grupos de resistência armada a ocupação amer- ismos de governança e regulação internacionais
icana. A instabilidade securitária tornou as leis e ao Iraque, como também enfraqueceu as suas
administração da CPA mais artificiais do que já instituições nacionais, desencorajando a partici-
eram por natureza. pação pública na esfera política. A forma como as
Em Estados Fantasmas a emissão de leis é con- decisões foram tomadas pelas CPA deixou pouco
siderada mais fácil, já que não necessita do con- espaço para a contestação ou mesmo envolvimento
sentimento de representantes eleitos ou nomeados. da população iraquiana no processo de recon-
Contudo, os policy makers parecem ignorar que strução do Iraque. A própria criação do ICG não
o Estado de direito não pode ser implementado conseguiu ser eficiente no objetivo de incluir atores
por atores externos (Chandler, 2006, p.169). Bali locais no processo. O conselho, composto majori-
(2005, p.446) define, em um sentido restrito e tariamente por ex-exilados não representava de
pensando em Estados pós-conflito, o Estado de maneira efetiva a diversidade iraquiana. A sub-
direito como o estabelecimento da polícia e da representação do grupo sunita dificultou ainda
ordem, de tribunais e códigos de leis consistentes, mais o estabelecimento de instituições capazes de
capazes de proteger os cidadãos, a instauração de responder os desafios reais da sociedade iraquiana.
prisões efetivas e a garantia da responsabilização O foco na Regra da Lei negligencia que o pro-
daqueles que cometeram crimes no conflito. Todos cesso legislativo é um ato político, baseado em
esses elementos precisam ser institucionalizados relações de poder social que culminam em sua
e legitimados através das instituições do Estado. aceitação ou rejeição (Chandler, 2006, p.171). E
Nos momentos pós-conflito é preciso que a ordem para que as instituições criadas em processos de
e todas essas características sejam asseguradas state-building sejam eficientes, é preciso superar
PERSPECTIVAS, JOURNAL OF POLITICAL SCIENCE, SPECIAL ISSUE 2017 48

o déficit de legitimidade causado pela imposição a necessidade das forças ocupante se distancia-
externa dessas instituições (Bali, 2005, p.445). Já rem das responsabilidades pela situação do país
que um governo sem legitimidade social até pode naquele momento.
criar códigos de leis, todavia, eles não possuirão
força ou efeito de lei para a população, devido a
sua falta de representatividade (Chandler, 2006, 5 Conclusão
p.171). Isso é exatamente o que se observa em Esse artigo analisou o processo de state-building
Estados Fantasmas que tiveram as suas esferas no Iraque a partir das concepções do Império
políticas e sociais marginalizadas por burocratas em Negação de David Chandler, focando na at-
internacionais. uação da CPA no país. Pode-se perceber ao longo
Perito (2003, p.3) salienta que a consoli- do trabalho que os processos de construção ou
dação do Estado de Direito em sociedades pós- reconstrução de Estados são importantes ferra-
conflito envolve mais que a provisão de polici- mentas para o exercício do poder na atualidade.
amento, tribunais e prisões, mas fundamental- Muitos analistas internacionais abordam o state-
mente, demanda o esforço em responder as vio- building através de visões processuais e técnicas,
lações cometidas durante a guerra. É preciso que buscando extrair as melhores lições a serem apren-
os violadores dos direitos humanos sejam julgados didas em cada processo. Essas abordagens inviz-
e punidos para que o equilíbrio social seja reestab- ibilizam as problemáticas políticas envolvidas na
elecido e os ressentimentos sejam minimizados. Na construção de novas instituições de governança.
ocupação iraquiana pode-se observar que as forças O state-building, ao ser descrito em termos téc-
americanas recorreram a esse tipo de mecan- nicos e administrativos, acaba por marginalizar
ismo. O regime do partido Ba’ath e o próprio a esfera política dos Estados. Nesse sentido, o
Saddam Hussein foram culpabilizados pelo con- state-building tem sido largamente utilizado para
flito. A captura e julgamento de Saddam Hussein estabilizar as sociedade de Estados pós-conflito no
foram apresentadas como um ponto de ruptura cenário internacional e, assim, impedir que esses
para o Iraque. Chandler (2006, p.172) apresenta Estados exportem a sua insegurança e violência
o julgamento como marco do nascimento de um para todo o globo. David Chandler, em sua análise
“novo Iraque” democrático, que buscava punir o do Império em Negação, chama a atenção para
seu antigo líder pelos crimes cometidos contra o o verdadeiro significado desse tipo de prática: a
povo iraquiano. O atores internacionais fizeram negação do poder e a evasão da responsabilidade.
uso do julgamento para minimizar a importância Os países e instituições ocidentais se utilizam
dos anos pós-Saddam, alegando que os problemas das práticas capacitadoras e terapêuticas state-
do país estavam em consonância com o legado do building para negar o seu poder político e assim,
ditador. poder evadir a responsabilidade que vem com ele.
É claro que a o regime de Saddam pro- Chandler ainda alerta que a forma apolítica
duziu profundas cisões políticas no Iraque, no através da qual o state-building é conduzido,
entanto, os anos de ocupação e as estratégias acaba por dificultar a criação de instituições real-
de state-building também foram cruciais para o mente representativas e efetivas nas sociedades
caos político e securitário. A evasão da respon- dos países pós-conflito. A construção de institu-
sabilidade por parte dos poderes ocupantes e ições por atores externos não consegue dar conta
a maneira despolitizada com que conduziram o das complexidades locais desses Estados e nem
processo agravou as diferenças ideológicas carac- fomentar a participação pública, de modo que
terísticos da sociedade iraquiana. O Estado de dificultam a criação de um vínculo entre a pop-
Direito serviu mais a um propósito de negação do ulação e o Estado. Os Estados são construídos
poder no Iraque, do que a uma tentativa de mu- com uma esfera política atrofiada e incapaz de
dança política no Iraque (Chandler, 2006, p.173). corresponder aos interesses e demandas de suas
Assim como o julgamento de Saddam Hussein sociedades. Esse fenômeno dá origem aos Estados
teve menos a ver com a superação do passado Fantasmas, que possuem a soberania jurídica in-
autoritário do Iraque e muito mais relação com ternacional, contudo, não possuem legitimidade
PERSPECTIVAS, JOURNAL OF POLITICAL SCIENCE, SPECIAL ISSUE 2017 49

e representatividade internas. Esses Estados se [5] Chandler, D. (2006) Empire in Denial: The Politics of State
tornam amplamente dependentes da ingerência Building. Pluto Press. London.
[6] Chandler, David (2004). Imposing the ‘rule of law’: the
estrangeira, devido a ao seu setor político pouco lessons of bih for peacebuildingin iraq. International Peace-
desenvolvido e representativo e acabam não con- keeping. Vol. 11, n.2, p.312-333.
seguindo exercer a soberania em seus próprios [7] Cox, R (1981). “Social Forces, States and World Orders:
Beyond International Relations Theory”. Millennium, vol.
territórios. Assim, percebe-se que esta forma de 10, no. 2, , pp. 126-155.
construção do estado, é ainda mais corrosiva para [8] Dobbins, James et al (2009). Occupying Iraq: a history of
the Coalition Provisional Authority. RAND Corporation.
a autoridade do Estado não-ocidental do que Santa Monica.
as políticas anteriores, que buscavam ignorar ou [9] Fukuyama, F. (2005) Nation-Building: Beyond Afghanistan
marginalizar o estado. and Iraq. Baltimore: The Johns Hopkins University Press.
[10] Guevara, Berit Bliesemann de (2008). The State in times
No caso iraquiano, observou-se que as forças of Statebuilding. Civil Wars. Vol. 10, n.4, p.348-368.
ocupantes foram incapazes de envolver e mobilizar [11] Halchin, Elaine L (2005). The Coalition Provisional Au-
a sociedade iraquiana durante o processo de recon- thority (CPA): Origin, Characteristics, and Institutional
Authorities. CRS Report for Congress. Congressional Re-
strução das instituições, de modo que acabaram search Service, p.1-42. Washington. DC.
recorrendo ás práticas evasivas e terapêuticas do [12] Hashim, Ahmed S (2003). The Insurgency in Iraq. Small
state-building. A principal estratégia utilizada foi Wars Insurgencies, vol..14:n.3, p.1-22.
[13] Hiltermann, Joost (2007). Filling the Security Vac-
a criação de um Estado de Direito no Iraque. uum? America’s Surge in Baghdad. Documentos CIDOB,
Dessa maneira, a CPA buscou se apoiar no es- Mediterráneo. n.9, p.1-23. Barcelona.
tabelecimento da lei e da ordem como principal [14] ICSS (2001) The Responsability to Protect: Report of
the International Commission on Intervention and State
método de reconstrução. O foco na construção de Sovereignty. Ottawa, Canadá.
um aparato jurídico mais justo e igualitário do que [15] Jackson, R. (1990) ’States and Quasi-states’, chapter 1 in
Quasi-states: Sovereignty, International Relations and the
aquele existente no regime de Saddam Hussein Third World, Cambridge University Press
concebeu um pouco mais de legitimidade a ocu- [16] Newman, E. (2013) The violence of statebuilding in his-
pação. A grande ênfase concedida ao julgamento e torical perspective: implications for peacebuilding. Peace-
building. Vol.1, n 1, p. 141-157.
a punição de Saddam auxiliou a afastar para longe [17] Perissinotto, Renato (2013) Comparação, história e inter-
da CPA a culpa pelo caos securitário e político no pretação Por uma ciência política histórico-interpretativa.
Iraque pós-guerra. No entanto, a construção do Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 28, n 83, p.151-
240.
Estado de Direito por atores externos termina por [18] Perito, R (2003). Establishing the Rule of Law in Iraq. Spe-
dar origem a formas arbitrárias de elaboração de cial Report. United States Institute of Peace. Washington,
leis, já que o processo legislativo em Estados Fan- DC.
[19] Pfiffner, James P (2009). US Blunders in Iraq: De-
tasmas é internacionalizado e produto do Império Baathification and Disbanding the Army. Intelligence Na-
em Negação (Chandler, 2006, 169). Isso faz com tional Security, v. 24, n. 1, p.76-85. Disponível em:
que as leis além de serem um reflexo da regulação <http://pfiffner.gmu.edu/files/pdfs/Articles/CPA Orders,
Iraq PDF.pdf>. Acesso em: 08 jun. 2017.
externa, não consigam abarcar as particularidades [20] Pregent, R (2010). Rule of Law Capacity Building in Iraq.
e necessidades domésticas dessas sociedades. International Law Studies. Vol.86, p.323-345.
[21] Richmond, O. (2014). Statebuilding: Failed by Design.
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de Formación del Estado: un esbozo de los esfuerzos de la [25] Coalition Provisional Authority (2003) Order 23: Creation
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PERSPECTIVAS, JOURNAL OF POLITICAL SCIENCE, SPECIAL ISSUE 2017 50

[26] Coalition Provisional Authority (2003) Order Number 1:


De-ba‘athification of iraqi society (16 May 2003).
[27] Coalition Provisional Authority (2003) Order Number 2:
Dissolution of Entities (23 May 2003).
[28] Coalition Provisional Authority (2003) Regulation Num-
ber 1: CPA/reg/16 may 2003/1.
[29] Coalition Provisional Authority (2003) Regulation Num-
ber 6: CPA/reg/13 July 2003/06
[30] Coalition Provisional Authority (2003) Regulation Num-
ber 6: CPA/reg/13 July 2003/06
[31] Coalition Provisional Authority (2003). Regulation Num-
ber 6: CPA/reg/13 July 2003/06

Natali Hoff é mestranda no Programa


de Pós-Graduação em Ciência Política
da Universidade Federal do Paraná
(PPGCP/UFPR). Seu interesse de pesquisa
centra-se em processos de (re) construção
de Estados (state-building) e atualmente
sua pesquisa foca-se no processo de
reconstrução do Estado no Iraque após
2003.

Ramon Blanco, Doutor em Relações Internacionais, é


Docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana
(UNILA), onde coordena o Núcleo de Estudos para a Paz e a
Cátedra de Estudos para a Paz, e colabora no Programa de
Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do
Paraná (UFPR).

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