O TEMPO
clandestinidade, sequestro e exílio
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Marília Guimarães
HABITANDO O TEMPO
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Machado de Assis – Escritor Brasileiro – Fundador da Academia Brasileira de Letras
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Habitando o tempo
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Habitando o tempo
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Vicente Feliu – Cantautor – Fundador do Movimento da Nova trova
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1969 - Fevereiro
Bairro de Coelho Neto - Rio de
Janeiro
O carnaval ficara para trás, deixando a saudade de um fantástico Jair
Rodrigues esbanjando alegria com seu Bloco de Sujos, enquanto,
despreocupada, iniciava mais um ano letivo, com mil projetos didáticos, novas
metodologias de ensino.
A matriz da escola em Coelho Neto, a filial em Vilar dos Teles, prometia um
1969 de sucesso e grandes realizações.
De repente, simplesmente de repente, entre raios, trovões e tremendo
aguaceiro, aqueles homens entraram sem pedir licença, desmoronando tudo.
Uma folha de papel tarjado em amarelo e verde, onde se lia uma ordem de
prisão, interromperia nesta terra, neste instante, o futuro.
- Tenho ordens para levá-la presa, vociferou quem liderava o grupo.
- Presa? Por quê?
- A senhora está envolvida com os subversivos - explicou o outro - por fazer
uso de mimeógrafo para propaganda comunista.
- Mimeógrafo? Subversivos? O senhor deve estar me confundindo com
outra pessoa!
- A senhora está presa. Tem que me acompanhar.
- Não. Por que tenho de acompanhá-lo? Não vejo possibilidade! Sinto
muito, não tenho tempo e além de não ter feito absolutamente nada, não estou
preparada. Tenho que me banhar, trocar de roupa. Estou trabalhando desde
às oito da manhã, são quase duas horas. Agora não é possível. Irei amanhã.
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Vital Farias – Compositor \ Interprete - Paraiba
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Habitando o tempo
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Noel Nicola – Cantaoutor – Fundador do Movimento da Nova Trova
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1969 - Fevereiro - 16:00h
Bairro das Laranjeiras - Rio de
Janeiro
- Táxi! Táxi! Botafogo, por favor.
- Onde?
- Botafogo. Praia de Botafogo.
A baía está hipnotizante, aqui não chove. Em frente, o Pão de Açúcar.
Esplêndido, imponente. A esta hora, talvez, apinhado de turistas, deslumbrados
com a beleza da cidade. Nem havia percebido o calor que faz. Que bom seria
uma praia! Adoro praia e pimenta!
- Aqui, por favor. Em frente ao cinema.
Cruzo a avenida rapidamente. Faz-se tarde. Outro percurso.
- Táxi!!! Laranjeiras, por favor. Rua General Glicério.
Quando me dei conta, estava trocando de roupa. Mamadeiras, fraldas, leite,
roupinhas, sapatinhos, tudo enfiado desordenadamente dentro da bolsa.6
- Estou indo embora, ouviu, Dona Leontina?
- Pra onde? - perguntou .
Quase correndo, chego à calçada com Marcello e Eduardo nos braços. Dois
e três aninhos de vivência. Marcello é esperto, muito vivo, entende tudo, menos
este corre-corre. Eduardo sorri, adora uma rua.
Dona Leontina olha assustada, sem entender nada.
- Seguramente é briga de marido. - parece me dizer.
- Feche bem antes de sair. Não esqueça nada aberto. O gás, a luz...
- Sim, pode deixar.
- Ligue antes de vir amanhã. Se o Fausto aparecer, diga que fui embora, está
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Mario Quintana – Poeta – Porto Alegre - RS
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Habitando o tempo
bem?
A pobre, amedrontada, balançava a cabeça num perplexo sim.
Como num passe de mágica, surge Carlos. Nosso querido e adorado
companheiro. Há um ano entrara na clandestinidade, e viera morar conosco.
Um mineiro com jeito de Severino, responsável, alegre, brincalhão, adorado
pelas crianças, paparicado por Dona Leontina, companheiro ímpar pela vida
afora, faz parte do grupo dos imprescindíveis. Tantas outras vezes, incluindo o
presente, Carlos apareceria nos momentos mais críticos, para vivê-los ou nos
tirar deles.
As palavras deram lugar ao silêncio. Entrei no fusquinha ainda cheirando
a fábrica quando o porteiro, ofegante, disparou:
- Seu Carlos! Seu Carlos! Por favor, preciso lhe falar... o relógio da rifa saiu
para o senhor! Espere que vou pegá-lo.
- Não precisa, Seu José. Pego depois, mais tarde, está bem assim?
- Não esqueça, ele toca aquela musiquinha crássica do Shube.7
- Não vou esquecer não, seu José.
Acho que o Carlos esqueceu, sim, o famoso relógio de mesa que tocava a
serenata de Schubert. Nunca mais falamos dele.
Quatro quarteirões depois, Carlos perguntou timidamente:
- Que aconteceu?.
- Como?
-Pegaram o mimeógrafo na casa do Liszt em Niterói.
- Mas, esse aparelho caiu em novembro. Estamos em março. Estranho,
não!?
- Muito. Se não fosse aquele recibo de venda, que inventamos, agora estaria
frita.
- Você é uma guria de sorte. Muita sorte. – concluiu, acariciando meu rosto
com ternura.
- Pra onde vamos? As crianças precisam comer, tomar banho e dormir.
- Vamos localizar o Fausto, e decidiremos para onde ir.
Queria chorar. Chorar tudo. Passado, presente, futuro. Pelas coisas
alegres, pelas mais tristes. Chorar de amor, de ódio, de ternura, de paixão, de
impotência, de força, de saudade, de presença. Chorar.
Não podia. Marcello e Eduardo sequer deveriam sentir qualquer diferença.
A mudança de fato já seria forte demais. Os berços, os brinquedos, a comidinha
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Franz Schubert – Serenata de Schubert -
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Nelson Cavaquinho – Compositor e interprete – Tijuca – Rio de Janeiro
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1969 – Março
Copacabana – Madrugada
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Carlos Marighella - Guerrilheiro – Fundador da Aliança de Libertação Nacional
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- Combinado.
Sua mão pousou tranquila e forte sobre meus ombros.
- Estarei esperando, sorriu.
Durante toda a madrugada, estive atenta à vida. Tentava conciliar o sono,
precisava descansar. Uma noite mal dormida seria fatal para a paz interior e a
defesa externa.
Passeei pelos campos vangognianos, repletos de girassóis; entrei na
“Tabacaria”, mergulhei em Dante e discuti com Göethe. Entre um cochilo e
outro, trilhões de bolas corriam desenfreada- mente para o horizonte, sendo
tragadas violentamente. Uma delas segurava ferozmente outras duas, numa
luta desesperada para não ser engolida pela bola mestra, que atraía todas para
a linha divisória da imaginação. A medida que as três se aproximavam do final,
a força era cada vez maior. Frear, frear. Mais força, mais força. Numa batalha
feroz, as três bolas estancaram, lado a lado. Juntas, leves, fortes...
Despertei. Amanhecia.
Levantei. Precisava parecer uma inocente elegante. Pintei os olhos com
sombra verde, caprichei no rímel, nos lábios um batom avermelhado, os
cabelos comportados. Vesti a roupa comprada no dia anterior, um delicado
vestido branco de bolas verdes. Adoro tecidos de petit pois. Ficou bem. Muito
bem. Leve, fagueira. Lembrei de Vinícius de Moraes:
Sempre quis um mundo melhor, em todos os sentidos, companheiras
vaidosas, companheiros garbosos.
A liberdade é bonita, cheirosa, fresca, leve, amorosa. A prisão é triste,
fedorenta, obscura, cheia de olheiras. Para lutar por um mundo melhor é
preciso estar bem por dentro e por fora, e estar profundamente apaixonada
pela vida. Assim me sentia linda, linda e, principalmente, poderosa.
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1969 - Março
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Pablo Neruda – Poeta - Parral - Chile
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- Como nada? Faz mais de uma hora que estou falando sem parar e diz que
não falei nada!?
- E o Liszt? A senhora conhece, não é?
- Claro.
- Ótimo! Ótimo! Chame rápido o coronel, ela conhece o Liszt.
O mau humor presente na sala, deu lugar a uma eufórica alegria. O corre-
corre se estabeleceu num entra e sai de caras curiosas.
Por fim, a informação tanto almejada, Liszt - o pivô de toda a história. Liszt,
o fim da linha de raciocínio. Liszt, fim do mistério. Desmoronamento de um
intrincado cartel de informações.
Sorridentes, amáveis, trocando sorrisos, trouxeram água, para alívio geral
do sistema metabólico. Todo simpatia, o coronel sentou-se à mesa, pronto para
pôr fim a essa busca que ultrapassava mais de cinco meses.
- Cansada? Também estamos bastante cansados. Esses subversivos têm
nos dado muito trabalho. Então, a senhora conhece o Liszt?
- Claro. Gosto muito dele. Há muitos anos. Nunca fomos amigos, isso não.
Mas, conheci sua irmã, no colégio de freiras onde estudava. Uma velha, lúcida,
inteligente, perspicaz.
- Onde ele está?
- Não tenho a mínima ideia.
- Não tem a mínima ideia? Mas, a senhora não disse que o conhece?
- Sim. O senhor não o conhece? Impossível não conhecê-lo.
- Como impossível?
- Realmente, não estou entendendo. Não conhecer o Liszt! Enfim…
- Cale essa boca!!! Onde mora o Liszt? - gritou nervoso.
- Onde mora? Insisto que não sei. Nunca perguntei isso a sua irmã.
- Caralho! Onde está o Liszt?
- Não adianta gritar, pois não sei. Não sei onde ele está enterrado. Não sei!
- Enterrado? - berrou histérico. Desde quando?
- Há uns setenta anos, mais ou menos.
- Levem essa mulher daqui. Agora! Estou ordenando!
- Calma, coronel. Quem sabe ela reconhece alguém pelas fotos.
Ali, diante dos meus olhos, Pedros, Manuéis, Joaquins e Moacyr! Que
horror, Moacyr todo ferido! Que dor! Meu querido companheiro! Quantas vezes,
encontrei-o sentado na varanda, madrugada adentro, cansado, pensativo. E no
dia em que morreu o Che? Como sofremos naquela tarde!
Moacyr, morto! De que mais seriam capazes? Até onde o ódio pela vida iria
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Carvalhinho - Jota Sandoval - Compositores
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O tempo não existe; o pensamento faz o tempo. Meu pensamento não sabia
do tempo, sabia do mar, da pedra, dos olhares assustados dos homens sentados
no refeitório. Sabia do Liszt, do Juarez, dos meninos, dos sonhos, do assassinato
do Moacyr, das tímidas alegrias, da presente tristeza.
- Vamos andando! Vamos, vamos! - vociferou o delegado. Não quero sair
tão tarde do Forte.
Ah! Niterói.. Descobri onde estou. Forte de Santa Cruz. É em cima da
rocha... Sim é o Forte.
Sem titubear, entrei no jipe para um largo caminho de volta. Na barca Rio
- Niterói senti o cheiro da madrugada. Dois ou três passageiros compartilhavam
da minha liberdade. O Rio de Janeiro se acercava sonolento, deslumbrante no
seu vestido de estrelas. Poderia abrir os braços, que alcançaria enlaçá-lo e me
perder numa longa declaração de amor. O cheiro de peixe, o vaivém dos
pescadores, dos amantes de um Cherne fresquinho, comprado bem ali, na Praça
Quinze.
Veloz, entrei num táxi rumo a Copa. Na Barata Ribeiro, esquina com Santa
Clara, desci. No Mercadinho Azul, tomei um cafezinho. Caminhei em direção à
praia, retornei do meio da quadra. Peguei o táxi da madrugada, com direção à
praça José de Alencar.
De pé, olhando a igreja metodista, ali plantada há tantos anos estava,
Juarez. Abraçou-me silenciosamente, forte.
No bar Lamas, decidimos que regressaríamos a casa. Supostamente, o
pesadelo havia passado. Primeiro, buscar as crianças, depois retomar o
trabalho, o contato com os velhos amigos, aquela peça que ficara para a semana
seguinte, um cineminha no Paissandu, e porque não pegar uma praia, já que as
chuvas de março haviam dado uma trégua ao sol?
- Sucesso total! - festejava Fausto. Você botou a Fernanda Montenegro no
chinelo!
- Vamos a casa da sua irmã, primeiro - falei. Não estou convencida de que
eles acreditaram naquela história.
- Claro que acreditaram. É preciso que tenham acreditado - sorriu Juarez.
- Não sei... Melhor verificar. Não vou passar por esse susto de novo. Não
vou, não!
- Tá bem. - concordou Fausto. Vamos até lá, pela manhã.
- Tudo certo. Testamos hoje. Amanhã retornamos a nossa casa e você volta
ao trabalho. Imagina o quanto o Ministro Jarbas Passarinho deve estar sentindo
sua falta.
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Vitor Jara – Compositor e Cantor Chileno. Assassinado no Estádio Nacional.
Esta foi a última canção, feita no Estádio.
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1969 - Março
Confía en el tiempo, que suele dar dulces salidas a muchas amargas
dificultades.
Dom Quixote de la Mancha13
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Miguel Cervantes – Escritor espanhol
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Assim ficamos. Não sei por quanto tempo. O suficiente para saber que
chegara a hora de entrar na luta definitivamente.
De novo, Copacabana presenciou, silenciosa, as horas que se seguiram de
definição. Planejar um destino. Juarez era o mediador perfeito, equilibrado,
humano, solidário, irrepreensivelmente íntegro; foi pausadamente analisando
todas as etapas: da nossa saída de casa, ao dia atual.
Por que será que foram te prender? - perguntou Juarez.
- Imagina, não faço a menor idéia. Vamos tentar averiguar com a família
do Fausto.
- Totalmente ilógico - completou Fausto.
Dias mais tarde, soubemos que o dono da loja, onde havíamos
comprado o tal mimeógrafo, tinha deposto na manhã seguinte, reconhecendo o
Moacyr, numa das fotos da polícia.
Naquela noite ficou decidido que não tínhamos outra saída, que não a
clandestinidade.
Na escuridão da noite, nas águas de março, deixei mergulhar minha falsa
liberdade.
Incerteza, medo, fuga diária, espanto, amizade, solidariedade,
comprometimento, certezas, todas atropeladas na consciência.
Estava preparada. Um novo destino, pensei.
Copacabana amanhecia.
Copacabana princesinha do mar
Pelas manhãs tu és a vida a cantar
E, a tardinha ao sol poente
Deixa sempre uma saudade na gente.. 14
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Dorival Caymmi – Compositor e Interprete da Bahia.
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1969 - Abril
- Primeiro entram vocês, depois vou eu.
- Nós três num motel, Carlos?
- Claro, onde você quer que eu durma? Aqui fora, com certeza, está cheio
de mosquitos, e, além do mais, estou exausto, estou há dois dias, praticamente,
sem dormir. O moralismo fica para depois que acordarmos, tá bem? - sorriu.
Nenhuma palavra a mais consegui registrar.
Acordamos na avançada madrugada, ainda fatigados pela tensão do dia
anterior. Preparamo-nos rapidamente. Carlos saiu às escondidas, regressou à
portaria pedindo que nos despertassem.
Naquele dia, andamos a esmo, em busca de uma alternativa urgente de
moradia para os próximos dias. Indispensável buscar Marcello e Eduardo. O
lugar onde se encontravam não oferecia condições de segurança.
Passei todo o dia muito triste, beirando a depressão. Não tinha para onde
ir. Que fazer? Qual direção tomar? O que significava, realmente,
clandestinidade?
Não ver os amigos. Tudo bem, estava descartado. Esconder-se entre
perucas... Óculos? Como são incômodos! Dois vidros presos por pernas nas
duas orelhas, descansando, inescrupulosos, sobre o septo nasal. Quando não se
tem visão, uma benção. Quando para compor um personagem um desastre…
O quê é, de fato, a clandestinidade? Como vivê-la? Como os cristãos na
antiga Roma? Esperar dois mil anos pela tradução dos afrescos das
catacumbas?
Clandestinidade é a expressão mais sofrida e iluminada nesta história. É o
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Jorge Amado – escritor Baiano
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que eu caminhe até a praia e respire ar puro. Quem sabe, caminhar? Caminhar
sempre faz bem. Regresso ao hotel, quase à beira de um desmaio. É impossível
seguir caminhando…
- Precisa de ajuda? Sente-se mal?- perguntou o gerente.
- Sim, mas vai passar.
Esperei durante todo o dia. Fausto regressou do Rio, entrada a madrugada.
Um médico pelo amor de Deus! - pedia chorando. Não suporto mais esta
dor! Leve-me para um hospital!
Entrei pela manhã numa clínica em Campo Grande. No final da tarde,
diagnosticaram:
- Gravidez tubária. - informou o médico de plantão.
- Tenho as trompas ligadas!
- Algumas vezes acontece - explicou o plantonista.
Às pressas, em choque, dei entrada na unidade cirúrgica.
Quando despertei, Juarez, Fausto e Carlos sorriram felizes.
De pé, Maria Auxiliadora, estudante de medicina, chegada naquele dia de
Belo Horizonte, olhava curiosa. Entrara também na clandestinidade. Sua
primeira tarefa: acompanhar-me no hospital.
Auxiliadora, inquieta, perdidamente apaixonada por um companheiro,
andava por todos os recantos da clínica na ânsia, de quem sabe, encontrá-lo.
- Olha as fotos da Manchete! - folheava a revista, banhada em sangue
vietnamita.
Guerra por todas as partes. As imagens estampadas nas revistas eram
apavorantes. Difícil conter a tristeza. Estavam massacrando o Vietnã.
Modernamente equipados, os boinas verdes queimavam vilas inteiras,
estupravam mulheres, assassinavam crianças, retirando-as ainda vivas do
ventre materno, a golpes de baionetas. Espreitando entre os arrozais, lutando
bravamente, os vietnamitas iam ganhando terreno. Chorava, olhando a
barbárie desencadeada sobre o povo vietnamita. E os mortos pela fome em
Biafra! Aterrorizava olhar o mundo, acuada em uma cama de um hospital.
Da ruptura da trompa, estava salva.
Como salvar do sofrimento milhões de crianças morrendo de fome? Como
transformar o mundo, para que essas cenas hediondas não viessem a ser vistas
pelos meus filhos? Pior ainda, pelos filhos dos meus filhos? Como diminuir as
injustiças sociais?
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Amaury Perez – compositor e interprete de Cuba
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1969 – Maio
Itatiaia - RJ
“De nossas vulnerabilidades vem nossa força…”
Sigmund Freud17
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Sigmund Freud – Psicanalista – Pai da Psicanálise
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- Nem todos, mas estes são mais seguros. Os do interior dão para a varanda.
Aqui podemos conversar melhor e as crianças ficam mais à vontade.
- À vontade, com a janela fechada!? Ah! Vou sair, fazer as mamadeiras,
saber do café da manhã...
Não posso acreditar, sem a possibilidade de olhar a rua. Logo em Santa
Teresa que é linda, cálida, charmosa, musical, mas num hotel ao nível da
calçada, de frente para a rua.
A manhã estava esplendorosa. Lá embaixo, a cidade se espreguiçava com
os primeiros roncos dos canos de descarga, com o frear dos ônibus, despejando
operários apressados a caminho de mais um dia de trabalho.
Lá estava impávida, a Central do Brasil, com seu relógio delimitando as
horas.
- General, seu café está servido. - chamou a copeira.
General? Ouvi bem? Isto é uma alucinação! Estou louca, sem dúvida. Um
general! No pequeno hotel, na minha frente!? Só mesmo no Rio de Janeiro. Só
mesmo na fantástica América latina. Há tantos dias, fugindo incessantemente
deles... Que ironia, diante dos meus olhos, quase me tocando, um General.
- Bom dia! – sorri.
- Bom dia. Linda manhã esta! - respondeu alegremente.
Após o almoço, Carlos e Juarez passaram para ver como estávamos.
Conversamos longamente sobre os próximos dias.
- Paciência. Aos poucos vamos encontrando a solução - proferiu Juarez.
- Precisamos definir qualquer coisa, estou beirando a loucura. Ficar parada
não é do meu feitio; daqui a pouco serão três meses sem fazer nada! De lá para
cá, daqui pra lá. Sem perspectiva de saída desta vida. Qualquer coisa é melhor
que nada. Como andará a escola?
- Por ora, esqueça a escola, o trabalho. Tem gente demais entrando na
clandestinidade. Cautela, equilíbrio e paciência - interferiu Juarez, sempre
terno, centrado, administrando o caos. Aos poucos estamos ficando mais fortes,
daqui para a frente ganharemos terreno. Estamos nos consolidando. Breve,
você verá que valeu a pena.
- Eu não quero ficar aqui. Este lugar é muito estranho e me parece muito
perigoso. Aqui vivem aposentados de classe média alta, tem até general!
- Se você quiser, pode ir para Belo Horizonte, ficar com a Maura - ofereceu
Carlos. Ela conhece vocês. Além do mais, sabe da minha situação. É uma saída,
antes da ida para o sul de São Paulo.
- E o sequestro? Cuba ?
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- Não gosto hoje dessa alternativa. A Ilha é muito definitiva. Você pode ser
muito útil na organização, aqui mesmo - asseverou Juarez.
- E os meninos?
- O lugar para onde pensamos levar vocês tem uma boa infra-estrutura,
tanto para as crianças, quanto para você, que vai executar uma missão especial.
Quinta-feira teremos uma ação importante. Necessitamos do Luís aqui. Podem
viajar na Sexta. Ia me esquecendo... Lembre-se, não pode mais chamá-lo de
Fausto – recomendou, sorrindo.
- De hoje a sexta... 4 dias - concordei.
Na quarta-feira, amanheci aflita. De novo aquela estúpida angústia. Luís
saiu cedo. Carlos chegou à tarde.
Sentados no jardim, olhando a Central, disparei:
- Quero ir embora hoje.
- Hoje?
- Nem mais um dia.
- Não combinamos que seria na sexta-feira?
- Combinamos, mas eu quero hoje.
- Você vai viajar sozinha?
- Vou.
- Bem, temos que ver se há passagens, as coisas não são assim.
- Vá até a Central e verifique. Tem que ser hoje! – cochichei, quase aos
gritos.
Pouco tempo depois, retornava com os bilhetes.
- Tudo bem, você viaja hoje.
Arrumei rapidamente as poucas coisas que nos restavam daqueles últimos
meses. O certo é que não estava feliz. Interiormente, sabia que estava agindo da
maneira mais correta. Uma força me lançava para a frente, apesar do medo, da
insegurança, da angústia do desconhecido.
Chegamos à estação em cima da hora. Tudo que nos tocava fazer, daqui
para adiante seria assim: em cima da hora. Marcello começou a chorar quando
entramos no vagão. Com a cara banhada em lágrimas, colada ao vidro, víamos
ficar para trás todo o nosso passado: os laços que me ligavam a Luís, minha
família, amigos. Só me restavam: Cell, Edu e o incógnito.
Na plataforma, Luís e Carlos disfarçando as lágrimas, viram o trem se
afastando devagarinho, enquanto partíamos, corajosamente, rumo à incerteza.
Apesar dos seus apenas dois aninhos, muitos anos passaram para que Marcello
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Paulo Leminsk – Poeta Curitibano - Paraná
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1969 – Maio
Belo Horizonte - MG
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José Martí – Poeta, escritor. Cubano -
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Carlos Drummond de Andrade – Poeta mineiro - MG
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Junho 1969
Belo Horizonte - MG
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Marilia Guimarães – Professora -escritora
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a escola. Mário está providenciando para que ela saia de férias. O problema são
as aulas. Tentaremos dar um jeito.
Mais estórias, contadas no decorrer do dia. Mais cantigas, sussurradas nos
ouvidos, estavam me levando ao desatino. Os pesadelos que desfilavam
intermináveis, nas horas de sono, eram mais leves e prazerosos, do que a
realidade da vigília. É certo que as crianças eram bem pequenas, dois e três
anos. Mas não o suficiente pequenas para dormirem e ouvirem estórias.
Não nutria nenhuma esperança de saída. Até então, a cada lugar novo,
piores situações.
Por fim, embarcaram a empregada, para visitar os seus pais, sob o pretexto
de que precisavam viajar. Fomos libertados das quatro paredes.
Felicidade geral. Respiramos tanto espaço, que caímos esgotados de
liberdade. Foi quando a campainha tocou. Teriam esquecido a chave?
Rapidamente abri a porta.
Diante de mim, um jovem assustado:
- Martha está?
E agora Drummond, que faço com o seu poema? Quem é este homem? De
onde ele saiu?
- Sou Wellington, irmão da Martha...Você quem é?
- Mirian.
Entrou, acomodou-se no sofá. Onde está minha irmã? De onde você veio?
Martha não disse que tinha visitas. Cheguei hoje, estava no treinamento.
- Você não é de Belô?
- Não. Vim conhecer. Nada mais. E, você?
- Sou paraquedista. Estou na aeronáutica.
- Aeronáutica?
Neste momento, Eduardo chamou. Eu havia parado na metade da canção
para atender a porta e ele, ainda meio adormecido, reclamou por ela.
- É uma criança?
- São duas. - respondi
Nessas alturas, melhor a verdade do que colocar tudo a perder.
- Seu marido também está aí?
- Não. Está em Madri, a negócios. Aproveitei para vir conhecer Belo
Horizonte.
- Estranho, Martha nunca ter falado de vocês... Somos tão apegados!
- Com toda certeza terá falado, mas não despertou seu interesse e você
simplesmente esqueceu.
- Difícil. Continuo achando estranho... Você não está fugindo da polícia,
está? Minha irmã é meio louca, e pode estar escondendo você.
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- Maluquice! Como você viaja! De que polícia eu iria fugir? Os mineiros são
tão desconfiados, que parece que tomaram LSD!
Aquele rapaz perguntava demais. A situação estava ficando complicada e
eles não chegavam. Da empregada, tínhamos nos livrado e veio o “projeto” de
militar.
- Amanhã vou treinar, saltar de pára- quedas. Tenho que estar descansado.
Acho que vou indo.
Se este infeliz comenta que nos viu, estamos fritos. Olhei fixamente para
ele, fixei todas as minhas energias em suas pernas, desejando que, ao saltar,
sofresse uma fratura, fosse engessado e me esquecesse.
Naquela noite, dormi com as crianças no carro do Afonso, numa rua
deserta. Dias depois, soube da novidade: Wellington quebrara a perna, estava
hospitalizado.
Amanhecia, quando chegamos à casa de Afonso. Uma revoada de meninos
descia as escadas apressada, todos falando ao mesmo tempo. Uns amarrando
os cadarços, outros prendendo os cabelos. Sentaram- se à mesa para um rápido
café da manhã, senão perderiam a escola.
Quanta alegria, quanta vida divisei naqueles olhinhos. Mara, a mãe linda e
suave. Afonso, o paizão. Patrícia, Marina, Andrea, lindas de morrer.
No almoço, alegria geral. Crianças novas na casa, aquela comida gostosa.
Um feijão daqueles! Colocado bem cedo no fogão, temperado com pedacinhos
de toucinho, horas antes do almoço. Coisa da cozinha mineira - segredou Mara.
Na parte da tarde, apareceu um companheiro com uma novidade que iria
até hoje marcar minha vida. Um disco compacto de música cubana.
- Um companheiro trouxe de Cuba. É super revolucionário! Música de
protesto. Vamos ouvir?
- É perigoso. - expôs Mara.
- Ouviremos no cantinho. No chão, tá bem?
- Bem baixinho. - suplicou.
“ Se quebró
la cáscara del viento al sur
y sobre la primera cruz
despierta la verdad” .....
Fusil contra Fusil… 22
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Silvio Rodriguez – Cantautor Fundador do Movimento da Nova trova
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Carlos Drummond de Andrade – Poeta Mineiro
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1969 - Agosto
Bairro de Santo Antônio - BH
“Neste universo, tudo é surpreendente.
A cada mistério revelado, mil novos mistérios surgem.”
Jorge Mautner24
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Jorge Mautner – Compositor e Interprete - Rio de Janeiro - RJ
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Francisco Buarque de Holanda – Compositor/escritor – Paulista
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1969 – Outubro
Rio de Janeiro
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Manoel de Barros – Poeta – Mato Grosso
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volta. Ninguém apareceu às dez. O outro horário era às 17h. Ficar esperando
num bar durante todo um dia, não seria viável. Cometeria um erro, mas ía ligar
para minha família. E se os telefones estivessem grampeados? Mesmo assim,
tentaria!
- Alô!?
- Maria Helena, sou eu. Acordei com dor de dente. Você pode me levar ao
consultório?
Pela entonação da voz, devia estar petrificada. Por sorte, foi bem esperta:
- Onde você está trabalhando hoje?
- Em Copa. Espero por você perto da sua boate preferida, que tal?
Estava jogando tudo. Maria não frequentava boates. Fora apenas uma ou
duas vezes, há muitos anos, no Golden Room do Copacabana Palace , quando
ainda namorava meu pai. Ela tinha que lembrar. Ah, Tinha...
- Dentro de meia hora, tá bom?
- Aguarde.
Fomos para um bar perto do Copacabana Palace. Lá estava ela embaixo do
seu guarda - chuva, parada junto à banca de jornal. Um abraço tímido, discreto.
- Onde estão as crianças?
- Ali no bar.
Conversamos pouco tempo. Apenas algumas decisões.
- Vou viajar, mas está chovendo muito. Não tenho para onde ir, neste
momento.
- Uma das suas irmãs está morando na Tijuca. Faz uma semana que se
mudou. Não acredito que esteja mapeada. Durante muito tempo, andaram atrás
dela para saber do seu paradeiro. Faz uns quatro meses que não a procuram.
Desistiram. Até porque, vocês nunca estiveram juntas.
- Vou falar a Dona Glorinha para vir vê-los. Coitados, não vivem mais, desde
que o Fausto foi preso e vocês desapareceram. A vida deles virou um inferno. A
polícia não os deixa em paz. Venderam o apartamento das Laranjeiras e
mudaram faz dois meses. Quase não nos falamos. Quando podemos, é do
telefone público. Queria que você soubesse que aquele Che que o Fausto pintou
para você, levei para Miguel Pereira. Está lá guardado, para quando tudo isto
passar. Marcamos a noite com a Dona Glorinha?
- Às seis, no Largo da Glória, pois hoje mesmo vou embora.
- Para onde?
- Não sei ainda.
Peguei o endereço da Tijuca. Em poucos minutos estava lá. Falamos muito
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Habitando o tempo
pouco, sobre tantas coisas. Banhei a criançada, deixei tudo preparado para a
partida e regressei a Copa.
O encontro foi rápido, sem grandes explicações.
- Hoje, você parte para São Paulo. De lá, vá para Porto Alegre.
No dia 02 de dezembro, no Parque Farroupilha, um companheiro vai
recebê-la. Vá ao ponto indicado e espere não mais que 15 minutos. Aqui está o
mapa do local. Decore e jogue fora este papel. Hospede - se num bom hotel, que
no mesmo dia será levada para outro lugar. Não se preocupe. Tudo está bem
seguro. Lá receberá instruções. Para onde vai e o que fazer; receberá dinheiro,
etc...
- Preciso de mais detalhes.
- Infelizmente não posso dar. O nome do contato é André. Aqui tem $1.000
dólares. Boa sorte.
Olhei Caio. Sua mirada refletia um medo profundo.
- Caio vai comigo?
- Vai sozinha, companheira.
Por razões óbvias não sei seu nome, seu apelido, a cor da sua tez, seu porte.
Nada de nada.
De novo a angústia saída do desconhecido. Queria voltar, pegar as crianças,
sair pelo mundo. Urgia pegar os meninos.
- Vamos Caio! Rápido, estou desesperada.
Cruzamos o Rebouças na hora do rush, com o coração em frangalhos. Subi
ansiosa o elevador. Entrei. Que alívio!
- Você deve deixá-los. Acho que vocês estão indo para Cuba. - falou meu
cunhado, sem ternura. O Dr. João pode cuidar deles. Ele tem dinheiro, pode lhes
dar o melhor. Além do mais, o exército disse que se você se entregar, não fazem
nada e te liberam imediatamente.
Ouvi as sirenes. Entendi o jogo. Tinha que agir rápido
- Venham Marcello e Eduardo! Pegue a bolsa, Caio!
-Espere! Não pode ir assim, isto é uma loucura!- gritou minha irmã.
Desci atropelando a escada.
- Táxi! táxi! Hotel Glória, por favor!
Um dia escapara dessa forma. Teria sorte duas vezes?
Chovia copiosamente quando encontramos Dona Glorinha. Quinze
minutos, nada mais. Eles não podiam me trair, não me trairiam. O filho dela
estava preso, selvagemente torturado. Não entregariam as crianças. Sabia
disso. Falamos do Fausto, da prisão. Da dificuldade das visitas agora na ilha
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1969 - Novembro
“O otimista é um tolo. O pessimista, um chato.
Bom mesmo é ser um realista esperançoso.”
Ariano Suassuna27
27
Ariano Suassuna – Poeta, escritor - João Pessoa
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Anónimo –
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1969 - Novembro
Porto Alegre
DAS UTOPIAS
“Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos,
se não fora A presença distante das estrelas!"
Mário Quintana
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João Guimarães Rosa – Escritor / médico/ diplomata - Minas Gerais
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1969 – Novembro
Porto Alegre
“A gente foge da solidão quando
tem medo dos próprios pensamentos.”
Érico Veríssimo30
30
Erico Verissimo – Escritor - Cruz Alta - RS
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Juntos, nunca.
Maria do Carmo regressou ao Rio.
Dias depois à hora do jantar, deparei com Rodolfo na recepção.
- O que você está fazendo aqui?
- Hospedado.
- Também estou. Amanhã cambiamos de hotel. Cheia de história esta
cidade, porém pequena demais para nós dois!. - gracejei.
- Pela manhã, cada um para seu lado.- como o pactuado.
Saía com as crianças a passear pelo Parque Farroupilha. Desfrutava aos
poucos da cidade, gozando de uma falsa liberdade.
No dia seguinte, nova surpresa: Rodolfo no café da manhã. Rimos muito.
Nova mudança de hotel.
Pedrinho chegou. Beirava os 18 anos. Compenetrado, aliava sua seriedade
de militante a um jeito moleque e brincalhão, descontraindo a tensão, sempre
presente no ar.
Por aqueles dias, comemoramos os 3 e 2 anos dos meninos. Rodolfo, eu e
as crianças numa singela festa no parque. Uma metralhadora que disparava
fagulhas para Marcello, um carrinho para Edu, um saco de pipocas, um passeio
de barco pelo lago, lembranças guardadas por toda a infância presenteadas por
Rodolfo. Pela vida afora, recordamos esse carinho. Comemorar a vida é
fundamental em tempos de guerra. No dia seguinte, estaria no ponto
aguardando André.
Com quinze dias de atraso, André nos aguardava ao lado do ancoradouro,
juntamente com outro companheiro.
Recebi instruções: comparecer às reuniões e deixar os meninos durante o
dia com uma companheira, para dar-me mobilidade. Três ou mais reuniões.
Que remédio! Não podia dizer que tinha Pedrinho, nem que Rodolfo cuidaria
delas.
- A companheira pode brincar com elas, enquanto estamos reunidos.
- Elas não estão acostumadas a ficar com estranhos. - falei.
- Criança acostuma com tudo. Além do mais, esta companheira é ótima.
Será apenas para as reuniões. - argumentou Andrada.
- Estou de acordo. As reuniões podem ser à noite, os meninos dormem às
19h. Ela pode ficar no hotel.
- Não. Elas devem ir com esta companheira. A casa deles é grande, e as
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disse que eu iria entregar? Ora essa! Eles querem ter certeza de que vou no
sequestro. Por isso as crianças não voltaram.
No encontro com Andrada, a sentença: as crianças serão entregues no dia
da viagem.
- No dia da viagem? Como vão ficar sozinhos? Essas crianças já sofreram
muito! – retruquei, tentando demovê-lo.
- Sem questionamentos. Está decidido. – replicou.
Os momentos que se seguiram foram os mais tristes. Iria deixar meu país
coagida pelos dois lados da moeda. A ditadura, que tortura, mata, esquarteja
nossos ideais, e o sectarismo de uns, que não entendem os verdadeiros
caminhos para a conquista da liberdade.
Não foi à toa o racha. Estou confusa, triste, tensa, para julgar friamente esta
estúpida situação.
Assim passei meus últimos dias no Brasil.
Rodolfo e Pedrinho amenizavam a ausência das crianças.
Como Rodolfo regressaria a São Paulo, passou-me alguns documentos
para Onofre Pinto, representante da VPR em Havana. A viagem à ilha era fato
consumado. Como teria reunião com Andrada, marquei com Pedrinho no dia
seguinte, às 15h.
Dormia quando tocaram à porta. Despertei assustada. Era André.
- Vamos, pegue suas coisas.
- Que horas são? Cadê os meninos?
- Três horas. Vamos encontrá-los. Temos pressa. Sua mala está arrumada,
não?
- Claro, sempre. Três da manhã!
- Vamos viajar e precisamos chegar cedo.
Boêmios retornavam aos seus lares, povoando, discretamente, as ruas
vazias àquela hora da madrugada. Entrei no carro ainda sonolenta. Fora da
cidade, paramos.
- Vamos trocar de carro.- ordenou André.
Um fusca estacionou um pouco mais adiante. Caminhamos até ele.
Encolhidos no banco de trás, sonolentos, olhinhos assustados, meus dois
amores.
- Mãe!- choramingaram os dois.
Envolvidos nos meus braços, presos ao meu peito, nem vi o amanhecer,
nem notei que nos distanciávamos do meu país. Não importava o futuro, nem
para onde íamos. De uma única coisa eu tinha certeza: ninguém os arrancaria
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Habitando o tempo
mais de mim, nem que, para defendê-los, tivesse que matar. Hoje, trinta anos
vividos, reafirmo essa promessa.
No banco da frente, um jovem casal de simpatizantes me levava para o
Uruguai. Em oito horas de viagem, pouco nos comunicamos. Eram simpáticos,
carinhosos, prestativos. Tinham ordens de deixar- nos em Montevidéu.
- Dentro em pouco, chegaremos à fronteira. - lembrou a companheira.
Pegue sua nova identidade. Melhor se livrar da antiga.
Com os dentes, cortei, pedaço a pedaço, todo o meu passado, levado
prazerosamente pelo vento, nas rimas apaixonadas de Vinícius:
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1969 - Fronteira do Brasil
com Uruguay – Montevideo
“La vida no es la que uno vivió,
sino la que uno recuerda, y cómo la recuerda para contarla.”
Gabriel Garcia Marquez31
Tensos, mas parecendo turistas lépidos e fagueiros, a caminho de
Bariloche, cruzamos o posto policial. Registraram o carro, documentos.
- Podem seguir - ordenaram.
Paramos para urinar, ali mesmo, na estrada. O primeiro susto passara.
Com Pedrinho e Rodolfo havia traçado uma estratégia. Iria para Cuba.
Diante da situação, não poderia desistir. A organização daria dinheiro suficiente
para qualquer imprevisto. Andrada fora claro. Eu andava com os militantes da
VPR, e, a qualquer deslize, ele não hesitaria em eliminar-nos. Não lhe faltava
coragem ou determinação. Nada impediria a ação há tanto planejada. Ele era o
comandante com poderes absolutos. Andrada vinha da Linha Vermelha, um
segmento da esquerda radical. Era um guerreiro duro, inflexível.
Chegamos a Montevidéu, ao cair da noite. Deixaram-nos.
Com carinho antecipado fomos recebidos por um casal de Tupamaros. Uma
família Tupamara. Alegres, solidários, sofridos, amados, perseguidos, fortes e
seguros.
Vez por outra soava a sirene. Era a polícia, buscando Tupamaros. Saíamos
ao parque a caminhar, enquanto eles desfilavam pelas casas, registrando tudo
e todos. Buscavam o que eles jamais lograriam encontrar: as idéias.
Dias de expectativa, contudo maravilhosos. Trocávamos informações
durante horas, sobre nossos países, nossos projetos de liberdade, a união da
América Latina, sobre nosso presente, sem jamais mencionar nosso futuro.
Com os companheiros que participariam do sequestro, mudamos para um
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Gabriel Garcia Marquez – Escritor - Aracataca / Colombia
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Manuel Bandeira – Poeta Recife -PE
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1 de Janeiro de 1970
Aeroporto de Carrasco - Montevidéu
Vôo 114 - Dez anos da Revolução Cubana
…”O valor das coisas não está no tempo que elas duram,
mas na intensidade com que acontecem…”
Fernando Pessoa33
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Fernando Pessoa – Poeta - Lisboa - Portugal
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requisitado à cabine.
Borges, o co-piloto, alertou sobre os problemas que certamente surgirão.-
informou André.
- Não chegaremos a Havana. Vamos parar em Porto Alegre para trocar de
nave. - sugeriu Amaral.
- Porto Alegre? Não. Não voltaremos a solo brasileiro. Temos que chegar a
Cuba de qualquer maneira sem sair deste avião.- sentenciou Andrada.
- Não vejo saída. Vou falar com a torre de Buenos Aires. Esta aeronave tem
que ser reabastecida. Temos problemas legais. Autorização de pouso na
Argentina, pagamento de combustível. Temos um protocolo a cumprir. –
mencionou Amaral, o Comandante do Caravelle.
- Vocês não entenderam? Isto é um sequestro!
- Entrem em contato com o aeroporto de Buenos Aires, peçam
permissão de aterrissagem e expliquem a situação. Eles vão entender. Isto é
sério. - concluiu.
Ezeiza – Buenos Aires. 19:00
Trinta minutos depois, aterrizávamos em Ezeiza - Buenos Aires, para
abastecer o avião. O manifesto lido a bordo, deixado com os Tupamaros,
chegara às redações dos jornais. Agências internacionais informavam ao
mundo a notícia de um sequestro num país que escondia sua história aplastada
pelas botas militares.
O sequestro tomava um novo rumo. O nome de cada um dos
sequestradores havia sido divulgado. A presença das crianças, como parte da
ação, também.
De nada valera a decisão de não mencionar meu nome, nem o dos meninos,
nem a presença de uma segunda mulher para cobrir a ação, na possibilidade de
que algo desse errado, como colocaram Andrada e André, pouco dias antes em
Porto Alegre.
Todo o cuidado e cautela, daí por diante, seria pouco. Uma pequena
distração, e um passageiro mais afoito poderia pegar uma das crianças e fazê-
la refém. Mudei de poltrona. Coloquei meus dois filhos do lado da janela e me
acomodei no corredor. Escondi a arma embaixo da bolsa, e, concentrando-me,
pus todas as minhas energias em estado de alerta.
Um casal de idosos foram os únicos passageiros autorizados a deixarem o
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Cesar Vallejo – Poeta – Santiago de Chuco - Peru
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Chabuca Grande – Poeta – Interprete – Cotabamba - Peru
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pelos que têm o direito de conhecer o mar, pelo direito que todos têm de ser
felizes, como dizia Martí. Por todos eles.
- Deixe-me a sós com meus companheiros, por favor. - pedi.
André ía falar. Cortei.
Eu não vou deixá-los. Não agora. Antes que vocês aparecessem na minha
vida, eu já cogitava em sair do Brasil. Um dia, conversaremos sobre este
momento. Conversaremos. Chamem o Comandante, por favor...
- Eu.
- Eu vou ficar! Agradeça ao Governo Peruano a delicadeza do gesto.
Agradeça aos jornalistas a solidariedade. Diga ao governo brasileiro que não
vou descer deste avião.
- Não quer pensar um pouco mais?- pediu.
- Não. Não preciso pensar, para decidir o que há muito está decidido. Não
sairei deste avião.
Voltou três vezes, tentando dissuadir-me:
- Mas se a senhora…
- Por favor, não insista.
Coçou a cabeça pensativo, preocupado. Afinal, sua vida também estava em
jogo. Visivelmente nervoso, completou:
- Se você não vai mesmo sair deste avião, aviso que na parte traseira há
uma porta que abre. Vocês devem ficar de olho nela. Seja o que deus quiser.
Vou transmitir sua decisão ao representante do ministro de Relações
Exteriores.
- Tudo bem. - respondi secamente.
Todos me olhavam. Uns, tranquilos diante do inevitável; outros,
resignados, exceto aquela senhora.
Que sabia aquela mulher de sofrimento, que sabia das torturas e
torturados, que sabia de liberdade, de pão, de sede e frio? Do povo massacrado,
sofrido, sem esperança? Dos nossos sonhos de liberdade? Da alegria, ao ver as
crianças de rua em escolas, de homens e mulheres não violentados, trabalhando
com dignidade? Do amor à pátria? Um dia, talvez saberia. Eu não estava
expondo meus filhos. Estava impedindo que eles fossem torturados em nome
da ordem e do progresso.
Sairíamos ilesos, fisicamente; tinha essa certeza, acontecesse o que
acontecesse. Perder nunca fez parte do no meu propósito de vida.
- Abra a porta dos fundos, imediatamente! Um de nós vai ficar lá de
plantão... André!
O cheiro insuportável do banheiro impregnava toda a nave. Doze horas
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Torquato Neto – Poeta, letrista – Teresina - Piaui
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4 de janeiro de 1970
Aeropoerto José Martí -
Havana. Cuba.17h30m.
…”Si quieres regresar, ya no es posible;
a medida que avanzas se borran los caminos…”
Waldo Leyva37
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Waldo Leyva – Poeta Santiago de Cuba - Cuba
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Numa casa, situada bem próximo ao aeroporto, ficamos, até que depois de
algum tempo, outro militar veio nos buscar. Carreguei Marcello e Eduardo nos
braços até o carro, desejando ardentemente chegar ao destino. Uma casa, uma
choupana, um quarto fedorento de hotel, uma mansão, mas chegar. Queria
chegar. Chegar, chegar.
Que avenida florida! Quantas árvores estupidamente frondosas, quantas
margaridas! Igrejas, mansões!... Quantas mansões! Olhava atônita. Será que nos
blefaram!?
Cuba não era cinzenta e triste? Não era!? Parece-me que não!...
A energia emanada daquele solo, fez-me voltar mansamente à vida…
Ao dobrar a esquina, um cinema. Em cartaz “Les Parapluies de Cherbourg”.
Este filme passando aqui?... Esse filme? Aqui? Será uma alucinação!? Meu deus,
como controlar este sintoma? Não agora!
Quantas mulheres elegantes! Vestidos godês!... Penteados B-52, saltos Luiz
XV. Devem estar filmando algum filme de época. Hoje, está na moda. A minissaia
libertou a mulher em muitos sentidos. Das milhões de anáguas, da censura
sexual, e, pouco a pouco vai diminuindo o jugo machista. É importante registrar
todas as épocas, pensei com meus botões.
O hall do hotel Capri, apinhado de gente que circulava de lá pra cá, deixava
escapar a esfuziante alegria dos atores.
Não estava tendo alucinações! Todos os personagens estavam vestidos
assim. Menos mal! Ainda mantinha a consciência.
Divertida, essa Cuba!
Nem percebi quando preenchi a ficha do hotel, muito menos quando
mudaram meu nome e os dos meninos, tal a curiosidade de olhar ao redor.
Subimos ao quarto, me banhei e aos meus meninos. Coloquei-os na cama e
jamais poderei precisar como ou quando conciliei o sono.
Um surdo barulho de ondas, entrou sorrateiramente pelos meus sentidos:
- Dormi! Ai, meu deus, dormi!
Pulo da cama sobressaltada, tropeçando. Vou à caminho da luz que vem
discreta através da janela.
Abro a cortina.
Diante dos meus olhos embaçados, vejo o mar. Furioso, agressivo,
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Silvio Rodriguez.38
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Silvio Rosdriguez – Poeta, compositor, e interprete – San Antonio de Los Baños – Cuba
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1970 “Año de los 10
Milliones”
“Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá…”
Canção do Exílio –Gonçalves dias39
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Gonçalves Dias – Poeta, teatrólogo – Caxias - Maranhão
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fazê-los felizes. Estou chorando por causa do mar. A partir de hoje, é minha
única fronteira. Estou acostumada a múltiplas fronteiras.Trás o horizonte,
fazendo uma curva de cento e oitenta graus, o meu país - aquele onde canta o
sabiá, ora nos versos do poeta, ora na canção. Meu Cell, meu Edu! Tão pequenos.
Tão lindos. Tão puros. A resposta foi um sorriso secando as lágrimas.
- Passou. A brincar, criançada.
“O programa de hoje está dedicado a Beny Moré”. A voz vinda do rádio me
assustou.
Estou no exílio.
Todos os olhares nos vasculharam de cima a baixo, percorrendo curiosos
desde os cachos da cabecinha dourada do Eduardo, até chegarem extasiados a
um par de pernas soltas, livres, despidas, em uma discreta mini-saia para o
cone-sul, escandalosamente nua para a ilha caribenha. Olho ao redor, também
desconfiada. Não era filme a cena da noite anterior, exceto as garçonetes e o
maitre, todos desfilavam modelos dos anos 50. Saias godês, cabelos laqueados,
maquiagem excessiva para a primeira hora da manhã. À primeira vista, a
charmosa ilha de Fidel havia parado em 1959. O desconhecido me intrigava
naquela primeira manhã de exílio.
Vestiam-se à 1950. Porque no cinema passava ’Guarda-chuva do amor‘?. O
filme era mais ou menos recente, lançava Catherine Deneuve no cinema.
Alguma coisa soava errada. A curiosidade aguçou meus sentidos. Tinha que sair
logo, ganhar rápido a rua, desvendar o mistério de 10 anos de socialismo.
Comemos felizes os donuts recheados de doce de leite, bolos, pãezinhos,
algo de fruta e um inesquecível café com leite, quase carioca, ligeiramente
mineiro.
- Antes de mais nada, vamos ver o mar. Depois sairemos por aí para
conhecer a Ilha, - conversava com os meninos.
- Mãe, um murinho! Vamos Edu. Corre, corre.- gritava Marcello
Em um piscar de olhos, segurando minhas mãos atravessadas, subiam no
murinho que bordeja o Pabellón de Cuba, bem ao lado do Hotel onde estamos
hospedados, para seu passeio preferido: caminhar em murinhos e, lá pelas
tantas, atirar-se, voar pelos ares presos a minhas mãos, até alcançarem a
calçada.
- Um, dois e... Tibum...
- Cuidado, companheira.
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Roque Dalton – Poeta e guerrilheiro. El Salvador
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Luis de Camões - escritor e poeta. Reino de Portugal
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uma das partes de leão, pode reviver poderes perdidos, curar doenças e
conseguir imunidade frente à morte.
- Mãe, olha o macaco - tirou-me Marcello de minhas divagações.
De regresso passo pela cafeteria.
- Quero sorvete de chocolate.
- Eu de creme, Mãe!
- Não. De chocolate para o Eduardo. O de creme para Marcello. - corrigi o
garçom.
- A companheira, donuts. Acertei?
- Um cafezinho também.
- Acha que vou esquecer seu cafezinho?
Quem serão estes dois homens que não param de olhar e ouvir o que
conversamos? Olho o garçom interrogativa. Vou para o quarto.
Cell e Eduardo, comam depressa que tenho um compromisso. Quanto mais
rápido saio daqui melhor. Quem serão estes homens? Meu Deus.
Vamos. Vamos. Eles nos alcançam no elevador. Ai, Meu Deus. Devem ser
agentes da CIA. Agora tenho certeza, estou sendo seguida e nem prestei atenção.
Como pude cometer este erro? Tanto que me disseram. Cuidado. Cuidado...
Vocês estão protegidos, mas não tanto. Todo cuidado é pouco.
- De onde você é? - perguntou de supetão o mais velho.
E agora ele falou em português. Que sotaque estranho.
- Eu... Eu sou portuguesa.
- De que cidade? - falou o mais novo.
- De Lisboa. Por quê?
- Conhece o Hospital Santa Maria? - voltou a insistir o primeiro.
Hospital Santa Maria. Ai, que terror. Estou perdida. Dentro do elevador,
sem viva alma por testemunha. Vão nos matar. Sim, vão. Estes dois
brutamontes.
- Não. Vivi desde pequena no Brasil. - respondi.
- Hum...
A porta do elevador abriu. Desesperada, grudada em Marcello e Eduardo,
saí quase correndo em direção ao quarto. Detrás os dois, abriram a suíte ao lado.
Estou perdida. Totalmente perdida. O pânico atingiu o clímax. Como fui dar
mole desta maneira? Corri ao telefone para chamar a segurança, quando ele
soou.
- Alô... - contestei aflita.
- Mirian?
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que entramos em uma fria. A única saída é ir embora daqui, pois não podemos
passar a vida sem fazer nada. Colocaram-nos com os trocados pelo embaixador:
o resto, como um todo desgastante. Agora, mais essa. - concluiu magoado.
- Paciência. Ir para onde? - perguntei preocupada.
- Quem sabe? Europa. Tentar novos contatos. Voltar para América do Sul.
- Aos poucos vou adequando minha vida. Não vejo saída, hoje, para nossa
situação aqui. Vocês não estão preparados para voltar ao Brasil. Sem
infraestrutura é suicídio. O que precisamos é estar preparados para dar
condições aos que ficaram, para derrubarem a ditadura, e não sair morrendo
para firmar terreno. Cuba precisa de braços e cabeças pensando. Ela é o alicerce
da nossa liberdade. Ajudá-la também é fazer revolução. Pensou nisso? - tentei
interferir.
- Imagina. Quero voltar para o Brasil e vocês também farão o mesmo.
Entendeu?
Andrada andava irritado. Qualquer discussão seria inútil.
- Ok. Amanhã estarei pronta. De todo o modo, não tenho nada a perder.
Mais de quinze dias passaram. Um e outro, no próprio campo de tiro, se
revezavam com Marcello e Eduardo para meu aprimoramento balístico. Fausto,
o pai dos meninos, havia sido um excelente professor.
Como tinha a manha tomada, a tarde era para as crianças. As noites, para
ler. No conhecimento encontraria meu caminho.
Ibrahim sumido. Amílcar voltara à África. Luiz trabalhava todo o dia.
Algumas noites, conversávamos até altas horas. Em poucos dias, também
seguiria uma nova estrada. Roque andava às voltas com o término de um
trabalho e Marta fora ao México. A saudade habitava dura o coração.
Vivia um marasmo, amoldando-me, recriando a vida.
- Traga as crianças para merendar aqui; sairei um momento para entregar
uma matéria e volto rápido. - convidou Marta que retornara no dia anterior. -
Ah! Um amigo! Abre a porta.
- Ok!
O sorriso diáfano, a tez negra emoldurada por fios negros como azeviche,
magro, elegante. Uma visão afro-cubano-brasileira diante da minha íris
deslumbrada.
- Mucho gusto. Pablo. - cumprimentou. - Mirian, la brasileña. Certo?
- Prazer. – respondi.
- Marcello e Eduardo, os guris de Rio de Janeiro, - balbuciou a meia voz.
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Caetano, Gil, Chico, Bethânia foram a temática das horas que se seguiram.
- Adoro Elis Regina. Fascinante voz, lúdica, perfeita. - confessou orgulhoso.
- E. Nelson Cavaquinho? - interrompi. - Por acaso existe coisa mais
deliciosa? Ele folheia a alma da gente, inebria, contagia, sufoca, nos
compromete, aperta e solta, em um frenesi. Quando a Bethânia entra cantando...
- Aposto que a música não saiu de cena? - cortou Marta.
- Enfeitiçado.
- Pensou que era brincadeira? - beijou-me a fronte carinhosamente.
Ramon, Raul, Marcello e Eduardo atropelavam Chicos e Caetanos,
Lamarcas e Marighellas em passadas velozes da varanda para a sala, em uma
tarde memorável.
O sol se perdeu no horizonte, apareceram as primeiras fulgurantes...
- Vou andando, as crianças precisam comer e dormir. - levantei
despedindo-me.
Pablo Milanez impostou a voz, sério, decisivo: “Quero alistar-me na
guerrilha brasileira Sou o número um. E dessa condição não abro mão”. Afirmou
decidido.
Em uma despedida à brasileira, um beijinho em cada face, abracei-o
apertado. Feliz dia aquele, ganhei um dos maiores amigo que tenho pela vida a
fora.
- Nos vemos? - perguntou ansioso.
- Com certeza. Alguma coisa me diz que vou ficar muito tempo por aqui.
Abri a janela, dando passagem aos primeiros raios de sol que insistiam em
nos despertar. A Portela entrava impávida na avenida, reverenciada pela massa
extasiada de ‘na onda azul e branca’. Paulinho da Viola⁴⁸ abria os braços,
enlaçando o samba que escapava no vento fresco da madrugada e se perdia
entre as montanhas, ganhava os mares, soberbo, entrava na corrente marítima,
espatifava nas rochas, escapulia da espuma, adentrava batucando no meu
coração. ‘Ah... Minha Portela quando vi você passar, não posso esquecer aquele
azul, não era do céu não era do mar...’ Quem ganhou o carnaval?
- Quem ganhou o carnaval? - perguntou Marcello.
- Ah! Estava pensando alto. O ano passado ganhou a Portela.
- Eu gosto da Portela! -sorriu Marcello.
- Também. - sussurrou Edu.
- A gente adora a Portela, o Flamengo, o Brasil. – brinquei, puxando os dois
para fora da cama.
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Portugal, ou Espanha, ou quem sabe para onde. O fato é que muitos anos se
passaram até que houvesse um novo reencontro.
A Ilha cheirava a trabalho. Em batalhão, labutavam incansavelmente para
atingir a safra, estabelecida em 10 milhões de toneladas de açúcar. O máximo
que Cuba alcançara em toda a sua História havia sido pouco mais que sete
milhões.
Pelas manhãs, centenas de caminhões abarrotados atravessam as ruas em
direção a algum engenho de açúcar.
Chapéus de palha cobrindo lenços que escondiam com cuidado os cabelos
penteados vaidosamente na noite anterior, preservando-os da poeira suja das
estradas e da poeira branca dos canaviais. Cantarolando, despertando mais um
dia, lá iam pelas estreitas carreteiras as brigadas de homens e mulheres,
dispostas, definitivamente, a conquistar o futuro a golpe de machete.
Todas as manhãs, como em um cotidiano buarqueano, marchavam eles,
acompanhados por nacionalidades solidárias. Brigadas e brigadas se juntavam
aos que, desde o início da safra, haviam se mudado para os engenhos.
Quando pela manhã o telefone tocou, pensei em Travassos. Tão cedo. Que
programa tem ele reservado. Que surpresa traz a sua chamada?
- Alô!
- Oi!
- Ibrahim, quando você chegou?
- Ontem à noite, mas você não atendeu ao telefone.
- Com certeza tocou no quarto errado, pois tanto Roque quanto Travassos
saíram daqui já bem tarde.
Uma discreta euforia balançou meu coração. Estava feliz por ouvir sua voz,
ou era a aveludada manhã de abril, de um abril que se anunciava inesquecível
para todo o sempre?
- Os meninos vão ao parque? Bom. Quer dizer, vamos ao Hotel Nacional
brincar um pouco com eles? Posso?
- Ora, Ora. Sempre pode. - respondi envergonhada.
Havia por detrás daquela afirmação um misto de carinho, uma tênue
saudade. Calada, comprometedora.
- Agora.
- Agora. Estou esperando no hall dentro de dez minutos. Que tal?
O Ibrahim não é, propriamente, um homem bonito, mas tem um não sei
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- Olá.
- Vamos ao cinema? A Marta fica com as crianças. Falei com ela.
- Que horas são?
- Sete.
- Sete de quê?
- Como de quê? Da manhã.
- Um cineminha pela tarde?
- Ok. Um cineminha pela tarde. Te vejo ás 3 horas na casa da Marta.
- Caramba. Com este vestido amarelo, o bronzeado realça de uma maneira
especial. O batom laranja dá um toque primaveril, e o cheiro do Arpeje inunda
o início da tarde. Tem certeza que é um cineminha? - comentou Marta olhando
risonha.
- Lógico. Desde janeiro de 1969, não sei o que é pegar um cinema. Sozinha,
claro. Abril chegou e esta é a primeira saidinha sem os meninos desde que
cheguei à Ilha.
- Vá. Divirta-se. Dou conta dos quatro.
O silêncio engolia as palavras, as passadas trôpegas confundiam a
caminhada pela Calle 17.
- Sou de Osasco. Você nasceu no Rio?
- Minas Gerais. Do primeiro exílio, dos primeiros mártires, das minas de
ouro, dos poetas, das Marílias e dos Dirceus. Das montanhas. Osasco tem
montanhas? Como as de Minas? Duvido? - completei, sem deixar lugar à
resposta. - Para mim, Osasco é uma fábrica só.
A tarde vacilava entre ir-se discreta ou sair de cena rapidamente. A praça
entre B e C é linda. Um coreto de cimento todo trabalhado com motivos afros e
mexicanos. Árvores enfeitiçadas, frondosas, de um verde matizado, nos
convidam a compartir nossos segredos.
- Sentamos? - convida Ibrahim.
- Aqui, não. Ali. - indicou um banco ao lado esquerdo do coreto.
Meu Deus, este cara me desperta um não sei quê de desejo... Uma vontade
de ficar perto, de sentir seu toque, de ficar olhando, tocar...
Em silêncio, seus olhos entram pelos meus, deslizam mudos pelos meus
cabelos. Falta o ar... Suas mãos estão geladas, suando, umedecendo minha face,
vão descendo devagarzinho, envolvendo de mansinho meu rosto, em câmera
lenta, alcançando meus lábios trêmulos. De suave, tímido, úmido ao beijar
profano. Seus braços enlaçam meu corpo sem pudor, deslizam pelo meu
pescoço. Ganha de novo meus lábios, passeia molhado por meus olhos, toca
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minhas mãos, sobe para meus ouvidos e, em uma declaração quase que infantil,
sussurra: estou apaixonado por você.
Também... estou. Desde quando, em que tempo, quando descobri, quando
chegou? Sei lá. Mas, estou.
- Eu quero você pra mim. Só pra mim. – insistia, como se um batalhão nos
fosse sacar daquele terceiro instante de felicidade.
Caídos na eternidade da paixão, a lua entrou confundindo o tempo.
- Gostaram do filme? – perguntou Marta.
- Oi, mãe! Oi, mãe! - interromperam Marcello e Eduardo.
- Adoramos. Oi, amores. Brincaram muito? – completei.
Dormi abraçada a Marcello e Eduardo, inebriada.
Este amor com o Ibrahim explodia diferente de todos os que eu já havia
vivido. Sem medos, sem rivais, sem passado. Sem primeiro amor, sem ter que
devolver o Neruda, sem marcas, sem traumas. Se fosse eterno, valeria, se
enquanto durasse, como sonetear Vinícius, daria igual. A paixão muitas vezes
havia rondando meu coração, todas carregadas de lembranças passadas.
Nenhuma delas com os corações virgens. O do Ibra era virgem de mim e o meu
dele. Íamos ser felizes. Juntos ou separados.
“Mercenários desembarcam em Baracoa42,” anuncia o locutor que compartía
todas as nossas manhãs. “Durante o combate, quatro combatentes
revolucionários morrem e dois ficam gravemente feridos”, completou.
Desci para o café da manhã preocupada com os ataques em plena euforia
do açúcar.
- Sem preocupação, Mirian. A gente tira de letra estes mercenários. Por
vezes, costumam sacrificar alguns dos nossos, nunca o povo inteiro.
Aprendemos a defender nossa pátria a golpe de guitarra e canhão.
Aleida argumentava firme. Seus lindos olhos castanhos espanholados
reafirmavam a decisão tomada há muito por todos os cubanos: nossa
independência é prioridade um. O resto, todo o resto que nos toca viver; em
segundo lugar.
Nove dias depois, os mercenários de Baracoa capturados eram julgados,
condenados e fuzilados.
Despertei infeliz. A velha e conhecida angústia despertou meu coração.
Baracoa me preocupava. Não era Baracoa. Vinha de longe, o vento trazia
notícias. De repente, a vontade incontrolável de chorar. Que havia acontecido
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Barocoa – Provincia de Cuba
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"Companheiros pescadores,
Companheiros trabalhadores,
Camponeses,
Estudantes.
Faz aproximadamente 48 horas que, neste lugar, vem se reunindo
o povo para expressar seus sentimentos e a sua decisão. Ouvimos
mães e, entre elas, as dos pescadores, que naqueles momentos
viviam sob a angústia do que os mercenários criminosos fossem
capazes de fazer a seus filhos.
Sem dúvida, desde o primeiro instante, tínhamos a segurança de
que ganharíamos esta batalha. Desde o primeiro instante, tivemos
a segurança de que nossos pescadores regressariam sãos e salvos à
nossa pátria, e mais, que seriam devolvidos sem condições de
nenhuma classe.
Desde o primeiro instante, advertimos o responsável principal por
estes fatos, que é o governo dos Estados Unidos, o único
responsável pela vida destes 11 pescadores. Caso contrário, teriam
que assumir também a responsabilidade de qualquer medida que,
em qualquer terreno, o povo de Cuba se visse na necessidade de
tomar, se os pescadores fossem assassinados.
Em geral, nosso povo aprendeu muito de política nestes tempos, e
aprendeu muito de questões internacionais, e aprendeu a saber
distinguir o que se esconde por trás de cada atitude e o que temos
de fazer em cada caso.
“Nós conhecemos numerosos pontos que, neste instante, estão
sendo utilizados como escala intermediária entre a Flórida e Cuba
pelos agentes da CIA.
Lógicamente, el objetivo número uno, el objetivo fundamental era
la devolución de los pescadores sanos y salvos si condición alguna.
Nuestras unidades navales se movilizaron; hicimos un cálculo del
lugar más o menos, o de la dirección, o en qué dirección ellos
tratarían de ocultarse. La tarea era difícil (la de localizar a esos
elementos), porque se trata de un gran número, cientos de islas y
de cayos , y sobre todo la circunstancia de que se trata de un
territorio extranjero, y nosotros consideramos nuestro deber
primero solicitar de las autoridades del gobierno con jurisdicción
sobre ese territorio que tomara las medidas pertinentes del caso, a
fin de localizar a los mercenarios y rescatar a los pescadores.
Nosotros estábamos completamente seguros de que no habían
regresado a la Florida. Todo el mundo sabía eso, porque nosotros
sabemos perfectamente cómo opera la CIA. La invasión de Girón
no salió de la Florida. Se entrenaron en Guatemala, salieron de
Nicaragua, vinieron escoltados por barcos yanquis hasta las
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para brincar. Podemos fazer um montão de coisas: teatro, ter cachorro, brincar
no quarto, na sala. Como na casa da Marta.
- A Marta vive em um apartamento? – interrogou.
- Vive em um apartamento. - concluí.
- Vamos gostar, manito. - comentou com Edu.
Firmin enfiou a chave na fechadura, orgulhoso. Era todo sorriso.
- Uma casa para Marcello e Eduardo. – foi entrando comentando.
- Linda! Linda! – abracei-o eufórica.
- Venham ver. – chamou, indicando os quartos.
- Todas as janelas dão para o mar. Gostaram da varanda? - apresentava-
nos cada compartimento. – Agora, a cozinha. Que classe de fogão! Quatro fornos,
seis bocas e uma prancha para deixar a comida esquentando. E esta geladeira
com água gelada. – Bárbara sorria.
Com Edu nos braços, olhávamos curiosos. No Brasil, os fogões não são tão
sofisticados, nem as geladeiras com filtros de água. “Que chic”, pensei. Tudo
brilhava, cheirava gostoso, limpo.
- Bom, aí tem de tudo. Peixe, camarões, ovos, carnes, leite. Todas as
semanas, trarei novas compras. Se necessitar algo, telefona para este número.
Venho em seguida. – completou, olhando-me espantado. - Aconteceu alguma
coisa?
- O que vou fazer com tudo isso? – perguntei apavorada.
- Comida.
- Comida? Mas...
- Não sabe cozinhar? - perguntou dando risada.
- Alguma coisa. Peixe, lagosta... Ovos não. Bife, nem falar, sai horroroso.
Estou ferrada. Completamente.
- Damos um jeito nisso. Hoje,você se vira, amanhã pela manhã venho
ensinar umas coisinhas, - falou, saindo porta fora.
Só. Sozinha.
Busquei com os olhos Cell e Edu parados à porta. Abaixei devagarzinho,
apertei-os forte. Transpus a sala, assomei a varanda, fitei o céu. A tarde
despencava entre nuvens carregadas de eletricidade. A tempestade ostentava
relâmpagos e trovões. O céu caía na correnteza das águas que se atiravam
impiedosas sobre as flores, despetalando-as. A primeira tarde na Calle Terceira
y 96. A primeira enxurrada, o primeiro rugido ensurdecedor do mar, o primeiro
vento varrendo sonhos e tristezas, trazendo consigo o nascimento de outro
porvenir.
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conhecer a casa. Até agora, curtimos a tempestade, a varanda, a playita. Que tal
voltarmos à casa onde vamos morar?
- Sim, mamãe. Né, Edu? Vamos ver nosso quarto?
- Sem correr. ‘Pera aí’. Oi. Oi. Cell, Edu. – corria atrás deles tentando
alcançá-los. Ufa! Agarrei os dois no ar...
- É querosene que fala em português? Não é?
Olhei espantada. Que susto! “Sim, é querosene”, respondi sem entender
nada.
Uma visão! Um metro e quase oitenta, linda, magra. Cabelos castanhos de
ondas largas, escuros, olhos mais escuros que a noite, emoldurados pela tez alva
como palomas blancas.
- Sou Lourdes. - completou. - Não falo português, mas sou louca pela Maysa.
Impossível refazer do susto! Da voz rouca, da beleza feito aparição em
noite de lua e, de quebra, apaixonada pela deusa da música popular brasileira?
- Olá. Sou Mirian, brasileña. Vou morar no segundo andar.
- Bem vinda. Muito bem vinda.
- Quase não sei espanhol. - falei
- Euuu nãooo falo português. Estamos quites – sorriu. - Seus filhos?
- Marcello e Eduardo. - apresentei.
- Tenho três: Luly, Mari e Leonel – o Allu.
- Marcello viu uma menina na janela. Esteve chamando por ela.
- É a Luly.
Caramba. Inacreditável. Então é Luly a menina da janela, filha de uma
cubana que adora a Maysa. Miramar promete.
Noite afora, perambulei pela casa, enquanto meus anjos adorados
dormiam em suas camas enormes. Cairiam no chão? Volta e meia, meus olhos
passeavam pelos cabelinhos dourados. Caminhava até a varanda, via o delinear
das árvores, escutava o mar, conferia o contorno dos pinheiros na escuridão.
Metade de mim vagava pelas ruas de Laranjeiras, lia Machado de Assis⁴⁹,
adentrava em Augusto dos Anjos, tomava um chope gelado no Lamas; a outra
desbravava a realidade.
Miramar amanheceu, desnudando cada instante em um doce gesto de
amor e cumplicidade. Os pequenos edifícios se confundem com as suntuosas
mansões hollywoodianas, bordejadas de árvores majestosas, atapetadas de
pequenas e doces margaridas, onde jibóias, girassóis, cactos e pequenos ficus,
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brincando.
- Até que os brasileiros são espirituosos – completou sorrindo. - Vou
insistir com a Cia de gás.
Quebrou o gelo, o iceberg, a barreira ideológica. Dama esguia,
elegantemente vestida, adornada com seu colar de pérolas legítimas - frisava
presunçosa, - e lábios cuidadosamente pintados, Juanita era a avó dos meninos
de baixo, os amigos de Marcello e Eduardo, a sogra do intragável Leonel, mãe
da deusa da beleza, como diziam meus companheiros – mulherengos como eles
só.
“Com um pouquinho de carinho, umas pitadas de amor, eu ganharia esta
mãezona. Deixa estar”. Subia as escadas arquitetando a conquista.
- Lourdes... Entrem, já disse. Venha agora – esbravejou uma voz masculina
saída dos quinto dos infernos.
- Um momento, Leonel. - respondeu Lourdes com as faces subitamente
avermelhadas. -Desculpe, Mirian. Noutro momento falamos.
Equivocadamente ou não, pela voz, pude entender quem era Leonel. Um
agridoce, cuja conquista demoraria alguns intermináveis anos.
Galeno aparecia pelas manhãs. Acordava cedo e despencava até Miramar
para saber as novidades e brincar com os meninos. Dija vinha à tarde, quase
todas. O Brasil presente em todas as conversações. Dulce estava presa em São
Paulo, torturadíssima. Tínhamos medo que ela morresse. Quanto resiste um ser
humano à tortura física e moral? Dulce bravamente resistia. Chorávamos e
torcíamos por ela. Dija a amava tanto, tanto que seu coração tomava todo seu
corpo para abrigar a guerreira distante. Amei e respeitei Dulce desde a primeira
declaração de amor do seu entranhável companheiro. Por todos eles, que nos
cárceres do meu país sofriam as dores físicas em defesa das morais, por todos
eles, tínhamos que ser melhores a cada dia. Mais conscientes, mais firmes, mais
seguros, mais revolucionários. Estudávamos, discutíamos nossas condições de
exilados. Que fazer? Como crescer? Tardes trás tardes, amadurecíamos um
pouco. De cada pôr-do-sol sugávamos a força que emana da mãe natureza para
nos tornarmos melhores. Tentávamos...
Enquanto o General Médici capitalizava a vitória do tricampeonato para
seu governo, mérito único e exclusivo de vinte e duas feras muito bem treinadas
e definidas pelo João “o sem medo” - o João Alves Jobim Saldanha, comunista de
carteirinha como costumava ser chamado, - milhares de brasileiros eram
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com suas canções e a paixão pelas do meu país. Vinícius de Moraes, Chico
Buarque, Milton Nascimento, as Bachianas, de Villa Lobos - interpretadas
magistralmente por Sérgio Vitier. Descobri que, naquela esquina de la Calle 23
entre 10 e 12, aqueles meninos, haviam fincado um pedaço de um país chamado
Brasil. O Grupo de Experimentação Sonora composto por eles, criado pelo ICAIC
– Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica - tinha por finalidade
principal fazer música para cinema, experimentar novos harmonias, estreitar
as relações com a música tradicional de Cuba e a Música Moderna Internacional.
Era o embrião da Nova Trova germinando. Eram os trovadores numa
genealogia musical aceitando-me para sempre como irmã e companheira.
Antes que, fosse anunciada a entrada de 1971, Silvio e Pablito, se
apresentavam no Festival Internacional de Música Popular em Varadero.
Sem pedir licença, dezembro transpôs o umbral do mês das somas e
perdas. Mês de balanço: do coração, dos amigos adquiridos, das parcas
esperanças, das conquistas. Mês de comemorar Cell e Edu.
Quinze e dezessete é para sempre, durante toda a minha vida dias de festa.
Não importa o preço. Custe o que custe. Com ou sem bolo. Na rua, na praia, no
Parque Farroupilha - como havia sido no ano anterior. Com ou sem amigos. Se
na clandestinidade os festejamos, aqui tiraria de letra, apesar das dificuldades.
Sou zero a esquerda em questão de bolos e doces. Guloseimas, nem se fala. Mas
festa pra valer se faz com amigos. E, amigos, sei conquistar.
Longe da terra brasilis, da família, dos antigos amigos, de Ipanema, do
samba, do Pixinguinha e do Flamengo, nada faltou. O bolo confeitado, os
croquetes de frango, carne e camarão. As mil-folhas, bombas e folhados
recheados de doce de goiaba - ainda hoje nosso fetiche.
Em uma das paredes da sala, Glen – o amigo de tantas - colou a saudade em
num mosaico de cores, pedaços do Brasil. Um enorme Corcovado, capa da
Revista Manchete, a Bruna Lombardi linda, com aqueles olhos vermelhos -
primeira paixão do Marcello, que completava quatro anos.
Praias, Caetano e Gil, ruas, montanhas, palavras de ordem, propagandas e
a Bethânia de microfone em punho, fantástica, soberba, ecoando parede à fora,
agitando nossos corações, slogans de 50, 60 e 70.
Rodopiamos com Jair Rodrigues, Beth Carvalho, os Novos Bahianos, Elis,
Nara, sem falar no Roberto e Erasmo, cantamos parabéns, dançando alucinados
até a madrugada.
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José Martí – Fragmentos e poemas.
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1971 – “Año de la Productividad”
"Os poemas são pássaros que chegam
Não se sabe de onde e pousam
No livro que lês.”
Os Poemas – Mário Quintana
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Jornalistas, presidido pelo então chanceler Raul Roa. CEIBA I foi inaugurada
como a primeira escola secundária no campo. Alicia Alonso trouxe, para alegria
de todos, de Paris, os primeiros prêmios.
A técnica australiana de corte de cana queimada é adotada para facilitar a
colheita.O primeiro congresso da FEEM reúne jovens estudantes em torno de
temas internacionais. O suave inverno aquece a esperança, desabrocha em
hortênsias azuis. A felicidade esmurra o vento que sopra do Norte. Impossível
deter a História.
Marcello começa a ler quase que sem titubear as primeiras frases. De
números... conhecia todos.
- Para que servem tantos? – pergunta.
- Para aprender a somar e dividir. – respondo.
- Para quê? – volta a insistir.
- Para sabermos quantos amigos temos.Quantas estrelas tem no céu. Para
saber dividir as mil folhas com seus coleguinhas. Tudo na terra, querido, move
em torno dos números, desde o ábaco até o computador.
Era assim. Um grupo de homens caçava animais para comer. Outros
homens juntavam gravetos para fazer o fogo onde iam assar as carnes. Para
dividir entre eles, era preciso somar e depois dividir Assim, foram inventando
os números para dar um nome a cada quantidade. Uma laranja, duas laranjas...
um porco do mato, três porcos do mato... E juntaram tantas e tantas frutas e
tantas e tantas caças que os números foram aumentando, aumentando,
aumentando.
Edu olhou interessado e disse de repente.
- Eu sei, manito. Eu tenho um irmão. Você tem um irmão. Cada um tem um.
Né, Mamãe?
- É, Eduardo – sorri. Eduardo vai saber mais de números que eu e o Cell
juntos.
Ibrahim escutava os longos papos com a criançada brasileira, como dizia o
Fausto, curtíamos cada nova conquista dos meus anjos louros. Na escola, novos
testes psicológicos e de QI acabavam de ser realizados e os dois estavam muito
além da média. Difícil educá-los, mas feliz com o conhecimento que a cada dia
adquiriam.
Estava fascinada com as descobertas na Área Educacional. Afinal, dedicara
parte da minha juventude ao ensino. A Teoria do Conhecimento é a tônica
principal. O sistema educacional cubano reúne vários métodos de
desenvolvimento, baseados no estímulo que determina a independência
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cognitiva e a criação dos alunos. Dos países caribenhos, é o que prima por uma
larga tradição pedagógica, desde as idéias do padre Félix Varela, considerado
um dos forjadores da nacionalidade cubana. "O primeiro que nos ensinou a
pensar”.
Aos métodos de Varela se entrelaçam a Psicologia e a Pedagogia soviética
e alemã. Varela, Makarenko e Vigotsky.
De Varela, o saber pensar para aprender, discernir, escolher. De
Makarenko, o magistral pedagogo soviético, mais que métodos de ensino, a
organização escolar. De Vigotsky, psicólogo, a realização da aprendizagem. O
processo docente é um complexo processo de ensino e aprendizagem.
Se você detém o conhecimento como se produz na mente, então, pode
encontrar os melhores métodos de ensino – argumenta a jovem professora
apaixonada pela Geografia, que conta a história da humanidade.
- Esta ilha vai se tornar um ícone da educação mundial.
– Não tenho dúvida, - agreguei a seus comentários.
Calada, despenquei no sonho, relembrando a irrecuperável perda das
minhas escolas. Onde estariam agora Pedros, Antonios, e Luízes? Qual deles
sobreviveu à miséria, à dor, à falta de pão, à incompreensão de pais sofridos,
envelhecidos pelo cotidiano, desajustados pelas circunstâncias? Qual conseguiu
cruzar a vala negra que os separa da vida?
Sofria silenciosa, entre a contradição e a impotência.
Invejava esta pequena ilha desafiando o mundo com conhecimento,
solidariedade, amor, enquanto um país chamado Brasil - verde, adornado de
esmeraldas, pintado de ouro, banhado generosamente pelo velho Chico, pelo
Paraíba, pelo Guaíra – pobre, infeliz, faminto, rastejava entre dívidas, torturas,
programas de atraso pré-estabelecidos pelos países dominadores. Quando foi
que perdemos a oportunidade: na proclamação da república, no grito da
independência, na chegada da primeira caravela, ou na chegada do primeiro
trem inglês?...
- Atende ao telefone Marcello. – chamei.
- Mãe, é o Olaf.
- Olá, companheiro?
- Você pode trabalhar na rádio Habana Cuba?
- Na rádio? Não sei nada de rádio.
- Aprende - respondeu sorrindo. - Uma das funcionárias do departamento
de Português vai ficar de licença quatro meses e precisamos de uma voz
feminina.
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- Qual é o trabalho?
- Selecionar, redigir as notícias e depois transmiti-las para o Brasil.
- Para o Brasil? – quase gritei. - Redigir as notícias vai lá, mas transmitir...
Você ficou louco. Será que posso?
- Se você pode? Ora, menina, você pode muito mais que isso.
- Ora, Olaf. Não sei não. Se ficar feio. Com essa voz nada radiofônica! Que
dia começo?
- Amanhã.
- Amanhã!
Lá pelas 10 horas, entre folhas e folhas de telex, a máquina de escrever e,
nas costas, a responsabilidade de redigir minha primeira notícia sobre o Brasil
para o Brasil – censurado.
- Você vai substituir a Mirian Bernardes?
Por uns tempos, fui respondendo enquanto caminhava para o estúdio. As
folhas recheadas de notícias balançavam entre meus dedos trêmulos.
- Nervosa? – perguntou, tentando ser cortês.
- Nervosíssima... imagina.
- Sou Robert. O americano responsável pela sessão em inglês. Acompanho-
te. Comigo foi igual. Diga-se de passagem, acredito que com todos foi assim. Um
aperto no peito, uma vontade doida de sair correndo... -confortou-me com seu
sotaque carregado.
- Chegamos, - sorriu. - Good luck! Vejo você na saída.
Uma porta pesadíssima foi fechada à minha passagem. No cubículo forrado
em todo sua extensão por um carpete amarronzado, uma mesa, dois microfones
de cada lado, uma janela de vidro hermeticamente fechada, uma lâmpada
pregada no alto da porta aguardam a ordem do diretor. Olhei minuciosamente
para todos os lados, respirei fundo, puxei a cadeira, sentei-me rápido para
sossegar minhas pernas. Milton, o diretor do programa para o Brasil, faria
comigo aquele primeiro dia. Milton era sisudo/simpático. Falava
comedidamente, o que não me deixou nem um pouco à vontade.
Havia dado algumas entrevistas pela vida a fora, mas fazer um programa
com duração de uma hora – um noticiário – assim de supetão, não sei não...
Conferia as notas agrupadas dos telex, quando a luz vermelha acendeu
pintando no ar “gravando”.
- Boa tarde, Brasil. Na cidade de Havana, presidida pelo Comandante Jesus
Montané, membro do Comitê Central do Partido, foi criada a organização União
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- Sim... Sim...
Domingo de noite, voltavam os cinco. Imundos, unhas cheias de barro,
cabelos pegajosos, pés e pernas marrons de tanta sujeira. A banheira entupia
de tamanha imundice.
- Maninho! Esses meninos não tomaram banho?
- Tomaram. Sujaram na hora de saírem.
- Comeram?
- A gente comeu, mãe. Muito. - apressava Marcello a confirmar.
Alguma coisa me cheirava mal. Comeram... Tomaram banho... E esta euforia
exagerada.
- Hoje foi demais. Pulamos do teto. - comentou Edu.
- Pulou do teto? Que isso, Maninho?
- Ora, Mirian! Brincaram de pular da laje no meu colo. – ria, enquanto os
meninos descreviam minuciosamente as peripécias.
- Um coco caiu na cabeça do Ramon, e ele desmaiou. Desmaiou. – tagarelava
Marcello.
- Foi sim. Ficou com os olhos fechados, depois abriu, – completou Raul.
- Mãe, fomos à casa da moça da espada e do violão quebrado – confessou
Marcello.
- Na casa de quem Maninho?
- Uma amiga, Mirian.
- Lá tem uma espada e um violão quebrado na parede - completou Marcello
- Pendurado na parede? - perguntei.
- É isso aí. Na parede. - respondeu um pouco contrariado.
- Ora. Não posso saber?
- Nãoooooooooo...
Aos poucos fui descobrindo o segredo dos fins de semana chorosamente
prolongados... As comidas eram latas de leite condensado com bolachas d'água.
Banho, só nas noites de domingo em Miramar.
Prometo... Para gravar no disco voador... Cantarolava, enquanto o mistério
simples da felicidade delineava sorrisos infantis.
- Alô! Alô! Mirian você está acordada?
- Acordada... Maninho?
- Sou eu.
- São três da manhã, Maninho!
- Não consigo dormir. Aquela canção da morena não sai da minha cabeça.
- Que morena? Como vou saber? Estou dormindo.
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Roberto Carlos – Compositor e Interprete – Cachoeiro de Itapemirim - ES
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espanhol?
- Sei da minha solidão, da dor que arde fundo, das lembranças, sei dá
vontade de sair correndo pela praia, correndo... Sei do pôr-do-sol, sei de dois
meninos dormindo na Calle Dos – grosseiramente contestei.
- Desculpe. Nem uma palavra entendi – retrucou.
Deitada em posição ginecológica, indefesa, com os braços abertos em cruz,
perfurados por agulhas condutoras do soro fisiológico invadindo todo meu
sistema sangüíneo, levando consigo a perda da consciência que nos deixa no
limiar da vida, vi Cell e Edu se apagando diante dos meus úmidos olhos,
mesclados à imagem indígena de Jaime Barahona.
- Mirian... Mirian... Acorde. Acabamos.
- Hummmmmmmmmmm.
- Acorde.
Verde. Quanto verde! Onde... girava e girava. Num esforço, vejo Jaime
tocando delicado meu rosto.
- Finalizamos. Abra os olhos, preguiçosa, temos novidades – coloquiava.
- Tô com sono...
- Fica para depois. Ainda é cedo. Acorda, o Ibrahim está aí fora aguardando.
Poucos minutos, horas, quiçá! Da Maternidade Obrera à Quinta
Dependiente. Do adenocarcinoma a um legrado diagnóstico. Do desespero à
esperança. Da abrupta solidão à presença silenciosamente terna do
companheiro proleta.
- Ibra! - balbuciei sorrindo.
- Oi, Miroca!
Escondeu minha mão dentro da sua. Um beijo longo umedeceu minha
fronte, passando naquele gesto toda a energia disponível em seu universo.
A voz de Jaime chegava de longe, dissertando sobre legrados
falsos.diagnósticos. Calou-se. Distanciou-se, deixando-nos entregues ao mágico
momento de troca de energia.
- Jaime, desculpe, é que estava tão perdido – falou Ibrahim.
- Imagina, companheiro. Não acredito que Mirian tenha um
adenocarcinoma. O exame ginecológico foi negativo. O resultado da raspagem
também vai ser. Essas hemorragias, certamente, são provocadas pelos cistos
dos dois ovários. Por cautela, aguardamos a biópsia e, posteriormente,
extirpamos os cistos.
- Quantos dias? - Perguntou ainda assustado.
- Cinco. Com diagnóstico definitivo, dez.
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Despertei horas mais tarde, acariciada por umas mãos pequenas, de pele
calejada e suave. Levantei as pálpebras. Dois olhinhos chinos me fitavam com
doçura. Sonho... Acordada, sorri para o rapaz franzino.
- Olá. - cumprimentei.
- Bueno... - esforçou-se para pronunciar. -Vietnamita. Ser vietnamita.
Mestrado de medicina.
- Eu brasileira. – respondi, tal qual ele se identificara.
- Humhummm... Sorriu.
- Não sei falar espanhol, – completou.
- Nem eu. Não importa.
- Ele é vietnamita. Esteve durante muito tempo te cuidando. - intrometeu-
se Gabriela, cantarolando uma canção do Roberto.
Já passava das dezessete horas, quando Jaime chegou. Examinou de cabo a
rabo, olhou minuciosamente a evolução no prontuário e ordenou que me
levassem para o quarto.
Limpíssimo, arejado, virado para o jardim onde podia olhar as ramas
floridas dos flamboyants; respirei aliviada. Estava viva. Bem viva. A biópsia por
congelamento dera negativa. De todas formas, esperaríamos pela específica
para dar nota zero à possibilidade de um carcinoma. Cuidados de uma medicina
consciente. Queria levantar. Olhar pela janela. Caminhar.
- Quer caminhar? Temos apenas oito horas de operada, mas vamos lá um
passinho, para não dizer que sou um ditador que assusta moças indefesas.
- Apraz-me um pouco de ar. Olhar as flores. Festejar a vida.
O vietnamita saiu de mansinho, após tocar levemente meus cabelos. Na
manhã seguinte, encontrou-me no corredor e fez comigo o caminho de volta.
Em menos de dois dias, estava perfeita, mas as normas do hospital eram
rígidas: uma semana para me darem alta. Os dias passavam voando. Todos
festejavam a brasileira. Com flores, com passeios pelos jardins, escapadinhas na
biblioteca, principalmente com a fã Roberto Carlos. Que paixão nutriam aquelas
enfermeiras pelo Roberto. Aí, aprendi algumas canções, sectariamente
discriminadas na época. Roberto Carlos cantava para a ditadura, não fazia parte
do nosso mundo. Mas Roberto lembrava o Brasil, as noites da turma, na Praça
São Salvador, a Stella, a Rosinha de Valença. O Paulo César Studart, - médico
recém formado, lindo e cobiçado pelas meninas de Laranjeiras, as noites no
Zacateca. Reavaliava a Jovem Guarda, os via com o coração brasileiro.
- Manolo, olha essa moça na praia operada. Parece que tem uma ziper na
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Escola, adaptações. Um eterno começar de novo. Sérgio Lara, físico nuclear, bem
sucedido no trabalho, em um gesto único de amizade, ofereceu-me retaguarda
em Paris, juntamente com as crianças. Ficaria em Habana. Afinal, havia feito
anos atrás uma opção de lutar pelo povo brasileiro. Porque não lutar o dia a dia
com os cubanos que a duras penas mantinham viva sua liberdade. Não aceitava
bem esta necessidade de liberdade em país Europeu. Entendia as inquietudes
dos companheiros, mas era difícil concordar . Um dia, talvez não muito distante,
teria uma segunda chance de dar o melhor de mim, para isto companheiros
como Lamarca continuavam a dar-nos esperança, poderia regressar às minhas
estrelas.
Entre encontros e encontros na esquina do ICAIC, um sorriso aqui, um
toque
de mãos acolá, fui abrindo uma das caixinhas como Juanita definir meu
coração.
- Estou pra ver alguém amar assim – sorria satisfeita. Posso assegurar que
está caidinha por este tal de Noel Nicola. Acha que sou boba. Só porque tive um
só marido. Boba sim é o que eu era. Veja o brilho dos seus olhos, a alegria com
que encara as dificuldades, as ausências. Descobri que isto é amar. Tomara.
Tomara Luly saia a você. Só assim poderá ser feliz sempre.
Juanita, a doce e suave Juanita acertou. Abri uma caixinha, cheirosa,
manhosa, de cedro, escondi aquele trovador lá dentro para todo sempre.
Nicola, um acorde de amor, foi meu cotidiano, minha tatuagem, minha
calmaria. Desde aquele encontro em casa de Marta, numa tarde de janeiro de
1970, eu sonhava com este novo encontro. Assim foi. Um encontro casual, na
esquina da 23, saindo do ICAIC, deparei-me com ele, Pablito e Sérgio Vitier.
Olhamo-nos. De “Belle de jour” exibida no cinema da Universidade a
"Dodeskaden," no bairro Marianao, ao convite para ir a San Nicolas para ouvir
uma de suas últimas composições, foi um salto. Inesquecíveis as setas
indicativas “ Aqui” desde a parada de ônibus de San Lázaro até o número 118
de San Nicolas.
“AQUI NOEL.”
Das cartelas á declaração de amor para Mariana, em ’Te Perdono’, deparei-
me com suas mãos suaves como a brisa. Durante anos, seus lábios, seus dedos,
dedilhavam meu corpo. De êxtase em êxtase, desfrutarmos milhares de
terceiros instantes de pôr-do-sol na playita, de mãos dadas com duas outras
paixões: Cell e Edu.
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... “Naturalmente que el deseo sería poder dedicar este acto del 26
de Julio a las cuestiones relacionadas con estos hechos y con el
movimiento revolucionario en América Latina y en el mundo. Pero
es que también tenemos otras obligaciones, puesto que uno de
nuestros fundamentales deberes es no solo alentar y estimular la
lucha de los pueblos, sino también ganar nuestra propia, dura y
ardua batalla en nuestro país – começou Fidel entre aplausos seu
tão aguardado pronunciamento…
Compañeros bolivianos aquí presentes, integrantes de una
representativa delegación….
Nos regocija que en el día de hoy representantes de dos fuertes
movimientos revolucionarios hayan estado presentes en esta
tribuna (APLAUSOS).
"…Y puesto que a nuestro juicio ellos son ejemplo de lo que deberá
ser la patria del futuro, lo que deberá ser la juventud del futuro, de
cómo será la sociedad comunista (APLAUSOS), nuestra más
sincera felicitación, nuestro más profundo reconocimiento en
nombre del pueblo. ¡Nuestra gratitud por haber demostrado con
los hechos que la posibilidad del comunismo para la sociedad del
futuro no constituye una quimera!
¡Nuestro agradecimiento por haber mostrado al pueblo ejemplo de
conciencia, de trabajo y de hombre comunista!
¡Patria o Muerte!
¡Venceremos!
Fidel, volta aos microfones para ler a mensagem da “Brigada Cuba no Peru”
anunciando o fim das obras do primeiro hospital construído em terras Latino –
americanas resultado da premissa cubana – a solidariedade.
A rádio Habana Cuba entrou no ar seca, pesada: “Após um tiroteio travado
entre a polícia e os irmãos de José Campos Barreto, o Zequinha que
acompanhava Lamarca, obrigou-os a abandonar o lugar onde se encontravam
no interior da Bahia e iniciar uma longa e penosa rota de fuga. De 28 de agosto
a 17 de setembro, caminharam 300 quilômetros. Cansados, debilitados,
desnutridos, foram covardemente assassinados ao serem surpreendidos pela
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1972 - “Año de la Emulación
Socialista”
“Tempo, Contratempo
anulam-se, mas o sonho
resta, de viver."
Qualquer – Drummond de Andrade
Compañeros de historia,
”tomando en cuenta lo implacable
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oliva e fez das cinco faixas e uma estrela, sua estrada e sua guia. Mudou
conceitos, deu a mão aos excluídos e os levou para ver o sol, ler as estrelas,
sonhar com outras plagas. Convenceu a todos de que é possível, seja como for,
materializar todos os sonhos.
Discursa, horas e horas. Tem sempre muito, muito o que doar. De gentes,
de guerra, de paz, de força, de solidariedade, de agressões infames, de
ceifadores de felicidade. Em dado momento, descobrimos que ele está falando
de tudo aquilo que oprime nosso coração. De tantas e incontáveis falas caladas
ao longo dos séculos. Encontramos na sua voz o silêncio de nossos
antepassados. Imigrantes em busca de uma vida melhor calaram, nós, por
medo, por falta de oportunidade, omitimos, por franqueza silenciamos. Fidel,
num crescer de palavras, vai enumerando cada situação, descrevendo nossas
vidas, falando por nós, defendendo-nos. A multidão, silenciosa por vezes,
eufórica na maioria dos momentos, lava a alma apinhada de revoltas
escondidas. Este é o seu segredo. Ser imprescindível.
No elevador do Hospital Fajardo, em um desses dias em que minha tireóide
estava a mil, o conheci; quando olhei, ali estava o homem de século. O mito em
carne e osso. Que fazer? Tremia como vara verde.
- Estás enferma? – perguntou calmamente.
- Hipertireoidismo – respondeu Geraldo Matteo, chefe do Departamento de
Endocrinologia, enquanto Hung entrava.
- Porque pintas el pelo, muchacha? – inquiriu, tocando-me a cabeça.
Meu coração saía pela boca, meus olhos esbugalhados resistiam em
acreditar no que viam diante deles. Como contestar, se a emoção era mais forte
que as palavras? Respiro fundo, trêmula, estupidamente respondo:
- Não pinto el pelo, Comandante.
- Não eres cubana?
- Brasileira - completou Hung, sabedor de que seguramente a taquicardia
havia invadido meu peito.
- Cuidenla – comentou, já saindo do elevador. - Os brasileiros valem ouro
molido, - brincou sorrindo.
Inimaginável este encontro. Indescritível a força de sua presença. Anos
passarão e, a cada lembrança desta tarde, sentirei seguramente a suavidade de
suas mãos sobre minha cabeça.
Assim de simples, conheci o Comandante em Chefe da maior revolução do
século XX. Assim de lindo. Assim de singelo. Assim de maravilhosa é a revolução
cubana. De repente, não mais que de repente, o inesperado muda
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Allende chega a Cuba para uma visita de quatro dias e juntos discursam na
Praça da Revolução. Não sei se foi a primeira vez, mas desta feita Salvador
Allende estremeceu a praça com sua força de orador nato, com seus sonhos de
liberdade, com o compromisso de estar lado a lado com a Cuba Socialista, com
o respeito ao ‘Comandante da América Latina’, referindo carinhosamente a
Fidel Castro. Irmanado na mesma fé, Fidel propõe: “que cada cidadão que tenha
três ou mais quilos de açúcar divida um com o povo chileno”.
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1973 - “Año del XX
Aniversario”
A língua que eu falo trava
Uma canção longínqua,
A voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
À margem esquerda da frase,
Eis a fala que me lusa,
Eu, meio, eu dentro, eu, quase."
Invernáculo – Paulo Leminski
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A Tia, mãe de uma família super especial, fora seu neto Ernesto (em
homenagem ao Che) criava mais duas meninas e dois meninos brasileiros. Com
eles saiu da prisão em junho de 1970, trocados pelo embaixador alemão.
“Sem meus netos não vou.” Pisou pé e não arredou de sua intenção por
nada nesta vida, contava com orgulho.
“Torturar-me nem pensar. Vocês não têm mãe, seus fedelhos? Ousem
colocar-me as mãos. Sabe ler? Escrever? Ai.Não vê que estou nessa para que
seus pais possam dar a vocês tudo isso? Olhem para a minha cara! Covardes.
Torturando e matando nossos companheiros. Os militares ficam com o dinheiro
do país, vendem nossas riquezas, e vocês, os babacas, ficam achando que são os
heróis, salvadores da pátria, combatendo seus próprios irmãos. Saiam dessa,
meninos. No final, eles saltam fora e quem paga o pato? O soldado raso. O
analfabeto. Podiam estar na minha. Saiam fora”. - comentava orgulhosa,
mexendo a panela de feijão que cheirava gostoso.
- Damaris hoje saiu ao médico. Anda aí com suas mazelas.
- Isto é saudade. Saudade dá dor em tudo quanto é lugar. Dá até vômitos e
diarréias. Saudade, falta de um amor. Falta do cheiro de pátria dá câncer. Pode
ter certeza. Por isso, em tudo o que eu faço ponho uma dose grande de amor,
passeio pelo chão do meu Brasil, e cuido desta criançada. O câncer só me pega
se o Brasil não for para frente. Aí sim, posso até morrer deste mal. Caso
contrário, só morro mesmo de alegria. Ontem vi o Comandante. Isso é que é
homem de verdade. Passa cedo para o trabalho. De jipe, menina! E sem escolta.
Não teme nada. Êta! homem arretado. Veja só. Vive, come e dorme para o povo
cubano. Eu, pessoalmente, nunca vi ninguém igual, em toda a minha vida.
- Nem eu. - respondi rápido, antes que ela atropelasse minhas palavras.
Poderia ficar horas a fio a ouvindo falar, era um poço sem fundo de
ensinamento. Nunca havia lido Marx nem Lenin, mas sabia tudo da luta de
classes. Afinal, fora a vida, seus maiores amores eram proletários: Mané, o
Zequinha e o Zé Ibrahim.
Damaris Lucena, com a mesma coragem que fugiu dos pais para casar com
Antonio Lucena, o doutor, saiu do Maranhão para tentar uma nova vida em São
Paulo. De copeira ao Partido Comunista, à VPR, à perda brutal de seu
companheiro de luta, assassinado pelos militares no sítio em Atibaia, bem
diante dos olhos e de seus três filhos ainda pequenos, á prisão, à troca sua e de
seus filhos pelo Cônsul Japonês, à Quinta Avenida; trinta anos haviam passado.
Damaris é toda uma mulher. Sofrida, confiante, dedicada, eterna guerrilheira.
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vidas. Nunca esqueci aqueles olhares, muito menos aquelas mãos decifrando a
morte.
Em Cuba, os processos de mudanças, as transformações aconteciam de
fato. Rápidas. Vive-se intensamente. Política e cultura em ebulição. A ilha é
pequena para tanta informação. O povo alfabetizado quer mais e mais.
Grupos contra-revolucionários metralham barcos de pescadores em águas
internacionais, nas Bahamas. Continuam seqüestrando pescadores, tentando
com estas ações terroristas desestabilizar o processo de transformação social.
Cuba resiste. Nas estatísticas internacionais da OMS, é citada como o país de
menor taxa de mortalidade infantil.
Oscar Padilla, um santiagueiro, lutador da Serra Maestra, é nomeado
Ministro do Trabalho. Raul Roa, Ministro das Relações Exteriores, participa no
Panamá da reunião do Conselho de Segurança da ONU. Trovadores, como Silvio
Rodriguez e Augusto Blanca, levam suas canções ao povo europeu.
Embaixadores de um novo tempo de ternura abrem espaço para a revolução
que se agiganta. Da Europa ao sul do continente americano, Pablo Milanez, Noel
Nicola, Silvio Rodriguez e Augusto Blanca cantam a solidariedade, o
companheirismo anunciado um novo tempo de esperança.
Crianças vietnamitas choram o bombardeio de Napalm. Mas a garra e fibra
dos cidadãos enfraquecem os soldados Estados Unidenses. Pouco a pouco, o
gigante vai sendo derrotado pelo pequeno povo oriental e ameaçado na
aparente fortaleza pelas comunidades indígenas, que reivindicam os acordos
violados durante anos. Reunidos em Wounded Knee, cenário do massacre, de
1890, pelas tropas norte- americanas de mais de duzentos Sioux, o Movimento
Indígena Americano exige melhores condições de vida e reconhecimento de sua
cidadania.
Impossível deter a corrida pela liberdade. A Fábrica Girón entrega o
primeiro ônibus urbano montado na Ilha. Os trabalhadores discutem em
assembléias a nova lei de maternidade. Vilma Espin, presidente da Federação
das Mulheres Cubanas, encerra o primeiro Encontro Latino-Americano da
Federação Democrática Internacional de Mulheres.
Fundado em 1967, o Instituto Nacional do Livro chega a cem mil
publicações. Cem mil livros tocados por olhos e mãos desejosas de
conhecimento e aventuras. Imagino um povo pequeno, nada mais que 20.000
milhões de habitantes, percorrendo os encantos do meu país. Milhões de
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o luxo de sair da água e voltar à casa para tentar dormir um pouco. Estaria
enlouquecendo?
Alguns dias passava super bem. De repente, aquele mal estar ia tomando
conta do meu corpo.
- Bárbaro vai adorar hospedá-los, apesar de trabalhar praticamente dia e
noite. Em tempos de guerra, impossível viver, conciliar. Bárbaro, você sabe, é
um bárbaro. Exigente, como ele só. Agora, como chefe do Partido, labuta em
dobro. Estou feliz. Meu filho serve à Pátria como poucos, em coisa séria, cheia
de mistérios.
Lá ia meu pensamento imaginando cenas jamesbondianas protagonizadas
por aquele negro, descendente direto das costas africanas. Um deus de beleza,
alegria e vivacidade. Forte, audaz, terno como um gato angorá. Culto como um
PHD em um pólo científico. Dominava desde a Matemática até as Artes, como
quem passou anos debruçado em livros, freqüentando rodas de intelectuais.
Passava do cavalo à discussão de política internacional como quem muda de
camisa. Bem casado, pai de um bebê gostoso e simpático, faz-nos um bem
danado ou quando vamos de visita, ou quando aparece pela madrugada para
dar aquele abraço, nas vezes que vem à Habana, nas reuniões do Partido.
Continuo mal. Durmo e o cansaço persiste. Vira e mexe a taquicardia
aumenta, as mãos ficam trêmulas, o corpo não responde meus apelos. Apesar
da insistência de todos, vou regressar a Habana.
Hoje, Marcello desapareceu com o Edu enquanto eu dormia, após um farto
e delicioso almoço. Assustados, percorremos a região para encontrá-lo na
fazenda dos cavalos.
- Como este menino passou pelo mata-burros? – indagavam intrigados
todos os moradores circunvizinhos.
“Impossível” argumentou o camponês. “Para ser sincero, nunca vi isto
acontecer em todos os meus anos de vida. E, diga-se de passagem, já passei de
meio século”, opinava, retirando o chapéu sob o sol escaldante e raspando a
cabeça em um gesto de incredulidade.
- Como você chegou até aqui, menino? - inquiri botando o coração pela
boca.
- Pela ponte. Foi ótimo. Este cavalo é mansinho. Verdade, Edu?
- Ai, meus Deus! - suspirava Bárbaro, apavorado só de imaginar o desastre
que poderia ter sido.
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Marcello e sua paixão pelos cavalos. Talvez eles soubessem disso e, de uma
forma mágica, os protegeram. Nenhuma outra explicação encontramos para tal
aventura.
- Vamos levá-lo para Habana, mãe?
- Como? Onde deixá-lo? Não temos lugar.
- Tem sim.- contestou feliz. - Na banheira.
- Banheira! Um cavalo na banheira! - além da imaginação tamanho
disparate, olhei para a platéia ali formada pelo incidente.
- Na banheira. Cuido dele direitinho.- sorria.
- Pensaremos no assunto depois de conversar sobre as desvantagens para
o cavalo de ser trancafiado numa banheira. Ok?
- Desce. Regressaremos à casa de jipe. Dolores deve estar aflita com o nosso
coletivo sumiço.
A bem da verdade, rimos toda a tarde da feliz façanha dos dois, disfarçando
quando se acercavam. Perigoso com certeza, mas quaisquer dos presentes
afirmavam nunca ter passado por tamanha proeza. Um cavalo em pelo,
montado por dois guris, havia passado por uma ponte, por um mata–burros,
sem nenhuma conseqüência. Mistérios...
Dias depois, regressando à cidade, fomos deixando para trás os verdes
prados de Pinar del Rio, seus simpáticos operários, como eu, apaixonados pelo
Brasil.
A cidade nos recebeu linda. Sou fascinada por suas janelas, pela Quinta
Avenida, com suas margaridas e fícus, cada qual recortado em formatos
geométricos. Um gênio da tesoura poda as árvores com tal maestria que as
torna, fora a beleza natural, esculturas admiráveis. O cheiro do mar inebriou
meus sonhos e Paulinho da Viola com seu molejo embalou a saudade e
preencheu a solidão.
Acordei com uma doce enxaqueca musical ...
“Minha viola vai pro fundo do baú... não haverá mais ilusão... quero
esquecer ela não deixa”.
- Tá cantando, mãe?
- Paulinho da Viola. Querem ouvir? Vamos lá... - dirigindo à cozinha para o
café da manhã.
“Alguém que só me fez ingratidão... Minha viola... No carnaval, quero
afastar as mágoas que o teu samba não desfaz. Pra facilitar o meu desejo,
guardei meu violão, não toco mais. Minha viola...”
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- Gostaram?
- Vamos cantar esta pro Maninho. - disse Edu.
- Pro Nicola também, na hora do pôr-do-sol. – adicionou Marcello.
- Para todo mundo. Encheremos Habana de samba. Um dia, traremos a
Portela. Já pensaram aquele azul e branco desfilando pelo Malecón?
Paulinho passou o dia nos meus pensamentos. Quanta saudade! Quanta
solidão! Quanta falta de uma montanha, de uma florestinha! Que saudade
danada! O pior do exílio é a saudade. Uma saudade indefinida, desfigurada,
doída, espinhosa, que dilacera o coração. Sofro. Sofro muito. Cell e Eduardo são
tão pequenos. Preenchem minha tristeza, mas nunca poderão entender esta
melancolia. Devoro a literatura universal, vejo todos os filmes em cartaz, vou a
todas as vernissages. Recebo amigos. Mas quero colo. Colo da minha pátria.
Estou doente. Uns acreditam ser neuroses de ansiedade.
- Vá ao Hospital Fajardo. Podemos estar confundindo com um problema na
tireóide.- orientou o residente da emergência.
- Irei. Quando voltar a crise, vou a este local. Com certeza. - confirmei o
pedido carinhoso.
Passei pelo colégio para ver os meninos no final da tarde. Sentada na
mureta, uma linda garota de uns 17 anos brincava com Marcello.
- Mãe, esta é a Hildita, minha amiga. Ela passa por aqui e brincamos.
- Que bom! Uma nova amiguinha?
- Prazer em conhecê-la. Sou Hilda.
- Olá. Prazer, Mirian.
- Vocês são brasileiros?
- Somos.
- Que bom. Adoro o Brasil. Todo mundo diz que é um país belíssimo.
- Realmente é de uma beleza sem limites.
- Ela é mi novia!
- Su novia? Que bom! Uma namorada linda e meiga deste jeito.
Rimos juntas... Brincando, fizemo-nos amigas. Muitas tardes, ao visitar
Marcello e Eduardo na Beca, encontrava Hildita, sempre terna, carinhosa,
simpática. As conversas, da porta da escola, estendemos até a parada do 132.
Daí a meu apartamento, nas sextas-feiras, não demorou muito. Adoro
adolescentes. Hildita era uma delas. Falamos pouco, ou quase nada, sobre as
famílias de ambas. Acostumada à clandestinidade, não perguntava. Sabia que
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estudava, tinha algumas amigas, sua mãe viajava e, naquele momento, estava
no Peru.
Em uma tarde antes das férias, mês em que, seguramente, não nos
veríamos, confessou-me, muito timidamente:
- Mirian. Tenho que contar uma coisa para você.
- Algum problema na escola? Um namoradinho?
- Nem uma coisa nem outra. Nem sei como dizer. Faz tempo que nos
falamos e estou envergonhada.
- Nada de vergonha. Qualquer coisa que tenha feito é normal e pode ser
consertado. Sempre podemos.
Saiu como um furacão. Sem pausa. Ininterrupta:
- Sou filha do Che Guevara. Sou Hilda Guevara Gadea.
Calei, mirando-a bem fundo nos olhos. Abracei-a forte
- Bem que os teus olhos me eram familiares - consegui balbuciar.
Nada mudou em nossa relação, exceto a emoção de poder ler os bilhetes
enviados pelo nosso amado Comandante, guerrilheiro heróico, nas suas viagens
pelo mundo, madrugadas a fora; e a tremedeira disfarçada, quando sentei na
cama em que ele por vezes dormia. Todas e incontáveis vezes que, encostada
nas minhas pernas, entrelaçava seus negros cabelos entre meus dedos,
contando-lhe estórias da minha pátria, do amor pelo meu povo, pela
humanidade, ela ficava perdida nas lembranças dos felizes dias em que seu pai
vinha brincar, tal como eu costumava fazer com Marcello e Eduardo.
A vida me há premiado com grandes regalos. Hildita, foi um dos maiores.
Ainda jovem, foi viver ao lado da Ursa Maior. Mas muda de constelação. Em
noites de lua cheia, por vezes, encontro uma estrela, piscando, piscando. Sei que
lá está ela dando seu passeio pela América Latina.
Um dia, sentada na sua sala, as crianças brincando felizes de correr com ela
pela casa, de novo a sensação de enforcamento e a disparada cardíaca. Saí à
calçada, seguida rapidamente por Hildita, que estava super preocupada com o
meu estado.
- Vou morrer, Hildita. Não posso mais. Olha como estou tremendo. O
coração vai explodir.
- Venha, querida. Vamos ao Fajardo como nos indicou o médico do Hospital
Nacional. As crianças ficam com a Maria.
O Hospital Fajardo, localizado em Vedado, além de abrigar o Instituto de
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- O quê? Dessa forma, vai ter um câncer de pulmão, sem falar em um belo
enfisema pulmonar. - advertiu sério. - Vamos deixar o cigarro?
- Impossível. Não sou capaz de tamanha proeza. Imagina se tenho força de
vontade suficiente.
- Vai ter que arrumar. Tão brava e guerreira, como pode dizer tamanho
disparate? Ora, Miriam!
- Vou pensar neste assunto. Imagina viver sem este pedaço de papel cheio
de folha secas. Sem esta fumaça, sem este cheiro. Difícil, Hung. Tenho
consciência do mal que ele me faz. Tenho consciência dos estragos no
organismo. Tenho consciência que é uma merda, mas não tenho garra para
tanto. – envergonhada, mudei de assunto. - Quer vir comigo a um show de
Vicente e Silvio na Biblioteca Nacional? Às oito.
- Não posso, estou estudando um caso complicado.
- Sempre às voltas com seus pacientes, seus estudos. É preciso distrair um
pouco, mudar de atividade, sabe? – tentei dissuadi-lo.
- Fica para outra ocasião.
Beijei-o na face, como manda o figurino, e saí pensativa. Especial este Hung.
Domina com delicada maestria as glândulas. As esmiúça, penetra nos seus
segredos, regula seus distúrbios, controla suas imperfeições. Ama tanto esta
parte vital do organismo que gasta horas e horas decifrando seus enigmas.
Hung é um típico médico cubano. Enfrenta todos os limites. Estuda, supera,
rompe fronteiras, salva. Ama a vida. A nossa vida.
Estava entre dois Santiagos: o da vida e o da tortura, da morte, da vergonha,
do medo.
11 de setembro de 1973 – Santiago do Chile chora, rebela-se, corre
desenfreada para salvar a liberdade. Chilenos, argentinos, brasileiros, suecos,
cubanos resistem ao covarde golpe a Salvador Allende. Sob forte bombardeio
dos caças da força aérea, entrincheirado no Palácio da Moneda, Allende não
renuncia. “Pagarei com a minha vida a liberdade do meu povo. Tenho certeza
de que não será em vão. Este é o meu testamento político”. Augusto Pinochet
Ugarte banha de sangue os Andes. Ceifa vidas, tortura, assassina, desaparece
com milhares de homens, mulheres, crianças. Mata para calar a voz da
liberdade. Presos no Estádio de Futebol, Victor Jara, com o violão em punho,
consolava seus compatriotas. Para impedi-lo de tocar sua guitarra, cortam-lhe
suas duas mãos. Victor continuava cantando até que uma bala certeira, bem no
meio da fronte, lhe tira a vida. O Estádio, em silêncio, apavorado, chora. A
América Latina treme de dor, mais pobre, mais sofrida, mais triste.
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Pablo Milanez- Poeta, cantautor - Bayamo - Cuba
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"1974 – “Año del XV
Aniversário”
Irmão das coisas fugidias,
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
No vento.
Se desmorono ou se edifico,
Se permaneço ou me desfaço
- não sei, não sei. Não sei se fico
Ou passo."
Motivo - Cecilia Meireles46
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Cecilia Meireles – Poetisa - Tijuca – Rio de Janeiro
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Dali para frente, os dois, a seu tempo, conviveram conosco. As calças boca
de sino trazidas pelo famoso baiano, para não escandalizar demais os cubanos
eu as usava; ele meus jeans, mais discretos que as cores laranja e verde bandeira
de um cetim fantástico.
Anos mais tarde, fui madrinha de seu casamento, não antes deste baiano
porreta ter destruído centenas de corações.
Havana mudou de cara com a chegada de tantos chilenos, uruguaios,
argentinos. Uma América Latina completa. O Hotel Presidente, construído no
início do século, abrigou a maioria dos exilados que aportaram na Ilha logo após
o golpe militar do Chile.
Enquanto o sangue derramado no hemisfério sul clama por justiça, no
Alentejo, soa como há muito não se fazia:
A voz de José Alonso penetra as ruas de Lisboa dando a senha para que os
militares marxistas do Movimento das Forças Armadas tomassem quartéis,
academias militares, tv´s, aeroportos, emissoras de rádio. Era a Revolução dos
Cravos pondo fim a quase cinco décadas de ditadura. Portugal enterrava o
salazarismo. Até nos momentos mais críticos de sua história, nossos
compatriotas primaram pelo amor. Em lugar de balas, cravos; passavam das
lapelas, usados para identificar os revoltosos, aderidos pela população, para os
canos dos fusis. Indescritíveis estes portugueses. Liberdade para as colônias era
a palavra de ordem. Com esta medida, desmoronava o último baluarte do
Império Português, alicerce do programa de Antonio Oliveira Salazar.
O pôr-do-sol, o cheiro do Tejo, o exótico dos telhados vermelhos das casas
dos bairros antigos de Lisboa, o verde das regiões montanhosas, o esmeralda
do mar que banha a península respiram democracia.
Folhas e folhas de papel entravam frenéticas pelos aparelhos de telex das
agências de noticias:
“O universo é uma imensa bolha de espaço-tempo, cujo conteúdo se afasta
velozmente do centro que lhe deu origem e empurra para longe seus limites –
afirma Stephen Hawking. Logo, não há limites. Baseado nesta teoria,
revoluciona o mundo da Cosmologia e da Física. É apenas uma questão de
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Habitando o tempo
José Martí.
Ir a La Plaza é uma renovação de vida e esperanças. É recarregar de energia
as funções vitais de nosso cérebro. É tocar com as mãos a solidariedade, o amor,
a ternura.
Este Primeiro de Maio seria diferente. O Chile estava sob o jugo do General
Pinochet, um dos mais cruéis ditadores que se tem conhecimento na história
dos Andes. Cuba, novamente sozinha na América para lutar contra o bloqueio.
Renovar as forças para continuar a batalha árdua, sofrida, para se manter livre.
Ramiro Valdez, comandante da revolução, é o orador. Reconhecido, por
saber dominar as técnicas de segurança com perfeição, tem os gestos calmos
voz serena, e um olhar de sábio. É um homem que sabe o que faz e porque o faz.
Quase um mito. Participou de todos os momentos marcantes da guerra
revolucionária, desde o assalto ao Quartel Moncada. Veio no Granma com os 82
homens. Sobreviveu. Participou de todas as principais batalhas da guerra que
culminou com a derrocada de Batista, em 1959. Um herói da Pátria. Constrói
com sua perseverança, palmo a palmo, esta nova sociedade. Faz parte do sonho
de criar o homem novo.
”A metralladora en mano se enfrentó al adversario y tras la
dispersión de sus compañeros quedó solo, hasta encontrarse con el
Che Guevara y otros combatientes poco después. El monte y una
cueva serían oportuno refugio, en esos momentos, de los cuales el
Che escribió: Resolvimos mantenernos allí durante el día, aunque
con el compromiso expresamente tomado por los cinco, de luchar
hasta la muerte. Quienes hicieron este pacto nos llamamos:
Ramiro Valdés, Juan Almeida, Chao, Benítez y el que esto relata...
Después de días sin comida ni descanso, totalmente extenuados,
tuvo lugar el reencuentro con Fidel en Cinco Palmas. Las almas se
alzaron junto a los brazos amigos, por saber con vida al jefe de la
Revolución y ante la posibilidad de arribar a La Plata y alcanzar la
Sierra Maestra para continuar la lucha. Los sueños, suelen
cumplirse cuando son fuertes y verdaderos, aunque parezcan
imposibles.
Primero se integró el joven de quien les hablo en la columna 1, a la
que llamaron todos Columna madre. Posteriormente integró la 4 y
al crearse la columna invasora 8 Ciro Redondo, al mando del
comandante Ernesto Che Guevara, fue designado su segundo jefe.
De manera que realizó la invasión a Occidente y posteriormente,
una vez en el territorio de la antigua provincia de Las Villas,
participó en las acciones del Escambray, hasta el triunfo de enero
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Habitando o tempo
Nossas vidas estão muito ligadas a ele. De sua sabedoria e direção depende
nossa segurança e de todos os exilados latino-americanos, asiáticos e africanos.
Devemos a ele o caminhar tranqüilo pelas ruas nas deliciosas madrugadas de
Habana, a segurança de nossos filhos nas escolas, sejam elas na cidade ou no
campo.
Ramiro Valdez é parte integrante da esperança de que existe “um
almanaque cheio de dias 26”, como tão bem cantou Noel Nicola.
El caiman fervilha, emoções por viver e vividas. O Conselho de Ministros
regulamenta as eleições, a Constituição e o funcionamento dos órgãos do poder
popular. Imediatamente, iniciam-se as assembléias para a escolha dos
candidatos. Em Matanzas, o município do mais famoso balneário, Varadero,
com suas grutas deslumbrantes - Vale de Viñales, começam as eleições para
Delegados do Poder Popular. Pela primeira vez na história, uma brigada de
cortadores de cana consegue atingir o décimo milhão de arrobas. Na Argentina,
o peronismo levaria ao poder, pela primeira vez na História do Ocidente, uma
mulher ao cargo na Presidência da República – Isabelita Perón. Novos tempos
para o Cone Sul? Pode ser.
No Caribe, verão. Hora das merecidas férias aos que estudaram com afinco,
alcançaram boas notas. Da visita à casa dos avós. Da semana na praia com toda
a família.
Mês das crianças. Fidel recebe dos Pioneiros a medalha “4 de abril”, em
uma solenidade simpática e divertida no Parque Lênin.
Segundo turno em Matanzas e nos lugares onde os candidatos não
obtiveram a metade mais um dos votos.
Oduwaldo Vianna Filho – o Vianinha, um dos maiores dramaturgos
cariocas. Autor, ator, pensador do teatro e agitador cultural, Vianinha
procurou criar um teatro que refletisse os problemas das classes populares
brasileiras, procurando formas de expressão que estimulassem atitudes
críticas diante desses problemas.
Conclui “Rasga Coração” nos últimos instantes de vida uma das mias belas
e polêmicas de suas obras.
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”Rasga Coração” é uma homenagem ao lutador anônimo político, aos
campeões das lutas populares; pleito de gratidão à Velha Guarda, à geração que
me antecedeu, que foi a que politizou em profundidade a consciência do País.
(...) Em segundo lugar, quis fazer uma peça que estudasse as diferenças que
existem entre o novo e o revolucionário. O revolucionário nem sempre é novo
e o novo nem sempre é revolucionário.” Dias depois, Brasil perdia seu jovem
dramaturgo.
Richard Nixon, Presidente dos Estados Unidos, renuncia ao cargo
pressionado pelo escândalo das investigações no Caso Watergate. Espionagem
da sede do Partido democrata pelos membros do Partido Republicano.
Watergate começou com a irritação e a paranóia de Nixon com os protestos
contra a guerra no Vietnã. O Presidente ordenou a espionagem e golpes sujos
contra seus adversários. Descoberto, renunciou. A derrota no Vietnã se tornava
dia a dia mais evidente. Milhares de americanos morriam em terras
vietnamitas, desmentindo a propaganda de que os Estados Unidos sairiam
vitoriosos desta batalha.
Dezembro assoma através do vento cálido das tardes frias, das ondas
vorazes batendo forte no Malecón, do silêncio de ameaças de furacões. Coração
atolado pela satisfação de um novo fim de ano.
Comemoramos em grande estilo os oito anos do Marcello e os sete aninhos
do Edu. Como nos anos anteriores, pela manhã e na parte da tarde, a
preparação. Excetuando bolo, piñata e as mil folhas, que sempre chegam no dia
anterior, tudo é preparado pela criançada, trovadores, pintores, poetas e
companheiros brasileiros que ainda se encontram na Ilha. Como diz o ditado, “o
melhor da festa é esperar por ela”. Decidimos quebrar a quizila. Divertimo-nos
antes, durante e depois, entre confetes e serpentinas regados ao que há de
melhor nos sambas da época. Dançamos, brincamos até o sol raiar. Limpamos,
arrumamos tudo nos seus devidos lugares e acabamos dormindo na playita,
banhados pelo sol suave de dezembro.
No Brasil, o General Ernesto Geisel, que no início do ano assumiu a
Presidência, afirma que o governo não está ressentido quanto aos resultados
das eleições. O MDB surpreende nas eleições federais, faz 16 senadores, contra
os seis da Arena.
Surpresas seguidas de muitas surpresas, nos segreda este 1975, que fecha
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1975 - “Año del I Congreso”
Artigo III – Fica decretado que, a partir deste instante,
Haverá girassóis em todas as janelas,
Que os girassóis terão direito
A abrir-se dentro da sombra;
E que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
Abertas para o verde onde cresce a esperança."
Os Estatutos do Homem – Thiago de Mello47
47
Thiago de Melo – Poeta – Barreinha - Amazonas
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- Nunca.
Quase dormida, ouço o timbre tocar. “Voltaria Roberto?” Questionei,
abrindo a porta.
- Quê? Você aqui? Como chegou? Quem é você?
- Calma. Não sou ladrão, nem tarado, ou coisa parecida. Sou Wladimir
Padilla, filho do seu amigo Oscar Padilla, Ministro do Trabalho. Já! Ubicou?
Deixa-me entrar.
- Não. Explique-me. Como me encontrou?
- Simples. Segui o carro. Vi o endereço. A luz que acendeu. E arrisquei.
- Está louco?
- Tampouco. É que nunca vi uma garota tão linda.
- Vai embora. Por favor.
- Tudo bem. Dá-me seu telefone. Prometo não molestar.
- Se dou, você vai?
- Vou.
Passei o número, prometendo, garantindo, em toda a minha vida jamais
atendê-lo.
Na hora do café, antes da saída para o trabalho, tocando à porta: Wladimir.
Inimaginable!
- Achou mesmo que ia telefonar? Vim levar você ao trabalho. Assim vamos
nos conhecendo.
De lá para cá, sempre assim: uma chamada na calada da noite, ou seja de
Moscou, ou nos dias de férias em Havana, tira-me o sono.
- Que vai fazer esta noite? – do outro lado, a voz de um grande e doce amigo.
Com Wladimir vivi momentos de extrema felicidade. Na encantada
madrugada santiagueira, Marti em versos se entrepunha entre camparis Nas
ladeiras, encontrei com intimidade o Pelourinho. Na visita ao museu do General
Antonio Maceo, prócer da independência de Cuba, junto a Máximo Gómez e José
Martí contra o colonialismo espanhol numa guerra, que durou mais de dez anos,
a história.
De surpresas em surpresas, Wladimir reservara a maior delas, o cafezinho
na casa de Maria, filha mais nova de Antonio Maceo. Percorremos quilómetros
de história de uma ponta a outra. Independência do jugo espanhol, fundiam as
lutas travadas na Serra Maestra.
Portas destrancadas, velho hábito de Santiago de Cuba, ponto de encontro
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Santiago:
tus callejones paso a paso te recuerdan
Santiago:
Nómbrame alguno que nunca escribiera su historia,
nómbrame alguno donde no se hallan escuchado
alguna vez aquel petardo de las nueve,
nómbrame alguno que nunca sintonizara
aquel programa en la habitación del fondo:
“…Aquí radio Rebelde
desde la Sierra Maestra…”
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Malecón – Avenida que bordea o mar em Vedado - Cuba
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resposta. Nem mesmo um salto altíssimo impede o levantar dos meus olhos,
bem para cima, para fitá-lo
- Aguardente, Comandante.
- falo séria.
- Aguardente? Como é isso? Aguardente? – insistiu.
Ulisses Estrada, do Departamento de América do Comitê Central, que nos
cuidava carinhosamente, começa a rir.
Não é que o Comandante me encurralou em uma saia justa? Logo pinga, um
dos maiores palavrões em Cuba? Ah! Este cubano... Como dizer diante de todos
esta palavra, sem que morressem de vergonha? Ah! Fidel... Fidel... Agora me
pegaste!
- Buenoooo. Pinga, Comandante – sussurrei.
Com as faces pegando fogo, todos que o cercavam seguravam o riso e a
vergonha.
- Coisas de diferenças nos idiomas - ria, feliz.
É um mal cubano gostar tanto do Brasil, e o Comandante não foge à regra.
Trata-nos com muito carinho. Assim é com a Tia, com a Damaris, quando, por
um motivo ou outro, encontra com elas. Seu respeito pelo ser humano é tão
especial que não esquece nossos nomes. Cada qual é de suma importância para
este único homem que realizou o sonho que deu sentido ao século XX.
Estar ao lado de Fidel não é, tão somente, um privilégio, é uma renovação
de vida.
A visita do Presidente Mexicano foi, sem dúvida, um sucesso, como
costumam ser as idas à Ilha. Pena que viera tão somente para preparar a vinda
do presidente, depois lá se foi o Embaixador à la Vinícius de Moraes – Edmundo
Flores.
Edmundo, fugia a regra. Poesia, música brasileira, conversas filosóficas
pelas tardes em pleno Malecón, descontração e amor à natureza eram partes
intrínsecas de sua personalidade. Sentiríamos muito a sua falta. Em algum lugar
do México, eu o encontraria mais tarde, com o mesmo frescor dos tempos
havaneiros.
Os meses arremessam-se ao futuro, em uma corrida alucinada e louca. São
meses de trabalho intenso, de criação, de realizações.
A Escola Vocacional Comandante Ernesto Che Guevara é inaugurada em La
Villas, município de Santa Clara, local onde foi travada uma das maiores
batalhas contra o regime de Batista.
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Nicholás Guillen – Poeta –Camaguey – Cuba
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1976 – “Año del XX Aniversario del
Granma”
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela ?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça ?
Que amor não se explica ?
É a vela que passa
Na noite que fica.
Ao Longe, Ao Luar – Fernando Pessoa
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- Estou correndo.
- A primeira corte em quatro partes. A segunda cor em três partes e terceira
cor em seis partes – explicava Carlos.
Assim, em uma chamada de longa distância. Aliás, longuísssssssssima
distância, Marcello aprendeu a aula dada no dia anterior na escola. Apenas um
pretexto para preencher a falta que este filho de Ogum – guerreiro por natureza,
fazia nos dias de imensa nostalgia.
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os guardiões da Pátria.
As férias desta vez serão em Matahambre, Pinar del Rio.
Hoje ,vamos fazer porco assado bem diferente, confidenciou Munda.
- Diferente?
- Bem Diferente. Vamos recheá-lo de congrí, bastante cebola, alho,
cominho, e outros segredinhos mais. Finalmente, assá-lo na brasa. Algumas
cervejas bem geladas, aipim no molho. Sobremesa: mermelada de goiaba com
queijo branco ou requeijão
Munda, você está brincando, ou falando sério? Essa comidinha me cheira
coisas do Brasil.
Do Brasil, que nada. Comida cubana das boas. Menina, esqueceu que somos
irmãos no amor e na raça?
Dias de paz, de mimos, de dengo. Julho se transformou em pura emoção e
gulodices. Agosto não seria diferente. Recarregamos as baterias até mesmo a
saudade era menos acre.
“Viver não é respirar, mas construir” desta maneira havia vivido o “Grande
timoneiro” de 800 milhões de chineses, até sua morte no início de setembro.
Mao Tsé Tung encarnava a lenda do herói revolucionário. Da marcha de 1934,
uma jornada de 9.600 Km em 368 dias, à implantação do socialismo na China.
Da revolução cultural, ao desenvolvimento. Mao entrou definitivamente na
história dos grandes líderes da humanidade.
A Operação Condor, organização dos setores militares e da Cia, que tinha
por finalidade perseguir internacionalmente os revolucionários latino-
americanos e caribenhos, mata em um atentado, em Washington, o ex-
Chanceler do Chile no governo de Salvador Allende. Letelier engrossa a lista dos
assassinados. Os sucessivos atentados à Cuba fazem parte desta operação
terrorista. A Ilha - seu alvo maior.
- Preste atenção, Comandante. Você. Não é bocê. Está bem?
- Vvvvvvocê. Esta palavra é complicadíssima. V em lugar de B. Bom, vamos
lá – insistia na pronúncia até a quase perfeição.
As aulas invadiam a noite e o interesse de todos me estimulava.O Tempo
curto, a pressa de aprender tanta coisa em poucos dias aumentava a adrenalina.
Cubana de Aviación teria, de agora em diante, comissários e Comandantes
falando um simpático portunhol em terras além-amar. Na primeira viagem,
trouxeram um lindo colar de sementes nativas. Artesanato de alta qualidade
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que passei ostentar nos shows dos trovadores, fazendo inveja a quantos o viam.
Depois, uma saia rodada, amarela com flores pintadas entre o amarelo do sol
ardente africano e o marrom das terras sem cultivo. Na terceira viagem, uma
linda camisa com a foto de Agostinho Neto. “Desta forma, daqui a pouco, terei
um guarda-roupa todo africano”, brincava toda boba com os experts dos céus
afro-caribenhos.
Nas alegrias de idas e vindas, o choque, a dor, profunda como o próprio
mar que os tragara. Rodava como louca pela sala, lágrimas se confundiam com
os gritos sufocados. Impossível! Impossível acreditar. Tamanha barbárie não
podia ser concebível. Uma bomba. Duas bombas. E todos os que viajavam a
Havana, desde Barbados, mergulharam suas esperanças, seus sorrisos, sua luta
cotidiana, a felicidade de voltar e ver seus familiares, de sentir o calor de sua
ilha. Perderam-se para sempre, em um dos piores ataques terroristas já
registrados na História. Quem ousara executar este plano sórdido? Quem teria
tido a coragem de carregar tantas mortes em suas costas? Que motivo leva um
homem ou quantos homens ousam matar em nome de uns quantos dólares?
Que ódio pode carregar um coração a ponto de matar uma equipe inteira de
jovens esgrimistas? Em nome de que paz assassinaram passageiros asiáticos?
Em nome de que liberdade cortaram a liberdade de duas tripulações?
Durante dias, brigadas vasculharam o mar. Poucos corpos resgatados,
muita tristeza. Caladamente, o povo cubano seguia atento às noticias. O céu
chorava nossa dor e sob lágrimas, silenciosos, doloridos, durante três dias, o
povo cubano reverenciou seus companheiros brutalmente executados. Este
atentado tinha um dono, um nome e um executor: a CIA, os contra
revolucionáios de Miami e um assassino frio, cruel, calculista – Posada Carriles.
Na Praça, molhada em lágrimas, a voz de Fidel soava trêmula, embargada
pela dor:
“En pleno vuelo el avión fue destruido por una carga explosiva a
los pocos minutos de haber despegado del aeropuerto de
Barbados. Con heroísmo indescriptible los bravos y expertos
pilotos de la nave hicieron un supremo esfuerzo para hacerla
regresar a tierra, pero el equipo, ardiendo y casi destruido, solo
pudo permanecer en el aire unos minutos más. Contaron, sin
embargo, con el tiempo y la entereza suficiente para explicar que
había ocurrido una explosión a bordo, que la nave ardía e
intentaban regresar a tierra. Es inimaginable el drama que tiene
que haber significado para los pasajeros y los tripulantes la
explosión y el incendio encerrados en una nave aérea a una altura
aproximada de 6 000 metros.
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Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Ess caminho
Pa São Tomé
Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau
Si bô 'screvê' me
'M ta 'screvê be
Si bô 'squecê me
'M ta 'squecê be
Até dia
Qui bô voltà
Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau
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em algum momento. Nicola casou com Mariana. Aliás, Nicola ama a Mariana.
Também me ama, tem demonstrado ao largo de todos estes anos. Mas, nunca
deixará sua pátria. Sabe, que não hesitarei um segundo em voltar à minha. E, ai?
Só um angolano, militante do MPLA, batendo a minha porta. Batendo à porta.
Tumm. Tumm. Tummm. Sem campainha.
- Puxa! Inacreditável. Um anúncio no Granma? Talvez a solução. Brasileira,
solteira, bonita, busca angolano... hahhahaha! Assim impossível – divertia-se
Julian, após um dia de trabalho, tenso e gratificante. Dar solidariedade era nossa
principal tarefa.
Sábado trás sábado, traziam à casa brasileira um novo membro. Novas
canções, outras palavras dos dialetos irmão. Um dia, chegou Jacinto Estrela. Um
pedaço de mau caminho. Angolano, militante do MPLA, que, para contrariar
minha determinação, havia batido na porta e não a campainha, como seria
natural.
- Dojsa, por que não tocou a campainha?
- Foi Jacinto, que bateu à porta.
- Tudo bem. Entre, já estamos a almoçar.
- Um momento! Tocou à porta contrariando o cotidiano? – perguntei.
- Ora pois.
- Nacionalidade?
- Angolano.
- Quê? Militante do MPLA?
-Assustado, respondeu que sim.
- Pronto. Encontrei minha cara-metade. Vamos nos casar.
- Casar. Que é isso? - Sem entender nada, Jacinto ia, de garfada em garfada,
avaliando a história.
Resumi o papo com Julian. Risada geral. Finalizamos a tarde alegres na
esperança de uma breve festa comemorativa. Bodas no ar. Dias depois,
trancinhas nos cabelos, elaboradas qual obra de arte pelas Guineanas, cuscuz
de farinha de mandioca, aliança de ouro com sete aros, linda de morrer,
decidimos viver nos fins de semana um grande caso de amor. Claro que o amor
acatou uma grande amizade, regada à música, poesia; a ancestralidade de dois
povos unidos através de muitos e muitos séculos. No ano seguinte, fui madrinha
do casamento de Jacinto com uma bela cubana.
“Liberdade, Anistia” ouvia-se em uníssono durante o cortejo fúnebre do
Presidente João Goulart, deposto pelo golpe militar em 1964, enterrado em São
Borja no Rio Grande do Sul. Jango faleceu na sua fazenda La Villa, na Argentina.
Doze anos de ditadura. Doze anos de tortura, de morte, de sofrimento, de exílio
para muitos. Na Espanha, é referendada uma nova reforma política, pondo fim
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Garcia Lorca -Poeta Fuente Vaqueros – Espanha.
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1977 – “Año de la Institucionalización”
Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar,
"quero assistir o sol nascer, ver as águas dos rios correr,
ouvir o pássaro cantar, eu quero nascer, quero viver...
Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar,
se alguém for vir perguntar, diga que eu só vou voltar depois que eu
me encontrar...
Quero assistir o sol nascer, ver as águas dos rios correr,
ouvir o pássaro cantar, eu quero nascer, quero viver...
Deixe-me ir preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar."
Preciso Me Encontar - Cartola51
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Cartola – Angenor de Oliveira – compositor, poeta Catete Rio de Janeiro.
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sabem que a nossa lua, o nosso céu, a terra que pisamos quando ainda nem
sabíamos o que nos reservava a vida, nunca serão iguais.
O toque da campainha soou forte, apressado. Já era noite em Havana, meu
Rio de Janeiro possivelmente dormia. Parado diante de mim, todo riso: Silvio.
- Rápido! – puxando-me pelas mãos.
- Ficou louco! Aonde vamos?
- Entre no carro!
- Olha, menino, onde você está me levando?
- Fica quieta. Espera... - apertando o acelerador. - Desça depressa., menina.
- E quê?
- Sua lua é maior que essa aí? Diga-me? Sem pensar.
A lua intensa reluzia no malecón, prateando as águas do Atlântico.
Extasiada, maravilhada, emudeci. Palavras. Momentos como este dispensam
adjetivos. Carinho igual induz às lágrimas. Como agradecer aos doces
trovadores momentos como este de extrema e aturdida felicidade? Parados,
quietos, como requer tanta beleza, viajei quilômetros, cruzei galáxias, adentrei
buracos negros e despertei sob a mira do extraterrestre, sentado na mureta,
acenando a cabeça, confirmando a pergunta. Nem na longínqua Cassiopéia,
pode-se ver luz igual. Ah! Silvio. Não falta tanto para você caminhar, lua no alto,
pelas minhas areias, sentir a suave brisa de Copacabana, tocar as folhas que
caem das florestas que circundam o mar.
- Um dia destes, vamos ver um rio que desaparece em uma árvore
frondosa. Lá em Santo Antônio de los Banhos. Aposto que no Brasil você não
encontra um fenômeno assim.
Será? Falando com franqueza, até hoje não vi um rio se perder embaixo de
uma árvore e nunca sair no mar. Penso que se perdeu em algum lençol freático,
transformou-se em petróleo e ainda vai jorrar pertinho de Santo Antônio.
.
Notícias do Brasil, atrasadas em dias, nos deixou o coração ferido. Maysa,
que preenche tantas noites de Miramar, morre em um acidente de carro na
recém-construída ponte Rio-Niterói. Noite adentro, a voz de Lourdes ganhou os
ares e homenageou sua compositora e intérprete preferida. Pequeno este
planeta. Na Calle Terceira , bem junto ao mar, na ilha mais badalada do Caribe,
nossa cantora maior tinha uma infinidade de fãs.
Raúl Castro Ruz homenageia com a “Medalha Comemorativa XX
Aniversário das Forças Armadas Revolucionárias”, pelo dia Internacional da
Mulher, a Célia Sanchez, Haydeé Santamaría, Wilma Espin, Melba Hernandez e
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E, seguia...
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macartista.
Acerca o fim de ano. Marcello e Edu terão sua animada festa, como
acontece há 11 anos.
- Mirian o bolo acaba de chegar – apressa Cary abrindo à porta da Casa de
San Lázaro, residência de Reina – a rainha mãe de uma família singular.
Cary, não é um capítulo à parte. É o próprio capítulo dentro dos nossos
anos na Cuba de Fidel, exílio regados a sinsontes, e sabiá. É um encontro
eternizado. Lembra sempre que me conheceu em 1971, tempos de Hildita. Na
memória, surgiu dessas abençoadas tardes com Choco. Namoradinhos?
Romance discreto e passageiro. Pode ser. Magrinha, bonita como costuma ser
as cubanitas interessada no sedutor, esplendoroso continente ao sul do
Equador.
Estudava letras. “Gabriela, cravo e canela” excitava sua curiosidade. Jorge
Amado, seu Chico Buarque. Feijão branco, sábados na praça da
Catedral,Vinicius, batuques e batucadas, alegrias e tristezas. Cell e Edu. Idas e
vindas de San Lázaro a Miramar ou San Agustín muitas águas rolaram. Ganhei
uma irmã, uma outra família,
Companheira a toda prova. Gosto da Cary...
Uiiii! Perdida garota. Em que esquina desta cidade?
- Nada, Carlos. Perdi no meu próprio labirinto.
- Acabei meu desenho – põe na parede exigiu Edu.
- Onde está o verde, meu filho?
- Sei lá.
Carlos ajuda aqui este menino – pediu a graciosa Deysi.
Sobe, desce, sobe, desce – esta escada vai me matar um dia. Tantos doces,
pinhantas, um vai e vem de papéis.
Ufa! Cary ajuda aqui.
Reina da cozinha preparando - pés de moleque ria do corre corre
desnecessário. Festas minha filha... festas... você adoram essa fofoca – como diz
a Mirian.
Cheirinho de café. Vou nessa.
Cary, Carlossss!!!! Caramba, esse cara me consome com este sumiço –
reclamo.
Crianças agitadas, frenéticas, brincalhonas abarrotavam salas e balcões.
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1978 – “Año del XI Festival”
“Escreva sua história na areia da praia
para que as ondas a levem através dos sete mares
até tornar-se lenda na boca das estrelas cadentes.
Conte sua história ao vento.
Cante-a nos bares para os rudes marujos
aqueles cujos olhos são faróis sujos, sem brilho.
escreva no asfalto, com sangue,
grite bem alto a sua história
antes que ela seja varrida na manhã seguinte pelos garis."
Escreva sua História – Claufe Rodrigues52
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Claufe Rodriguez – Poeta -
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“La persona
más próxima
a mí
eres tú
a la que
sin embargo
no veo
hace tanto tiempo
Más que en sueños”
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mar seus cantos de luta e de paz. Por toda a Ilha, em alguma praça, um trovador
ou poeta estendia o movimento nascido na Capital. Cuba, embora sempre tenha
sido o som maior do Caribe, agora era um pouco mais: era Cuba da felicidade.
O III Frente Oriental Frank País estava em festa. Vinte anos haviam passado
desde que aqueles jovens guerrilheiros ousaram libertar o povo cubano do jugo
tirano de Batista. Vinte anos de luta na construção de uma sociedade. Estar ali,
em Mayari Arriba, em plena Sierra Maestra, com o Comandante, Raúl Castro,
Juan Almeida e José Machado Ventura, transcendia meus desejos. Enterrar os
restos mortais dos companheiros caídos nas batalhas, na época da guerra,
estremecia minhas vísceras. Como agradecer à vida esta ventura? Por lá fiquei,
em companhia do Comandante Pancho, por mais uns dias de aprendizado com
àqueles que ajudaram a montar esta emocionante história de coragem, de luta,
de desprendimento, de amor à pátria. Acredito que, somente em Cuba, somos
capazes de viver tão fortes emoções, de contracenar com a História viva e
vivida.
Acordar aquele abril a primeira derrota do imperialismo em terras
cubanas é vital. Que classe de derrota! Fidel, à frente do batalhão, expulsou
todos os mercenários em menos de setenta e duas horas. Girón, cantada e
decantada em todos as demonstrações da arte. Seja o Girón Rodriguiano, o
Girón de Sara, o Girón em todas as facetas da poesia, seja nas lembranças de
Fidel.
Assim se lutou em Playa Girón. Assim lutaria agora este povo se preciso
fosse. Girón, um exemplo de luta para toda América Latina.
Como no início de 1970, o mundo entrava em convulsão. O luto cobriu as
ruas da Itália quando o cadáver de Aldo Moro apareceu num Renault, no centro
de Roma. A Itália parou, chocada com a violência, em manifestações unindo
todas as tendências políticas. Em São Bernardo do Campo, dois mil e quinhentos
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Habitando o tempo
“Quiero decir -agrega con pasión- que lo fascinante del caso es que,
sin importar el color de la piel, la africanía es una raíz que los
mexicanos no conocemos, pero que está en el México profundo de
Guillermo Bonfil y, por lo tanto, en la cultura nacional. La africanía
de México está en la religión y la magia; en el gusto por los colores
y su aplicación en el decorado de casas, templos y palacios; en las
formas de cocinar, la música y el baile; en el habla popular: los
refranes, las leyendas, la tradición oral; en la medicina tradicional
y el conocimiento ecológico... signos todos de una africanización
del indígena y una indianización del negro...''
53
Augusto Blanca – “No olviste uma vez que fuiste sol” -“No olviste uma vez que fuiste sol” Cantautor
– Banes – Santiago de Cuba - * Esta canção composta para a autora do livro.É um hino de amor e
Liberdade em toda a América Latina.
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...""Goiabada-cascão, em caixa
É coisa fina sinhá
Que ninguém mais acha
Rango de fogão de lenha
Na festa da Penha
Comido com a mão
Já não tem na praça
Mas como era bom
Hoje só tem misto-quente
Só tem milk-shake
Só tapeação
Já não tem mais caixa
De goiabada-cascão ..."55
54
Beth Carvalho – Compositora interprete – Considerada uma das melhores sambistas do Brasil.
55
Nei Lopes – Compositor - Brasileiro
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Habitando o tempo
Pasma, reli na parte interior. Nítido e firme, seu nome escrito, muito bem
escrito, à caneta.
Jacinto se calou. Olhei. Pensei e afirmei as coincidências pelas quais
atravesso nos duzentos e cinqüenta e seis caminhos que escolhi para percorrer.
Rui Paulo Lopes, vinte anos de pura alegria. Inteligente, culto, lido, tímido,
brincalhão, Ele apenas retornou. Em 1970, no Hotel Nacional, Cell e Edu
aprenderam a nadar com ele. “Vaya casualidad” - diría Nelson Dominguez.
Vivemos todos os possíveis.
Ávidos de notícias, antes de sair para trabalhar, líamos o Jornal do Brasil,
trazido religiosamente pelos companheiros do departamento de América.
Estampada uma linda manchete: - “Criado em São Paulo o Comitê Brasileiro pela
Anistia”. Em poucos meses, formavam-se comitês na maioria dos Estados, em
cidades, bairros, escolas, categorias profissionais. A luta pela anistia entra em
ritmo de campanha.
A Justiça Federal de SP responsabiliza a União pela morte do jornalista
Wladimir Herzog em uma cela do DOI-Codi.
Paralelo à alegria de uma possibilidade de retorno à patriazinha, a
Operação Condor seqüestra dois jovens uruguaios - Universindo Díaz e Lilian
Celiberti, em Porto Alegre. Parecia dizer “aqui estamos, vigiando noite e dia”.
Domingo, depois do almoço, começavam os preparativos para a ida à
Escola. Primeiro Marcello, que pegava a guagua na Calle de los Presidentes,
quase em frente à Casa das Américas – templo da cultura latino-americana.
Victor Jara, Joan Manuel Serrat, Chico Buarque e Gabo, assim, carinhosamente
apelidado, Garcia Márquez, foram alguns dos que passaram pela Casa.
Lançamentos de livros, shows imperdíveis, marcados sempre na memória,
saraus, todos assinalados pelo objetivo maior: a união das culturas.
Depois, já entrada a noite, Eduardito entrava na beca. Como passavam a
semana internados, geralmente, deixava para fazer as compras nas sextas-
feiras, guardando para o fim de semana todas as melhores e possíveis
guloseimas. Este domingo não fora diferente. Pouca coisa sobrara para durante
a semana, dias em que, comumente, comia ou na rua ou na casa de amigos.
Pela TV veio a notícia: “Todos devem permanecer em suas casas."A Defesa
Civil está tomando as medidas pertinentes. Um furacão se aproxima de Cuba.
Deve passar pelas costas de Pinar del Rio.”
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Habitando o tempo
A ver...
Lave dois copos de arroz.
Coloque na panela de pressão duas colheres de óleo e o arroz, e
alho se quiser.
Pode ser outra coisa, por exemplo, em vez do alho, cebola ou louro.
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Amaury Perez – cantautor. Havana - Cuba
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1979 – “Año 20 de la Victoria”
Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo.
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes"
Vinícius de Moraes57
57
Vinicius de Moraes – Compositor, interprete, poeta por excelência, diplomata. Um dos maiores
nomes da Bossa Nova.
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embaixador no Brasil antes do golpe militar em 1964, elo forte com a minha
pátria.
“O mérito é da revolução Cubana que eu represento. Não é meu, e sim da
Revolução Cubana, que represento", costumava dizer Raúl Roa García, exemplo
de homem modesto, sensível e mormente simples. Raulito Roa traz nas veias
está simplicidade do pai, o mesmo carisma, uma capacidade impecável com um
elemento a mais: toca tumbadora, cultua o samba, venera Vinícius de Moraes, é
amigo de noitadas cariocas, respeita Jorge Amado, curte Copacabana. Hoje,
representa Cuba perante as Nações Unidas.
Saí tarde da casa de Argélia e, quando cheguei ao Pabellón de Cuba, para a
inauguração da exposição do XX Aniversário dos Órgãos de Segurança do
Estado, o General José Abrantes terminava o discurso. Josefina, amiga de longa
data, feliz, andava de um lado a outro, garantindo o sucesso do evento. Ramiro
Valdez – o Comandante da Revolução – como sempre, simpático, presidia a
sessão.
Josefina, mãe de Guillermo – quando eles estão na adolescência perdemos
a personalidade e nos transformamos na “mãe de”. Mirian – mãe de Marcello e
Eduardo. Abrantes – pai de Ricardo. Assim por diante. Josefina é uma belíssima
mulher. Alta, esguia, cabelos negros, pele alva, voz serena, esconde uma
guerrilheira do dia-a-dia. Bem cedo começa seu dia. Trabalha com Abrantes,
mas sem hora para terminar. Guillermo, Marcello e Ricardo estão na mesma
turma. São disciplinados e atentos. Pudera, com Alida de diretora. A generala da
Batalla de Jigue. Não permite nada fora da ordem estabelecida.
- Podem namorar. Mas nada de engravidar – sentencia.
- Podem trazer sanduíches, desde que sejam trezentos e vinte quatro. Aqui
tenho este número de alunos. Bem alimentados, sadios, fortes, sem anemia,
nem gripe estes garotos pegam. Se querem, tragam, - voltava a afirmar.
- Detalhe importante. Não quero só mulheres nestas reuniões de pais. Não
importa que cargo ocupem, os pais são indispensáveis.
Dura de roer esta Alida, excelente educadora.
Vira e mexe um príncipe africano, ministros, e embaixadores apareciam
nas reuniões mensais para tomar conhecimento do andamento escolar e
emocional de seus adolescentes.
Francamente. Podíamos trabalhar e dormir em paz. Alida velava os sonhos
e o sono de nossos filhos.
Em 19 de junho de 1979, a Frente Sandinista de Libertação Nacional na
Nicarágua, através de uma insurreição popular, derrota a sanguinária ditadura
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Habitando o tempo
companheiros à parte.
- Vim rápido, assim que soube.
- Soube o quê?
Ifrain, retardatário, entrava atropelando cadeiras.
- Ora bolas! Chegou primeiro?
Pela cara dos dois, algo de bom havia passado. Algo muito significativo.
- Os Estados Unidos levantaram o bloqueio?
- Friíssssssssssssimo!
- A ver
- A ver nada falaram em uníssono: O Presidente Figueiredo assinou a Lei
No. 6.683, de 28 de agosto de 1979, que concede anistia e dá outras
providências.
- Mentira. Mentira. Aos beijos, abraços entrelaçados, choramos. Quando,
não sabia, mas voltaria ao Brasil em algum momento. Eufórica, louca, alucinada,
queria correr, gritar, sacudir o mundo.
- Calma, por favor. Agora vamos esperar o nome dos anistiados. Já é um
começo. Calma.
- Vou à Batalha de Jigue.
- Espera. As crianças precisam saber com toda a certeza. Calma.
Teria toda a calma do mundo, esperara dez anos por isso. Dez anos. O
importante agora era ver a famosa lista publicada no Diário Oficial. Mas como?
Dormia tranqüila quando fui despertada por Rui.
- Olha aqui! Olha! Encontrei no JB do dia 28/08/1979. “Supremo Tribunal
Militar divulga relação de 326 anistiados e liberta 12 presos”. Leia no corpo da
matéria – Marília Guimarães Freire. Leiaaaaaaaaaaaaa! Embaixo tem mais. Uma
lista em ordem alfabética.
- Vê se tem o nome do Liszt. Vê do Ibra. Vê se está o Fausto, o Minc. Vê, Rui!
Que faço, Meu Deus?
De novo, o verde, o cheiro do mar. As minhas montanhas. O Pão de Açúcar!
A Bethânia! A Cinelândia! Os meus companheiros! Vamos contar para as
crianças, embolava tudo. Por onde começar? Por onde ser feliz? Como deixar
esta ilha que amo tanto? Que faço com os pores-do-sol sem o Nicola? Sem as
luciernágas? Sem a timidez do Silvio? Sem as cores do Nelson e do Choco.? Que
faço sem o Carlos nas tardes de San Lázaro? Não há nada no mundo, nem nunca
haverá, que me faça deixar de gostar desta ilha. Como estará meu Brasil? Onde
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ponho esta tristeza e esta alegria? Abrace-me. Mais forte. Abraçe-me por todos
e por tudo.
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Paulo César Pinheiro- Compositor
Maurício Tapajós – Músico
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Habitando o tempo
brasileiro, que vinha comigo no mesmo vôo, foi para o mesmo hotel dividir o
quarto. Pela madrugada, saído do céu, apareceu padre Chico que nos levou à
sua casa.
Trabalhando em uma reserva indígena, hospedava todos os
revolucionários que por lá passavam, guerrilheiros salvadorenhos, brasileiros,
nicaragüenses, índios.
Chegar à reserva nos obrigava a cruzar a Escola das Américas, campo de
treinamento anti guerrilha que os americanos mantinham no Panamá. Aí
passávamos os dias, banhando na água fria do Pacífico, em uma belíssima praia
selvagem, na espera do dia definitivo da partida. Entre idas e vindas,
conseguimos o passaporte na Embaixada do Brasil no Panamá. Estava
legalizada.
Vinte e dois de novembro chegou cedo, caloroso como são os dias
panamenhos. Ora chove, ora faz um sol e calor insuportáveis. O 737 da Varig
decolou suave já beirando zero hora. Chegaríamos em nove horas. Tomada pela
emoção da volta, mesclava todos os sentimentos em uma gamela de sonhos,
sem poder conciliar o sono. Todas as lembranças passadas, presentes, futuras
entravam vertiginosamente, percorrendo meus neurônios. Machado de Assis
entrelaçava Alejo Carpentier. Chico Buarque e Sílvio Rodriguez se fundiam em
uma só harmonia. Rio e Havana eram beijadas pelas mesmas ondas do
Atlântico. Laranjeiras e Miramar, com suas esquinas e histórias, sacudiam na
turbulência amazônica. Estávamos sobrevoando solo brasileiro.
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Habitando o tempo
...Guardaré lo mejor, lo más querido
debajo de mi almohada por si acaso
guardaré aquel frescor del primer beso
para cuando mañana caiga herido.
Guardaré lo mejor, la maravilla
en un cofre de nácar y de estrellas
guardaré en su interior las cosas bellas
para el tiempo de sembrar otra semilla.
Más si alguien se atreve a arrebatarme
tanto tesoro ahorrado en estos años
tanta niñez feliz, tanto cariño
tanto descubrimiento, tanto sueño
juro desenfundar mi fantasía
y a golpe de canción dar la batalla
juro que haré volar mi maravilla
en nombre de este tiempo y su poesía.
Augusto Blanca59
59
Augusto Blanca –Compositor, interprete, artistas plástico, poeta. De Banes - Cuba – Fundador do
Movimento da Nova trova -
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Documentos
“A poucos minutos de Montevidéo, o Caravelle foi desviado de sua rota -
Rio de Janeiro, indo a Buenos Aires e depois Antofagasta e Lima, para
reabastecimento. Retido no Peru, por um defeito elétrico, somente hoje deverá
chegar ao Panamá e final- mente Havana.”
Fonte: O Globo, Rio de Janeiro, 03 de janeiro de 1970.
257
258
“– Isto é um sequestro. Mude o rumo para Cuba.” Estas foram as palavras
que o comandante Amaral ouviu a bordo do Caravelle PP-PDZ, dez minutos
depois de levantar vôo deMontevidéu, no dia 1°. Ele e o segundo oficial, Hélio
Batista
Borges, tentaram convencer os sequestradores da impratica- bilidade do
vôo até Havana, mas suas ponderações foram inúteis.
Os sequestradores não aceitaram, sob qualquer hipóteseque o aparelho
aterrizasse no Brasil, embora os pilotos tivessemadver- tido que surgiriam
dificuldades de pouso na rota do pacífico.Por fim, concordaram em descer em
Buenos Aires e, de lá, seguirpara Lima, no Peru.
O comandante Amaral, e o segundo-oficial Borges aindalida- vam com o
instrumental do “Caravelle”, quando a porta dacabina foi aberta. Surgiram dois
homens armados com revólverescalibre
38, carga dupla.
Borges procurou manter a calma. Tratou de alertá-los sobreos problemas
que surgiriam e lembrou, inclusive, as dificuldadesen- frentadas por outro
Caravelle da Cruzeiro do Sul, desviado para Cuba no ano passado. De nada,
adiantaram seus argumentos. Apartir de Montevidéu, até ontem - quando o jato
pousou no Ga- leão - sucederam-se 136 horas de apreensões.
O grupo de sequestradores era formado de oito pessoas:qua- tro homens,
duas mulheres e duas crianças. Todos foram enérgicos em suas ações, mas não
deixaram de ser corteses coma tripulação e os passageiros.
Sempre havia um à porta da cabina de comando. Umadas moças, porém,
demonstrava uma timidez que não se per-cebia nos demais. Ela cobria a arma
com um pano.
Os piores momentos da viagem foram vividos em Lima, quan- do os
sequestradores atiraram panfletos pela janela e, antes que os repórteres
peruanos pegassem algum, a polícia cercou o aparelho. Fazia muito calor lá
dentro porque o sistema de refrigeração estava desligado e tudo isso contribuiu
para aumentara tensão.”
Fonte: Folha de São Paulo, São Paulo, 5 de janeiro de 1970.
259
“ LIMA, 2 - O Caravelle da Cruzeiro do Sul, seques- trado en- tre Montevidéo
e Porto Alegre na noite do dia primeiro está detido por motivos técnicos em
Lima, não se acreditando que possa le- vantar vôo para Havana no sábado.
Equipamentos são esperados, procedentes de Santiago. O calor a bordo do apa-
relho, parado desde a madrugada no aeroporto é sufocante.”
“ O engenheiro disse que o piloto não tinha certeza de contar com a força
adequada para decolar e revelou ser bem pro- vável que os sequestradores
sejam 7 e 8, embora 5 se tenham identifica- do, parece certo que dois ou três
passageiros pertencem ao grupo.”
Fonte: O Estado de São Paulo (São Paulo) 02 dejaneiro de 1970.
260
“BUENOS AIRES, Un informe técnico emanado de fuentes aeronáuticas
estabeleció esta noche que el jet Caravelle tiene una autonomia de vuelo de
3,500 kilómetros.” ‘’ANTOFAGASTA, Chile Ene.2 (AF) - Aterrizó en el
aeródromo de Cerro Moreno, Antofagasta, el avión de la compñia brasileñia
“Cruzeiro do Sul”, que vuela co rumbo a La Habana ... “
Fonte: “IA CRONlCA” IERCERA EDICION, Lima, 02 de enero de 1970.
261
“Sozinho, o sub-comandante Silvio Fróes desceu em Lima para
providenciar socorros.”
“No aeroporto de Lima, colocaram-se guardas com metra- lhadora e
bombas de gás para impedir que curiosos se aproxi- mas- sem do avião da
Cruzeiro do Sul que permaneceu mais de vinte horas em solo peruano.Todos na
espectativa da chegada de outro Caravelle da LAN, que traz do Chile novas
baterias para as turbi- nas. Dois menores estão na aventura, junto com os cinco
seques- tradores.”
“... a voz do comandante informou pelo interfone:
— Senhores passageiros, fiquem calmos. Apesar de o nos- so avião estar
sendo sequestrado, ninguém correrá perigo. Deve- mos pousar em Buenos
Aires ...”
Fonte: Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 03 de janeiro de 1970.
262
“O grupo é chefiado pelo advogado James Allen de 28 anos (...) James Allen
vivia em Montevidéo como asilado político e fora líder estudantil em Goiás.”
“Os sequestradores, em declarações e documentos distribui- dos à
imprensa, identificaram-se como membros da Vanguarda Armada
Revolucionária Palmares. (...) Disseram ainda cha- mar- se o grupo “Comando
João Domingues”, em homenagem a um revolucionário brasileiro que foi um
dos companheiros que, como muitos outros, morreu torturado pelas forças
armadas brasileiras, transformadas em agentes policiais do imperialismo no
Brasil.”
“...Enquanto isso, o ambiente no aeroporto de Lima é de tensão, com as
autoridades peruanas garantindo que se os seques- tradores tentarem
qualquer manobra, tomar outro avião, respon- deremos com a força.”
Fonte: O Globo, Rio de Janeiro, 03 de janeiro de 1970.
263
“Dissen que los dos nifios son hijos de un revolucionario que está preso en
Brasil y que ellos los llevan junto con su madre a Cuba.”
“Sólo el ingeniero de vuelo (Helio Borges, de nacionalidad brasilefia
descendió del avión y se puso en contacto con Ias auto- ridades del aeropuerto
a fin de lograr el reabastecimiento de com- bustible para Ia nave. ( ... ) Las
probabilidades de que el avión non pudiera seguir vuelo de inmediato eran muy
grandes al cierre de esta edición (4 de Ia madrugada).”
Fonte: El Comercio, Lima, 02 de enero de 1970.
264
“Depois de trinta e ClnCO horas de tensão, passageiros, tripu- lantes e
seqüestradores respiraram aliviados.”
“Este foi o mais longo suspense havido nas aventuras de pira- taria aérea.
Forças da polícia peruana montaram vigilância constan- te em torno do avião,
dispostas a intervirem em caso de violências contra os passageiros e
tripulantes.”
“O Sr. Hélio Borges afirmou então que os sequestradores na verdade eram
oito, pois tinha certeza que mais três deles estavam entre os passageiros. O
piloto confirmou esta suspeita.”
Fonte: Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 04 de janeiro de 1970.
265
FALTA O TEXTO E A IMAGEM CORRETA
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“ESSE INESQUECÍVEL VÔO NÚMERO 114
DE JATO PURO DA CRUZEIRO”
Fonte: Última Hora, Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1910.
267
268
“HAVANA -148 As autoridades cubanas identificaram os sequestradores
do avião brasileiro “Caravelle”, que aterrizou nesta capital como “seis homens
e duas mulheres armados de dois re- vólveres”.
“Como se sabe, o grupo identificado do exterior, como mem- bros do
movimento extremista brasileiro, “Var-Palmares”, havia se apoderado quinta-
feira do “Caravelle” da companhia “Cruzeiro do Sul”, quando voava entre
Montevidéu e São Paulo.
“Trata-se do primeiro avião deste ano desviado para Cuba pelos “piratas
do ar”. No ano passado, quatro aparelhos de na- cionalidade brasileira, foram
desviados para Cuba, dos quais dois pertenciam à Cruzeiro do Sul.”
Fonte: O Granma, Havana, Cuba, 07 de enero de 1970.
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270
FALTA IMAGEM CORRETA
“Durante uma hora, os nove passageiros e sete tripulantes do Caravelle da
Cruzeiro do Sul, PP-PDZ, que chegou ao Galeão, às 11 h25m, depuseram perante
as autoridades da aeronáutica sobre o sequestro do avião e lhes foram exibidos
slides de subversivos para serem identificados. Nesse espaço de tempo não
foram permitidos contatos entre os ocupantes do avião e seus familiares, que
esta- vam presentes no aeroporto.
O primeiro oficial do Caravelle, Hélio Borges, após ter sido li- berado pelas
autoridades de segurança, disse que nenhum dos sus- peitos apresentados
através dos slides a passageiros e tripulantes foi reconhecido, acrescentando,
porém, que quanto à identificação dos verdadeiros sequestradores não existe
qualquer problema, pois eles próprios se identificaram durante o vôo, não
colocando obs- táculos a isso.”
Fonte: O Dia, Rio de Janeiro, janeiro de 1970.
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“Depois de novo e angustiante drama vivido por passageiros e tripulantes
no Panamá, chegou ontem a Cuba, por volta das 17h, “Caravelle” da Cruzeiro do
Sul, sequestrado no último dia 1º por quatro rapazes e duas moças, quando
voava entre Montevidéu e Porto Alegre. A estada no Panamá foi cercada de
grande tensão, pois, como o de Lima, o aeroporto daquela cidade não possui
usina geradora. A solução encontrada por autoridades locais e tripulan- tes foi
ligar os motores do avião a uma série de baterias de auto- móveis.”
Fonte: Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1970.
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Participantes do sequestro
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Moaryr-João Lucas Alves
Militante do Comando de Libertação Nacional (COLINA). Nasceu em
Canhotinho/PE, em 3 de novembro de 1935. Era 2° sargento da Aeronáutica.
Morto aos 34 anos, em Belo Horizonte.
Estudou no Grupo Escolar Marcelo Pinheiro e fez o Colegial no Ginásio
Visconde de Mauá, em Recife, indo para a Escola de Especialistas da
Aeronáutica em Guaratinguetá/SP, de onde saiu como 3° sargento. Serviu na
Base Aérea de Ibura/PE de 1957 a
1960. Em 1961 esteve nos Estados Unidos especializando-se por conta do
Ministério da Aeronáutica.
Expulso da FAB em 1964 pelo Ato lnstitucional n? L Preso, no Rio de
Janeiro, a 8 de novembro de 1968 e levado para o DOPS/ RJ e, posteriormente,
para a PE. Em 20 de novembro de 1968, foi decretada sua prisão preventiva por
30 dias e, em 18 de dezembro, prorrogada por mais 30 dias. Ao final dos 60 dias,
foi requerido o relaxamento de sua prisão, em 20 de janeiro, ato reiterado em
29 de janeiro, pedidos que não foram apreciados pela Justiça.
Em 28 de fevereiro, em nota oficial, foi transferido para a Poli- cia de Belo
Horizonte e, em 06 de março, foi anunciada sua morte por suicídio na Delegacia
de Furtos e Roubos de Belo Horizonte.
Nas torturas que sofreu nesse departamento policial, João Lu- cas teve
vários ossos quebrados, olhos vazados, além de queima- duras generalizadas.
Onofre Pinto (ex-banido e desaparecido em
1974), preso na mesma época, denunciou o ocorrido em depoi- mento à
organização ‘’Amnesty International”.
Vários presos políticos, como Antônio Pereira Mattos, Angelo Pezzutti da
Silva e Afonso Celso Lana Leite dentre outros, em de- poimentos realizados em
Auditorias Militares, à época, denuncia- ram as torturas sofridas por João Alves.
O laudo médico, requerido pelo advogado Modesto da Silvei- ra, revelou
unhas arrancadas, escoriações e equimoses ao longo do corpo, inclusive no
rosto e nas nádegas, não demonstrando qual- quer indício do suposto suicídio
por enforcamento.
A necrópsia, realizada no Departamento de Medicina Legal/ MG, em 06 de
março de 1969, firmada pelos Drs. Djezzar Gonçal- ves e João Bosco Nacif da
Silva, confirma a falsa versão policial de suicídio por enforcamento, apesar de
descrever algumas esco- riações presentes no braço esquerdo, pé direito e na
região glútea, assim como a falta de uma unha e rouxidão em outras. Esses mé-
274
dicos foram denunciados pelo GTNM/MG, mas sequer foram in- vestigados,
pois o CRM/MG arquivou a denúncia.
Foi encontrado no arquivo do antigo DOPS/SP, um relatório sobre sua vida
pregressa oriundo da Delegacia Regional-Guanaba- ra-Serviço de Ordem
Política e Social, datado de 8 de novembro de 1968, com uma anotação a caneta
“suicidou-se no DOPS/BH”.
Fonte: Movimento Tortura Nunca Mais.
275
Juarez-Juarez Guimarães de Brito
276
disparado por ele mesmo.
Foi enterrado em Belo Horizonte por sua família.
277
Onofre - Onofre Pinto
Dirigente da VANGUARDA POPULAR REVOLUCIONÁRIA (VPR).
Nasceu aos 26 de janeiro de 1937 em ]acupiranga, Estado de
São Paulo, filho de Júlio Rosário e de Maria Pinto Rosário.
Desaparecido aos 36 anos. Ex-sargento do Exército Brasileiro. Seu
prontuário nos arquivos do antigo DOPS/SP registra que Onofre teve seus
direitos políticos cassados pelo Ato Institucional nOl e sua prisão preventiva
decretada, em 8 de outubro de 1964, pela 2a Auditoria de Guerra de São Paulo,
por sua participação no “Movimento dos Sargentos”.
Foi indiciado em IPM instaurado pela 2a Auditoria da 2a RM em 2 de
fevereiro de 1966.
Foi preso no dia 2 de março de 1969 por elementos do DOPS e da 2a Cia-PE.
Foi banido do Brasil em setembro de 1969, quando do seqües- tro do
embaixador americano no País, e viajou para o México com outros 14 presos
políticos.
Ainda dos registros policiais consta que, “Infor- mação do II Exército de
29/01/70, esclarece que Onofre Pinto ... teria a in- tenção de retornar ao
Brasil... em princípios de fevereiro de 1970”. E completa os dados:
“O Ministério do Exército nos cientificou que provavelmente o marginado
encontrar-se-ia no Chile.” Mais adiante, outras infor- mações ratificam o quanto
se encontrava “cercado”pelos policiais:
‘’A CIOP, em 2/7/73, nos cientificou o seguinte: ‘A carteira de identidade
de Francisco Wilton Fernandes, emitida pelo Institu- to Nacional de
Identificação do Departamento de Policia Federal, Brasília, em 17/05/73, RG nº
104.947, estaria de posse de um apa- relho de subversivos brasileiros em
Santiago do Chile. Segundo o informante, a referida carteira deverá ter a
fotografia substituída pela de Onofre Pinto.’” “O Ministério da Aeronáutica, em
1/8/73 nos cientificou que o ex-sargento do Exército Onofre Pinto ... re- side em
Santiago do Chile no se- guinte endereço ... “ “Relatório de Plantão de 29/6/74,
nos cientifica que através do Rádio nO 3749, proveni- ente da DPF, fomos
solicitados a observar os indiví- duos Onofre Pinto e Daniel José de Carvalho,
que se dirigem para São Paulo, procedentes do Uruguai ... “
Desapareceu em julho de 1974, quando tentava entrar clandestinamente
no Brasil com um grupo de banidos.
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Carlos - Wellington Moreira Diniz
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Liszt / Rodolfo - Liszt Benjamin Vieira
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Carlos - Wellington Moreira
Diniz
Nascido em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 10/03/1947, iniciou sua vida
política no Movimento Estudantil, através do “Grêmio Estudantil da Escola
Técnica” como 1º Secretário da União Mineira do Estudante Técnico Industrial.
Fez parte da AP, POLOP, V AR- PALMARES, VPR. Técnico em Máquinas e
Motores, formado na Escola Técnica Federal MG. Cursou até o segundo ano de
Sociologia pela UFMG, e segundo ano de História na FAFIBH.
Foi preso em setembro de 1968 por subversão e apoio a greve dos
metalúrgicos, no “120 Regimento de Infantaria do Exército.” Fez greve de fome
nos presídios masculino e feminino, em novem- bro, exi- gindo a liberdade após
a morte do pai.
Solto em 12 de dezembro de 1968, entra na clan- destinidade. Participou
de inúmeras ações e foi preso em abril de 1970 pelo
Doi Codi, no tiroteio do Largo do Ma- chado.
Em 1971, foi libertado na troca do Embaixador Suiço. Esteve exilado até a
anistia em 1979, no Chile, México e Itália. Participou da guerra para a
independência de Angola.
Atualmente, exerce os cargos: Diretor e Professor na Clínica “Tai-Ji
Terapias Orientais”, Professor da “Escola Paulista de Te- rapias”, Acupunturista
do Hos- pital Espírita André Luiz; Presi- dente do Sindicato dos Acupunturistas
e Massoterapeutas de BH SIMOR.
Fonte: O próprio
Glossário:
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Carlos (Wellington Diniz Moreira).
César Vallejo: Poeta peruano.
Chabuca Grande: Compositor e intérprete peruano. Fausto/Luiz
(Fausto Machado Freire).
João: Juarez Guimarães de Brito. Liszt/Rodolfo: Liszt Bejamim
Vieira. Moacyr: João Lucas Alves.
Sílvio Rodrigues: Compositor e intérprete. Um dos
fundadores da Nova Trova cubana.
COLINA: Comando de Libertação Nacional. DEOPS: Departamento
(Estadual) de Ordem Pública e Social. Orgão da Repressão Política
a cargo da Política Cívil. IAPTEC: Conjunto habitacional dos
aposentados em Irajá. POLOP: Política Operária.
VAR-PALMARES: Vanguarda Armada Revolucionária -Palmares.
VPR: Vanguarda Popular Revolucionária.
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