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O PROGRAMA METAFÍSICO DE PIERRE DUHEM: ANALOGIA

ENTRE A TERMODINÂMICA GERAL E A FÍSICA


ARISTOTÉLICA
OSWALDO MELO SOUZA FILHO
Academia da Força Aérea –Pirassununga-SP
melosf.oswaldo@gmail.com

Resumo
A concepção de causalidade de Pierre Duhem estabelece um fundamento
ontológico aos dados sensíveis que legitima o estudo das causas dos fenômenos. Essas
causas pressupõem, por sua vez, uma ordem ontológica que Duhem se refere como
"essência das coisas materiais" e que é, portanto, transcendente à física. Essa "ordem
ontológica" define um objeto para a metafísica e é indicativa da inteligibilidade da
essência das coisas.
É na condição de cosmólogo e não de físico que Duhem empreende uma
interessante e muito cuidadosa especulação filosófica que o conduz a um surpreendente
resultado: a analogia entre a Energética ou Termodinâmica Geral e a Física
aristotélica. É no contexto do essencialismo metafísico duhemiano que se pode apreciar
o alcance e a natureza desta analogia.
Palavras-chave: energética, física da qualidade, física aristotélica, ordem ontológica
fundamental, cosmologia, teoria física ideal, classificação natural

Abstract
Pierre Duhem’s conception of causality settles an ontological foundation to
sensible data that legitimates the study of the causes of phenomena. These causes
presuppose an ontological order that Duhem refer to it as the “essence of material
things” and which is therefore, transcendent to physics. This “ontological order”
defines an object for metaphysics and indicates the intelligibility of the essence of
things.
Duhem undertakes an interesting and mindful philosophical speculation as a
cosmologist and not as a physicist that leads him to a remarkable result: an analogy
between Energetic or General Thermodynamics and Aristotelian Physics. The range
and the nature of this analogy can be properly appreciated in the context of the
duhemian metaphysical essentialism.
Key-words: energetic, physics of quality, Aristotelian physics, fundamental ontological
order, cosmology, ideal physical theory, natural classification

Um dos mais interessantes e surpreendentes resultados da reflexão filosófica de Pierre


Duhem, em que concorre a sua experiência como filósofo e historiador da ciência e
físico teórico1, é a analogia entre a Termodinâmica Geral ou Energética e a Física

1
O empenho filosófico de Duhem é inteiramente voltado para justificar o seu projeto científico.
Acrescentaríamos que o mesmo sucede com o seu programa historiográfico. Desse modo, a construção da
Termodinâmica Geral ou Energética é a atividade central de Duhem. Convidado a ocupar a cadeira de
História da Ciência na Universidade de Paris em 1913, Duhem recusou-a alegando ser um físico teórico:

1
Aristotélica. Afora o aspecto filosófico e metodológico no qual ele procura aproximar o
seu ponto de vista com o de Aristóteles2, Duhem aponta uma semelhança ou
paralelismo, não desprezível, entre a física peripatética e a Termodinâmica Geral. Esta
semelhança, mais apropriadamente uma analogia, é anunciada por ele, pela primeira
vez, no seu ensaio de 1896, intitulado "L'Évolution des Théories Physiques" e publicado
no Revue des Questions Scientifiques. Diz Duhem (1896, p.498) nesse ensaio:

"Esta ciência [a Termodinâmica Geral ou Energética], cuja construção


parece ser a grande obra dos físicos do século XIX, como a construção da
dinâmica foi a grande construção dos físicos do século XVIII, é
verdadeiramente a Física na qual Aristóteles esboçou as grandes linhas;
mas é a física de Aristóteles desenvolvida e aperfeiçoada pelos esforços dos
experimentadores e dos geômetras, esforços continuados sem descanso
desde perto de trezentos séculos."

A base principal de comparação reside em uma das mais importantes características da


Energética, responsável por defini-la como a “Física da Qualidade”. Essa característica
encontra-se na noção, fornecida pela experiência, de “qualidades primeiras”3.
As qualidades primeiras são umas espécies de âncora empírica que, uma vez
representadas simbolicamente por meio de grandezas matemáticas, fornecem os
elementos básicos na constituição das leis experimentais e hipóteses teóricas da
concepção duhemiana de teoria física e justificam a sua designação de “Física da
Qualidade” que a torna próxima da Física aristotélica.
Em outra passagem do "L'Évolution des Théories Physiques" diz ainda Duhem (1896,
p.497-498) sobre isso:

"não quero entrar em Paris pela porta dos fundos", disse ele (Duhem, 1917), em uma resposta indignada
com o não reconhecimento de sua atividade principal.
2
É no “Physique et Metaphysique” de 1893 que Duhem (1989b, p.51) mostra a concordância entre suas
teses ontológicas e epistemológicas, constitutivas do que denominamos “essencialismo metafísico
duhemiano” (Souza Filho, 1996, p.62), e a filosofia aristotélica.
3
As qualidades primeiras representam propriedades dos fenômenos físicos, podendo aparecer na forma
de propriedades qualitativas (calor, eletrização, magnetização, iluminação, etc.) ou quantitativas (força,
distância, tempo, etc.). Essas propriedades que constituem as qualidades primeiras não se reduzem, a
priori, umas às outras, e nem significa que novas propriedades, qualitativas ou quantitativas, não possam
ser acrescentadas a estas.

2
"Mas convém que esta ciência, mais ampla que a antiga mecânica, cesse de
ser consagrada somente ao estudo do movimento local, para abarcar as leis
gerais de toda transformação das coisas materiais, as leis do movimento
físico entendido no sentido amplo de Aristóteles; convém que ela trate não
somente de mudança de lugar no espaço, mas também de todo movimento
de alteração, de geração e de corrupção. Ora, esta ciência não está mais
para ser criada; as grandes linhas estão desde já marcadas; elas estão
sendo traçadas pelos físicos desse século que, buscando reduzir o calor ao
movimento, foram conduzidos a condensar os ramos mais diversos da física
em uma ciência única que eles denominaram a Termodinâmica, que
Rankine, afirmando pela primeira vez seu novo papel, denominou
Energética."

Assim, a Física da Qualidade é muito mais ainda um programa de pesquisa que pretende
indicar os rumos a serem seguidos pela física teórica.
No seu livro de 1903, L'Évolution de la Mécanique, Duhem reafirma o paralelo entre a
Termodinâmica Geral, entendida como Física da Qualidade, e a Física aristotélica,
colocando-a como um modelo de teoria física capaz de evitar as "quimeras" e as
"complicações" das teorias reducionistas de tipo mecanicista. Diz Duhem (1992, p.197-
198) sobre isso:

"Tentar reduzir à figura e ao movimento todas as propriedades dos corpos


parece um empreendimento quimérico, seja porque tal redução será obtida
ao preço de complicações que apavoram a imaginação, seja mesmo porque
ela estará em contradição com a natureza das coisas materiais.
Somos então obrigados a aceitar em nossa Física outra coisa que os
elementos puramente quantitativos de que trata o geômetra, de admitir que
a matéria têm qualidades; ao risco de nos censurar o retorno às virtudes
ocultas, somos forçados a considerar como uma qualidade primeira e
irredutível esta pela qual um corpo é aquecido, ou iluminado, ou eletrizado,
ou imantado; em uma palavra, renunciando às tentativas renovadas sem
interrupção desde Descartes, convém vincular nossas teorias às noções
mais essenciais da Física peripatética."[grifo nosso]

3
Este paralelismo entre a Termodinâmica Geral e a Física aristotélica é apresentado, com
maiores detalhes, por Duhem no ensaio de 1905, intitulado "Physique de croyant".
Nesse ensaio ele discute e questiona com bastante rigor a natureza e o alcance dessa
apreensão das similaridades, ou analogias, entre uma teoria física moderna e uma teoria
física antiga. Duhem (1989c, p.144, 149) deixa claro que essa analogia é resultado não
do método positivo (experimental ou matemático) utilizado pelos cientistas, mas sim da
metafísica. Portanto, é como metafísico e não como físico que Duhem se pronuncia a
esse respeito, reafirmando no "Physique de croyant" as principais teses filosóficas
contidas em seus trabalhos anteriores tais como o "Physique et Metaphysique" e o
"L'École Anglaise", ambos de 1893.
Sendo assim, é no contexto do “essencialismo metafísico duhemiano” (ver nota 2) que
se pode apreciar o alcance e a natureza da analogia entre a Termodinâmica Geral e a
Física aristotélica.
Há três aspectos desse essencialismo que são fundamentais nesta apreciação feita por
Duhem no "Physique de croyant". O primeiro, é o que caracteriza o objeto da metafísica
como legítimo tanto quanto o da física. Esta legitimidade é garantida pela tese
ontológica (Duhem, 1989b, p.42) apresentada no "Physique et Metaphysique" e que
afirma existir uma essência das coisas materiais, causa eficiente dos fenômenos. Duhem
desenvolve a partir daí uma concepção de investigação metafísica que permite ao
filósofo, legitimamente, empreender a construção de um sistema metafísico, chamado
de “cosmologia” (Duhem, 1989b, p.42) ou “filosofia da natureza” (Duhem, 1989c,
p.147): o estudo da essência das coisas materiais ou da natureza da matéria bruta, causa
dos fenômenos e razão de ser das leis físicas. O segundo aspecto é o conceito de
classificação natural, tal como desenvolvido no La Théorie Physique de 1903. Neste
livro (Duhem, 1981, p.35), o conceito de classificação natural possui duas
características fundamentais: a primeira, é seu caráter ontológico, pois, dizer que a
teoria física tende a ser uma classificação natural é equivalente a afirmar que a ordem
lógica da teoria reflete uma ordem ontológica fundamental; a segunda, é a sua
historicidade, implícita na afirmação sobre a tendência objetiva da teoria física tornar-se
uma classificação natural, isto é, em aproximar-se da forma perfeita e ideal cuja
verificação só é possível em um contexto histórico de sucessão de teorias físicas, vistas
no seu aspecto matemático-representacional. Esta tendência independe das decisões
metodológicas dos físicos. O terceiro aspecto é o conceito de teoria ideal e perfeita
enquanto uma teoria única e coerentemente ordenada, conforme exposto no "L'École

4
Anglaise" como um princípio axiológico de tendência à perfeição (Duhem, 1989d,
p.79). Este princípio axiológico de perfeição da ciência operacionaliza, em um nível
metodológico, a aproximação da teoria física em direção à ordem ontológica
fundamental4, mediante a construção de uma teoria física única de caráter axiomático.
Estes três aspectos fundamentam o realismo metafísico e convergente de Duhem que dá
plausibilidade à analogia. Analisemos o sentido dessa plausibilidade.
Antes de qualquer coisa, cabe ressaltar uma distinção muito importante que não fica
muito clara na discussão realizada por Duhem (1989c, p.144-149) na seção 8 do
"Physique de Croyant". Por um lado, temos a convergência entre a teoria física ideal e
perfeita e a explicação metafísica que se justifica plenamente no âmbito do
essencialismo metafísico duhemiano. Sendo assim, "deve existir analogia", diz Duhem
(1989c, p.147), "entre a explicação metafísica do mundo inanimado e a teoria física
perfeita, que tendesse ao estado de classificação natural". Nessa citação, Duhem atribui
ao termo analogia um sentido metafísico, justificável pelas teses de seu essencialismo.
"É certo que uma explicação metafísica completa da natureza das coisas materiais nos
forneceria, ipso facto, a mais perfeita das teorias físicas", diz Duhem (1989b, p.48) no
"Physique et Metaphysique". Por outro lado, Duhem (1989c, p.147) admite no
"Physique de Croyant" que “ninguém possui, nem jamais possuirá a teoria física
perfeita”. Certamente, a teoria física perfeita é uma teoria física ideal que se justifica por
meio de argumentos axiológicos e ontológicos. Porém, como lidar com a questão de
buscar analogias entre uma teoria física real, necessariamente "imperfeita" e
"provisória" (Duhem, 1989c, p.147), e uma doutrina cosmológica, necessariamente
hipotética como todo sistema metafísico (Duhem, 1989b, p.77)?
É nesse ponto que podemos entender o outro sentido em que o termo analogia é
empregado e que nos esclarecerá acerca do alcance e natureza da similaridade entre a
Termodinâmica Geral e a Física peripatética. Assim, a distinção, por nós referida no
início, é entre esses dois sentidos do termo analogia: o primeiro, enquanto parte
constitutiva das teses metafísicas e, conseqüentemente, justificado por elas como um
horizonte ideal; o segundo, enquanto atividade do cosmólogo envolvendo a avaliação de
uma teoria física atual e um sistema metafísico e cujo resultado, "permanece sempre

4
“Ora, se sabemos poucas coisas sobre as relações que possuem entre si as substâncias materiais, isso
se deve a pelo menos duas verdades das quais estamos seguros; a saber, que essas relações não são nem
indeterminadas, nem contraditórias; (...) ao fazer desaparecer as incoerências da teoria, teremos alguma
chance de aproximá-la dessa ordem, de torná-la mais natural e, portanto, mais perfeita.” (Duhem,
1989d, p.79)

5
problemático em alto grau e nunca se impõe à razão de maneira inexpugnável"
(Duhem 1989b, p.77). O primeiro sentido do termo analogia torna possível o exercício
do segundo, pois fundamentalmente afirma que uma teoria física, não sendo um simples
sistema de símbolos criados de forma arbitrária e artificial, mas tendo a classificação
natural das leis experimentais como forma limite, se corresponde cada vez mais com o
sistema metafísico que se propõe a organizar a essência do mundo inanimado.
Enquanto atividade do cosmólogo, ou metafísico, a busca de analogias é coerente com a
precedência epistemológica da física perante a metafísica, pois "é graças a essa
analogia que os sistemas da física teórica podem vir em auxílio do progresso da
cosmologia" e também "pode sugerir ao filósofo todo um conjunto de interpretações"
(Duhem, 1989c, p.146). Duhem aponta duas limitações dessa investigação e, para
enfrentá-las, sugere as respectivas prescrições metodológicas que ele se refere como
"precauções" (Duhem,1989c, p.148).
A primeira limitação refere-se à incapacidade demonstrativa da analogia, conseqüência
de serem as proposições, respectivamente, da cosmologia e da física teórica,
concernentes a termos de natureza diferente. Portanto, os juízos da cosmologia não
podem provar, como verdadeiros ou falsos, os teoremas da física teórica e vice-versa.
A segunda limitação consiste no fato de que é a teoria física ideal que guarda analogia
com o sistema metafísico e não a teoria física tal como é praticada pelos físicos. Ora,
mas ninguém tem nem terá posse da teoria física ideal e perfeita, entendida, no quadro
da prática do físico teórico, como um conceito regulador. Isso obriga, então, que se
tome uma determinada teoria física, tal como é professada efetivamente pelos físicos, e,
à base de uma hipótese5 sobre suas partes essenciais, fazê-la desempenhar o papel da
teoria física ideal. Só desse modo pode-se efetuar a analogia. Portanto, deve-se
necessariamente penetrar em um terreno de conjecturas no qual o metafísico deverá,
"contentar-se com pressentimentos não analisáveis sugeridos pelo espírito de finesse
[grifo nosso], que o espírito geométrico se declarará incapaz de justificar." (Duhem,
1989c, p.147)

5
"Ora, para quem conhece somente o que é, como é difícil adivinhar o que deve ser!", diz Duhem
(1989c, p.147) no "Physique de Croyant" sobre o caráter altamente especulativo dessa hipótese. Todavia,
se por um lado, Duhem reconhece a dificuldade de adivinhar qual deve ser a teoria física ideal, por outro,
ele não tem dúvidas em admitir, com toda suspeição que isso possa acarretar, que a Energética ou
Termodinâmica Geral aproxima-se desse ideal de perfeição.

6
Vejamos agora as respectivas prescrições metodológicas sugeridas por Duhem (1989c,
p.147) no "Physique de Croyant" com "extrema prudência" e "extrema precaução" para
se invocar essa analogia.
Do mesmo modo que as limitações, as prescrições são também duas, a saber:

1a) "conhecer exata e minuciosamente" a teoria física a ser posta em analogia com um
determinado sistema metafísico;
2a) conhecer a evolução das teorias físicas, ou seja, conhecer não só as teorias físicas
atuais, mas também as passadas.

A primeira prescrição procura evitar o "conhecimento vago e superficial" que, "se


deixará lograr por semelhanças de detalhes, por aproximações acidentais, e mesmo por
assonâncias de palavras, que tomará como marcas de uma analogia real e profunda."
(Duhem, 1989c, p.148)
A segunda prescrição mostra como Duhem vê no contexto histórico uma fonte de
sugestões capaz não só de guiá-lo na escolha efetiva de hipóteses, mas também no
discernimento da tendência evolutiva da física teórica. O espírito de finesse, que diz
Duhem, no "Physique de Croyant" (1989c, p.147), ser suscetível de sugerir
"pressentimentos não analisáveis", nutre-se no conhecimento histórico e, através dele,
pode, muito melhor do que aqueles que não o tomam em consideração, prognosticar
acerca dos rumos da teoria física. Diz ele (1989c, p.148) sobre isso:

"Não se trata, pois, para o filósofo, de comparar à sua cosmologia a física


tal como ela é, congelando, de alguma forma, a ciência em um instante
preciso de sua evolução, mas de apreciar a tendência da teoria, de
adivinhar o fim para o qual ela se dirige. Ora, nada pode guiá-lo
seguramente nesta adivinhação da rota que seguirá a física, a não ser o
conhecimento do caminho que ela já percorreu." (...) "Assim, a história da
física nos deixa suspeitar alguns traços da teoria ideal à qual tende o
progresso científico, da classificação natural que será como uma imagem
da cosmologia."

7
Essa teoria, sobre a qual convergem "todas as tendências legítimas e fecundas das
teorias anteriores" (Duhem, 1989c, p.151), é a Termodinâmica Geral que, sem ser a
teoria física ideal, é a que melhor dela se aproxima, segundo Duhem.
É nesse conjunto de considerações que Duhem efetiva a analogia da Termodinâmica
Geral com a Física peripatética; uma analogia que "é tanto mais surpreendente quanto
menos visada, mais marcante pelo fato de que os criadores da termodinâmica eram
estranhos à filosofia de Aristóteles." (Duhem, 1989c, p.151)
Antes de proceder à apreciação das similaridades apresentadas por Duhem entre a
Energética e a Física de Aristóteles6, gostaríamos de enfatizar que essa analogia é
efetuada por ele tomando da primeira "indicações apenas esquematizadas" (1989c,
p.150), e da segunda, as suas "doutrinas essenciais" (1989c, p.151). Portanto, Duhem
(1989c, p.147) não dissimula, nem tenta diminuir o caráter altamente hipotético e a
imensa fragilidade desse exercício, uma vez que ele se põe a realizar duas ordens de
interpretação: uma relativa à Termodinâmica Geral como próxima da teoria física ideal,
e a outra relativa à Física peripatética como a cosmologia que reflete a realidade
ontológica fundamental. É nessa base que Duhem estabelece quatro analogias entre
essas duas doutrinas.
A primeira analogia é aquela que proporcionou a identificação da Termodinâmica Geral
como Física da Qualidade com a Física aristotélica, anunciada por Duhem desde 1896.
Tanto a Termodinâmica Geral como a Física de Aristóteles concedem à noção de
quantidade e qualidade uma igual importância: a primeira, representando igualmente
por meio de símbolos numéricos as diversas grandezas das quantidades e as diversas
intensidades das qualidades e a segunda considerando igualmente as categorias de
qualidade e quantidade. Os símbolos numéricos da Termodinâmica Geral se
correspondem com as noções físicas dos fatos observados e as categorias aristotélicas de
quantidade e qualidade se correspondem com os atributos da substância. Assim, a
Termodinâmica Geral, enquanto teoria física, permanece dentro de sua atribuição de
estudar os fenômenos e a Física aristotélica, enquanto cosmologia, procura estudar a
essência das coisas materiais.

6
Não é nosso objetivo avaliar a interpretação duhemiana da Física de Aristóteles, mas tão somente expô-
la e situá-la no quadro de sua filosofia da ciência. Observamos que Duhem (1989c, p.152) menciona os
livros que contém a Física aristotélica - Physica, De Generatione et Corruptione, De Caelo e os Meteoros
- sem, no entanto, preocupar-se em detalhar a sua análise associando as teorias aristotélicas ao texto
respectivo.

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A segunda analogia é relativa ao conceito de movimento. A noção de movimento na
Energética é uma concepção de alteração geral das grandezas qualitativas ou
quantitativas que representam as propriedades dos fenômenos físicos tais como a
mudança de lugar no espaço, a variação de temperatura, a mudança de estado elétrico,
de imantação, concentração, etc.
A Termodinâmica Geral não concebe nenhum programa que vise reduzir, a priori, uma
forma de movimento à outra ou ao movimento local especificamente. Do mesmo modo,
a Física peripatética não concebe nenhum reducionismo de uma forma de movimento a
outra, tratando as diferentes formas do movimento geral como uma modificação dos
atributos de uma substância.
A terceira analogia abarca uma outra ordem de transformações, mais profunda do que
aquela tratada pelo conceito de movimento. No que diz respeito à Termodinâmica Geral
essa transformação penetra os compostos químicos básicos, e, no que diz respeito à
Física aristotélica ela atinge a substância e não só os seus atributos. Aristóteles fala de
um tipo de transformação, denominada geração, que cria uma nova substância; ao
mesmo tempo, ocorre uma outra transformação, designada corrupção, que aniquila uma
substância já existente. Em uma das mais importantes partes da Termodinâmica Geral, a
Mecânica Química, atual Físico-Química, representa-se simbolicamente diversos corpos
ou compostos, dotados de massa, que podem ser criados ou aniquilados em uma reação
química. Sobre isso, Duhem (1989c, p.151) diz ainda no “Physique de Croyant” que "no
seio da massa do corpo composto, as massas dos componentes não subsistem senão em
potência." Acerca da noção aristotélica de potência, Duhem não acrescenta qualquer
outra informação no texto para que possamos apreciar melhor a sua interpretação e a
própria analogia.
A quarta e última analogia é das mais interessantes, envolvendo os conceitos
termodinâmicos de equilíbrio estável e entropia. A Termodinâmica Geral concebe a
condição de um sistema físico, chamada de estado do sistema, como caracterizada pelos
valores assumidos pelas grandezas macroscópicas, tais como pressão, temperatura,
massa, etc.
Um estado de equilíbrio do sistema é aquele no qual nenhuma mudança ocorre em suas
grandezas. Um estado de equilíbrio estável é aquele que uma vez o corpo seja retirado
desse estado, a ele sempre retorna.
Tomando-se um sistema físico qualquer, isolado, pode-se associar a ele uma grandeza
chamada entropia. O estado de equilíbrio estável desse sistema corresponde ao máximo

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valor da entropia. É isso exatamente o que estabelece a segunda lei da Termodinâmica,
ou princípio de Carnot e Clausius como Duhem a denomina: em um sistema isolado os
fenômenos sempre ocorrem no sentido do crescimento da entropia, conduzindo-o,
portanto, a seu estado de equilíbrio (Duhem, 1989c, p.154).
Para comparar com a Termodinâmica Geral, Duhem (1989c, p.152-153) toma da Física
aristotélica a teoria do lugar natural dos elementos.
Segundo Aristóteles existem cinco elementos na natureza que se podem colocar na
seguinte ordem, indo do mais pesado ao mais leve: terra, água, ar e fogo. O quinto
elemento não tem peso e forma as esferas celestes e os astros. As esferas celestes são
dispostas em círculos concêntricos indo da esfera mais externa, que envolve as estrelas,
até a de menor raio, que envolve a Lua, passando pelas esferas de Saturno, Júpiter, Sol,
Mercúrio, Marte e Vênus. O elemento éter não pode ser gerado nem corrompido,
permitindo-se somente o movimento circular das esferas que carregam consigo os astros
correspondentes.
Abaixo da esfera da Lua, no chamado mundo sublunar, ocorrem as transformações de
geração e corrupção, indicativos da transformação, uns nos outros, dos quatro
elementos. Para cada um deles, além das qualidades características, há um lugar natural
onde aí permanecem em repouso, podendo ser somente retirados daí por uma força. Tão
logo essa força cesse, o elemento retorna, por movimento natural, ao seu lugar natural.
A terra, o elemento mais pesado, tende sempre para o centro do universo aristotélico. O
fogo, o mais leve dos elementos, dirige-se violentamente para fora desse centro em
direção à concavidade da esfera lunar, e aí permanece. O ar situa-se abaixo do fogo e a
água abaixo do ar e acima da terra. Segundo Duhem (1989c, p.153), a física aristotélica
afirma que todo ser tende à sua perfeição e é nesse lugar natural que a forma substancial
de cada elemento atinge a sua perfeição.
Qual a analogia, perguntamo-nos, entre a teoria do lugar natural da Física aristotélica e
as noções de equilíbrio estável e entropia da Termodinâmica Geral? Como Duhem
(1989c, p.147) mesmo admitiu "onde o pensador vê uma analogia, um outro, mais
vivamente tocado pelos contrastes dos termos comparados que por suas semelhanças,
pode perfeitamente ver uma oposição." Sendo assim, levado muito mais pelo desejo de
persuasão do que pela pretensão de convencer pelo espírito lógico, Duhem empreende
uma interpretação dos termos da Física aristotélica, adequando-a aos termos da
Energética. Diz ele então, referindo-se à Física peripatética:

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"Encontramos a afirmação de que se pode conceber um estado em que a
ordem do universo seria perfeita; que esse estado seria, para o mundo, um
estado de equilíbrio, e ainda mais, um estado de equilíbrio estável. Retirado
desse estado, o mundo tende a voltar a ele, e todos os movimentos naturais,
todos os que se produzem entre os corpos sem nenhuma intervenção de um
motor animado, são produzidos por essa causa. Todos eles tem por objeto
conduzir o universo a esse estado de equilíbrio ideal, de modo que essa
causa final é, ao mesmo tempo, sua causa eficiente." (Duhem, 1989c,
p.153-154)

Fica claro que o conceito de lugar natural na Física peripatética desempenha o mesmo
papel que o conceito de equilíbrio estável na Termodinâmica Geral, e, embora não o
diga explicitamente, podemos depreender do texto acima citado que Duhem associou a
tendência à perfeição dos seres de Aristóteles ao princípio de crescimento da entropia da
Energética.
É digno de nota, a esse respeito, o trabalho de Katalin Martinás (1991, p. 285-303),
apresentado recentemente em uma conferência sobre história e filosofia da
Termodinâmica, analisando as similaridades entre a Física aristotélica e a moderna
Termodinâmica dos Processos Irreversíveis. Nesse ensaio a autora mostra em várias
tabelas (ver Martinás, 1991, p.289, 290, 294-298) essa similaridade sugerindo
interpretar a física aristotélica como uma "fenomenologia geral" ou ainda como uma
"termodinâmica antiga". Cabe notar que Martinás não menciona em sua bibliografia o
"Physique de croyant" de Duhem. Em compensação cita o L'Évolution de la Mécanique
que é suficiente para Martinás (1991, p. 287) apontar a profunda relação da Física da
Qualidade ou Nova Mecânica duhemiana e a Física aristotélica.
São fundamentais os pontos de coincidência do ensaio de Martinás com a análise de
Duhem no "Physique de croyant".
Assim, Martinás (1991, p.290) estabelece, no que diz respeito às variáveis de estado, a
correspondência das noções aristotélicas de quantidade e qualidade com as de variáveis
extensivas e intensivas; a correspondência do conceito de lugar natural com o de estado
de equilíbrio da Termodinâmica (Martinás, 1991, p. 290); e, finalmente, a noção
aristotélica de movimento em direção ao lugar natural correspondendo ao processo
termodinâmico que almeja contrabalançar distribuições não homogêneas (Martinás,

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1991, p. 294). Nessa última analogia Duhem (1989c, p.154) no “Physique de Croyant”
fala simplesmente em crescimento da entropia.
Outras similaridades apontadas por Martinás confirmam a "adivinhação infinitamente
delicada e aleatória" (1989c, p.150) de Duhem a respeito dos rumos, não da física
teórica como um todo, mas da Termodinâmica fenomenológica como uma teoria geral
dos sistemas irreversíveis7.
Sem dúvida, a Termodinâmica Geral de Duhem pode ser considerada como um
antecedente da moderna Termodinâmica dos Processos Irreversíveis (ver de Groot e
Mazur, 1984, p.1 e Glansdorff, 1987, p.658). No entanto, cumpre-nos assinalar que -
por almejar um escopo dos mais amplos, contido no problema geral da estabilidade e
equilíbrio dos sistemas físicos e por apresentar uma base matemática das mais
avançadas, representada pelos trabalhos em equações diferenciais de Poincaré,
Liapounov e Hadamard - Duhem orientava a sua Termodinâmica Geral em um sentido
que mais se aproximava da perspectiva formal contida atualmente na teoria matemática
dos sistemas dinâmicos (Thom, 1985, p.27; Ruelle, 1993, p.63; Abraham e Marsden,
1978, p.XIX).

Referências Bibliográficas

Abraham, R. e Marsden, J. E. 1978, Foundations of Mechanics. Reading, Mass.: The


Benjamin/ Cummings Publishing Company, Inc.
Casimir, H.B.G., 1945, "On Onsager's Principle of Microscopic reversibility", Reviews
of Modern Physics, Vol.17, numbers 2 and 3, p.343-50.
De Groot, S.R. e Mazur, R, P. 1984, Non-Equilibrium Thermodynamics. New York:
Dover Publications, Inc.
Duhem, Pierre, 1896, "L'Évolution des théories physiques du XVIIe siècle jusqu'à nos
jour", Revue des Questions Scientifiques, 2e série, t.V, p.462-499.

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Sobretudo a partir dos trabalhos de L. Onsager (1931), C. Eckart (1940), J. Meixner (1941), H.B.G.
Casimir (1945) e de I. Prigogine (1947) os conceitos termodinâmicos foram desenvolvidos e aprimorados
para descrever mais adequadamente os processos irreversíveis. O conceito de produção de entropia como
o produto das afinidades ou forças generalizadas, relacionadas com a não uniformidade do sistema, pelo
fluxo, relacionada com a derivada de um parâmetro extensivo, aprofunda o quadro das analogias
estabelecidas por Duhem e que foi explorada por Martinás.

12
Duhem, Pierre, 1917, "Notice sur le titres et travaux scientifiques de Pierre Duhem
redigée par lui-même lors de sa candidature à l'Academie des Sciences (mai 1913)",
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