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PANDEMIA

O federalismo brasileiro no contexto de crise: o que


muda com o PLP nº 39/2020
Reajuste de forças no federalismo brasileiro deve ser pautado pela responsabilidade na gestão scal

LEANDRO PEIXOTO MEDEIROS

22/05/2020 13:46
Atualizado em 23/05/2020 às 14:27

Crédito: Wikimedia Commons

No último dia 6 de maio, após retornar da Câmara dos Deputados ao Senado


Federal, en m foi aprovado o Projeto de Lei Complementar nº 39, de 2020, que
estabelece o “Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2
(Covid-19)”.
O texto, que agora vai à sanção presidencial[1], representa novo auxílio da União a
estados, Distrito Federal e municípios, motivado pelo contexto de calamidade
pública já reconhecido por meio do Decreto Legislativo nº 6, de 2020.

O PLP nº 39/2020 fundamenta-se em três iniciativas principais: 1) a suspensão dos


pagamentos das dívidas contratadas entre União, de um lado, e Estados e Distrito
Federal, de outro, rmadas com base na Lei nº 9.496/1997 e na Medida Provisória
nº 2.192-70/2001; assim como das dívidas de Municípios com a União, amparadas
na Medida Provisória nº 2.185-35/2001 e na Lei nº 13.485/2017; 2) a
reestruturação de operações de crédito interno e externo dos entes subnacionais
junto ao sistema nanceiro; e 3) o auxílio direto da União a Estados, Distrito Federal e
Municípios mediante repasse de recursos em 2020.

Sobre a primeira iniciativa, qual seja a suspensão de pagamento das dívidas, o art.
2º do PLP prevê que, de 1º de março a 31 de dezembro deste ano, a União cará
impossibilitada de executar as garantias contratuais.

O § 1º do dispositivo enuncia que os valores não pagos no período deverão ser


utilizados “preferencialmente em ações de enfrentamento da calamidade pública
decorrente da pandemia da Covid-19”[2], sendo apartados e incorporados aos
respectivos saldos devedores apenas em 1º de janeiro de 2022, para pagamento
pelo prazo remanescente de amortização dos ajustes.

Assim, um primeiro ponto a ser observado é que não haverá ampliação do prazo de
pagamento, o que evita mais uma postergação do endividamento entre entes
federativos.

Sobre o tema, recorda-se que, com a Lei Complementar nº 156/2016, os estados


que aderiram ao termo aditivo previsto em seu art. 1º obtiveram prazo adicional de
até duzentos e quarenta meses para o pagamento das dívidas re nanciadas.

Por certo, evitar a perpetuação dos vínculos de dívida caminha tanto na direção da
autonomia das unidades federadas, como da própria Lei de Responsabilidade
Fiscal (LC nº 101/2000), que, em seu art. 35, veda operações de crédito entre entes
federativos.

Outro ponto substancial do PLP está no seu art. 3º, que excepciona, durante o
estado de calamidade pública decretado para o enfrentamento da pandemia, o
atendimento às condições e vedações para renúncia de receita de que trata o art. 14
e para a criação ou aumento de despesa obrigatória de caráter continuado previstas
no art. 17, ambos da LRF.

No período, também estará dispensada a necessidade de que, para ações


governamentais que acarretem aumento de despesa, se declare a existência de
adequação orçamentária e nanceira com a LOA e compatibilidade com o PPA e
com a LDO (art. 16, caput, II, da LRF).

Pelo texto do PLP, cam igualmente afastadas no


período de calamidade regras referentes a limites e
condições para a realização e o recebimento de
transferências voluntárias.

Nesse aspecto, ressalva importante do projeto legislativo é a contida no § 1º de seu


art. 3º, que restringe o afastamento das citadas regras aos atos de gestão
orçamentária e nanceira necessários ao atendimento do “Programa Federativo” ou
de convênios vigentes durante o período de exceção, não eximindo os gestores das
obrigações de transparência, controle e scalização, deixando margem, por
exemplo, para a atuação oportuna dos Tribunais de Contas.

“A esse mesmo respeito, lembra-se que, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº


6.357/DF, o Ministro Alexandre de Moraes concedeu medida cautelar para conferir
interpretação conforme a Constituição “aos artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei de
Responsabilidade Fiscal e 114, caput, in ne e § 14, da Lei de Diretrizes
Orçamentárias/2020”, a m de, “durante a emergência em Saúde Pública de
importância nacional e o estado de calamidade pública decorrente de Covid-19,
afastar a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias
em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento
do contexto de calamidade gerado pela disseminação de Covid-19”. Embora na
sessão plenária do último dia 13 de maio a ADI tenha sido extinta por perda
superveniente do objeto, haja vista a promulgação da Emenda Constitucional nº
106/2020, que instituiu regime extraordinário scal, nanceiro e de contratações
para enfrentamento da pandemia (conhecido como “Orçamento de Guerra’), houve o
referendo da medida liminar pela Corte.”

Já quanto à segunda iniciativa, o art. 4º do PLP permite a realização de aditamentos


contratuais que suspendam os pagamentos devidos neste ano de operações de
crédito interno e externo celebradas pelos estados, Distrito Federal e municípios com
o sistema nanceiro e instituições multilaterais de crédito, possibilitando que, no
caso de operações que contem com garantia da União, seja ela mantida.

Caso a renegociação tenha sido inviabilizada por culpa da instituição credora, a


União, nos termos do § 6º, cará impedida de executar as garantias e
contragarantias dessas dívidas durante o exercício nanceiro de 2020.

Esse é, desde já, um ponto que carecerá de certa cautela interpretativa caso venha a
ser sancionado, sobretudo no que toca à abrangência da expressão “execução de
garantias” por parte da União, notadamente em contratos externos avalizados pelo
ente central.

Isso porque, da forma como redigido o dispositivo, poderá haver dúvidas se, com o
inadimplemento dos entes subnacionais, estaria ou não a União, por força de lei
interna, dispensada de cumprir compromissos pactuados com entidades externas,
como a honra de aval.

Por sua vez, representando a terceira iniciativa legal, o artigo 5º do PLP disciplina o
auxílio nanceiro direto aos estados, Distrito Federal e municípios, prevendo o
repasse de recursos, em quatro parcelas mensais e iguais em 2020, da ordem de R$
60 bilhões para aplicação em ações de combate à Covid-19 e mitigação de seus
efeitos econômicos, sendo que R$ 10 bilhões serão destinados exclusivamente à
saúde e à assistência social, dos quais R$ 7 bilhões carão a cargo dos estados –
usando-se a taxa de incidência divulgada pelo Ministério da Saúde e os dados
populacionais como parâmetros de distribuição – e R$ 3 bilhões dos municípios,
cujo rateio cará por conta apenas do tamanho de suas populações.

Os demais R$ 50 bilhões serão divididos de modo que R$ 30 bilhões quem com os


estados – na forma do anexo I do PLP – e R$ 20 bilhões com os Municípios,
seguindo a proporção destinada aos Estados no anexo I do projeto e os respectivos
números de habitantes.

Aliás, elemento central dessa equação federativa de crise está presente no § 7º do


art. 5º, que dispõe, como condição para o recebimento das quantias, que os entes
subnacionais renunciem ao direito sobre o qual se fundam ações ajuizadas em face
da União após 20 de março deste ano e que tenham como causa de pedir, direta ou
indiretamente, a pandemia da Covid-19.

O dispositivo, à semelhança do que já se fez nas Leis Complementares nº 156/2016


(art. 1º, § 8º, e art. 12-A, § 7º) e nº 159/2017 (art. 3º, § 3º), representa uma efetiva
ponderação do Parlamento, a desincentivar a crescente judicialização das relações
nanceiras intergovernamentais, evitando que estados, Distrito Federal e municípios,
mesmo diante de acordos políticos construídos e rmados no Congresso Nacional,
se valham de ações judiciais para lograr obter verdadeiros “regimes híbridos”[3] por
meio de decisões do Poder Judiciário.

Por outro lado, o art. 7º do PLP nº 39/2020 propõe alterar, de modo permanente, o
art. 21 da LRF, para restringir a prática de atos que resultem em aumento de
despesa com pessoal e que prevejam parcelas a serem implementadas em períodos
posteriores ao nal do mandato do titular de Poder ou órgão[4], e o art. 65 da mesma
lei, que trata da decretação do estado de calamidade pública, gerando maiores
exibilizações de seu regime jurídico, para, por exemplo, dispensar limites, condições
e demais restrições aplicáveis aos entes federados, bem como sua veri cação, na
contratação e aditamento de operações de crédito; concessão de garantias;
contratação entre entes da Federação; e recebimento de transferências voluntárias.

Por m, o art. 8º, objeto de debates mais intensos nos últimos dias, estabelece uma
série de vedações relacionadas ao aumento de despesas obrigatórias até 31 de
dezembro de 2021.
Entre as principais, citam-se  a impossibilidade de aumentos ou reajustes a
membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos, à exceção de
algumas categorias; as vedações à criação de cargos e alteração de estrutura de
carreira que impliquem aumento de despesa; à contratação de pessoal, ressalvadas
as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios; à criação de
despesa obrigatória de caráter continuado sem medida de prévia compensação e ao
reajuste de despesa obrigatória acima da in ação (IPCA), entre outros.

Dessa forma, com o Projeto de Lei Complementar nº 39, de 2020, motivado pela
crise econômica e sanitária decorrente da atual pandemia, está-se diante novamente
de socorro federal às contas públicas estaduais e municipais.

O que se espera, desta vez, é que a medida, a título de representar um reajuste de


forças no federalismo brasileiro, possa ser pautada pela responsabilidade na gestão
scal, que é ferramenta para a concretização intertemporal de direitos
fundamentais.

A nal, nas palavras de Stephen Holmes e Cass R. Sunstein, “a con ança numa
estabilidade de longo prazo é em parte um produto da imposição con ável das leis, ou
seja, de uma ação estatal vigorosa e decisiva”[5]. Que, nesse estado de
excepcionalidades, possa ter sido a melhor saída. Aguardemos a sanção (ou os
vetos).

[1] O prazo para sanção se encerra no dia 27 de maio de 2020.

[2] Interessante notar que o § 5º do art. 2º do PLP nº 39/2020 indica a necessidade dos entes

subnacionais demonstrarem e darem publicidade à aplicação dos recursos, evidenciando a


correlação entre as ações desenvolvidas e os recursos não pagos à União, sem prejuízo da
supervisão dos órgãos de controle competentes.

[3] Sobre a judicialização das crises scais dos Estados brasileiros e o papel do Supremo
Tribunal Federal, ver: ECHEVERRIA, Andrea de Quadros Dantas; RIBEIRO, Gustavo Ferreira. O
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO ÁRBITRO OU JOGADOR? AS CRISES FISCAIS DOS
ESTADOS BRASILEIROS E O JOGO DO RESGATE. REI – REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS,
[S.l.], v. 4, n. 2, p. 642-671, dez. 2018. ISSN 2447-5467. Disponível em:
<https://www.estudosinstitucionais.com/REI/article/view/249>. Acesso em: 09 de maio de
2020. doi:https://doi.org/10.21783/rei.v4i2.249.
[4] Foi o caso, por exemplo, da Lei nº 13.464/2017 no âmbito do funcionalismo público federal.

[5] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R.. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos

impostos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. ePub.

LEANDRO PEIXOTO MEDEIROS – Advogado da União, com atuação perante o Supremo Tribunal Federal.
Coordenador-Geral de Ações Originárias da Secretaria-Geral de Contencioso da AGU. Graduado em Direito
(Magna Cum Laude) pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito Processual Civil pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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