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EQUIPE

EDITOR CHEFE SUPORTE


Arno Alcântara Pâmela Arumaa
Alessandra Figueiredo Pelegati
REDAÇÃO E CONCEPÇÃO Márcia Corrêa de Oliveira
Marcela Saint Martin Rayana Mayolino
Marra Signorelli Douglas Pelegati
Raul Martins
FINANCEIRO
REVISÃO William Rossatto
Cristina Alcântara Joline Pupim
Douglas Pelegati
DIREÇÃO DE CRIAÇÃO
Matheus Bazzo COORDENAÇÃO DE PROJETOS
Arno Alcântara
DESIGN E DIAGRAMAÇÃO Italo Marsili
Jonatas Olimpio Matheus Bazzo
Vicente Pessôa
O CARA QUE NUNCA DORME
TRANSCRITORES Douglas Pelegati
Edilson Gomes da Silva Jr
Rafael Muzzulon
Raíssa Prioste
Tiago Gadotti

Material exclusivo para assinantes do Guerrilha Way.

Transcrição das lives realizadas no Instagram do Dr. Italo Marsili


dos dias 01/07/2019 a 05/07/2019

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COMO É A SEMANA GW
1. Assista, de preferência ao vivo, às lives diárias
pelo YT ou Instagram, às 21h30.
Canal do YT: Italo Marsili.
Instagram: italomarsili

2. Na segunda-feira, você recebe no portal GW o


material referente às lives da semana anterior.

3. Leia o seu Caderno de Ativação. A leitura do


CA não leva mais do que 15 minutos.

4. Confira no LIVES a visão geral da semana e os


resumos. Separe uns 20 minutos para isso. As
transcrições na íntegra também estarão lá.

ENTENDA O SEU MATERIAL


1. O Caderno de Ativação o ajudará a incorporar
conteúdos importantes. É um material para FAZER.

2. No LIVES estão as transcrições, os


resumos e a visão geral das lives da semana.
É um material para se TER.

3. Se quiser imprimir, utilize a versão PB,


mais econômica.

4. Imprima e pendure o seu PENDURE ISTO.

3
A SEMANA NUMA TACADA SÓ _______________ 5

O PONTO CENTRAL _______________________ 6

A FORÇA DA PERSONALIDADE ______________ 10

A ESMOLA TORNA VOCÊ MENOS MENDIGO ____ 38

4
A SEMANA
NUMA TACADA SÓ

MASTERCLASS | 27/08/2019
A FORÇA DA PERSONALIDADE
A força do ser humano está em sua personalidade, que
é o elemento que o individualiza. A personalidade só
se fortalece no amor a outro ser humano.

LIVE #82 | 30/08/2019


A ESMOLA TORNA VOCÊ MENOS MENDIGO
Precisamos dar esmola, porque ela treina nossa capa-
cidade de amar o próximo sem esperar dele nenhuma
retribuição.

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O PONTO CENTRAL
R E S U M O S D A S E M A N A

MASTERCLASS | 27/08/2019
A FORÇA DA PERSONALIDADE
A idéia de que o ser humano é um ser que nasce, cresce,
se reproduz e morre nos foi ensinada desde a escola. Po-
rém, diferente dos outros seres vivos, o homem é aquele
que consegue encontrar um sentido para aquilo que está
fazendo, que consegue se mover em uma esfera superior
à da necessidade biológica. Quem vive apenas para satis-
fazer as necessidades biológicas se frustrará, porque elas
não são a única necessidade do ser humano e um dia não
mais será possível satisfazê-las. Ver o ser humano a partir
do ângulo da necessidade biológica é condená-lo à falta
de sentido.

O animal, que só se move no campo da matéria, termina


sua vida quando morre. O homem, que deseja bens imate-
riais e se movimenta nesse campo, não termina sua vida
quando deixa o mundo material. Essa é, independente de
religião ou da falta dela, a percepção básica do que é o
homem. Considerar apenas o elemento corporal do ho-
mem é amputá-lo. A força humana não está na constitui-
ção material do homem, mas na personalidade, naquilo
que o individualiza.

A personalidade é algo que o homem vai construindo ao


longo da vida, na medida em que vive sua história. A pes-
soa que ama apenas os bens materiais terá uma persona-

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lidade pequena e não ficará muito diferente dos animais.
Para expandir a personalidade, é necessário amar algo
além disso. É necessário amar as pessoas e interessar-se
verdadeiramente por elas. As pessoas são o símbolo do
que há de imaterial e transcendente no mundo. Somente é
possível amadurecer olhando e amando outro ser huma-
no.

LIVE #82 | 30/08/2019


A ESMOLA TORNA VOCÊ MENOS MENDIGO
O argumento de que a esmola deixará o mendigo mais pre-
guiçoso é bobagem. Para entendermos a esmola, primeiro
temos de entender o que o filósofo Louis Lavelle chamou
de “ato desprovido de esperança”. Esse é um ato que é só
caridade, só amor, que não espera nenhuma satisfação. É
um ato muito difícil para todos nós alcançarmos, já que
sempre esperamos uma recompensa por aquilo que faze-
mos. Em todas as relações humanas (pai e filho, esposa e
esposa) temos a expectativa de que a pessoa com a qual
nos relacionamos aja de determinada maneira, retribuin-
do nosso amor. Nem sempre essa expectativa irá se cum-
prir, pois somos falhos.

Na esmola, temos a oportunidade de realizar um ato de


amor sem esperança. Não temos como gerar expectativa
com o mendigo, pois ele está em situação de miséria. Um
mendigo está privado da beleza, do brilho no olhar, da
dignidade humana. Muitas vezes nós também somos pri-
vados dessas coisas e nos chafurdamos na miséria estéti-
ca, na miséria moral e até na miséria financeira. Se quem
nos surpreendesse nessa situação não conseguisse enxer-
gar nossa dignidade para além da miséria, estaríamos fer-
rados. Dando esmola, treinamos a capacidade de ajudar

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alguém por sua dignidade intrínseca, sem esperar que ela
retribua de algum modo.

Nossos filhos, nosso cônjuge, nossos alunos aparecerão


diante de nós como mendigos e precisaremos entregar-
-lhes o amor abnegado. Esse amor que não espera nem
que o mendigo se torne príncipe do dia para noite, como
o sapo dos contos de fada. Para chegar a esse amor, pre-
cisamos nos livrar daquele dinheiro que está mofando
dentro do bolso e do julgamento (“ah, mas o mendigo vai
comprar cachaça, mas vai comprar droga”). Com a esmola,
aumentamos a nossa capacidade de amar e a nossa dig-
nidade, o que nos faz menos mendigos.

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Master Class | 27/08/2019

A FORÇA DA PERSONALIDADE

Eu queria que vocês fechassem tudo o que pode dis-


traí-los, porque esse assunto é da maior importância.
Como já é de costume, vamos percorrer um arco para
chegarmos à profundidade do que vem a ser a per-
sonalidade. Mais do que compreender isso, no final
das contas, vamos ganhar algumas ferramentas, para
que possamos trabalhar o amadurecimento desse
elemento que muita gente nem sabe o que é. Não es-
tou falando só de leigos, mas de muitas pessoas que
trabalham com isso (psiquiatras, psicólogos, profes-
sores, pedagogos, entre outros). Vou passar alguns
conceitos bastante claros, para que possamos che-
gar ao final desta live com um conhecimento bem
robusto e seguro, capaz de nos levar à contemplação
e discriminação do que é a personalidade e de como
podemos nos instalar neste que é o elemento central
da vida humana.

Nos últimos dias, os que me acompanharam através


do Instagram viram que fui convidado para conver-
sar com o presidente, e o que eu fiz? Postei uma foto
com ele no meu feed do Instagram. Eu já sabia o que
poderia acontecer... e botei lá um texto falando sobre
a coragem, fazendo referência ao fato de que mui-
tas pessoas, no final das contas, deixam de viver uma

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vida humana (instalada na realidade), porque estão
acovardadas diante de fantasmas. Ora, só podem fa-
zer isso as pessoas que ainda não entraram mesmo
no jogo da vida humana. Voltando, nós sabemos que
o presidente divide corações em nosso país: por um
lado, os partidários, que o odeiam, com os mesmos
dizeres (fascista, taxista etc.); por outro, aqueles da
bandeira “é o mito”. Então, essa divisão/comoção na-
cional orbita em volta do presidente. Como sempre,
os que são contra o presidente ficam me xingando de
“bolsominion” e, com graça e um pouco humor, ouço
isso tudo – o que não me afeta. Aí, falei: “A única vez
que postei uma foto aqui e falei sobre o presidente
foi em outubro de 2018, o que me levou a perder 10%
dos meus seguidores.” Nisso, eu brinquei ao dizer que
queria perder 83.000 dos meus 850.000 seguidores, o
que me levaria a ser o cara do Instagram a perder
mais gente em menos tempo só por ter postado uma
foto com um texto sobre a coragem e a centralidade
do espírito humano.

O que aconteceu? Ao longo de 2 dias, perdi 25.000


seguidores. Confesso que achei um pouco de graça,
não fiquei frustrado nem decepcionado por não ter
batido a minha meta de perder 83.000 seguidores.
Por um lado, eu perdi, realmente, uma enxurrada de
gente; por outro, foi, sem dúvida, a postagem que ren-
deu mais opinião – foram quase 20.000 comentários
naquela foto, pessoas falando algo que me chamou

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a atenção: “Nossa, Italo! Parabéns pela coragem!”. Aí
é que está o texto que botei lá no Instagram: “Muita
gente vai se paralisando na vida, porque está com
medo de... medo de... medo de quê?”. Ora, que tipo
de gente é essa que acorda – às vezes, faz ou não
uma oração –, toma seu café da manhã, vai traba-
lhar e, já em casa, ao se contemplar no espelho, não
encontra ali um centro agente... e se vê com dificul-
dade de responder à seguinte indagação: “quem foi
que viveu esse dia?”. Isso é a característica das pes-
soas que, miseravelmente, tem vivido acovardadas.
Aí, eu me interrogo: “Medo de quê? De um olhar feio?
De xingamentos? De não agradar?”. É a respeito disso
a live de hoje. Vou te dizer qual é o único antídoto
possível para que você acorde e, ao final de uma jor-
nada, consiga se olhar no espelho sem aquela pre-
tensão do D. Quixote, que fala “eu sei quem eu sou” –
estou bem antes... um, dois, três passos atrás disso. Só
quero que, no final da live de hoje, você compreenda
qual é o elemento da vida humana que nos faz ter
uma substância... um centro... possibilitando que a
gente aja em primeira pessoa e, ao final de uma vida,
nos leve a olhar a nossa história e falar “eu consigo
entender a vida dessa pessoa que sou eu, que, de al-
gum modo, mesmo com dificuldades, frustrações, va-
cilações, claudicações e tropeços, tentou viver mes-
mo em primeira pessoa – que é o único tesão real da
vida. É a respeito disso que falaremos hoje, ou seja,
da personalidade – elemento que nos devolve uma

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certa coragem, tira uma certa covardia do nosso pei-
to e faz com que nos instalemos naquela trama da
existência humana chamada ação pessoal.

De fato, quero te entregar uma coisa que está no meu


coração mesmo – uma coisa sobre a qual medito há
muito tempo... não só da meditação e da contempla-
ção das coisas que acontecem, mas de uma experiên-
cia recolhida ao longo de anos atendendo gente “de
carne e osso”, com dramas reais e não apenas ques-
tões e teorias de livros (Teologia, Metafísica, Sociolo-
gia etc.). Não! Dramas de pessoas de carne osso (ma-
ridos, esposas, filhos, professores, alunos), ou seja,
pessoas que, diante das demandas da vida, encontra-
vam em si uma certa moleza, uma certa passividade
– não a boa, do sujeito humilde, mas aquela passivi-
dade de pessoa mole/fraca. É isso que eu não quero
para quem está aqui conosco.

Há praticamente um século, acontece uma coisa na


percepção do que é o homem, que faz com que ho-
mens e mulheres, dia a dia, levantem de suas camas
enfraquecidos. Mas que coisa é essa? Dificilmente,
algo que aparece em nossas cabeças foi criado por
nós, do tipo “Ah, Italo... eu estava aqui e, de repen-
te, veio uma ideia”. Nem com gênios isso acontece.
Então, em geral, só estão na nossa cabeça aquelas
coisas trabalhadas, extensamente, há décadas numa
discussão que aparece entre intelectuais – não ne-

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cessariamente nas universidades, que hoje, infeliz-
mente, não dão conta de produzir material realmente
intelectual. Atualmente, o grande debate intelectual
acontece, em regra, à margem da universidade. Mas
o que importa mais agora é sabermos o seguinte: no
início do século XX, em meados dos anos 1910, começa
a circular de modo mais arranjado e consistente uma
percepção sobre o homem, que não o visualiza mais
como um ser simbólico/espiritual (que tem tanto a
dimensão material como a espiritual), mas como um
ser amputado das suas faculdades superiores, qua-
se biológico (que nasce, cresce, se reproduz e morre)
– quem nunca ouviu isso nas aulas de Ciências da
época da 4ª série? Pare pra pensar sobre essa visão
triste: se o homem é aquele bicho que nasce, cresce,
se reproduz e morre, então não há diferenças entre
nós e uma minhoca, uma ameba ou uma samambaia.
Afinal, vegetais e animais inferiores também passam
por esse ciclo. Se é disso que trata a vida humana, es-
tamos “muito mal das pernas”.

Quando paramos para olhar a vida de uma pessoa pri-


vada de educação, liberdade, sonhos, mesmo assim,
conseguimos ver que ela não é só isso. Por exemplo,
ao longo desses dias, eu comentei sobre a história
de um sujeito chamado Maximiliano Kolbe, alguém
que muitos não conhecem. Ele foi um sujeito desses
que são grandes, amplos e fantásticos, que nos dão
a dimensão do que é uma vida humana. Muitas pes-

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soas conhecem a história do Dr. Viktor Frankl – que
eu já mencionei muitas vezes, aquele psiquiatra que,
no campo de concentração, pela observação e inti-
midade com o centro do seu coração e por um olhar
quase obcecado com a maravilha do que é humano,
desenvolve o que vem a ser a logoterapia, ou seja,
a cura pelo encontro e pela vivência do sentido da
vida. É uma história divulgada – Graças a Deus! –,
vejo até nos meus históricos do Instagram um monte
de pessoas – inclusive de outros campos do saber
– lendo os livros deles sobre a busca do sentido da
vida. Porém, há uma série de biografias desconheci-
das, histórias de pessoas também privadas de liber-
dade e esperança – pois sabiam que iriam morrer –,
que faziam atos como o do Maximiliano Kolbe.

Esse sujeito, no campo de concentração de Auschwitz,


presenciou o seguinte: numa certa manhã, três judeus
conseguiram fugir desse campo de concentração. Os
guardas foram atrás deles e não os encontraram. Re-
tornaram, então, e avisam ao comandante na época,
que resolver dar uma punição aos judeus: “Se três fu-
giram, dez serão sacrificados. Esses dez animais de-
vem ser trancados numa cova de 2 metros quadra-
dos, sem luz, água e comida e com pouco oxigênio,
convivendo com excrementos até que todos morram”.
Diante dessa cena – em que eles seriam enterrados
vivos –, enquanto caminhavam para a cova, um de-
les, o Frank, gritou: “Piedade! Tenho mulher e filhos!

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Preciso cuidar deles” – observe que esse sujeito, com
seu grito de clemência, demonstrou ainda um pou-
co de esperança, que o nutria no campo de concen-
tração. Então, Maximiliano Kolbe, ao olhá-lo, analisa
que não tem família e, num ato de generosidade, olha
para o sargento alemão responsável e diz: “Deixe-me
ir no lugar dele! Poupe a vida desse miserável que
tem mulher e filhos e precisa cuidar deles em casa”.
O sargento, num ato de sarcasmo, atendeu ao pedi-
do: “Troca aí! Para mim, tanto faz. Todos são bichos!”.
Então, Kolbe é jogado na cova com aqueles outros
nove homens. O coveiro inventariante, que abria e
fechava a cova de dois em dois para olhar e reportar
quantos haviam morrido, falou: “Não conseguia en-
tender o que acontecia com aquele sujeito chamado
Maximiliano Kolbe. Eu entrava naquelas covas e sen-
tia um clima de paz, quase um clima de alegria, uma
consolação na tragédia”. A presença de Kolbe, de al-
gum modo, tinha algo em si que o coveiro não sabia
dizer, mas confortava os outros. Quando este olhava,
os prisioneiros estavam orando e entoando cânticos
e hinos, esperando o destino deles – quase que re-
confortados pela presença de uma personalidade.

O que fazia Kolbe ser capaz de acalmar aqueles co-


rações e dar consolação naquela tragédia, mesmo
naquela circunstância desumana? Ele tinha um cul-
tivo de um algo de seu espírito e de sua biografia
que chamamos de personalidade. Maximiliano Kolbe

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conversava com aqueles sujeitos e contava histórias
acerca do que é a vida humana e a própria divinda-
de – inclusive os batizou. Depois de 21 dias insistindo
em voltar e olhar, o coveiro voltou e ainda encontrou
Kolbe com um olhar sereno, fazendo o que era neces-
sário.

Uma vez, Viktor Frankl falou a mesma coisa para um


dos condenados à execução na câmara de gás. Na
época, o comandante do campo de concentração fa-
lou: “Fale lá uma coisa para o sujeito que está para
morrer”. E Frankl falou: “Não importa se você vai vi-
ver por mais 2 minutos ou 20 anos. É necessário en-
contrar sentido nisso que você está fazendo”. Agora...
essa aqui é toda a história da nossa live: aquelas con-
cepções teóricas que mostram o homem como um bi-
chinho que está no mundo para comer, beber e ser
feliz com essa felicidade canina... ganhar dinheiro,
sair com mulher, festejar... tudo isso é muito bom! É
óbvio. Mas essas concepções que dizem que apenas
isso é o ser humano são um caminho seguro para a
fraqueza. Por quê? Se Kolbe e aqueles sujeitos tives-
sem essa visão sobre vida humana, o que acontece-
ria com eles? Eles teriam um enfraquecimento total,
porque eles foram privados de tudo isso – e sabiam
disso; afinal, quem entrava no campo de concentra-
ção, ficava marcado por uma história assombrosa.

Mas, Maximiliano Kolbe e Viktor Frankl, sujeitos que

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saíam mais fortes do campo de concentração, tinham
algo que falta nas concepções teóricas – fracas, no
final das contas – da contemporaneidade. Eu quero
que você veja o mesmo que eu e esses sujeitos vemos
– o que toda a tradição viu. Exercício: fome é a mesma
coisa que vontade de comer? A fome dá na barriga!
Se você está com fome mesmo, um pão velho serve.
Às vezes, por estar na academia, num engarrafamen-
to, fazendo jejum, por exemplo, você acaba sabendo
o que é fome. Ela dá na barriga, e qualquer coisa ser-
ve para saciá-la. Agora, o que é vontade de comer?
Isso é fundamental para entender a força do que é a
personalidade. Vontade de comer é um outro movi-
mento. Ela dá na cabeça (num lugar que não é ma-
terial). Às vezes, você termina de se alimentar (pizza,
fondue, salada, sushi) e acha que não está satisfeito.
Isso já aponta para nós um certo de domínio do ser
humano. E olha que vontade de comer tem a ver com
coisas materiais, ou seja, com comida (uma coisa que
está neste mundo).

Há outras vontades que, necessariamente, não têm a


ver com o mundo da matéria. Por que você não vai
ao museu, por exemplo? “Ah, Italo, só vou porque mi-
nha namorada me chama e tenho que ir”. Mas por
que ela quer ir? Porque ela tem uma sensibilidade
estética, ou seja, gosta de olhar a beleza – você não é
bonito mesmo. Então, quer ver a beleza dos quadros
e das esculturas. Um dos motivos de se viajar é ver as

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coisas bonitas de um determinado lugar. Realmente,
a beleza nos deixa felizes devido ao seu elemento de
conforto. É bom ver coisa bonita!

Nós também achamos que beleza é uma coisa relati-


va, ou seja, uma construção social. Mas isto também
é uma perda da percepção do que é belo – até reco-
mendo que você assistam ao documentário Why Beau-
ty Matters?, apresentado pelo filósofo Roger Scruton.
Mas o que é a beleza? É um conjunto de proporções
estabelecidas. Ora, proporção é uma coisa que tam-
bém acontece no mundo espiritual. O homem tem
vontades dirigidas à matéria. A fome é uma necessi-
dade de comer. Já a vontade de comer foi produzida
na sua mente. Temos também vontades superiores,
como contemplar o belo/a beleza. Existem vontades
que não se dirigem apenas à beleza, mas ao bem – o
que cria um certo estado interior. A maior parte de
nós sabe que é melhor fazer o bem ao invés de fa-
zer o mal. Quando fazemos coisas boas, produzimos
e ficamos fortes, o que nos leva a ter um ambiente
interior capaz de levar ao surgimento de coisas que
antes não apareciam. Há pessoas ainda que não se
contentam com isso, então precisam investigar e co-
nhecer o que é a verdade das coisas.

Veja que interessante! Toda essa percepção tradicio-


nal se perdeu nas Escolas de Psicologia da contem-
poraneidade. Nós sempre soubemos que o homem

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tem não só uma dimensão de necessidades materiais,
mas também um desejo (movimento/inclinação para
algo), que te dá vida. Primeiramente, você tem uma
vida orgânica, isto é, fome, ir ao banheiro, cobrir-se
ou tirar a blusa são vontades materiais do corpo, coi-
sas que produzem movimentos. Depois, temos outros
desejos, relacionado com essas coisas materiais, ou
seja, vontade de comer não é igual a fome. Por fim,
há desejos (movimentos) dirigidos a elementos ima-
teriais – a beleza, o bem e a verdade. Isso é do cace-
te! Olhar o ser humano assim nos coloca num lugar
muito diferenciado.

Se perdemos essa capacidade de ver o ser humano


como essa pessoa que tem movimento no domínio
transcendente/superior (da verdade, do bem e da be-
leza), ficamos fracos, pois nos sujeitamos ao império
da matéria – por exemplo, o campo de concentração.
Ao perdermos a capacidade de compreender o ser
humano como esse bicho que consegue, indepen-
dentemente das privações materiais, dirigir seus mo-
vimentos para a apreensão dessas coisas que pairam
sobre o movimento do mundo – ou, simbolicamen-
te, que estão na profundeza, independentemente do
chacoalhar da superfície da água –, isto é, essa capa-
cidade tanto de profundidade quanto de elevação do
ser humano, achatamos a vida humana no domínio
do império da matéria, levando a uma vida de de-
sespero. Por quê? Nós sabemos que sempre haverá

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dor de dente, hemorroida, fome, empurrão dado por
alguém etc. A nossa vida diária será sempre assim!
Num lugar como um campo de concentração, só há
isso.

Imagine a vida do Maximiliano Kolbe nos últimos 21


dias de vida: ele ficou convivendo na cova com pes-
soas morrendo a cada dia, excrementos, frio, vermes.
Mas por que ele continuava forte? Aí, volto à pergun-
ta que postei no Instagram: medo de quê? O que vai
acontecer comigo por ter postado uma foto com o
presidente na timeline? Vai surgir uma meia dúzia
de peludinhas falando “fascista”? Isso é ridículo! Ou,
por exemplo, no seu trabalho, se surgir uma injustiça,
você não vai se posicionar com calma, a fim de de-
fender o injustiçado? Numa festa de família estão fa-
lando da sua tia... você não vai se posicionar em prol
dela, que te ajudou na infância?

A nossa fraqueza vem da falta da nossa hierarquia de


valores, ou seja, do que o homem pode ser. Se consi-
deramos o homem apenas como uma massa corpo-
ral (pele, carne e osso), a vida nesse mundo será ape-
nas uma busca por conforto e prazer – e você ficará
muito triste. Atendi muitas pessoas ricas na minha
experiência clínica. Nós sabemos que dinheiro, po-
der e fama não dão conta de curar uma hemorroida
ou fazer uma pessoa sentir menos frio do que outra
pessoa – vivemos no mesmo mundo. Câncer e gri-

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pe aparecem para qualquer um! É claro que os mais
ricos têm mais acesso a determinadas tecnologias
médicas, mas o destino final do homem, no limite, é
morrer feio, cuspindo sangue, com falta de ar, numa
cama de hospital cheio de fios furando a jugular e as
veias. “Ah, Italo! Vou morrer como um passarinho, à
noite, dormindo”. Então, você será um velho caqué-
tico e sem forças. Se o sujeito morre assim, é porque
tem alguém limpando a bunda dele há décadas. Esse
estado de privação material aparece tanto para ricos
quanto para pobres. Aparece para famosos e anôni-
mos, ou seja, todos os indivíduos. No último instante
da sua vida, isso vai aparecer.

As concepções teóricas que apostam que o homem


é só isso são profundamente pessimistas. O destino
das pessoas que embarcam nisso é a tristeza. Olhe o
que estamos tratando aqui: o arco da vida humana,
para entendermos o que é a personalidade. Se a vida
humana é só “evitar sofrimento e buscar conforto ime-
diato”, já vimos que não dá certo. Notamos que exis-
tem pessoas que não vivem assim e têm mais intensi-
dade, entrega e densidade de felicidade na vida. São
pessoas que, realmente, servem para alguma coisa.
Já estou dizendo que existem outras duas dimensões
no homem: um movimento de coisas ainda materiais,
produzido não mais no corpo, e um movimento de
coisas imateriais transcendentes, da verdade, do bem
e da beleza. Esse é o arco do homem!

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Se existe movimento no campo imaterial, ou seja, no
seu espírito, um movimento da vontade – que é ima-
terial, não está em lugar nenhum –, então o homem
tem vida – o que define a vida é o movimento. Isso é
o que falta nas doutrinas de Psicologia e Sociologia
contemporâneas. Então, mesmo quando o homem
não tiver mais corpo, ele continuará se movimentan-
do, visto que esse movimento não depende do corpo.
Equivale a dizer o seguinte: o nosso arco de vida não
acaba na morte – isso não tem a ver com religião, é a
percepção básica do homem. Movimento é o que de-
fine vida. Se existe um movimento imaterial, ou seja,
da vontade/da psique), existe um movimento na di-
reção da verdade, da beleza e do bem (que são ima-
teriais), ora isso é profundo demais. Eu preciso que
você venha comigo, para entender onde está a ver-
dadeira força do ser humano – em qual eixo temos
que construir a história da nossa personalidade.

Se a visão é “só tem movimento na carne”, quando


morre acaba tudo. Que tristeza! Mas já vimos que há
movimento num domínio imaterial. Quando seu cor-
po for tirado – devido a um tiro ou câncer, por exem-
plo –, você continuará com vida. Eu nem gosto do ter-
mo “vida pós-morte”, porque, na verdade, o arco é o
mesmo, ou seja, uma vez que se entra, não se sai mais.
O que acontece não deixa de acontecer Entrando na
existência, você continua nela. Uma folha que ba-
lançou, balançou para sempre. Uma pedra que caiu,

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caiu para sempre. Não estou dizendo que a pedra
continua caindo; ela está caída, ela é. E nós também.
Nós continuamos como? Continuamos com vida, ou
seja, com movimento. Como isso deixa de aparecer
nas concepções psicológicas contemporâneas? Não
há nenhuma técnica de psicologia, religião, cough
etc. capaz de sustentar os anseios, os movimentos e a
densidade do que é ser humano. Essa é a coisa para
nós!

Então, o que é essa força que está na personalidade?


Em primeiro lugar, já contamos o que é o tamanho
de uma pessoa – estamos esquecidos disso. Pode-
mos olhar para uma pessoa e só vê-la com desejo se-
xual, vermos um filho pequeno e pensarmos em cui-
dar dele, olharmos para um professor e pensarmos
na nota 10 da prova. Esse não é o tamanho de uma
pessoa, ela é muito mais do que isso! A pessoa está
inscrita nessa totalidade absoluta e infinita – um ab-
soluto e um infinito que são, portanto não saem mais
da existência, têm ser; aquela porra é; você é; a pedra
caiu, então é. Isso é muito bonito! Estamos aqui numa
densidade do real de que se fala muito pouco. E é
nessa vida que estamos inscritos – e não em outra –,
que tem um início e, assim, entra no reino do absolu-
to, do infinito e do eterno. Volto a falar: é uma pena
que as linhas teóricas que olham para o homem não
deem conta de notar isso.

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Quando olhamos para toda a doutrina psicanalítica
freudiana, mesmo sendo fantástica por contar sobre
uma parte da vida humana, um ferramental teórico
que deve ser utilizado por aqueles que trabalham
com pessoas, percebemos que é uma tragédia, algo
devastador. Toda uma literatura demole a concepção
do que é o homem para o Freud. Por exemplo, Paul-
-Laurent Assoun, em Introdução à Epistemologia Freu-
diana, que é um grande livro, faz uma análise cientí-
fica acerca de como Freud vê esse homem – que não
é um homem, é um bicho deformado, criado, talvez, à
imagem e semelhança do próprio Freud. Há também
a obra Freud: Crepúsculo de um ídolo, de Michel On-
fray, de perspectiva similar, só pra citar aqui. As duas
obras mostram que falta rigor científico, metafísico,
ontológico e simbólico, então não se poder levar a
sério no sentido de que “isso aqui é o homem”. É só
um modelo teórico que serve para tapar certos bura-
cos. Ao passo que o arco da vida humana foi sempre
intercambiado e visto assim ao longo de toda a tra-
dição, desde os gregos pré-socráticos até os contem-
porâneos que, de fato, estão instalados na visão do
que é realmente o homem. A obra Psicologia, um dos
melhores livros da área, escrito no século XX, é de um
brasileiro, o Mário Ferreira dos Santos, que faz uma
análise, descrevendo o que é o homem. É fantástico!

Vamos fazer uma distinção aqui entre temperamento


e personalidade. O temperamento é um elemento mi-

25
neral específico do homem, podendo ser sanguíneo,
colérico, fleumático ou melancólico. Você nasce com
um desses e fica até o final da vida. Se isso aconte-
ce (ele não muda), ele não é um elemento histórico,
isto é, não é o elemento que te define. Você não é o
seu temperamento! Você o tem, mas ele não te define.
Obviamente, ele é mais complexo, mais interior do
que a cor do cabelo ou a altura, por exemplo. O tem-
peramento é um filtro, por meio do qual você recebe
e entrega de modo mais expansivo, contraído, úmi-
do (envolvente) ou seco as percepções do mundo. O
que não vai mudar é temperamento! Agora, a perso-
nalidade é aquele componente que te individualiza.
É como uma impressão digital da sua pessoa, algo
próprio, só seu. Por isso, ela é a sua força no final das
contas. A personalidade é o seu componente históri-
co, que você desenvolve ao longo da sua trajetória.
Ela vai amadurecendo e se ampliando, ganhando, as-
sim, uma forma. E é isso que as pessoas reconhecem,
quando te olham.

Miseravelmente, vivemos num tempo de pessoas


com pouca personalidade – entre outros aspectos,
isso acontece por existir a concepção de que o ho-
mem é só um “bichinho” que busca o prazer e foge
da dor, e é óbvio que todo mundo faz isso, ninguém é
idiota ao querer a dor pela dor. Nós vimos que, além
das demandas materiais, o homem tem outras coisas
para desenvolver: as vontades que se dirigem para

26
as coisas materiais e as vontades de verdade, bem
e beleza. Uma pessoa que acorda e dorme só bus-
cando esse domínio (frequência, vibração) – botan-
do apenas isso para dentro da própria história e de-
monstrando que só isso marca a totalidade do dia
dela – terá, então, pouca personalidade. Por quê? Aí,
evocamos aquela sentença do José Ortega y Gasset –
que é mais do que uma frase, é toda uma ideia, todo
um panorama existencial –, que fala: “Eu sou eu e mi-
nhas circunstâncias”.

Preste atenção! Estamos inscritos numa circunstân-


cia que é fome; em outra, que é vontade de comer e
ainda em outra, que é bem, beleza e verdade. Se você
só põe para dentro a circunstância “fome”, ou seja,
essa luta entre prazer e desprazer, você será você
mais essa circunstância. Então, sua personalidade
será bem pequena. Sua história será escrita com es-
ses elementos. Entre você, um tatu bola e uma for-
miguinha não vai haver muita diferença. Claro que
há uma diferença total de possibilidade, afinal você
pode ser herói, santo, crápula ou ditador – tendo, as-
sim, uma amplitude enorme – mas, ao escolher só
essas coisinhas, você fica pequeno.

Agora, se a aposta da vida passa a ser o convívio com


o bem e a verdade, quando você começa a buscar os
domínios superiores – deixando de reclamar, como
sempre falo, pois você passa, assim, a dar atenção

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para calor, frio, fome, coceira, meleca escorrendo,
ou seja, só para essa vibração que não te distingue
dos seres inferiores. Quando eu te oriento a parar de
reclamar, estou apontando sua atenção para um lu-
gar um pouco superior, no qual passamos a conviver
não mais com nossas circunstâncias materiais, e sim
com gente – e essa é a coisa desta live. É no conví-
vio humano – no confronto com uma e outra pessoa
de carne e osso – que a nossa vida vai acontecendo.
Quando esquecemos a maravilha que é ter uma pes-
soa ao nosso lado – a quem podemos entregar nosso
serviço, coração, olhar, afeto e inteligência –, toda a
nossa atenção volta-se para a conquista e o medo de
perder as coisas materiais. Então, a abertura do olhar
para o ser humano, ou seja, para quem está ao nosso
lado, não é algo opcional para nós. O ser humano é
um animal político, não no sentido de quem vota no
PT ou no PSL, mas político de pólis, no sentido grego
do termo, é um bicho que convive, vai para a ágo-
ra (praça pública) falar, conversar, se expor, colocar
suas ideias em jogo.

Agora, quando nos amedrontamos com tudo e nos


preservamos, apenas buscando sentir coisas boas,
não conseguimos conviver com o ser humano. Por
quê? Aqui é que precisamos perder o medo, afinal
não temos opção no final das contas. É porque a coisa
está feita. Quando nos relacionamos com carro, celu-
lar, dinheiro, projetos de carreira e de viagem, aquilo,

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de algum modo, está amarrado – pegamos a totali-
dade da coisa. Por mais que haja frustração com um
projeto de carreira, o projeto em si foi previsto por nós
com a nossa mente. Quanto à viagem, nós fazemos
roteiro de viagem. E coisa, então? “Ah, comprei um
carro”. O próprio relacionamento com um animal... eu
adoro cachorro, mas prefiro gato. O cachorro é mui-
to diferente dos outros animais. Ele tem uma capa-
cidade de receber afeto que o leva a quase parecer
com pessoas. Mas é quase! Ele não é gente ainda. Por
mais que o seu labrador, por exemplo, seja diferente
do da vizinha, o dela é muito parecido com o seu. Ele
faz as mesmas coisas que todo labrador faz. Diante
disso, não é pra ficar triste, pensando “Ah, meu Deus,
não consigo mais olhar para meu labrador e amá-lo”.
Deixe de ter o coração pequeno! O bichinho está aí
para ser amado e também expandir seu coração!

Agora, preste atenção! O labrador, exceto pela mor-


te dele, não te traz aquele incômodo. Por isso, mui-
tas vezes é mais fácil amar um bichinho do que uma
pessoa. O labrador não te traz aquele incômodo da
incompletude, da vulnerabilidade que a relação com
outro ser humano nos traz. O que é amar uma pes-
soa? É apostar no absurdo, no ridículo e no cafona. O
amor a uma pessoa é sempre a abertura do coração
para uma coisa a qual não estamos vendo, ou seja,
não vemos a vida completa do outro lado, porque,
realmente, ela não está completa – diferente das coi-

29
sas e dos animais. O coração humano só se dilata, no
limite, isto é, só ganha a amplitude da transcendên-
cia do desconhecido que brilha na sua magnanimi-
dade, quando a gente, de fato, invade esse domínio
do absoluto, infinito e eterno. Para nós, que estamos
aqui de carne e osso – mesmo para os religiosos –, só
aparece no confronto entre olhares. Isso é o que dá
força para o ser humano. É a aposta em colocar para
dentro da nossa biografia não só aqueles elementos
materiais, mas também os elementos de transcendên-
cia (de absurdo, infinito, absoluto, eternidade), que só
aparecem para nós através do convívio verdadeiro
com outro ser humano. É só olhar para a nossa histó-
ria: tanto as partes resplandecentes quanto as partes
profundas, cavernosas e negras apareceram quando
perdemos o carro ou fomos demitidos, ficando sem
dinheiro? Apareceram porque falhamos diante de al-
guém ou porque alguém falhou conosco, nos traiu,
estendeu a mão, nos amou.

Naqueles momentos da minha história juvenil, o pri-


meiro empreendimento que fiz – com uma finalidade
amorosa –, e acabei falindo, ali eu fui confrontado
não só com a perda material de dinheiro, mas tam-
bém com todo um abismo e uma magnitude resplan-
decente de gente. É essa abertura para o convívio hu-
mano que dá uma dimensão profunda do que somos
e do que podemos ser. A primeira coisa aqui da live:
as pessoas que se fecharam para o amor e o convívio

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humano, que não estão comprometidas em conviver,
olhar, se abrir, conversar e perdoar, ficarão fracas. Por
isso, elas andam inseguras e com tanto medo, cho-
rando e procurando, muitas vezes, os consultórios –
sem a possibilidade de redenção, pois esta não es-
tará numa técnica específica de análise, na medida
em que só se procura a si. A redenção, a cura e o pro-
gresso estão na abertura para a outra pessoa, ou seja,
para quem está do seu lado (sócio, funcionária, chefe,
marido, esposa, filho). Por quê? Porque essa abertura
através do olhar é que nos inscreve e nos dá esse do-
mínio amplo do que é a vida.

“Italo, como posso fazer isso na prática?”. Por um


lado, no aulão sobre as 12 camadas da personalida-
de, que ministrei para o pessoal inscrito no Guerrilha
Way, descrevi o itinerário da progressão (a camada 1
é inferior à camada 10 etc.), um itinerário de amadu-
recimento. Mas aqui tem uma técnica básica, quase
um pré-requisito para isso tudo acontecer, indepen-
dentemente da camada em que o sujeito se encontra.
Mas, se você não sabe o que é camada, não tem pro-
blema. Não estou falando disso agora.

Voltando, o convívio com coisas dá uma personali-


dade muito pequena. Com bichos, sobretudo os su-
periores, como os cachorrinhos, o convívio já dá uma
abertura. Os cachorros conseguem absorver o nosso
afeto, por isso é óbvio que muita gente sofre quando

31
perde um cachorro – o seu afeto estava direcionado
ao ser vivo que poderia recebê-lo. Mas não se entris-
teçam comigo! O seu cachorrinho é muito parecido
com os demais. Os cães de caça caçam; os de guar-
da, guardam; os de madame, passeiam no shopping.
É igual. Os seres humanos são esses bichos que têm
uma amplitude imensa. É nesse convívio de homem
a homem e mulher a mulher – nessa abertura para o
outro – que a coisa se dá.

Qual é o primeiro passo da abertura, para ganharmos


uma força real, capaz de nos abrir? Primeiramente, o
que é a vida humana? É só essa vida orgânica mate-
rial? Não! É uma vida que tem um arco que começa
e não termina, porque o que é, é. Esse “é” também
tem um domínio de movimento (vida) imaterial, isto
é, mesmo ao perder o corpo, você continua vivo. Isso
não tem nada a ver com religião ou crença. É uma
observação primária e uma constatação metafísica.
Você continua vivo (com movimento), ou seja, con-
tinua sendo a Joana, a Bruna, o Pedro. Isso é a vida
humana!

Como ter personalidade? Ou seja, no dia que você


morrer, como continua robusto, sólido, amplo e ple-
no? Mesmo se você estiver privado de conforto e se-
gurança material, como continuar vivo? A abertura
para uma pessoa é uma condição sem a qual não se
pode ser humano. Nós sabemos disso! O ser humano

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é o único mamífero que tem uma mãe que, ao ama-
mentar, já dá um indício do que é a vida humana.
Já viu uma porquinha amamentando? Com ela deita-
da, os porquinhos vão lá, mamam e vão embora – os
olhos deles, inclusive, batem na barriga da mãe. A
teta do animal fica embaixo. Os seios da mulher pos-
sibilitam um contato visual durante a amamentação.
A vida humana adulta, madura, acontece num ato de
generosidade. Na amamentação, nós dependíamos
de alguém que, generosamente, se doou para nos
sustentar. Isso é a vida humana madura. Perder essa
dimensão é uma tragédia, pois perdemos toda a for-
ça.

Como, então, pegar a personalidade? Ou seja, como


pegar o que temos de próprio, o que colocamos para
dentro – lembra do “eu sou eu e minha circunstância”?
Se você deixa passar toda a circunstância de bem e
de verdade – transcendentes –, o seu eu vai ficando
pequeno, o que te deixa fraco e amedrontado. Aqui,
já dissemos: uma das formas de tocar nessa transcen-
dência/abertura (absoluto, eterno) é procurar neste
mundo aquilo que é símbolo, sinal e presença, ou
seja, aquilo é imagem e semelhança do absoluto, in-
finito e eterno. Ao fazer isso, seus olhos só vão bater
em gente. Os seus olhos precisam procurar! E como
essa relação se estabelece? Afinal, vamos encontrar
ao lado pessoas caducas, que estão mal, não amam
mais e estão com um “coração minúsculo”. Como co-

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meçamos a destravar o desamor que habita por aí?

Aqui, nós temos uma técnica bem simples, mas pro-


funda demais. Se você é uma pessoa sem desejo pro-
fundo de implicância, seria bom ser feliz, né? Culti-
var uma certa esperança... ela é um elemento central
da vida humana... é fundamental. A gente espera
um algo de felicidade, que muitas vezes o véu deste
mundo encobre e não conseguimos achar. O que nas
relações entre pessoas pode abrir essa dimensão da
felicidade e da esperança? Uma coisa simples, mas
profunda demais: sorriso. A sua cara fechada, essa in-
sistência em cultivar cara de bunda nos lugares (lar,
trabalho, festinha de família, faculdade, condomínio,
rua), fechando os lábios para não mostrar os dentes...
essa insistência na regra e na moralidade mal com-
preendida, isso tira a sua humanidade e o desejo de
que convivam contigo. Você se torna símbolo não
mais do absoluto, mas do que está chapado, da falta
de esperança e do desamor.

Pense: nenhum bicho sorri. O sorriso humano tem


tantas nuances quantas são as promessas de felici-
dade eterna. O cachorro não sorri, ele pula em você
e abana o rabo. O peixe é uma planta sem caule. Os
bichos não riem. Pedra não ri. Planta também não ri.
Gente sorri! Nós, às vezes, não sorrimos, como quem
diz: “Ou estou apostando numa vida canina ou de pe-
dregulho ou infernal”. Então, a abertura do sorriso na

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sua cara é um dos elementos de abertura de espe-
rança, de fluidez de relacionamento.

Há gente que é boazinha, não faz nada de errado,


cumpre a regra... como aquele personagem do seria-
do A Grande Família. O bom profissional do departa-
mento, que nunca fez bem ou mal para alguém, as-
sim como uma máquina, cumpre regras. Esse não é
o sujeito que te abre o tesão de viver, a esperança e
o incômodo do confronto com a tua miséria, dessa
coisa pequena que você tem insistido em ser. Qual é
esse ingrediente humano da adesão, que te faz que-
rer estar... querer ser? É esse elemento de desafio, e
a esperança te desafia. Ela te chama para um lugar
mais alto e para assumir uma postura diante da vida.
A esperança te chama, para que você não coloque
dentro da sua história só os elementos materiais – de
fugir do que dói e aderir ao que não dói.

A esperança te chama para viver esse conflito de


descobrir o bem e tocar na verdade – esse drama/
sistema da vida humana. Isso é maravilhoso! É algo
sem o qual não conseguimos ser humanos. Esse
exercício de abrir os olhos e sorrir para alguém que
está ao lado é fundamental. Outra coisa fundamen-
tal para sair do império da matéria é se livrar dessas
pendências afetivas diminutas. Por que diabos você
não manda uma mensagem para seu Tio Carlos, que
naquele churrasco de 1998 fez piada sobre o Flamen-

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go na frente de todos, no aniversário da Vanessinha,
mesmo sabendo que você é flamenguista? E você
não fala com ele desde aquela época. Esse apegar-se
rancoroso é um cultivo que te diminui e te impede
de sorrir e ficar tranquilo na vida. Você deve sorrir
e matar essas pendências afetivas! Você deve man-
dar uma mensagem de Whatsapp para seu tio: “Tio
Carlos, eu te amo! Vamos comer uma pizza! Foi mal!”.
Mande para a sua tia: “Tia Cristina, você me desculpe
aí!”. Mate essas pendências que impedem seu sorriso.
Elas te deixam preocupado com coisas deste mun-
do. A coisa passou, é um efeito remoto de um incô-
modo no peito que não tem razão de ser mais. “Ah,
Italo! Mas você está simplificando muito”. Mas é isso
mesmo. Estou simplificando o que é simples, para po-
dermos aprofundar no complexo. Uma grande parte
do meu trabalho aqui é “não dourar a pílula”, como
o pessoal fala. É não colocar “mais cabelo na peru-
ca”. É reduzir os problemas que não são problemas.
Como é que você pode ter força na personalidade e
conseguir ter uma vida, ou seja, “eu sou eu e a minha
circunstância”, se você, voluntariamente, entrou nes-
sa circunstância de tristeza, rancor e peso afetivo que
já passou? Você vai ser isso no final. Lembre daquele
verso: “Transforma-se o amador na coisa amada”. Se
seu amor, sua atenção e seu olhar nesse mundo fo-
ram para rancor, picuinha e tristeza, em que você se
transformará? Num sujeito medroso, fraquinho e pe-
queno, que não botou para dentro da personalidade

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aquelas dimensões superiores da beleza, da verdade
e do bem. O que estamos fazendo nesta live é faxina,
é limpeza. O esfregão e o sabão se chamam sorriso
e matar rancor. Essas são as armas contra esse de-
samor, o que precisamos para ter neste mundo uma
personalidade ampla, plena e feliz.

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Live #82 | 30/08/2019

A ESMOLA TORNA VOCÊ


MENOS MENDIGO.

Voltamos com tudo ao nosso trabalho. Retomaremos


hoje um assunto de fundamento que é muito impor-
tante: esmola. Não sei por que voltaram com esse as-
sunto agora, mas era algo sobre o que eu já iria fa-
lar com vocês, mesmo. Digo isso porque um pessoal
estava me escrevendo aqui pela caixa de perguntas
do Instagram, e, não sei por qual razão, parece que
desandaram a tratar do assunto de esmola para men-
digo, dizendo o seguinte: “Olha só, Italo, eu estava
dando esmola para mendigo e não senti nada, coisa
nenhuma. Dei a esmola e continuei me sentindo do
jeito que estava me sentindo antes”.

Olha só, pessoal, vamos entender uma coisa aqui que


é fundamental na nossa vida para continuarmos ca-
minhando neste mundo. É o seguinte: a esmola para
mendigo tem várias funções, várias mesmo. Eu sei que
há uma série de teorias, e um monte de gente olhan-
do por aquele lado social que diz “Ah, mas se você
der esmola para o mendigo, ele continua na mesma
situação, o mendigo não vai querer procurar um tra-
balho, você alimenta a miséria.” Isso é tudo bobeira,
é coisa de gente que nunca viu um mendigo na vida.

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Nós vivemos num mundo -- e é assim desde que o
mundo é mundo -- no qual o ato humano não é des-
provido de esperança.

Louis Lavelle, um filósofo francês, foi quem disse que


o ato humano perfeito é o ato desprovido de esperan-
ça; isto é, o ato no qual só a caridade e o amor estão
presentes. Isso é difícil para cacete, porque sempre
que estamos agindo com as pessoas, esperamos algo.
E esperar é normal, é coisa da vida, é assim mesmo
que funciona, por isso uma das funções da esmola
para mendigo é justamente nos ajudar a conquistar,
alcançar esse estado de maturidade.

Em qualquer relacionamento humano, há uma expec-


tativa de que a pessoa se encaixe num conjunto de
perfeições específicas que esperamos. Quando você
tem um filho, por exemplo, você tem perspectivas so-
bre esse seu filho, você tem interesses, você quer que
ele se comporte de um certo modo e não de outro, e
é assim mesmo, a vida normal é assim.

Quando você está em um relacionamento com seu


marido, namorado, noivo, é a mesma coisa: “Eu te-
nho um conjunto de expectativas, eu esperava que
ele fosse deste modo, eu esperava que ele tivesse um
comportamento específico, que ele fosse carinhoso,
que tivesse fidelidade, que fosse atento, que pagasse
as coisas para mim”. Isso é o normal. Aí é que está: é

39
assim que esperamos em um relacionamento, mas a
vida humana, concreta, aqui na terra, não se dá des-
te modo. Sabemos que todos nós somos falhos. Eu e
você não prestamos, somos miseráveis, somos falhos
mesmo. Toda essa perspectiva de vida perfeita, etc.,
isso é algo que pretendemos alcançar um dia. Algu-
mas pessoas têm isso como meta, mas a vida aqui
embaixo, colada na terra, a vida do dia a dia, o hoje,
é ainda uma vida de imperfeição, e todos nós somos
assim e sabemos disso.

Alguém que não dê esmola para mendigos, que não


tenha essa prática, é alguém que não olha para men-
digos, não sabe o que é um mendigo, não vê a interse-
ção de o que é um ser humano, não vê o ser humano
na sua postura mais baixa, no seu posicionamento
mais cru, de privação total e de tristeza real.

O que é um mendigo senão um bicho, um homem,


que está privado da beleza, do perfume, do brilho no
olhar, da dignidade humana? É um bicho que rasteja
como os vermes na sarjeta. É uma vida verdadeira na
sarjeta; essa é a vida do mendigo.

Ora, nós não somos assim também muitas vezes na


vida? Não passamos por momentos assim? Não so-
mos desse tipo também? Quem não teve ainda uma
vida de mendigo moralmente, financeiramente, este-
ticamente, nos seus atos mais profundos ou mais su-

40
perficiais? Quem não teve ainda uma vida de mendi-
go? Todos nós já tivemos.

Talvez, neste momento da nossa vida, nós sejamos


os mendigos que estão na frente daquelas outras
pessoas agora. Se essa outra pessoa que não tem o
olho caridoso, estaremos fritos. É preciso conseguir
olhar para seu filho, marido, noivo, aluno, pai, e falar
“Quem está aqui na minha frente agora é um mendi-
go, e é essa figura disforme que eu tenho de apren-
der a amar, para quem eu tenho que dar a esmola do
meu amor, do meu cuidado, da minha atenção e do
meu afeto, porque, pobrezinho, diante de mim há um
homem ou uma mulher em quem não sobrou nada.
Ali só tem a esperança futura de uma dignidade que
talvez -- ou não -- volte para aquele coração, para
aquele peito, para aquela biografia, porque agora, na
minha frente, só sobrou caco. Esta é a hora de eu me
esquecer de mim, me esquecer de quem eu sou, me
esquecer de amor próprio, e dar a esmola.”

O treino de dar esmola para mendigo é esse. Quando


olhamos para aquele ser humano que está naquela
posição de privação quase que total, onde não so-
brou nada, temos dificuldade de ver que há um ser
humano ali, mas dificuldade mesmo. Se você é ho-
nesto, dirá “Realmente, não sobrou nada aqui, mas eu
me livro dos meus juízos, dos meus julgamentos, pois
não quero nada em troca; eu só coloco um coração

41
no meu peito, tiro um dinheiro do meu bolso e dou
cincão, dez reais, vinte pratas para você, mendigo,
porque é isso que eu tenho para te dar: uma esmo-
la para ver se você melhora e sai dessa situação de
privação, de lástima total, de tragédia biográfica. Um
pouquinho melhor você ficará, mas só um pouqui-
nho, porque também não dá para ficar muito melhor.
Você é um mendigo e eu não tenho como te trans-
formar em um príncipe do dia para a noite. O que eu
posso fazer é te aliviar um pouco desse sofrimento, te
tirar um pouco desse estado de privação, de penúria.
Um pouco só, não muito.”

Diante da vida e de certas pessoas (até do nosso filho,


marido, namorado, noivo), isso é tudo o que podemos
fazer, e não é pouco. Às vezes as pessoas estão em
uma situação de loucura, de confusão, de falta de di-
nheiro, de imoralidade, perderam o fio da vida, mas
se tivermos esse treino que vem pelo cultivo do amor,
conseguiremos recrutar aquele olhar que não espera
nada, que só ama. Isso é a maravilha de ser humano,
é só por isto que estamos neste mundo: para que su-
portemos uns aos outros.

E não “suportamos uns aos outros” no momento em


que tudo são flores, em que todo o mundo está perfu-
madinho, cheirosinho, fielzinho, inteirinho, não; assim
é fácil. Aí sua parte já foi dada, você já teve um con-
vívio com pessoas boas. O treino do coração humano

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se prova justamente quando aquela pessoa que está
na nossa frente, nosso filho, nosso aluno, nosso pro-
fessor, nosso noivo, nosso esposo, essa pessoa põe
na nossa frente como um mendigo, porque ela não
está bem; um mendigo moral, financeiro, estético... Só
então nosso amor então é recrutado a dar uma es-
mola para aquele sujeito, para que ele tente voltar a
ter um mínimo de dignidade, mas só um pouquinho
mesmo. De repente ele volta a ter, quem sabe. É esse
o esforço, do coração, do amor, que a gente consegue
na prática.

Eu sei que às vezes falam “Italo, é bonito falar, mas


como é que faz?”. Ora, mas como assim? Eu estou fa-
lando como é que faz. Você vai encontrar um sujeito
na rua, um mendigo, e você vai tirar dinheiro do seu
bolso e vai dar. Esse é o treino. Quando me escre-
vem nos stories falando “Italo, eu dei esmola para um
mendigo e não senti nada”, eu acho graça. Mas não
é para sentir nada mesmo, meu filho, você só está
treinando algo, que é o lugar do seu coração, da sua
atenção, porque isso é a vida humana.

Nós conviveremos com pessoas que estão no subsolo


moral, da dignidade. Isso acontecerá, e é assim que
nós não chutamos a bunda dessas pessoas quando
elas aparecem na nossa frente, a bunda do nosso fi-
lho, do nosso aluno, das pessoas que a gente ama.
Não chutamos porque tivemos um treino nesse amor

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abnegado que e não espera nada, não espera sequer
que aquela pessoa vá sair da posição de mendigo
para a posição de um príncipe do dia para a noite.

É pura balela essa história de que sapo vira príncipe


do nada, de que um beijo de amor fará com que o
sapo perca o encanto e venha ser um príncipe. Isso é
só em conto de fadas. Na vida real, o sapo continua
sendo sapo, e continuará sendo sapo por um tempo
-- e se não receber beijos, jamais deixará de ser as-
sim. Aquele bicho asqueroso não deixará de ser as-
queroso. Ele continuará sendo sapo e se degradará
cada vez mais. O beijo não transforma, mas, no final
das contas, é uma manifestação do amor, daquele co-
ração posto no outro, daquele afeto que quer se der-
ramar no outro.

O sapo não vai virar príncipe do dia para a noite. Con-


taram-nos essa história, mas é uma lorota de conto de
fadas, porque eles precisam ter um final feliz rápido.
A vida humana não é assim. O sapo continuará assim
por um tempo, e o beijo é essa esmola do coração. O
sapo é um mendigo! Um dia, talvez, com o esforço do
amor contínuo, esse sapo consiga sair da posição de
sapo, mas ele não virará príncipe do dia para a noite:
ele virará um sapinho um pouco mais arranjado, um
sapo que já não rasteja tanto, ele vai se transforman-
do. Como conseguimos, como dizem os protestantes,
aquebrantar o coração? Como conseguimos chegar lá?

44
Uma, apenas uma das atividades que precisamos real-
mente aplicar na nossa vida, mas aplicar com tudo o
que temos, é não se apegar a essa porcaria desse di-
nheirinho que está no bolso, que às vezes até faz fal-
ta. E pior do que se apegar ao dinheiro é se apegar a
esse juízo que temos na nossa cabeça, de achar que
o mendigo vai comprar cachaça, crack, droga. Meu
filho, dá a droga do dinheiro para o mendigo!

Você também não compra cachaça, carboidrato, tam-


bém não gasta esse dinheiro com um monte de lixo?
Então, pronto, deixe o mendigo, a cachaça vai aliviar
um pouco do sofrimento dele, saco. Deixe o cara com-
prar a cachaça dele, pelo amor de Deus. Não encha
o saco do mendigo. Essa cachaça é um alívio, esse
é o beijinho que você dará no sapo, e isso vai trans-
formando o seu coração. Assim, quando uma dessas
pessoas que você ama não estiver se comportando
bem na sua frente, estiver em um momento de fato
de dificuldade, de confusão, de loucura talvez, você
poderá então ser aquela mão amiga, aquele braço
forte, aquele sujeito que sustenta.

“O amor vence”, não é assim que se fala? Só a caridade


cobre essa multidão de faltas, de erros, de infidelida-
des. É só o amor, meu amigo, é só o amor que cobre essa
desgraça. Como conseguimos cultivar isso no coração?
Um dos exercícios tradicionais da antropologia e de to-
das as religiões verdadeiras é a esmola para mendigos.

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A esmola para mendigos reposiciona o seu coração,
o seu olhar, ela te torna então um ser humano capaz
de conviver com a miséria que vai se apresentar dia-
riamente. Porque, sim, cotidianamente a miséria dos
outros vai se apresentar na nossa vida, e há duas coi-
sas que podemos fazer diante dela: julgar, virar as
costas e falar “Você não presta”, ou podemos queimar.

Por isso que a esmola é representada simbolicamente


pelo fogo. Podemos queimar o juízo, o amor próprio
que temos, e atravessar todo esse julgamento, esse
desamor, metendo a mão no bolso e pegando esses
dois, três, quatro, cinco reais, e dando para ao outro,
tentando tirá-lo um pouco daquela situação e levá-lo
para uma outra sem grandes esperanças de que isso
aconteça.

O ato humano não se funda na esperança, mas na


caridade, no amor, isso é o que nos disse Louis La-
velle -- e ele tem toda a razão no que ele diz. Um dos
nossos treinos pode ser justamente esse: pegar nos-
so dinheiro, a esmola, e dar para um mendigo. Você
verá que seu coração vai se transformando, sua capa-
cidade de amar aumenta, seu olhar diante da vida se
reposiciona, todas as suas relações são transforma-
das, e as pessoas ao seu redor mudam -- não é que
elas passem a se sentirem amadas, mas elas se tor-
nam amadas de fato, e é só o amor que é força neste
nosso mundo. O amor funda tudo, é o ato fundacional

46
das relações neste mundo. O amor cobre a multidão
de falhas, de infidelidades, de pecados. É só o amor
mesmo.

Uma das formas de expandir, dilatar seu coração, é


pegar essa porcaria desse dinheirinho trocado que
você tem no bolso, atravessar todos os julgamentos,
todas as teorias, todas as placas da prefeitura escrito
“Não dê esmola para mendigo”, atravessar isso tudo,
e pá!: “Toma aqui, mendigo. Não estou nem vendo
um ser humano na minha frente, mas sei que há um
homem aí que tende a uma certa perfeição, a con-
seguir conquistar uma dignidade, então toma aqui
uma migalha do meu amor, um beijo. Eu sei que você
é um sapo e não vai virar príncipe do dia para a noi-
te, mas toma aqui um dinheirinho para você sair des-
sa situação e de repente conseguir ir para uma outra
situação.” Isso é o amor neste mundo, é o relaciona-
mento entre pessoas neste mundo. Não sejamos mes-
quinhos; tire o escorpião do bolso, meta a mão nele,
pegue o dinheiro e dê para essa pessoa que está pre-
cisando na sua frente, porque assim o nosso coração
se reposiciona em todos os outros relacionamentos
também.

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italomarsili.com.br

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