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CENTRO UNIVERSITÁRIO “BARÃO DE MAUÁ”

DIALOGUS
Revista dos cursos de História e Pedagogia

ISSN 1808-4656
Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013 p. 243

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 1


DIALOGUS é uma publicação semestral dos cursos de Comissão Editorial
História e Pedagogia mantidos pelo Centro Universitário
Barão de Mauá, Ribeirão Preto, SP. Solicita-se permuta. Prof. Ms. Cícero Barbosa do Nascimento
As opiniões emitidas são de responsabilidade dos autores. Profa. Dra. Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa
É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desde Prof. Ms. Rafael Cardoso de Mello
que citada a fonte.

Conselho Editorial

Andréa Coelho Lastória, profª Drª (USP)


Antônio Carlos Lopes Petean, prof. Dr (UFU).
Aparecida Turolo Garcia, profª Drª (USC)
Beatriz Ribeiro Soares, profª Drª (UFU)
Charlei Aparecido da Silva, prof. Dr.(UFGD)
Dulce Maria Pamplona Guimarães, profª. Drª. (CUBM)
Edvaldo Cesar Moretti, prof. Dr. (UFGD)
Fábio Fernandes Villela, prof. Dr. (UNESP)
EXPEDIENTE Francisco Sergio B. Ladeira, prof. Dr. (UNICAMP)
Humberto Perinelli Neto, prof. Dr. (UNESP)
Chanceller
Ivan Aparecido Manoel, prof. Dr. (UNESP)
Prof. Dr. Nicolau Dinamarco Spinelli (in memorian)
Reitora
José Luís Vieira de Almeida, prof. Dr. (UNESP)
Profa. Dra. Dulce Maria Pamplona Guimarães Lélio Luiz de Oliveira, prof. Dr. (USP)
Vice-Reitor Marilia Curado Valsechi, profª Drª (UNESP)
Prof. João Alberto de Andrade Velloso Maria Lúcia Lamounier, profª Drª (UNESP)
Pró-Reitora de Ensino Nainora Maria Barbosa de Freitas, profª Drª (CUBM)
Profa. Me. Valéria Tomás de Aquino Pedro Paulo Funari, prof. Dr. (UNICAMP)
Pró-Reitora de Pós graduação, extensão e Iniciação científica Robson Mendonça Pereira, prof. Dr. (UEG)
Profa. Dra. Joyce Maria W. Gabrielli Sedeval Nardoque, prof. Dr. (UFGD)
Pró-Reitor Administrativo Silvio Reinod Costa, prof. Dr. (CUBM)
Antônio Augusto Abbari Dinamarco Solange Vera N. Lima D’Água, profª Drª (UNESP)
Coordenadora de Graduação em História Taciana Mirna Sambrano, profª Drª (UFMT)
Profa. Dra. Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa
Vera Lúcia Salazar Pessoa, profª Drª (UEG)
Coordenador de Graduação em Pedagogia
Prof. Me. Cícero Barbosa do Nascimento

FICHA CATALOGRÁFICA
DIALOGUS (Graduações em Geografia, em História e em Pedagogia – Centro Universitário “Barão
de Mauá”) Ribeirão Preto, SP – Brasil, v.9, n.1-2, jan/dez 2013. Semestral
14,7 X 20,7. 243p.
2013, v9 n.1-2
ISSN 1808-4656
1. Educação. 2. História.
I. Centro Universitário Barão de Mauá.
II. Cursos de Graduação em História e em Pedagogia.
CAPA: “F451”, autoria: Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto.

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PREFÁCIO

A reitoria parabeniza a comissão editorial e seus colaboradores pelo


esforço, dedicação, competência e comemora com eles o êxito desta publicação:
Revista Dialogus V.09 n.1 e n.2, 2013. Só mais um volume e acerta-se o passo,
com muita qualidade e densidade de seus dossiês e artigos.
Estes dossiês contêm, cada um, quatro trabalhos sobre a História da
Igreja Católica no Brasil e Educação no Brasil. Somados a estes, carregam ainda
artigos que se referem a vários temas, como: ao Patrimônio Cultural, religião e
religiosidade; Coronelismo e o ensino de história: reflexões sobre a formação
cidadã; O fantasma da modernidade: considerações acerca de Jardinópolis; De
Monteiro Lobato a André Silva: apontamentos sobre a memória do café; As
características das silcretes associadas a opalas comuns e a Arte de ser “bela”:
apontamentos sobre beleza e higiene na Primeira República (1917-1918).
Os dossiês, por sua vez, elaborados em função de um cenário
problematizador tanto da História da Religião Católica no Brasil e de muitas
questões que envolvem a Educação ao longo do tempo, possibilitam uma
percepção complexa e densa destas realidades. Novamente nossos leitores têm
em mãos, para discussão, temas variados de história, geografia, política e de
educação de relevante importância para a reflexão, ampliação e consolidação
do conhecimento.

Reitoria do Centro Universitário Barão de Mauá

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Apresentação do primeiro e do segundo número do nono volume

É com satisfação que a Comissão Editorial entrega mais um número da


revista Dialogus. O compromisso firmado com a qualidade das produções continua
a fazer de nosso periódico, um espaço de divulgação de resultados de pesquisas
realizadas por pessoas sérias e comprometidas com suas áreas de atuação.
Neste nono volume, a revista traz dois dossiês: “História da Igreja Católica
no Brasil em perspectiva” e “Educação em perspectiva”, em consonância com o
objetivo de divulgar as novidades nas áreas de História e Educação.
Quanto a este primeiro Dossiê, cabe salientar os ótimos textos de Donaldo
Borges, Marco Baldin, Emilio Primolan e o artigo de Nainora Freitas em coautoria
com Leonardo Miranda. Borges nos apresenta um estudo sobre as referências a
Deus nas constituições brasileiras, já Baldin uma investigação das relações entre
Igreja e Estado no governo Vargas durante a década de 1930. Primolan contribui
neste volume com uma reflexão acerca da crise vivida na Igreja brasileira na
década de 1960 e Freitas e Miranda com uma valiosa avaliação de um episódio
de queima de histórias em quadrinhos por parte da Igreja Católica no município
de Ribeirão Preto/SP.
O segundo dossiê é igualmente rico. Produzido em meio a
problematizações do campo educacional, carrega contribuições de Luciana
Rodrigues e Sueli Pauli; Liliane Sobreira e Natalina Sicca; Claudio Gonçalves e
Humberto Perinelli Neto; além de um texto de Osmair Botelho. O primeiro artigo
de Rodrigues e Pauli permite-nos conhecer a construção de materiais
psicopedadógicos para uma brinquedoteca cuja finalidade é assistir crianças
com paralisia cerebral; já Sobreira e Sicca abrilhantam este dossiê com uma
pesquisa que visa compreender a representação do ensino de arte a partir dos
discursos dos discentes de pedagogia. Gonçalves e Perinelli Neto realizaram um
estudo significativo ao nos levar ao cotidiano de um grupo escolar do município
de Ribeirão Preto/SP, no princípio do séc. XX e Botelho conduz brilhantemente
uma narrativa de reflexão sobre o processo dialético em Platão e seus
desdobramentos retóricos na educação da Grécia Antiga.
Quanto ao espaço destinado aos artigos e demais contribuições fora da
temática dos dossiês, convidamos a todos a lerem os excelentes textos disponíveis
neste volume. O primeiro deles é de autoria de Molina, Freitas e Rosa, e visa
compreender os resultados de uma reflexão da aplicação do Inventário Nacional

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de Referências Culturais na cidade de Ribeirão Preto/SP. O segundo, de José
Faustino e Andrea Lastória Santos, aborda o coronelismo e o ensino de história,
com ênfase na formação cidadã.
Ferreira e Perinelli Neto apresentam uma contribuição fundamental
quanto aos estudos da modernidade no interior do estado de São Paulo, com
artigo que investiga a urbanização no município de Jardinópolis/SP e Romero y
Galvaniz e Mello, buscam decifrar os discursos que interferem na historiografia e
a memória da cidade de Ribeirão Preto, geralmente marcadas pela forte presença
de um mito da origem do ciclo cafeeiro.
Destacamos também os ótimos textos em Geografia e Gênero. O primeiro,
de Bittencourt Rosa, Nascimento e Rocha, traz contribuições significativas aos
estudos da bacia do rio do Cedro, principalmente na área correspondente ao
município de Lucas do Rio Verde/MT. E, por último, o ótimo texto de Lima,
responsável por uma investigação dos discursos que cercam a beleza feminina
no princípio do séc. XX, a partir de almanaques e revistas ribeirãopretanas e/ou
que nesta cidade circularam.
Desta forma, a Comissão Editorial comemora a continuidade e a
perseverança de um projeto de anos, possibilitar diálogos ontem, hoje e sempre.

Comissão Editorial

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DOSSIÊ/SPECIAL
“História da Igreja Católica no Brasil em perspectiva”
11 A referência a Deus nas constituições brasileiras
The reference to God in the Brazilian constitutions
Donaldo de Assis BORGES

29 Igreja e política na Era Vargas (1930-1940)


Church and politics in Era Vargas age (1930-1940)
Marco Antônio BALDIN

41 Igreja Católica e quadrinhos: uma perseguição à arte sequencial em


Ribeirão Preto na década de 1940
Catholic church and comics: A pursuit to sequential art in Ribeirão Preto in the
1940s
Nainôra Maria Barbosa de FREITAS
Leonardo Góes MIRANDA
53 Nas relações Igreja/Estado no Brasil
In the relationship Church State in Brazil.
Emílio Donizete PRIMOLAN

DOSSIÊ/SPECIAL
“Educação em perspectiva”
69 Oficina de construção de materiais psicopedagógicos para uma
brinquedoteca para crianças com paralisia cerebral e/ou múltipla
hospitalizadas: relato de experiência
Workshop for building materials psychopedagogic aplayroom for children with
cerebral palsy and/or multiple hospitalized: experience report.
Luciana Andrade RODRIGUES
Sueli Cristina de PAULI

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87 A visão das alunas do curso de Pedagogia sobre o ensino de arte
para as crianças: contribuições para a educação do educador polivalente
The Pedagogy Student’s vision on teaching art for children: contributions to
education of educator versatile
Liliane Cury SOBREIRA
Natalina Ap. Laguna SICCA

107 Vestígios de civilização e bárbarie na Belle Époque de Ribeirão


Preto: interpretação indiciária do cotidiano escolar do Terceiro Grupo
Escolar
Traces of civilization and barbarism in the Belle Epoque in Ribeirão Preto:
interpreting evidentiary everyday school of the Terceiro Grupo Escolar.
Claudio GONÇALVES
Humberto PERINELLI NETO

123 A construção do processo dialético em Platão: o conflito entre a


filosofia e a retórica como revisão dos fundamentos da educação na
Grécia Antiga
Construction of the dialetic process in Plato: the conflict between Philosophy and
Rhetoric as a revision of basis of education in Ancient Greece
Osmair Severino BOTELHO;

ARTIGOS/ARTICLES

145 Patrimônio cultural, religião e religiosidade: reflexões sobre a


experiência de pesquisa com o INRC – Inventário Nacional de Referências
Culturais
Cultural heritage, religion and religiosity: reflections on research experience with
the INRC - National Inventory of Cultural References
Sandra Rita MOLINA
Nainôra Maria Barbosa de FREITAS
Lilian Rodrigues de Oliveira ROSA

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157 Coronelismo e o ensino de História: reflexões para a formação
cidadã
Coronelismo and the teaching of history: reflections for citizen formation
José Faustino de Almeida SANTOS
Andrea Coelho LASTÓRIA

175 O fantasma da modernidade: considerações acerca de Jardinópolis/SP


The phantom of the modern era: considerations about Jardinópolis/SP
Priscila Fernanda FERREIRA
Humberto PERINELLI NETO

189 De Monteiro Lobato à André Silva: apontamentos sobre a memória


do café como um “ídolo da origem” da cidade de Ribeirão Preto
Monteiro Lobato to André Silva: notes on memory of coffee as an “idol of origins” of
the city of Ribeirão Preto
Lucas Dario ROMERO Y GALVANIZ
Rafael Cardoso de MELLO

201 As características das silcretes associadas a opalas comuns na bacia


hidrográfica do rio do Cedro – município de Lucas do Rio Verde – MT
The characteristics of the silcretes associated to the commons opals in the Cedro river
hydrographical basin – Lucas do Rio Verde Municipality – State of Mato Grosso – Brazil
Deocleciano BITTENCOURT ROSA
Lucelma Aparecida NASCIMENTO
Leonardo Cristian ROCHA

217 A “arte de ser bela”: apontamentos sobre beleza e higiene na Primeira


República (1917-1918)
The “art of being bella”: notes on beauty and hygiene in the first republic (1917-1918)
Greize Dainese de LIMA

233 Índice de autores/Authors index.


235 Índice de Assuntos.
237 Subject Index.
239 Normas para publicação na revista DIALOGUS.

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DOSSIÊ/SPECIAL

História da Igreja Católica no Brasil em perspectiva

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A REFERÊNCIA A DEUS NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Donaldo de Assis Borges*

RESUMO: O presente trabalho visa à discussão e o entendimento das simetrias e


assimetrias que envolvem a referência a Deus nos preâmbulos das Constituições
federais brasileiras, e a reprodução, ou não, da expressão ou locução “sob a
proteção de Deus” nas Constituições dos Estados federados. O ponto de partida
gira em torno da atual Constituição do Estado do Acre, que não reproduziu a
referência a Deus que está inscrita no preâmbulo da Constituição da República
Federativa da Brasil, de 1988. O fenômeno da rejeição a Deus na Constituição do
Estado do Acre não é um fenômeno isolado na história do Brasil. A história nacional
viveu algo semelhante, porém de proporções infinitamente maiores, que colocou
em lados opostos a Igreja Católica e o Estado brasileiro, no final do século XIX e
início do XX (1889 a 1934). A instauração da República levou à separação
institucional entre a Igreja e o Estado, e entre as mudanças institucionais do novo
estado laico brasileiro, estava a retirada da referência a Deus da nova Carta política
republicana de 1891, bem como a revogação de vários direitos da Igreja, que
haviam sido outorgados pela legislação do Império (1824-1889).

PALAVRAS-CHAVE: História da Igreja; Constituição Federal; Religião; Deus;


Igreja; Estado.

INTRODUÇÃO

O presente estudo teve origem em um questionamento sobre um problema


recente de ordem política envolvendo a Constituição do Estado do Acre, no Brasil.
Após a promulgação da atual Constituição Federal da República Federativa do
Brasil, em 1988, os Estados-membros da União tiveram a incumbência de atualizar
as suas constituições para se adequarem à nova ordem política. A Constituição
Federal estabeleceu que os Estados-membros deveriam organizar-se e reger-se
pelas Constituições e leis que viessem a adotar, observando-se, entretanto, os
princípios da Constituição Federal. Contudo, face à observância do princípio da

*
Doutorando em História pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca. Orientador: Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel. Linha
de pesquisa: História e Cultura Social. Área de orientação: História Eclesiástica. Docente do Centro
Universitário de Franca – Uni-FACEF. E-mail: donaldo.borges@gmail.com.

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reserva legal, a Constituição reservou aos Estados as competências que não lhes
havia vedado, respeitando-se a autonomia político-administrativa dos entes
federados.
Destarte, os Estados-membros providenciaram logo as suas
Constituições, adequando-se às normas e aos princípios jurídicos e políticos da
Constituição Federal brasileira. A nova Carta política havia criado a República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e
do Distrito Federal, constituindo-se em Estado Democrático de Direito, nos termos
do art. 1º, da Constituição Federal de 19881.
No final da década e 1980, praticamente todos os estados brasileiros
cumpriram com as suas obrigações de instituir as suas próprias constituições,
que seriam a base e o fundamento para que os municípios produzissem as suas
respectivas leis orgânicas. As leis orgânicas municipais são, na verdade, leis
fundamentais para os municípios, assim como a Constituição Federal é para o
País, e as constituições estaduais são para os Estados-membros. O Distrito Federal
não possui Constituição, mas, sim, Lei Orgânica. A sua estrutura parece ter mais
semelhança com os Estados-membros, contudo, trata-se de uma unidade
federativa especial, que acumula competências dos Estados e Municípios (art.
32, CF)2,3.
Nesse processo, as constituições estaduais e a lei orgânica distrital não
destoaram da Constituição Federal ao reproduzirem princípios e normas
constitucionais aplicáveis aos entes federados, e da mesma forma os municípios,
que logo se desincumbiram da obrigação de produzir suas leis fundamentais.
Entretanto, em várias ocasiões houve por parte dos entes federados
dúvidas sobre a obrigatoriedade de se reproduzirem normas e princípios
constitucionais, ou seja, até que ponto estariam os entes federados obrigados de
reproduzir os princípios e normas da Constituição Federal nas suas constituições
e leis orgânicas, e onde se estaria entrando na esfera de liberdade legislativa para
fazer constar nos textos as peculiaridades e os anseios expressos nas demandas
1
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acessado em: 04.mar.2012.
2
Art. 32. O Distrito Federal, vedada sua divisão em Municípios, reger-se-á por lei orgânica, votada em dois
turnos com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços da Câmara Legislativa, que a
promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição.
§ 1º - Ao Distrito Federal são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e Municípios.
3
O Supremo Tribunal Federal têm sido provocado pela via das Ações Diretas de Inconstitucionalidade para
proferir interpretações autênticas sobre o alcance das normas constitucionais referentes ao Distrito Federal.
Vide A Constituição e o Supremo, disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%20462.> Acessado em: 04.mar.2012.

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regionais. Afinal, a própria Constituição deveria ser interpretada nesse aspecto,
cabendo ao Supremo Tribunal Federal resolver as questões pela via das ações
diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade.
Porém, um fato político diferiu da normalidade no âmbito das novas
constituições estaduais que estavam sendo criadas pelas assembleias
constituintes dos Estados-membros. A Constituição do Estado do Acre não fez
constar no preâmbulo da sua Carta política a referência a Deus4, como está na
Constituição Federal5, e também em todas as outras constituições estaduais e na
lei orgânica do Distrito Federal. As demais constituições estaduais fizeram constar
nos seus preâmbulos a expressão “sob a proteção de Deus”, que está no
preâmbulo da Constituição Federal. Na Constituição do Estado de São Paulo
aparece a expressão “invocando o nome de Deus”; na Constituição do Estado do
Rio de Janeiro aparece a expressão “sob a proteção de Deus”; na Constituição do
Amazonas consta a expressão “sob a égide da justiça e a proteção de Deus” etc.
A Constituição acreana, contudo, não buscou inspiração em Deus. A sua
inspiração vem dos Heróis da Revolução Acreana.
O fenômeno da religiosidade e da crença na existência de Deus é algo
recorrente entre os brasileiros. Uma pesquisa conduzida em 2007 pelo Datafolha
mostrou que apenas 1% da população brasileira não acredita na existência de
Deus. Além do que, a prevalência de práticas espirituais e religiosas é expressiva;
apenas 7,3% da população não tem religião (PERES,É preciso ter fé.
Internet).”Desde tempos remotos a religião tem promovido coesão social e
proporcionado bases éticas para a conduta humana” (NETTO, 1977, p. 307).
Dentre os estados brasileiros, o Acre não figura como sendo o mais sem
religião. O Acre é apenas o 5º colocado entre os estados mais sem religião no
Brasil. O ranking é encabeçado pelo Rio de Janeiro com 15,76% de pessoas que
4
O preâmbulo da Constituição do Estado do Acre: “A Assembleia Estadual Constituinte, usando dos
poderes que lhe foram outorgados pela Constituição Federal, obedecendo ao ideário democrático, com o
pensamento voltado para o Povo e inspirada nos Heróis da Revolução Acreana, promulga a seguinte
Constituição do Estado do Acre”. Constituição do Estado do Acre. Disponível em: <http://www.pge.ac.gov.br/
site/arquivos/bibliotecavirtual/constituicaoestadual.pdf>Acessado em: 04.mar.2012
5
O preâmbulo da Constituição Federal da República Federativa do Brasil: “Nós, representantes do povo
brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado
a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a
solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da
República Federativa do Brasil”. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:<http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.> Acessado em 04.mar.2012.

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se declararam sem religião, seguido dos estados Rondônia (12,70%), Bahia
(11,39%), Alagoas (9,80%), e Acre (9,70%)6.
O resultado da votação parlamentar que decidiu por não fazer constar a
referência a Deus no preâmbulo da Constituição acreana, não foi recebido de
forma pacífica por uma parte dos deputados estaduais da Assembléia Legislativa
do Estado do Acre. Deputados ligados ao Partido Social Liberal (PSL) impetraram,
junto ao Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade,
questionando se o preâmbulo da Constituição Federal estaria dentre as normas
de reprodução obrigatória pelos Estados-membros. A interpretação da norma
constitucional resultaria numa decisão válida para todos os casos similares
eventualmente envolvendo os entes federados. A decisão de se manter inalterado
o texto do preâmbulo da Constituição Estadual do Acre estava agora nas mãos da
mais alta Corte do Brasil, a sua Corte Constitucional, o Supremo Tribunal Federal.
O fenômeno da rejeição da referência a Deus na Constituição do Estado
do Acre não é um fenômeno isolado na história do Brasil. A história nacional viveu
algo semelhante, porém de proporções infinitamente maiores que colocou em
lados opostos a Igreja Católica e o Estado brasileiro, no final do século XIX e início
do XX (1889 a 1934). A instauração da República levou à separação institucional
entre a Igreja e o Estado, e dentre as mudanças institucionais do novo estado
laico brasileiro, estava a retirada da referência a Deus da nova Carta política
republicana de 1891, bem como a revogação de vários direitos da Igreja, que
haviam sido outorgados pela legislação do Império (1824-1889).
No Império, vigorava o regime do padroado que tinha como
fundamento a dependência hierárquica da Igreja Católica em relação ao Estado
brasileiro. Igreja e Estado faziam parte da mesma estrutura política. O clero era
mantido pelo Estado e eram considerados funcionários públicos, portanto
recebiam não só salários como também ordens dos altos escalões da
administração pública. Apesar das mudanças estruturais que levaram à separação
entre Igreja e Estado terem ocorrido com a Proclamação da República (1889), os
pródromos dos questionamentos sobre a liberdade religiosa, estopim da crise
que originou a separação entre as duas instituições, davam os seus primeiros
sinais ainda durante o Império.
1 D. ANTÔNIO MACEDO COSTA E OS MOVIMENTOS INICIAIS DA
6
O Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas tem realizado importantes pesquisas sobre a
religiosidade no Brasil. Vide as seguintes publicações: Economia das Religiões, disponível em:<http://
www4.fgv.br/cps/simulador/site_religioes2/;> Retratos da Religiosidade no Brasil, disponível em: <http:/
/www4.fgv.br/cps/simulador/site_religioes2/; >Novo Mapa das Religiões, disponível em:< http://www.fgv.br/
cps/religiao/.> Acessado em 04.mar.2012.

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SEPARAÇÃO ENTRE A IGREJA E O ESTADO
A República impôs a separação entre Igreja e Estado. Entretanto, a ideia
de implantar no Brasil a liberdade religiosa plena estava presente nos meios
legislativos nos últimos anos do Império, com a proposta de suprimir o art. 5º, da
Constituição do Império 7. Em 1888, ano que antecede à Proclamação da
República, D. Antônio de Macedo Costa 8 publicou uma representação à
Assembleia Geral Legislativa, onde combatia um projeto de liberdade religiosa
plena que ainda estava em fase de discussão para ulterior deliberação pelos
deputados. D. Macedo pretendia conservar o art. 5º da Constituição, pois para ele
o referido artigo era super-constitucional, anterior à Constituição. O artigo seria a
representação de um direito natural público, quando não, um direito historicamente
anterior à própria Constituição. A sua pré-existência seria a razão de sua
permanência na ordem jurídica do Império. A pré-existência da religião católica
apostólica romana e sua referência na Constituição, revelava, segundo D. Macedo,
que o legislador constituinte viu que o Brasil tinha um povo profundamente católico,
e não fez mais do que reconhecer esse fato ao consigná-lo na Carta constitucional.
A atemporalidade que indica a precedência desse direito inscrito no art. 5º,como
uma norma super-constitucional, poderia ser verificada, segundo ele, na sua
própria redação, que exprimia indubitavelmente essa ideia. Destarte, a expressão
“continuará a ser” não é uma criação da Constituição, mas o reconhecimento de
que a religião católica era mesmo a religião do Estado brasileiro (TORRES, 1968,
p. 313-314).
Nesse sentido, argumentava D. Macedo, que a Constituição havia criado
a Monarquia, o Império, o Poder Moderador, o Senado vitalício, a Augusta Câmara
temporária, a divisão e o equilíbrio dos poderes públicos da nação, contudo não
havia criado a religião católica. Ela já existia e estava inserida na própria coletividade
7
“Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras
Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem
fórma alguma exterior do Templo”. BRASIL. Constituição Política do Imperio do Brazil (1824).
8
"Antônio de Macedo Costa nasceu em Morangojipe, Província da Bahia, em 07 de agosto de 1830. Estudou
inicialmente no seminário de Salvador, Bahia, e, logo em seguida, por recomendação de seu bispo, D.
Romualdo Seixas, se transferiu para o Seminário de São Suplício, em Paris, onde se ordenou presbítero, em
1855. Transferindo-se para Roma, doutorou-se em Direito Canônico. Regressando ao Brasil, fixou-se em
Salvador, onde foi professor no Seminário de Salvador e no Colégio Baiano. Por sua formação sólida e
completo engajamento nas reformas e na política reacionária do Papa Pio IX (reformas ultramontanas), Antônio
de Macedo Costa, aos 32 anos de idade, foi escolhido para ser o novo bispo da Diocese de Belém, capital
da Província do Pará. Sagrado bispo pelo Internúncio Apostólico, D. Mariano Falchinelli de Antoninece, tomou
posse na Diocese de Belém, em 24 de julho de 1862" (BORGES apud MANOEL, 1997, p. 71). Ver também
a biografia de D. Macedo Costa na obra: LUSTOSA, 1939, p. 18/25.

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brasileira, e a sua precedência a colocava como fundamento não só da própria
Constituição como também de todas as demais leis do Império. A religião católica
seria o fundamento, o substratum, da existência nacional (TORRES, 1968, p. 314).
Portanto mais fácil é que toqueis em qualquer dos outros artigos da nossa Constitui-
ção – que, no entanto, e com toda a razão considerais com invioláveis – do que neste
importantíssimo referente à religião do Estado. Os outros artigos consignam fatos de
criação legal; este consigna um fato independente da lei, que se impôs ao legislador
para ser por ele apenas reconhecido e consagrado no Pacto solene que nos fez a
nação.
O povo brasileiro, enquanto não mudar de religião, enquanto não renunciar à fé
católica, tem, pois, o direito que sua religião seja respeitada, protegida, sustentada
pelos poderes públicos, de preferência a todo e qualquer outro culto.
Não é um privilégio odioso, é um direito nacional. Mantendo-o a ninguém fazemos
agravo: Qui jure suo unitur nemini facit injuriam (A pessoa que exerce o seu próprio
direito a ninguém fere).‘O culto católico, como diz Pimenta Bueno, não só interno
como externo, constitui um dos direitos fundamentais dos brasileiros; é a religião
nacional, especialmente protegida’. Os representantes da nação nada podem tentar
contra ela, o Imperador antes de aclamado jura mantê-la (Art. 95, § 3º, art. 103,
Constituição de 1824) (COSTA apud TORRES, 1968, p. 314).
D. Antônio Macedo Costa referia-se ao fato de que o Imperador havia jurado,
antes da sua Aclamação, manter a Religião Católica Apostólica Romana, a
integridade, e indivisibilidade do Império; observar, e fazer observar a Constituição
Política da Nação Brasileira, e mais Leis do Império; e prover ao bem geral do
Brasil, e quanto mais lhe coubesse (Art. 103, Constituição de 1824). Além do que,
a própria composição da Câmara dos Deputados demandava a nomeação dos
seus membros pelo Imperador, e exigia, entre outros requisitos, que professassem
a religião do Estado (Art. 95, § 3º, Constituição de 1824).
Não há dúvidas de que D. Macedo defendia o princípio do direito divino
como fundamento de toda a ordem social. O criador da ordem religiosa é o
mesmo criador da ordem temporal, portanto, é o mesmo legislador supremo.
Segundo D. Macedo, o legislador supremo deu à sociedade política o direito e o
dever de existir e de conservar a ordem pública, de não consentir que ela seja
perturbada (COSTA apud TORRES, 1968, p. 315).
Na representação à Assembleia Geral Legislativa, em 1888, D. Macedo não
fez qualquer referência ao preâmbulo da Constituição de 1824, proclamada “Em
nome da Santíssima Trindade”. Depreende-se que as ameaças à liberdade religiosa
não haviam ainda mencionado o preâmbulo da Constituição e a possível retirada da

16 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


referência a Deus. Entretanto, a República encarregar-se-ia de promover essa
mudança, dentre outras, uma vez que o projeto político do Governo Provisório do
Marechal Deodoro da Fonseca fazia parte do processo de laicização completa do
Estado, defendida por liberais e positivistas, que propunha o “afastamento de qualquer
relação entre o Estado e a Igreja Católica e outras religiões como fundamento de
uma nova ordem, progressista e esclarecida” (MANOEL,1997, p. 67/81).
As ideias defendidas por liberais e positivistas não tinham simetria com
as ideias conservadoras do clero católico, isso porque se baseavam nos
fundamentos do mundo moderno que ostentava o selo da irreligiosidade, do
anticatolicismo, e o abandono dos princípios éticos da doutrina católica. No
passado, foram esses fundamentos que lançaram as suas raízes no humanismo
renascentista dos séculos XV e XVI e na Reforma Protestante, e que deram seus
frutos nos séculos XVIII e XIX, na filosofia iluminista, no liberalismo, na Revolução
Francesa, nas Guerras Napoleônicas, no Império de Napoleão e,
fundamentalmente, na erradicação dos princípios cristãos do interior das leis e
na correlata laicização do próprio Estado (MANOEL, 1992, p. 26).

2 A AÇÃO DA IGREJA CATÓLICA APÓS A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA

O desabafo de D. Macedo Costa ao saber da queda do Império e da


Proclamação da República, no dia 15 de novembro de 1889, parece ter
demonstrado não só o seu ressentimento com o Império, mas também a sua
aprovação ao Governo Provisório do Marechal Deodoro.
Após a Proclamação da República, escreveu Dom Macedo Costa: “Acabamos de
assistir a um espetáculo que assombrou o universo; a um desses acontecimentos,
pelos quais dá o Altíssimo, quando lhe apraz, lições tremendas aos povos e aos reis;
um trono afundado de repente no abismo que princípios dissolventes, medrados à
sombra, em poucos anos lhe cavaram! Desapareceu o trono... E o altar? O altar está
em pé!...Não veremos mais ministros, que deviam ocupar-se só de negócios civis,
ordenando ridiculamente aos Bispos o cumprimento dos cânones do Concílio de
Trento no provimento das paróquias; proibindo-lhes a saída da diocese, sem licença
do governo, sob pena de ser declarada a Sé vacante, e proceder o governo à
nomeação de um sucessor, sujeitando à aprovação do governo os compêndios da
teologia porque se há de estudar nos seminários; revogando disposições dos esta-
tutos de certos cabidos e ordenando-lhes pontual observância do Sagrado Concílio
Tridentino; declarando que, dado o caso da Sé vacante, a jurisdição episcopal
passe toda ao Vigário Capitular; concedendo por graça imperial ao cabido metropo-
litano o direito de nomear um, depois de expirado o prazo do Concílio; isentando os

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 17


capelães militares da visita dos Prelados e dando-lhes as ordens regulares; licenci-
ando os religiosos para residirem por 6 (seis) meses fora de deus conventos;
aprovando as resoluções capitulares dos frades Franciscanos; concedendo o uso
de cinta e borla encarnadas aos cônegos do Pará (1852), ficando daquela data em
diante mudada a cor de que usavam; declarando que os Párocos não têm o direito
de exigir as velas da banqueta; fixando a quem compete a nomeação do porteiro da
Maça nas Catedrais” (LUSTOSA, 1939, p. 570).
Entretanto, logo procurou desfazer esse mal entendido de que depositava
total confiança nos propósitos do novo governo. D. Macedo já havia experimentado
o amargo remédio dos liberais que pretendiam revogar o art. 5º, da Constituição
do Império, em favor da liberdade religiosa. E agora o caminho estava aberto para
fazer fluir o pensamento liberal e positivista, utilizando-se da via democrática.
Embora contraditório, a democracia permitiria mecanismos de pressão política
para fazer revogar direitos que até então eram próprios da Igreja Católica, tornando-
os civis para serem apropriados pelo estado laico, independentemente de se
saber se o povo aprovaria mudanças tão drásticas para a Igreja Católica. D. Macedo
não tardou a sua ação junto aos novos governantes para garantir os direitos da
Igreja Católica no novo ordenamento jurídico republicano. É possível que a sua
formação no doutorado em Direito Canônico deu a ele as condições analíticas
para interpretar os novos rumos do Estado brasileiro face à religião católica.
D. Antônio de Macedo Costa estava no seu papel de líder do episcopado
brasileiro naquele momento histórico. Defensor da política conservadora da Igreja,
hábil político e diplomata, percebeu que seria melhor para o catolicismo no Brasil
a negociação do que o enfrentamento com o novo regime, seguindo o mesmo
pensamento de Leão XIII, que recomendava a negociação e não o confronto com
os poderes do Estado (MANOEL, 1997, p. 73).
Destarte, D. Macedo enviou uma carta em 22 de dezembro de 1889 ao
Ministro da Fazenda do Governo Provisório do Marechal Deodoro da Fonseca,
Rui Barbosa, seu ex-aluno no Colégio Baiano.No Colégio Baiano, D. Macedo
ainda era padre e atuava como professor, e teve estreito relacionamento de
amizade com Rui Barbosa, o que levanta a hipótese de que foram eles os
negociadores dos novos direitos referentes à Igreja Católica. Rui Barbosa havia
recebido a incumbência de escrever o projeto de Constituição, juntamente com
uma comissão de juristas, que mais tarde seria submetido à Assembleia Nacional
Constituinte.
Na carta, D. Macedo demarca a sua posição política frente à liberdade
religiosa e, por via de consequência procura também deixar claro a sua posição

18 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


diante da relação entre o Estado e Igreja. Dizia ele que não desejava a separação,
não daria nenhum passo, não faria um aceno para que se decretasse no Brasil o
divórcio entre o Estado e a Igreja. Em outro ponto da carta dizia ser evidente que,
suposto o fato de uma revelação divina, o estabelecimento, por Jesus Cristo, de uma
Igreja, uma, santa, universal, apostólica, para fazer chegar a todas as gerações
humanas, em todos os séculos, a Lei nova, por Ele promulgada, essa lei seria
essencialmente obrigatória para toda a inteligência que vem a esse mundo, e por
conseguinte absurdo o princípio da liberdade de cultos, como entendia o filosofismo
moderno. D. Macedo sugere a Rui Barbosa que no caso de ser decretada a
separação, se conservasse a situação adquirida há três séculos, pela Igreja no
Brasil, e ainda, que se acabasse de vez com as coações que o regalismo impunha
aos católicos. Essas observações tinham o intuito de lembrar sobre a liberdade que
os Estados Unidos concediam à Igreja Católica (LUSTOSA, 1939, p. 572). Na verdade,
alguns pontos da carta a Rui Barbosa revelam que D. Macedo manteve negociações
com líderes republicanos sobre a nova situação da Igreja na República, antes mesmo
de enviá-la (MANOEL, 1997, p. 75/76); (DIAS, 2008, p. 74).
A publicação do Decreto nº 119 A, de 7 de janeiro de 1890, estabeleceu a
proibição da intervenção da autoridade federal e dos estados federados em matéria
religiosa, consagrou a plena liberdade de cultos, extinguiu o padroado com todas
as suas instituições, recursos e prerrogativas. Estabeleceu ainda, outras
providências regulatórias como garantias à liberdade religiosa.
A saída negociada não produziu de imediato os frutos desejados por D.
Macedo, com exceção da extinção do Padroado, com o fim da tutela que o
Estado exercia sobre a Igreja, que, teoricamente, era defendida pelos bispos que
buscavam maior autonomia nos assuntos internos da Igreja.
Além disso, estava em curso a elaboração de um Projeto de Constituição,
a cargo de uma comissão de juristas e que receberia várias emendas por parte de
Rui Barbosa. Entretanto, o bispado brasileiro não ficaria inerte politicamente como
ficou durante os movimentos pró-república. Depois da Proclamação da República,
especialmente depois da edição do Decreto nº 119 A, de 7 de janeiro de 1890,
tornou-se indispensável para a Igreja acompanhar a movimentação política que
visava à nova Constituição. Havia uma transitoriedade institucional marcada pela
intenção política do Governo Provisório do Marechal Deodoro, que demandaria a
consolidação de novas leis, ainda incipientes na forma de decretos, mas que
poderiam transpor-se ao texto definitivo da Constituição.
O projeto político de laicização do Estado estava apenas começando
quando se editou o Decreto 119 A,de 7 de janeiro de 1890, em seguida vieram
outros decretos que implicavam diretamente aos interesses da Igreja Católica: (1)
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 19
Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890, que tornou obrigatório o casamento
civil, desconsiderando a legalidade do casamento religioso; (2) Decreto nº 521,
de 26 de junho de 1890, determinou que o casamento civil fosse feito antes do
casamento religioso, e, em caso de descumprimento dessa norma seria aplicada
a pena de multa e/ou pena de prisão de seis meses para quem celebrasse o
casamento religioso antes do casamento civil; Decreto nº 789, de 27 de setembro
de 1890, que transferiu para a administração pública o controle e a administração
dos cemitérios que estava sob a responsabilidade da Igreja Católica e Decreto nº
1.036 A, de 14 de novembro de 1890, que suprimiu a cadeira de direito eclesiástico
dos cursos jurídicos de Recife e de São Paulo.
D. Macedo fez valer a sua liderança em defesa da Igreja Católica,
econseguiu de Rui Barbosa, que não se incluíssem na Carta Magna três medidas
altamente prejudiciais e arbitrárias: Confisco dos bens religiosos pelo Estado,
expulsão dos jesuítas do Brasil e proibição da fundação de novos conventos e
mosteiros religiosos.
O pensamento político de D. Macedo deu forma à reação conservadora da
Igreja nesses momentos de crise. Ele esteve presente nas primeiras manifestações
legislativas pela liberdade religiosa na defesa das ideias católicas no Império, esteve
presente nas discussões sobre os rumos dos direitos da Igreja em negociações que
antecederam os primeiros decretos republicanos, esteve presente nos embates
criados entre Igreja e Estado após a emissão de decretos contrários aos interesses
da Igreja, postulando firmemente pela mudança desses decretos nas manifestações
do Episcopado brasileiro por meio da Pastoral Coletiva e na Reclamação dos bispos
ao Marechal Deodoro face ao Projeto da Constituição.
A Constituição Republicana (1891) também suprimiu a referência a Deus
no seu preâmbulo, contudo um fato merece registro e reflexão. Naquele momento
de crise política, que abalava as instituições representativas do poder temporal e
do poder eclesiástico, o plano político dava demonstrações de que a ruptura entre
a política e a religião não seria algo absoluto ao ponto de toda a ordem política
desvincular-se do divino e do sagrado. As Constituições dos Estados de Minas
Gerais, Rio de Janeiro e Bahia, de 1891, mantiveram em seus preâmbulos a
referência a Deus.
Constituição do Estado de Minas Gerais (1891)
Preâmbulo: Em nome de Deus Todo-Poderoso, Nós, os representantes do Povo
Mineiro, no Congresso Constituinte do Estado, decretamos e promulgamos esta
Constituição, pela qual o Estado Federado de Minas Gerais organiza-se como parte
integrante da República dos Estados-Unidos do Brasil.

20 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Constituição do Estado do Rio de Janeiro (1891)
Preâmbulo: Em nome de Deus Onipotente, e por vontade do povo fluminense, Nós,
os representantes do Estado do Rio de Janeiro, decretamos e promulgamos a
seguinte Constituição
Constituição do Estado da Bahia (1891)
Preâmbulo: Em nome de Deus Onipotente, o Povo da Bahia, por seus representan-
tes reunidos em Assembleia Constituinte, estabelece, decreta e promulga a seguinte
Constituição.
Esse fato demonstra não só a força da instituição Igreja Católica como
também a introspecção dos valores cristãos nas mentes das pessoas que não
abriram mão das suas convicções em razão do projeto nacional de estado laico e
positivista.
Deve-se reconhecer que a ausência da referência a Deus na Constituição
Republicana de 1891 não é exatamente o fundamento da reação da Igreja, mas
parte de um contexto mais amplo que tem como fundamento a supressão de
vários direitos da Igreja no ordenamento jurídico republicano.
Entretanto, a falta de referência a Deus não deve ser relegada apenas e tão
somente ao plano das vontades individuais sem a devida representação no plano
coletivo.
A importância dessa referência também pode ser verificada nos trabalhos
que antecederam a Emenda Constitucional de 1926 à Constituição Republicana
de 1891. A Emenda Constitucional de 1926 não trouxe de volta o nome de Deus,
fato que iria ocorrer somente na Constituição de 1934, entretanto, agregou-se ao
texto constitucional um abrandamento da tendência ao laicismo, com o acréscimo
ao § 7º, do art. 72: “a representação diplomática do Brasil junto à Santa Sé não
implica a violação deste princípio”, ou seja, do princípio da independência do
Estado da Igreja. Contudo, não foi aprovada a proposta de emenda constitucional,
patrocinada por D. Sebastião Leme9, que associava a religiosidade à sociedade e
não ao Estado brasileiro, mas que na verdade visava à recuperação do poder da
Igreja com o “reconhecimento oficial da religião católica como a fé do povo”.
As orientações políticas de D. Leme, iniciadas em 1916, alimentaram a
participação política dos leigos em luta direta pelos destinos da Nação brasileira
face à religiosidade do seu povo. A luta da Igreja alcançou o campo político. A
Igreja, por meio da Liga Eleitoral Católica, liderada por leigos, participou do pro-
9
Cardeal brasileiro da Santa Sé, Sebastião Leme da Silveira Cintra, nasceu em Espírito Santo do Pinhal,
SP, em 20 de janeiro de 1882. Faleceu no Rio de Janeiro, então Capital Federal do Brasil, no dia 17 de
outubro de 1942, aos 60 anos de idade.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 21


cesso de escolha dos membros da Assembleia Constituinte de 1933, elegendo
vários deputados constituintes. Motivados pela doutrina social da Igreja e pela
tradição, esses deputados constituintes se tornam responsáveis pela volta da reli-
giosidade perdida à legislação brasileira: “A reação que ora se faz, nesta Constitu-
inte, no bom sentido brasileiro, é menos uma reivindicação católica da quase
totalidade da Nação do que uma necessidade vital que diz com a sua própria
existência material e moral”10. Xavier de Oliveira asseverava ainda que:
O sentimento católico do Povo Brasileiro, já lhe é quase uma característica individual,
tão arraigado lhe está, por seu próprio temperamento, como ainda pela tradição
vigorosa, que lhe veio da Mãe-Pátria, da Colônia, do Império, que a República não
destruiu, mas, ao revés disto, acrisolou no sacrifício de mais de quarenta anos de
laicismo impenitente, que quase destruiu por completo o seu organismo11.
O nome de Deus volta a ser mencionado no preâmbulo da Constituição
de 1934 , e está assim redigido:
12

Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus,


reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrá-
tico, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e
econômico, decretamos e promulgamos a seguinte [...].
Vale destacar, que, com a exceção da Constituição de 1937 – ditadura de
Getúlio Vargas – e da primeira Constituição republicana (1891), as demais
Constituições brasileiras fizeram constar nos seus preâmbulos o nome de Deus.
As continuidades e descontinuidades da referência a Deus nas
Constituições brasileiras, seja no plano federal ou no plano estadual, guarda relação
com fatos de naturezas distintas, caso se queira verificar as motivações que fizeram
por destoar as Constituições Estaduais de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia
em relação à Constituição Republicana (1891), e entre a Constituição do Estado
do Acre e a Constituição Federal de 1988.

10
Discurso proferido em 31 de maio de 1934, pelo deputado Xavier de Oliveira justificando o seu voto pelas
emendas católicas, que ele chamava, antes, mais apropriadamente a seu ver, emendas essencialmente
brasileiras, e que assim o fez para traduzir o sentimento cristão do Brasil e, de maneira muito especial, do
Estado que tinha, segundo as suas palavras, a honra de representar naquela Assembléia – o Ceará.
ANNAES DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE (1933-1934). vol. XXII. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1937. p. 403-404. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/
dc_20a.asp?selCodColecaoCsv=C&Datain=24/5/1934>Acessado em: 09.jun.2010.
11
Idem, p. 403-404.
12
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1934). Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao34.htm>Acessado em: 26.fev.2010.

22 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Por certo, em 1891, a hegemonia da Igreja Católica nas questões de fé,
foi determinante para a tomada de posição dos deputados constituintes dos
Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia. O vetor que ligava a fé à razão,
e a lei divina à lei humana, apontava para a razão e para a lei humana, e tinha
como ponto de partida a fé e a lei divina. E, ao contrário, no caso da Constituição
do Acre em relação à Constituição Federal de 1988, o vetor aponta para a fé e
para lei divina, e tem como ponto de partida a razão e a lei humana. Isto se deve à
concepção de que a lei, no estado de direito, é soberana, dogma da ação,porque
tem como fundamento a soberania popular. Nesse sentido, há uma espécie de
crença de que a lei pode dar conta de tudo, a partir da deliberação humana.

3 A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DIANTE DA QUESTÃO


DO ACRE

A decisão da questão sobre a referência, ou não, a Deus na Constituição


do Estado do Acre pelo Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI 2.076-5 Acre), proposta pelo Partido Social Liberal (PSL)
do Acre, foi pela improcedência do pedido que pretendia a reprodução obrigatória
do preâmbulo da Constituição Federal na Constituição do Estado-membro.
A decisão foi proferida a partir dos votos dos ministros Carlos Velloso,
Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio Melo. No primeiro voto, o ministro-relator
Carlos Velloso problematiza com a seguinte questão: E o preâmbulo da
Constituição, constituiria ele norma central da Constituição, de reprodução
obrigatória na Constituição do Estado-membro? Respondendo a esta questão, o
ministro-relator, o Ministro Carlos Velloso, manifestou dizendo que não se poderia
afirmar que o preâmbulo da Constituição do Acre estava dispondo de forma
contrária aos princípios consagrados na Constituição Federal. Ao contrário,
enfatizou, a título de exemplo, a importância do princípio democrático e do princípio
da soberania popular, que não invocam a proteção de Deus. Essa invocação,
todavia, disse ele, posta no preâmbulo da Constituição Federal, refletia,
simplesmente, um sentido deísta e religioso, que não se encontrava inscrito na
Constituição, mesmo porque o Estado brasileiro era laico, consagrando a
Constituição a liberdade de consciência e de crença (C. F. art. 5º). Por isso,
continua Velloso, que por certo ninguém seria privado de direitos por motivo de
crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (C. F. art. 5º, VIII). O ministro-
relator lembrou que a Constituição era de todos, não distinguindo entre deístas,
agnósticos ou ateus. A referência ou a invocação à proteção de Deus, segundo
ele, não teria maior significação, tanto que Constituições de Estados cuja
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 23
população pratica, em sua maioria, o teísmo, não contém essa referência. Velloso
mencionou a título de exemplo, as Constituições dos Estados Unidos da América,
da França, da Itália, de Portugal e da Espanha.
O ministro Sepúlveda Pertence proferiu o seu voto dizendo que, tomado em
seu conjunto, a locução “sob a proteção de Deus” não é uma norma jurídica, até
porque não se teria a pretensão de criar obrigação para a autoridade invocada. Segundo
ele, a locução seria uma afirmação de fato jactanciosa e pretensiosa, talvez – de que
a divindade estivesse preocupada com a Constituição do Brasil. De tal modo, não
sendo norma jurídica, nem princípio constitucional, independentemente de onde esteja,
não seria ela de reprodução obrigatória pelos Estados-membros.
O ministro Marco Aurélio Melo deixou assentado que o preâmbulo, o intróito
não integrava o corpo da própria Constituição. Portanto, concluiu, não poderia
repercutir a ponto de se adentrar o campo da simetria, exigindo-se que houvesse
adoção uniforme em todas as unidades da Federação.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal deixou registrado:
Ementa: ADI 2.076-5 Acre. Constitucional. Constituição: Preâmbulo. Normas Cen-
trais. Constituição do Acre.
I – Normas Centrais da Constituição Federal: essas normas são de reprodução
obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou
não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370 – MT e 383-SP (RTJ 147-
404).
II – Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção
de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual,
não tendo força normativa.
Na verdade, vários analistas da Constituição defendem esse postulado.
Nesse sentido, o Pe. José Scampini entende que
o preâmbulo é uma expressão solene de propósitos e desejos dos constituintes e
não uma declaração de normas nem sequer de princípios. Quando se trata de um
preâmbulo amplo, solene e majestoso, consoante à doutrina de muitos autores, ele é
um excelente manancial de interpretação, porque vale como a síntese ou resumo
autorizado e antecipado dos fins essenciais para que a Constituição foi criada
(SCAMPINI, 1978, p. 138).
O preâmbulo da Constituição Federal não constitui norma central da
Constituição, não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição do
Estado-membro, não tendo força normativa. O preâmbulo é uma exortação aos
princípios constitucionais inseridos na Carta, não se situa no âmbito do Direito,

24 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte.
A deliberação dos deputados constituintes do Acre que decidiram por não
fazer constar a referência a Deus é indiscutivelmente um problema a ser ainda
identificado, que foge aos propósitos deste trabalho de pesquisa. Nesse sentido,
pode-se problematizar sobre quais motivos levaram os deputados estaduais do
Acre a votarem contra a proposta de se fazer constar a referência a Deus na
Constituição acreana, ou seja, questionar se foram aspectos contingenciais
envolvendo a composição da Assembléia Constituinte, eventualmente composta
de deputados alheios aos aspectos das religiões; se os valores que envolveram a
Revolução Acreana e seus heróis têm um significado que desconhecemos; ou se
fizeram uma interpretação no sentido de que as coisas divinas não devem mesmo
se misturar com as coisas humanas. A importância de uma pesquisa dessa natureza
estaria no fato de se tentar compreender não só os motivos que levaram a não fazer
constar a referência a Deus no preâmbulo da Constituição acreana, como também
entender o valor que o povo acreano atribui à Revolução e aos seus heróis.

Considerações finais
O propósito do presente trabalho foi demonstrar simetrias e assimetrias
que envolvem a referência a Deus nos preâmbulos das Constituições federais
brasileiras, e a reprodução, ou não, da expressão ou locução “sob a proteção de
Deus” nas Constituições dos Estados federados. O ponto de partida foi o problema
em torno da atual Constituição do Estado do Acre, que não reproduziu a referência
a Deus inscrita no preâmbulo da Constituição Federal.
Esse fato tem simetria com outro fato ocorrido no Brasil, no final do século
XIX, e que se estendeu por mais de três décadas do século XX, onde a Igreja
Católica exerceu todo o seu poder de reação contra a revogação de direitos pelo
Governo Provisório do Marechal Deodoro da Fonseca. No preâmbulo da
Constituição de 1891 não constou a referência a Deus, entretanto,
contraditoriamente à ideologia do estado liberal, laico e positivista, as Constituições
dos Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia de 1891 fizeram constar nos
preâmbulos de suas Cartas a referência a Deus.
A luta da Igreja, segundo a visão do clero católico, deve-se não só à
revogação de direitos concedidos pela legislação do Império, como também pela
desconsideração de sua importância na formação histórica da Nação brasileira,
desde o início da Colônia.
O presente estudo procurou compreender e demonstrar as razões da
Igreja Católica contra a supressão dos seus direitos, e a importância de D. Macedo

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 25


Costa durante os momentos de maior tensão face às mudanças institucionais
que levaram à separação entre a Igreja e o Estado brasileiro. E também, procurou
entender a relação entre dois fenômenos distantes no tempo, mas que gravitam
em torno de fatos homólogos: a retirada da referência a Deus na Constituição de
1891 e a retirada da referência a Deus na Constituição do Acre na história recente
do Brasil.
Se no final dos séculos XIX e início do XX a luta pela volta da inclusão do
nome de Deus na Constituição ligava-se aos princípios católicos e luta política
por ter Deus como fundamentos das leis, deixa-se transparecer que agora a opção
pela inclusão do nome de Deus nas Constituições estaria mais ligada às
convicções pessoais do que propriamente a defesa de uma instituição. A menção
a Deus é um princípio unificador da fé religiosa em consonância com a ideia de
liberdade religiosa, entretanto, por respeito mesmo à liberdade de culto e de
crença, não se liga especificamente a nenhuma delas. A referência a Deus seria
um princípio ordenador intocável por respeito aos costumes e à tradição, além do
desconhecimento e do mistério que envolve a divindade.
O tempo se encarregou de ligar esse princípio ordenador de muitas
consciências ao patamar superior, acima das doutrinas das diferentes
denominações religiosas, e que engloba também a fé daqueles que se declaram
sem religião, mas que acreditam em Deus. Afinal, diz a pesquisa que apenas 1%
da população brasileira não acredita em Deus, embora uma parcela considerável
se declare sem religião. O estado é laico, mas o povo tem fé e acredita na existência
de Deus. Se não têm uma religião, ainda assim mantêm nas profundezas da
consciência uma tênue ligação com Deus.
A Constituição Federal brasileira de 1988 inscreveu no seu preâmbulo a
referência a Deus, e a sua promulgação no dia 05 de outubro de 1988, por meio
do discurso e das palavras históricas de Ulisses Guimarães (Discurso, Internet,
vídeo), mais uma vez expressa o desejo de ‘re-ligação’, contudo, desligado de
uma sistemática de crenças:”Falando com emoção, e falando ao Brasil, declaro
promulgada. O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça
social do Brasil. Que Deus nos ajude que isto se cumpra”.
As contradições do final do século XIX e início do XX em seus aspectos
políticos envolvendo a Igreja Católica e o Estado brasileiro continua reproduzindo
seus ecos na história recente da Nação. A história reproduz fenômenos
aparentemente de naturezas distintas, mas que, na verdade estão ligados por um
ponto comum, a fé dos indivíduos que juntos fazem a história coletiva das religiões
e das religiosidades, algo sempre vivo e sempre atual.

26 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


BORGES, Donaldo de Assis. The reference to God in the Brazilian constitutions.
DIALOGUS. Ribeirão Preto. v.9, n.1 e n.2, 2013, pp.11-27.
ABSTRACT: This paper aims at the discussing and understanding of symmetries
and asymmetries that involve reference to God in the preambles of Brazilian federal
Constitutions, and playback, or notof the expression or phrase “under God’s
protection” in the Constitutions of the United federated. The starting point revolves
around the current Constitution of the State of Acre, which did not reproduce the
reference to God, which is inscribed in the Preamble of the Constitution of the
Federative Republic of Brazil, in the year 1988. The phenomenon of rejection of
God in the Constitution of the State Acre is not an isolated phenomenon in the
history of Brazil. The Brazilian history experienced something similar, but with larger
consequences, which placed on opposite sides of the Catholic Church and the
Brazilian government, in the late nineteenth and early twentieth century (1889-
1934). The establishment of the Republic led to the institutional separation of
church and state, and between the institutional changes of the new Brazilian secular
state, was the removal of the reference to God’s new Republican politics Charter of
1891 and the repeal of various rights of the Church which had been granted by the
legislation of the Brazilian Empire (1824-1889).
KEYWORDS: Church History; Brazilian Federal Constitution; religion; God; Church.
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28 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


IGREJA E POLÍTICA NA ERA VARGAS (1930-1940)

Marco Antonio BALDIN*

RESUMO: Em 1930, Sebastião Leme é indicado para suceder o cardeal Arcoverde.


Liderança nata e espírito empreendedor, Dom Leme viria a ser uma das grandes
figuras do cenário político nacional. Costurara acordos de bastidores com o recém
criado governo provisório sob a “liderança” de Vargas. Reaproximara lideranças
políticas católicas de vários segmentos sociais, desde funcionários de alto escalão
até membros de alta patente das Forças Armadas. Articulador voraz, Dom Leme
contava com apoio explícito da Santa Sé com o intuito de reestruturar as bases da
Igreja para fazer penetrar literalmente nas entranhas do Brasil a presença católica:
nas escolas confessionais e públicas, nas repartições públicas, nos clubes
militares e civis, nas universidades, nos meios operários, no empresariado.
Revelam-se, aqui, as pretensões e conquistas de uma geopolítica católica para
engendrar uma nova visão de sociedade cristã sob a liderança do clero e da
hierarquia multiplicada pelo respaldo de um governo que se considerava sem
limites pelo afã ao poder.

PALAVRAS-CHAVE: Igreja católica, política, Estado, Era Vargas.

A Igreja Católica é uma instituição difícil de definir. Talvez essa dificuldade


esteja na diferença entre a forma como ela se autodefine e as formas como é vista
e a maneira como se adapta às sociedades mundo afora. A Igreja atribui a si
prerrogativas especiais: a única e exclusiva representante de Deus na Terra, a
legítima garantidora da ordem hierárquica mundial, através da figura emblemática
do papa, a única instituição capaz de orientar governos civis, hábitos,
comportamentos, possuidora de uma autoridade máxima advinda das tradições
das escrituras antigas, depositária de uma resoluta e infalível teologia.
Algo que não deixa de ser curioso e, dentro do contexto dos anos de 1930
no Brasil, muito significativo, é a definição que o “Dicionário Histórico do
Cristianismo”, de César Vidal Manzanares, (2005, p.89) oferece sobre o conceito
*
Doutorando em História pela Faculdade de Ciências humanas e Sociais UNESP – Franca/SP; bolsista
FAPESP; Mestre em História pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais UNESP- Franca/SP
(2006); graduação em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Lorena (1987); graduação em História pelo
Centro Universitário Barão de Mauá de Ribeirão Preto (1989); graduação em Pedagogia pelo Centro
Universitário Barão de Mauá de Ribeirão Preto (1991).

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 29


de Igreja Católica Romana. A curiosidade está no fato do autor em questão não
separar o termo “Igreja” do termo correlato “catolicismo romano”. Ele emprega os
dois conceitos como sinônimos. Além disso, sua definição do que seria catolicismo
romano resvala no patamar histórico do conceito de “ultramontanismo”.
Literalmente, diz: “- Termo com que se costuma denominar a fé e a prática
daqueles que estão em comunhão com o papa...”(MANZANARES 2005, p. 89).
Mais abaixo, acrescenta: “doutrinariamente, o catolicismo romano
caracteriza-se muito especificamente por uma adesão à Tradição como fonte da
revelação e ao papel docente da Igreja hierárquica” (MANZANARES 2005, p. 89).
Logo adiante: “Estruturalmente, o catolicismo Romano apresenta-se como
uma hierarquia episcopal cuja cabeça é o papa, que ensina e governa o conjunto
do povo católico” (MANZANARES 2005, p. 89).
Essa definição se apresenta de forma tal que exclui a essência do
catolicismo romano, que foi, principalmente nos fervorosos anos de 1930 no Brasil,
um instrumento de luta contra a secularização dos costumes sociais, contra a
laicização do espaço civil, contra o positivismo estatal republicano, contra o
racionalismo fremente. Enfim, o catolicismo no Brasil dos anos 30 foi um
verdadeiro “clarim de guerra” (SANTO ROSÁRIO, 1962, p. 61) contra tudo o que
se revelava oposto às pretensões da Igreja, que se manifestavam no afã de voltar
a ser o centro aglutinador da família, da comunidade, da sociedade, do Estado. É
clara a posição que o autor assume na definição referida. É a fala de quem
(referimo-nos à Igreja) ocupa um lugar institucional, ou seja, a fala de quem está
dentro da instituição. Somado a isso, é uma visão de quem quer necessariamente
se fazer respeitar, como se estivesse à espreita, com arma em punhos, à espera
dos questionamentos. É também uma posição estanque e ortodoxa, fechada
sobre si mesma, pressupondo um combate. De vez que preserva a “Igreja” dos
dilemas humanos e a coloca num patamar a-histórico, santo. Por outro lado, o
catolicismo romano se reveste de uma roupagem mundana, com a qual irá
enfrentar os dilemas políticos dos homens.
É justamente nesse ponto que pretendemos concentrar nossas reflexões.
De tal sorte que, para conseguir atingir seus objetivos, a Igreja se valeu de
instrumentos de luta que extrapolavam sua própria definição, ou seja, procurou se
inserir em todos os cantos possíveis da realidade social e torná-los definitivamente
cristãos ou, mais precisamente, católicos. Em outras palavras, a Igreja quis
catolicizar todos os espaços que fossem possíveis de imprimir uma marca católica:
educar a criança para ser um cristão-cidadão; educar o jovem para ser militante
de uma causa católica; educar os adultos para uma família cristã; educar o militar
para honrar a pátria em nome da santa madre Igreja; educar o empresário para a
30 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
estabilidade de uma economia cristã do bem comum; educar o operário para ser
um trabalhador da ordem política cristã. O centro das atenções da Igreja passa a
ser as instâncias materiais da realidade nacional: o quartel, a fábrica, o lar, o
clube, o banco, a escola, a universidade, a paróquia organizada para mobilizar
politicamente os membros da “Ação Católica” e, para não dizer pouco , um projeto
intelectual que revestisse de catolicidade a nação brasileira (CASALI, 1995).
Portanto, definir Igreja pressupõe-se entendê-la não apenas como uma
instituição monolítica voltada para interesses exclusivamente espirituais, mas
também e essencialmente uma organização historicamente voltada para reordenar
e reagrupar “sua política interna em função de seu projeto político e pastoral
externo” (MANOEL, 1998, p. 8-9). Decorre daí a pergunta: como a Igreja, sendo
uma instituição cultivadora da vida espiritual, pôde pretender se intrometer em
assuntos seculares, materiais e, o que vai mais a fundo no problema, o que lhe
dava legitimidade para tal pretensão?
Talvez duas respostas sejam necessárias, pois ambas se complementam.
Aqui, em nossa reflexão, entra em cena o personagem central do enredo, o cardeal
Sebastião Leme. Uma raposa simplesmente brilhante, Dom Leme seria o
responsável por, literalmente, fazer a Igreja mergulhar de cabeça nas causas
políticas, valendo-se de um jeito sutil, agindo nos subterrâneos do poder. O que
estaria fazendo o representante de uma instituição espiritual numa reunião da alta
cúpula do governo que o próprio cardeal havia acabado de ajudar a colocar no
poder? ( LEME,1930 ). Esse é o primeiro ponto às indagações acima. O segundo
ponto seria a imagem que a Igreja fazia de si mesma, ou seja, ela se reportava
como sendo a única e exclusiva portadora e guardiã da tradição apostólica mais
recôndita, concedida diretamente pelas mãos divinas. Ela se considerava a única
e exclusiva representante de Deus na Terra. Muitas vezes, para justificar esse
privilégio, a Igreja invocava o distante direito natural. Voltaremos a ele um pouco
mais à frente.
A Igreja, como instituição, está diretamente implicada na realidade
histórica do mundo. Nessa perspectiva, o cardeal Leme procurou construir uma
ordem de ação social no campo político, mas, perspicaz como era, agia se valendo
dos arcabouços agudamente religiosos que, naturalmente, dispunha, sem contar
com as inúmeras organizações remodeladas por ele quando assumiu o cargo de
arcebispo-auxiliar ao lado do cardeal Arcoverde, em 1921. A principal delas, uma
espécie de órgão central, era a Confederação Católica, responsável por reunir
todas as entidades até então existentes, e dinamizadas pelo próprio Dom Leme
em órgãos promotores de mobilizações católicas, porém com traços nítidos de
objetivos cirurgicamente precisos nas reivindicações políticas: o Centro Dom Vital,
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 31
Revista A Ordem, Movimento Nacional Missionário, o Congresso Eucarístico
Nacional, Missões nos bairros pobres, Instituto Católico de Estudos Superiores, a
Universidade Católica.
A transparência, a clareza, a convicção com que se agia em benefício da
instituição eclesiástica era tão grande que sobressaía um descolamento conceitual
entre os termos cristianismo e catolicismo. No contexto dos anos de 1930, o
conceito de catolicismo denotava uma verdadeira invasão belicosa dos católicos
militantes sobre todos os espaços possíveis que estivessem ao alcance de serem
conquistados. Há uma deliberada apropriação do conceito militar para usufruto
do catolicismo nas atividades da Igreja. O conceito de cristianismo tinha coloração
razoável de religião, de conjunto doutrinal: a fé em Jesus Cristo, o dogma da
concepção virginal, a história da salvação da humanidade etc. Já o conceito de
catolicismo era sinônimo de beligerância (AZZI, 2008, p. 109), isto é, ser-católico
era formar e organizar grupos sociais dos mais variados matizes, mas sempre sob
a liderança das elites com orientação da hierarquia episcopal. O ser-católico
trazia a necessidade urgente de se engajar pela causa religiosa, numa luta política
contra as forças da desordem. O “ser-católico” implicava o uso de uma teologia
política na expectativa de se universalizar a religião católica na sociedade.
Professar a fé católica era obrigatoriamente participar de forma ativa num combate
contra a laicização, a modernidade, a legislação anticlerical, a política do Estado,
contra as forças que desejavam submeter e “relegar a religião ao domínio das
crenças privadas” (LEFORT, 1991, p. 250). A Igreja de Dom Leme foi a Igreja do
catolicismo romano que reuniu as multidões para enquadrar o Estado e, se
possível, cristianizá-lo.
Nesse aspecto, Vargas possuía o hábito de criar atores políticos
(CAMARGO,1999, p.23). A relação dele com o Cardeal Leme ainda é pouco
estudada. No entanto, algumas pistas revelam uma proximidade e um respeito
mútuo, embora respeito também fizesse parte das artimanhas e manobras
políticas. Muito dinâmico, Dom Leme ascendera no conceito nacional quando se
ligou ao ex-Presidente da República, Epitácio Pessoa. Tanto que a reaproximação
da Igreja em relação ao Estado se deu justamente a partir da sólida amizade entre
o arcebispo-auxiliar do Rio de Janeiro e o Presidente (SANTO ROSÁRIO, 1962).
A política pastoral de ajuda aos desempregados, o círculo amplo de relações de
Dom Leme com grupos da elite brasileira corroboraram no processo de
popularização de sua imagem. Tal imagem se ampliou no governo do Presidente
Artur Bernardes, visto que este teria até convidado Dom Leme a se candidatar ao
Senado Federal (SANTO ROSÁRIO, 1962, p. 61). A recusa foi terminante. Mas,
elemento de especulações, esse fato nos indica uma necessidade premente do
32 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
Presidente da República de buscar apoio onde quer que fosse. Não era para
menos, uma vez que as turbulências de seu mandato comprometeram até mesmo
a política do café com leite. Portanto, o apoio da Igreja, da Santa Sé, supostamente,
acalmaria os ânimos do operariado, apaziguaria os militares do tenentismo e,
talvez, reequilibraria o xadrez da oligarquia recalcitrante (BOMENY, 1999).
Dentro de uma ótica política, Vargas se valeria dos atributos religiosos
para forjar, sobre sua própria imagem, um personagem divinizado sob a luz e
reflexo do Deus católico. O epíteto de “pai dos pobres” (CAPELATO, 2009, p. 63)
remonta à figura do Deus benevolente que, num gesto de pura misericórdia, vem
do alto salvar o indefeso, o coitado, o injustiçado trabalhador. Além da benevolência,
esse “pai” tem o caráter de autoridade patriarcal que concede a graça para seus
filhos, desde que esses cumpram a obediência esperada como compensação
pelo amor concedido pelo pai. Vargas construiria um mito de sua própria pessoa
que extrapolava o papel histórico do Presidente juridicamente presente no poder.
Ele vem para salvar o povo, considerado uma criança indefesa contra as tiranias.
Com um grau de desafio, Dom Leme, na inauguração da estátua do
Cristo Redentor, em 1931, iria dizer: “– Ou o Estado reconhece o Deus do povo, ou
o povo não reconhecerá o Estado” (AZZI, 1978, p. 64). É admiravelmente sublime
essa sentença de provocação e afronta ao chefe do governo que, há pouco, ao
recepcionar a imagem de Nossa Senhora Aparecida, ficara de joelhos perante a
padroeira católica do Brasil. Dom Leme quis ousadamente enquadrar o governo
à causa católica. De chofre, Dom Leme apresenta o mesmo Deus católico, usado
por Vargas para se sobrepujar ao papel de “onipotência nacional”, mas agora um
Deus com o ranço totalitário do grande-ser que governa o mundo e sua história,
representado por quem fala, o próprio cardeal.
Para demarcar de modo mais enfático o uso do teológico para fins políticos,
é necessário trazer de volta o reforço justificativo do direito natural, razão sine qua
non da Igreja católica agir na realidade histórica como se todas as forças do
mundo dependessem de uma decisão do trono de São Pedro (papado). Para o
cristianismo do século XVII, a “lei natural” fora criada pela vontade divina
(TOUCHARD, 1970, p. 104). Oriunda da escolástica, a lei natural alicerçou e deu
fundamento ao direito canônico, segundo o qual todos os poderes da Terra
deveriam se submeter a Deus como única possibilidade de se manter a ordem
reinante desde a tradição antiga do magistério eclesiástico. O código do direito
canônico era (e ainda é) o cânon intermediário entre a lei divina e a humana, essa
última inspirada pela primeira, de acordo com o ponto de vista da Igreja. Mas há
um elemento diferenciador que regulava a ordem universal das coisas: a
imutabilidade dessa lei.
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 33
Talvez, o pensador que mais se inspirou no direito natural tenha sido
Joseph De Maistre. Num de seus mais polêmicos livros, Considerações sobre a
França (2010), defendia a ideia de que a Revolução Francesa fora a segunda
queda do Homem desde a primeira, a queda de Adão e Eva. Para ele, a Revolução
Francesa teria dado ao Homem a oportunidade de se redimir e de se reabilitar
diante da criação. Sem exageros interpretativos, o próprio Deus, segundo De
Maistre, havia querido e desejado a Revolução Francesa, pois, a partir dela, haveria
a possibilidade de uma reconciliação com a humanidade.
Possuidor de um caráter ultraconservador, De Maistre defendia a ideia
de uma teocracia universal capaz de varrer a sujeira acumulada pela humanidade
e a única capaz de aplicar a limpeza ético-religiosa e reerguer o homem para
uma nova vida. O pensador francês se opunha veementemente à filosofia do
Iluminismo. A filosofia das luzes será a grande responsável por colocar os alicerces
do mundo em desgraça, uma vez que ela havia questionado e açambarcado o
princípio eterno da autoridade da Igreja e do Rei, emancipado o homem de suas
verdadeiras raízes da tradição eclesiástica. Por conta disso, De Maistre se revelava
também, além de outros atributos, um inimigo mortal do pensamento científico
(até do determinismo natural), da ideia de progresso como um aperfeiçoamento
constante no devir histórico, além de ser radicalmente contra o mais refinado
racionalismo. Enfim, tudo o que excluísse a religião católica deveria ser extirpado.
Para Isaiah Berlin (1991) De Maistre seria a grande ponte e fonte de
inspiração do pensamento totalitário a desaguar no século XX. Para esse autor,
De Maistre representou o modelo do suprassumo irracional e reacionário do
mundo. Nada que o homem fizesse poderia suplantar a razão divina. Só a razão
divina poderia dar ao homem conhecimento. E a autoridade divina adviria de um
mistério que racionalmente se torna impenetrável. O homem deveria obedecer e
servir incondicionalmente ao Estado, da mesma maneira que serve a Deus e à
sua religião. Só o que está coberto pelo mistério consegue sobreviver. Fez apologia
à violência em si como sentido de todas as coisas, e à escravidão como subterfúgio
para barrar a força autodestrutiva do homem. A salvação do homem estava na sua
submissão, obediência às leis universais originárias do mistério primordial que
governa o mundo.
Assim, o pensamento de De Maistre reflete uma teologia que, cada vez
mais, modelava e aperfeiçoava a prática política. Mas aqui, a política servia a
teologia que, segundo o pensamento de Trento, era o centro irradiador do
conhecimento e da salvação do homem.
O que a história do pecado original ensinaria, à luz do ensinamento
eclesiástico, é que ao homem caberia uma postura de respeito e submissão aos
34 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
desígnios de Deus, seu criador. Quando Adão e Eva se reconhecem nus é porque
sua natureza estava de volta ao seu lugar de origem, desabsolutizado e reposto à
sua condição de criatura. Portanto, o paraíso só se torna um bem democrático,
pacificado, ordeiro, fraterno, quando o homem desiste do conflito e se amolda à
história da salvação, seguindo os pressupostos teológicos, mostrando a si que ele
não tem o poder sobre a vida, mas que, principalmente isso, foi-lhe dado
gratuitamente por Deus (STORNIOLO, 1979,p. 16).
A sentença proferida por Dom Leme (“Ou o Estado reconhece o Deus do
povo, ou o povo não reconhecerá o Estado”) imprime à Igreja uma postura de
transfiguração e transcendência em relação ao Estado, à história, ao homem,
cidadão comum. Essa condição dava o direito à Igreja de reconduzir o homem da
temporalidade à eternidade.
A Igreja de Dom Leme pensava o conceito de política não como algo
particular e estrito aos atos humanos, mas vinculado umbilicalmente, podemos
até dizer, ontologicamente à vontade divina (ROMANO,1997). De tal sorte que
seria “natural” que ela própria atribuísse a si o papel de intermediária direta nos
assuntos seculares, principalmente quando se tratava de definir quem comandava
a história. A mesma história que começara com a primeira queda do pecado
original, levando o homem e a mulher a viverem na labuta, no trabalho, na
temporalidade em busca de uma nova salvação, sob mediação direta da infalível
presença da representante única de Deus, a santa madre Igreja católica.
Essa concepção de unidade, embora fosse da alçada eclesiástica,
tangenciava sutilmente a esfera do poder político. Getúlio e Dom Leme se valeram
de artimanhas político-teológicas para pavimentarem suas imagens pessoais e
darem a elas um matiz conciliador, de paz e harmonia entre os homens. Vargas,
em discurso de 1938, procurou explorar a ideia de um país unido pela raça, pela
língua, pelo pensamento. Para o Presidente da República, a unidade do país
seria o “ideal supremo” (CAPELATO, 2009, p. 147). Essa última expressão infundia
a invocação de forças sobrenaturais as quais, sob sua batuta republicana, se
disporiam na direção dos destinos eminentemente nacionais. Coincidência ou
não, Dom Leme, ao ser consagrado cardeal, escolhera o lema da unidade, reflexo
das desavenças dentro do clero, que andava dividido entre padres liberais e
ultramontanos, entre padres dissolutos e raros “santos”, refletia também a divisão
de um país em frangalhos, contorcido pela corrupção e pelas constantes revoltas
operárias, militares e oligárquicas. O lema cardinalício de Dom Leme espelhava
um desejo místico: “um só coração e uma só alma”. Manifestou também um ato
político vivaz de intervenção na sociedade, vista como o corpo de Cristo. Daí a
expressão de Dom Leme comentada por seu grande amigo Alceu amoroso Lima:
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 35
- “Quando a política toca o altar, temos então de fazer política, mas só então.”
Reforçava outra desconcertante e emblemática maneirice do jeitinho brasileiro:
Com bons modos, tudo se consegue no Brasil. As campanhas são inúteis. Os ho-
mens, mesmo os mais aparentemente maus, são bons entre nós. A questão é saber
levá-los. Não adianta levantar barreiras. O que adianta é vencer prevenções. E ir
diretamente às almas. Falar aos corações (LIMA, 1943, p. 166-167).
Ora, corriam os primeiros 30 anos do século XX. O mundo havia mudado
radicalmente. Os avanços científicos haviam dado um salto irreconciliável com o
passado. A imprensa se modernizara, a industrialização andava a passos largos.
Portanto, a harmonia da sociedade tão alardeada pelos poderes estabelecidos,
não fazia mais sentido. Nessa perspectiva, havia uma espécie de exclusão dos
assuntos religiosos de qualquer pauta de discussão administrativa e política. Não
fora por menos que os católicos fizeram muita pressão sobre o Estado, mormente
quando o governo Vargas mostrou sua face nos fatos depois de 1932.
A evidente apropriação de papéis cristãos põe em destaque um afinado
plano de cristianização da propaganda política e, por outro lado, não sendo menos
verdade, a politização da religião cristã, uma intrincada relação dialética
patentemente incorporada na mais que atualizada política pastoral da Igreja de
Dom Leme. No entanto, é de pronto esclarecedor que a Igreja e o Estado, no
Brasil, manipulavam sobejamente espaços simbólicos, políticas públicas,
legislações etc., com vistas a atingir determinados fins. Os fins de Vargas eram
politizar o espaço público e coroá-lo de sua presença como salvador da pátria; os
fins de Dom Leme eram subordinar o Estado à Igreja, tornando-o católico.
Essa condição está explícita no significado que teve a Rerum Novarum
na época de sua publicação e o uso que o governo e a Igreja fizeram dele no
Brasil, principalmente no período do Estado Novo. É sempre bom lembrar que o
objetivo da Igreja tanto no Brasil quanto no mundo ocidental era colocar-se como
centro irradiador do mundo moderno, uma volta à nobre posição de determinadora
do poder. A encíclica se destinava a analisar os problemas dos operários no mundo.
Ela reconhecia que havia um problema, mas, ao invés de apontar soluções em
beneficio dos próprios operários, (havia reconhecido que os operários viviam em
grande miséria) acabara ficando do lado da ordem estabelecida; reconhecera
que o modo capitalista de produção era inócuo, mas dirigira o dedo em riste para
o socialismo, considerado o inimigo a combater, justamente a doutrina que
supostamente trouxera mais vantagens às figuras operárias para que elas
pudessem suplantar o estado de miséria em que viviam. Defendia a imutabilidade
da propriedade particular, dera conselhos para que todos usufruíssem dela, até

36 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


os operários (apontados como miseráveis anteriormente). Enfim os efeitos da Rerum
Novarum marcaram uma tendência de incorporar os operários à sociedade. Ao
mesmo tempo, garantiram ao Estado (que se declarasse católico) o controle social,
via Igreja, do operariado europeu e latino. Evidencia-se a junção do catolicismo
social com o positivismo jurídico. Haveria protestos, mas nunca a possibilidade de
quebra ou ruptura da ordem estabelecida. Segundo Alfredo Bosi, Leão XIII arrematava
a contradição das contradições: “A sorte da classe operária será resolvida [...] pela
razão ou sem ela...” (BOSI, Folha de São Paulo, 1991, p. 6-2).
A Igreja dos ultramontanos, dos sequazes, dos colaboradores do destino
posto e preestabelecido se autodefinia em termos de poderes e direitos. É por conta
disso que a Igreja da hierarquia se autocompreendia como instituição juridicamente
e politicamente “católica”. Seguindo Hegel (ROMANO, 1997), a totalidade se impõe
sobre o particular. O apelo à autoridade naturalmente presente na Igreja como
protagonista da história se transferia para o Estado em forma de dádiva, de uma
concessão aceita, obrigatoriamente, pelo Estado para representar o todo. Assim, o
catolicismo seria o cimento unificador entre Igreja e Estado. Mais do que isso, o
catolicismo justificaria o espírito conciliador, consensual, os acertos de bastidores,
os pactos “pelo alto”, a democracia racial, o liberalismo clientelístico, a modernização
conservadora, todos atributos que caracterizam nossa cultura política e reforçam o
pensamento de permissividade brasileira (WOODWARD, 1992).
O Estado brasileiro absorvia, principalmente no Estado Novo Varguista, o
regime simbólico da política teocrática, isto é, sua funcionalidade passava a
depender da atitude de obediência e autoridade, mesmo que tal adesão se fizesse
a reboque do que desejava a Igreja. É o que se encontra subjacente à “ideologia
da outorga” (CAPELATO, 2009, p. 183). A política trabalhista de Vargas denotava
uma relação simbiótica entre o seu suposto criador (Vargas) e as criaturas. Na
medida em que o governo voluntariamente se doava ao povo, com a mesma
medida, esperava uma retribuição, um dever sagrado, sob pena, se não cumprido,
de recair o individuo em desgraça. A autora chama a atenção para tal dimensão
da relação e enfatiza “conceituar a prática política como uma espécie de prática
religiosa...” (2009, p. 183 ). Estabelecia-se com a população um pacto espiritual,
no qual esta se amarrava à imagem do governante em dependência, obediência,
cônscio de sua autoridade. Não seria por outra razão que o governo brasileiro
cedera verba altíssima para as associações católicas incrementarem e ampliarem
os limites dos Círculos Operários Católicos (FARIAS, 1998 ). Com efeito, a interação
Estado-Igreja se fortalecia substancialmente.
Esses fatos revelam a presença de uma organização internacional (todas
as instituições católicas eram administrativamente e juridicamente pertencentes
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 37
à matriz católica de Roma, a Santa Sé) que, cada vez mais, se estabelecia no
Brasil como um corpo inerente à nacionalidade brasileira. A rigor, isso acontecia
não dentro de uma perspectiva cultural, mas politicamente presente em quase
todos os poros da sociedade brasileira.
Era justamente isso o que vislumbrava Dom Leme quando escreveu as
instruções para a organização da “Ação Católica” no Brasil (LEME, 1935). Escrito
originalmente em 1923, o livro tinha como finalidade servir de base para orientar
os leigos na busca frenética pela organização católica em todos os espaços da
vida nacional:
- Ronda de vigilância para neutralizar protestantes e espíritas;
- Propõe o voto feminino, sob orientação dos bispos;
- Fiscalização radical contra as fontes capitais da imoralidade: livros,
teatros, cinemas, modas, bailes;
-Divulgar na imprensa o apostolado (folhetos, artigos em jornais,
conferencias);
- Evangelizar intelectuais, industriais, comerciantes, operários;
- Reestruturar a comissão paroquial que consistia em dividir a paróquia
em quarteirões, ruas, grupos de casas e que todos pudessem ser visitados e
“fiscalizados”;
- Pressionar e exigir dos poderes públicos leis de pronto interesse católico
e seu cumprimento;
- Lista das empresas que respeitavam o descanso dominical como dia
consagrado à Igreja;
- Comissão de caridade e assistência: proporcionar aos pobres o trabalho
e criar uma matrícula dos pobres para identificar cada pessoa;
- Curso para enfermeiras católicas;
- Criar albergues católicos com subvenção pública para crianças de rua;
- Criar escolas católicas em toda a parte. (Até 1950, 40% das escolas do
país eram confessionais);
- Assistência à União Católica dos Militares;
- Assistência à União da Mocidade Católica; etc.
Diz Dom Leme que a imprensa é ditadura vencedora (1935) e não entende
a inércia dos católicos nessa área. Argumenta que há uma carência grande dos
católicos nas questões sociais e que seria necessária uma atualização para os
católicos estarem preparados para os embates políticos. Propõe, nas obras sociais,
a criação de instituições de ordem econômico-social: farmácias populares,
consultórios médicos, escolas profissionalizantes, previdência, habitação,
restaurantes populares, seguros, assistência jurídica, caixas de crédito rural,
38 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
bancos cooperativos. Todos eles, obrigatoriamente, com “diretores católicos”. De
modo que, com Dom Leme, surgia um novo personagem: o “católico”.
Por conseguinte, uma eloquente presença dos católicos, na forma de
pressão política, se encontra numa carta da Confederação Católica do Rio de
Janeiro (1929) de recomendação e orientação ao Presidente Washington Luis em
relação à crise na indústria brasileira no final do ano de 1929. Os termos da
correspondência dão conta da maneira impositiva da Confederação traçar políticas
públicas, da qual não escapava principalmente o chefe do executivo nacional. À luz
de um momento delicado, como era a crise de 1929, a entidade católica de maior
relevância no cenário brasileiro, não poupava criticar, de forma áspera, o governo,
acusá-lo de inércia diante do fechamento massivo das indústrias brasileiras e,
principalmente, denunciar a avassaladora miséria que acometia cada vez mais as
famílias brasileiras. Trazia à tona o descalabro da sociedade e recondicionava o
papel da Igreja como interventora do povo, sobretudo, sem romper com o Estado.
BALDIN, Marco Antonio. Church and politics in Era Vargas (1930-1940).
DIALOGUS. Ribeirão Preto. v.9, n.1 e n.2, 2013, pp. 29-39.
ABSTRACT: In 1930, Sebastião Leme is indicated to succeed Cardinal Arcoverde.
He was a born leader with an enterprising spirit that became of the great figures in
the national political setting. He was able to link backstage agreements with the
newly created provisional government under Vargas leadership. He brought together
political catholic leaders from many social segments, from senior employees to
high ranking officials of the Armed Forces. Dom Leme, who was a talented
articulator, had the explicit support of The Apostolic See. Their intention was to
restructure the basis of the Church in order to really penetrate the Brazilian society
influencing confessional and public schools, public departments, military and civil
clubs, universities as well as workers and businesspeople. The purpose was to
conquer a catholic geopolitics to engender another view of the Christian society
under the clergy leadership and of the hierarchy multiplied by the support of a
government with no limits to achieve power.
KEYWORDS: Catholic Church, Cardinal Leme, Politics, Vargas government
REFERÊNCIAS:
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Washington Luís, Arquivo Público do Estado de São Paulo, 23/out/1929, AP 0183.
AZZI, R. O episcopado brasileiro frente à Revolução de 1930, Síntese, nº 12,
c.V, janeiro/março, 1978, p. 64.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 39


______. A Igreja Católica na formação da sociedade brasileira. Aparecida:
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BERLIN, I. Limites da Utopia: capítulos da história das ideias. Organização:
Henry Hardy; trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: companhia das Letras 1991.
FARIAS,D. D. Em defesa da ordem. Aspectos da práxis conservadora católica no
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LEÃO XIII, (Papa) Rerum Novarum. Sobre a condição dos operários, 4ª Ed.
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LEFORT, C. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e
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LEME, S. Acção Catholica. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Livraria Catholica, 1935.
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MANOEL, I. A. O pêndulo da História: a filosofia da história do catolicismo
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Montanhese. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2005; p. 89.
ROMANO, R. Conservadorismo romântico. Origem do totalitarismo. 2ª Ed.
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SANTO ROSÁRIO, I. M. R. O Cardeal Leme. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962,
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TOUCHARD. J. História das Ideias Políticas. Trad. Mario Braga. Vol. 3, Lisboa:
Publicações Europa-américa, 1970, p. 104.
WOODWARD, K. A fábrica de Santos. São Paulo: Siciliano, 1992

40 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


IGREJA CATÓLICA E QUADRINHOS:
UMA PERSEGUIÇÃO À ARTE SEQUENCIAL
EM RIBEIRÃO PRETO NA DÉCADA DE 1940

Nainôra Maria Barbosa de FREITAS∗


Leonardo Góes MIRANDA∗∗

RESUMO: Este artigo tem por objetivo entendermos em qual contexto a Igreja
Católica ribeirão pretana estava inserida para que realizasse a queima de história
em quadrinhos em público como uma forma de protesto aos temas nelas contidos.
Para tanto partimos da análise de três títulos de arte sequencial circulantes na
década de 1940, X-9, Gibi e O Guri. Nosso recorte temporal é o período em que a
ação ocorre por parte da instituição religiosa, período conturbado para a história
mundial e local.

PALAVRAS-CHAVE: História Cultural; Igreja Católica; Quadrinhos.

O presente trabalho visou investigar os motivos que corroboraram para


que a Igreja Católica da região de Ribeirão Preto realizasse, em meados da década
de 1940, um ato contra as publicações de história em quadrinhos voltadas tanto
para o público infantil quanto para uma parte da população que as apreciava.
Investigou-se também a composição dessas obras destacando suas principais
temáticas em oposição à visão religiosa acerca das mesmas temáticas.
As histórias em quadrinhos começaram a ser reconhecidas pelos
historiadores como fontes que oferecem profunda significação para análise e
potencial para desenvolvimento e compreensão das conjunturas e construções
históricas.
As Histórias em Quadrinhos, como todas as formas de arte, fazem parte do contexto
histórico e social que as cercam. Elas não surgem isoladas e isentas de influências.
Na verdade, as ideologias e o momento político moldam, de maneira decisiva, até
mesmo o mais descompromissado dos gibis.[...] (DUTRA, 2001).
Em suma não basta olhar para acontecimentos ou lê-los e apontar isso

Doutora em História - Universidade Estadual Paulista. UNESP – Franca – São Paulo. Professora no
Centro Universitário Barão de Mauá - Ribeirão Preto e Centro de Estudos da Arquidiocese de Ribeirão
Preto; Pesquisadora do IPCCIC. E - mail: nainora.maria@yahoo.com.br.
∗∗
Pós graduado em História – Centro Universitário Barão de Mauá CUBM – Ribeirão Preto – São Paulo.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 41


como sendo história. História é um profundo questionamento acerca dos “por
quês”. O causal que dá condições pré-existentes para a concretização de fatos e
as escolhas (humanas) que determinam os caminhos da História efetivamente.
Esse tipo de crítica deve ser imposta a uma fonte e com as histórias em quadrinhos
não é diferente.
A fonte é produzida por uma sociedade em uma época e é estudada em
uma outra, com valores que já sofreram mutação, portanto é importante atentar
para a questão do anacronismo e não deixar que o conhecimento existente ao
período de análise da fonte obscureça novas visões acerca do que aquela fonte
pode significar. Tendemos a excluir – ou melhor obscurecer - possibilidades de
análise, simplesmente por saber a resposta das perguntas, mas o importante aqui
não é obter respostas, mas sim os caminhos possíveis para responde-las, isso
torna a história mais interessante.
Para esse tipo de abordagem em pesquisa histórica alguns cuidados
com relação à metodologia de avaliação das fontes foram ressaltadas e levadas
em consideração.
Em primeiro lugar são as características concernentes à própria história
seriada que demanda uma linguagem própria com elementos que a diferenciam
e no estudo dos quadrinhos enquanto fonte histórica precisa ter sua entonação
reforçada.
Nos quadrinhos temos a linguagem verbal e visual trabalhando em
conjunto para transmitir uma mensagem ao leitor. Essas linguagens usam artifícios
para atingir determinados objetivos, como exemplo, podemos citar a onomatopeia
na linguagem verbal, que traz ao leitor um sentido de audição, pois representa a
sonoridade das coisas no mundo e na linguagem visual podemos verificar a
disposição dos quadrinhos e os tipos de plano (frontal, inferior e superior) que são
utilizados para dar ênfase na ação e movimento dos personagens.
Diferentemente da televisão e do cinema, os quadrinhos não têm telespectadores,
mas sim participantes da ação, pois as histórias necessitam da interpretação do leitor,
que junta os elementos na imaginação e os vê em sequência (PUGINA, 2004, P.10).

Por muito tempo os historiadores da arte ou da imprensa, colocaram os


quadrinhos como pesquisa em um patamar cronológico, ou seja, ficavam se
pautando em era e idades de ouro ou de prata e se esqueciam de que isso é uma
produção cultural. Deixavam de lutar por uma história social, de visar a produção
cultural pelo viés societário. Iremos propor esse viés com o auxilio de pesquisas
de historiadores que iram nos guiar nessa jornada.

42 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Will Eisner traça um breve surgimento desse tipo de mass media,

O uso de inscrições reapareceu em panfletos e publicações populares no século


XVIII. Então, os artistas que lidavam com a arte de contar histórias, destinada ao
público de massa, procuraram criar uma Gestalt, uma linguagem coesa que servisse
como veículo para a expressão de uma complexidade de pensamentos, sons, ações
e ideias numa disposição em sequencia, separadas por quadros. Isso ampliou as
possibilidades da imagem simples. No processo, desenvolveu-se a moderna forma
artística que chamamos de histórias em quadrinhos (comics), e que os franceses
chamam bande dessinée (EISNER, 1999, p.13).
Nosso esforço intelectual aqui é entender que esse tipo de obra chegou
nas mãos das massas e as massas passaram a significar tais literaturas.
Para usar o conceito de Michel Foucault a “História Efetiva”, a história
crítica dos quadrinhos aparece nos anos 1990 com estudos, principalmente nos
Estados Unidos, sobre como há a interação entre público alvo e obra.
As Histórias em Quadrinhos, como todas as formas de arte, fazem parte
do contexto histórico e social que as cercam. Elas não surgem isoladas e isentas
de influências. Na verdade, as ideologias e o momento político moldam, de maneira
decisiva, até mesmo o mais descompromissado dos gibis.[...] (DUTRA, 2001).
Buscamos auxílio em autores que nos guiem por questão emblemáticas
que envolvem essa pesquisa.
O estudo destas fontes foi realizado a partir de uma base estrutural sob o
método da história estrutural ou frequêncial trabalhado pelo historiador atuante
na Universidade de Paris Frédéric Mauro, segundo ele,
A história seriada opõe-se, na realidade, ao que chamaríamos de história pontual, ou
seja, a que faziam os historiadores economistas do século XIX e que se encontra
ainda freqüentemente no século XX. Trata-se de uma história antes descritiva e
institucional, mas que se pode tornar estrutural e quantitativa, sem utilizar, entretanto,
a série estatística; limita-se a dados isolados que servem como pontos de referência
(MAURO, 1972, p.304).

O autor expõe que a “História Estrutural” surge como oposição a seriação


de fontes, a pesquisa quantitativa, declarando assim a importância das fontes
singulares que nos informam, também, potencialmente a condição da sociedade
no período ao qual ela foi produzida. A qualidade de uma pesquisa está em sua
análise independentemente da sua forma qualitativa ou quantitativa, assim Mauro
define que, “a forma é objeto de estatísticas: analisa-se o lugar das palavras na
proposição e das proposições na frase” (MAURO, 1972, p.308).

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 43


Todas essas discussões foram essenciais para desenvolvimento do
objetivo desta pesquisa, pautado em entender o contexto recôndito à década de
1940 e as razões que levaram a Igreja Católica de Ribeirão Preto a queimar 240
volumes de histórias seriadas em agosto de 1944.
Para alcançarmos esse objetivo reunimos exemplares das publicações
que foram censuradas pela instituição. Analisamos quatro edições do periódico
X-9 publicadas em 1943, uma edição da revista Gibi e uma de O Guri. Fizemos
um levantamento acerca das temáticas envolvidas nessas publicações para que
pudéssemos confrontá-las com a visão religiosa a partir de publicações emanadas
da imprensa católica, utilizamos as revistas Avante Cruzados e O Pequeno
Missionário, além de encíclicas papais relativas ao período.
Notou-se que das seis publicações de arte sequencial analisadas as
temáticas crime, mulher, ciência/tecnologia e guerra apareceram massivamente.
O Estado Nacional Moderno fruto de revoltas do século XVIII obrigaram a
Igreja Católica a se adaptar ao novo contexto mundial. No século XIX os cientistas
afirmaram que Deus não existia e que as religiões acabariam e que as ciências
substituiriam dando uma resposta para a sociedade secularizada. A Igreja enfrentou
a secularização da sociedade de diferentes formas dentre elas oficialmente
lançando Bulas como “Quanta Cura”, seguida de uma lista que continha o que
considerava os erros da modernidade: Silabus dos Erros (MARTINA, 1997).
Ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX a Igreja
Católica atuou com um projeto de romanização estreitando os laços entre as
Igrejas locais e o Vaticano, se movimentando de forma a responder os diferentes
desafios em cada país.
Uma das áreas de atuação da Igreja foi no campo da comunicação,
criando editoras, lançando obras como revistas, jornais e livros, criando o dia da
Boa Imprensa, incentivando os leigos por meio do clero a estarem disseminando
as boas obras em contraponto as obras consideradas nefastas. Dentre elas
destacamos as destinadas aos jovens e crianças (FREITAS, 2006).
As publicações, chamadas pela Igreja de ‘pseudo literatura infantil’,
exaltavam a nova organização da sociedade secularizada, por mais que houvesse
críticas políticas no seu teor, nenhuma das obras analisadas exaltava uma
restauração da velha ordem. Não que a instituição quisesse essa restauração,
como Manoel (2012) aponta em seu texto a Igreja queria “continuar livre das
amarras do Estado” (MANOEL, 2012, p.468), mas ela também não era desejosa
de uma perseguição anticlerical. Negar o que a negava era uma forma de angariar
fiéis e se manter forte, as publicações em arte sequencial, na sua maioria vindas
dos Estados Unidos e de seus ideais protestantes e, sobretudo, capitalistas se não
44 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
negavam a Igreja Católica, tão pouco a exaltavam e assim, como parte de formação
do pensamento das crianças e futuros cristãos precisavam ser eliminados.
Certeau (1994) afirma que a linguagem precisa ser levada a sério, ela
cria valores, defini cotidianos e significa práticas sociais, transformando-as em
cultura “para que haja cultura, não basta ser autor das práticas sociais; é preciso
que essas práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza”
(CERTEAU, 1994, p.142).
[...] Seu trabalho efetua uma dupla erosão: aquela que, de dentro da linguagem
ordinária, mostra esses limites; aquela que denuncia o caráter irreceptível (o nonsense)
de toda sentença que tenta uma saída para aquilo que não se pode dizer (CERTEAU,
1994, p.69).
As publicações em quadrinhos influenciavam na forma de pensar e agir
das crianças, e às vezes até mesmo dos adultos, independentemente de sexo ou
classe. Vimos que essas publicações exibiam uma visão de atribuição de valores
aos gêneros humanos, contudo a instituição católica também tinha sua própria
visão e queria que ela vogasse.
Segundo Follador (2009), a figura da mulher no Brasil sempre foi
concebida segundo o prisma ocidental masculino (FOLLADOR, 2009). E uma de
nossas raízes remonta ao ocidente medieval cristão onde, segundo Delumeau “a
mulher passaria a ser associada ao demônio e essa diabolização se remete à
descendência de Eva, símbolo do pecado e tentação” (DELUMEAU apud
FOLLADOR, 2009, p.6.). Essa visão se confrontaria com a do fortalecimento do
culto à Virgem Maria.
O culto à Virgem Maria ganhou destaque a partir do século XII, onde Maria repre-
sentava o ideal de mulher pura, assexuada, capaz de conceber sem pecar. Um ideal
que deveria ser seguido pelas demais mulheres em detrimento da herança deixada
por Eva, pois, enquanto essa carregava o castigo na sua sexualidade, Maria trazia
a redenção às mulheres mostrando que era possível cumprir o papel de procriadora,
sem exercer o desejo carnal (FOLLADOR, 2009, p.6-7).
A mulher que o mundo moderno cultivava era uma mulher do mundo
público, em suma, era uma mulher do pecado pela ótica da Igreja.
Os quadrinhos incentivavam a mulher jornalista, espiã, violenta, ladra.
Não que instantaneamente essa figuração se desse, ainda no século XVIII a mulher
foi concebida como “guardiã da infância” cumprindo as tarefas delegadas por
Deus de ser boa mãe e esposa (FOLLADOR, 2009, p.7).
No Brasil do século XX aos poucos a mulher foi saindo do
encarceramento domiciliar, a priori as de camada menos privilegiadas
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 45
participando do comércio de gêneros alimentícios e de atividades domésticas
para sustento da família, note que ainda é uma colocação relacionada ao cuidado
do lar.
As mulheres dos quadrinhos também exibiam num tom atraente e sedutor
em contrariedade àquela mulher assexuada e pura. Os quadrinhos ofereciam
outras possibilidades para seu público feminino e masculino ampliarem a questão
de gênero.

Pelo viés dos quadrinhos o que era levado ao público, principalmente


das mentes ainda em amadurecimento, era o das grandes possibilidades que a
ciência oferecia tornando admiradores aqueles que imaginavam o que seria
possível ao homem com todas aquelas pesquisas, inventos e tecnologias.
Enquanto os quadrinhos exaltavam a guerra e o patriotismo no fronte, a
Igreja também canalizava seu desejo frente aquele momento histórico.
Se o mundo capitalista moderno industrial fazia frente a Igreja, o mundo
totalitário nazista comandado pelo führer nas décadas de 1930/40 tão pouco
dava espaço para a mesma. Segundo Cardoso (2009),
As normas contidas na concordata redigida em 1933 (de assegurar a vida e o direito
dos católicos na Alemanha, que já haviam abdicado de alguns de seus direitos em
prol da mesma) seguiram as condições imposta por Hitler, entre elas: que os católicos
se afastassem voluntariamente da ação social e política como católicos, perdendo
assim grande parte de seu poder, para que a concordata fosse assinada. Diante
desse desrespeito, Pio XI declarou ser o comunismo “intrinsecamente perverso”,
bem como todas as formas de regimes totalitários e de nacionalismo extremo [...]
(CARDOSO, 2009, p.8).
Pio XI teve sua saúde agravada em 1938 vindo a falecer no ano seguinte,
sendo substituído por Eugenio Pacelli em 12 de março de 1939, com o nome de
Pio XII.
Antes mesmo da guerra imediato, Pio XII já apontava as necessidades de
paz “o perigo é iminente, mas ainda é tempo. Nada poderá ser perdido por meio
da paz, mas tudo pode ser perdido por meio da guerra” (CARDOSO, 2009, p.10).
E após seu início mantém a ordem na mensagem de natal transmitida em 1939
Com viva e angustiosa ansiedade temos infelizmente de contemplar, sob os Nossos
olhos, as ruínas espirituais que se vão acumulando por causa duma vasta aluvião de
idéias, que mais ou menos voluntária e veladamente obscurecem e deformam a
verdade no espirito de tantos indivíduos e povos, arrastados ou não pela guerra; e
assim pensamos no imenso trabalho que será preciso dispender - quando o mundo,

46 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


cansado de guerras, quiser restabelecer a paz - para derruir as muralhas ciclópicas
da aversão e do ódio que se levantaram no ardor da luta (PIO XII, 1940).
Pio XII manteve uma ativa comunicação através de radio mensagens em
busca de uma ordem internacional.
Na radio mensagem ao Natal de 1941 ele propunha:
Nada de agressão contra a liberdade e vida das nações mais pequenas [...] Nem
opressão das minorias étnicas e das suas peculiaridades culturais [...] Nem
açambarcamento injusto das riquezas naturais por parte de algumas nações com
prejuízo das outras [...] Nem corrida aos armamentos nem violação dos tratados [...]
Nem perseguição da religião e da Igreja [...] (PIO XII, 1941).
A afirmação anti-guerra também aparece em Ribeirão Preto através da
comemoração exposta no livro de tombo da catedral ao dia 07 de maio de 1945
Acabando de relatar este duro golpe porque passamos, com a alma em alegria,
registramos a doce notícia La Paz! Depois de tantos rumores, disseminou-se oficial-
mente a Rendição incondicional da Alemanha aos Exércitos das Nações Unidas. Foi
a 7 de maio que voou a aurora da paz na Europa, depois de quase seis anos de
uma guerra de extermínio, a mais tremenda que já viu a história. Paz! Paz! é o que
todos clamavam. E, mercê de Deus, os horizontes se tornaram mais esperançosos
(ACRP-SP, p.26).

Com o intuito de substituir os quadrinhos que traziam essas informações


às mentes da população a Igreja disponibilizava uma leitura apropriada a seus
ideais podemos analisar duas publicações que eram distribuídas em troca das
revistas em quadrinho para as crianças.
O Pequeno Missionário trazia para as crianças conselhos, como o ditado
por Artur de Castro Borges “Menino, toma sentido, Guarda bem em teu ouvido Êste
conselho de amigo: O silêncio é um tesouro Mais valioso que o ouro!” (O Pequeno
Missionário, 1947, p.340). Sua capa exalava as beleza do Brasil, retratando praias
e vegetação típica e a frase “Linda a natureza do Brasil! Eis os coqueiros da Baía,
beijados pelas águas do mar e o sol tropical!” (O Pequeno Missionário, 1947, p.1).
O senso de patriotismo aparecia em seu conteúdo também, como na história “A
História de um Grito” que expõe a independência do Brasil – guiada por Deus,
com alegria frente às outras nações do mundo.
Além disso o volume que analisamos traz contos de evangelização dos
indígenas
Os índios ouviam tudo atentamente. Depois o padre saiu novamente da cabana e foi,

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 47


com os seus companheiros, buscar uma caixa de madeira, muito grande, que abriu
diante dos índios extasiados. De dentro dela tirou uma porção de facas, pentes,
anzóis, espelhos, etc., e os foi distribuindo. Os homens receberam calças, as mulhe-
res, vestidos, colares, fitas; as crianças ganharam camisolas e brinquedos (O Pe-
queno Missionário, 1947, p.342).
Tais histórias, além de criar o imaginário da salvação dos índios através
do catolicismo e, a própria História por mistificar os eventos, também ia contra ao
que Pio XII propunha em 1941 com relação ao respeito às minorias étnicas, no
documento ele propunha:
no campo de uma ordem fundada sobre os princípios morais, não há lugar para
opressão manifesta ou súbdola das peculiaridades culturais ou lingüísticas das mino-
rias nacionais, para o impedimento ou contração das suas possibilidades econômi-
cas, para a limitação ou abolição da sua natural fecundidade (PIO XII, 1942).
O volume também traz testes escolares na sessão “Concurso Escolar’,
curiosidades sobre geografia e biologia na página “Você já sabia?” e também,
quadrinhos, estes tratando de curiosidades e do cotidiano das crianças, como
por exemplo comer doces e se perder dos responsáveis.
A publicação Avante Cruzados analisada, data de março de 1949, traz o
anjo na capa zelando pelas crianças em conjunto com as festas católicas do
mês, informando sobre o aniversário natalício de sua do Papa Pio XII, a 1ª Sexta
feira do mês, as festas de São José e da Anunciação. Também traz gravado o
lema da revista “Reza, comunga, sacrifica-te, sê apostolo (Avante Cruzados, 1949).
A revista transmite o respeito ao pai, responsável pelo lar e que traz dinheiro
para a família.
Trata como Intenções da Cruzada para o mês de março trabalhar junto à
Manchúria e Coréia para tirá-los do paganismo combatendo as antigas religiões
(Avante Cruzados, 1949, p.3).
A Igreja católica na primeira metade do século XX lutou contra a presença
do paganismo e do comunismo tentando implantar e fortalecer o catolicismo
romano.
Há páginas que abordam os sacramentos e também narrativas, ilustradas
por quadrinhos, com história de membros da Igreja, na edição que analisamos
conta-se a história de Pio X.
Também há ensinamento de penitência através de contos infantis como
em “História da Princesinha sem fome”.
Como encerramento da publicação existia uma história em quadrinhos
seriada, contendo duas páginas em cada edição, chamada “Alino no Far-West” e

48 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


conta a trama de um caipira injustamente condenado por roubo e tentativa de
assassinato que foge e se abriga com um nativo, Água Branca, que tentará ajudar
Alino a provar sua inocência.
Esse tipo de publicação vinda da imprensa católica mostra-nos que ela
bebia da fonte que condenava. Os propósitos, propagandas e enfoque eram
dispares, porém a arte sequencial estados unidense ali estava fortemente
empregada. O que existia era uma apropriação e reversão dos valores trazendo
assim a doutrina e palavra da Igreja aos lares e mentes das crianças.
Para encerrarmos seria justo citar Certeau (1994) uma vez mais,
[...] A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e
espetacular, corresponde outra produção, qualificada de ‘consumo’: esta é astuciosa, é
dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisí-
vel, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os
produtos impostos por uma ordem econômica dominante (CERTEAU, 1994, p.39).
Observamos através destes instrumentos de pesquisa que a Igreja Católica
ribeirãopretana estava engajada em manter seus ideais frente às armas emanadas
pela contemporaneidade, em especial pela imprensa contemporânea, para tanto
ela dispunha de um material que poderia ser oferecido aos leitores de história em
quadrinhos com os moldes semelhantes que foram apropriados das próprias
comics, realizando uma substituição por publicações de equivalência, mas que
não feriam sua ideologia nem a vontade institucional. Podemos dizer que esse
esquema de apropriação foi em busca de formar a mentalidade das crianças
para os costumes, a moral e o sentido de família da Igreja.

FREITAS, Nainôra Maria Barbosa de; MIRANDA, Leonardo Góes. Catholic church
and comics: A pursuit to sequential art in Ribeirão Preto in the 1940s. DIALOGUS.
Ribeirão Preto, v.9, n.1 e n.2, 2013, pp. 41-51.

ABSTRACT: This article aims to understand the context in which the Catholic
Church of Ribeirão preto was inserted to perform the burning of comics in public
as a form of protest to the themes contained therein. To do so we start from the
analysis of three titles circulating sequential art in the 1940s, X-9, Gibi and O Guri.
Our time frame is the period in which the action occurs by the religious institution
for troubled global and local history period.

KEYWORDS: Cultural History; Catholic Church; Comics.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 49


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50 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Fontes:
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X-9. Rio de Janeiro: Expediente, n.59, novembro 1943. 98p. Quinzenal.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 51


52 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
NAS RELAÇÕES IGREJA/ESTADO NO BRASIL
NA DÉCADA DE 19601
Emílio Donizete PRIMOLAN*

RESUMO: O propósito deste artigo é discutir a crise instituída entre a Igreja e o


Estado brasileiro no final da década de 1960. O aggiornamento instigado pela
Igreja Católica, a partir do Concílio Vaticano II, viabilizou o diálogo com o mundo
moderno e possibilitou a inserção da Igreja Católica no campo da ação política
junto às classes populares. A partir da análise de documentação original produzida
no interior da própria Igreja e por meios de comunicação laicos, buscou-se elucidar,
num momento crítico da história humana, o confronto entre o projeto político-
pastoral da Igreja que se atribuía a missão do engajamento político popular e
aquele dos militares que conjecturava a despolitização da sociedade. A contradição
entre os dois projetos colocou as duas instituições que, historicamente sempre se
aliaram ou se respeitaram, em flancos opostos.
PALAVRAS-CHAVE: Catolicismo; Igreja; autocompreensão da Igreja; Estado;
política.

Introdução

Ao longo da década de 1960, a Igreja Católica, no Brasil, passou por


profunda transformação que vinha se delineando desde a década anterior. O
Concílio Vaticano II (1962-1965), ao institucionalizar o aggiornamento da Igreja,
tornou-se o fulcro central de mudanças nunca vista antes nesta instituição milenar.
As mudanças ensejaram, entre diversas perspectivas, a inserção dos católicos,
clero e leigos, no campo da ação política ao lado das classes sociais subalternas.
Por sua vez, o Estado Brasileiro, que tinha se desenvolvido desde 1945
até 1964 dentro do regime democrático, com política populista e projeto
econômico desenvolvimentista, manteve uma convivência harmônica com a
1
Texto originalmente apresentado na mesa de trabalho - Iglesia y Estado en la historia de Brasil:
ENLACES, remoción y acercamientos – Brasil, no Congresso SOLAR, 2012.
*
Graduado em História pela Universidade do Sagrado Coração – Bauru, Estado de São Paulo, Brasil;
graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, Estado de São Paulo,
Brasil; Mestre pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Assis, Estado de
São Paulo, Brasil; Doutor pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de
Franca, Estado de São Paulo, Brasil. Exerce a função de professor junto ao Centro Universitário de
Bauru, Estado de São Paulo, Brasil. Contato: E - mail: edprimolan@yahoo.com.br

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 53


instituição eclesiástica. A partir de 1964, o episcopado brasileiro depois de apoiar,
inicialmente, o golpe militar com o argumento do combate ao comunismo, passou
a se opor à ditadura militar que se instalara e a lutar por liberdades democráticas
que, ingenuamente, acreditara seriam reinstaladas pelos golpistas. Com isso,
inúmeros conflitos ocorreram entre a Igreja e o Estado, particularmente, a partir
de 1968.
A abordagem deste estudo, entretanto, se circunscreve ao conflito ocorrido
na arquidiocese de Botucatu, região central do estado de São Paulo, Brasil, em
virtude da ampla repercussão interna à Igreja nacional e internacional e em toda
a sociedade brasileira, com envolvimento de autoridades militares e políticas no
evento.
Emprega-se, para este estudo, o conceito de autocompreensão da Igreja
entendido
[...] como “tipos ideais”, ou seja, “construções mentais” ou “imagens mentais” para
cuja elaboração se faz necessário, exagerando elementos específicos da realidade,
selecionar características dela e as ligar entre si num quadro mental relativamente
homogêneo (WERNET, 1987, P.12).
Podem ser identificadas quatro autocompreensões distintas de Igreja, na
década de 1960, na Igreja local de Botucatu. Cada autocompreensão percebia
de maneira particular a missão a ser exercida pela Igreja em seu contexto histórico:
tanto em relação à política em geral, às classes sociais e à política interna da
Igreja. Essas diversas autocompreensões criaram um quadro de conflito interno à
Igreja local pelo entendimento próprio de qual deveria ser a missão da Igreja
naquele contexto de mudanças e como deveria ser conduzida a relação da Igreja
com a ditadura militar. Os quatro tipos de Igreja são: conservadora, social-cristã,
socialmente engajada com o movimento popular e politicamente engajada.
A autocompreensão da Igreja conservadora aliou-se ao regime militar e
com os setores sociais a ele vinculados; forneceu legitimação ao Estado autoritário
tanto pelo discurso como por atos pela capacidade do mesmo para impor “ordem”
e “disciplina”. Internamente, a igreja conservadora é autoritária, dogmática, fechada
a toda mudança social, política e religiosa. A preocupação social está ausente. É
ritualista, formal, sacramentalista, recusou o Vaticano II. É dogmaticamente
antimarxista. É avessa a toda participação democrática ou promoção popular
(RICHARD,1982, p. 205-206).
A autocompreensão da Igreja social-cristã está mais ligada ao nacional
desenvolvimentismo, à industrialização e à democracia representativa entre 1945
e 1960. Durante o regime militar, ela aparece associada aos setores sociais da

54 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


burguesia não hegemônicos. O regime militar é aceito enquanto controla o
movimento de massa, despolitiza o país e se opõe ao marxismo (RICHARD, 1982,
p.215).
A autocompreensão da Igreja socialmente engajada com o movimento
popular se consolida a partir da experiência do Estado autoritário, porém, não o
legitima. Não oferece uma alternativa de sociedade. É uma Igreja vacilante. Define
sua missão voltada para os meios populares: camponeses, operários e camadas
médias desfavorecidas; está engajada nas organizações e lutas populares. Tem
uma percepção da luta de classes. Afasta-se do movimento popular organizado e
consciente, esquerdizante; não faz uma opção de classe; distancia-se de uma
possível politização prática ou teórica. Dependendo do contexto, volta-se para a
direita ou para a esquerda (RICHARD, 1982, p.217-219).
A autocompreensão da Igreja politicamente engajada adere a um projeto
alternativo de sociedade ao capitalismo dominante, mas mantêm sua identidade
própria como Igreja e uma autonomia relativa. Ela mantém sua especificidade de
comunidade sacramental e de fé; faz uma opção consciente de classe em sua
práxis; realiza uma convergência entre a radicalidade do engajamento político e
a radicalidade das exigências da fé. Perante a Igreja social-crista, esta é denúncia
da aliança daquela com as classes dominantes e com o regime autoritário
(RICHARD, 1982, p.221-222).

O caso de Botucatu
O “caso” dos padres da Diocese de Botucatu constitui-se em um dos
significativos episódios resultantes das contradições porque passava a Igreja no
Brasil, no final da década de 1960. Pesquisas empíricas realizadas na época, no
Brasil, mostraram “a aguda divisão existente na instituição eclesiástica, e a quebra
de consenso quase total acerca do papel da Igreja no processo político“
(KRISCHKE, 1979, p.12). Estas contradições, por sua vez, devem ser vistas à luz
das transformações por que passava o mundo, a América Latina e,
particularmente, a sociedade brasileira, naquele contexto.
Se até a Segunda Guerra Mundial as ameaças contra a Igreja eram
atribuídas pelo clero ao mundo moderno hostil à religião e aos seus valores, após
o Vaticano II os “inimigos” da Igreja passaram a ser localizados em seu interior,
segundo a interpretação de setores conservadores da hierarquia. Mons. Ramires,
membro convicto do clero conservador local, assim se expressou:

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 55


[...] As forças da destruição estão dentro da Igreja e atiram-se com frenesi,
diabolicamente, contra tudo o que é sagrado. Vão derrubando coisa por coisa em toda
parte. E os que ainda percebem e distinguem o mal e o bem estão simplesmente
assombrados de uma mudança tão brusca e tão destruidora. [...] A Igreja já
chegou muito perto de ferir-se a si própria. As divergências na Igreja repercutem
especialmente no Papa. As provações são difíceis e, às vezes, duras. [...]”.2
As autocompreensões de Igreja que entraram em conflito, no caso de
Botucatu, refletem as contradições entre a Igreja anterior e posterior ao Concílio,
e aquela anterior e posterior ao golpe de 1964. Ou seja: entre uma
autocompreensão conservadora representada pela escolha do bispo D. Vicente
Marchetti Zioni em 1968 e a politicamente engajada, adotada pela maioria do
clero da arquidiocese de Botucatu.
Diferentemente do que defende Bruneau (1974), neste estudo entende-
se que as mudanças na Igreja não procedem unicamente por pressão externa e
interesse político da instituição para manter sua influência social BRUNEAU
1974), mas por convergência de circunstâncias externas e internas à Igreja
concomitantemente (LOWY, 1991).
Após 1964, a Igreja foi se constituindo, aos poucos, num espaço de luta e
defesa das liberdades democráticas contra a ditadura militar em termos de América
Latina (RICHARD, 1982) que, na devida proporções, ocorreu também na
arquidiocese de Botucatu. Nesta, da tradicional postura da assistência social,
passou-se a reivindicar, através da militância de membros do clero e de leigos, a
mudança no campo da política variando da crítica à ditadura até ao próprio sistema
capitalista numa nítida adesão do clero à Igreja politicamente engajada.
No final do ano de 1964, portanto depois do golpe militar, na 3ª sessão
conciliar, D. Henrique Golland Trindade, então arcebispo de Botucatu, manifestou-
se em defesa de uma Igreja pobre para os pobres, ao se dirigir aos padres
conciliares. Ao discutir o tema da relação da Igreja com o mundo, afirmou:
este milagre de primeira ordem da aproximação e compreensão entre a Igreja e os
homens de hoje [...], deve em primeiro lugar ter como objeto os pobres, os que
sofrem, os humildes. [...] O esquema diz que se deve ouvir a voz de Deus na voz dos
tempos. Mas a voz dos tempos é a voz dos homens, dos povos, da multidão anônima
e ignorada que clama, tantas vezes no deserto, ou com voz alta, ou com voz baixa
por temor, a nós ou contra nós, Bispos, sacerdotes, Religiosos, que recebemos o
mandato de viver e pregar o evangelho do amor e da pobreza (TRINDADE, 1964,
p.5).
2
Livro Tombo da Paróquia do Divino Espírito Santo de Bauru, f. 158v, 8 dez. 1968. Arquivo da Paróquia.
(grifo nosso)

56 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


A sua intervenção na aula conciliar ainda insistia sobre a importância de
uma doutrina muito bem elaborada que não permanecesse letra morta, mas
ganhasse vida ao ser colocada em prática na pastoral da Igreja, no que se refere
ao diálogo que a Igreja deveria manter com o mundo. Sobre esse tema apresentou
duas propostas: primeiro,
A Igreja [...] deve descer dos palácios, dos tronos, dos lugares eminentes e excelen-
tes e sem ornatos verdadeiros ou aparentes, para entrar em contato com os homens
e com ele dialogar. [...]. A segunda proposta [...] refere-se à criação de um secreta-
riado ou uma comissão aqui em Roma, onde sacerdotes e leigos designados para tal
recebam com benevolência, todos aqueles que desejem dialogar com a Igreja,
falando de nós ou contra nós (TRINDADE, 1964, p.5).
Entretanto, depois do Concílio D. Henrique fez uma guinada conservadora,
receoso das consequências da autocompreensão da Igreja politicamente
engajada adotada por seu clero. Como não tinha mais poder moral para reverter
uma caminhada que ele próprio tinha permitido junto ao seu clero e, já sem a
saúde necessária para administrar a arquidiocese, restou-lhe a saída da renúncia.
A convivência entre o clero de Botucatu e seu bispo sucedeu-se de maneira
harmônica até o limite por ele admissível para a aplicação da renovação conciliar,
ou seja, a reforma social (ZANLOCHI, 1996, p.185). Quando se deu conta de que
a pregação evangélica voltada para os “pobres e pequeninos”, que sempre tinha
defendido radicalizou-se em confronto de classes, passou a intervir para tentar
retomar o controle da administração da arquidiocese.
Ao mesmo tempo, difundia-se o boato de que um bispo de pulso forte
deveria ser escolhido para a arquidiocese de Botucatu. O clero local advertira D.
Henrique que não aceitaria o bispo de Bauru, D. Zioni, conhecido pela sua posição
conservadora. Numa ocasião de passagem por Botucatu, D. Zioni teria referido à
irmã superiora das irmãs Marcelinas sobre “a crise geral de autoridade no meio
do clero, não desejando o episcopado [de Botucatu] para o pior de seus inimigos”
(ZANLOCHI, 1996, p.190).
Segundo Padre Getúlio, “então ele [D. Henrique] sabia que nós não
gostávamos da pastoral de D. Vicente: sua relação com a comunidade, a forma
como conduzia a catequese e não aceitava o nosso catecismo; ele não aceitava
a forma como era conduzido o seminário” (MACHADO, 1999, p.12). Mesmo
ciente dessas incompatibilidades D. Henrique levou adiante a promessa de trazer
um bispo de pulso forte que pudesse controlar o clero.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 57


Uma Igreja em conflito consigo mesma e com o Estado autoritário
O grupo de 28 sacerdotes que se recusou a receber D. Zioni como
arcebispo de Botucatu, definiu a missão da Igreja à qual estavam vinculados pelo
sacerdócio de acordo com os textos do Vaticano II nos seguintes termos:
Ela é sinal e instrumento da comunhão dos homens entre si e destes com Deus
(Lumen Gentium, 1). Sacramento universal da salvação, a Igreja é para nós, funda-
mentalmente, um povo de Deus chamado à santidade. Nela, vemos, portanto, uma
realidade de amor que se exprime no relacionamento de pessoas através de um
diálogo de verdade, de justiça e de caridade que se cristaliza na celebração
eucarística3.
Se o conceito de Igreja não apresentava nada de extraordinário em relação
à ortodoxia, sua prática levaria a limites que a alta hierarquia não poderia tolerar.
Uma Igreja definida como Povo de Deus poderia resultar numa aliança com as
classes populares e a sonhada conversão das elites à radicalidade do evangelho.
A arquidiocese de Botucatu era privilegiada quanto às possibilidades de
se implantar a renovação advinda do Vaticano II. Pois contava com um clero
jovem e atuante junto aos grupos sociais desfavorecidos.
A crise entre os jovens padres e o arcebispo na arquidiocese de Botucatu
se acentuou a partir de 1967, em virtude do comprometimento social cada vez
maior do clero e sua opção de crítica social. Segundo Padre Nivaldo Rosa, a crise
cresceu,
e cresceu muito mais ainda nos últimos nove meses: nossas atitudes, atitudes novas,
querendo engajar a Igreja na linha dos homens, causou uma série de conflitos com
os grupos econômicos e políticos. Quando a gente falava em justiça social, muitos
outros sentiam-se incomodados; muito patrão ficou pensando em nós de um modo
que não esperávamos. E o clube dos incomodados foi aumentando, e com ele a
crise4.
Se já havia sido cavado um fosso separando os padres em relação ao
bispo D. Henrique, o cenário ficou ainda mais conflitante quando o clero de Botucatu
recebeu a notícia da nomeação do bispo conservador D. Zioni para exercer a
função de arcebispo. Viam cair por terra um projeto de Igreja renovada em virtude
da impossibilidade de realização da nova missão da Igreja: o engajamento político.
A consequência inevitável da aliança do clero com os interesses das
3
Manifesto dos Padres de Botucatu, in: Padres rebelam-se e rejeitam novo arcebispo, O Globo, Guanabara,
1 jun. 1968. p. 4.
4
Por isso recusam o bispo, O Estado de São Paulo, São Paulo, 5 jun. 1968, p. 6.

58 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


classes populares, além do conflito com o bispo reformista D. Henrique, foi o
conflito criado com os grupos detentores do poder local habituadas com a aliança
secular estabelecida com a hierarquia da Igreja.
À medida que amplos setores do clero local passaram a fazer um discurso
de crítica e de denúncia do sistema social, econômico e político, com vistas a
uma transformação radical, resultou por atingir os interesses dos grupos detentores
do poder local. Se se considerar que, nas pequenas cidades, como o caso de
Botucatu, praticamente todas as pessoas se conheciam e viviam como se fosse
uma “grande família” sustentada pelos valores cristãos tradicionais corporativistas,
a “repentina” guinada do clero em favor dos menos aquinhoados resultou em
efeitos imprevisíveis.
A tensão tornava-se extrema à medida que do discurso e da teoria o clero
politicamente engajado passava para a prática. A ação se desenvolvia em diversas
frentes: reforma da pedagogia na formação do clero; catequese comprometida
com a realidade concreta da criança; valorização do leigo na atividade paroquial;
incentivo à formação de sindicatos de camponeses; renovação da paróquia, da
liturgia e introdução da leitura e estudos da Bíblia; projetos de promoção humana
nas periferias; intensificação da organização dos jovens trabalhadores em torno
da JOC (Juventude Operária Católica) e a pastoral universitária em torno da JUC
(Juventude Universitária Católica).
Concomitante à luta dos padres contra a posse de D. Zioni, os estudantes
universitários organizados, sob a coordenação do Padre Augusti, faziam
reivindicações em torno de verbas para a Faculdade de Medicina e Ciências
Biológicas. O movimento reivindicatório de verbas transformou-se, aos poucos,
num movimento político de reivindicação de liberdade e os estudantes se
solidarizaram com os propósitos dos “padres rebeldes” que reagiram ao
autoritarismo da nomeação do novo arcebispo sem consultar o clero, aumentando
ainda mais a tensão do conflito.
Segundo Padre Augusti, em 1968 a igreja de Botucatu encontrava-se
desfigurada pelas atitudes engendradas pela hierarquia. Deste modo, diante de
uma igreja fragilizada perante a sociedade, permitia-se
ao mesmo tempo a orquestração tétrica dos bajuladores provincianos do sistema de
força, gritando como loucos pedindo a cabeça dos padres “subversivos”, e dos
estudantes que queriam o direito de melhores condições de ensino e o direito de
protestar contra arbitrariedades policiais 5 .

5
Augusti, J. E.: Diário de Prisão, Dossiê Botucatu – 1968-1969, p. 1.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 59


Diante da divulgação da reação dos “padres rebeldes” contra a nomeação
de D. Zioni, em fins de maio de 1968, rapidamente os diversos grupos sociais
locais de posicionaram. De um lado os estudantes e membros mais politizados
das organizações religiosas se solidarizaram com a posição tomada pelos “padres
rebeldes”. As elites, representadas pelos líderes políticos e militares, posicionaram-
se a favor da posse do bispo eleito6.
Segundo a percepção do clero, a união das forças conservadoras que se
opunham à pastoral dos jovens padres já tinha se organizado desde há algum
tempo
no sentido de enfrentarem a nova força que começa a surgir em Botucatu, liderada
pela ala jovem do clero, e que visa apenas à luta pela verdade e pela justiça. D. Zioni
representa para esses conservadores uma última esperança de sobrevivência. Por
isso, eles estão empenhados num apoio irrestrito ao arcebispo nomeado e não
aceito pelo clero7.
O incômodo que representava a pregação e a ação dos jovens padres
antecedia o episódio da nomeação do arcebispo. Pois,
há bem pouco tempo as autoridades policiais tentaram agir contra os padres, taxan-
do-os de subversivos, quando orientávamos grupos de jovens, discutindo com eles
os problemas da comunidade. Dentro de um contexto dessa natureza deu-se a
renúncia do arcebispo e a nomeação de D. Zioni. Ninguém ouviu ninguém. A
delicada situação existente nesta comunidade jamais foi considerada pelos órgãos
competentes, que apresentaram ao Santo Padre um nome que de modo algum
poderia, nestas circunstâncias, ser nomeado arcebispo de Botucatu. Nós não estamos
contra o Papa. Lamentamos a injustiça cometida, pela falta de objetividade e de
conhecimento dos responsáveis pela nomeação8.
De acordo com o grupo de padres contrários à posse do bispo conservador,
há um interesse imenso das forças reacionárias para que se efetue a posse de D.
Zioni e que nós, jovens padres, sejamos afastados da arquidiocese de Botucatu
onde atrapalhamos tanto a vida dos que insistem na manutenção de um sistema
incoerente com a aspiração dos cristãos verdadeiros, que lutam pela implantação da
mensagem de Cristo9.
As autoridades de Botucatu, em julho de 1968, se uniram para se opor à

6
Botucatu vive a crise, Folha da Tarde, São Paulo, 4 jun. 1968, p. 4.
7
Igreja de hoje, Folha da Tarde, São Paulo, 5 jun. 1968, p. 3.
8
Igreja de hoje, Folha da Tarde, São Paulo, 5 jun. 1968.
9
Igreja de hoje, Folha da Tarde, São Paulo, 5 jun. 1968.

60 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


ação dos estudantes orientados pelos padres. O prefeito, o presidente da Câmara,
o deputado eleito pela cidade e o superintendente da rádio local se reuniram para
discutir sobre as passeatas dos estudantes e o apoio oferecido pelos padres aos
mesmos. Tentavam articular uma passeata só de autoridades para se contraporem
à dos estudantes. Segundo o delegado local, Carlos Augusto Boncristiano “esses
padres estão incitando à subversão, principalmente este padre Augusti, um dos
principais mentores do movimento estudantil”10. Alguns dias antes, logo após ter
ordenado a prisão do Padre Augusti, afirmara: “o padre é dos mentores de toda essa
baderna: ele é um subversivo, ele prega nas ruas e na Igreja a revolução armada, ele
foi preso em flagrante [...], pois estava incitando publicamente a subversão”11.
No final de julho de 1968, Padre Augusti foi denunciado por subversão,
incurso na Lei de Segurança Nacional. O promotor denunciante alegou que o
sacerdote exercia atividades
junto aos estudantes, os discursos violentos contra as autoridades constituídas, a
orientação do jornal “O Manifesto”, a participação em programa da Rádio Municipalista
de Botucatu durante algum tempo e outros fatos, concluindo que os atos praticados
pelo denunciado revelam, sem sombra de dúvida, a guerra psicológica praticada
pelos adeptos do comunismo internacional, sendo, portanto, elemento subversivo,
agitador, sempre à testa de qualquer movimento que vise combater o poder consti-
tuído, gerando a desavença entre as diversas classes sociais e políticas em Botucatu,
e comprometendo a religião que abraçou. Segundo o promotor, o sacerdote confes-
sa que pugna por uma verdadeira transformação social de nossa pátria, sem violên-
cia e operada pela revolução do Evangelho e quer que o povo participe realmente
dos problemas de nossa comunidade12.
Por sua vez, os estudantes também preparavam outra manifestação para
pedir a liberdade do Padre Augusti. Nas missas do domingo posterior à prisão do
Padre Augusti, todos os padres da cidade se solidarizaram com o mesmo ao ler
um manifesto que, entre outros tópicos, constava: “se precisarmos voltar às
catacumbas, voltaremos”. E a leitura bíblica referia-se ao relato do apóstolo Paulo
sobre suas experiências de prisões13.
Catorze padres da diocese de Botucatu divulgaram um manifesto em
solidariedade ao Padre Augusti pela arbitrariedade das circunstâncias da prisão.
O trabalho do Padre Augusti junto aos estudantes universitários, segundo o
manifesto,
10
Uma passeata só de autoridades, O Estado de São Paulo, São Paulo, 22 jul. 1968.
11
Seminário que esconde estudantes da polícia, O Estado de São Paulo, 19 jul. 1968.
12
Promotor denuncia Padre por subversão, O Estado de São Paulo, São Paulo, 25 jul. 1968.
13
Seminário que esconde estudantes da polícia, O Estado de São Paulo, 19 jul. 1968.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 61


é um testemunho e uma presença da Igreja numa luta pelo desenvolvimento
integral do homem. Qual o motivo desta prisão? Teria sido por real subversão.
Em quê? Que fez? Que é, afinal subversão? Seria denunciar injustiças? Traba-
lhar pela promoção de famílias infelizes? Dando condições dignas de habitação,
saúde, higiene e cultura? É subversão a presença educadora da Igreja no meio
da juventude estudantil, principalmente universitária? É subversão apoiar rei-
vindicações justas e oportunas de alunos que pleiteiam condições para se torna-
rem profissionais competentes? Ou será que o motivo de tudo é a atitude vinga-
tiva de grupos desta cidade por causa de interesses pessoais prejudicados, sob
pretexto da própria Lei de Segurança Nacional? À interpelações como estas
muita gente terá que responder perante Deus e perante a História! [...] Por isso,
Padre Augusti, agora nós o respeitamos ainda mais. Você está “enquadrado” no
Reino dos Céus. [....]14.
Em junho de 1968, D. Romeu Alberti, bispo de Apucarana, estado do
Paraná, fora nomeado administrador apostólico da Diocese de Botucatu para
gerir a crise local. Uma de suas passagens por Botucatu, em julho de 1968,
coincidiu com um dos confrontos dos estudantes com a polícia. Aqueles se
refugiaram no interior de uma das igrejas para escapar da ameaça de iminente
prisão. Surpreendentemente para os setores conservadores da cidade, o bispo,
para proteger os estudantes, os conduziu até o seminário, que estava vazio por
causa das férias escolares, concedendo refúgio para cerca de 80 estudantes. O
seminário foi decretado “território livre” pelo bispo, o que impediu a prisão dos
mesmos. Permaneceram por quase um mês asilados dentro do seminário15.
Decepcionados com a atitude adotada por D. Romeu, as autoridades
locais dirigiram um abaixo assinado com cerca de 200 assinaturas ao Cardeal D.
Agnelo Rossi, solicitando a imediata posse de D. Zioni como solução para os
conflitos na cidade. Entretanto, na resposta, o cardeal considerou que cabia
unicamente a Roma decidir e definir sobre a solicitação feita, atribuindo uma
dimensão ainda maior ao evento16.
A iniciativa de solicitar a posse de D. Zioni evidenciou a dimensão da
força social e política de participantes da Igreja tanto para provocar uma mudança
social quanto como fator de conservação. A confirmação da posse do conservador
D. Zioni como arcebispo, realizada com a proteção do exército, significou um
aparente fim do conflito interno da Igreja com a saída da arquidiocese dos padres
contrários à sua posse. Também colocaria os espaços e as organizações da

14
D. Alberti impede prisão de estudantes em Botucatu, Folha de São Paulo, São Paulo, 21 jul. 1968.
15
D. Romeu: seminário é território livre, O Estado de São Paulo, São Paulo, 30 jul 1968.
16
Botucatu pede a posse de D. Zioni, O Estado de São Paulo, São Paulo, 30 jul. 1968.

62 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


igreja a serviço da “ordem e da disciplina” social, como tantas vezes manifestara
o novo arcebispo. Significava também o fim de uma experiência de Igreja no
espírito do Vaticano II com a opção pelas classes populares e seu consequente
retorno aos braços da elite local conservadora. A antiga aliança da Igreja com o
Estado fora restabelecida. Os “rebeldes” foram presos ou dispersados para alívio
das elites e desencanto para as classes subalternas.

Considerações finais

Embora fosse de difícil compreensão para os setores conservadores do


clero e para muitos cristãos, havia uma incompatibilidade entre a
autocompreensão da Igreja dos padres de Botucatu e aquela do bispo D. Zioni. O
conflito interno da Igreja extrapolou os limites eclesiásticos ao criar condições
para que as forças conservadoras do clero e da sociedade civil se unissem para
esvaziar uma experiência eclesial e social ímpar de transformação social.
Em outras e claras palavras, o bispo D. Zioni e o clero de Botucatu
defendiam autocompreensões da Igreja praticamente opostas: de um lado, o
catolicismo conservador apoiador da ditadura militar e, de outro, o catolicismo
politicamente engajado que apoiava a organização popular instigado pela fé,
como motor para promover a transformação social através da ação política
concreta. Cada um deles situava-se em polos opostos no modo de interpretar a
missão que deveria ser exercida pela Igreja.
Diante da evidente impossibilidade do clero rebelado voltar atrás e aceitar
trabalhar com D. Zioni e da improvável revisão da posição da hierarquia quanto à
decisão tomada cerca de um ano antes, em março de 1969 confirmou-se, por
parte da hierarquia, a tomada de posse de D. Zioni e a consequente saída de 27
padres da arquidiocese. Um dos padres foi condenado pelo regime militar e
cumpriu sua pena por mais de um ano de reclusão. Os outros sacerdotes que se
afastaram da arquidiocese de dividiram em vários grupos e foram acolhidos por
dioceses cujos bispos adotavam uma autocompreensão de Igreja politicamente
engajada. Porém, a contínua vigilância do regime militar sobre eles os impediram
de retomar plenamente o projeto político-eclesiástico elaborado em Botucatu.
Aparentemente as situações se harmonizavam. Aos olhos dos
expectadores externos, a autoridade da alta hierarquia e do regime militar em
aliança se impôs sobre a chamada “rebeldia” de um clero considerado subversivo.
A Instituição eclesiástica, apesar de arranhada, manteve grosso modo seu modus
operandi apesar dos avanços obtidos nos textos do Vaticano II. Este episódio é
revelador da ineficácia dos textos conciliares quando levados ao campo da prática
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 63
já no imediato pós Concílio. Por outro lado, a alta hierarquia passou a ser mais
cautelosa na nomeação de novos bispos para evitar novos conflitos deste tipo.
Para os ocupantes de cargos burocráticos em qualquer instituição tradicional,
entretanto, a prioridade é a perpetuação da instituição. As pessoas simplesmente
passam!

PRIMOLAN, Emilio Donizete. In the relationship Church/State in Brasil. DIALOGUS.


Ribeirão Preto. v. 9, n. 1 e n. 2, 2013, pp. 53-65.

ABSTRACT: The purpose of this article is to discuss the crisis emanating between
the Catholic Church and the Brazilian State in the late 1960s. The aggiornamento
which was instigated by the Catholic Church since Vatican II, made possible
dialogue with the modern world and allowed the insertion of the Catholic Church in
the field of political action with the popular classes. From the analysis of original
documentation produced within the Church and in secular media we sought to
elucidate, at a critical moment in human history, the confrontation between the
political project-the Church’s pastoral mission popular and political engagement
which attributed to Itself and that of the militaries which wanted the depoliticizing of
society. The contradiction between the two projects put the two institutions that
historically have been allies, and always respected each other, at opposite sides.

KEYWORDS: Catholicism; Church; self-understanding of the Church; state;


political.

REFERÊNCIAS:
Botucatu pede a posse de D. Zioni. O Estado de São Paulo, São Paulo, 30 jul.
1968.
Botucatu vive a crise. Folha da Tarde, São Paulo, 4 jun. 1968.
BRUNEAU, T. Catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo: Loyola,
1974.
D. Alberti impede prisão de estudantes em Botucatu. Folha de São Paulo. São
Paulo, 21 jul. 1968.
D. Romeu: seminário é território livre. O Estado de São Paulo. São Paulo, 30 jul.
1968.

64 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


AUGUSTI, J. E. Diário de Prisão. Dossiê Botucatu – 1968-1969.
TRINDADE, H. G.: A Igreja precisa descer os palácios e dos tronos para dialogar
com os homens. Diário de Bauru. Bauru, 11 out. 1964.
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Livro tombo da Paróquia do Divino Espírito Santo de Bauru, Arquivo da Paróquia.
LOWY, M. Marxismo e teologia da libertação. São Paulo: Cortez/Autores
Associados, 1991.
MACHADO, G. S. Ex-Padre revela bastidores da Igreja, Boca de Cena, Botucatu,
jun. 1999.
Manifesto dos Padres de Botucatu. Padres rebelam-se e rejeitam novo
arcebispo. O Globo. Guanabara, 1 jun. 1968.
Por isso recusam o bispo. O Estado de São Paulo. São Paulo, 5 jun. 1968.
Promotor denuncia padre por subversão. O Estado de São Paulo. São Paulo, 25
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Uma passeata só de autoridades. O Estado de São Paulo. São Paulo, 22 jul.
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ZANLOCHI, T. S. Padres rebeldes? O caso de Botucatu, Aparecida: Santuário,
1996.
WERNET, A. A igreja Paulista no século XIX. São Paulo: Ática, 1987.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 65


66 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
DOSSIÊ/SPECIAL

“Educação em perspectiva”

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 67


68 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
OFICINA DE CONSTRUÇÃO DE MATERIAIS
PSICOPEDAGÓGICOS PARA UMA BRINQUEDOTECA PARA
CRIANÇAS COM PARALISIA CEREBRAL E/OU MÚLTIPLA
HOSPITALIZADAS: RELATO DE EXPERIÊNCIA

Luciana Andrade RODRIGUES*


Sueli Cristina de PAULI∗∗

RESUMO: Encontrar-se internado em um hospital durante um longo período de


tempo, pode dificultar o pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes. Os
efeitos nocivos da extensa hospitalização podem ser minimizados se a instituição
contar com uma brinquedoteca hospitalar, organizada com recursos
psicopedagógicos que possam promover o desenvolvimento lúdico destes
indivíduos, propiciando oportunidades e experiências de que necessitam para se
desenvolverem dentro seus potenciais. Sendo o brincar um direito garantido por
várias leis, o objetivo deste trabalho foi relatar uma experiência de oficina de
construção de materiais psicopedagógicos, por alunos de graduação em
Pedagogia Plena e de Pós-graduação Lato Sensu em Psicopedagogia e em
Educação Especial Inclusiva, para uma brinquedoteca de uma instituição hospitalar
para indivíduos com paralisia cerebral e/ou deficiência múltipla. Por meio de
fotos ilustrativas, são apresentados os vários materiais produzidos, os quais foram
construídos com material resistente, grandes e coloridos, de fácil higienização.
Buscou-se confeccionar recursos capazes de virem possibilitar o uso da
comunicação alternativa, o estímulo da motricidade, da senso-percepção, da
aquisição da leitura, do sistema numérico, da atenção e da concentração. A
experiência de construção destes materiais mostrou-se significativa para alunos e
professores, pois motivam e propiciam a discussão acerca da relevância do lúdico
como estímulo ao desenvolvimento e à aprendizagem no contexto hospitalar.

PALAVRAS-CHAVE: Hospital; Lúdico; Brinquedoteca; Paralisia Cerebral;


deficiência múltipla.
*
Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP,
Brasil. Professora dos cursos de licenciatura e pós-graduação em Educação Inclusiva do Centro Universitário
Barão de Mauá. Email: luciana. rodrigues@baraodemaua.br
**
Doutora em Psicologia, pela FFCLRP- USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Coordenadora e professora dos
cursos de pós-graduação em Educação e Psicologia do Centro Universitário Barão de Mauá.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 69


INTRODUZINDO NOSSAS QUESTÕES: A BRINQUEDOTECA HOSPITALAR
Este artigo teve como ponto de partida uma preocupação de suas autoras:
o fato de em pleno século XXI muitas crianças e adolescentes terem o seu direito
de brincar negligenciado, não garantido, seja por terem uma deficiência qualquer,
por estarem doentes e internadas em um hospital ou, ainda, por terem que
trabalhar desde muito cedo para ajudarem suas famílias no orçamento doméstico
(SILVA ; MATOS, 2009).
Brincar é um direito de toda e qualquer criança independente de como
ela se encontre e como tal é dever do Estado, da família e da sociedade buscar
efetivá-lo. Cabe ressaltar que este direito está amparado em muitas leis dentre as
quais destacamos aqui, a Constituição Federal do Brasil (1988), o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990) , a Lei de Diretrizes e Bases
(LDB) (1996). E é esta última que incentiva a criação de serviços especializados
- como, por exemplo, as brinquedotecas hospitalares - em função das
necessidades da criança reconhecendo que as disparidades educacionais são
inadmissíveis e que só a partir de um empenho coletivo é que dar-se-á a real
inclusão social de todos que estão vivendo em qualquer situação de desvantagem.
No Brasil, a discussão e implementação da importância de
Brinquedotecas em instituições hospitalares é bastante recente. Foi em março
de 2005, com a lei Federal 11.104 (BRASIL, 2005), que se tornou obrigatória a
existência deste espaço pedagógico em unidades de saúde que ofereçam
atendimento pediátrico em regime de internação. Nesta lei, a “[...] brinquedoteca
é considerada como um espaço provido de brinquedos e jogos educativos
destinados a estimular as crianças e seus acompanhantes a brincar.”
O surgimento das brinquedotecas teve como finalidade, segundo Cunha,
“[...] resgatar e garantir o direito à brincadeira e à infância, direito este que está
sendo de tantas maneiras desrespeitados” (CUNHA, 1998, p.40).
As primeiras brinquedotecas surgiram em solo brasileiro nos anos 80.
Nesta fase, houve muitas dificuldades para conquistarem espaço físico e apoio
financeiro. As primeiras experiências deram-se em 1973 com a instalação a
Ludoteca da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de São Paulo,
que fazia rodízio de brinquedos entre as crianças da instituição.
Santos (1995) assim explanou sobre este processo histórico:
[...] em 1981 foi criada a primeira Brinquedoteca brasileira, na Escola Indianópolis em São
Paulo, com objetivos diferenciados das “Toy Libraries” e com características e filosofias
voltadas às necessidades da criança brasileira, onde priorizava o ato de brincar, manti-
nha ainda o setor de empréstimo, atendia diretamente a criança e dava incentivo ao
movimento de expansão da ideia em outras instituições (SANTOS, 1995, p. 8).

70 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


O mesmo autor supracitado também afirmou que:
[...] em 1984 foi criada a Associação Brasileira de Brinquedoteca, o que fez crescer
a movimento no Brasil. Inúmeros eventos foram realizados, começando a surgir
brinquedotecas em diferentes estados brasileiros. Desde então a Associação Brasi-
leira tem se mantido a atuante na divulgação, no incentivo e na orientação a pessoas
e instituições (SANTOS, 1995, p. 8).
Sabendo que a brinquedoteca é um espaço de fundamental importância
para a promoção desenvolvimento lúdico das crianças em diversas situações,
dentre elas, a de internação hospitalar, e que esta é uma prática ainda em
construção em nosso país, o objetivo deste artigo é relatar uma experiência de
oficina de construção de materiais psicopedagógicos, por alunos de graduação
em Pedagogia Plena e de Pós-graduação Lato Sensu em Psicopedagogia e em
Educação Especial Inclusiva, para uma brinquedoteca de uma instituição hospitalar
para crianças com paralisia cerebral e/ou deficiência múltipla.
A relevância de um trabalho desta natureza encontra várias justificativas.
Primeiramente encontramos a importância de estimular o desenvolvimento de
pessoas com paralisia cerebral e/ou deficiência múltipla, hospitalizados, pois a
extensa internação não deve privá-las das oportunidades e experiências de que
necessitam para se desenvolverem dentro de suas potencialidades.
Em segundo lugar está o fato de a brinquedoteca organizada em ambiente
hospitalar ser um recurso essencial para os profissionais da saúde e educação
que trabalham junto a estes indivíduos, pois se a hospitalização for longa ou até
mesmo definitiva – o que ocorre dependendo da gravidade do caso de paralisia
cerebral ou múltipla -, será necessário efetivo apoio psicopedagógico para que
este indivíduo não fique ainda mais defasado no seu processo de aprendizagem
e de desenvolvimento (CUNHA, 2007).
Em terceiro lugar, encontramos a importância da própria experiência
lúdica para o desenvolvimento, que, segundo Vygostsky (1988), são meios que
contribuem e enriquecem o desenvolvimento intelectual, cognitivo e psíquico das
crianças. Assim, preservar e valorizar o brincar é uma maneira de promover
desenvolvimento humano e de fazer história e cultura.
Enfim, vale advertir que o brinquedo está para a criança, como o trabalho
está para o adulto. Encantada com a brincadeira, ela fica concentrada e, nessa
ocasião, é possível desenvolver suas capacidades por meio de algo que a
entretenha. Estando descontraída e estimulada a realizar afazeres e atividades
que lhe trazem alegria, a aceitação da deficiência ou doença fica mais fácil, e o
seu desenvolvimento como um todo será beneficiado (LINDQUIST, 1993).

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 71


Reforçando tais apontamentos, a Organização das Nações Unidas coloca: “Toda
criança tem o direito ao descanso e ao lazer, a participar de atividades de jogos e
recreação, apropriadas à sua idade, e a participar livremente da vida e das artes”
(ONU, 1959). E em nenhum momento se fala em excluir deste direito os indivíduos
que possuem deficiências ou Necessidades Educacionais Especiais (NEE). Muito
ao contrário, aponta-se como essencial o uso de jogos e brincadeiras para a
estimulação destes indivíduos que possuem diversos tipos e graus de dificuldades.
O fato é que para que o processo de hospitalização seja menos traumático,
toda criança internada, seja por que razão for, necessita contar com pessoas
preparadas para estabelecer uma interação afetuosa com ela. E uma das formas
mais naturais de a criança superar os desafios do espaço hospitalar é alguém
brincar/jogar com ela. Jogar e brincar ajuda a superar a dor dos procedimentos
invasivos aos quais é submetida; auxilia, ainda, a conviver melhor com o medo,
fazendo com que a criança se desenvolva em diversos sentidos. Assim, o brincar
tem funcionado como tática de enfrentamento para lidar com a internação, pois
alegra e ameniza as percepções desagradáveis da hospitalização, humanizando
o contexto hospitalar, promovendo desenvolvimento (MOTTA; ENUMO, 2004).
A seguir apresentaremos algumas informações sobre a paralisia cerebral
e a deficiência múltipla, as quais poderão ajudar o leitor a compreender a
importância da construção e uso do tipo de material que foi produzido na oficina
psicopedagógica vivenciada pelos alunos(as) que os confeccionaram .

CARACTERIZANDO A PARALISIA CEREBRAL E A DEFICIÊNCIA MÚLTIPLA


Vamos começar pensando na imagem que nós e a maioria da sociedade
temos da pessoa com Paralisia Cerebral. É fato que geralmente associamos esta
deficiência a uma defasagem intelectual em função dos sérios comprometimentos
de linguagem e de motricidade que observamos, mas, essa ligação nem sempre
é verdadeira.
O filme “Meu pé esquerdo” (1989) retrata com clareza a vida de uma
pessoa com Paralisia Cerebral (PC) e nos faz pensar que apesar dos sérios
comprometimentos físicos e de comunicação que possuem, existe um Homem
dentro de um corpo, que possui e mantém o funcionamento cognitivo preservado,
possui habilidades independentemente de suas limitações motoras.
O termo paralisia cerebral (PC) é usado para definir qualquer desordem
caracterizada por alteração do movimento secundária a uma lesão não progressiva
do cérebro em desenvolvimento.
[...] vale assinalar que PC não é uma doença, mas sim um quadro ou um estado

72 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


patológico. Neste sentido devesse levar em conta que a PC não pode ser curada em
sentido estrito. A lesão como tal, quando existe, é irreversível; contudo, se a atenção,
reabilitação física e a educação da criança forem corretas, é possível obter progres-
sos muito importantes, que a aproximariam de um funcionamento mais normalizado
(COLL; MARCHESI; PALACIOS, 2004, p.215).
Para o Ministério da Educação e Cultura (MEC) (BRASIL, 2006, p.17), a
definição de PC diz que:
[...] ao contrário do que o termo sugere, “paralisia cerebral” não significa que o
cérebro ficou paralisado. O que acontece é que ele não comanda corretamente os
movimentos do corpo. Não manda ordens adequadas para os músculos, em
consequência da lesão sofrida.
O cérebro comanda todas as funções do corpo. Cada área do cérebro é
responsável por uma determinada função, como os movimentos que realizamos:
a visão, a audição e a capacidade intelectual.
Dependendo da lesão e de sua extensão, uma pessoa com PC pode
apresentar alterações que variam desde leves problemas de coordenação dos
movimentos, uma mera maneira diferente para andar até inabilidade total para
segurar um objeto, falar ou deglutir.
O desenvolvimento do cérebro tem início logo após a concepção e
continua após o nascimento. Ocorrendo qualquer fator agressivo ao tecido cerebral
antes, durante ou após o parto, as áreas mais atingidas terão a sua função
prejudicada pela falta de oxigenação das células cerebrais e, dependendo da
importância e grau da agressão a estas células nervosas, certas alterações ou
sequelas cerebrais serão permanentes, caracterizando uma lesão não progressiva,
ou seja, que não avança com o passar do tempo, mas que deixa importantes
vestígios.
Existem outras causas para a ocorrência de uma Paralisia Cerebral.
Estas podem ser pré-natais, como as infecções maternas, a anóxia pré-natal, a
hemorragia cerebral, as alterações placentais, os transtornos metabólicos
maternos, a incompatibilidade sanguínea (fator Rh), anestesia prolongada,
prematuridade (de tempo e/ou de peso), a pós-maturidade.
Também há as causas perinatais (períodos imediatamente anterior e
posterior ao parto): a anóxia perinatal, traumatismo e hemorragia, circular de
cordão umbilical, parto prolongado, variação súbita de pressão, idade materna.
E, ainda, as ocorrências pós-natais: os traumatismos cranianos, as
infecções, os acidentes vasculares, a anóxia, as causas tóxicas, as neoplasias.
A PC pode ser classificada de acordo com a área e topografia corporal

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 73


lesionada e também pelas funções corporais que em decorrência da lesão veio
alterar. Com relação à funcionalidade, os quadros de paralisia cerebral apresentam
como sintomas a espasticidade, a atetose e a ataxia e, em pouquíssimos casos,
também o tremor e a rigidez (COLL; MARCHESI; PALACIOS, 2004).
A paralisia cerebral com espasticidade – ou do tipo espástico - tem como
características as contrações musculares durante o repouso e contrações
musculares que são evidenciadas com esforço ou emoção (susto, ruído...)
Na PC com espasticidade os membros inferiores mostram-se em
extensão e adução. Isto pode ser observado, por exemplo, quando, ao se carregar
uma criança, suas pernas ficam cruzadas como tesouras e os pés em ponta. Já
os membros superiores mostram-se hipertônicos, tensos, sem mobilidade.
Também é uma característica deste tipo de PC a alteração na fala: normalmente
tanto a fala quanto as articulações são inexistentes (BRASIL, 2006).
Na Paralisia Cerebral do tipo atetóide a principal característica, como o
próprio nome já diz, é a atetose, ou seja, dificuldade no controle e na coordenação
dos movimentos: “Quando uma criança que sofre de atetose inicia uma ação,
desencadeia-se uma série de movimentos que tendem a imobilização, interferindo
nela, os movimentos são incontroláveis, extremados e dissimétricos, vão da
hiperflexão à hiperextensão” (BASIL, 2004, p.217).
Na paralisia cerebral do tipo atáxica é a ataxia a sua principal
característica. A palavra ataxia vem do grego ataxis e quer dizer sem ordem ou
incoordenação; é um sintoma, não uma doença específica ou um diagnóstico.
Ataxia significa a perda de coordenação dos movimentos musculares voluntários;
é um termo que cobre uma grande variedade de desordens neurológicas e, portanto,
pode fazer parte do quadro clínico de numerosas doenças do sistema nervoso. A
ataxia pode afetar os dedos, as mãos, os braços, as pernas, o corpo, a fala ou o
movimento dos olhos. A causa mais frequente é perda da função do cerebelo, a
parte do cérebro que serve como centro de coordenação, localizado na parte
inferior e de trás da cabeça, na base do cérebro.
A Deficiência Múltipla pode ser definida como o conjunto de duas ou
mais deficiências associadas, sendo elas física, sensorial, mental, emocional ou
de comportamento social.
Segundo a Política Nacional de Educação Especial do Ministério da
Educação (1994, p.15), a deficiência múltipla: “É a associação, no mesmo
indivíduo, de duas ou mais deficiências primárias com comprometimentos que
acarretam atrasos no desenvolvimento global e na capacidade adaptativa.”
Contreras e Valente (apud Programa de Capacitação de Recursos
Humanos do Ensino Fundamental, 2000, p.48), alertam para a caracterização da
74 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
deficiência múltipla que exige a observância de certos aspectos, tais como:
[...] tem de haver simultaneamente, na mesma pessoa, duas ou mais deficiências
(psíquicas, físicas e sensoriais); essas deficiências não têm de ter relação de depen-
dência entre si, quer dizer, uma das deficiências não condiciona que exista outra ou
outras deficiências; também não tem de haver uma deficiência mais importante do
que a outra ou outras. Estabelecer a importância ou o predomínio de uma deficiência
sobre a outra é difícil e não conduz a nada [...].
Atualmente, também trabalhamos com a definição dada pelos materiais
produzidos pelo MEC:
Considera-se uma criança com múltipla deficiência sensorial aquela que apresenta
deficiência visual e auditiva associadas a outras condições de comportamento e
comprometimentos, sejam eles na área física, intelectual ou emocional, e dificuldades
de aprendizagem. Quase sempre, os canais de visão e audição não são os únicos
afetados, mas também outros sistemas, como os sistemas tátil (toque), vestibular
(equilíbrio), proprioceptivo (posição corporal), olfativo (aromas e odores) ou gustativo
(sabor) (BRASIL, 2006, p.11).
É importante que se diga que crianças com múltipla deficiência sensorial
têm uma variedade de necessidades educacionais especiais e que tais
necessidades se assemelham àquelas que uma criança surdocega possui.
Quando não compromete o funcionamento cognitivo ou psíquico, tem perspectivas
de escolarização bem melhores e, para isso, deve-se considerar as possibilidades
de adequação curricular.
A história mostra que as pessoas que conviviam ou mesmo trabalhavam
com pessoas com deficiência múltipla davam muita ênfase ao que estas pessoas
não podiam fazer, às suas desvantagens e às suas dificuldades, e se “esqueciam”
de observar as suas potencialidades.
Evidenciam esses estudos que os programas das escolas especiais, muitas vezes,
centram-se nas limitações, nos déficits, nas impossibilidades, e não aproveitam as
potencialidades e os recursos que esses alunos dispõem, para que suas possibilida-
des intelectuais e de adaptação ao meio sejam aumentadas (BRASIL,2006a, p19)
Atualmente, esta postura é bem diferente! Busca-se descobrir quais são
as possibilidades que a pessoa apresenta e quais são as suas necessidades, em
vez de se enfatizar somente as dificuldades. Desta forma, tem-se descoberto formas
e métodos para atendê-la mais adequadamente.
A educação de pessoas com múltipla deficiência, no Brasil, de acordo
com Kassar (1999, p.80): “[...] pode ser um tipo de aprendizado novo na vida do
sujeito, por ser acompanhado e sistematizado. Quando bem planejado, propicia
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 75
o seu desenvolvimento, possibilitando seu acesso sistematizado à cultura produzida
historicamente.”
Tanto a convivência com todas as pessoas quanto as trocas de
experiências entre elas irão auxiliar o desenvolvimento dessas crianças que
podem, na maioria das vezes, necessitar de um apoio maior, em função dos
diversos comprometimentos.
Podemos citar Bruno (2001, p.56) que mostra a importância da adequação
dos vários sistemas para que a pessoa com deficiência múltipla possa se expressar:
[...] com formas adequadas de comunicação e interação, com ajudas e trocas sociais
diferenciadas, com situações de aprendizagem desafiadoras: solicitados a formular
escolhas, pensar, resolver problemas, expressar sentimentos, desejos e tomar inici-
ativas.
Assim, as crianças com deficiências múltiplas poderão autorregular seu
comportamento e desenvolver a autonomia social e intelectual, com o apoio dos
familiares e profissionais da Saúde e da Educação.

A construção dos materiais psicopedagógicos: discutindo nossa


experiência

A experiência de confecção de materiais psicopedagógicos pelos alunos


de Pedagogia e de Pós-graduação em Psicopedagogia e em Educação Especial/
Inclusiva, de centro universitário do interior do estado de São Paulo, teve início
com uma discussão teórico-prática sobre a importância da ludicidade para o
desenvolvimento e Educação dos seres humanos, particularmente para aqueles
que se encontra em alguma situação de desvantagem, como é o caso que
relatamos aqui.
Além disso, todos os alunos também foram estimulados a refletir acerca
do tipo de material que seria relevante para a clientela atendida pela brinquedoteca
hospitalar em construção: indivíduos com paralisia cerebral, de diversos tipos e
graus, ou com múltiplas deficiências. As discussões que surgiram trouxeram a
tona o fato de a brinquedoteca localizada em um hospitalar requerer atenção e
cuidados peculiares com os brinquedos. A grande preocupação inicial foi com a
escolha de materiais, os quais devem permitir desinfecção após o sua manipulação,
já que é público e notório que a infecção hospitalar, ainda é, em pleno século XXI,
um grande problema de Saúde Publica, que representa um sério a vida risco
dentro dos Hospitais brasileiros. Desta forma, os alunos forma orientados a
escolherem materiais que permitissem higienização dos brinquedos após o seu

76 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


uso por crianças e/ou profissionais, de maneira a não serem agentes
contaminadores, direta ou indiretamente (CARDOSO, 2007, p. 147-148).
O outro ponto trabalhado com os alunos durante a construção dos
materiais psicopedagógicos diz respeito aos tipos de habilidades e conhecimentos
que seriam desejáveis que fossem trabalhados junto aos indivíduos hospitalizados.
Sabe-se que a paralisia cerebral e as deficiências múltiplas não tem
cura. Porém, existem diversos recursos tecnológicos, educacionais e clínicos
que possibilitam a melhora na qualidade de vida das pessoas com essas
deficiências. Estes progressos não são súbitos, mas demorados, avançando
progressivamente e na dependência direta dos recursos tecnológicos, como o
uso da Informática na Educação e dos recursos terapêuticos – jogos, brinquedos,
por exemplo - colocados à disposição da comunidade. Assim, vários materiais
foram construídos com o objetivo de estimular a motricidade (FIGURAS 1, 2, 3 e
4), a senso-percepção (FIGURAS 5, 6 e 7), a aquisição da leitura, do sistema
numérico (FIGURAS 8, 9, 10), a atenção, a concentração (FIGURAS 11 e 12) e
também adaptação de material já existente no mercado (FIGURA 13). As fotos a
seguir ilustram estes diferentes materiais produzidos. Chamamos a atenção ao
fato de serem resistentes, grandes e coloridos, para garantir o interesse e motivação
de seus usuários.

Figura 1 – Material plástico, papelão, madeira e arame.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 77


Figuras 2 e 3 –. Material usado: plastificado, madeira, papelão, e pregadores plásticos de
roupa.

Figura 4 - Bonequinhos feitos com varias bexigas para dar resistência e cheios de farinha de
trigo. Bom para treinar força manual.

Figuras 5 e 6 – brinquedos para estimulação tátil, sonora e visual. Material usado isopor,
feltro e diversos materiais para diferenciação tátil.

78 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Figura 7– Bola engraçada: possui dispositivo para som e luz quando a criança aperta e
diferentes percepções táteis.

Figuras 8 e 9 – Jogos para estimular raciocínio matemático: numero/quantidade e encaixe


E.V.A, desenhos em alto relevo.

Figura 10 - Números de material plástico e imantados para se trabalhar as 4 operações


matemáticas

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 79


FIgura 11 - Caixa móvel, jogo da memória associado aos números

Figura 12 – Quebra-cabeça e jogo da memória das cores. Material utilizado feltro, plastificado
colorido, figuras e papelão.

Figura 13 – Giz de cêra adaptado: engrossado para alunos com dificuldade na motricidade
fina. Plástico colorido e papelão.

Sabemos que a aprendizagem ocorre a partir de um processo de construção


diária, pelo qual todo o indivíduo passa, independente de suas condições motoras
e/ou cognitivas. Crianças com deficiências, que apresentam dificuldades de
exploração, que variam de acordo com o grau de comprometimento imposto pela
patologia que apresentam, necessitam de ter acesso a formas de comunicação
alternativa (FIGURAS 14,15,16,17 e 18); estas são ferramentas indispensáveis na
inclusão de pessoas com algum tipo de deficiência, principalmente se nos

80 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


referimos às pessoas com dificuldades na comunicação (oral e escrita),
funcionalidade e locomoção. Alguns materiais foram construídos com esta
finalidade, como mostrado abaixo:

Figuras 14 e 15 – Vogais, consoantes e frases construídos em folhas imantadas e a


base é uma prancha imantada.

Figura 16 – Sinais referentes a SIM e NÃO, para facilitar a comunicação de


pessoas que não possuem uma fala inteligível

Figura 17 - Livro com imagens, letras e Braille, alfabeto em Libras, todos


plastificados e emborrachados.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 81


Figura 18 – Painel de letras móveis para formar palavras. Material utilizado
madeira, feltro e isopor.

Considerações finais
As distintas visões sobre o valor da brinquedoteca e do brincar para o
desenvolvimento humano, trazem como pressuposto de que é por meio das
brincadeiras que as crianças e adolescentes exploram, desvendam, aprendem
sobre o mundo que a circunda, sobretudo em situação de internação hospitalar. A
brinquedoteca mostra-se, portanto, como uma alternativa de desenvolvimento
para estas crianças e adolescentes, podendo ressignificar sua própria
aprendizagem, dar autonomia para o sujeito/educador ser agente de sua própria
história na interação com outros afetivamente significativos para eles (NOFFS,
2000).
Os diversos comprometimentos presentes em indivíduos com PC ou com
múltiplas deficiências podem causar sérios danos na área cognitiva necessitando
de profissionais especializados da área de fisioterapia, terapia ocupacional bem
como adaptações educacionais. Mas mesmo na presença desses
comprometimentos é fundamental que a autoestima destas pessoas esteja
elevada, pois assim ela conseguira se integrar e interagir no grupo. Podemos citar
Taille (2002, p.45) “A autoestima é o elo entre o gostar e o aprender, o partir e o
chegar, o perder e o achar. Ela está ao alcance de quem consegue enxergar,
seguramente, a ponte entre o sonho e a realidade”. Jogar e brincar podem
contribuir tanto para o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades quanto
para aumentar a autoestima e autoimagem de indivíduos que apresentam serias
limitações.
Além do mais, dois fatores vão influenciar na qualidade e na velocidade
do desenvolvimento cognitivo de toda e qualquer criança: a possibilidade e a
capacidade de interação com o meio e a natureza desse meio. Neste sentido, a
disfunção neuromotora pode interferir na auto exploração e na exploração do

82 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


ambiente; entretanto, isso não significa que a capacidade cognitiva esteja
severamente comprometida. A redução da capacidade exploratória limita as
experiências sensoriais e perceptivas, atrasando a aquisição dessas informações,
o que poderá ser minimizado através de planejamentos de ensino adequado às
condições dos indivíduos com este tipo de disfunção. Jogos e brincadeiras devem
ser o alicerce destes planejamentos, pois motivam, propiciam inúmeros estímulos
desenvolvimentais, além de alegrar e humanizar o ambiente hospitalar.
RODRIGUES, L. R.; PAULI, S. C. de. Workshop for building materials psychopedagogic
aplayroom forchildren with cerebral palsy and/or multiple hospitalized: experience
report. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.9, n.1 e n.2, 2013, pp. 69-85.
ABSTRACT: Find yourself into a hospital for a long period of time , may hinder the
full development of children and adolescents . The harmful effects of extensive
hospitalization can be minimized if the institution expect a hospital playroom,
organized with psycho-pedagogical resources that may promote the recreational
development of these individuals , providing opportunities and experiences they
need to develop their potential with in . As the play a guaranteed right by various
laws , the aim of this study was to report the experience of building workshop
psycho-pedagogical materials for undergraduate students of Pedagogy Full and
Post graduation Lato Sensu in Educational Psychology and Special Education
Inclusive , for a playroom at a hospital for individuals with cerebral palsy and / or
multiple disabilities . By way of illustrative images, the various materials produced,
which were constructed with study , large and colorful material, easy to clean are
presented. We attempted to fabricate resources able to come enable the use of
alternative communication, stimulation of motor skills, sense - perception, reading
acquisition , the numerical system , attention and concentration . The experience
of constructing these materials was significant for students and teachers , as motivate
and provide a discussion on the importance of playfulness as a stimulus to the
development and learning in the hospital context.
Keywords: hospital; playful; playroom; Cerebral Palsy; multiple disabilities.

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DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 85


86 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
A VISÃO DE ALUNAS DO CURSO DE PEDAGOGIA SOBRE O
ENSINO DE ARTE PARA AS CRIANÇAS: CONTRIBUIÇÕES
PARA A EDUCAÇÃO DO EDUCADOR POLIVALENTE

Liliane Cury Sobreira*


Natalina Ap. Laguna Sicca∗∗

Resumo: Este estudo é parte da pesquisa que está sendo desenvolvida no


Programa de Mestrado em Educação voltada para a formação inicial de professores
no curso de Pedagogia. Particularmente é referente a questões curriculares das
metodologias específicas voltadas para o ensino de artes para crianças. Formar
para ensinar Arte como componente curricular ou como um dos eixos de projeto
temático interdisciplinar? Qual o papel atribuído pelas alunas do curso de Pedagogia
à Arte na formação de professores? Neste sentido, o estudo tem como objetivo
compreender a visão de alunas de um curso de Pedagogia sobre o ensino de arte
na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
PALAVRAS-CHAVE: arte educação; currículo; formação docente.
Introdução
A partir da prática docente no campo da arte nos cursos de Pedagogia,
ministrando as disciplinas voltadas para as metodologias específicas para o ensino
de arte, encontramos indícios de que a formação na educação básica, de muitas
alunas, promoveu uma visão distorcida sobre a arte, quanto a sua função social e
contribuição para a educação, além de criar preconceitos e bloqueios nas
diferentes formas de expressão.
Dessa vivência questões instigantes surgiram: o que pensam os alunos
do curso de Pedagogia sobre a disciplina de arte e como entendem a sua relação

*
Mestranda em Educação pelo PPGE “C. U. Moura Lacerda”. Especialista em História da Arte pela
FAAP; em Teatro, Música e Dança para Educadores pela UNIFRAN; História, Cultura e Sociedade pelo
C.U. Barão de Mauá. Licenciada em Pedagogia pelo C. U. Barão de Mauá. Docente dos cursos de
Pedagogia e demais Licenciaturas do C. U. Barão de Mauá e do curso de Pedagogia do C. U. M. L. .
Email: Liliane.cury@baraodemaua.br
**
Doutora em Educação pela UNICAMP. Mestre em Educação pela UNICAMP. Licenciada em Química
pela USP. Licenciada em Pedagogia pelo C.U. Barão de Mauá. Coordenadora do PPGE do CUML/
Ribeirão Preto. Profa. aposentada da USP. Líder do grupo de pesquisa Currículo, História e Poder do
CUML registrado no diretório de grupos do CNPQ. Lider do grupo de pesquisa “ Interdisciplinaridade e
Ciência do Sistema Terra como eixos para o Ensino Básico”.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 87


com a educação? O que presenciam esses alunos estagiários ou assistentes de
classe em escolas públicas e particulares sobre o trabalho com a arte? De certo
modo queremos perceber como a arte passou a fazer parte da história de vida de
alunas do curso de Pedagogia e obter indícios sobre como o ensino de Arte vem
acontecendo na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental.
Neste sentido, o presente estudo está voltado para questões curriculares
do ensino de metodologias específicas para o ensino de arte na formação de
professores para os anos iniciais do ensino fundamental. Particularmente pretende
compreender a visão das alunas de um curso de Pedagogia sobre tal ensino.
Trata, portanto, da inter-relação entre questões curriculares e de formação de
professores.

Algumas considerações sobre a arte e a educação em arte


Entende-se arte enquanto uma das formas de expressão que trás como
pressupostos o conhecer, o exprimir e o fazer; condições estas que, segundo o
filósofo francês Luigi Pareyson, em sua obra “Os problemas da estética”,
alternaram-se ao longo da história. Porém, a visão de arte enquanto fazer
proveniente do sentir constituiu-se um habitus que regula as escolhas sociais e
reflete nas práticas educacionais na medida em que a Arte é entendida de forma
reduzida, como representação em traços e cores perfeitas de uma realidade
aparente, decorrente da visão acadêmica europeia herdada pela Escola de Belas
Artes brasileira, influenciando a formação, o gosto e os padrões referenciais para
analisar e estabelecer juízo de valor ás obras de arte e aos artistas. A arte da
perfeição, da harmonia e da não transgressão.
A arte não se resume no fazer, no executar perfeitamente tarefas
consideradas artísticas idealizadas segundo regras previamente estabelecidas;
isso não define a sua essência. A arte, seus saberes e fazeres, também é invenção
“[...] é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer.[...] nela
concebe-se executando, projeta-se fazendo, encontra-se a regra operando[...]”
(PAREYSON, 1997, p. 26); pois ao fazer, o próprio homem se configura e se
reconfigura. Aprende-se fazendo, educa-se educando; portanto, aprende-se educar
em arte e educa-se com e para ela educando.
Quando vemos uma jarra de argila produzida há 5 mil anos por algum artesão
anônimo, algum homem cujas contingências de vida desconhecemos e cujas valori-
zações dificilmente podemos imaginar, percebemos o quanto esse homem, com um
propósito bem definido de atender certa finalidade prática, talvez a de guardar água
ou óleo, em moldando a terra, moldou-se a si próprio. [...] o homem impregnou-a

88 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


com a presença de sua vida, com a carga de suas emoções e de seus conhecimen-
tos. Dando forma à argila, ele deu forma à fluidez fugidia de seu próprio existir,
captou-o e configurou-o. Estruturando a matéria, também dentro de si ele se estruturou.
Criando, ele se recriou. Em todas as matérias com que o homem lida se fará sentir
sua ação simbólica. Em todas as linguagens, ao articular uma matéria, o homem
deixa a sua marca, simboliza e indaga [...].(OSTROWER, 2009, p. 52-53).
O fazer formativo pela ação educativa pressupõe que o homem, no ato de
formar e educar, também se reconfigura. Ao lidar com a matéria, ele deixa a sua
marca de tal maneira que todo o seu fazer torna-se um eterno devir – um vir a ser
que pressupõe educar a si e ao outro presente neste processo.
Assim consideramos a educação de e com a arte como base de análise
dos depoimentos dos sujeitos nele envolvidos.

Um olhar sobre o curso de Pedagogia numa perspectiva histórica.


O curso de Pedagogia foi criado no Brasil em 1939 voltado para a formação
de bacharéis especialistas em Educação e mais tarde, complementarmente,
também teve a atribuição de formar professores para as Escolas Normais. Nesta
época, a formação de professores para o ensino primário era atribuição do curso
Normal.
O curso de Pedagogia e o curso Normal tiveram finalidades diferentes e
sofreram várias reformas ao longo do século XX, tendo sido extinto o curso Normal
durante a implementação da lei 5692/71, época em que a formação do professor
para as séries iniciais do ensino fundamental, na época denominado primeiro
grau, foi compreendida como uma das habilitações técnicas de nível médio. É
com a promulgação da LDB 9394/96 que a formação do professor da educação
básica, preferencialmente, passa a se dar no nível superior.
No contexto de vários debates entre educadores foram promulgadas as
Diretrizes Curriculares para o curso de Pedagogia, em 2006, documento este que
direciona a elaboração das matrizes curriculares de tais cursos e os Projetos
Políticos Pedagógicos da referida graduação no Brasil. Se anteriormente, os cursos
de Pedagogia destinavam-se á formação de gestores e pesquisadores da área da
educação, a partir de tal documento assume também responsabilidade da
formação de professores da educação infantil e séries iniciais do ensino
fundamental.
Neste sentido, na medida em que o curso de Pedagogia passou a ter
como uma das finalidades a formação de professores, vimos que alguns trechos
das Diretrizes são importantes para compreendermos o papel do ensino de arte

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 89


neste curso.
Consta das Diretrizes Curriculares Nacionais no Artigo 3º que:
O estudante de Pedagogia trabalhará com um repertório de informações e habilida-
des composto por pluralidade de conhecimentos teóricos e práticos, cuja consolida-
ção será proporcionada no exercício da profissão, fundamentando-se em princípios
de interdisciplinaridade, contextualização, democratização, pertinência e relevância
social, ética e sensibilidade afetiva e estética (BRASIL, 2006, p.01).
No contexto deste trabalho também é importante destacar que no artigo
5º ao definir o perfil do licenciado em Pedagogia, consta das referidas Diretrizes
que o mesmo deve estar apto a [...] “ensinar Língua Portuguesa, Matemática,
Ciências, História, Geografia, Artes, Educação Física, de forma interdisciplinar e
adequada às diferentes fases do desenvolvimento humano;” [...] (BRASIL, 2006).
A utilização da cultura visual nas sociedades tecnologicamente
estruturadas, os avanços na reprodução de imagens associado à falta de preparo
dos indivíduos para compreender o poder dessas imagens, dão sentido à exigência
legal do ensino de arte nas escolas. Linguagens visuais, representações,
movimentos, sons e a comunicação se complementam; portanto, faz-se
necessário o desenvolvimento das habilidades de ver, observar, experienciar e
comunicar; ou seja, decodificar. Tais pressupostos do ensino da arte na educação
básica justificam a introdução das metodologias específicas voltadas para as
linguagens da arte nos currículos dos cursos de Pedagogia. Assim, a escola se
torna um espaço que tem como função a de preparar os indivíduos para usar de
forma crítica e democrática as informações que estão disponíveis à todos. Sendo
a educação a base cultural de um povo,
[...] então são necessários professores que dominem os conteúdos da cultura e da
ciência e os meios de ensiná-los, além de serem portadores de outros requisitos,
como formação cultural, formação pedagógica e condições favoráveis de salário e
de trabalho (LIBANEO, 2010, p. 580).
Gatti et al. (2011) ao analisar as matrizes curriculares de 71 cursos
presenciais de Pedagogia no Brasil, concluiu que a parte do currículo voltada
para formação específica do professor (didáticas específicas, metodologias e
práticas de ensino) representa 20,7%. Conclusão semelhante se dá no estudo de
Libâneo (2010, p. 567) que ao analisar 25 cursos de Pedagogia em Goiás, con-
clui que tal parte do currículo corresponde a 28,2%. Para o autor, o currículo
proposto pelos cursos de formação de professores tem uma característica frag-
mentária, apresentando um conjunto disciplinar bastante disperso. O autor ainda

90 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


ao analisar as ementas das disciplinas voltadas para a formação profissional
específica conclui que as mesmas “não evidenciam articulação entre os funda-
mentos, os conteúdos e as metodologias de ensino das disciplinas”.
Os aspectos indicados pelas pesquisas dos referidos autores, associados
às questões curriculares da disciplina de arte não somente nos instigam a pesquisar
a parte da formação específica dos professores, mas, também, assumir outro
caminho. Libâneo (2010) e Gatti et all (2011) procederem à análise documental
das ementas das disciplinas de cursos de Pedagogia, neste trabalho nosso traçado
está voltado para ouvir os sujeitos dos referidos cursos, as alunas.
Assumindo que a formação inicial tem um peso considerável na
construção da profissionalidade docente; ou seja, no desenvolvimento de saberes,
habilidades, atitudes e valores que constituem a especificidade do ser professor,
nos apoiamos em André (2012, p.36) que afirma que:
Os cursos de licenciatura têm um papel fundamental na socialização profissional dos
futuros professores. É o momento em que os modelos de práticas docentes
preexistentes são aprimorados, remodelados, apreendidos e/ou refutados. Seja por
meio dos conhecimentos que são veiculados nos cursos de formação, seja pelas
experiências, interações, vivências variadas às quais, nessas situações, os estu-
dantes são expostos.
A autora ainda indica que:
Em qualquer projeto formativo é preciso reconhecer os alunos como protagonistas
da própria formação. Talvez a mais importante constatação do estudo tenha sido a
compreensão de que, se pretendemos formar melhores professores, é necessário
ouvir os alunos dos cursos de formação de professores, entendendo-os como sujei-
tos participantes do projeto formador, capazes de refletir e oferecer contribuições
para a organização curricular do curso (ANDRÉ, 2012, p. 48).
Apoiando-se em tais estudos e buscando contribuir para a compreensão
do currículo das metodologias específicas voltadas para o ensino de arte, este
trabalho objetiva compreender a visão de alunas de um curso de Pedagogia,
sobre o ensino de arte na educação infantil e nos anos iniciais do ensino
fundamental.

Procedimentos Metodológicos
Para verificar a visão das alunas sobre a própria formação em arte, sobre o
ensino de arte nos anos iniciais do ensino fundamental e na educação infantil
elegemos como participantes da pesquisa, oito alunas do 7º período, de um curso
de Pedagogia, presencial, do interior de São Paulo. Tais alunas já concluíram as

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 91


disciplinas de Artes Visuais na Educação Infantil (80 horas) e Conteúdo e Metodologia
do Ensino de Arte (40 horas), ministradas no 4º e 5º períodos do referido curso. Para
manter o sigilo as alunas são nomeadas por letras neste trabalho.
Trata-se uma pesquisa de campo com caráter qualitativo (BOGDAN;
BIKLEN, 1994) cujos dados foram coletados por meio da aplicação de um
questionário e do grupo focal.
O questionário (GIL, 1999) foi elaborado com questões objetivas visando
identificar os sujeitos da pesquisa quanto à atuação na educação básica,
caracterização da escola, a formação do educador responsável pela a disciplina
de arte (especialista em arte) e a formação do professor que trabalha com a arte
na educação. O questionário foi respondido individualmente pelas oito
participantes, na Instituição de Ensino Superior.
Em seguida foi desenvolvido o Grupo Focal.
O Grupo Focal enquanto técnica de coleta de dados tem como propósito:
[...] compreender processos de construção da realidade por determinados grupos
sociais, compreender práticas cotidianas, ações e reações a fatos e eventos, com-
portamentos e atitudes, constituindo-se uma técnica importante para o conhecimento
das representações, percepções, preconceitos, linguagens e simbologias prevalentes
no trato de uma dada questão por pessoas que compartilham alguns traços em
comum, relevantes para o estudo do problema visado (GATTI, 2005, p.10).
Esta técnica, por seu caráter flexível, tem sua constituição em função do
problema da pesquisa, exposto com clareza sem perder de vista os objetivos
propostos. Sua aplicação privilegia a comunicação e as interações estabelecidas
entre os sujeitos participantes promovendo a reflexão e as trocas entre eles, as
quais serão o objeto de análise que elucidarão o(s) problema(s) levantado(s) pela
pesquisa a partir de conceitos concretos.
O grupo focal reúne pessoas selecionadas para discutir o objeto da
pesquisa a partir de um roteiro previamente elaborado, que estabelece
criteriosamente os aspectos a serem discutidos conforme as experiências
pessoais. Nesta fase da pesquisa foi realizada uma seção de grupo focal que
durou duas horas e 30min. Esta foi gravada por meio de áudio e vídeo, e transcrita
posteriormente pela pesquisadora, também moderadora das discussões.
A análise dos dados foi realizada por meio da leitura da transcrição dos
relatos obtidos pelo grupo focal, considerando nesta análise tanto os conteúdos
das falas das alunas como os trechos dos diálogos estabelecidos. As categorias
de análise foram decididas a posteriori sendo que neste trabalho são: o que lembro
que aprendi no ensino básico em aulas de arte; a disciplina de arte no curso de

92 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


pedagogia e como a arte tem sido ensinada no ensino básico.

O contexto
O curso de Pedagogia que se constitui como contexto desta pesquisa
localiza-se numa instituição tradicional de uma cidade do interior de São Paulo,
sendo ministrado de forma presencial.
A análise da matriz curricular do referido curso revela que as disciplinas
voltadas para as metodologias específicas de arte, objetivam habilitar os
professores para a atuação em arte e/ou com a arte na educação infantil e séries
iniciais do ensino fundamental. Estas são oferecidas em dois semestres
sequenciais. A primeira, a disciplina de “Artes Visuais na Educação Infantil”, com
carga horária de 80hs, é especificamente voltada para a linguagem das artes
visuais na educação infantil a partir de uma leitura crítica dos Referenciais
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e autores pesquisadores da arte
educação. Na sequência semestral a disciplina de “Conteúdo e Metodologias
para o Ensino de Arte”, com carga horária de 40hs, aborda as quatro linguagens
da arte e se apoia também em leitura crítica dos Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino de Arte e autores pesquisadores das metodologias para
a educação em arte.
O Planejamento contempla, na carga horária estipulada para cada
disciplina, a fundamentação teórica necessária ao posicionamento das alunas
quanto a arte, sua relação com a educação e o desenvolvimento de atividades
práticas voltadas para os objetivos das disciplinas: fornecer suporte para que o
futuro professor domine os fundamentos teórico-metodológicos para o trabalho
nesses níveis da educação básica, ser habilitado não somente a estabelecer
relações pertinentes entre os conteúdos, a metodologia e a avaliação do ensino,
como também a utilizar a arte como um dos elementos do trabalho interdisciplinar
como coloca a legislação. O que não garante a qualidade tanto do uso da arte
como a do seu ensino.

Identificação das alunas do curso de Pedagogia


Conforme questionário aplicado para a identificação dos sujeitos
participantes da pesquisa, eles possuem entre 20 e 39 anos de idade e sete, das
oito participantes, tiveram sua formação na educação básica em escolas públicas;
sendo somente uma formada em escola particular. Quatro delas são “assistentes
de classe” na educação infantil, em escolas particulares; duas participam do

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“Programa Bolsa-Alfabetização” do Programa Ler e Escrever da Secretaria de
Estado da Educação e duas, não têm atividades voltadas para a área da educação
fora da Instituição em que cursam a Pedagogia.
Em uma das escolas particulares de Educação Infantil em que duas
participantes do grupo focal são assistentes de classe, o ensino de arte se dá por
meio de projetos temáticos, sendo a arte o eixo de desenvolvimento dos mesmos.
As professoras responsáveis são professoras polivalentes e participam
continuamente de programas de formação continuada. Nas outras escolas
particulares, as atividades também são de responsabilidade do professor
polivalente sendo trabalhadas diariamente.
Nas escolas do Programa Bolsa – Alfabetização do Projeto Ler e Escrever
da Secretaria da Educação as outras participantes são estagiárias e a disciplina
é de responsabilidade do professor especialista; a carga horária de
desenvolvimento é de duas horas aulas semanal. Nelas não se observa a
preocupação em relacionar os conteúdos de forma a interdisciplinar, ou seja, os
conteúdos da arte com os tratados pelo professor titular, sendo as atividades em
arte separadas dos demais conteúdos escolares desenvolvidos em classe.

Resultados: o que lembro que aprendi no ensino básico em aulas de arte.


As primeiras revelações apresentadas pelas alunas foram sobre a formação
em arte que receberam na educação básica. Por exemplo, a aluna “C”, ao se
lembrar de uma professora da referida disciplina de sua infância afirma que:
[...] foi há 30 anos; mas assim: eu lembro de três coisas que me marcaram: obras de
arte nunca! Acho que nem os professores conheciam muitas obras de arte. Mas eu
me lembro assim, das atividades que a gente gostava era a coisa de textura; mas no
máximo, no máximo, ela pedia pra gente levar alguns tipos de folha, de folha de
árvore, de planta, sei lá o que.....e aí, a gente colocava por baixo da folha e
desenhava com um tema.
Lembro também de uma que ficou marcada aqui na minha cabeça. Ele pediu pra
levar vários tipos de sementes e aí fazíamos colagem com aqueles tipos de sementes,
textura, colado no durex pra fixar as sementes na folha, e aí, eu fiquei meio traumatizada
que uma vez, foi na 3ª série.
A professora tinha uma habilidade bem acentuada pra educação artística; ela fazia
uns desenhos maravilhosos, ela fazia umas coisas assim diferentes, lembrando.
Quando tinha gincana ela ficava encarregada da parte artística e aí, tinha que levar
um animal e ela levou um tatu. Ela fez a roupa do tatu cheia de babado, colorida,
então eu achava o máximo a professora fazer aquelas coisas.

94 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


[...] ela tinha uma protegida na sala que também tinha um pouco mais de habilidade,
e ela assim... meio que esquecia as outras alunas, né! E tanto, que teve um concurso
cultural que ela escolheu que aquele desenho daquela aluna fosse....nem era tanto
assim, sabe? Sabe umas coisas que marcam assim; tipo a professora que acaba
tendo certas preferências dentro da sala por conta do aluno ter maior habilidade ou
não. De repente é pessoal a coisa (ALUNA C, 2013).
No relato acima a aluna “C” coloca pontos positivos e negativos; entre os
negativos há falas que denunciam a falta de consistência na formação do
profissional, de habilidade didática e o reflexo disto na prática docente bem como
atitudes que reproduzem no ensino a visão de arte como técnica decorrente da
escola tradicional em que ela deveria retratar com habilidade e perfeição o objeto
de apresentado.
Sobre a formação do docente para a prática pedagógica Veiga e Viana
(2012, p. 23) apontam que:
A formação do professor como espaço de ação humana exige um compromisso de
adequação intencional do real ao ideal. Exige também uma articulação entre os
interesses individuais e coletivos. Assim é possível referirmo-nos á formação pessoal
e coletiva.
Em seguida, temos a aluna “V” assim se manifestando:
A minha visão de arte foi boa; mas eu não aprendia nada em relação a obras,
quadros, nada. Era bem voltada para o artesanato acho que por pressão também
cultural da Bahia.
Então todo mundo gostava da aula de artes era todo mundo concentrado, não tinha
bagunça igual hoje. Eles se liberam na aula de arte. Mas o professor que é prepa-
rado para isso ele não estranha essa postura das crianças.
Da minha formação eu gostava, aprendi muita coisa de artesanato: bordado, cro-
chê, até desfiar o saco e trançar ele. Então, era interessante. Os meninos aprendiam
a lixar madeira, fazer caixinhas pra por joias....aí no final, alguns faziam até pra
vender na feira. Era legal mas não era voltado pro ensino de arte que é hoje não
(ALUNA V, 2013).
No relato da participante “V” sobre as aulas de arte verificamos que na
sua formação as atividades desenvolvidas eram no campo dos trabalhos manuais
artesanais, porém, tratadas como arte; por exemplo, bordado, crochê, desfiar o
saco e trançar para as meninas e os meninos, aprendia a lixar madeira, fazer
caixinhas porta joias e que alguns faziam pra vender, atribuindo esse ensino às
questões culturais regionais e ainda indica a ausência do conhecimento de obras

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 95


de arte. “V” reconhece que o ensino de arte recebido até então, tinha como objetivo
habilitar os alunos para a construção de objetos que pudessem ser comercializados
na feira local.
[...] Na prática, o ensino de desenho nas escolas primárias e secundárias fazia
analogias com o trabalho, valorizando o traço, o contorno e a repetição de modelos
que vinham geralmente de fora do país; o desenho de ornatos, a cópia e o desenho
geométrico visavam à preparação do estudante para a vida profissional e para as
atividades que se desenvolvam tanto em fábricas quanto em serviços artesanais
(FERRAZ; FUSARI. 2010, p. 30).
Os elementos citados pelas alunas anteriores também estão
contemplados no relato da participante “A”, que assim se expressa: “[...] eu lembro
que a gente tinha que ter um caderno de desenho, só isso. Todas as aulas de arte
eram pra você abrir o caderno e fazer o desenho que você quisesse.” Nesse
sentido, temos uma visão do ensino de arte pautado no conceito de “desenho
livre”, tendência fortemente difundida no ensino de arte escolanovista, cuja ênfase
recai sobre a livre expressão do aluno como produto da subjetividade que
transforma dados intelectuais em subjetivos, indicando a não interferência do
professor no trabalho criativo do aluno e com isso, levando ao extremo atitudes de
inúmeros professores. Na realidade o que essa tendência propunha era a
exploração da criatividade e da livre expressão do aluno - o aprender fazendo.
A participante “V” também comenta que nas aulas de arte faziam caixinhas
de presente, garrafa pet, sucata; segundo ela, “[...] era bem legal também, mas a
gente nunca falava em Leonardo da Vinci, Tarsila do Amaral; nada, imagina! Lá
não tinha nada disso não” (ALUNA “V”, 2013).
Somente três alunas, das oito participantes, tiveram uma formação
diferenciada:
A minha, eu tive artes desde o pré; na época era pré, até o 2º ano do colegial. E
assim, foi super bacana. Toda vez que a gente ia pra sala de artes ou ficava na
própria sala, a professora....tinha um professor e uma professora; ela preparava o
ambiente e assim, pra introduzir o conteúdo eles se caracterizavam de Mona
Lisa....faziam um círculo na sala... (ALUNA F, 2013).
A minha experiência, embora em escola pública foi muito boa! Tive duas professoras
e lembro delas até hoje. A única diferença é que uma era perfeccionista demais e a
outra não se dava com a nossa sala deixava muito, muito a desejar. Mas aprendi
fazer desenho com grafite, desenho com abstrato, fazer ai! Aquelas telas com azule-
jo..... (mosaico). A gente mexeu com argila, minha mãe trabalha artes então, ela
sempre ajudava a pintar, a fazer alguma coisa (ALUNA P, 2013).

96 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Que eu me lembro, na aula de artes foi uma professora que eu até achei que ela foi
boa. Ela trabalhava pontilhado, questão de textura, ela colocava a gente pra fazer
artesanato, miçanga, então, o que eu me lembro dela? Até o nome dela eu me lembro
até hoje [...]. O que eu aprendi com ela foi muito bom. Lá em Pradópolis eu a vejo na
rua, ainda. E com ela, as experiências eram realmente boas. A dos outros eu não me
lembro não (ALUNA M, 2013).
Porém, no final desta fala outra aluna, “C”, se pronuncia reconhecendo
que “Hoje em dia tem muito mais recurso; o professor tem muito mais chance de
trabalhar. Então eu considero que foi muito rica a minha experiência na parte da
aula de arte”.
Uma das alunas reflete que “se minha formação fosse mais consistente
hoje isso poderia estar incorporado na minha prática”. Com isso ela associa a sua
formação básica ás aulas no curso de Pedagogia.

Sobre a disciplina de arte no curso de Pedagogia


As alunas refletiram no grupo focal sobre as disciplinas voltadas para as
metodologias específicas para a o ensino de arte no curso de Pedagogia. Por
exemplo, assim se expressou a aluna “V”:
[...] no meu caso as aulas também, despertou assim esse lado que não me chamava
ainda a atenção; acho que pelo fato também de não fazer parte do meu dia a dia. Me
deu um outro olhar a arte; eu não consigo passar por um quadro sem ir lá, sentar,
ver o nome do pintor, isso me despertou e eu sei que eu tenho que aprender muito
até pelo lugar onde eu trabalho hoje, na escola, já foi um avanço muito grande . Até
pelo fato que já fui ao MASP (visita à exposição Caravaggio e seguidores a qual
pressupôs pesquisa anterior sobre o artista, seus seguidores, as obras expostas e
outras de grande importância artística). [...] até a visita a arte não me chamava a
atenção; você desconhece ( Aluna V, 2013).
Eu tenho grande afinidade por natureza; desenho de natureza assim eu amo assim,
também por que eu vivi no sítio, né? Então hoje, se eu tenho um quadro, uma certa
pintura abstrata, imagina! Isso pra mim eu tava me sentindo uma burra; hoje eu
quero ver tudo, se eu consigo perceber alguma coisa ....então, despertou essa parte
de apreciar e entender. [...] por que a arte nos faz sentir mais críticos e ninguém
gosta de pessoas críticas; as pessoas críticas “dão trabalho”. Hoje o professor de
educação artística não tem que saber só a parte de desenho, de pintura; ele tem que
ter uma gama de conhecimentos na arte...
Acho que o educador, ou o professor tem um papel fundamental... (ALUNA C, 2013).
Eu percebo assim que, durante as aulas, desde o primeiro momento, do primeiro

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 97


contato até o final, fomentou muita coisa em mim, realmente assim: tem que ir atrás,
tem que buscar, pesquisar, conhecer. Lembro a professora trabalha muito a pessoa,
o professor, ela dá muitas referências. A técnica eu e a “F” (colega de classe e de
trabalho) vamos buscar, pedir ajuda nesse sentido, por ex: quais pintores retratam
esse tipo de arte? Naife ou náife, em tal e tal temática como que eu posso então
abordar tal temática ... qual pintor? Por que a gente não tem esse repertório. Esse
repertório vem somando assim, muitas coisas a gente aprendeu na aula: nome de
pintores, nome de técnicas, a própria arte em si como surgiu, por que surgiu, de
onde veio, toda essa bagagem a gente não tinha (ALUNA P, 2013).
Na minha prática, esse olhar de criticidade, de olhar as coisas com uma seriedade
maior .....quando aquele momento ali de atividade sensorial, que as vezes poderia
ser apenas uma coisa passageira ( ALUNA F, 2013).

A visão das alunas sobre as mudanças provocadas pela disciplina, nos


remete a pensar sobre diversas questões tais como: a organização curricular, o
planejamento do ensino elaborado pelo professor, a seleção de conteúdos e
atividades voltadas para o ensino de arte e outras questões pertinentes à formação
dos futuros professores. Percebemos também na fala dos sujeitos participantes
do grupo focal que a disciplina de arte desenvolvida nos curso de Pedagogia foi
provocativa no sentido de despertar o olhar das mesmas para a sua formação
anterior, atual como futuras professoras e para o que acontece hoje nas escolas.
Estas questões são questões curriculares como nos apontam Candau e Moreira
(2007, p.18),
[...] estamos entendendo currículo como as experiências escolares que se desdo-
bram em torno do conhecimento, em meio a relações sociais, e que contribuem para
a construção das identidades de nossos/as estudantes. (...) associa-se ao conjunto
de esforços pedagógicos desenvolvidos com intenções educativas.
Sendo assim, arte educadora Barbosa (2012, p.36) propõe que:
Um currículo que interligasse o fazer artístico, a história da arte e a análise da obra de
arte estaria se organizando de maneira que a criança, suas necessidades, seus
interesses e seu desenvolvimento estariam sendo respeitados e, ao mesmo tempo,
estaria sendo respeitada a matéria a ser aprendida, seus valores, sua estrutura, e
sua contribuição específica para a cultura.
Como a arte tem sido ensinada no ensino básico e o que acontece nas
escolas

Quanto à visão das alunas sobre a prática docente em arte e com a arte

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foi possível verificar pelos relatos que estas se posicionam criticamente, tendo
como referencial o desenvolvimento da disciplina na graduação. Segundo a aluna
“M”,
As aulas de arte são separadas... Ainda ontem eu presenciei na aula de arte, quer
dizer, o que ela chama de aula de arte, ela simplesmente pegou o caderninho das
crianças, jogou na mesa pra eles, algumas crianças não acharam o caderno e
ficaram sem fazer, e [...] era 4 e meia da tarde, as crianças saem 10 para as 5, nos
últimos 20 min, não tinha o que fazer, ela deu o desenho pra eles fazerem o que é
quiserem.
Muitas vezes ela até chega a ser um pouco agressiva com as crianças, mas....ela
não coloca as crianças nas coisas, as crianças fazem por fazer, se bem se não
amém! Fica por isso mesmo. E....eu esperava mais por ser uma escola boa espera-
va que seria melhor; mas não, é um completo descaso com a parte de arte.
Outras participantes também relatam o que observam;
[...] fiz 2 anos seguidos em escola do estado, 2º ano, crianças de 7 e 8 anos, escola
do estado e tinha a professora de arte. Ela dava 1º e 2º , ela tinha o caderno de
desenho e pedia pra eles desenharem. Quando tinha festa junina fazia bandeirinhas
– ela recortava as bandeirinhas e pedia pra eles colarem; eles (alunos) não podiam
fazer nada. E eu lembro.....e assim.....toda vez que eles que ela dava um desenho
para o aluno, ela falava:
- Tá horrível! E rasgava e pedia pra fazer um desenho livre.
Eu lembro, uma vez, que era fim de ano, e ela deu uma folhinha com o Papai Noel
e pediu pra eles desenharem que era pra colocar na sala, no varal; e o (...) queria
fazer um Papai Noel verde. Ela falou que não. Não existe Papai Noel verde; ela
rasgou o desenho e disse que não existe Papai Noel verde; ela não é o incrível
Hulk! O máximo que ela fazia é que tinha o dia da árvore, ela pegava papel crepom,
fazia bolinhas e pedia pra eles colarem (ALUNA J, 2013).
E o que você percebia quando havia essa negação, quando havia essa observa-
ção não construtiva? (PESQUISADORA, 2014).
Eles não respondiam; abaixavam a cabeça.
Aí, no folclore, lembro assim: ela fazia o chapeuzinho. Em vez dela ensinar a fazer a
dobradura, ela fazia e chamava um ou outro pra colar e eles pintavam. Isso era a arte!
No outro ano que eu fiquei era a mesma coisa, o mesmo professor, o mesmo
desenho (ALUNA J, 2013).
Ela direcionou o desenho ou é desenho livre? (PESQUISADORA, 2014)

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 99


Não, não! Na sala tem até um menino que não tem...eu não sei o quê que ele tem: ele
bate palma o tempo inteiro, de vez em quando ele fica nervoso e começa a bater
palma, vai fazendo algumas coisas assim, e....ele gosta muito de pintar, gosta muito
de desenho, ele gosta dessas coisas e ela, não envolve a criança nisso; e o menino
pegou o caderno, ele tava muito nervoso, ele pegou o caderno e começo a pontilhar
um monte de pontos, começo a bater o lápis e pontilhar e cabô! A aula de arte é isso!
Ela jogou o caderno, as crianças fizeram (ALUNA J, 2013).
A participante “A” quando questionada sobre a sua observação do
desenvolvimento da arte no estágio que realizou respondeu: “[...] e na escola onde
eu estagiei é do mesmo jeito”. Referindo-se a reprodução da prática docente em
arte da sua formação.
Podemos verificar até então, que muitas atitudes presentes no relato das
alunas sobre a sua formação em arte na educação básica se reproduz ainda hoje
na prática docente de professores. A questão/problema é do currículo dos cursos
de formação de professores ou da formação do educador que forma educadores?
Conforme Maurice Tardif (2013),
[...] historiadores americanos mostraram que a maioria dos professores reprodu-
zem em suas práticas pedagógicas as mesmas práticas que foram usadas por seus
predecessores há mais de um século [...] e também enfatizam o apego dos professo-
res às práticas pedagógicas tradicionais introduzidas no século XIX, às vezes até
mais antigas.”
Na educação infantil das escolas particulares, nas quais as alunas se
encontram na condição de assistentes de classe, a arte não é tratada como
disciplina isolada; é desenvolvida diariamente como componente curricular de
projetos temáticos promovendo a interação entre as disciplinas. No diálogo a
seguir podemos perceber a perspectiva assumida pelo currículo na referida escola:
Agora, gostaria de falar sobre a minha experiência.
Minha faixa etária são crianças de 2 anos. É uma escola particular, vou citar duas
atividades relacionadas a 2 projetos. Os carros chefe dos grupos são os projetos;
nós trabalhamos com vários projetos, em especial um projeto sensorial que acompa-
nha o ano inteiro. Tem o projeto de frutas que a gente trabalha no 2º semestre. No
projeto sensorial a gente trabalha diversos tipos de materiais e procedimentos, tex-
turas, a gente trabalha com... lixa, bucha, plumanta, pelúcia, sagu...., pós: de beter-
raba, de espinafre... vários tipos de pós. Sementes: girassol, milho, tudo que a gente
pensar assim textura, cor, pós, cheiro, aí a gente trabalha com esse projeto. É
desenvolvido semanalmente, a gente se organiza dentro do nosso semanário, privi-
legia esse projeto pelo menos 2 a 3 vezes na semana,...... (ALUNA P, 2013)

100 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


É o professor polivalente que desenvolve? (PESQUISADORA, 2013)

Sim! A gente programa antecipadamente as atividades. A gente pode planejar uma


atividade com o pó, por ex., então a gente costuma fazer ... a gente escolhe o suporte
que a gente vai usar que seria um papel de acordo com o que quer fazer: um papel
mais duro, um papel mais mole, a forma que a gente no caso quer que as crianças
percebam naquele dia: um círculo, retângulo, triângulo.....Então, cada criança tem
um jeito. Esse projeto sensorial acompanhou o ano inteiro.
Agora o projeto de frutas, ele entra no 2º sem. E a gente trabalha várias obras da
Tarsila do Amaral, então a gente tenta assim: primeiro trazer a obra em roda de
conversa; então eles vão apreciar essa obra. Eu pergunto se eles sabem o que é
aquilo, aí eles falam que é um quadro, então cada um vai falando alguma coisa. Aí eu
explico o que é, quem fez, quando fez, mostro a foto da Tarsila pra eles ficarem
sabendo quem era a pessoa, o que ela pintou, como ela pintou; e aí, eles começam
a falar sobre a obra. O que é que tem na obra....com as obras da Tarsila são obras
que retratam frutas, mamoeiro, a feira....então eles começam a olhar e a perceber
que tem alguns elementos que eles conhecem: a cor, a forma, se eles conhecem
aquela fruta ou não, se eles já experimentaram alguma vez, se eles conhecem.
Então a gente trabalha isso (ALUNA P, 2013).
Quanto à aula, trabalho na (nome da escola que trabalha) turma G3 – alunos de 3
anos, sempre há uma atividade nova; a professora sempre pede uma sugestão; por
ex. ela pergunta quem é o pintor e todas as crianças têm oportunidade de participar;
eles vão falando o que vem à cabeça para depois fazer a investigação. Depois que
a professora ouve todos os relatos ela apresenta o pintor, mostra algumas obras,
onde as crianças vão começar a perguntar a história, e aí, eles vão investigar junto
com os pais, os professores, fazer perguntas para outras professoras que estão mais
próximas e a partir disso, eles vão fazer alguma releitura, algum desenho, um
traçado relacionado à pintura e no final, tem o produto final que é uma exposição,
que até aconteceu ontem lá na escola, a exposição de todos os G3, sobre as
atividades que eles fizeram para mostrar para os pais, uma vizita, e as próprias
crianças falam como foi (ALUNA F, 2013).
Pode-se observar nos relatos acima que as atividades organizadas
voltadas para a arte são tratadas de modo mais contextualizado e integrado com
outras disciplinas, em forma de projetos temáticos interdisciplinando com os outros
saberes escolares.
As alunas que atuam no Ensino Fundamental I de escolas públicas, cuja
disciplina de arte é ministrada pelo professor especialista, relatam que as aulas
não fogem do modelo tradicional de ensino de arte, das atividades mecânicas
sem conteúdo e significado. Os professores se encontram com seus alunos em

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 101


momentos semanais previamente planejados cuja carga horária semanal é de
50 minutos.
Por se tratar de classes geralmente numerosas esse professor, mesmo
tendo uma formação consistente para tal ensino, tem dificuldades de realizar um
bom trabalho e estabelecer um vínculo de conhecimento com os alunos
dificultando a realização de um trabalho mais profundo em nível de expressão.
Geralmente ele é considerado um visitante semanal cujo trabalho proporciona às
crianças a oportunidade de sair da rotina escolar. Ao contrário, quando as atividades
artísticas são desenvolvidas pelo professor da classe, o vínculo com as crianças
é normalmente estabelecido se tornando elemento importante na realização de
um trabalho significativo influenciando positivamente na quantidade e a qualidade
das informações construídas e experienciadas através da arte.

Considerações Finais
A arte tem como premissa propor o que é pessoal e único, se definindo
assim pela diversidade. Portanto, cabe ao professor definir as atividades que
realcem essas características descartando àquelas que buscam a uniformidade,
se preocupando, inclusive, com atividades que agradem as crianças e não os
professores; pois conforme Moreira (2008, p. 83), “[...] este professor que sabe,
que decide e julga é o adulto que já perdeu a confiança na sua capacidade de
desenhar.
È importante que na formação para o ensino de e com a arte, o professor
polivalente não perca a dimensão de que a criança utiliza a arte para dizer o que
sente e pensa. Quando a escola dá voz à criança o problema da expressão e da
afetividade deixará de ser restrito ao campo da arte e se trona uma proposta da
escola como um todo.
A observação dos sujeitos participantes do grupo focal sobre a prática
docente dos professores especialista em arte e dos polivalentes que usam a arte
como tecnologia de aprendizado demonstra uma visão crítica despertada pela
relação entre a formação que tiveram na educação básica e do desenvolvimento
da disciplina presente no currículo do curso de Pedagogia.
Observa-se no relato das alunas quando questionadas sobre a sua
formação em arte na educação básica, que a maioria teve experiências voltadas
para a cópia, a coloração de desenhos prontos, o artesanato e a participação na
decoração das escolas para as festas cívicas e comemorativas, bem como a falta
do desenvolvimento de atividades que visassem o conhecimento e o
desenvolvimento da criatividade. A reprodução da visão compartimentada e sem
significado sobre a Arte.
102 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
Foi possível verificar também, através dos relatos dos sujeitos da pesquisa,
que a decodificação de imagens e a história da arte, tão importante neste ensino,
raramente foram oferecidas pelos professores, para serem exploradas pelos
alunos reduzindo assim, as possibilidades de interpretação e representação do
imaginário. É o mesmo que alfabetizar sem livros.
É comum, ainda hoje, com a proximidade de datas cívicas e
comemorativas, as escolas e professores em geral promoverem uma verdadeira
“caça as bruxas”, aos professores de arte. Na visão da comunidade escolar é
função do professor da disciplina o planejamento e a execução das atividades
decorativas, musicais, teatrais e das danças a serem apresentadas nestas festas
e, por conta disso, provocar o deslumbramento dos pais, refletindo no sucesso da
escola e dos professores de classe. É comum encomendar ao professor “artista”
patinhas de coelho no chão da escola para que alunos as sigam em direção ao
ovo de Páscoa e a representação teatral do enforcamento de Tiradentes próximo
as comemoração de sua morte; no mês do folclore, haja cachimbo e gorro de
saci-pererê como também, balões, bandeirinhas e flores para as festas juninas.
Também se inclui nestas questões o “dia das mães e dos pais”; estes são
chamados à escola para serem homenageados, recebendo presentes
confeccionados pelas crianças e “maquiados” pelos professores para que se
deslumbrem com a produção dos filhos.
Nestas ocasiões, muitos professores retiram de uma velha pasta
desenhos prontos e atividades nem sempre interessantes, ditas de arte, para que
os alunos preencham, desenhem sem borrar e ou descrevam a temática
trabalhada, na maioria das vezes no espaço reservado para as aulas de arte.
Forma-se assim um impasse: de um lado temos professores que acreditam que
arte vai além das referidas manifestações e de outro, aqueles que com elas se
acomodam; outros ainda, se deslumbram.
Estas datas fazem parte do cotidiano dos alunos fora das escolas; aparecem
nas ruas, no comércio dos bairros, regiões centrais e shoppings, jornais, TVs e
demais meios de comunicação, ultrapassando os muros da escola e chegando a
ela de forma estereotipada, se tornando mais um lugar em que a temática é tratada.
Fica uma questão: é incumbência do espaço reservado à arte na escola a confecção
de tais atividades na forma como são propostas e realizadas?
Pensando nessas datas como eventos construídos e presentes
historicamente pela humanidade, grandes artistas de todas as épocas também
as abordaram; portanto, é possível relacionar as atividades propostas pela arte
com o seu processo histórico em busca da construção de um conhecimento
diferenciado. Portinari pintou tanto brinquedos e brincadeiras de crianças como
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 103
cenas do trabalho rural e seus trabalhadores; Tarsila do Amaral representou a
cultura e o homem brasileiro através de obras como “A Negra” “Carnaval em
Madureira”, “A Cuca” entre muitas outras. Botticelli exaltou a primavera; Leonardo
da Vinci evidenciou o Renascimento tanto nas pinturas como em seus estudos
em diferentes campos da ciência. A arte Naif de Djanira, Heitor dos Prazeres e
Aracy, entre outros, representa de forma ingênua e colorida o brasileiro simples e
suas comemorações culturais.
Sob esses aspectos, sujeitos participantes da pesquisa reclamam a
necessidade de uma formação diferenciada, cujas atividades planejadas deveriam
contemplar a teoria, o desenvolvimento da reflexão e do processo de criação.
Nesse sentido, podemos pensar na disciplina de arte como componente curricular
obrigatório dos cursos de Pedagogia não somente como parte da estratégia de
preparo do professor polivalente para ensinar arte; mas também, como um ponto
de partida, uma chamada de atenção desse profissional para compreender e
utilizar a arte como recurso educativo interdisciplinar e também como componente
importante na formação do olhar do educador.
As reflexões presentes nesse estudo nos remetem ao papel do professor
das disciplinas voltadas para as metodologias do ensino de arte e sua importância
na formação do futuro docente. “Só garantiremos à criança o seu direito de dizer
a sua palavra, de traçar o seu desenho, se investirmos em primeiro lugar na
educação do educador” (MOREIRA, 2008, p.126) e esta formação passa pelo
processo de recuperar a criança e o ser poético criança que existe dentro de
cada adulto. Quando o professor se descobre sujeito criativo, recupera o seu
espaço lúdico e de expressividade; educando ele também se educa por encontrar
a linguagem e o desenho perdidos na infância.

SOBREIRA, L. C.; SICCA, N. A. L. The Pedagogy Student’s vision on teaching art for
children: contributions to education of educator versatile. DIALOGUS. Ribeirão
Preto, v.9, n.1 e n.2, 2013, pp. 87-106.
Abstract: This study is part of research being developed in the Master’s program
in Education for the initial training of teachers in pedagogy course. Is particularly
related to curriculum issues specific methodologies aimed at teaching arts to
children. Forming to teach art as a curricular component or as one of the axes of
interdisciplinary thematic project? What is the role assigned by students from the
Pedagogy course, of art in the teacher formation? In this sense, the study aims to
understand the vision of students of a pedagogy course on teaching art in
kindergarten and the early years of elementary school.

104 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Keywords: art education, curriculum, teacher formation.

REFERÊNCIAS:
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ANDRÉ M. O. (org). Políticas e práticas curriculares: desafios
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106 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


VESTÍGIOS DE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE NA BELLÉ
ÉPOQUE RIBEIRÃOPRETANA: INTERPRETAÇÃO INDICIÁRIA
DO COTIDIANO ESCOLAR DO TERCEIRO GRUPO ESCOLAR

Claudio GONÇALVES∗
Humberto PERINELLI NETO∗∗

RESUMO: O presente trabalho busca compreender o processo civilizador que


ocorreu na cidade de Ribeirão Preto na década de 1920, no contexto da Belle
Époque Caipira. Para alcançar este objetivo, lançamos mão da análise da Ata de
Exames Finais de 1927 do Terceiro Grupo Escolar de Ribeirão Preto. Para
interpretar estes dados utilizamos uma abordagem indiciária, abrangendo diversos
aspectos da realidade escolar.

PALAVRAS-CHAVES: micro-história; Terceiro Ginásio; Ribeirão Preto;


modernidade.

Modernidade e educação

No período estudado os costumes europeus e principalmente a busca


por um modelo francês fez da capital do café uma referência de modelo de cidade
que tentava a todo custo se modernizar e gozar dos bons costumes e do bom
gosto vindos da França.
A modernidade, antes escondida debaixo da terra pelos canos do esgoto
ou encostada ao longo dos trechos retificados do ribeirão, agora estava bem
visível, escancarada aos olhos de todos da cidade, o discurso da higienização e
embelezamento traduzia o pensamento e as aspirações burguesas, a organização
do espaço, a definição de ruas, largos, a retificação do leito do rio, todos os
símbolos do novo ideário, ou seja, na nova cidade que se definia não caberia mais
o feio, o indefinido e o torto, não era somente uma definição de espaços físicos,
mas também do espaço social.
A elite de Ribeirão Preto, desejosa por viver toda a efervescência europeia

Graduado em Historia pelo CEUBM, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Graduado em Serviço Social
pela UNAERP, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil.
∗∗
Professor Assistente Doutor junto ao Departamento de Educação do Instituto de Biociências, Letras e
Ciências Exatas (IBILCE/UNESP) de São José do Rio Preto-SP e do Centro Universitário Barão de
Mauá/Ribeirão Preto. humberto@ibice.unesp.br

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 107


busca no modelo francês a fonte de inspiração para consolidação do projeto de
instalação da modernidade.
A partir de meados do século XIX, por conta das plantações de café o Brasil Caipira
se transformaria num espaço capaz de coadunar tais características com um profun-
do gosto pelo moderno e por toda a materialidade e simbolismo que o envolviam e
que era experienciado na Europa como marca de um novo tempo, ou melhor, do
melhor dos tempos: Belle Époque, O termo revela que tais emblemas modernos
possuíam relação estreita com um lugar em especial: a França (Doin, 2007, p.93).
A busca pelo moderno envolve, ao mesmo tempo, a negação do velho; a
cidade apesar de ainda possuir “o velho”, a sujeira e os problemas de uma cidade
ainda em desenvolvimento, passa a negar esta realidade e todas as medidas
políticas e sociais reforçariam e ratificariam esta negação. O processo de
implantação do modelo parisiense por si já excluía grande parte da sociedade
ribeirão-pretana.
A despeito desses novos tempos, a cidade de Ribeirão Preto fazia-se
moderna não somente com a construção de um quadrilátero central ideal,
planejado, arborizado e repleto de palacetes e teatro, mas também, pela presença
das escolas, estabelecimentos considerados pelas elites templos de civilização e
progresso (JAYME, 2012, p.64).
Era necessário civilizar a base desta sociedade, para que ela pudesse
perpetuar os costumes que se desejava implantar, era necessário reafirmar o que
era ou não importante e a educação escolar teve real importância neste processo
e, por isso, é sobre ela que agora iremos deitar nosso olhar.
A modernidade gerava diversas mudanças, que já estavam em processo
avançado na arquitetura, urbanismo e relações de trabalho e agora deveriam
vigorar também no campo cultural; a necessidade de transformações também
atingiria a pedagogia, o ambiente escolar, sua arquitetura, a forma como se
administrava ate então as escolas; assim, o conteúdo vinculado ao processo
ensino-aprendizagem, as formas de avaliação, ou seja, uma nova escola deveria
ser implantada e vivida pelos seus alunos e por toda a sociedade.
O modelo até então vivido pelas escolas pautado na forma de ensino das
Companhias de Jesus e também pautado nas teorias do alemão Johann Friedrich
Herbart1 começou a perder forças, devido a influencia dos pensadores americanos,
que chegavam ao país pela imprensa, literatura, cinema e também pelas relações
comercias com os Estados Unidos. A entrada destes autores norte americanos e
1
Para saber mais ler: GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo. História da educação brasileira. São Paulo:
Cortez, 2009, p.212.

108 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


a busca por uma identidade cultural como referencia impulsionam o Brasil a
seguir um movimento conhecido como “movimento da educação nova”, gerando
o termo escolanovismo, tão difundido pelo filosofo norte americano John Dewey2.
Não diferente do movimento nacional, o Estado de São Paulo igualmente
busca a implantação deste modelo, como salienta Rosa Fatima de Souza:
No projeto liberal dos republicanos paulistas a educação tornou-se uma estratégia
de luta, um campo de ação politica, um instrumento de interpretação da sociedade
brasileira e o enunciado de um projeto social (Souza, 1998, p.26).
A modernidade passava pelos valores republicanos e a difusão destes
valores se daria através da educação popular, até então delegada a iniciativa
privada e também delegada a igreja, o Estado então, passa a se apropriar deste
instrumento e aprende com a experiência europeia e americana que para se
alcançar o êxito no processo civilizador a educação popular teria papel politico e
social. Neste período são criadas as escolas populares, cursos noturnos para
adultos e escolas profissionais.
Este novo projeto que visava a valorização da escola publica serviria tanto
para a promoção das atividades politicas do Estado quanto para a propagação
dos ideários e modelos republicanos; havia uma grande simbologia na criação
de um grupo escolar, através desta reforma aconteceria um rompimento com os
modelos antigos. Tudo novo, linhas pedagógicas, organização escolar, nova
arquitetura e também novas finalidades, os grupos escolares atendiam um ideário
social; estes prédios concretizavam a imagem do progresso e modernização e
não teria melhor palco para isto do que as localidades urbanas.
Ribeirão Preto contava com apenas um grupo escolar de ensino primário,
o Grupo Escolar Guimarães Junior, inaugurado em 1895. Em 1912 a cidade
inaugura o Segundo Grupo Escolar Fabio Barreto. Lindos prédios, imponentes e
possuidores de uma arquitetura que traduzia a importância dada à educação.
Mas, não só destas belas escolas vivia a educação da cidade, bem
diferente das escolas urbanizadas e glorificadas pela elite local, Ribeirão Preto
também contava com as escolas isoladas, as “primas pobres” da educação,
localizadas nas fazendas, estas escolas tinha papel semelhante ao das urbanas:
civilizar e incutir os preceitos republicanos e nacionalistas nas crianças. Porém,
as escolas isoladas guardavam algumas particularidades, como, por exemplo, o
grande numero de crianças descendentes de estrangeiros (na sua maioria
italianos), que deveriam desenvolver um amor ao Brasil. Para o poder publico a

2
Para saber mais ler: GHIRALDELLI JÚNIOR. Paulo. História da educação brasileira. Op. Cit., p.150.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 109


educação primaria era sem duvida a melhor maneira de desenvolver nestes novos
cidadãos o sentimento nacionalista.
A historiadora Lucia Resende Jayme, ao tratar das escolas isoladas, se
refere à questão do caráter civilizador do ensino da seguinte forma:
Assim, mesmo que o ensino nas escolas primárias cumprisse duas funções, a de
proporcionar uma instrução rudimentar e criar o sentido de nacionalismo nos alunos,
sobretudo nos filhos dos estranhos a este país. A essência da escola - programa e
horário - era manipulada para o fim que se destinava: controle de comportamentos
e sentimentos, a dominação do idioma alheio no extrapolar do espaço público das
escolas e na invasão do privado nos lares dos pupilos (Jayme, 2008, p.99).
As escolas isoladas eram consideradas imprescindíveis para a instrução
publica, tendo em vista que grande parte da população ainda se encontra no
campo, mesmo assim, estas escolas eram extremamente carentes de materiais
adequados, de instalações salubres e principalmente de uma boa remuneração
aos seus professores, ficando muitas vezes a mercê da ajuda de coronéis para
completar a subvenção fornecida pelo Estado.
É importante percebemos que, durante as duas primeiras décadas do
século XX, Ribeirão Preto em se tratando de escolas subvencionadas pelo Estado
contava tão somente com as escolas isoladas, um ginásio estadual e dois grupos
escolares, tendo em vista que o terceiro grupo escolar se instalaria na cidade
somente no ano de 1921 e é sobre a instalação desta escola e as características
do local onde ela foi instalada que iremos discorrer no item seguinte.

Um bairro, uma escola e algumas histórias.


“Nascido e criado na Vila Tibério”, quantas vezes já ouvi esta frase ao
perguntar a alguém da cidade de Ribeirão Preto seu bairro de origem, eu mesmo
já a disse algumas dezenas de vezes. O sentimento de alegria e ate certo ponto
orgulho de falar do bairro provém, muito certamente, da origem do bairro: um dos
mais antigos da cidade, muito conhecido pela proximidade com o centro da
cidade, famoso pela média de idade, digamos, um pouco avançada de sua
população.
As origens da Vila Tibério remontam aos processos de fragmentações
ocorridos logo após a formação da cidade, de acordo com a historiadora Fatima
Aparecida Colus:
A primeira referência à Fazenda do Laureano ou Braço Direito de Ribeirão Preto
está no inventariado do capitão Matheus de Reis... Desse processo resultou a
formação da Fazenda Monte Alegre que aglutinou também partes da Fazenda do

110 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Ribeirão Preto Abaixo o u Pontinha. Essa Fazenda Monte Alegre foi fracionada pelos
herdeiros do cel. João Franco em 1880. Um desses herdeiros foi Tibério Augusto
Garcia de Senne (COLUS, 2006, p.10).
Assim nascia a Vila Tiberio e não demorou muito para o bairro ganhar
destaque, pois em 1909 a Companhia Antártica Paulista iniciou a construção de
sua primeira filial que daria emprego a cerca de 400 operários; a proximidade
com o centro da cidade, com a linha férrea da Mogiana e com as fazendas de
café atraíram cada vez mais indústrias para o bairro.
A única ligação existente entre a Vila Tiberio e o centro da cidade era feita
pela rua Luiz da Cunha (prolongamento da rua Duque de Caxias), pois os trilhos
da Mogiana, ao cortar o bairro, acabavam por impossibilitar qualquer outra ligação
com o centro.
A dificuldade no acesso ao bairro não era seu único problema, mesmo
com a instalação de indústrias o bairro ainda não provia das devidas instalações
de água e de esgoto. Para além das mudanças na área de esgoto, o bairro
necessitava de mais algumas transformações para se enquadrar no modelo de
modernidade buscado por Ribeirão Preto; a evolução e o crescimento da
população deste bairro logo trariam a necessidade da implantação de uma escola
para atender os filhos dos operários que ali habitavam.
A Prefeitura compra então um terreno de propriedade do Conselheiro
Antônio da Silva Prado e conforme consta no livro de Registro de Leis, Resoluções
e Pareceres da comarca de Ribeirão Preto, em 28/04/1919, através da Resolução
nº. 797, a prefeitura municipal autorizou a doação do terreno ao Governo do Estado
de São Paulo, para a construção de um grupo escolar na Vila Tibério.
Seria então o 3º Grupo Escolar de Ribeirão Preto, que somente no ano de
1954, pelo Decreto nº 23.949, passaria a ser chamado de Grupo Escolar “Dona
Sinhá Junqueira”, homenagem a Theolina de Andrade Junqueira, que era
reconhecida na cidade por suas ações sociais e filantrópicas. Em 1921, a escola
possuía apenas a parte central e o numero de alunos girava em torno de cento e
sessenta crianças; a escola era administrada pelo diretor Paschoal Moutno
Salgado.
O objeto de analise encontrado no Terceiro Grupo Escolar foram as Atas
de Exames Finais do ano de 1927 e para a analise das atas lançaremos mão de
uma abordagem centrada não só somente nos cálculos e apresentação de dados,
mas também na analise do que podemos classificar de dados marginais, resíduos
que neste caso se tornam reveladores de praticas, de costumes e de realidades
que teimavam em se chocar: a vontade do Estado e a realidade escolar. Ao analisar,

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 111


por exemplo, o índice de faltas e aprovações, tentaremos encontrar indícios, pistas
e sinais (GINZBURG, 1989) que demostram estes choques de interesse.
Foram analisadas 21 paginas do livro de Atas de Exames Finais que
comtemplavam as doze classes que funcionaram durante o ano de 1927, dentre
estas classes, seis eram destinadas ao ensino dos meninos e outras seis ao
ensino feminino, são elas: 1º ano A, B, C, D, 2º ano A e B. As informações
comtempladas nas atas são: nomes dos alunos, as matérias estudadas e suas
respectivas notas, observações quanto aprovação ou conservação do aluno,
número da matricula e dias letivos do aluno. A professora lavrava a ata em conjunto
com o diretor da escola. A ata continha uma relação dos alunos aprovados divididos
da seguinte forma: Distinção, Plenamente e Simplesmente.
A média de idade avançada de entrada na escola e as ausências
frequentes dos alunos causavam alguns transtornos na vida escolar. Sobre as
faltas e ate mesmo as frequentes desistências dos alunos, Rosa Fatima de Souza
tem a seguinte analise:
[...] o curso primário não era realizado pelos alunos em uma sequencia ininterrupta.
Além de repetência, é provável que os estudos fossem frequentemente interrompi-
dos pela mudança de local de residência da família ou pela necessidade do trabalho
infantil. O alto índice de alunos eliminados anualmente nos grupos escolares aliado à
baixa frequência, como consta dos relatórios dos diretores, confirma essa hipótese
(SOUZA, 1998, p.116b).
Para além das faltas elevadas, ainda havia diversas interrupções das
atividades escolares; é importante ressaltar que tratamos aqui neste trabalho do
advento da modernidade, período histórico que valorizava o tempo e imprimia
nele diversas funções, porém, esta modernidade chegou ao Brasil de uma forma
diferenciada, pois a interferência da igreja no Estado ainda era de extremada
relevância, fato este que se destaca quando observamos a quantidade de
atividades religiosas que interrompiam as aulas, como dias santos, pausa durante
a semana santa e também atividades ligadas às igrejas que se situavam próximas
às escolas.
As datas e comemorações cívicas também contribuíam para uma grande
quantidade de dias sem aula, tendo em vista a importância dada para a construção
do sentimento nacionalista. As epidemias e a febre também engrossavam o numero
de faltas.
Abaixo seguem os quadros referentes à frequência dos alunos e alunas
do Terceiro Grupo Escolar.
QUADRO 1 – Índice de frequência Feminina Terceiro Grupo Escolar de

112 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Ribeirão Preto, 1927.

SALAS DIAS LETIVOS FREQUÊNCIA PERCENTUAL


FEMININA DE AULAS
ASSISTIDAS
1º A 226 170 75%
1º B 226 177 78%
1º C 226 162 71%
1º D 226 175 77%
2º A
2º B
Subistituir
226
226
175
175
77%
77%
TOTAL 226 172 76%
FONTE: Ata de Exames Finais Terceiro Grupo Escolar, 1927.

QUADRO 2 – Índice de frequência Masculina Terceiro Grupo Escolar de


Ribeirão Preto, 1927.

SALAS DIAS LETIVOS FREQUÊNCIA MASCULINA


PERCENTUAL DE AULAS ASSISTIDAS
1º A 226 178 78%
1º B 226 180 79%
1º C 226 188 83%
1º D
2º A
Subistituir
226
226
167
185
73%
81%
2º B 226 188 83%
TOTAL 226 181 80%
FONTE: Ata de Exames Finais Escola Terceiro Grupo Escolar, 1927.

Médio. Nem alto nem baixo, o índice de presença tanto masculino quanto
feminino na escola não nos mostra nenhum disparate, porém, é no mínimo curiosa
a analise dos dados com um olhar mais aprofundado: a presença feminina na
escola foi ligeiramente mais baixa, em media 9 dias letivos, que representam 2
semanas de aula no ano.
Os meses de julho, agosto e setembro eram os quais mais ocorria a
infrequência das crianças, devido ao deslocamento das famílias do centro urbano
para os centros de trabalho agrícola, o tempo da colheita interferia no tempo da

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 113


escola. Para esta afirmação, temos alguns dados interessantes encontrados nas
Atas pesquisadas, foram verificadas um total de 52 crianças que somente se
matricularam a partir de julho (44 em julho, 5 em agosto, 2 em setembro, 1 em
outubro), num total de 10%.
O trabalho doméstico era até mais danoso, principalmente para as
meninas, talvez ai esteja a explicação do maior numero de faltas por parte delas
em relação aos meninos, detalhes minuciosos que nos indicam uma realidade
bem diferente daquela que a escola publica tentavam mostrar e implantar na
sociedade.
A criança fora da escola era vista como um enorme prejuízo, para além
dos gastos públicos, tinha-se a questão do aprender o tempo da escola, o tempo
social e quando ela estava fora da escola, era um tempo perdido, ocioso. O
período em que a criança estava na escola era marcado pela utilidade do tempo,
pela marcação, cronometragem e organização.
Disciplina, o tempo na escola era marcado pelo ensino de que as tarefas
deveriam ter horário de inicio e fim, o tempo do relógio era assim instituído, o
recreio, as brincadeiras, tudo era marcado e a ociosidade banida, pois revela em
si traços de um tempo natural, que se opunha ao tempo moderno, ensinar o
tempo para as crianças era parte de um projeto civilizatório. Para os alunos que
não cumpriam boa parte dos dias letivos estas dimensões eram fragmentadas,
mal aproveitas e esquecidas, ela não se adaptava por não participar do processo
por completo, de forma ininterrupta.
No Terceiro Grupo Escolar de Ribeirão Preto as matérias estudadas em
1927 nos primeiros anos escolares de acordo com as atas estudadas eram: Leitura,
Linguagem, Caligrafia, Aritmética, Geografia e Historia.
O ensino de Leitura se dava através de leitura de impressos e manuscritos,
o professor realizava a leitura no quadro e em seguida escrevia palavras e frases.
Era esperado que o aluno se desprendesse dos “vícios” de linguagem,
pronunciando as palavras e frases de forma correta; era comum que se desse
preferencia à leitura dos melhores alunos, para que assim os piores pudessem
aprender através do exemplo dos “iguais”.
Ao se ensinar a Caligrafia, a atenção era voltada para a postura dos
alunos, a fim de se evitar problemas na coluna; os métodos utilizados pelos
professores iam desde a coerção no caso da má postura até o ensino de como
segurar a caneta, indicando em qual falange do dedo ela deveria deitar-se tal
objeto.
No ensino da Aritmética, o método comum era o uso de objetos para se

114 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


ensinar os primeiros cálculos, para depois serem abordados os cálculos abstratos;
as questões práticas como a contabilidade eram as mais aplicadas, tendo em
vista seu desenvolvimento e uso nas profissões relacionadas à indústria e a lavoura.
A Geografia se limitava ao ensino das posições. As posições dos objetos,
as posições das ruas próximas à escola, a planta da cidade e a compressão dos
municípios próximos e o estudo do mapa do Estado de São Paulo.
O estudo da Historia era baseado em historietas, fatos históricos dos
grandes personagens, principalmente dos personagens nacionais, a exaltação
do nacionalismo e o sentimento de patriotismo eram sem duvida a principal função
das aulas de historia. Estes episódios e biografias, depois de interpretados pelos
alunos, eram reproduzidos nas aulas de leitura e caligrafia.
Na escola, todas as oportunidades deveriam ser aproveitas ao máximo para instruir
e educar. Na literatura, na poesia, nas ciências, na ginastica, na musica, em tudo se
podia extrair uma lição moral, uma lição de civilidade. Repetir, decorar, exercitar,
memorizar, incutir hábitos, desenvolver faculdades, disciplinar. Eram muitos os pre-
ceitos que estavam em jogo na construção dos “saberes escolares” (SOUZA, 1998,
p.203c).
Mesmo carente de diversas matérias, o grupo escolar estudado atendia
as expectativas geradas em torno da escola daquele período, expectativas tanto
do Estado quanto da sociedade civil e também da economia, visando à instrução
destas crianças, de modo a torná-las aptas para sua inserção no mercado e não
somente com o aprendizado dos itens do paragrafo acima, mas também no
tolhimento daquilo que se conservava selvagem e avesso à civilidade.
Meninos e meninas que durante muito tempo ficaram separados, para
além dos muros dos colégios, agora dividem o mesmo espaço dentro do grupo
escolar, claro, meninos em uma sala e as meninas em outra, entretanto, a mudança
já era de grande monta, tendo em vista que agora o que os separavam eram
apenas as paredes das salas de aula. Sem duvida, a implantação dos grupos
escolares, ao reunirem diversas salas, reafirma o principio da igualdade entre os
sexos, consequência da onda de modernidade que chegava também no interior.
Nas atas, a quantidade de alunos e alunas que terminaram o ano letivo
foram exatamente os mesmo, das 502 crianças que conseguiram terminar o ano,
a divisão foi de 251 meninos e 251 meninas, estamos falando aqui tão somente
dos números referentes ao termino do ano, pois, a disparidade se exalta quanto
as aprovações e as reprovações.
O tratamento, o direcionamento e também as intenções não eram as
mesmas para os meninos e para as meninas. Para os meninos a escola deveria

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 115


cumprir papel coercitivo, devido aos hábitos considerados selvagens e truculentos
dos meninos, a ação da escola neste caso deveria ter um caráter um tanto quanto
civilizatório, para que fosse solucionado o problema da indisciplina de forma
veemente.
Questionamo-nos ao aferir o quadro abaixo, o quanto estas dificuldades
extrapolavam o comportamento e se refletiam no desempenho dos alunos.

QUADRO 3 – Aprovações Masculinas Terceiro Grupo Escolar de


Ribeirão Preto, 1927.
SALA ALUNOS POR SALA APROVADOS PERCENTUAL
1º A 41 13 31%
1º B 40 15 37%
1º C 41 7 17%
1º D
2º A
2º B
39
44
46
Subistituir
10
32
24
25%
72%
52%
TOTAL ALUNOS 251 101 40%
FONTE: Ata de Exames Finais Terceiro Grupo Escolar, 1927.
A diferença entre as aprovações entre meninos e meninas é clara e fica
ainda mais evidente a partir do momento em que ambos passaram a ter o mesmo
conteúdo programático. Com a implantação dos grupos escolares, tem inicio
pela primeira vez no ensino primário um programa único para meninos e meninas,
com exceção de algumas atividades que eram organizadas pela divisão dos
gêneros, como a ginastica e os trabalhos manuais.
A igualdade dos programas era resultado do principio da educação
integral, em que, independente do sexo, era preciso que o individuo tivesse uma
formação global, que abrangesse todo o conhecimento humano. Com o conteúdo
homogeneizado ficava mais fácil a distribuição de prêmios para os alunos; agora
que estavam todos em pé de igualdade, o reconhecimento dos melhores tornava
escancarada a ideia do mérito.
A premiação dos alunos mais brilhantes ressaltava a força simbólica de uma cultura
escolar que se estava construindo com base na homogeneização e, contraditoria-
mente, na individualização. Dessa forma, numa sociedade marcada por forte estru-
tura hierárquica e por grandes desigualdades sociais, explica-se por que a ideolo-
gia liberal do mérito tenha sido tão valorizada. (Souza, 1998, p.247d).
E o que valeria ser reconhecido como o melhor? O que estava em jogo

116 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


com a aprovação destas crianças ao findar do ano letivo? O futuro de muitas
crianças era decidido no ultimo mês de aula, uma aprovação poderia significar
um passo a mais, para onde? E uma reprovação? A constatação da impossibilidade
de se aprender?
Existia uma expectativa em relação às aprovações destes alunos, tanto
que as premiações mostram que o exame final era coberto de conotações
especiais, chegando a tomar tons de dramaticidade, ao passo que alguns alunos,
recebiam condecorações e prêmios, que em sua totalidade eram subsidiados
pela própria população. Estes exames passam a fazer parte de uma simbologia,
um ritual.
Esta valorização é tão evidente e reforçada, que nas atas encontramos
uma pequena divisão dos alunos em três classificações, os alunos que foram
aprovados tinham seus nomes relacionadas nos grupos: “Distinção” (alunos que
se destacaram, ficando acima da media, recebendo em alguns casos
condecorações e prêmios), “Plenamente” (alcançaram êxito satisfatório, suas
notas variavam entre 8, 9 e 10) e “Simplesmente” (os alunos deste grupo atingiam
os mínimos exigidos para a aprovação). Esta forma de classificação era adota
comumente nas escolas e a força da palavra carregava em si suas intenções para
com as diferenciações que estes alunos tinham uns dos outros.
É necessário lembrar que no inicio do século um das prerrogativas da
vontade nacionalista se baseava na necessidade de erradicação do analfabetismo,
portanto, a preocupação quanto ao índice de aprovações se tornava cada vez
mais presente nas escolas.

QUADRO 4 – Aprovações Femininas Terceiro Grupo Escolar de Ribeirão


Preto, 1927.
SALA ALUNAS POR SALA APROVADAS
PERCENTUAL
1º A 43 33 76%
1º B 45 34 75%
1º C 40 15 37%
1º D 42 39 92%
2º A
2º B
40
41
Subistituir
22
31
55%
75%
TOTAL ALUNAS 251 174 69%
FONTE: Ata de Exames Finais Terceiro Grupo Escolar, 1927.
O grupo escolar da Vila Tiberio batia a casa dos 54% de aprovações;

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 117


mas, dentro deste numero se escondia a diferença, onde dos 275 aprovados, 174
era do sexo feminino (69%) e 101 do sexo masculino (40%). Uma das principais
perguntas que estes dados nos trazem e que podem servir de propulsão para uma
nova analise é: por mais quantos anos estas crianças continuariam conservadas
nos primeiros anos da escola? Estes 227 alunos que não obtiveram êxito e, portanto,
que não foram aprovados voltariam ao colégio no próximo ano letivo?
[...] estabeleceu uma “cultura da seleção” balizada e reafirmada por vários fatores: a
racionalidade da organização pedagógica com base na classificação dos alunos, as
exigências normativas e os impositivos de controle sobre os profissionais da educa-
ção, as normas de excelência escolar negociadas no interior da escola e validadas
fora dela; e, por certo, a formalidade do ritual do exame nos primeiros tempos
(SOUZA, 1998, p.252e).
Falar que, praticamente metade das crianças não foram aprovadas nos
exames e não fizeram parte desta “seleção” nos lembra do peso social que isto
revela; estamos falando de uma época em que havia uma forte estrutura
hierárquica e que era marcada também pela desigualdade social, que nos leva a
entender os motivos pelos quais a sociedade valorizava tão fortemente o mérito,
advindo de uma ideologia liberal que vinha de mãos dadas com a modernidade.
Mesmo com a tentativa de um projeto civilizador de nivelamento destas
crianças, no caso da escola estudada fica exposto o seu caráter excludente e
para além dele uma face seletiva, que, ao tentar a inserção de uma faixa da
população na onda da modernidade, acabava interferindo de maneira agressiva
na vida destas crianças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando estudamos o processo civilizador que ocorreu por meio da
educação no inicio do século XX, encontramos uma linha tênue entre as ações
direcionadas pelo Estado e o complexo prolongamento de um movimento que se
fazia de forma inconsciente dentro da própria sociedade ribeirão-pretana,
impulsionado pela busca de uma melhoria de vida, comodidade, conforto ou
ostentação. De certo que encontramos indícios que havia sim uma ação
provocativa, disfarçada com uma áurea de benesses que chegavam para todos.
Estes benefícios foram instaurados muitas vezes através de variadas simbologias.
A escola primaria republicana instaurou ritos, espetáculos, celebrações. Em nenhu-
ma outra época, a escola primaria, no Brasil, mostra-se tão francamente como ex-
pressão de um regime político. De fato, ela passou a celebrar a liturgia politica da

118 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Republica; além de divulgar ação republicana, corporificou os símbolos, os valores
e a pedagogia moral e cívica que lhe era própria (SOUZA, 1998, p.241f).
Um exemplo clássico é a instituição dos exames finais. Nas fontes
estudadas consta que a aprovação das crianças era um evento público, um evento
social, contava com premiações e condecorações, estes “espetáculos” eram
muitas vezes patrocinado pelos comerciantes locais, pelas indústrias e pelos
políticos. O peso de ser reconhecido como um bom aluno, como civilizado era
muito grande e, pelo que vimos metade dos alunos no Terceiro Grupo Escolar de
Ribeirão Preto não obtinham este êxito. O prêmio ou o castigo, a redenção ou a
absolvição, a aprovação ou o conservamento, os valores modernos e liberais se
instalavam sem peias, sem considerar o contexto social daquelas crianças, muitas,
destaca-se, filhos de ex-escravos, de imigrantes e de operários, portanto, crianças
que viviam em condições mínimas no meio urbano.
Tratar as crianças como iguais neste caso, somente acentuava e
prolongava a desigualdade, pois este conjunto de ações era conflitante com a
realidade social de grande parte destas crianças.
Não obtendo êxito imediato, através da instrução, este processo foi
implementado de diversas outras formas. A necessidade de civilizar não ficaria
estagnada no primeiro obstáculo encontrado. Certamente que o processo ocorreu
também em outras áreas, em todas as idades e em todos os segmentos sociais.
Contudo, as crianças de um bairro operário, estabelecidas numa cidade do interior
e que cursavam nas primeiras series escolares eram uma das primeiras a “passar”
pela tentativa de construção da civilidade.
A construção de uma sociedade moderna, livre dos costumes bárbaros
iria se instalar, pois numerosos setores da sociedade e praticamente todas as
instituições estavam engajados neste ideal.
A civilização não é apenas um estado, mas um processo que deve prosseguir... O
processo de civilização do Estado, a Constituição, a educação e, por conseguinte, os
segmentos mais numerosos da população, a eliminação de tudo o que era ainda
bárbaro ou irracional nas condições vigentes... (ELIAS, 1989, p.62).
Em nosso estudo o alto índice de alunos reprovados não demostra uma
falha da tentativa de civilizar, pois mesmo não sendo aprovadas, ao estarem nas
escolas as crianças passariam boa parte do ano imersas num universo de regras,
normas e controle. Penso que não devemos olhar para as crianças “conservadas”
e acreditar que estivessem fora do processo ou que estas crianças não se
engajaram na nova ordem vigente, não se educaram nem se tornaram mais

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 119


civilizadas, mesmo não conseguindo esta ou aquela nota, elas já tinham entrado
em contato com o “novo mundo”, já teriam percebido e sentindo que algumas
atitudes e pensamentos não seriam mais toleráveis e, com isso, mesmo em tenra
idade já poderiam perceber quais mudanças deveriam se esforçar para promover
em sua conduta.
Depois do estudo, das leituras e da análise das fontes, acredito que os
sinais deixados indicam que maior do que a barbárie que se contrapõe a civilização
foi a forma violenta como o processo se deu.
A surpresa perturbadora é descobrir que longe de necessitar da longa duração cara
aos historiadores, as passagens da barbárie à civilização, da civilização à barbárie se
fazem por vezes em um só passo... A oposição entre a civilização e a barbárie equili-
bra-se em uma suspensão interrogativa. Isso não leva a renegar a civilização, mas a
reconhecer que ela é inseparável de seu avesso (STAROBINSKI, 2001, p.56).
A necessidade de instalar um processo dito civilizador em Ribeirão Preto
só surgiu quando a elite da cidade percebeu que os costumes e hábitos das
pessoas entravariam o desenvolvimento local, atrapalhariam o status da cidade
como pretensa Petit Paris.
Por outro lado, a sede e a vontade de prosperar fez com que tantas pessoas
aderissem a este movimento, que mudassem suas roupas, construíssem novas
fachadas para suas casas, que policiassem sua forma de falar e agir, que, mesmo
contrariadas, mandassem seus filhos para a escola.

GONÇALVES, C., PERINELLI NETO, H. Traces of civilization and barbarism in the


Belle Epoque in Ribeirão Preto: interpreting evidentiary everyday school of the Terceiro
Grupo Escolar. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.9, n.1 e n.2, 2013, p. 107-121.

ABSTRACT: This study aims to understand the civilizing process that occurred in
the city of Ribeirão Preto in the 1920s, in the context of Belle Époque hick. To
accomplish this, we used the analysis of the Minutes of the 1927 Final Exams
Third Group School of Ribeirão Preto. To interpret these data we use an evidentiary
approach, covering various aspects of school reality.

KEYWORDS: micro-history; Third Gymnasium; Ribeirão Preto; modernity.

FONTES
Atas de Exames Finais – Terceiro Grupo Escolar de Ribeirão Preto, 1927.
Encontrado na Escola Estadual Dona Sinhá Junqueira.

120 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


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desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. Ana Maria Ioriatti, Carlos
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Tese de Mestrado em Educação, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
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ensaios. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 121


122 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
A CONSTRUÇÃO DO PROCESSO DIALÉTICO EM PLATÃO: O
CONFLITO ENTRE A FILOSOFIA E A RETÓRICA COMO REVISÃO
DOS FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO NA GRÉCIA ANTIGA

Osmair Severino BOTELHO*

RESUMO: O artigo pretende demonstrar como Platão retomou a educação


tradicional, fundamentada e mantida nos mitos dos poetas e na didática retórica
dos sofistas, superando-a com um novo modelo pedagógico que tinha em vista o
melhor preparo dos jovens para as responsabilidades da vida da polis, a partir da
retomada e da radicalização da maiêutica construída por Sócrates combatendo a
retórica sofista e aqueles que os procuravam para obter sucesso particular.

PALAVRAS-CHAVE: Platão; Sócrates; dialética; maiêutica; retórica.

A dialética como verdadeiro método de conhecer.


Falar da dialética em Platão é tentar reconstruir os elementos básicos do
processo epistemológico e metodológico da filosofia platônica, apresentando a
dialética como instrumento para educar o filósofo na verdadeira filosofia. Trata-se
de identificar os elementos que constituem o processo dialético presentes nos
diálogos de Platão, explicitando o desenvolvimento desse processo e a sua relação
com os problemas de seu tempo na construção de sua filosofia. Para saber o que
vem a ser dialética em Platão, o melhor a se fazer é consultar seus escritos e
tentar compreender como, quando e qual função ela foi criada.
Jayme Paviani (2001, p. 13) dá o seguinte significado para a expressão
processo dialético: “conjunto dinâmico de condutas cognitivas que implicam o
estabelecimento de regras, usos de técnicas e definições de procedimentos que
tornam viável, racional e coerente a argumentação”. Goldschimdt (2002,) conceitua
dialética como um modo de argumentação que conduz à verdade da essência.
Assim, a dialética é uma argumentação racional e discursiva que permite respostas
seguras sobre a realidade, distinguindo o verdadeiro do falso. Portanto, a dialética
platônica é um conjunto de procedimentos, conhecimentos e comportamentos
desenvolvidos sempre em relação a determinados problemas ou conteúdos

*
Mestre em Filosofia. Graduação em História e Filosofia. Professor no Centro Universitário Barão de
Mauá e no Centro de Estudos da Diocese de Ribeirão Preto – CEARP, nas cidades de Ribeirão Preto e
Brodowski – São Paulo – Brasil. Email: osmair.botelho@baraodemaua.br

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 123


filosóficos. Ela não é simplesmente uma técnica do discurso persuasivo,
amplamente utilizada pelos sofistas, mas é um caminho que dá acesso à verdade
efetiva da real das coisas.
Para Platão, a dialética é o processo de pensar e conhecer a verdade
que está além do imediato das aparências e do sensível; ela é muito mais que
uma técnica de pergunta e resposta, mais que uma demonstração matemática
ou um simples diálogo, ou seja, ela “é o caminho que conduz à posse da verdade,
o exercício de desprendimento do sensível para alcançar o inteligível, a realização
mais alta da filosofia que permite intuir o bem, alcançar o uno e a idéia suprema”,
nos lembra Paviani (2001, p. 17). A dialética é a preparação para a sabedoria. Por
isso, o pensar dialético pressupõe um aprendizado, um desenvolvimento e um
amadurecimento intelectual e emocional do filósofo1.

1. A filosofia revisando a educação mítica da Grécia do século V a.C.


O método dialético em Platão deve ser analisado sem deixar de lado a
investigação dos problemas da sociedade grega de seu tempo, ainda marcada
profundamente pela educação baseada nos poetas, bem como a sua crítica às
teorias dos filósofos naturalistas e às opiniões retóricas e persuasivas dos sofistas.
Assim, o pensamento filosófico de Platão confronta os modos de pensar e os
processos argumentativos vigentes naquele período específico da Grécia antiga.
De um lado havia o desenvolvimento da estrutura política das cidades a partir de
uma crescente secularização da cultura em detrimento das explicações mítico-
religiosas devido ao surgimento dos chamados filósofos da natureza, que
procuravam um princípio (arkhé), uma causa física que explicasse a natureza
sem recorrer às revelações, às metáforas ou imaginações mitológicas; de outro
lado, o aparecimento do movimento sofista, com um sistema de raciocínio cada
vez mais abstrato, complexo e positivo2.
Na Grécia pré-filosófica, os poetas e seus mitos foram os responsáveis
pela primeira forma de educação dos gregos; a educação, a moral, a política, a
teologia dos gregos estavam fundamentas nos poemas de Homero e Hesíodo. Os
poemas eram uma espécie de enciclopédia tribal que se tornou um arquétipo
que compelia a recordar a tradição e mantinha a educação a ser transmitida: a
educação como imitação dos heróis.
Os filósofos da natureza e, um pouco mais tarde, os sofistas começaram
1
Assunto tratado de modo especial na República, no Banquete e no Fedro.
2
Não é intenção discutir aqui a formação do pensamento grego, mas sim como Platão construiu a sua
dialética confrontando-a com essa formação mítica. Para compreender a formação do pensamento grego,
cf. VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 7ª ed. São Paulo: Bertrand Brasil, 1992.

124 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


a se opor à prática e aos ensinamentos baseados na narrativa das vontades divinas
e nas ações dos grandes heróis. Os sofistas foram os responsáveis por dar uma
nova orientação pedagógica para a educação tradicional na Grécia do século V
a.C. Foram eles que aproximaram as questões filosóficas da polis e contribuíram
para a introdução dos problemas éticos e políticos, passando de uma abordagem
da natureza (physis) para uma abordagem do homem e a sua relação com a
polis, dando uma nova orientação para o problema pedagógico, como nos lembra
Reale (1994, p. 194).
Os privilégios tradicionais baseados nos costumes começaram a ser
substituídos por outros valores que tinham como base, não mais a vontade divina
ou a linhagem de um herói, mas estavam fundamentados em princípios ou
convenções humanas (nomos) de caráter racional. Os valores antigos, a linhagem
sangüínea, o êxito na guerra, a fama e a honra heróica foram sendo substituídos
pelos valores da democracia: a igualdade, a participação na política e a cidadania.
Buscava-se uma ação virtuosa (areté), uma compreensão acerca das condições
práticas que permitissem aos cidadãos agir de maneira correta na polis.
Foi para esclarecer ou oferecer uma alternativa à prática pedagógica
sofística que Platão propôs uma educação fundamentada em um método que
conduzia à verdade, de modo a superar a retórica ou a técnica de bem falar dos
sofistas que visava simplesmente interesses particulares e pessoais. Por isso,
para Platão, “consagrar-se à reta filosofia é opor-se a todos os desvios,
principalmente aos de um pensamento ou de ideologia que pervertem a vida
política e social”, escreve Jeannière (1995, p. 17). Dessa intenção sairá a construção
do método dialético platônico.

2. As origens e os objetivos da dialética platônica.


Platão começou a formular sua dialética opondo-se aos procedimentos
persuasivos dos sofistas, visando combater seus ensinamentos que, para ele,
eram uma arte de convencimento sem preocupação com a verdade em si. O
procedimento sofístico ao qual Platão opõe-se é a prática da erística (Sofista,
224e – 226a; República, 499a; Fedro, 261c), uma arte de disputa e controvérsia
que tem como objetivo o convencimento e a persuasão, segundo os interesses de
quem conduz o discurso.
A proposta platônica é superar a erística por um método de filosofar
superior que permita conhecer o mundo de modo rigoroso, incorporando a
totalidade no processo de pensar, unindo o uno e o múltiplo, passando da opinião
(doxa) ao conhecimento seguro e verdadeiro (episteme), “superando o simples

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 125


jogo de palavras e questionando as possibilidades do conhecer, do discurso e do
acesso ao real”, como escrever Paviani (2001, p. 20). Portanto, a dialética platônica
busca seguir as evidências das articulações do real ou das Idéias, de modo a
superar o sensível, o opinativo e a verossimilhança.
Para construir a dialética, Platão utiliza o método socrático de pergunta e
resposta, que não é uma mera conversação com o intuito de convencer um
interlocutor, mas uma refutação (elenchos) para purificar (Sofista, 230; República,
337 – 338) a alma (psyché) do interlocutor, para preparar um processo de
descobertas e de ascensão em direção à verdade. Por isso ela pressupõe critérios
para o saber perguntar e o saber responder.
A dialética platônica constituiu-se com o intuito de superar a retórica
sofística que, nos tribunais e nas assembléias, persuadiam e convenciam de que
as mesmas coisas ora pareciam justas ora pareciam injustas às mesmas pessoas
(Fedro, 261c). Os eristas (oradores) transformavam a argumentação numa mera
técnica de convencimento e contestação (Sofista, 266a); argumentavam a favor de
qualquer opinião, usando a retórica para criar ilusões para obter sucesso, fama e
dinheiro. Para a erística, o conteúdo perde a importância e a dimensão ética é vista
como acidental, relativa e transitória. Assim sendo, a dialética é o método que deve
combater esse relativismo erístico. Para Platão, a dialética não pode perder-se no
desejo ou no interesse particular; a dialética deve buscar conhecer a verdade da
realidade na unidade do pensar, além da percepção sensorial. Desse modo, afirma
Maciel (2004, p. 218), somente o filósofo é dialético porque ele é o único que sabe
como superar o múltiplo e alcançar o uno ou as Ideias.
Como vemos, a dialética platônica supõe o abandono do método seguido
pelos filósofos da natureza e pelos sofistas. Contra os primeiros, Platão afirma que
a construção da dialética verdadeira requer a substituição das causas naturais
(utilizadas pelos filósofos físicos) pela procura da causa verdadeira, a renúncia da
percepção sensível pela visão intelectual e intuitiva das idéias e dos princípios,
como fica evidente no Fédon (96a–100d) e no Fedro (247). Com relação aos
sofistas, o novo procedimento é necessário porque, para Platão, o grande objetivo,
após a fundação da Academia, é ensinar aos jovens como agir de forma virtuosa
(areté) na polis, realizando ações corretas que conduzam à felicidade. As ações virtuosas
serão possíveis, não por discursos ou conceitos relativos, mas a partir de referências
imutáveis, encontradas em um mundo que escapa aos sentidos e que é acessível
somente à razão ou ao logos, de modo a superar o relativismo e particularismo da
erística. Foi contra a postura retórica dos eristas e contra aqueles que utilizavam seus
ensinamentos e práticas que Sócrates, em primeiro lugar, e Platão, depois que a
democracia ateniense condenou o mestre à pena capital, apresentaram suas reflexões
126 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
filosóficas, numa tentativa de reformar as instituições atenienses.
Podemos concluir que o processo dialético platônico constitui uma
transposição e uma adaptação de argumentos filosóficos precedentes: de
Parmênides e de Zenão, das concepções filosóficas de Heráclito, dos
comportamentos éticos-políticos e intelectuais dos sofistas e das críticas feitas a
eles por Sócrates. Portanto, a dialética platônica é uma retomada, de modo original,
do que havia sido exposto por pensadores anteriores, com finalidades diferentes
daquelas apresentadas por ele, e que se revelam a partir de uma análise criteriosa.
Segundo Paviani (2001, p. 33)
os problemas filosóficos inaugurados pelos filósofos da physis e os processos de-
monstrativos da erística, em suas variações, em Protágoras, Górgias, Pródico, Hipias,
Eutifron, assumem no diálogo de Sócrates novos procedimentos metodológicos que
criam as condições necessárias de desenvolvimento da dialética platônica; a com-
preensão dessa formulação exige uma leitura que articule os aspectos diacrônicos e
sincrônicos presentes nas linhas e entrelinhas dos textos.
3. A dialética como busca do fundamento da verdade: as Ideias.
O interesse dos sofistas não é resolver as contradições, os opostos, pois
não estão interessados em explicar a multiplicidade, seja da physis, seja da
conduta moral na polis; eles visam interesses pessoais, agindo somente no campo
da opinião, da doxa. Por sua vez, Sócrates quer convencer no sentido de refutar
para superar as opiniões, quer examinar as afirmações e as negações, com o
objetivo de investigar e alcançar a verdade, ele quer refutar para ensinar a aprender
(MONDOLFO, 1966, p. 141).
Do embate entre as posições de Sócrates e as dos sofistas, acerca da
relatividade da verdade, deu-se a origem do procedimento dialético platônico.
Assim, como escreve Paviani (2001, p. 35), a “complexidade dos problemas
filosóficos acumulados na época de Sócrates, e examinados nos diálogos de
Platão, conduz a uma crise dos processos argumentativos e a uma elaboração
dos processos dialéticos”. Ora, esse procedimento não nasceu por acaso, mas,
ao contrário, foi proposto devido à questão a ser resolvida naquela época: a
oposição entre as teses de Parmênides (a imobilidade do Ser) e de Heráclito (a
mutabilidade constante do Ser); o interesse de Platão era justamente buscar uma
unidade capaz de explicar a multiplicidade dos entes.
Dessa forma, Platão ambiciona a busca de verdades que existam em si,
de modo a priori, só alcançadas no estágio máximo do desenvolvimento da
dialética, depois de superadas todas as explicações naturalistas3. A dialética é um
3
Seria interessante ler sobre a descoberta do inteligível em Platão no Fédon, 96a – 102a.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 127


longo processo de aprendizado, ou como se encontra no Teeteto (184 – 185), um
conhecimento que é adquirido com muito esforço e fadiga, por meio de muitos
exercícios e instrução, que leva inevitavelmente a um efetivo amadurecimento
intelectual e emocional, uma vez que ela se funda nos discursos (logoi). A aquisição
do método dialético permite o confronto em busca de soluções para os problemas
da verdade efetiva das coisas e da conduta na polis.
Os sofistas reduzem os opostos a problemas retóricos, sem procurar
saber se as oposições estão nas coisas ou no conhecimento das coisas e de si
mesmos, ou ainda em ambos. Platão procura superar os desvios éticos da retórica
e estabelecer as condições da verdadeira dialética. Para ele, diferentemente da
retórica, que é a arte dos discursos longos (makroilogoi), expositivos, persuasivos,
fundados em argumentos aparentes, a dialética começa sendo diálogo, ou seja,
discursos curtos (mikroilogoi)4, arte da pergunta e resposta, processo de refutação
das teses falsas em busca de verdade. Assim, o diálogo socrático prepara o
caminho da dialética platônica, superando os processos erísticos e prepara as
mediações dialéticas que levam à superação do múltiplo sensível, que pode ser
relativizado, para alcançar o uno inteligível, ou a estabilidade da forma ou da Ideia.
Nesse sentido, a discussão da construção do processo dialético de Platão nos
mostra como o filosofo ateniense indica o caminho para o bem e o justo,
fundamentos das ações corretas na polis.

4. As diferenças ente a maiêutica socrática, a retórica sofistica e a dialética


platônica.
No debate com a cultura do seu tempo, Platão apresenta em seus diálogos
vários tipos de procedimentos dialéticos. Embora haja vários tipos de
procedimentos dialéticos apresentados, sobretudo, na República, no Fedro, no
Sofista, no Político e no Filebo, a dialética como método desenvolvido por Platão
sempre esteve vinculado a problemas filosóficos. Porém, Platão não abandona
totalmente o método da refutação, herdado de Sócrates, ao realizar as etapas da
dialética. Por isso é necessário examinar como o método socrático se constitui e
como Platão o utilizou para construir a sua dialética, bem como diferenciar o que
é de Sócrates e o que é de Platão no debate contra os sofistas sobre a educação
dos jovens atenienses.

4
Sobre essa diferença entre discursos longos dos sofistas (retórica) e os discursos curtos socráticos
(maiêutica), ler introdução do Banquete. Cf. SOUZA, José Cavalcante de. As grandes linhas da estrutura
do Banquete, In; PLATÃO, Banquete. Tradução, introdução e notas de José Cavalcante de Souza. Rio de
Janeiro: Difel, 2002, p. 13- 25.

128 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


5.1. A maiêutica socrática: educação para a autonomia.
Para Platão, a reta filosofia deve opor-se aos desvios de pensamento que
pervertem a ação do cidadão, “principalmente aos de um pensamento ou de
ideologias que pervertem a vida política e social”, explica Jeannière (1995, p. 17).
Ora, é preciso não esquecer que Sócrates e Platão construíram seus pensamentos
num ambiente de decadência social e política da democracia ateniense e, de
certa forma, culpando os ensinamentos sofistas por tal decadência.
A sofística era muito mais um modo de educar do que uma doutrina
filosófica (TEIXEIRA, 1999, p. 9; JAEGER, 1986, p. 316) que reivindicava altivamente
as honras do saber (MANON, 1992, p. 32). Os sofistas eram professores itinerantes
que, por um determinado preço, vendiam ensinamentos práticos para se ter
sucesso na vida pública e nos negócios privados. Para tanto, propuseram uma
mudança na educação tradicional, que estava baseada na poesia, na ginástica e
na música, dando maior importância ao ensinamento da retórica e à persuasão
para o convencimento.
Sócrates e Platão foram os grandes críticos das práticas didáticas sofistas,
propondo um conjunto de atitudes totalmente diferentes. Sócrates vivia a filosofia
como uma missão sagrada, como pedagogia. Para realizar sua missão de ajudar
o homem a libertar-se dos preconceitos e opiniões e alcançar a verdade, Sócrates
atacou o uso instrumental que os sofistas faziam da palavra, tornando a linguagem
um instrumento de mentira e simulacro, de engano e convencimento. Ele quis
libertar o homem da apatia em que se encontrava por causa dos discursos sofistas
ou aqueles ainda mantidos pela tradição mítica, agindo como uma consciência
sempre desperta (Apologia, 31a), que a alguns entorpecia (Menon, 80a-c) enquanto
dava asas a outros (Górgias, 458a-b).
Sócrates usou o diálogo para questionar seu interlocutor acerca dos
mais variados assuntos, a exemplo do acontece no Menon (71e) e no Eutifron
(5d). Ao perguntar, ele também refutava as opiniões que o interlocutor tinha sobre
as coisas, mas não refutava por refutar; ele refutava para purificar o pensamento
de quem o escutava que se encontrava apegado às opiniões mantidas pela
tradição. O objetivo era conduzir o ouvinte a reconhecer a ignorância, levando-o a
tomar consciência de si mesmo e de seus limites, de sua ignorância.
Nesse sentido, a pergunta e a resposta não se efetivavam sem
determinados procedimentos de exame e refutação. No exame, Sócrates
comparava-se às artes de seus pais: a escultura, do pai, e a parturição da mãe. O
pai dava à matéria a forma que ela potencialmente continha; a mãe ajudava as
mulheres a parir os corpos de que estavam grávidas. Assim também agia Sócrates:
através de suas perguntas, ele ajudava as almas dos homens a dar a luz à verdade
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 129
de que eram portadoras potencialmente, realizando a sua maiêutica. Opondo-se
aos sofistas, para quem a educação, como transmissão de saber e de virtude,
vem de fora para dentro5, Sócrates afirma que o homem traz na sua alma as ideias
que levam às verdades, como que grávidos delas; basta livrar-se das opiniões e
dos preconceitos, com os recursos da ironia e da refutação, voltar-se para si
mesmo e colocá-las para fora, como uma parturição da verdade (Teeteto, 148e –
151d; Menon, 84 - 85). A partir dessa proposta aparece uma nova interpretação do
conceito de alma (psyché), o que nos leva, antes de progredirmos com o método
socrático, analisar esse conceito e relacioná-lo à maiêutica.
Segundo Giovanni Reale (1994, p. 258), o método socrático de filosofar,
que difere do sofista, remete ao novo conceito de alma (psyché) que começava a
se desenvolver na Grécia, do qual Sócrates foi o primeiro a levar adiante: a alma
passou a ser vista como o lugar da consciência, da personalidade intelectual e
moral do homem. Esse novo conceito de alma explica a oposição de Sócrates
aos sofistas e seu envolvimento com as transformações que ocorriam na vida
social e política na Atenas do século V a.C. Para Sócrates, o homem é a sua alma
e dela deve cuidar bem (Apologia, 30a). Para cuidar da alma não bastam palavras
vazias dirigidas aos ouvintes sem ter o cuidado com quem escuta; não se cuida
da alma com discursos em benefício próprio, como queriam os sofistas, mas com
diálogos, com o logos que envolve efetivamente mestre e discípulo numa
experiência comum de busca da verdade.
No Protágoras (313a-e), é ilustrativo o diálogo em que Platão faz Sócrates
travar com o sofista de Abdera acerca dos cuidados com a alma. No diálogo,
discute-se sobre a quem deveria ser confiado o corpo, para torná-lo mais forte, e
se a alma poderia ser confiada a um sofista e que tipo de alimento ela deveria
receber na sua educação. Na discussão, há uma diferença fundamental entre as
propostas de Sócrates e dos sofistas: os sofistas são “varejistas” de alimento da
alma, mas não conhecem nem os alimentos nem a alma, não sabem se fazem
bem ou mal à alma. Sócrates, ao contrário, procura conhecer a alma e os alimentos
que ela precisa para ser melhor. Sócrates sabe cuidar da alma. Desse modo,
para Platão, os sofistas não souberam determinar a verdadeira natureza do homem,
pois não perceberam que o homem é a sua alma. Sócrates, compreendendo que
o homem distingue-se pela sua alma, não viu outra concepção senão contribuir
para que ela aprendesse como agir de modo virtuoso. O caminho para uma ação

5
Essa era uma convicção muito forte entre os gregos daquela época, segundo Luc Brisson na introdução
da tradução francesa do Banquete. Cf. BRISSON, Luc. Introduction. In: PLATON. Le Banquet. Traduction
inédit, introduction et notes par Luc Brisson. Paris: GF Flamarion, 2000, p 11-12.

130 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


por excelência (areté) é o conhecimento ou a ciência; só age de maneira virtuosa
quem conhece o que é belo e bom, quem desconhece isso age segundo as
opiniões e interesses ou vícios. O homem que se dedicar à busca da verdade,
torna a sua alma boa, o que o leva a uma vida melhor, como homem e como
cidadão. Por isso, a ciência da educação é a ciência que tem como fim conduzir
a alma a conhecer a si mesma (Laques, 185d-e) e a encontrar os meios mais
adequados para cuidar de si e torna-se melhor (Alcibíades, 128 –130).
Com o novo conceito de psyché, e tendo como forma de sua realização
virtuosa o conhecimento da verdade, Sócrates valorizou novos tipos de bens.
Enquanto os sofistas, seguindo ainda certos valores tradicionais, valorizavam bens
ligados ao corpo (saúde, vigor físico, beleza) ou bens exteriores (riqueza, poder,
fama), Sócrates valorizava os bens da alma (coragem, temperança, justiça e
sabedoria), colocando os bens físicos e exteriores em segundo plano.
Com essa atitude, Sócrates supera os poetas, que relatavam ou citavam
as vontades divinas na condução das ações dos homens, bem como os sofistas
que, com seus longos discursos, conduziam as vontades de quem os escutava,
de acordo com interesses particulares. O diálogo socrático supera os dois
procedimentos porque utiliza a razão e dela se alimenta, sem recorrer a instâncias
divinas tradicionais ou a procedimentos pedagógicos de interesses pessoais. Por
isso, o método socrático pode ser entendido como de natureza propedêutica e
pedagógica; é um método essencialmente educativo e ético, que exorta o homem
a se conhecer e a saber cuidar da sua alma.
Por conter essas características, a filosofia socrática pode ser resumida
em duas proposições convergentes: “conhecer a si mesmo” e “cuidar de si mesmo”,
nas palavras de Reale (1994, p. 261). Nesse raciocínio, o conhecer a si mesmo
significa examinar-se interiormente e conhecer a própria alma, pois ela é a própria
identidade do indivíduo; o cuidar de si mesmo significa cuidar da própria alma, pois
é nela que repousa o fundamento do pensamento e da ação que caracteriza o
indivíduo frente ao grupo social. Por isso, a dialética socrática é uma exaltação à
virtude (areté), demonstrando que essas duas atitudes, conhecer a alma e o cuidado
com a alma, são os bens máximos que o homem deve buscar. Essa era a missão
filosófica de Sócrates como missão divina, da qual se considerava investido pelos
deuses (Apologia, 30a-b): ensinar os homens a conhecer e a cuidar de si mesmos.
O caminho para tal objetivo é a purificação da alma, examinando-a com perguntas
e respostas, procurando libertá-la dos erros e prepará-la para a busca da verdade
(Laques, 187d – 188b; Carmides, 154d-e; Apologia 29d-e).
Retomando à maiêutica socrática, o não-saber é o ponto de partida dela.
Sócrates partia da afirmação de nada saber, colocando-se diante do seu
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 131
interlocutor como alguém que tinha muito a aprender e não na posição de ensinar
(posição dos sofistas). Ele assumia esta posição de nada saber, justamente para
inverter os longos discursos de efeitos sofísticos, abrindo a possibilidade de um
diálogo com o interlocutor. Assim, o ambiente para a busca do saber estava criado:
enquanto o sábio transmite conhecimento, quem não sabe, busca conhecimento;
quem sabe, colocava-se num patamar mais alto que seu ouvinte, num ambiente
de exposição do saber, um monólogo de convencimento; quem afirma nada saber,
coloca-se na mesma posição de quem ouve, criando um ambiente de diálogo, de
igualdade, de amizade e afetividade entre os interlocutores.
Com a atitude de quem queria buscar junto o conhecimento, Sócrates
rompeu com o saber de especulação dos físicos e dos sofistas, bem como da cultura
tradicional em geral (dos políticos, poetas, etc.). Diante do saber dos físicos, ele
denunciou a pretensão de um saber que ultrapassava em muito as forças e capacidades
humanas, por isso a necessidade de voltar-se e “conhece-te a ti mesmo”. Para ele,
enquanto buscavam conhecer as leis secretas do cosmos, pretendendo encontrar
um princípio originário de tudo, os físicos descuidaram-se do homem. Frente ao saber
sofista, ele denuncia a pretensão de um saber quase ilimitado. Sócrates denunciou a
inconsistência, o fato de permanecerem na superfície dos problemas ou procederem
por pura intuição e por natural disposição, ou da presunção de saber tudo pelo simples
fato de dominarem uma única arte (Apologia, 21b – 22e).
Daí as críticas contra as posturas de Górgias que afirmava ser capaz de
responder a qualquer coisa que lhe fosse perguntado e que ninguém lhe havia
feito perguntas novas (Górgias, 488a); denunciava a ostentação de Protágoras,
que afirmava ser capaz de melhorar cada vez mais as virtudes de quem
freqüentasse seus debates (Protágoras, 318a); mostrava a inconveniência de Hípias,
que se glorificava de saber fazer de tudo (Hípias Menor, 368b). O não-saber
socrático tem como função criar o ambiente ideal para a busca conjunta da
verdade, provocando um choque benéfico no ouvinte do qual nasce a condição
para o diálogo, ponto de partida para uma verdadeira educação.
5.2. A maiêutica socrática em oposição à retórica sofistica: a ironia versos
o convencimento persuasivo.
A ironia como método é uma simulação ou fingimento utilizado por
Sócrates para forçar seu interlocutor a dar conta de si mesmo, reconhecer as
limitações de suas opiniões. Simone Menon (1992, p. 31-32) afirma que
a ironia tinha como objetivo remeter o interlocutor a si mesmo, acompanhá-lo com
sua exortação tenaz, como fazem as parteiras ao acompanhar o parto, nessa difícil

132 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


tarefa da ascese que, pouco a pouco, faz germinar a lembrança ali onde a obscuri-
dade do esquecimento tecia o fio do saber”.
A ironia não visava desqualificar o interlocutor, mas libertá-lo e ajudá-lo na
busca da verdade e na superação de opiniões ou erros a que fora conduzido.
Com a ironia, Sócrates assumia um tom de zombaria, parecia desprezar o
interlocutor, parecia divertir-se com ele. Ele fingia, muitas vezes, assumir as idéias
e métodos de seus interlocutores, sobretudo se fossem sofistas ou seus discípu-
los, para engrandecê-los e depois lhes mostrar as suas contradições. Nesse sen-
tido, a ironia assumia uma função de purificação sem a qual não podia haver o
verdadeiro saber; provocava uma transformação na alma do ouvinte, desmasca-
rando o aparente saber e revelando sua ignorância.
No Górgias (457a-b), por exemplo, Sócrates discute sobre os
ensinamentos da retórica aos alunos e o comportamento do mestre. Ele, dirigindo-
se ao sofista, demonstra que os contendores, usando da retórica, raramente
chegam a definir a matéria que se propõem a debater, discordam um do outro
com acusações de inveja; estão mais interessados em vencer o debate do que
em examinar profundamente a questão proposta. Sócrates mostra a Górgias que
seus princípios de retórica aceitam o insulto e desprezam a refutação, demarcando
a diferença entre a retórica sofística e a maiêutica.
Encontramos esse procedimento irônico no Sofista (230 b-e) com o qual
as certezas ingênuas e a segurança no saber eram postas em xeque até exaurir
seus recursos, provocando no interlocutor, de um lado, o ofuscamento daquilo
que, antes, era considerado seguro e inabalável, e, de outro lado, a falta de novas
certezas às quais pudesse agarrar.
Destruindo as certezas e mostrando que só possuíam opiniões, Sócrates
causava dúvidas aos ouvintes, confundia-lhes as idéias e entorpecia-lhes o
pensamento (Meno, 80a-b). Com essas atitudes, Sócrates provocava o ambiente
adequado para iniciar o processo de descoberta da verdade, da maiêutica, fazendo
o interlocutor reconhecer sua ignorância acerca da definição apresentada sobre
o assunto, para poder, ele mesmo, começar a trilhar o caminho da busca da
verdade. A maiêutica, antecedida pela ironia, completa assim o seu objetivo: remeter
o espírito do discípulo a si mesmo, demonstrar que o conhecimento é uma volta
ao interior de si mesmo e que tudo está no interior da alma, bastando um esforço
para recordar e trazê-lo à luz.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 133


5.3. A dialética de Platão: as Ideias como modelos verdadeiros para a correta
educação ética.
Platão manteve e apresentou todas essas características socráticas nos
diálogos da juventude, também chamados aporéticos. Os enunciados desses
diálogos, que se desenvolvem com pergunta e resposta, têm o objetivo de procurar
a verdade ou simplesmente de livrar o ouvinte do erro, dos sofismas e do estado
de presunção de saber.
Os diálogos aporéticos são marcados pela presença do Sócrates histórico
e, em geral, desempenham discussões sobre ética, procurando definir
determinada virtude como a coragem (Laques), a piedade (Eutifron), a amizade
(Lysis), o autocontrole (Cármides). Neles, Sócrates, como personagem central,
geralmente faz o levantamento dos diferentes modos de se conceituar aquelas
virtudes, denuncia a fragilidade da conceituação, deixando a questão em aberto,
inconclusa. A inconclusão tem a ver com a intenção da busca de um
autoconhecimento, o “conhece-te a ti mesmo”, levando o interlocutor a reconhecer
que só possuía opiniões (doxai) acerca das coisas. Isso implica mudanças de
conduta, renúncia às opiniões já formadas e a busca incessante da verdade.
A certa altura de sua reflexão filosófica, Platão se afastou do mestre e
começou a trilhar uma reflexão original. Ele, sem negar a influência de Sócrates,
ao contrário, levando-a ao extremo, radicaliza aquilo que aprendeu com seu mestre
e, aos poucos, vai construindo um método diferente, mais complexa que o herdado
do mestre.
Dos diálogos da maturidade em diante, observa-se uma passagem do
método maiêutico socrático do esclarecimento dos conceitos por argumentação
para a busca do conhecimento das Ideias, do conhecimento das coisas em sua
própria realidade, em si mesma.
Com o novo procedimento, a pergunta socrática “o que é algo” (o que é a
beleza, o que é a justiça, o que é a virtude, etc.), com a intenção de descobrir se o
interlocutor sabe que diz, ocupa uma posição subalterna em relação à
contemplação dialética das Ideias.
Para Paviani (2001, p. 40), mesmo que “em dados momentos elas [a
dialética socrática e a dialética platônica] coexistam de modo harmonioso e
complementar”, há entre elas uma diferença de método e de temas: nos diálogos
da juventude ou aporéticos e os do início da maturidade, que têm como centro da
discussão problemas éticos e políticos, a dialética desenvolve-se por processos
de interrogação e refutação (elenchos); já os diálogos da maturidade e da velhice
discutem problemas metafísicos, como a descoberta do inteligível, e a discussão

134 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


acerca das Idéias como causas reais das coisas.
Parece que Platão, quando começou a pensar a existência da Ideia, o
mundo inteligível como fundamento do mundo sensível, bem como as
conseqüências dessa descoberta (o mundo da Ideias, a Ideia de bem, a
reminiscência e os graus do conhecimento), percebeu a necessidade de construir
outro método que pudesse resolver o problema da relação entre o inteligível e o
sensível, entre o Uno e o múltiplo, entre a permanência e a transformação do ser,
sem cair em aporias. Segundo Paviani (2001, p. 42): “O procedimento interrogativo
de Sócrates não é apto para resolver as questões postas pela filosofia de Heráclito
e de Parmênides, e agravadas pelas posições sofistas”. Também Lima Vaz (1997,
p. 31) pensa de modo semelhante ao dizer que somente com a elevação da razão
ao nível do “verdadeiro conhecimento (alethesón) e do princípio absoluto (arque
anypóthetos) que a dialética poderá responder às aporias”.
Por isso, a dialética platônica substitui os procedimentos refutativos e
assumiu os procedimentos da unificação (synagogé) e da divisão (diairesis),
produzindo um movimento dialético ascendente (anabásis) para Ideias gerais,
bem como um movimento descendente (katabasis) para Ideias particulares. Os
novos procedimentos preparam a dialética do nous (a intuição racional), único
procedimento capaz de ultrapassar o sensível, o particular, e penetrar no inteligível,
tornando-se de fato uma ciência (episteme). Esses procedimentos estão presentes
nos diálogos platônicos da maturidade e da velhice.
Para Jayme Paviani (2001, p. 41) algumas mudanças, presentes nos
diálogos da maturidade e da velhice, são facilmente percebidas, por exemplo: o
emprego da ironia é substituído pela argumentação positiva. Busca-se um
conhecimento da realidade da coisa em si mesma e não simplesmente o significado
do conceito; a crítica à retórica sofística é substituída pela dialética da argumentação
racional, não se busca a persuasão ou o convencimento, mas o aprendizado de fato
do ouvinte; há um deslocamento da preocupação ético-política para as questões
lógico-ontológicas, sempre em busca de uma fundamentação capaz de retornar às
questões éticas, que são articuladas, na última fase do seu pensamento, em relação
com a sua filosofia da natureza, exposta no Timeu e no Filebo.
A forma interrogante utilizada por Sócrates era uma forma de meditar, de
refletir sobre os problemas comuns nos debates da época e que deveriam ser
situados de uma maneira mais adequada, uma vez que a forma exposta nos
diálogos platônicos da juventude conduzia invariavelmente às aporias. A solução
para os problemas de cunho metafísico não estava só no procedimento refutativo,
porque eles não possuíam as condições para alcançar a realidade em si,
justamente por não obter consenso, o que se tornava um problema para alcançar
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 135
a verdade. Analisando tal problema, Goldschimidt (2002, p. IX) afirma que, nos
diálogos da maturidade, é possível progredir por refutação, por elenchos, porém
só se alcança a verdade, o bem e o uno por meio do método dialético da ascensão,
da descida, da unificação, da divisão, do uno e do múltiplo, da dicotomia, da
hipótese, que são termos, segundo ele, que parecem definir suficientemente o
método dialético de Plat.
A partir desse momento intelectual, Platão supera o método de seu mestre
e começa a trilhar um método próprio, sem abandoná-lo completamente.
A mudança progressiva da maiêutica socrática para o novo método dialético
de Platão pode ser percebida a partir do Fédon, com a proposta da descoberta do
inteligível, lugar para onde a alma deve se dirigir em busca da Idéias em si.
No Fédon (96a–100d), que é visto por alguns comentadores como uma
autobiografia intelectual de Platão (REALE, 1997, p. 102; PAVIANI, 2001, 39), se vê
o “problema da physis” transformar-se em “problema dos opostos e das idéias”.
Com a apresentação do mundo das Ideias tem início a construção do processo
dialético platônico como ascese para atingir, mediante exercícios específicos, o
mundo inteligível com todas as suas características. Na apresentação da “segunda
navegação”, como encontramos no Fédon (96a – 1002 d)6, Platão abandona as
explicações pelas causas naturais (fogo, água, terra e ar) dos físicos ou naturalistas,
bem como as causas intelectuais de Anaxágoras (nous, a inteligência superior
ordenadora de tudo), para adotar um novo modelo de investigação,admitindo a
existência de “realidades inteligíveis” como “causas verdadeiras” que fundamentam
as coisas que vemos, sentimos e nas quais vivemos. Platão entendeu que as
explicações anteriores estavam estritamente ligadas ao material, não fornecendo
explicações satisfatórias sobre o que estava além do sensível. Por causa dessa
constatação, ele abandona as explicações sensíveis ou ligadas a elas e opta por
uma forma de procedimento que seja capaz de fornecer uma explicação
satisfatória sobre o problema da physis (Fédon, 99d).
As formas ou Ideias aparecem em Platão como fundamento do mundo
sensível. O sensível e o inteligível se articulam numa densidade tal que o primeiro
só pode existir e ser conhecido a partir do segundo. As Ideias são os meios que
permitem pensar e dizer a multiplicidade do mundo sensível. Com elas, torna-se
possível encontrar as essências estáveis que permitem a definição das coisas.
6
Comentários sobre a apresentação da descoberta do inteligível ou do Mundo das Idéias em Platão, Cf.
REALE, Giovanni, Para uma nova interpretação de Platão, p. 102 e ss, obra na qual o estudioso discute
a “segunda navegação” e a descoberta do inteligível em Platão. Sobre as concepções de Platão acerca
das Idéias, cf. Giovanni REALE, Ibidem, p. 155 e 195; cf. ainda ROBLEDO, Antonio Gomes. Platón:
lossis grandes temas de su filosofia. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993, p. 120-122.

136 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Por exemplo: as coisas belas, como existência empírica, só são belas porque
participam da Ideia de Belo (Fédon, 100d), da mesma maneira que a beleza
absoluta, enquanto beleza em si mesma, permite ver as coisas belas nas coisas
particulares (Eutifron, 6d-e). Desse modo, o dialético não confunde a beleza em si
com a beleza das coisas sensíveis (República V, 476e-d) porque as idéias tornam-
se o paradigma com o qual a dialética vê a estrutura de tudo que existe.
O exemplo dado por Platão sobre as “três camas” na República (596b-e)
pode esclarecer bem essa visão. Nele, Platão mostra que a cama do pintor (o
quadro de uma cama) e a cama do carpinteiro (a cama particular que o carpinteiro
constrói para dormir) fundamentam-se na cama essencial, na Ideia pura de cama.
Nesse exemplo há um processo dialético que demonstra que o mundo sensível
relaciona-se com o mundo inteligível, de forma que as Ideias, enquanto paradigmas
ou modelo, são a mediação desse processo, e que são elas que a alma busca
incessantemente. Nesse sentido, Platão objeta que se cada Ideia é um
pensamento (noema) e se produz unicamente na alma, a Ideia não é um ser que
vem do sensível para a mente, mas um ente da razão (Parmênides 152-153c),
uma visão do espírito, ou seja, uma realidade inteligível e fundamento de todo o
sensível, que só é percebida pelo olhar da alma (República 533; Fédon 74d–75b,
80a–81c, 100d), mediante uma intuição racional ou noesis (Fedro, 247).
Para tal visão não bastava simplesmente discutir o significado dos
conceitos, mas percorrer uma série de etapas até alcançar o que é em si mesmo.
Por isso Platão utilizava-se do diálogo socrático como base da procura do belo
em si, do bem em si, do grande em si, coisa com que a erística não se preocupava
e não era capaz de realizar. Mas Platão vai além: ele quer chegar à forma imutável
de todo ser. Daí a necessidade de outro processo ou modo de conhecer que levou
à formulação da dialética.
A descoberta do inteligível traz algumas conseqüências importantes, tais
como: para que o mundo inteligível seja conhecido é necessária a elevação da
alma (psyché); essa elevação só é possível mediante exercícios dialéticos; para
que esses exercícios sejam realizados, tornando essa elevação racional possível,
a dialética maiêutica socrática deve ser modificada e complementada. A nova
dialética pressupõe a teoria da reminiscência, o que formula as expressões “visão
da mente” ou “visão da alma” (Fédon, 74d-75 b; 80a-81c; 100c-d; Fedro, 247e;
República, VII 519b), que caracterizam o ver intelectivo ou racional (noesis) ou o
conhecimento imediato das Ideias, o momento supremo da dialética.
Diante desse quadro, pode-se afirmar que, em Platão, há uma afinidade
entre a dialética, a alma (psyché) e as Ideias. No Fédon (80a- 81a), bem como no
Fedro (246-247) percebemos essa afinidade: a alma aproxima-se do divino, do
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 137
inteligível e do imutável, enquanto o corpo se prende ao humano, ao mortal e à
mudança (Teeteto, 176); a alma tende a dirigir-se para o que lhe é semelhante,
libertando-se das amarras do sensível e buscando o inteligível, enquanto o corpo
se aferra ao que lhe é prazeroso (o que é representado na Alegoria da Caverna).
Assim, a alma está em um movimento entre o sensível e o inteligível, em busca do
verdadeiro ser: a Ideia. Por isso, o verdadeiro conhecimento consiste em um
saber que unifica a multiplicidade numa visão sinótica, de reunião, de unificação,
que reúne a multiplicidade sensorial na unidade da Ideia da qual depende. É esta
capacidade de ver o conjunto da realidade que separa o homem comum do
filósofo. O comum vê com os “olhos do corpo”, limitando-se ao sensível, agarrando-
se ao múltiplo; o filósofo, por sua vez, vê com os “olhos da alma”, ultrapassando o
sensível e o múltiplo, penetrando no inteligível e no uno.
Os exercícios de subida para o inteligível representam um esforço que
tem seu primado no logos. É o logos que impulsiona a ação, que fundamenta a
relação entre mestre e discípulos, conduzindo-os à busca da verdade, levando-os
à aproximação do inteligível. Somente o método dialético é capaz de,
ultrapassando as hipóteses, alcançar o princípio que conduz à solidez do
conhecimento. Nesse exercício dialético, mestre e discípulo procuram analisar a
articulação, o relacionamento do real, das Ideias entre si e dessas com o sensível.
É justamente esse o movimento que a discussão enquanto logos comporta: um
movimento de subida (anabásis) do sensível para as ideias e de descida (katabásis)
das Ideias para o sensível.
A dialética de Platão é uma conseqüência da descoberta do inteligível, o
mundo das Ideias, e tudo que dela decorre. Ela não foi construída de uma vez só,
mas durante a redação dos vários diálogos da maturidade. Platão, na sua fase
madura, não abandonou totalmente o método socrático, ao contrário, ele o leva
às últimas conseqüências, radicalizando-o e assumindo novos interesses. Embora
os diálogos da maturidade, os diálogos dialéticos, procedam por divisão (diaíresis)
em duas ou mais partes, de modo que se possa auxiliar na aquisição de posições
seguras, ou por reunificação (synagogé) de diversas partes para se chegar a uma
resposta verdadeira, o procedimento por refutação (elenchos) ainda está presente.
Por isso, é possível afirmar que “a dialética diairetica começa a partir dos
resultados conseguidos pela dialética no estilo socrático” (PAVIANI, 2001, p. 41).
Esses processos dialéticos demonstram como é longo e complexo o
percurso de resolução dos contrários, das aporias e como o filosofar exige um
adequado empenho intelectual (ascese dialética) e afetivo (ascese erótica) para
se alcançar a verdade. A intuição intelectual da verdade não pode ser alcançada
com os comportamentos competitivos dos sofistas. Muito pelo contrário, a
138 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
formação do dialético requer um longo trabalho de preparação, longos treinos de
exercícios racionais e afetivos, sem os quais ele ficará preso ao sensível e aos
próprios interesses, tornando impossível a busca da verdade, o ato filosófico por
excelência. .
Esta é a realidade a que o filósofo deve dedicar-se: ser capaz de proceder
dialeticamente, passando do conhecimento baseado na simples opinião (doxa)
do sensível para o conhecimento sustentado pela ciência (episteme) do inteligível,
de modo que possa alcançar o mudo das Ideias e compreender como elas
participam entre si e com o mundo sensível. Se esse procedimento não acontecer,
a produção de discursos não produzirá o que Platão chama de “coisas de maior
valor”; aquele que não produz coisas de maior valor não é filósofo, mas um sofista,
um logógrafo ou um legislador, como fica claro no Fedro (258a-e).
É possível dizer que o movimento dialético tem a função de procurar os
rastros ou as evidências das articulações do real, que são as Idéias, seja no sentido
ascendente ou no descendente. Esse movimento conduz o dialético a um
compromisso ético que pode ser exposto da seguinte maneira: aquele que, com
esforço dialético, contemplar e conhecer as Ideias de bem e belo deve agir conforme
esse conhecimento, produzindo belas e boas ações 7. É como o prisioneiro
acorrentado que conseguiu fugir das correntes das sombras, contemplou a luz da
verdade e voltou ao mundo das sombras e das aparências para ensinar aos que
continuavam nas sombras aquilo que ele conheceu no mundo real, como se lê na
República. Assim, o aprendizado dialético em Platão é acompanhado de um
compromisso de responsabilidade ética, em conformidade com os ensinamentos
de Sócrates, o que não se encontrava na erística, a retórica sofistiva.
Por isso, Platão, depois da morte do mestre, condenado a beber cicuta, voltou
a Atenas, já em crise e com a democracia decadente, e decidiu fundar uma escola
para por em prática aquilo que aprendera com o mestre e que tinha amadurecido ao
longo de alguns anos de viagem pelo mundo culto da antiguidade. Então, Platão
fundou a Academia e criou um conjunto de exercícios e de conteúdos que, acreditava
ele, seria a base para educar os jovens atenienses com o objetivo de resgatar o
esplendor de Atenas. Esses procedimentos e conteúdos estão apresentados na
República, discussão que requer uma outra análise em outro artigo.

7
Nesse sentido concorda Sonia Maria Maciel ao afirma que “Platão, sempre que fala da dialética, se
refere àqueles que a praticam. Portanto, não existe procedimento dialético sem conduta ética que
caracterizem seus participantes. Pois, sendo o dialético aquele que tem condições de conhecer as
realidades inteligíveis, ele conhecerá as realidades verdadeiras as quais são também os paradigmas ou as
normas a governar suas condutas“. Cf. Sonia Maria MACIEL, op. cit., p. 215.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 139


BOTELHO, O. S. Construction of the dialectic process in Plato: the conflict between
philosophy and rhetoric as a revision of the basis in Ancient Greece. Dialogus. v.9,
n.1 e n.2, pp. 123-141.

ABSTRACT: The intension of this article is to demonstrate how Plato returns to a


traditional education, based on and maintained by the myths of poets and by
sophistic didactics. He surpasses it with a new pedagogical model which intended
to better prepare youth for the responsibilities of life in the polis through a return to
and radicalization of maieutics constructed by Socrates by confronting sophistic
rhetoric and those who sought it out for personal success.

KEYWORDS: Plato; Sócrates; dialectics; Maieutics; Rhetoric.

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et notes par Luc Brisson. Paris: GF Flamarion, 2000.
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DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 141


142 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
ARTIGOS/ARTICLES

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 143


144 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
PATRIMÔNIO CULTURAL, RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE39:
REFLEXÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA DE PESQUISA COM O
INRC – INVENTÁRIO NACIONAL DE REFERÊNCIAS
CULTURAIS
Sandra Rita Molina∗
Nainôra Maria Barbosa de Freitas∗∗
Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa***

RESUMO: Apresentam-se as reflexões resultantes da aplicação do INRC –


Inventário Nacional de Referências Culturais, durante Projeto Paisagem Cultural
do Café, em Ribeirão Preto, SP. A complexidade envolvida na definição de sentido
patrimonial em manifestações de religiosidade católica é o foco das questões
postas por este texto.

PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural; religião; religiosidade; INRC.

Introdução
Tem crescido o debate em torno do universo teórico-metodológico que
envolve os conceitos de religião e religiosidade. Grupos de pesquisas voltados
para as mais variadas reflexões e as relações das mesmas com as diferentes
instâncias da sociedade como ABHR – Associação Brasileira de História das
Religiões; Grupo de Trabalho da ANPUH voltado para os estudos de religião;
CEHILA - Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina e Caribe;
SOTER- Sociedade de Teologia e Religião, entre outros, ampliam essa discussão
a partir de análises desenvolvidas em áreas diversas como História, Geografia,
Antropologia, Sociologia, Economia, Teologia, Turismo, Ciência da Religião, entre
outras.

39
Artigo originalmente apresentado no Congresso Internacional de História e Identidades, na Universidade
Federal de Goiás, em 2013.

Doutora e mestre em História pela Unicamp, professora da Universidade de Ribeirão Preto, Unaerp,
onde coordena o curso de Relações Internacionais, pesquisadora do IPCCIC.. Email: sandmd@terra.com.br
**
Doutora e mestre em História pela Unesp, professora do Centro Universitário Barão de Mauá e FARP,
pesquisadora do IPCCIC
***
Pós-doutoranda em Administração pela FEA-RP/USP. Doutora e mestre em História pela Unesp,
professora e coordenadora do curso de História do Centro Universitário Barão de Mauá, vice-presidente
do IPCCIC.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 145


Em paralelo e motivado por uma percepção antropológica (GEERTZ,
1978), outro debate intensifica a reflexão sobre a noção de patrimônio cultural. As
novas concepções sobre esse conceito valorizam o dinamismo e a dimensão viva
da cultura, caracterizada por uma rede de significados. Esse movimento possibilita
a apreensão da realidade social como multicultural (SILVA; ROSA et al, 2012). O
olhar sobre a dimensão intangível tem impulsionado a reavaliação de antigos
pressupostos que norteavam esses estudos. Como resultado, também são
repensadas as metodologias. Um exemplo é o INRC, Inventário Nacional de
Referências Culturais, que se caracteriza como um instrumento desenvolvido
pelo Iphan, tendo como base a noção de referência cultural (IPHAN, 2000). O seu
objetivo é apreender os sentidos, os significados, as transformações e atualizações
do objeto de estudo, partindo da percepção daqueles que os produzem,
considerados como intérpretes da cultura local (HENRIQUE, 2011).
O INRC foi utilizado em Ribeirão Preto no projeto “Paisagem Cultural do
Café”, executado pela Rede de Cooperação Identidades Culturais, entre 2010 e
2012. Os objetivos foram mapear, identificar e documentar as referências culturais
ligadas ao período do café, entre 1870-1950 (SILVA; ROSA, et al, 2012). Além
disso, permeou esse processo de pesquisa, a necessidade de fornecer dados
que pudessem auxiliar na construção de futuras políticas públicas focadas na
valorização do patrimônio local fosse ele material ou imaterial.
Tendo em mãos os resultados desse trabalho foi possível compreender a
rede de relações produzidas em uma comunidade do interior do estado de São
Paulo, na qual a economia cafeeira forjou um complexo cultural dinâmico. Durante
o projeto, o grupo refletiu sobre patrimônio cultural, testando os limites tanto do
conceito, quanto da metodologia do INRC, principalmente no que tange à
dimensão religiosa.
Observou-se durante a identificação de manifestações de caráter
religioso, arraigadas na tradição popular, que elas tinham em comum as
características devocionais. Tais práticas ligadas a devoções sempre permearam
a cultura brasileira e possuem inúmeros elementos com símbolos variados como
rezar aos santos, sejam os reconhecidos pela Igreja ou não, pedir graças, acender
velas, fazer e pagar promessas, fazer novenas, acompanhar procissões, frequentar
benzedeiras, entre outros rituais que compõem o universo da religião e religiosidade
em busca da felicidade, da cura, do trabalho, expressa nos relacionamentos
reais de ordem religiosa, social, econômica e política. Entretanto, ainda careciam
de análise quanto aos aspectos ligados à atribuição de valor patrimonial.
Nesse processo, a principal questão a ser respondida pelo grupo era: o
que conferia sentido de patrimônio a um bem religioso? Estudando-os
146 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
sistematicamente, os pesquisadores experienciaram uma imersão: entraram na
vida dessas comunidades como estudiosos, promovendo alterações de percepção
em si mesmos e nos sujeitos envolvidos.
Visando apresentar essas reflexões para a comunidade acadêmica
reuniram-se historiadoras da Rede de Cooperação, cuja formação e experiências
são marcadas pela intersecção desses universos: patrimônio cultural, religião e
religiosidade. O que se pretende expor são apontamentos baseados nos resultados
de três anos de pesquisas, nos quais se buscou identidades marcantes
relacionadas a diversos grupos que se engendraram no período estudado.
Em particular discutem-se questões sobre as identidades católicas
estudadas a partir de metodologia criada para diagnosticar bens culturais com
sentido referencial, voltada para a consecução de políticas públicas. Contudo,
uma das fragilidades dessa opção é que, por mais que a noção de patrimônio
cultural tenha se ampliado e esse processo esteja refletido no INRC, ele ainda se
manifesta limitado quando o assunto é identificar e analisar o campo religioso, a
partir da percepção do sujeito que dá sentido à prática. Isto porque, no decorrer
da pesquisa tende-se a domesticar as variáveis, enquadrando-as no instrumento.
Esse processo pode incorrer no risco de contribuir para o prevalecimento da
intenção de uma determinada política pública e a legitimação um saber
acadêmico.
Esse tipo de reflexão se justifica a partir do contato com o contexto histórico
religioso com o qual os pesquisadores trabalharam. Dessa forma, apresenta-se
adiante um breve resumo do papel da religiosidade católica na formação cultural
brasileira e a problemática de atribuição de valor patrimonial às práticas a ela
relacionadas.

Religiosidade católica e patrimônio cultural


O Acordo Brasil – Santa Sé, publicado em 2010, definiu oficialmente o
patrimônio cultural católico para as duas partes: “[...] patrimônio histórico, artístico
e cultural da Igreja Católica, assim como os documentos custodiados nos seus
arquivos e bibliotecas, constituem parte relevante do patrimônio cultural brasileiro
[...]” (BALDISSERE, 2012, p. 218). A assinatura desse tratado, que contém o artigo
6º, específico sobre os bens culturais da Igreja, resultou de mais de um século de
defesa do catolicismo como elemento essencial da formação cultural do brasileiro.
Não sendo este o fórum adequado para aprofundar essa questão, apenas destaca-
se que essa estratégia visava, entre outras coisas, fortalecer e justificar a defesa
dos interesses da Igreja num Estado Laico (ROSA, 2011).
O valor atribuído pelos fiéis e pela Igreja a esses bens: como de inspiração
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 147
do sagrado, aparece no acordo internacional, concordando-se como prioritário
em relação ao valor patrimonial. No que tange a sua preservação pelo Estado
brasileiro, a principal justificativa é o fato de serem parte do “patrimônio cultural e
artístico” do Brasil, importante para a identidade nacional.
Há um consenso na historiografia de que a questão da religiosidade
católica constitui um dos fatores importantes na construção das identidades
culturais, posto que, observada desde os primórdios da nossa colonização, se
revelou a herança de um processo secular vivenciado pelos portugueses e
apropriado por determinados grupos da sociedade brasileira.
Durante a colônia, por exemplo, nota-se que a estreita aproximação entre
a política, a religião e a população era um procedimento estabelecido
particularmente em um estado de tradição regalista como era Portugal, onde o
poder Temporal e o poder Espiritual se confundiram desde a Idade Média. Um
dos suportes a esta relação próxima entre os poderes era o regime de Padroado
Régio. Através de diferente Bulas como a Romanus Pontifex do Papa Nicolau V,
de 8 de janeiro de 1455; a Bula Inter Coetera de Calixto II de 13 março de 1456,
a Bula Providum Universalis de Leão X, de 29 de abril de 1514, entre outras,
confirmava aos reis portugueses e seus sucessores, como administradores dos
negócios eclesiásticos (SUESS, 1992). O resultado é que a figura do Papa em
Roma, distante, apenas confirmava as decisões régias nas matérias que envolviam
a religião no Brasil.
Tais vínculos entre o poder real e a religião se refletiam em práticas
costumeiras, uma vez que os súditos eram, antes de qualquer outro compromisso,
membros da cristandade. Tanto na instituição concreta da cristandade medieval
como na cristandade colonial, o monarca reconhecido e sagrado pela autoridade
eclesiástica aparecia como chefe efetivo dessa sociedade sacral (MOLINA, 1998).
Este pertencimento à cristandade se concretizava oficialmente através
do ritual do batismo. Não havendo cartórios no Brasil colonial, os registros de
nascimentos, casamentos e óbitos eram feitos nas matrizes paroquiais1. O rito
batismal não significava simplesmente a profissão da fé católica, mas assinalava

1
Durante a colonização portuguesa, houve uma prática constante conhecida como: Cuius regio, illius et
religio (o dono da região é igualmente dono da religião nela praticada). “A política da unificação cultural pela
religião tem uma vantagem dupla: de um lado produz um discurso discriminatório diante de correntes
colonialistas de outras nações europeias que são taxadas de hereges, como no caso dos ingleses,
holandeses e mesmo franceses. Do outro lado essa política permite desmantelar as organizações indígenas
que pudessem subsistir sob as lideranças dos seus próprios chefes indígenas. Daí por que o maior inimigo
do missionário sempre foi o pajé, pois este mantinha a coesão entre indígenas em nome da religião antiga.”
(HOORNAERT, 1974, p.56-5).

148 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


também o ingresso na sociedade colonial (HOORNAERT, 1974, p.56-57). O registro
de batismo constituía também um registro de nascimento e um título de
identidade2.
Segundo Beozzo (1980, p.157), um dos elementos que fundamentava
essa sociedade cristã era o nacionalismo português, ou seja, o nascido luso era
por direito cristão, enquanto o nativo era pagão. Ser cristão significava adotar e
vivenciar a cultura portuguesa (DAVID, 2001).
Seguindo tal premissa, a forma de atuação da Igreja Católica, tanto na
colônia quanto no Império, preservou muito da religião lusa. Ritualística, porque
fundada em pomposas demonstrações públicas - as festas religiosas, expressadas
por atos externos cotidianos, cultuadora do misticismo e dos santos (BOSCHI,
1969) e, simultaneamente, profundamente marcada pelos procedimentos e
interesses laicos (MOLINA, 1998).
Conforme salienta Algranti (1997, p. 111 e 112), as celebrações religiosas
constituíam praticamente a única forma de sociabilidade nos primeiros séculos
da colonização, uma vez que se transformavam em momentos de interação social.
Nelas, as ruas eram iluminadas e as janelas decoradas, recebendo moradores
da cidade e do campo (ALGRANTI, 1997; FREYRE, 1977; SOUSA, 1997).
Esse catolicismo tradicional, segundo Quintão (apud AZZI, 2002, p. 37-
38) apresentava como aspectos principais o seu caráter leigo, social e familiar.
Leigo porque a direção e a organização das associações religiosas mais
importantes estavam com as irmandades. Social e familiar porque havia uma
estreita interpenetração da religião nas práticas cotidianas, quando o sagrado e o
profano andavam juntos. Esse regime permaneceu no Império, quando, por meio
do artigo 5º. da Constituição de 1824, o catolicismo tornou-se a religião oficial do
Estado brasileiro.
Essa prática religiosa pretendia-se como única. Membros de várias
classes sociais, e diferentes instituições manifestavam-se publicamente adeptos
de um mesmo preceito religioso, com expressões aparentemente idênticas, e
que variavam apenas na parte acidental ou circunstancial e de uma região para
outra. As divergências ou diferenças não indicavam necessariamente a presença
de várias religiões. Proclamavam e se assumiam católicos (ALTOÉ, 1993).
Mas, o que significava e ainda significa ser católico no Brasil? Para
Hoornaert (1974), é fundamental perceber a diferença entre catolicismo e
2
Além disso, desde os primórdios da Igreja Católica, o Catecismo e o Batismo têm uma função básica
para o fiel cristão: tratava-se da iniciação do indivíduo na comunidade cristã. O poder investido ao
sacerdote era o de expulsar o demônio existente na criança e que a ligava ao pecado de Adão estabelecendo
uma nova aliança entre o indivíduo e a divindade.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 149


cristianismo a fim de compreender a religiosidade brasileira. O cristianismo vive
da fé e da inspiração, enquanto o catolicismo romano depende do dogma e da
disciplina. Nesse sentido, as múltiplas apropriações que permeiam a religiosidade
evidenciam a coexistência do catolicismo oficial e o cristianismo vivido na base
da sociedade. Segundo este autor, o homem simples percebe que há diversas
maneiras de ser católico onde “a zeladora da igreja é católica, mas o ‘pai de
santo’ também” (HOORNAERT,1974, p. 22-26).
Essa prática é fruto de uma cultura popular, que, para David (2001, p. 233
e 239) cria e recria suas representações com base nas concepções do indivíduo
sobre o mundo, o poder, a fé e a vida. Dessa forma, a religião popular seria o
“elemento de identificação de um povo, de uma nação, de uma etnia e, até mesmo,
de uma classe social”. E seria nessa mescla de conhecimentos que residiria
tanto a resistência quanto um dinamismo interno.
Oliveira Torres (1968) menciona que raramente o católico brasileiro lia a
Bíblia e por muito tempo apenas assistia à missa, como um espetáculo, em língua
estrangeira, no qual se executavam atos cujo significado desconhecia e cujo
mistério respeitava. Restavam aos fiéis, as procissões e as novenas que davam
uma vivência da fé que a liturgia lhes negava.
Esse catolicismo popular progressivamente construído é permeado de
ideias de sacrifício, penitência, dor e abnegação no qual a “fé do povo se
manifestava através das devoções aos santos, das procissões, das orações
de invocações e perdão, dos milagres”, em geral organizadas e/ou conduzidas
por uma liderança leiga (PASSOS, 2011, p. 2).
Todos ou quase todos os santuários, por exemplo, teriam, na análise de
Torres (1968), sua origem na “ação popular – não foram as autoridades, não foi o
clero, o ponto de partida: mas vagos ermitães, homens sem maiores leis que
moveram montanhas. [...] Sempre o indivíduo mais ou menos anônimo e sofredor”
(TORRES, 1968, p. 58).
Assim, a religiosidade popular estaria além de um “mero acervo
histórico-cultural” se transformando em “expressão de vida” e, portanto constituindo
um desafio da memória para quem se propõe historiar seu processo (PASSOS,
2011, on-line).
No caso brasileiro, há-de se considerar o catolicismo ibérico rural que veio para o
Brasil, as tradições religiosas indígenas que existiam em todo território e as religiões
africanas que aqui criaram suas raízes. Essa configuração gerou uma religião sui
generis no Brasil. Um campo religioso que se constrói e se reconstrói, bebendo de
várias fontes, articulando-se com as raízes mais profundas, os desejos, as novas

150 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


formas de crer, o instituinte e o instituído. Assim, ele se alarga, pois está em constante
movimento, incorporando outros cultos e elementos de outras religiões. Pode-se
afirmar que nosso campo religioso sempre foi um campo em relação.
A separação entre o Estado e a Igreja Católica, após a Proclamação da
República, bem como a instalação de novas dioceses e paróquias no Brasil,
alteraram essa situação, centralizando as decisões nas mãos da hierarquia
religiosa e distanciando o processo decisório sobre os rituais e o culto das mãos
do Estado e mais ainda das mãos dos fiéis (FREITAS, 2006).
A presença, em maior número, da hierarquia da Igreja pelo interior do
Brasil alterou a composição dos ethos religioso. Entretanto, as permanências de
caráter devocionista ainda podem ser visualizadas por meio das festas e outras
práticas domésticas, como a presença dos oratórios e outros objetos de culto nas
casas dos devotos que convidam vizinhos para rezar e celebrar os santos de
devoção. Nos espaços públicos mais recentemente os santos e cruzes foram
retirados dos edifícios, mas as estradas estão cheias de cruzes pelos mortos e os
cemitérios possuem capelas em que, muitas vezes, se celebra o culto.
No caso do recorte geográfico desta pesquisa, Ribeirão Preto, cabe
observar que o embate entre a religião institucionalizada e essa religiosidade
popular não foi diferente do que acontecia em outras partes do Brasil (FREITAS,
2006). O século XX assistiu transformações nas práticas de devoção. A criação da
diocese em 1908, motivada pela percepção da importância regional e nacional
da cidade em função do auge da cultura cafeeira, a sua instalação e a chegada
do primeiro bispo, D. Alberto José Gonçalves, em 1909, proporcionou uma nova
situação permitindo que a hierarquia da Igreja acompanhasse o dia-a-dia dos
fiéis (FREITAS, 2006, p.24).
Com a chegada do bispo, as paróquias passaram a ser reorganizadas,
visitas pastorais foram feitas em cada cidade da diocese, pregando, crismando e
verificando os documentos da matriz e, acima de tudo, instruindo o clero à ensinar
o catecismo, a doutrina oficial da Igreja, para os fieis leigos. Ao lado destas diretrizes
associações leigas foram criadas, sob a tutela do bispo e a direção espiritual dos
padres, permitindo um novo rumo para a Igreja.
Em linhas gerais, esse proceder dos padres introduziu outros elementos
no cotidiano dos católicos. À frente das associações, como diretores espirituais,
animando os fiéis, conduzindo as procissões, novenas e festas religiosas, objetivava
esvaziar a liderança dos leigos nessas manifestações.
Contudo, em cidades do interior, particularmente nas áreas rurais, esse
controle foi menor. Prevaleceram aspectos do catolicismo oitocentista, com a

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 151


permanência das rezas, como terços, novenas e festas de santos, principalmente
os juninos, guiadas pela comunidade local. A organização da festa, sob as bênçãos
divinas, agregava valores e consolidava a comunidade, fortalecendo-a diante das
agruras do campo, estreitando os laços entre a vizinhança. A presença do sacerdote
era rara, normalmente uma vez ao ano na festa do santo padroeiro o que não
alterava a vivência das práticas arraigadas nestas comunidades como nas festas
juninas, levantar o mastro dos santos, rezar o terço, novena, práticas que não
requeriam a presença de um padre.
Tal formatação do catolicismo brasileiro até aqui apresentada foi
identificada durante a aplicação do INRC, no município de Ribeirão Preto. Diante
dessa realidade social, as pesquisadoras estabeleceram outra questão importante
para este debate. Mesmo diante do controle exercido pela Igreja Católica
Apostólica Romana e da laicização da sociedade, ainda é possível encontrar
grupos sociais que apresentam uma memória compartilhada e um sentido comum
de pertencimento, ambos arraigados à religiosidade católica, em especial nas
festas e celebrações.
Isto de dá por que a memória pode ser entendida como uma construção
social, em parte modelada pela família, em parte desenhada pelos grupos sociais.
Dessa forma a memória individual se estrutura na memória coletiva, ou seja, o
lembrar, o relembrar, se fortalece em função das narrativas coletivas reforçadas
através das comemorações públicas de fatos marcantes para determinada
população (HALBWACHS, M., 2006).
O conceito que embasa a aplicação do INRC é o de referência cultural,
a partir do qual se leva em conta os sujeitos para os quais o bem cultural faz
sentido (FONSECA, 2000, p.11-12). A questão fundamental nesse caso é que o
pesquisador deve despir-se de uma visão apriorística que pressupõe a existência
de valores intrínsecos aos bens. Partindo do pressuposto que todo significado é
conferido, portanto, cabe ao estudioso analisar a dinâmica de atribuição de valores
e significados a determinados objetos e processos (SILVA; ROSA, 2012).
Essa metodologia baseada nas referências culturais insere o sentido de
patrimonialização, presente nos projetos resultantes de políticas públicas de
preservação do patrimônio cultural, na realidade das comunidades estudadas.
Dever-se-ia pressupor a existência de grupos, pensados como formadores da
sociedade, mas, necessariamente considerados a partir das “dinâmicas locais e
supralocais de enunciação de diferenças” (ZACCHI, on line, p.1). Nesse processo,
o desafio do pesquisador é observar que, mesmo internamente, esses grupos não
são homogêneos, pois, apresentam inúmeras disputas em torno dos sentidos
atribuídos ao bem.
152 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
Ao buscar o que torna singular uma manifestação cultural e o que confere
sentido de patrimônio a um bem religioso, os pesquisadores encararam alguns
desafios. Um deles é considerar o caráter dinâmico dos processos sociais
envolvidos. Outro é observar a sua associação às expressões das culturas
tradicionais da sociedade brasileira, neste estudo de caso.
Reflexões importantes foram realizadas durante o processo de registro
como patrimônio imaterial brasileiro do Círio de Nazaré (HENRIQUE, 2011). Nessa
experiência no Pará, uma das questões evidenciadas foi a necessidade de
estranhamento por parte dos pesquisadores, muitos dos quais eram envolvidos a
celebração. Buscava-se, então, evitar o risco de registrar a opinião dos estudiosos.
Um objeto de estudo, pensado tradicionalmente como religioso, precisava ser
refletido “como prática cultural de natureza imaterial, portadora de múltiplos
sentidos, inclusive o religioso” (HENRIQUE, 2011, p. 333).
A experiência de aplicação do INRC em Ribeirão Preto contribuiu para a
ampliação da compreensão dessa problemática. Ao término de três anos de
pesquisa (SILVA; ROSA et al, 2012), o grupo identificou 167 edificações no centro
da cidade de Ribeirão Preto e no Distrito de Bonfim Paulista, das quais dez eram
religiosas. Também foram inventariadas nove estações de trem e 68 fazendas de
café. Além disso, levantaram-se quatro celebrações, seis formas de expressão,
vinte e um lugares e sete ofícios e modos de fazer3. Desse conjunto, as autoras se
detiveram na análise daqueles relacionados diretamente à dimensão religiosa,
cujo detalhamento pode ser encontrado no Relatório III do Projeto Paisagem
Cultural do Café (REDE, 2012).

Considerações finais
As questões até aqui apresentadas para este debate, decorrem da reflexão
teórica sobre esses estudos. O que se propôs foi pensar os limites do instrumento
de pesquisa utilizado, diante da necessidade de compreensão dos campos de
convergência entre patrimônio, religião e religiosidade.
As permanências são inspiradoras de que é possível refletir acerca do
patrimônio cultural e as práticas religiosas. Em função do espaço aberto por esse
evento acadêmico, o qual permite que sejam apresentadas perguntas que suscitem
discussões e novos caminhos, opta-se por retornar a questão inicial deste paper:
o que conferiria sentido de patrimônio a um bem religioso? Os resultados desta
pesquisa não trazem respostas conclusivas, mas indicam caminhos.
3
Cf. o Relatório III de pesquisa da Rede de Cooperação Identidades Culturais- Ribeirão Preto –SP. Nele
é possível observar o detalhamento dos dados.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 153


Entre eles, no que tange ao papel do pesquisador, é necessário
compreender essas manifestações religiosas como fruto de atribuições de sentido
diversas, resultantes de memórias compartilhadas, simultâneas a existência de
diferentes memórias em conflito. Ou seja, deve-se buscar a diversidade intrínseca
ao processo de formação das identidades constituidoras dos grupos sociais.
Quanto aos grupos estudados, isto implica em evidenciar e fortalecer, por
meio do conhecimento gerado pela pesquisa, a fim de que ocorra o
empoderamento do bem por parte dos sujeitos envolvidos, de maneira que as
manifestações devocionais sejam percebidas além dos rituais, mantendo
elementos de coesão fundamentais para a identidade da comunidade.
Essa postura, tanto do pesquisador quanto do sujeito, possibilitaria a
construção de políticas públicas mais próximas da realidade dos envolvidos,
evitando a expropriação dos saberes tradicionais por instâncias de poder
relacionadas à lógica do mercado, à legitimidade do conhecimento acadêmico
e, finalmente, aos interesses políticos.

MOLINA, S.; FREITAS, N. M. B. de; ROSA, L. R. de O. Cultural heritage, religion


and religiosity: reflections on research experience with the INRC - National Inventory
of Cultural References. Dialogus. v.9, n.1 e n.2, pp. X-X.

Abstract: Presents the reflections of implementing the INRC - National Inventory


of Cultural References for Project Coffee Cultural Landscape, in Ribeirão Preto,
Brazil. The complexity involved in setting direction sheet as manifestations of
Catholic religion is the focus of the questions raised by this text.

Keywords: Cultural Heritage; catholic religion; INRC

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156 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


CORONELISMO E O ENSINO DE HISTÓRIA: REFLEXÕES
PARA A FORMAÇÃO CIDADÃ

José Faustino de Almeida SANTOS*


Andrea Coelho LASTÓRIA**

RESUMO: O presente artigo considera inicialmente os objetivos e metodologias


assumidas pelo Ensino de História relacionados à formação para o exercício da
cidadania. Nesse cenário pretende propor reflexões que articulem tais objetivos
inerentes ao Ensino de Historia com aspectos teóricos e históricos do conteúdo
curricular coronelismo e com o conceito de consciência histórica.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de história; Coronelismo; Consciência histórica;


Cotidiano; Ensino Fundamental.

Ensino de História: objetivos e possibilidades


As reflexões propostas nesse artigo são desdobramentos de uma
investigação (pesquisa de mestrado) cujo tema envolveu a área do Ensino de
História e o coronelismo como um conteúdo tradicionalmente presente na matriz
curricular do Ensino Fundamental da escola básica brasileira. Buscamos investigar
qual a contribuição dos materiais didáticos de História adotados nas escolas
públicas do ciclo II do Ensino Fundamental de uma dada localidade paulista para
viabilizar reflexões de ordem política que considerem as interfaces entre a História
Local e Nacional, por meio do estudo do coronelismo.
No âmbito das práticas escolares e dos objetivos do Ensino de História,
entendemos que o coronelismo é uma possibilidade entre outras sugeridas para
a problematização do cotidiano, e que é o professor quem deve selecionar e
enfatizar os temas mais adequados a cada contexto escolar, segundo sua
pertinência “[...] à realidade social, econômica, política e cultural da localidade
onde mora, da sua região, do seu país e do mundo [...]” (BRASIL, 1998, p. 67). A
nossa escolha pelo estudo do coronelismo no Ensino Fundamental se justifica
*
Licenciado em História no Centro Universitário Barão de Mauá. Mestrando em Educação, pela Universidade
de São Paulo. Membro do Grupo ELO – Estudo da Localidade, ligado ao LAIFE/USP. E mail:
prof.faustino@hotmail.com
**
Licenciada e Bacharel em Geografia. Licenciada em Pedagogia. Doutora em Educação (UFSCar).
Docente do Dep. de Educação, Informação e Comunicação, da FFCLRP/USP, onde coordena o Grupo
ELO – Estudo da Localidade e do Laboratório Interdisciplinar de Formação do Educador - LAIFE.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 157


não apenas por sua importância na historiografia nacional e local (conforme
exporemos), mas, também por sua antologia favorecedora de práticas escolares
que aspiram estar coerentes com o objetivo (próprio ao Ensino de História) de
formar para o exercício da cidadania frente às diversas carências do cotidiano
(BRASIL, 1998) (BITTENCOURT, 2011) (FONSECA, 2008) e (RUSËN, 2007).

Coronelismo: um conceito para explicar as complexas relações de poder


no Brasil.
Etimologicamente, o termo “coronelismo” é composto de “coronel”
(indivíduo que possui patente militar relacionada ao poder de comandar, ou alguém
que acumula poder econômico, político e social de uma dada região) com o
sufixo “-ismo”, que, segundo Houaiss e Villar (2009, p. 1114), significa “[...] doutrina,
sistema, teoria, tendência, corrente etc. (mais freq. no pl. e com sentido pejorativo)
[...]”. Gianastacio (2008), ao estudar (histórica e gramaticalmente) o sufixo “-ismo”
na Língua Portuguesa, considerou a diversidade de funções e a inexatidão de
significados que possuem os sufixos, diferentemente dos prefixos. Sua análise
remontou às contribuições vindas tanto da Língua Grega como da Latina para
afirmar que o sufixo “-ismo” pode designar a generalização do substantivo como
sua ação. Ele toma por base as contribuições que constam da gramática de Júlio
Ribeiro, que, por sua vez,
[...] apresenta o sufixo –ismo com uma informação, até então, não encontrada em
outros autores que escreveram antes e depois dele. Para ele, o sufixo -ismo tem sua
origem nos “verbos gregos em izo” (1889, p.149). Os exemplos apresentados por ele
são: despotismo, materialismo, espiritualismo, jornalismo, absenteísmo. Diferente dos
demais gramáticos, até mesmo dos gramáticos atuais, Ribeiro explica o sufixo –ismo
recorrendo à terminação grega –izo utilizada para acrescentar a verbos e transformá-
los em substantivos de ação [...]. (GIANASTACIO, 2008 p. 13, grifos do autor).
Tais reflexões encontram consonância com a perspectiva proposta por
Leal (1997, p. 40), o fundador desse conceito fundamental à historiografia brasileira,
que afirma conceber
[...] o “coronelismo” como resultado da superposição de formas desenvolvidas do
regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois,
mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno típico de
nossa história colonial. É antes uma forma peculiar de manifestações do poder
privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e
exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de exten-
sa base representativa (LEAL, 1997, p. 40).

158 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Coronelismo, então, pode ser entendido a partir de sua etimologia e da
historiografia brasileira como um sistema político nacional sustentado pela atuação
(ação) de um coletivo de homens distribuídos em diversas localidades, com ou
sem patente oficial (de coronel da Guarda Nacional), ricos, poderosos sócio e
politicamente. Influenciam, dominam, colocam-se e são tidos como superiores
na sociedade local onde residem, fazem negócios, de modo a manter o controle
e a ordem. Essa é a ação (izo) dos coronéis: manter a ordem coronelista, o sistema
nacional chamado coronel -ismo.
Temos como referência uma ampla historiografia que apresenta o
coronelismo como um sistema de enredamento do poder político nacional, dotado
de heterogeneidade, ocorrido na temporalidade específica da Primeira República,
e marcado pelas nuances ou matizes regionais, que pautaram a apropriação, a
estruturação e o exercício do poder político (governamental) que se desdobram e
influenciam variáveis como o perfil da economia e o processo de urbanização.
Por isso, nossa proposta considera os matizes regionais (mais especificamente
os que distinguem Ribeirão Preto - SP). Essa heterogeneidade que vimos
evidenciada nos trabalhos de âmbito nacional é confirmada pelas investigações
de âmbito regional e/ou local, seja em abordagens quantitativas e qualitativas,
como as de Walker e Barbosa (2000), Doin; Paziani; Cuello (2006) e Doin et al.
(2007). Tais pesquisas a partir de Ribeirão Preto – SP (e suas especificidades)
confirmaram essa heterogeneidade, que é uma característica brasileira apontada
também por outras análises realizadas no plano nacional que investigaram o
coronelismo no Brasil, conforme a constatação de Botelho (2006) apresentada
em seu trabalho monográfico, no qual fez uma apurada revisão bibliográfica dos
clássicos que tratam do tema.
A geografia do coronelismo, segundo Carone, apresentava elementos característi-
cos com nuances diferentes nos Estados mais adiantados e naqueles em que os
problemas de comunicação e de autoridade eram mais difíceis. Nos primeiros, certas
ações do governo eram mais eficientes, mesmo quando se chocavam com os inte-
resses particulares dos coronéis. Os Estados mais desenvolvidos possuíam uma
melhor estruturalização e um controle mais rígido do partido oficial (P.R. – Partido
Republicano), permitindo maior equilíbrio e controle entre os diversos antagonismos.
Nos Estados economicamente mais frágeis as lutas envolvendo coronéis versus
coronéis ou coronéis versus Estado eram mais abundantes, pois as liberdades eram
maiores (os embates eram resolvidos à bala) e o individualismo de cada chefe local
impera mais abertamente (BOTELHO, 2006, p. 33 – 34).
Essas nuances se explicam por razões históricas e epistemológicas
típicas das relações entre a História Nacional e a História Local que se

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 159


consideradas também pelo Ensino de História contribuem decisivamente para a
melhor formação cidadã. Um exemplo contundente é o conteúdo curricular
coronelismo, que, ao ser ensinado em qualquer localidade brasileira, precisa ser
tratado não apenas no plano nacional (macro), mas também no plano local
(micro), uma vez que houve diversos modos de coronelismo no Brasil, segundo as
peculiaridades, o cotidiano de cada lugar. Queiroz (1976, p. 171) explica que no
Brasil existiu
[...] coronéis de vários graus, desde o pequeno coronel não dominando senão uns
200 eleitores, até o grande coronel, o mandão nacional sobrepujando vários outros
níveis de coronéis. A quantidade de graus da estrutura coronelística variou sempre
de região para região, de zona para zona.
Além das diferentes vias para a ascensão socioeconômica e política dos
indivíduos, Queiroz (1976, p. 170) chama a atenção para esses últimos, que,
mesmo nas regiões mais estudadas (caracterizadas pelas grandes monoculturas),
não foram considerados, ou seja, as pesquisas, além de terem investigado muito
menos as regiões de fazendas de gado e de sitiantes, não deram “[...] suficiente
atenção às margens de manobra que possuíam os indivíduos [...]”. Queiroz (1976,
p. 171) sustenta que estudos sobre o coronelismo devem primeiramente “[...]
determinar a estrutura coronelística de uma região, quando se decide estudá-la
em seu fato político [...]”.
É evidente que não se trata de uma hipótese definitiva, mas é inegável a
necessidade de articular os trabalhos já realizados com os vindouros, sejam os
que focaram o plano macro como o micro. Essa necessária articulação do macro
com o micro (história regional e/ou local com a nacional) advém da
heterogeneidade que caracteriza o Brasil. Há em Ribeirão Preto – SP considerável
historiografia que explicita especificidades do contexto local durante a Primeira
República. Entre outros autores destacamos Rafael Cardoso de Mello, historiador
que filia-se a Nova História Cultural e se dedicou a compreender o que significava
ser mulher em Ribeirão Preto – SP no início do século XX. Para responder a
questão referente a esse grupo marginalizado (na sociedade e na historiografia),
as mulheres, o historiador retomou diversos aspectos que remontam ao contexto
político, econômico, social e cultural do município durante a Primeira República.
Considerando diversas fontes e investigações de historiadores locais,
Mello (2011) afirma que Ribeirão Preto – SP, impulsionada pela expansão cafeeira
foi transformada em um lugar de ebulição pautada pelo imaginário típico da
modernidade, no qual o novo representado pela ferrovia e pela urbanização
valorizam ideias como o progresso, a racionalidade, a salubridade, a higiene, a

160 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


polidez e a civilização como contraponto ao velho, considerado arcaico. É uma
postura associada as ideias de anti-moléstia, anti-sugeira, anti-atraso, anti-barbárie,
que impôs uma disciplina rígida aos habitantes do município por meio da
elaboração de um Código de Posturas, criação do Serviço Sanitário e a Diretoria
de Higiene, como afirmou Paziani (2004) o combate era feito pela “polícia sanitária”,
que marcaram o modo como a cidade foi organizada (MELLO, 2011). Essa
repugnância possibilita compreender porque o Matadouro, e o Hospital de
isolamento para leprosos eram distantes da área central. Evidenciam uma visível
preocupação com a racionalização do espaço público [...] uma configuração especí-
fica: o traçado das ruas em consonância com a forma dos quarteirões permitiu a
visualização da cidade arquitetada aos moldes da razão, da geometria [...] (MELLO,
2011, p. 27).
Essa tensão entre o arcaico e o moderno, que Doin (2007) chamou de
modernização conservadora é provocadora de exclusão e de manifestações
preconceituosas que marcaram a mentalidade da elite local em relação a grupos
sociais como os negros conforme evidenciado, por exemplo, nos jornais da época
e no moderno modelo de urbanização que “[...] expulsava os populares “bárbaros”
que insistiam em emperrar o processo civilizador” (MELLO, 2011, p. 46).
Ribeirão Preto – SP do início do século XX é apresentada como “[...] uma
cidade que segrega, divide, exclui, limita [...]” (MELLO, 2011, p. 45) (marcas típicas
do arcaísmo) e que, por outro lado, consegue imprimir no plano do imaginário
uma marca específica (ligada à modernidade) que outras localidades tão ricas
quanto não tiveram. Uma cidade que queria ser a “pequena Paris” e que ganhou
fama por sua urbanização moderna e vida noturna que se transformou em chamariz,
como relata Monteiro Lobato em correspondência de 1950, segundo o qual no
município tudo era diferente, hábitos, costumes e ideias se comparada às cidades
mais velhas dos estados de São Paulo e de Minas Gerais (MELLO, 2011).
Entretanto, lembra Mello (2011, p. 46),
Ribeirão Preto não é a “pequena Paris!” Ela contém elementos sedutores de Paris
na medida em que o centro da sua cidade é aquilo que os fazendeiros, acompanha-
dos pelo poder público, desejaram que assim o fosse. Ser a “pequena Paris” era
viver a representação da riqueza que convém a estes homens, cujas construções e
suas grades expulsam os populares para os arredores da cidade onde imperam a
poeira (não asfaltamento), a escuridão da noite (não iluminação pública), o baixo
meretrício (não as coristas e atrizes das grandes Companhias de Teatro) e as
residências daqueles indesejados pelo universo “polido” e “educado” da elite “grã-
fina” e “nobre” de Ribeirão Preto.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 161


Em seu recorte Mello (2011) considerou esse contexto específico de
Ribeirão Preto – SP no período da Primeira República para investigar o papel das
mulheres enquanto educadoras (e o papel da educação como instrumento
civilizador da modernidade) e também como profissionais do entretenimento
ligadas ao
universo mundano, sexual, de jogatina, de roletas, de dançarinas, cocotes, can can,
nudez, sensualidade, dinheiro, charutos, fumaça... enfim... a visão sedutora da
modernidade fazendo desta pequena região interiorana do estado de São Paulo
vestir, ao seu modo, a Paris que o mundo desejava! [...] (MELLO, 2011, p. 77).
Há ainda outro tipo de experiência feminina, específica de Ribeirão Preto
– SP que Mello (2011) apresentou entre essas “flores do café” relacionada ao
âmbito econômico e político. Trata-se da Rainha do Café, Iria Alves Ferreira que
junto com Francisca Silveira do Val são as únicas mulheres a figurarem entre os
dez maiores negociantes de Ribeirão Preto – SP entre 1889 e 1930, uma seleta
lista liderada por Francisco Schmidt, um dos homens mais ricos do Brasil no
período, o que indica que essas mulheres invadiram o universo (da elite econômica)
masculino e, portanto, “[...] destoam de uma representação feminina de “mãe,
dona-de-casa”. [...]” (MELLO, 2011, p. 67), e segundo o historiador das mulheres
que biografou a Rainha do Café, Iria enfrentou dificuldades notórias ao atuar no
mundo dos negócios (masculino) mesmo tendo buscado se proteger com o
discurso que a valorizava como uma boa cristã, caridosa e guardiã das tradições
e da família e que frente à viuvez teria conciliado seu papel de mulher com o
comando dos negócios. Iria “[....] teve de lidar com estas longas durações para
caminhar junto aos “Coronéis” do período [...]” (MELLO, 2011, p. 67) no qual a
cultura cafeeira conquistou grande lucros e que em meio as acirradas disputas
pelo poder patriarcal a Rainha do Café foi exceção.
Defendemos que as especificidades locais marcaram o coronelismo no
Brasil e, por isso, o seu estudo e ensino deve considerar os aspectos históricos
inerentes a esses matizes. O que lastreia nossa ideia são contribuições como
essas sobre a mulher, cafeicultura que exerceu papel de notoriedade nacional no
mundo do coffee business por meio de uma provável “masculinização” para “[...]
melhor jogar, negociar, enfim, lidar com as negociatas que a sociedade do coffee
business exigia.” (MELLO, 2011, p. 70). Entretanto, reafirmamos que não são
apenas as raízes históricas que evidenciam e explicam essa heterogeneidade, há
também razões epistemológicas as quais passaremos a apresentar com o objetivo
de justificar (mesmo que parcialmente) no plano epistemológico a necessidade
de articulação da história local com a nacional. Propomos que essa reflexão

162 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


pode partir das relações existentes entre categorias teóricas pensadas a partir de
suas supostas dicotomias, a saber: Micro/macro; indivíduo/sociedade e História
Nacional/História Local. Cabe explicitar que a relação analítica (entre esses pares)
é entendida segundo certas concepções teóricas como divisões estanques, que
indicam determinismos e hierarquia entre macro e micro, entre indivíduo e
sociedade, entre História Nacional e História Local. Nós, ao contrário,
consideramos que a articulação dessas categorias teóricas traz ganhos
epistemológicos necessários às atividades de pesquisa e de ensino-aprendizagem.

Cidadania e cotidiano: formação da consciência histórica dos indivíduos


ordinários.
Inúmeros são os teóricos que propõem a superação do antagonismo
entre o micro e o macro. Zaia Brandão, que parte do arcabouço da sociologia,
propõe essa articulação por considerar que são instâncias analíticas ou conceitos
teóricos que traduzem, ou reinscrevem, variáveis de nível individual em variáveis
que caracterizem os sistemas sociais e vice-versa (BRANDÃO, 2001). Ela entende
que essa articulação entre micro e macro, entre indivíduo e sociedade é uma
inovação metodológica que permite superar, de um lado, a homogeneização,
fruto da busca pelas regularidades das relações sociais, que permitiriam
categorizar, classificar e intervir nas estruturas sociais, mas que, ao ignorar a
diversidade de comportamentos, escolhas e interações entre os indivíduos que
existem no interior dessas categorias sociais, apenas criações teóricas, que não
existem de fato, não alcançam uma compreensão das contradições existentes
entre os pares que convivem em um mesmo grupo (BRANDÃO, 2001). Do outro
lado, nas abordagens microssociais, que mergulham nos casos particulares, nas
exceções, há o perigo de tomar e interpretar um pequeno grupo, uma situação,
um caso ou um indivíduo de forma descontextualizada, isolado de suas interações
com o plano macro.
[...] Os significados que os atores atribuem às suas ações não são autocriados; além
de operarem na complexa malha das representações de sua cultura, estão articula-
dos às conjunturas específicas, às configurações espaço-temporais [...] (BRANDÃO,
2001, p. 164).
Brandão (2001, p. 164) salienta que a solução não é encontrada na simples
multiplicação exponencial do número de investigações do cotidiano, ou do plano micro.
É uma ilusão imaginar que a multiplicação de análises microssociais permitiria uma
forma mais adequada de reconstrução das configurações sociais gerais [...]. O
Mundo da experiência tem uma capacidade inesgotável de recriar e construir novas

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 163


formas de interações e padrões coletivos de valores que se desdobram em ações
significativas complexas no plano individual (interações face a face) e no plano
macrossocial [...]
Essa proposta a autora chama de novo movimento teórico, apresentada
para as pesquisas em Educação, bem como para aquelas realizadas na área da
Sociologia. Entretanto consideramos tais reflexões muito adequadas para outras
áreas do conhecimento, já que têm caráter epistemológico e dialogam
diretamente com as bases teóricas de outras ciências, especialmente as
humanidades. No campo da História podemos considerar como referencial a
abordagem conhecida como micro-história e autores como Ginzburg (2006) que,
em obras como “O queijo e os Vermes”, ambiciona, ao biografar um indivíduo,
captar aspectos da “mentalidade coletiva”. Nessa obra, especificamente, está em
foco a sociedade europeia pré-industrial, a ser analisada por meio da biografia do
moleiro Menocchio, queimado por ordem do Santo Ofício, depois de uma vida
transcorrida em total anonimato. A pesquisa toma como fonte a vasta
documentação produzida por dois processos que, segundo Ginzburg (2006, p.
11), permite montar “[...] um quadro das ideias, sentimentos, fantasias e aspirações
[...] permite reconstruir um fragmento do que se costuma denominar ‘cultura das
classes subalternas’ ou ainda “cultura popular’”.
Outra contribuição pertinente para tornar evidente a necessidade da
referida inovação metodológica (articulação entre micro e macro) foi sugerida
pelo geógrafo Milton Santos. Tratando das complexas relações entre as “partes”
e o “todo”, ele defende que ambas só podem ser entendidas se consideradas as
suas relações múltiplas. Para ele, o todo é multifacetado, e cada uma dessas
faces, além de influenciarem-se, estão em constante transformação, o que faz a
totalidade, além de complexa, mutante ou transitória. Uma dinâmica constante
de movimento e mudança em um processo indefinido que ele chama de
“totalização”, que tem profunda consonância com a ideia de “movimento
totalizador” desenvolvido por Azanha (2011) em densa reflexão sobre o mesmo
tema.
O todo somente pode ser conhecido através do conhecimento das partes e as partes
somente podem ser conhecidas através do conhecimento do todo. Essas duas
verdades são, porém, parciais. Para alcançar a verdade total, é necessário reco-
nhecer o movimento conjunto do todo e das partes, através do processo de totalização.
O processo pelo qual o todo se torna um outro todo é um processo de desmanche,
de fragmentação e de recomposição, um processo de análise e de síntese ao mesmo
tempo. Trata-se de um movimento pelo qual o único se torna múltiplo e vice-versa.

164 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


“O múltiplo é o futuro do único”, escreve Regis Debray (1991, p. 83). O todo múltiplo
volta a ser único no momento seguinte, já um outro todo, pronto, também, para ser
despedaçado.
A metamorfose do real-abstrato em real-concreto, da essência em existência, da
potência em ato é, conseqüentemente, a metamorfose da unidade em multiplicidade”
(SANTOS, 1999, p. 96 - 97).
Em convergência com os demais autores citados, Santos (1999) afirma
que o mundo-real é um só, passível de ser visto de diferentes prismas, como
fazem as diferentes disciplinas, o que corrobora a ideia do intercâmbio entre as
diversas áreas do saber, ou interdisciplinaridade. O desafio está em separar da
realidade total um campo particular, suscetível de mostrar-se autônomo e que, ao
mesmo tempo, permaneça integrado nessa realidade total, que é o objeto
específico de cada área do saber, selecionado segundo os objetivos específicos
de cada pesquisa.
O processo de “totalização” (SANTOS, 1999), o “movimento totalizador”
(AZANHA, 2011) ou articulação entre micro e macro (BRANDÃO, 2001) são uma
imposição que provém da realidade concreta, onde macro e micro não estão e
nunca estiveram separados, mas em constante interação. Por isso, acreditamos
ser necessário enxergar a ação dos grupos e também dos indivíduos no sistema
total ou global. No caso do coronelismo (seja na pesquisa para a produção
historiográfica, seja no seu ensino), implica olharmos atentamente o cotidiano,
sejam os coronéis (e suas diferentes posições de mando na hierarquia de poder
político e econômico), sejam seus empregados (e suas diferentes posições na
hierarquia da exploração), suas estratégias para manter o poder ou para burlar e
subverter sua condição.
A totalidade (que é una) se realiza por impactos seletivos, nos quais algumas de suas
possibilidades se tornam realidade. Pessoas, coletividades, classes, empresas, ins-
tituições se caracterizam, assim, por tais efeitos de especialização. O mesmo se dá
com os lugares, definidos em virtude dos impactos que acolhem. Essa seletividade
tanto se dá no nível das formas, como no nível do conteúdo. O movimento da
totalidade para existir objetivamente é um movimento dirigido à sua espacialização,
que é também particularização (SANTOS, 1999, p. 100).
Na esteira dessas ideias, parecem-nos fundamentais as propostas da micro-
história, pois vislumbram a busca pelos aspectos ocultados, que se encontram fora
dos arquivos oficiais, das fontes conhecidas, aquelas que nunca puderam ser
publicadas, que podem ser “garimpadas” em trabalhos de campo que servem à
pesquisa, mas também ao ensino de História. Indubitavelmente vão ao encontro da

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 165


[...] valorização das expressões mais humildes, assim como das mais ostentatórias,
de uma vida social bem delimitada é comum à abordagem da micro-história e à
etnografia, a não ser por uma – fundamental – diferença: as monografias etnológicas
ditas “de gaveta” durante muito tempo foram perseguidas por um ideal de inventário
exaustivo que devia, “sem nada omitir” (como aconselhava Mauss), situar todas as
observações no mesmo plano. Se, de fato, nenhum paradigma organiza a litânia de
uma enumeração obsessiva inteiramente linear das coisas vistas ou ouvidas, é
porque implicitamente se supõe que o “material” assim constituído diga, por sua
própria espessura, o conjunto da sociedade estudada. Posteriormente, e eventual-
mente, a análise recorta a partir do exterior a matéria etnográfica básica (“os dados”)
segundo as medidas das significações que lhe interessam.
A micro-história, a contrário, se resguarda de uma interpretação global a partir de
uma massa documental indiferenciada a ser modelada ao sabor das teorias: Ginzburg,
Levi e seus êmulos colocam no centro de suas demonstrações as situações sociais
precisas, às vezes mesmo excepcionais, que eles isolam e “descascam”. O detalhe
vale pelas fatias de realidade que revela, pelo peso das circunstâncias e das motiva-
ções que suporta, pela compreensão dos contextos aos quais introduz [...] (BENSA,
1998, p. 45).
Nesse sentido é que o historiador francês Michel de Certeau, em sua
obra “A invenção do cotidiano”, aborda tais questões (a complexidade do estudo
do cotidiano) a partir das relações entre produtores públicos ou privados (de coisas
e conteúdos) e consumidores (homem ordinário). A obra é desdobramento de
investigações muito refinadas, nas quais o autor e seus colaboradores buscaram
captar as astúcias sutis, as táticas de resistência pelas quais o homem ordinário
apropria-se desses produtos, do espaço das ideias, e por meio de uma arte de
fazer os indivíduos, que, supostamente, compõem uma multidão sem qualidades,
“driblam”, dão “golpes” no modo como usam os produtos impostos, sejam objetos
ou ideias na forma de imagens, de escritos ou pela oralidade. Certeau (2008, p.
273) defende que “[...] é sempre bom recordar que não se devem tomar os outros
por idiotas.” O historiador francês entende o cotidiano como uma construção
coletiva a partir das apropriações (por meio da leitura, por exemplo) feitas pelos
consumidores1 que são dominados, mas não passivos nem dóceis, ao contrário:
valem-se de suas “[...] táticas de consumo, engenhosidades do fraco para tirar
partido do forte, vão desembocar então em uma politização das práticas cotidianas.”
(CERTEAU, 2008, p. 45). A esse respeito,

1
Referem-se, segundo Certeau (2008, p. 38), aos “[...] usuários, dos quais se esconde, sob o pudico
nome de consumidores, o estatuto de dominados (o que não quer dizer passivos ou dóceis) [...]”.

166 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


[...] análises recentes mostram que “toda leitura modifica o seu objeto”, que já (já dizia
Borges) “uma literatura difere da outra menos pelo texto do que pela maneira como
é lida”, e que enfim um sistema de signos verbais ou icônicos é uma reserva de
formas que esperam do leitor o seu sentido. Se portanto “o livro é um efeito (uma
construção) do leitor, deve-se considerar a operação deste último como uma espécie
de lectio, produção própria do “leitor”. Este não toma nem o lugar do autor nem um
lugar de autor. Inventa nos textos outra coisa que não aquilo que era a “intenção”
deles. Destaca-os de sua origem (perdida ou acessória). Combina os seus fragmen-
tos e cria algo não–sabido no espaço organizado por sua capacidade de permitir
uma pluralidade indefinida de significações [...] (CERTEAU, 2008, p. 264 – 265).
Outro desdobramento pertinente e inevitável dessas reflexões refere-se
aos critérios para a definição do objeto de uma pesquisa. Esse tema foi densamente
desenvolvido por Azanha (2011) e Certeau (2008), que buscaram legitimar o cotidiano
como uma categoria teórica representativa da realidade social, tendo em vista que,
[...] onde o aparelho científico (o nosso) é levado a partilhar a ilusão dos poderes de
que é necessariamente solidário, isto é, a supor as multidões transformadas pelas
conquistas e as vitórias de uma produção expansionista, é sempre bom recordar
que não se devem tomar os outros por idiotas (CERTEAU, 2008, p. 273).
Azanha (2011) e Certeau (2008) consideraram reflexões e postulados
produzidos e validados por pensadores voltados às construções epistemológicas
diversas como Sigmund Freud, Ludwig Wittgenstein, Lévi-Strauss, Michel Foucault,
Pierre Bourdieu (entre outros), no caso de Certeau (2008); e Jean-Paul Sartre, Henri
Lefebvre, Jacques Le Golf, Max Weber e Karl Marx, no caso de Azanha (2011).
Segundo Azanha (2011), o desafio é definir e sustentar os critérios adotados
para selecionar as partes componentes de uma totalidade, ou seja, fatos do
cotidiano que não sejam meramente casuais, mas indispensáveis por revelarem
a realidade global, o que ele chama de “cotidianidade”, para contrapor o núcleo
revelador da vida cotidiana, daqueles fatos que podem ser negligenciados por
serem episódicos. O recorte do objeto é pautado pelos objetivos e referenciais
teóricos da pesquisa, o que implica a consequente marca da subjetividade e
inevitáveis críticas. O autor defende que isso não é problema algum, que não
devem ser obedecidos como cânones metodológicos definitivos, mas debatidos
constantemente, pois o que marca o avanço dos conhecimentos acadêmicos em
todas as áreas do saber ao longo da história
[...] é o esforço permanente de crítica mútua dos pontos de vista divergentes. A
possibilidade de florescimento de divergências – esta sim – é uma condição de um
conhecimento intersubjetivamente aceitável, numa relação assintótica com relação a
um conhecimento objetivo (AZANHA, 2011, p. 123).

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 167


Do ponto de vista epistemológico, a adesão à visão essencialista de ciência é perni-
ciosa porque traz consigo a renúncia definitiva à crítica. Quem admite a possibilidade
de obtenção de explicações últimas, quando imagina tê-las encontrado, não mais
precisa e nem pode prosseguir na investigação. A crença na posse de verdades
definitivas é paralisante e dogmática, pois, como disse Popper, retira-se do jogo da
ciência quem admite que há teorias imunes à crítica, como seriam, obviamente, as
explicações últimas (AZANHA, 2011, p. 126).
Salientamos que também no âmbito do Ensino de História a categoria
cotidiano tem importância fundamental. Bittencourt (2011), ao considerar os
objetivos gerais do ensino da história (entre eles a formação cidadã), em
consonância com inúmeras investigações e publicações da área, entre elas os
PCNs de História (BRASIL, 1998), defende que
[...] O cotidiano deve ser utilizado como objeto de estudo escolar pelas possibilidades
que oferece de visualizar as transformações possíveis realizadas por homens co-
muns, ultrapassando a idéia de que a vida cotidiana é repleta e permeada de
alienação (BITTENCOURT, 2011, p. 168).
Entretanto, ao valorizamos os sujeitos e o cotidiano, podemos incorrer
em certo fetichismo empirista, e, após analisar e compreender o cotidiano de um
indivíduo ou pequeno grupo, termos dificuldade para relacionar as reflexões
produzidas com outros contextos. Para lidar com tal problema teórico, entendemos
serem profícuas as proposições de Azanha (2011, p. 75), no sentido de ser
necessária a adoção de um referencial teórico consistente, assumido claramente
e ajustado a cada contexto a ser estudado.
[...] Talvez o primeiro passo para tentar superar essa dificuldade seja reconhecer, no
caso da cotidianidade, que a ideia de uma totalidade não é uma descoberta empírica
aflorada espontaneamente da observação, mas fruto de uma operação conceitual, do
exercício cognoscitivo de um ponto de vista. Este ponto de vista é sempre teórico, num
sentido bem amplo, que pode variar desde um quadro perceptivo pessoal, rudimentar
e emotivo, até um explícito e sofisticado conjunto articulado de hipóteses [...].
Nesse tocante a contribuição de Certeau (2008) é ímpar, pois a pesquisa
que coordenou foi realizada por um grupo numeroso (incluindo membros que
contribuíram apenas em uma das etapas, chamadas de círculos) em um contexto
coletivo no qual, de acordo com Luce Giard , buscou construir teorias e testá-las
frente a situações concretas sem a pretensão de estabelecer um modelo geral e
definitivo.
[...] Não se trata de elaborar um modelo geral para derramar neste molde o conjunto
das práticas, mas pelo contrário, de “especificar esquemas operacionais” e procurar

168 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


se existem entre eles categorias comuns e se, com tais categorias, seria possível
explicar o conjunto das práticas. [...] a análise aqui se dedica a um vaivém do teórico
para o concreto, e depois do particular e do circunstancial ao geral (GIARD, 2008,
p. 20 – 21).
É oportuno destacar o relato de Giard (2008) sobre o modo como Michel
de Certeau coordenou seu grupo de pesquisa. Ele orientava o grupo para que
fosse aberto e transitório, que cada membro fosse livre para discordar e retirar-se
amigavelmente tal como quando ingressou. Que ali não era espaço de fuga, nem
seita, e que ele não era líder carismático. Segundo sua colaboradora, o que ele
buscou foi
[...] um trabalho em cooperação, um confronto de experiências e de engajamentos
com a geração mais moça, mas não quer que a aventura culmine na constituição de
um “refúgio” nem na formação de uma seita, ainda que de pensamento. Protege-se
desses perigos, e ao grupo, conhecido sob o título vago e insólito de “grupo expe-
rimental”, recusando instalar-se como líder carismático com “maître à penser” cerca-
do de discípulos [...] (GIARD, 2008, p. 21 – 22).
O relato que Giard (2008) faz de sua experiência no grupo é respeitoso,
admirador e emotivo. Explicita o quanto o pensador francês foi coerente ao dar
voz aos membros do grupo. Nas palavras dela,
[...] O seminário discutia com equanimidade todas as etapas de uma pesquisa, desde
as primeiras hipóteses teóricas mal afinadas, com as quais se partia à procura de um
“terreno”, até as interpretações últimas que formalizavam os resultados obtidos. Isto
ocorria num clima de liberdade intelectual e de igualdade de todos os participantes,
aprendizes inseguros ou pesquisadores tarimbados, todos igualmente ouvidos e
discutidos. Ali não reinava nenhuma ortodoxia, não se impunha nenhum dogma,
pois a única regra implícita (mas vigorosa) era um desejo de elucidação e um
interesse de conhecer a vida concreta. Momento miraculoso, [...] uma forma de
alegria no trabalho que jamais eu encontrara na instituição do saber. Havia ali um
vau onde o barqueiro encorajava, orientava, e depois se apagava, [...] cada um era
tratado como interlocutor único, insubstituível, com delicadeza extrema, cheia de
respeito (GIARD, 2008, p. 23 – 24, grifo nosso).
No campo do Ensino de História, a valorização do cotidiano não é apenas
uma forma de aproximar os conteúdos dos alunos, de forma a serem mais
palatáveis, mas especialmente tem por objetivo “[...] historicizar a vida, presentificar
o tempo, resignificar o cotidiano e exercitar a cidadania” (NIKITIUK, 2002, p. 8).
O objetivo de formação para a cidadania proposto para o ciclo II do
Ensino Fundamental deve ser alcançado por meio da colaboração das diversas

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 169


áreas do saber, nesse sentido é que acreditamos que cada disciplina escolar
deva dar uma contribuição específica. No caso da História sugerimos que a
contribuição seja a formação da consciência histórica.
Consciência histórica é a competência de orientar-se no tempo o que
significa valer-se do conhecimento do passado para interpretar (ou até responder,
ainda que nunca definitivamente) as carências do tempo presente (RÜSEN, 2007).
Esse conhecimento do passado é dotado de um caráter epistemológico complexo
(por sua abrangência, provisoriedade e plasticidade) que oportuniza interpretar
de forma específica as demandas do presente, bem como, a construir projeções
(hipóteses) do que queremos no plano individual e coletivo (política, econômica,
social e culturalmente), para o futuro.
A articulação entre os saberes acadêmicos e os do cotidiano é necessária
para o avanço do ensino, mas também para o científico, que também tem carências
devido aos próprios limites da razão, que no caso da cultura histórica, são herdados
da ciência História, o que conforme Rüsen (2007, p. 133), remete à capacidade
de inovação da cultura histórica e sua vivacidade, pois:
[...] depende desses mesmos potenciais de sentido, de que a formação histórica não
é senhora. Quer isso dizer que a história só é viva enquanto absorver fontes de
sentido meta-históricas? Deve competir a uma teoria da história, que trata da capa-
cidade racional do pensamento histórico como processo cognitivo e como fator da
vida prática, incluir o meta-histórico em seu olhar sobre os limites da razão.
O ensino dessa História viva é essencial para a formação da consciência
histórica dos indivíduos para que sejam capazes de se articularem coletivamente
para exercerem permanentemente a cidadania nos âmbitos institucionais. Uma
concepção de cidadania que não se limita (de forma quase primitiva) a reagir
apenas quando percebe grandes arbitrariedades do Estado, uma “cidadania em
negativo” (CARVALHO, 2013).
A história da construção da cidadania no Brasil, conforme analisou José
Murilo de Carvalho, indica-nos haver muito em que avançarmos, pois nosso
percurso histórico foi marcado por uma cronologia e por uma lógica opostas a
outras nações democráticas. Como os direitos sociais que antecederam os direitos
políticos, o que contribuiu para consolidar a ideia de que os direitos sociais são
necessariamente concessões dadas por líderes carismáticos (messianismo) e
quase nunca conquistas que resultaram de movimentos políticos populares
organizados. Exemplo disso foi a maior expansão do direito ao voto (permissão
aos analfabetos) que se deu em 1985, pleno período ditatorial, quando os órgãos
de representação eram controlados pelo regime militar, “uma bizarrice”, segundo

170 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Carvalho (2013). Essa lógica contribuiu para a criação de uma cultura política
marcada pelo patrimonialismo, protagonizado por um Estado visto como, todo-
poderoso (capaz de assistir a todos com empregos e toda a sorte de favores) e, ao
mesmo tempo repressor e cobrador de impostos (uma cultura que fortalece
demasiadamente o Poder Executivo, diminuindo a força da representação)
supervalorizando o Estado, criando a “estadania” (CARVALHO, 2013) que se
contrapõe à cidadania. Abre espaço para o líder carismático, para o messianismo
e para a impaciência da elite (política e econômica) e dos cidadãos em geral
frente à lentidão dos processos decisórios democráticos, mais complexos,
trabalhosos e lentos, retroalimentando o surgimento de líderes carismáticos.
Na história brasileira tivemos campanha para a conquista do direito ao
voto direto para Presidente da República, mas nunca reagimos contrariamente
ao fechamento do Congresso; não nos é clara a importância da representatividade
por meio dos partidos políticos. Por isso, segundo Carvalho (2013), persiste o
desprezo dos eleitores em relação aos políticos, que são votados por esses mesmos
eleitores na esperança de receberem benefícios pessoais, uma “esquizofrenia
política”, que para Carvalho (2013) é herança do coronelismo.
Por tudo isso, concordamos com o historiador da cidadania no Brasil,
que considera frágil a democracia brasileira e, por isso, precisa de tempo para
ser consolidada. É prioritário que o processo da aprendizagem democrática não
seja interrompido com golpes, porque quanto mais duradoura for a sua
sobrevivência, maior será a probabilidade de conseguirmos (sociedade e governo)
criar coletivamente os mecanismos políticos de correção da democracia e de
consolidação dos direitos civis e políticos (fundamentais para garantir os direitos
sociais) um processo que na Inglaterra, por exemplo, demorou séculos.
Acreditamos que é o exercício continuado da democracia que permite a
ampliação dos direitos civis e políticos e, assim, a consolidação de um círculo
virtuoso que poderá atingir, em um horizonte temporal de longa duração, a
mudança da cultura política. Concordamos com Carvalho (2013), que comparou
a escravidão de outrora com a desigualdade social na atualidade no sentido de
ser o “câncer” que impede a constituição de uma sociedade democrática. A
desigualdade (juntamente com a ideia de valorização do direito ao consumo
como sendo mais importante do que os direitos políticos e civis para dignificar os
indivíduos) indica o quanto é urgente a formação para a cidadania. Diante dessas
carências do tempo presente (que remontam às esquizofrenias políticas do
coronelismo) cabe ao Ensino de História dar sua contribuição específica: a
formação da consciência histórica, uma tarefa que só pode ser efetivada com a

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 171


contribuição dos diferentes atores envolvidos, especialmente professores e alunos,
afinal cidadania plena é o tipo de revolução que só pode ser concretizada pelos
indivíduos ordinários.

SANTOS, José Faustino de Almeida Santos; LASTÓRIA, Andrea Coelho.


Coronelismo and the teaching of history: reflections for citizen formation. DIÁLOGUS.
Ribeirão Preto. V. 09, n. 1, n.2, 2013, p.

ABSTRACT: This article considers the objectives and methodologies undertaken


by History Teaching related to formation of citizenship. In this scenario it intends to
propose reflections to articulate these objectives inherent in History Teaching with
theoretical and historical aspects of the curriculum content denominated
coronelismo and with the concept of historical consciousness.

KEYWORDS: Teaching of History; Coronelismo; Historical consciousness; Day-


to-day; Elementary Education.

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174 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


O FANTASMA DA MODERNIDADE: CONSIDERAÇÕES
ACERCA DE JARDINÓPOLIS

Priscila Fernanda FERREIRA∗


Humberto PERINELLI NETO∗∗

RESUMO: Este artigo objetiva fazer uma análise dos efeitos da modernidade no
município de Jardinópolis (SP) no início do século XX, especificamente, nas
transformações urbanas acarretadas por sua chegada. Para tal intento, fizemos
uso de fontes cartográficas, documentais e iconográficas.

PALAVRAS-CHAVE: Jardinópolis (SP); Cidade e Urbanismo; Modernidade;


História regional.

Apontamentos sobre a modernidade


Modernidade. Ao utilizar esse conceito, não nos propomos aqui fazer
grandes considerações sobre o assunto, mas apenas uma breve análise acerca
da chegada desta no município de Jardinópolis, interior de São Paulo. Partindo
do princípio que a história se reinventa no tempo e no espaço, pretendemos
demonstrar o que significou a entrada da modernidade no munícipio citado,
considerando e evidenciando suas particularidades.
Para tal intento, vamos, primeiramente, lembrar o que Baudelaire escreveu
sobre o que seria essa “modernidade”.
Tendo vivido no século XIX, permeado de tantas transformações políticas,
econômicas, sociais e culturais, Baudelaire descreve modernidade como
“transitório, efêmero, o contingente”; aquilo que é volúvel, portanto é o novo, que
surge em constante mudança, em face do arcaico, que se torna obsoleto.
Posteriormente, no século XX, o historiador Marshall Berman (1986)
amplia o conceito de modernidade e o caracteriza da seguinte forma:
Existe um tipo de experiência vital – experiência de tempo e de espaço, de si mesmo
e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por
homens e mulheres em todo o mundo, hoje (Berman, 1986, p.15).


Graduada em História – Licenciatura Plena pelo Centro Universitário Barão de Mauá.
∗∗
Professor Assistente Doutor junto ao Departamento de Educação do Instituto de Biociências, Letras e
Ciências Exatas (IBILCE/UNESP) de São José do Rio Preto-SP e do Centro Universitário Barão de
Mauá/Ribeirão Preto. humberto@ibice.unesp.br

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 175


Ser moderno seria, portanto, viver essas possibilidades e perigos da vida,
“é encontrar-se em um ambiente que promete aventura [...], mas ao mesmo tempo
ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”, ser
moderno é viver em um paradoxo, entre o novo e o arcaico, é a “sensação de viver
em dois mundos simultaneamente”, é viver a ausência de valores em uma
abundância de possibilidades. A modernidade seria a confluência do novo e o
arcaico, a ambivalência desses pontos em que se encontra a permanência do
arcaico e a chegada do novo.
Valeremo-nos da apresentação de Berman (1986) sobre modernidade
para analisar o nosso objeto, sendo aplicada aqui em uma concepção urbana,
chamada por Sevcenko de “modernização conservadora”47, pois vamos tratar das
transformações ocorridas na cidade de Jardinópolis e das práticas sociais
exclusivas que dizem respeito a essas transformações. A exemplo da
haussmanização em Paris, do “bota-abaixo” no Rio de Janeiro, e da remodelação
urbana na cidade de Ribeirão Preto, guardando as particularidades de cada um,
mas que ecoa no tempo, em diferentes espaços.

Nasce a “Cidade Jardim”


Antes de nos debruçarmos sobre os “comos” e “porquês” da entrada do
que entendemos por modernidade em Jardinópolis, faremos um retorno à origem
da mesma, ao que encontramos do que já foi escrito sobre sua história, que nos
dá base para responder a questão central deste trabalho e, na medida do possível,
respeitar as particularidades do local.
A 18 de junho de 1859, fez-se a escritura de doação de 30 alqueires de terra dos
lavradores Antônio Pereira da Silva e sua esposa, Maria Florência de Jesus e de 18
alqueires dos lavradores Joaquim José D’Araújo e sua esposa, Teodora de Jesus,
totalizando 48 alqueires na Fazenda Ilha Grande, nestes termos: “A Nossa Senhora
Aparecida e para o patrimônio da mesma Capela” (Expo Nacional dos Municípios,
1974, p.279).
Em 1859, ainda com a denominação de arraial de Ilha Grande, moravam
Antônio Pereira da Silva e Joaquim José Araújo com suas respectivas esposas,
que eram irmãs, Maria Florência de Jesus e Theodora Maria de Jesus; como
apresentado acima, foram os doadores para a formação do patrimônio de Nossa
Senhora Aparecida. Mais tarde, vindos de Batatais, chegaram ao arraial de Ilha
Grande, José Ubelino, acompanhado por dois escravos de nomes Gaspar e Izabel,
Diz-se da maneira como a elite manipula o desenvolvimento urbano e as ações que correspondem à
47

modernidade para manter-se no poder.

176 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


e também José Custódio de Carvalho. Eles se instalaram onde hoje compreende
as ruas Américo Salles e José Theodoro.
No ano de 1881, chega ao arraial, Domiciano Alves Rezende. Nessa
época, Antônio Pereira já havia falecido e Joaquim Araújo já não morava mais no
arraial. Os herdeiros de Antônio Pereira venderam as terras de seus pais para Isac
Ferreira. Perante essa situação, José Ubelino se dizia dono das terras. Na escritura
de doação feita em 1859, onde estava descrito os limites das terras,
desapareceram com o tempo. Posto a confusão das “terras sem dono”, Domiciano
Alves Rezende entra na briga, tendo desavenças com Ubelino e Isac.
Em 1894, Domiciano sairia vitorioso com a disputa e conseguiria a
escritura definitiva, sendo considerado o fundador da cidade de Jardinópolis.
Em 17 de dezembro de 1894, foi lavrada escritura entre o proprietário Isac Adolfo
Ferreira e a Fazenda Ilha Grande nestes termos: “A Nossa Senhora Aparecida,
representada por Domiciano Alves de Resende”, na qual foram retificados os mar-
cos em virtude da documentação primitiva não ter sido realizada, tornando-se a
escritura definitiva [...] (Expo Nacional dos Municípios,1974, p.279).
A população do Arraial foi crescendo, finalmente em 1892, no dia 1º de
outubro, pela lei estadual nº 115, o arraial de Ilha Grande passa a ser distrito de
Ilha Grande, pertencente ao município de Batatais.
Em 1896 é enviado ao Congresso o pedido para que se mude o nome de
distrito de Ilha Grande para distrito de Jardinópolis; a justificativa apresentada ao
Congresso é que havia confusões nas remessas de correspondências para o
município, sendo que havia outros lugares de mesma nomenclatura.
A Camara Municipal de Batatais abaixo assignada, tendo resolvido em Sessão de
hoje representar a esse Congresso no sentido de ser mudado o nome do Districto de
Paz Ilha Grande, deste municipio, pois que grande confusão se faz na remessa da
correspondencia para essa localidade, neste haver outras com igual nome, vem
pedir-vos que façais o Congresso conhecedor daquella resolução, indicamos o
nome de “Jardinópolis” para a referida substituição. (SÃO PAULO (Estado). Projeto
de Lei nº 174, 11 de dezembro de 1896).
Assim, no dia 24 de dezembro de 1896, sob a lei estadual nº 484, foi
aprovado a substituição do nome “Ilha Grande” para o nome de “Jardinópolis”.
Entretanto, não foi apresentada a justificativa para a escolha do nome, o que nos
faz recorrer a outras fontes.
Analisando sites ligados à prefeitura do município e livros de memorialistas
da cidade, a justificativa do nome que é divulgada oficialmente é que Jardinópolis
teria recebido este nome em homenagem ao republicano Silva Jardim, que havia

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 177


falecido em 1891 na Itália, sendo tragado pelo vulcão Vesúvio. Segundo Jorge
Saquy Sobrinho:
Á primeira vista, a junção do radical de origem grega pólis – que quer dizer cidade
– com a palavra jardim responderia sem maiores inquirições à origem do topônimo.
Mas o nome deste município, conhecido enquanto antigo Distrito de Batatais como
Ilha Grande, não tem nada a ver com canteiro de flores; é antes uma homenagem ao
republicano Silva Jardim (1860-1891), morto em acidente nada menos que no mais
famoso vulcão do mundo – o Vesúvio, de Nápoles, na Itália (SAQUY SOBRINHO,
2007, p.50).
Ora, pois temos um olhar diferente sobre a observação do referido autor.
Vamos lembrar que as primeiras reformas urbanas, influenciadas pelo
desejo do moderno, ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, foram feitas pelo
engenheiro encarregado, à época prefeito da cidade, Pereira Passos. Este esteve
em Paris durante a haussmanização e usou esta cidade como modelo para
implantar seu projeto modernizador caracterizado por um arrivismo e
cosmopolitismo quase sempre presentes na história do Brasil.
Dessa forma, podemos indicar que o nome “Jardinópolis” pode sim fazer
alusão a “canteiro de flores”; a ideia de beleza, higiene e disciplina andava de
mãos dadas com a republicana, que também representava o progresso, estando
à época fortemente ligada ao positivismo, podendo ambas estar em consonância
no imaginário dos atribuidores do nome “Jardinópolis”.
Recebendo população cada vez mais numerosa, no dia 27 de julho de
1898, sob a lei nº 544, é decretada a emancipação de Jardinópolis de Batatais,
sendo o mesmo elevado a município. Em consequência disso, Jardinópolis recebe
os trilhos da Companhia Mogyana, o que acreditamos que virá a ser, como
mostraremos a seguir, o estopim para a entrada da chamada modernidade na
cidade.

Em busca do moderno: as ambivalências da modernidade

O desejo de modernizar a cidade fica claro com a chegada da ferrovia,


que contribui para uma visão progressista do local em que está inserida.

178 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


FIGURA 1 – Estação de Trem de Jardinópolis, 1912

FONTE: SAQUY SOBRINHO, J. Jardinópolis: das origens ao centenário (1859-1998).


Ribeirão Preto: São Francisco Gráfica e Editora, 2007.

Segundo o historiador Humberto Perinelli Neto (2009), além de beneficiar


o comércio, a ferrovia era associada à civilização e ao progresso, sendo desejada
por todos aqueles que almejavam uma cidade moderna.
[...] Sua presença era garantia de dinamismo comercial, tendo em vista que contri-
buía para disponibilizar um conjunto relevante de produtos regionais num mercado
muito mais amplo. [...] Revestia-se ainda de uma simbologia que a associava à
civilização, pois garantia em áreas longínquas a presença de agentes do Estado, o
deslocamento de imigrantes, o translado de mercadorias refinadas e diferenciadas,
a melhor e maior circulação da comunicação [...] Sendo assim, mais do que transpor-
te, a ferrovia sinalizava um novo tempo, requerido pela maior parte dos homens que
nela investiram e dela se serviram (PERINELLI NETO, 2009, p.168).
Se seguirmos cronologicamente o desenvolvimento de Jardinópolis,
veremos que, a partir da ferrovia, os aspectos do moderno na cidade se tornam
progressivos. Apontamos esses aspectos como parte de um projeto de
modernização, que podemos atribuir o conceito de “modernização conversadora”.
Essa atribuição se justifica pelo fato das transformações urbanas darem-se aos
ensejos da elite jardinopolense, fazendo parte desse projeto a beleza, a higiene, a

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 179


disciplina, o progresso e a civilização, como veremos a seguir.
Em 1900, é feita a primeira Planta da cidade, construção de duas escolas,
do Cemitério e do Matadouro Municipal.
No ano seguinte, se inicia a construção de sarjetas e instalações de
lampiões pela cidade.
Em 1904, começa o cuidado com a praça central.
Observemos, portanto, os indícios da concepção moderna de cidade
estabelecida por Haussmann: construção de escolas, onde os cidadãos abastados
obteriam educação institucional, aprendendo os valores da civilização, da disciplina e
contribuindo para o progresso; a construção do Cemitério municipal e do Matadouro,
que diz respeito à preocupação com a higiene, ficando os mesmos afastados do
centro da cidade; a construção de ruas, sarjetas e iluminação, e o cuidado com a
praça central, a preocupação com o belo, que era tão importante quanto a educação,
pois permitiria constatar que Jardinópolis não era uma cidade “atrasada” e “rural”, mas
que já estava inserida em um processo de modernização urbana.
E já em 1907, inaugura-se o coreto na praça central, onde a banda Lyra
Guarany iria cantar para abrilhantar as noites jardinopolenses. Foge ao nosso
alcance fazer aqui uma análise mais profunda de quem frequentava o coreto
central para ouvir a banda, porém, podemos constatar que, segundo as medidas
ordeiras que estavam sendo tomadas, se tratavam de pessoas consideradas da
elite. O que ficará mais evidente nas páginas seguintes.

FIGURA 2 – Mapa área urbana de Jardinópolis, 1910.

FONTE: SAQUY SOBRINHO, J. Jardinópolis... Op. cit., p.538.

180 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


A imagem acima representa o mapa da área urbana de Jardinópolis,
como mostra a legenda, ao olharmos atentamente a figura, percebemos que o
Matadouro municipal, o Cemitério, assim como o Lazareto não eram localizados
no perímetro urbano, que abrangia à época, o centro da cidade. Com isso notamos
o início da concretização do desejo modernizador, demonstrado pelos cuidados
com tudo o que representava prosperidade, ao tempo em que aquilo que não era
sinônimo disso se localizava na periferia, afastado da área central
Na figura abaixo, podemos notar que havia circulação econômica no
centro da cidade, pois ao fundo notamos uma Casa de Secos e Molhados. Ademais,
a legenda que consta no verso da fotografia “Inauguração da 1ª bomba de gasolina
em Jardinópolis, 1929” pode indicar que automóveis já circulavam pela cidade.
Mais um indício de modernização na cidade.

FIGURA 3 – Inauguração da 1ª Bomba de Gasolina em Jardinópolis, 1929.

FONTE: Arquivo da Casa da Cultura de Jardinópolis.

Como notaremos a seguir, o projeto modernizador não se limitou apenas


ao espaço, mas esteve presente também nos hábitos, costumes e até mesmo na
memória coletiva.
Por exemplo, as primeiras ruas de Jardinópolis eram chamadas de: Rua
do Porto, Rua Bela Vista e Rua do Comércio; entretanto, após o processo
modernizador passaram a se chamar, respectivamente, Avenida Visconde do Rio
Branco, Prof. Euclides Berardo e Rua Américo Salles. Os nomes tornaram-se
representações de personalidades locais ou nacionais.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 181


Após a instauração da República, decidiu o poder público local atribuir nova deno-
minação às vias, optando-se por homenagear personalidades [...], datas e outros
léxicos que diziam respeito a esse novo regime político [...]. (PERINELLI NETO,
2009, p.328).
Era uma forma de imortalizar personalidades ligadas às pretensões
modernas que, por sua vez, estreitavam relações com o regime republicano.
Na figura que segue, ficam claras, nesse sentido, as ambivalências da
modernidade.

FIGURA 4 – Rua Silva Jardim, Jardinópolis, 1912

FONTE: SAQUY SOBRINHO, J. Jardinópolis... Op. cit., p. 54.

A imagem representa a Rua Silva Jardim, que leva o nome do republicano


que teria inspirado a escolha de “Jardinópolis”. Sem nenhum acaso ela fica
localizada no centro da cidade, passando ao lado da praça central. Início do
século XX no Brasil, a rua passa a fazer parte de uma concepção moderna.
Representa a racionalidade dos novos tempos. Ela é reta, possui perspectiva,
nada em comum com as vielas que serviam para estratégias de barricadas no
século passado. Não. A “nova rua” casa bem com as concepções modernas que

182 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


lhe são intrínsecas. Todavia, no centro da rua nota-se a presença de uma carroça,
que representa o arcaico, o rural. Temos o novo, o desejo incessante pelo moderno,
mas também temos a permanência do arcaico, aquilo que ainda não foi
sobrepujado pelo novo; as ambivalências da modernidade.
A imposição do novo, do moderno, acontecia em todos os âmbitos:
econômicos, sociais e culturais. As casas comerciais no centro da cidade; a
construção do coreto, para a praça se tornar um lugar de sociabilização de “gente
civilizada”; o nome das ruas para construir uma memória coletiva em torno de
nomes que tiveram relevância, seja regional ou nacional. Tudo isso são práticas
que nos revelam o desejo pelo moderno em Jardinópolis e, em consequência,
modernidade. Enfatizando uma dúbia realidade, exercida pela imposição do novo
e resistência do arcaico.
No Almanach Illustrado de Ribeirão Preto de 1913, encontramos quatro
páginas dedicadas à Jardinópolis. Podemos observar a imagem que era propagada
da cidade naquele período.
A cidade tem 494 predios, dos quais os mais notáveis são: Grupo escolar, construido
recentemente pelo empreiteiro Vicente lo Giudice, Posto Policial; Teatro Ápolo, de
propriedade da Empresa Alfano & Torraca, inaugurado em novembro do ano pas-
sado, Teatro da S. M. Fratellanza Italiana, onde funciona o Cinema Pathé, cujo
proprietário é o sr. Manoel Bernardes dos Reis, Sub-estação da Empresa de força
e Luz de Ribeirão Preto, Loja maçônica Estrêla do Rio Pardo, e alguns outros
particulares.
Tem 26 ruas alinhadas: 11 de Junho, 13 de Maio, S. Sebastião, Liberdade, Silva
Jardim, Coronel José Teodoro, Coronel Clementino, 7 de Setembro, Prudente de
Moraes, Marechal Deodoro, Afonso Pena, General Osório, Saldanha Marinho,
Amador Bueno, Alfredo Élis, Ruí Barboza, Americo Sales, Altino Arantes, 15 de
Novembro, Albuquerque Lins, Campos Sales, 24 de Maio, Tabatinguera, Antonio
Pereira, Joaquim Araujo.
Avenidas: Italia e Visconde do Rio Branco.
Praças: Coronel João Guimarães, Domiciano de Assis, Republica e Tiradentes.
Á praça Domiciano de Assis, a mais central e movimentada da cidade, ergue-se o
edifício da matriz, de recente construção, e néla se encontram as três farmacias do
lugar [...]
[...] é servida de agua encanada [...], tem iluminação electrica, inaugurada em 1911
[...]
E dentro em pouco estará concluído o serviço de esgotos [...]
[...] ve-se que o município tem 453 contribuintes do imposto de Industria e Profissão,
180 de imposto de café; 295 do imposto pastoril e 494 do imposto predial (ALMANACH
ILLUSTRADO DE RIBEIRÃO PRETO, 1913, p.128).

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 183


Logo após, o texto apresenta as Maquinas de beneficiar café, Maquinas
de beneficiar arroz, Casas bancarias, Commercio, Tipocrafias, Imprensa, Medicos,
Cirurgiões Dentistas, Advogado, Prefeitura Municipal, Camara Municipal, Policia,
Grupo Escolar, Pessoal Administrativo e Corpo Docente, Automoveis, Hoteis,
Bandas de Musica, Juizado de Paz, Cartorio de Paz, Correio, Colectoria Estadoal,
Colectoria Federal, E. F. Mogiana, Teatros, Posto Anti-Tracomatoso, Hospital de
Caridade, Associações, Rendas Municipais, Fotografias, Directorio Politico,
População e Saude Publica.
Percebam que o texto nomeia as instituições existentes na cidade; todas
fazem alusão a aspectos modernos da ordeira Jardinópolis: instituições, máquinas,
empresas prestadoras de serviço, enfim, o discurso em questão é saturado, para
que não haja dúvidas: Jardinópolis é uma cidade em ebulição, progressiva e
moderna.
Contudo, fiel a missão de construir tal imagem e duvidando do leitor, trata
o autor do texto de finalizar este discurso com mensagem ainda mais clara da
relação que se pretende estabelecer entre Jardinópolis e a modernidade:
É uma cidade moderna, saneada, e só lhe falta o calçamento que a Prefeitura espera
iniciar em breve. Os bons edifícios vão surgindo com rapidez, e ainda assim a falta de
casas é grande, pois a população aumenta extraordinariamente (ALMANACH
ILLUSTRADO DE RIBEIRÃO PRETO, 1913, p.131).
Em 1917, sob a lei nº 51, é publicado o primeiro Código de Posturas de
Jardinópolis, sob o mandato do prefeito Américo Salles. Esse documento tinha
como característica reger desde a medição correta da calçada até a vestimenta
adequada para perambular pela cidade. Em alguns capítulos do Código de
Posturas podemos encontrar medidas de punição (prisão, multa) para aqueles
que não seguissem de acordo com os artigos publicados.
No Capítulo XVI “Da inspeção sanitária nas vias publicas e das visitas
domiciliarias”, e XV “Policia Sanitaria”, há uma preocupação com as epidemias –
principalmente a varíola – que o prefeito deveria tomar providências quanto a esta
situação, como forma de sanear a cidade. Os infectados pelo vírus deveriam
isolar-se no Hospital de Isolamento – Lazareto, e só saírem quando estivessem
totalmente curados. Com essa medida, a cidade ficaria saneada, higienizada,
escondendo as “imperfeições”, aquilo que não fazia parte das aspirações
modernas e civilizadoras. Mais uma ambivalência da modernidade.
No Capítulo VI do mesmo Código de Postura, “Dos costumes publicos e
medidas de segurança”, encontramos o seguinte:

184 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Art. 103 – É prohibido sob pena de multa de dez mil reis (10.000) e o dobro nas
reincidências:
Parágrafo 1º “Andar nas ruas e praças da cidade e povoações, bem assim em
outros quaisquer logares publicos, sem estar decentemente vestido. (Código de
Postura da Prefeitura Municipal de Jardinópolis, 1917, p.54).
A preocupação com a aparência, vestimenta, no sentido de polir os hábitos,
costumes, deixar mais civilizado, se torna regido por lei! Dessa forma, todos
deveriam aderir à imposição ou pagar multa pela negligência.
Em contraposição com os antigos costumes, que não mais ornavam os
novos, porém deveria constar na legislação, o que indica a existência e
persistência destes:
Parágrafo 9 – Andar a cavalo sobre os passivos, amarrar animaes as portas das
cazas, portões, grades, arvores ou postes das ruas e praças.
Parágrafo 10 – Passarem pelas ruas e praças da cidade carros de bois cantando ou
chiando. (Código de Postura da Prefeitura Municipal de Jardinópolis, 1917, p.55)
A elite quer construir/impor uma imagem de cidade moderna, sendo
Jardinópolis uma pequena cidade com economia rural e tudo o que isso significa:
presença de animais, costumes, pessoas com estilo associado a este universo
social, etc.
E assim também legislava contra aqueles que não faziam parte do “mundo
civilizado”: mendigos e ciganos. Os últimos por atentarem contra a crença e a
moral cristã predominante, e os outros pela indigência, por serem maltrapilhos,
não agirem como se deve perante a ordem estabelecida:
Art. 103 – É expressamente prohibido vagarem ou arrancharem bandos de ciganos
em qualquer ponto das estradas publicas do municipio. Multa de cincoenta mil reis
(50.000) para cada individuo, além da obrigação de se mudarem imeditamente. [...]
Art. 115 – Aquelle que se intitular negromante [necromante], advinhador, feiticeiro ou
praticar embuste à titulo de advinhar ou curar, iludindo a credulidade publica, incor-
rera na multa de cincoenta mil reis (50.000) e oito dias de prisão.
Art. 116 – É prohibido mendigos pelas ruas e praças da cidade, subúrbios, povoa-
ções e estradas publicas do municipio, sem estar munido de atestado medico de
invalidez e atestado de indigência passado pela autoridade policial e visados pelo
Prefeito taes atestados. Os infratores serão detidos e entregues a policia (Código de
Postura da Prefeitura Municipal de Jardinópolis, 1917, p. 57).
Como podemos notar, durante o início do século XX, Jardinópolis entrou
em um processo de modernização que tentava acompanhar os rastros das grandes
cidades, que também passavam por ele. Desde a criação do município, passando

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 185


pela chegada da ferrovia e todas as transformações aqui narradas, Jardinópolis
se mostra desejoso pelo moderno, mas não consegue impor essa modernização
sem apagar as marcas do passado que lhes são intrínsecas: a ruralidade (presença
de animais de tração, chão batido), os hábitos e costumes que até então faziam
parte do cotidiano sem experimentar prejuízo legal. É diante dessa ambivalência
entre novo e arcaico que justificamos a inserção de Jardinópolis na modernidade.
As fotografias que usamos como fonte, e também as publicações da
época, inclusive o Código de Posturas, nos permitiu enxergar indícios para fazer
as afirmações que aqui fizemos, e perceber minimamente o que significou a
modernidade em Jardinópolis, principalmente no que diz respeito ao urbano.
FERREIRA, P. F.; PERINELLI NETO, H. The phantom of the modern era:
considerations about Jardinópolis. Dialogus. Ribeirão Preto, v.X, n.X, 2014, p.
175-188.
ABSTRACT: This article aims to analyze the effects of modernity in the city of
Jardinópolis (SP) in the early twentieth century, specifically in urban transformations
brought about by their arrival. For this purpose, we made use of cartographic,
documentary and iconographic sources.
KEYWORDS: Jardinopolis (SP); Modernity; City and urbanism; Regional history.
Fontes
ALMANACH ILLUSTRADO DE RIBEIRÃO PRETO. Ribeirão Preto: Sá, Manaia
& Cia., 1913. APHRP.
Código de Postura da Prefeitura Municipal de Jardinópolis, 1917. Disponível
em:<http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=CD_Jard&pasta=&pesq=
p.44-106.> Acessado em: 15 out. 2012.
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SÃO PAULO (Estado). Projeto de Lei nº 174, 11 de dezembro de 1896. Disponível
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186 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


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188 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


DE MONTEIRO LOBATO À ANDRÉ SILVA: APONTAMENTOS
SOBRE A MEMÓRIA DO CAFÉ COMO UM “ÍDOLO DA
ORIGEM” DA CIDADE DE RIBEIRÃO PRETO

Lucas Dario ROMERO Y GALVANIZ∗


Rafael Cardoso de MELLO∗∗

RESUMO: Este artigo visa compreender a permanência de uma certa versão da


história de Ribeirão Preto segundo a qual há uma estreita relação entre o
surgimento da cidade atrelado ao cultivo do café. Tributária de textos influenciados
pela pujança econômica cafeeira no contexto da Primeira República, a insistência
desta memória é percebida pelos dizeres potencializados na descrição fáustica
de uma cidade de Coronéis e seus laços políticos internacionais, as mais ricas
fazendas de café do mundo e de uma cidade que imitava Paris durante a Primeira
República. Para tanto, compararemos um texto de Monteiro Lobato (em 1907)
que versa sobre o município com alguns desdobramentos recentes, como a
publicação Nossa História (2011/12), uma coletânea de textos acadêmicos
responsáveis pela (re)construção do passado local.

PALAVRAS-CHAVE: Ribeirão Preto; memória; café; Monteiro Lobato.

No ano de 2010, a historiadora Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa prefaciou


a 2ª edição do livro do autor José Antônio Lages (2010), e naquela ocasião, citou
trechos da carta de Monteiro Lobato direcionada à Godofredo Rangel, apontando
para o modo como “Lobato deitou seu olhar sobre a pujança do café, como o
fizeram outros que passaram pela região no início do século XX” (LAGES, 2010, s.p.)
De fato, Rosa destacou importância significativa para a descrição que
Lobato fez da cidade de Ribeirão Preto no ano de 1907. Tal importância se deve
não apenas pela eloquência com que o autor contorna a pujante pequena Paris
do começo do século XX, mas sim, pela presença desta mesma descrição em
diversos trabalhos acadêmicos que a tomam para justificar a riqueza da cidade
naquele contexto; mais que isso, para ainda possibilitar um questionamento de

Graduado em História pelo Centro Universitário Barão de Mauá e pós graduando em História Cultura e
Sociedade pela mesma instituição. Professor da rede municipal de Ribeirão Preto.
∗∗
Docente do Centro Universitário Barão de Mauá. Mestre em História pela UNESP/Franca. Participa
dos grupos de pesquisa CIER/UNESP, ELO/USP e GEPALLE/USP, todos cadastrados pelo CNPq.
Email: profrcmello@yahoo.com.br

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 189


como os ribeirãopretanos refletem esta parte de sua história.
Vejamos a descrição feita por Monteiro Lobato sobre a região e a cidade
de Ribeirão Preto na ocasião em que as visitou:
Rangel:
Estou seriamente endividado para contigo, em cartas, livros, cumprimento de pro-
messas, pedaços do Queijo... Mas explica-se a má finança. O mês de dezembro
passei-o todo fora daqui, em S. Paulo e no Oeste. Corri as linhas da Paulista,
Mogiana e Sorocabana, com paradas nas inconcebíveis cidades que da noite pro
dia o Café criou – S. Carlos, um lugarejo de ontem, hoje com 40 mil almas; Ribeirão
Preto, com 60 mil; Araraquara, Piracicaba a formosa e outras. Vim de lá maravilhado
e todo semeado de coragens novas, pois em toda região da Terra Roxa – um puro
oxido de ferro – recebi nas ventas um bafo de seiva, com pronunciado sabor de
riqueza latente.
Em Ribeirão Preto, a colheita do município foi o ano passado de 4 e meio milhões de
arrobas – coisa fabulosa e nunca vista. Um fazendeiro, o Schmidt, colheu, só ele,
900.000 arrobas. Costumes, hábitos, idéias, tudo lá é diferente destas nossas cida-
des do velho S. Paulo e da tua Minas. Em Ribeirão Preto dizem que há 800 ‘mulhe-
res da vida’, todas ‘estrangeiras e caras’. Ninguém ‘ama’ ali a nacional. O Moulin
Rouge funciona há 12 anos e importa champanha e francesas diretamente.
... Tenho que estacionar lá também, Rangel. Estou apertando minhas cunhas para
ser nomeado para Ribeirão ou coisa equivalente.
...Taubaté, 18.1.1907 (LOBATO, 1950. pp.153-154).
Nota-se a partir da leitura da carta de Lobato uma percepção de que
desde os primórdios do século XX, sobressaía-se um certo discurso sobre o
surgimento da localidade de Ribeirão Preto, que segundo o escritor, “da noite
para o dia o Café criou”.
A pujança que, segundo Lilian Rosa, levou Lobato e outros a enxergarem
a cidade como algo criado para e pelo cultivo do café, não se restringiu somente
a viajantes que por ela passaram, mas evidencia-se ainda hoje na produção de
memorialistas preocupados com a manutenção da história local. Grande exemplo
disso, encontramos nos trabalhos de Rubem Cione:
Ontem e hoje, sua predestinação é alcançar posição de destaque dentre suas
similares de todo o País. Nesse mais de um século de sua existência, a cidade de
Ribeirão Preto, já experimentou fases áureas […] Na época áurea, os cafezais
ondulantes fizeram-na a “Capital do Café […] Nessa fase corria muito dinheiro e […]
é uma lembrança inesquecível desse passado que marcou toda uma fase de euforismo
dos senhores do “Ouro Verde” (CIONE, 1987, p.386.)

190 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


A obra de Cione, embora em alguns momentos aceite que Ribeirão Preto
“já viveu fases críticas (CIONE, 1987, p.386)”, é uma verdadeira ode à cidade. Ele
tem uma escrita apaixonada, responsável por qualificativos que destoam de um
texto especificamente de caráter “científico”, tornando sua escrita uma produção
literária de parcialidade questionável1. Da mesma forma, podemos perceber que
também o autor aponta para a mesma pujança que Lobato.
Embora o memorialista relacione a ocupação do que hoje é Ribeirão
Preto a homens detentores de um espírito religioso, de catolicismo arraigado, que
possibilitaram a formação da cidade ao requererem perto de si as graças da
Igreja, o próprio não deixa de contribuir com suas palavras eloquentes para a
consolidação da ideia de que Ribeirão Preto, embora predestinada a “alcançar
posição de destaque”, somente alcançou seus altos desígnios graças aos “cafezais
ondulantes”, ao “Ouro Verde”, que “fizeram-na a “Capital do Café”. Em outras
palavras, o café foi o responsável por projetar a cidade de Ribeirão Preto no
cenário nacional (1987).
Este período “áureo” destacado por Cione, retratado por Monteiro Lobato,
foi contemplado por um momento de rápido crescimento urbano e de uma
modernização do local. Tal “revolução” do cotidiano citadino foi testemunhado
pelos próprios ribeirão-pretanos e por viajantes, e embora, como bem apontou o
historiador Rodrigo Ribeiro Paziani (2005), a modernização trouxesse junto consigo
várias contradições, a memória local ficou marcada pelas belas e impactantes
impressões deste novo mundo em que Ribeirão adentrava.
Os símbolos oficiais da cidade, como o brasão e a bandeira, ajudam a
mostrar como o café marcou profundamente a história de Ribeirão Preto, e como
a versão que afirma que seu surgimento se deu em decorrência da produção
cafeeira fora adotada pelo próprio poder público.
Observemos o texto da lei que sanciona e explica o significado do brasão
da cidade:
[…] a tradicional Coroa Mural de prata, com 8 (oito) torres, onde se vê somente
cinco, por força da perspectiva do desenho, que é o símbolo privativo das cidades
que outrora eram fortificadas contra os inimigos e representavam o domínio feudal,
tendo no frontispício um escudete de blau (azul), com um báculo episcopal, que
representa o poder e direito de administrar com justiça e duas flechas ou setas
cruzadas em prata, que representa a tradição guerreira, representando o mártir
1
É importante destacar que toda escrita é parcial, entretanto, na expectativa da construção de um real
científico, os historiadores costumam hierarquizar as versões provenientes de trabalhos acadêmicos e
outros de cunho literário/romântico/jornalístico, como o texto de Cione (CERTEAU, 1993; DOMINGUES,
2011, p. 02; SANTOS, 2009, p.05).

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 191


padroeiro São Sebastião, na fé e inspiração religiosa dos primeiros povoadores da
região; como suportes e ornamentos externos, representando por dois ramos de
café frutados, lembrando a poderosa riqueza agrícola, produto que trouxe vários
imigrantes e inúmeras benfeitorias à região, fazendo com que o escudo fique apoia-
do e sustentado em seus ramos; abaixo deste o listél em goles (vermelho), com a
legenda em letras de prata “BANDEIRANTIVM AGER”, o que vem lembrar os
Bandeirantes e os Pioneiros, como Anhanguera e Bartolomeu Bueno, que fizeram
os primeiros roçados e plantações na região, onde eram os índios CAIAPÓS, os
seus habitantes primitivos e mais tarde oficializou-se pela Lei nº 67, de 67, de abril de
1871, e instalando-se em 4 de junho de 1874, o Município de RIBEIRÃO PRETO.
(FONTE: MELLO, 2009, p.64)
Analisando os símbolos e a descrição acima, percebemos as preferências
adotadas. Nota-se que o período anterior ao café fica relegado da história da
cidade em detrimento da “poderosa riqueza agrícola [...] que trouxe [...] benfeitorias
à região”; deixa claro também que antes dos senhores do café “eram os índios
CAIAPÓS, os seus habitantes primitivos”; e que somente em “4 de Junho de 1874”
é que fora fundado o “Município de RIBEIRÃO PRETO”.
Este tipo de preferência que consiste também em uma ocultação não
fora privilégio somente dos ribeirãopretanos. Ayalla Oliveira Silva (2011), em um
trabalho que consiste em estudar a criação e perpetuação da memória da cidade
de Itabuna (BA), aponta como a elite local ao escrever a história da cidade ocultou
a existência e participação de indígenas aldeados na construção da urbe, embora
os citem como entraves para o progresso local. O progresso, no caso, estaria
presente na figura dos imigrantes desbravadores que se tornaram a elite cacauera
da cidade.
No caso de Ribeirão Preto a ocultação acaba sendo ainda maior, haja
vista que tanto os indígenas que já habitavam as terras que dariam origem a
cidade quanto os primeiros povoadores brancos, sejam viajantes ou ainda
entrantes mineiros, responsáveis pela ocupação da população branca no nordeste
paulista (LAGES, 2010) acabam tendo sua participação na história local negada
ou diminuída... Ou seja, faz-se menção a fé dos “primeiros povoadores” da região
que obviamente não são fundadores da cidade.
Nesta visão, Ribeirão Preto somente teria surgido com o advento da
cafeicultura, pois a data de 4 de Junho de 1874 está compreendida, conforme
aponta Luciana Suares (2011), no período em que a cafeicultura adentrara no
município. Logo, nesta lógica de interesses em organizar a memória local, a
inserção do café é que teria possibilitado o nascimento da cidade enquanto tal.
Cria-se, então, um “mito de origem” da cidade atrelado ao cultivo do café. Nota-se

192 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


que para além dos símbolos, o hino da cidade também corrobora para a exaltação
do café, na medida em que canta este tempo da seguinte maneira:
A minha terra é um coração
Aberto ao sol pelas enxadas
Sangrando amor e tradição
No despertar das madrugadas
História exemplo, amor e fé
Assim traçamos teu perfil
Ribeirão Preto, terra do café
Orgulho de São Paulo e do Brasil [refrão]
Nasceste do destino nacional
Das caminhadas rumo ao Oeste
E ainda guardas o belo ideal
Dessa epopéia em que nasceste
Ribeirão Preto esse destino
Que consagrou a tua gente
É do trabalho o grande hino
Que há de viver eternamente
És linda jóia no veludo
Dos nossos verdes infinitos cafezais
E se em ti amada terra temos tudo
Ainda procuramos dar-te mais. [refrão]
(FONTE: ROMERO y GALVANIZ, 2013, p.28)

No refrão do hino, também de forma eloquente, nota-se a relação feita


entre Ribeirão Preto e o café, e a grandiosidade de ambos no cenário nacional.
Todavia, dois versos do hino são elucidativos acerca da ideia do nascimento da
cidade atrelado ao café: “És linda jóia no veludo / Dos nossos verdes e infinitos
cafezais”.
A contração da preposição “de” com o artigo “os” - “dos”, passa a ideia de
causa e/ou posse. Desta forma, Ribeirão seria de posse ou causada pelos “verdes
e infinitos cafezais”, que é antecedido pelo pronome possessivo “nossos”. Assim,
os cafezais são “nossos” e Ribeirão é dos “verdes e infinitos cafezais”. Nota-se que
nesta cronologia de criação o homem criou (no sentido de cultivar) o café, e
Ribeirão foi criada a partir deste. Dos três sujeitos que aparecem nestes dois
versos a cidade teria surgido por último.
É notório que o poder público, ao exaltar a cafeicultura pelas menções à
rubiácea feitas em seus símbolos oficiais, ajudou a cristalizar a versão que
apresenta o café como pai da “civilização” em Ribeirão Preto, como possibilitador

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 193


de sua existência. Contudo, a lei citada que instituía os símbolos e o hino data de
1991 e altera outra lei datada de 1949, todavia, como percebemos pelos dizeres
de Lobato (1907), a ideia do vínculo entre Ribeirão Preto e os cafezais já há muito
se fazia presente.
Aires Nascimento (1995), em um estudo sobre a presença do Mito de
Hércules na Hespania, já nos apontava que um dos motivos para a sua presença,
permanência e perpetuação era que tal mito permitiria a nobreza local “colocar-
se a par dos outros reinos da Cristandade em contexto de afirmação política”
(1995, p 671) na Europa. Pode-se notar o mesmo esforço consciente por parte da
elite cafeeira de Ribeirão Preto ao vincular o nascimento da cidade à cafeicultura
em um momento de grande mudança política, tanto no cenário local quanto no
nacional.
Como o próprio Lobato aponta em sua já referida carta, a produção
cafeeira em Ribeirão Preto se tornara exorbitante, e projetara a cidade no cenário
nacional e internacional. Em 1907, quando da escrita da carta, há ainda um
grande esforço dos republicanos em se consolidar e legitimar no poder, e como
aponta Ballarotti, “nunca a construção histórica esteve tão presente em nossa
nação como na transição da Monarquia para a República” (2009, p. 202). Como
aponta Le Goff:
a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais
pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das
grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são
reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF,
1984, p.103).
Consolidar a república e a cafeicultura como mola propulsora do
progresso local e nacional era necessário aos cafeicultores. A criação do Mito de
origem da cidade em decorrência do café atenderia a estes dois interesses.
A adoção dos símbolos oficiais por parte do poder público pode apontar
para este esforço consciente em perpetuar tal memória. Mas não somente pelos
símbolos oficiais o poder público colaborou para a consolidação desta versão
histórica.
Em 2010, por exemplo, com o apoio da Prefeitura, elaborou-se um projeto
denominado “Filhos do Café”, que consistia na produção de um documentário,
na produção de um livro, na mudança na exposição do Museu do Café Francisco
Schmidt, e na criação de jogos interativos para as crianças que visitam o Museu
(TONON, 2013).

194 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


O próprio nome do projeto é elucidativo acerca de quem são Ribeirão
Preto e os ribeirão-pretanos: “Filhos do Café”. Contudo, os dizeres contidos na
orelha do livro, referentes ao projeto e suas pretensões, são mais elucidativos:
O projeto Filhos do Café foi especialmente concebido para permitir que a missão
para qual o Museu do Café Francisco Schmidt foi criado seja cumprida – guardar,
preservar, comunicar, permitir que a população tenha acesso à história do café e,
muito importante, fazer com que os ribeirão-pretanos se reconheçam personagens
da história contada na condição de legítimos filhos do café, ainda que, por certo, não
se trate de relações semelhantes, havendo o relato históricAo (sic) dos ricos e dos
pobres filhos do café, dos que produziram e dos que viveram da produção.
[…]
O projeto Filhos do Café é um das ações do Programa Café com Açúcar mantido pela
Secretaria da Cultura de Ribeirão Preto, que tem como meta valorizar a cultura da
cidade, em especial a relacionada ao período do café (Filhos do Café, Livro, 2010).
Como podemos perceber, de acordo com os dizeres, o projeto tem por
escopo ajudar o Museu do Café a cumprir sua missão: “guardar, preservar,
comunicar, permitir que a população tenha acesso à história do café”, e assim
“fazer com que os ribeirão-pretanos se reconheçam personagens da história
contada na condição de legítimos filhos do café”. Os dizeres enfatizam qual a
versão histórica deve ser perpetuada: aquela em que o surgimento da cidade é
atrelado à cafeicultura e os ribeirão-pretanos resultados desta simbiose.
Já em 2011, também por iniciativa do poder público, lançou-se uma
coleção de livros sobre a história da cidade intitulada “Coleção Nossa História”,
dentre os quais ressaltamos dois: o já citado livro de Luciana Lopes, “Ribeirão
Preto- a dinâmica da economia cafeeira de 1870 a 1930”; e “Fundadores: a saga
de Manoel Fernandes do Nascimento”, de autoria de José Antônio Lages (2012).
Conscientemente ou não, a importância dada ao café se faz notar a medida em
que o livro de Lopes, que compreende o período em que, segundo Cione, o “ouro
verde” elevava a cidade aos seus “altos desígnios”, é o de número um (1) da série.
Em uma linha cronológica, o livro de Lages, que também fora publicado
pela mesma coleção, deveria anteceder o de Lopes por tratar da ocupação e
formação de Ribeirão Preto. A ordem de lançamento pode indicar uma certa
hierarquização na primazia da história da cidade.
Há, ainda, tanto na “Coleção Nossa História” quanto no projeto “Filhos do
Café”, alguns dizeres interessantes a serem analisados, tanto pelo teor dos textos
quanto pelos autores dos mesmos.
Nas orelhas das capas dos livros que compões a “Coleção Nossa História”

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 195


há alguns dizeres do então vereador da cidade André Luiz da Silva:
Fazendo jus ao que consta em seu hino, Ribeirão Preto sangra amor e tradição. A
terra do café, orgulho de São Paulo e do Brasil possui fatos curiosos e pitorescos,
que encantam e que muitas vezes ficam renegados as poucas conversas caseiras
ou arquivadas em monografias e teses nas inacessíveis estantes das universidades.
A inédita união da Câmara Municipal, Instituto do Livro e Secretaria da Cultura
possibilita uma nova viagem ao passado. Juntos, vamos percorrer as vastas
plantações e descobrir aspectos importantes da prosperidade cafeeira.
[…] A coleção Nossa História traz um convite para o apoderamento de
nossa rica história (grifos nossos). Trata-se de uma grande contribuição para a
geração atual e para as vindouras (LAGES, 2012).
Já na apresentação do livro que é parte do projeto “Filhos do Café” a
então prefeita da cidade, Darcy Vera, diz o seguinte:
Esta obra é uma justa homenagem a todos os ribeirãopretanos que nasceram ou
imigraram para esta terra e fizeram do lugar, um espaço reconhecido no mundo
pelas suas mais evidentes qualidades.
Filhos do café, na sua grande variação histórica, somos todos nós. […]
A leitura desta obra é um convite a transitar pela história de Ribeirão Preto desde os
primórdios até os dias de hoje (grifos nossos). É uma maneira de reconhecimento de
nós mesmos e dos muitos homens e muitas mulheres que antes de nós passaram por
estas terra roxas (Filhos do Café, 2010).
O vereador quando faz o convite aos leitores dizendo: “Juntos, vamos
percorrer as vastas plantações e descobrir aspectos da prosperidade cafeeira” e
assinala que isto é um “convite para o apoderamento de nossa rica história”,
demonstra que em seu entender Ribeirão Preto surge, ou passa a ter histórias a
serem contadas, a partir dos cafezais, pois “apoderar-se” da “história” de Ribeirão
Preto seria “percorrer as vastas plantações”.
Vale salientar que, conscientemente ou não (talvez por uma falta de atenção
no momento da edição), os dizeres do vereador André ficam demasiadamente
fora de contexto no livro de Lages (2012), pois tal obra trata do período anterior às
“vastas plantações […] da prosperidade cafeeira”, sendo o café citado apenas no
último parágrafo do livro, como um porvir em relação ao recorte temporal adotado
na obra.
Também entre as palavras da prefeita podemos perceber que se revela a
mesma imagem do nascimento da cidade em decorrência do período cafeeiro:
“A leitura desta obra é um convite a transitar pela história de Ribeirão Preto desde

196 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


os primórdios até os dias de hoje”. Os “primórdios” da história da cidade seriam as
primeiras plantações de café, haja visto que ela afirma que “Filhos do café, na sua
grande variação histórica, somos todos nós”.
Entre todas as declarações (Lobato, Cione, André Luiz e Darcy), o que
salta aos olhos é o fato de que parece ser lugar-comum entre viajantes e ribeirão-
pretanos a versão histórica segundo a qual a cidade teria nascido em decorrência
dos cafezais, tanto que a então chefe do executivo quanto um de seus vereadores
adotaram esta versão em seus discursos.
Neste caso, tanto a prefeita quanto o vereador demonstram ser, ao mesmo
tempo, reflexos deste processo histórico e perpetuadores desta versão da história
local.
Em ambos podem ser encontrados aspectos que apontam para os efeitos
de um processo de longa duração no que diz respeito à propagação da versão
que conta a história da cidade como sendo um resultado da cafeicultura. Esse
processo pode ser evidenciado se levarmos em conta que a versão da história
local e a visão da pujança da cidade adotada nos dizeres de Darcy Vera e de André
Luiz, em 2010 e 2011, respectivamente, em pouco se diferencia da apresentada
por Monteiro Lobato quando este esteve na cidade em 1907, conforme vimos em
sua carta direcionada a Godofredo Rangel.
Prefeita e vereador acabam sendo perpetuadores desta versão da história
da cidade a medida em que também, por meio de seus dizeres, contribuem para
que esta seja perpetuada.
José Antônio Lages (2010; 2012) apontou que o surgimento da localidade
se deu aquém dos cafezais no início do século XIX; Lilian Rosa afirmou que a
cafeicultura na cidade, embora extremamente importante, “era apenas uma fase,
que mesmo duradoura, não fornecia grande parte dos elementos necessários
para a compreensão da formação sócio-econômica de Ribeirão Preto” (LAGES,
2010, s.p.). Todavia, quando André Luiz (ao se referir que a história da cidade se
iniciaria com as “vastas plantações”) afirma que esta história “Trata-se de uma
grande contribuição para a geração atual e para as vindouras” e Darcy Vera diz
que conhecer a história do período cafeeiro “É uma maneira de reconhecimento
de nós mesmos”, ambos apontam para qual versão histórica deve ser perpetuada.
Como podemos perceber, a memória do café é extremamente forte em
Ribeirão Preto, e mesmo a localidade tendo sido formada em decorrência de
outra dinâmica que não a cafeeira (LAGES, 2010), “o tempo do café ficou marcado
a ferro e fogo nos ribeirãopretanos” (MELLO, 2008, p.64.). A visão que Monteiro
Lobato teve da cidade e de sua história, em 1907, perdura há mais de um século,
e o processo de propagação da mesma ainda está em curso.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 197


ROMERO y GALVANIZ, L. D; MELLO, R. C. Monteiro Lobato to André Silva: notes
on memory of coffee as an “idol of origins” of the city of Ribeirão Preto. DIALOGUS.
Ribeirão Preto, v.X, n.X, 20XX, p. 189-199.

ABSTRACT: This short article aims to analyze the persistence of a certain version
of the story of Ribeirão Preto, according to which there is a close relationship
between the emergence of the city linked to the cultivation of coffee. To do so,
compare the words of Monteiro Lobato (in 1907) to more recent ones, as we will
see that their own political ends contributing to the perpetuation of such a version.

KEYWORDS: Ribeirão Preto; memory; coffee, Monteiro Lobato.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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SILVA, A; ROSA, L.; CASTRO M. C; et al. Filhos do Café – Ribeirão Preto da terra
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LAGES, J. A. Ribeirão Preto: da Figueira à Barra do Retiro- povoamento da
região por entrantes mineiros na primeira metade do século XIX. São Paulo: Nelpa,
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LOBATO, J. B. R. M. A barca de Gleyre. 1º Tomo. São Paulo: Editora Brasiliense,
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198 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


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PAZIANI, R. R. Outras leituras da cidade: experiências urbanas da população de
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dos Annales. Anais do XX Ciclo de Estudos Históricos. Ilhéus: Universidade
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TONON, S. Museu do Café Francisco Schmidt: e o Projeto Filhos do Café.
Ribeirão Preto, 2013, 47p.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 199


200 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
AS CARACTERÍSTICAS DAS SILCRETES ASSOCIADAS A
OPALAS COMUNS NA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO DO
CEDRO – MUNICÍPIO DE LUCAS DO RIO VERDE – MT

Deocleciano BITTENCOURT ROSA∗


Lucelma Aparecida NASCIMENTO∗∗
Leonardo Cristian ROCHA∗∗∗

RESUMO: Este trabalho contém dados resultantes de estudos realizados sobre


as silcretes e as opalas associadas que ocorrem na bacia hidrográfica do rio do
Cedro, circunscrita no município de Lucas do Rio Verde, situado na parte central
do Estado de Mato Grosso. Regionalmente, foram identificados afloramentos da
unidade litoestratigráfica Formação Utiariti, pertencente ao Grupo Parecis, de
idade relatada ao Cretáceo Superior, além de Coberturas Detrito-Lateríticas
Terciárias e Aluviões Recentes. Esta sequência se constitui de crostas silicosas
extremamente duras horizontalizadas que conduzem a formação de relevos do
tipo mesas, onde os cimos são constituídos por lajes de silcretes e leitos de opalas
intercalados. O rio do Cedro drena esta área na unidade geomorfológica conhecida
como Planalto dos Parecis.

PALAVRAS CHAVE: Lucas do Rio Verde; Rio do Cedro; Formação Utiariti;


silcretes; opalas.

1 – Introdução
Este artigo apresenta os resultados acerca de estudos que foram realizados
na unidade litoestratigráfica (Mendes, 1996) Formação Utiariti, em ocorrências
detectadas em terrenos da Fazenda Piúva na porção central do Estado de Mato
Grosso, e mais precisamente no município de Lucas do Rio Verde, numa área
delimitada entre as coordenadas geográficas de latitudes 12° 40’ e 13° 45’ Sul e

Universidade Federal de Mato Grosso. Departamento de Geografia/Programa de Pós-Graduação em
Geografia. Av. Fernando Correa da Costa 2367. Cidade Universitária, Boa Esperança. 78.060-900.
Cuiabá, MT. dbrosa@terra.com.br.
∗∗
Université Rennes 2. Laboratoire COSTEL. 6, Av. Gaston Berger, Bloc N. 35000 Rennes, Cedex –
France. Bolsista de Doutorado Pleno da CAPES. lucelmamt@yahoo.com.br
***
Universidade Federal de São João del Rei. Campus Tancredo Neves (CTAN). Departamento de
Geociências. Avenida Visconde do Rio Preto, s/n (km 2). Colônia do Bengo. 36301-360 - São João del
Rei, MG. rochageo@ufsj.edu.br

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 201


longitudes 56° 00’ e 56° 20’ Oeste de Greenwich. (Figura 1), a aproximadamente
2° 05’ à direita do Meridiano Rondon.
Regionalmente diversos sítios foram vítimas de desmatamentos, para o
aumento de suas áreas agricultáveis, e foram descobertas ocorrências de
afloramentos de uma rocha de coloração marrom clara a amarelada escura,
identificada por Bittencourt Rosa et al. (2002) como uma silcrete. Com o avanço
dos estudos foram encontrados leitos de opalas intercalados, além de níveis de
brechas de matriz marrom escura contendo elementos destas silcretes, das opalas
dispersos na matriz, assim como da rocha arenítica predominante na unidade
litoestratigráfica Formação Utiariti.
O acesso a esta região é possibilitado através da Rodovia Federal BR–
163, que secciona o município de Lucas do Rio Verde. Desta rodovia parte a
rodovia estadual MT–338, que se dirige à localidade de Posto 30 e que atravessa
toda a região de estudos e atinge o município vizinho de Tapurah.

Figura 1 – Esboço do mapa de localização da área de estudos no


município de Lucas do Rio Verde, MT.

Fonte: Miranda e Amorim (2002).

O objetivo deste trabalho é o de apresentar esta associação silcrete/


opala com mais detalhes, em face da existência de raras publicações no nosso
País, que fazem referências a estas ocorrências nesta região, circunvizinhanças
e alhures.

202 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Em vista disto é importante a determinação da constituição geológico-
geomorfológica-pedológica e hídrica mesmo de forma sucinta da bacia
hidrográfica do rio do Cedro com uma caracterização da associação entre as
silcretes e as opalas que ocorrem regionalmente, para que seja idealizado um
enfoque na geração de um produto que possa ser usado como modelo de estudos
destas estruturas, isto porque não existem trabalhos neste sentido em escala
regional.

2 – Referencial Teórico e Conceitual


Nestes estudos é importante salientar que dados geomorfológicos podem
ser evidenciados na caracterização dos mais diversos sítios, que constituem o
modelado, e em alguns deles ocorrem rochas com potencial para o
desenvolvimento de crostas duras que exculpem principalmente, relevos tabulares.
Essas rochas foram reconhecidas macroscopicamente e microscopicamente
como silcretes, e estão incluídas na família das rochas créticas (BITTENCOURT
ROSA et al 2002 b).
Silcretes – O termo silcrete foi introduzido por Lamplugh (1902, 1907) ao
descrever os depósitos superficiais endurecidos pela sílica autigênica devida à
infiltração de águas subterrâneas na Rodésia, no continente africano.
Uma silcrete, ou laje silicosa, é a rocha que ocorre como resultante de
uma acumulação de sílica que tem sua origem num ambiente continental
superficial, notadamente, na forma fibrosa, que se constitui de fácies mais ou
menos puras, que contém evidências de fantasmas de minerais que foram
substituídos por outros (epigenia). O termo epigenia pode ser também referido
geomorfologicamente, a um processo de envelhecimento a que é submetido um
curso de água, através da superimposição, quando o mesmo entalha seu percurso
ao penetrar em estruturas geológicas diferentes daquelas do seu leito inicial.
Grande parte dos estudos apresentados sobre as silcretes consideram
um ponto de vista: à geomorfologia, a pedologia e a geoquímica, e são raros
aqueles com detalhes, que podem determinar o ciclo evolutivo dessas estruturas,
e a dinâmica processual na natureza durante este ciclo. Os autores concordam
que a antiguidade das paisagens permite supor que, na maioria das vezes existiu
nas silicificações um fenômeno bem antigo que evoluiu longamente. Desta forma
os níveis de silcretes que encontramos ocorrendo no topo da unidade
litoestratigráfica Formação Utiariti, estão certamente associados a silicificações,
que podem estar relatadas a ciclos especiais de erosão, e evidentemente a
determinados processos de silicificação.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 203


Opalas – As opalas são minerais que pertencem ao grupo da sílica, cuja
fórmula geral é: SiO2.nH2O. Portanto, ela é conhecida também como a sílica
hidratada. A quantidade de água presente em suas estruturas pode variar entre 2
a 21 % (BARNES et al. 1992).
Algumas variedades podem apresentar uma quantidade de água que
atinge os 30%, enquanto que outras são praticamente anidras. Podemos encontrar
também óxidos de alumínio, cálcio, ferro, fósforo, potássio, titânio e manganês,
que intervêm como impurezas.
No Brasil, os principais jazimentos de opalas estão relatados aos
municípios de Pedro II e Piripiri (opalas nobres ou preciosas e outras), situados no
Estado do Piauí, na Região Nordeste do País. Outras jazidas de opalas nesse
mesmo Estado são encontradas nos municípios de Castelo do Piauí e Várzea
Grande (BITTENCOURT ROSA, 1988).
Outros dados acerca das opalas são citados em todas as regiões do
Brasil por Bittencourt Rosa (1988), e é importante remarcar que todos esses
jazimentos de opalas são produtos de alteração que encontramos nas aluviões,
ou seja, associados a outros minerais (galena, níquel, entre outros), mas em geral
alguns deles são desprovidos de interesse econômico em face da pobre qualidade.
Todavia, observações registradas mesmo no Estado do Piauí, e nos Estados de
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Goiás e
Rondônia em ocorrências de opalas, são observadas as qualidades destes
minerais para diferentes usos, e principalmente aquelas que estão associadas
aos níveis de silcretes (BITTENCOURT ROSA, 2009).
Classificação das opalas: As opalas são classificadas, principalmente
pelas cores e nesta descrição apresentamos aquela baseada no valor mercante
destes minerais, isto é, sobre a raridade das pedras e sobre as suas cores. Desta
maneira, podemos distinguir três tipos: as opalas comuns, as opalas nobres ou
preciosas e as opalas “potch”. As opalas comuns são as mais abundantes em todo
o mundo. Geralmente, elas possuem uma estrutura fibrosa, fibroradiada,
criptocristalina (JONES e SEGNIT, 1971). Elas correspondem a uma variedade
de sílica hidratada a brilho resinoso ou graxo e apresentam uma coloração
homogênea (BITTENCOURT ROSA, 1988, 2009).
As opalas nobres ou preciosas são gemas que mostram frequentemente,
belíssimas características e um maravilhoso jogo de cores: branco, negro, o
espectro do arco-íris, semelhantes a centelhas ondulantes ou a pequenas bandas
flamboiantes. Essas opalas apresentam brilhos vivos variáveis, vítreos e subvítreos,
que estão relacionados com os arranjamentos das pequenas esferas de sílica.
As opalas « potch » devem sua denominação a sua origem australiana,
204 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
segundo JONES e SEGNIT (1981). Esse tipo corresponde, seja a uma associação
da opala preciosa com um material sem valor, seja a uma associação da opala
preciosa com a opala comum. Nesse último caso, uma quantidade considerável
de opala preciosa é englobada numa massa de opala comum. Nessa variedade
de opala existe uma associação irregular de esferas de sílica de tamanhos
diferentes.

3 – Metodologia Utilizada
Os procedimentos metodológicos utilizados neste trabalho
compreenderam inicialmente, uma compilação bibliográfica, assim como a
confecção de mapas índices para acompanhamento dos trabalhos de campo.
Depois foi realizada uma observação dos aspectos físico-bióticos para a
caracterização da cobertura vegetal regional a partir da teledetecção em fotografias
aéreas verticais pancromáticas obtidas pelo AST-10/USAF (United States Air Force)
em 1965/67 na escala 1: 60.000.
Estas fotografias foram comparadas com as imagens do satélite
LANDSAT/TM-7, bandas 3, 4 e 5, obtidas em 2004, e com as mais recentes datadas
de 02/08/2005 e 14, 20, e 23/01/2006. Porém, com a desativação do satélite
LANDSAT/TM–7, as imagens utilizadas nesta etapa foram aquelas dos Satélites
CBERS 1 e CBERS 2 (Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres), nas bandas
2, 3, 4 e 5 (red/green/ash and blue), órbita/ponto 166/115, datadas de 21/07/2006,
fornecidas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE.
Nesta etapa de trabalhos foram realizados também, estudos nas cartas
temáticas publicadas pelo Projeto RADAMBRASIL, Folhas SD.21/Cuiabá, na escala
1:1000.000 de Geologia de Barros et al. (1982), Geomorfologia de Ross e Santos
(1982), Vegetação de Amaral et al. (1982), Pedologia e Levantamento Exploratório
dos Solos de Oliveira et al. (1982) e Uso Intensivo da Terra de Roessing et al.
(1982), e por Bittencourt Rosa et al. (2002 a), CPRM (2004) e Bittencourt Rosa
(2005, 2009). O mapa base utilizado para definição das toponímias foi o Mapa
Rodoviário editado em 2009 pela SINFRA - Secretaria de Infraestrutura do Estado
de Mato Grosso.

4 – Principais Questões /Pontos Desenvolvidos


Em primeiro lugar, o que se questiona, é a origem da sílica e das
silicificações presentes nas silcretes, nas opalas e nas brechas silcréticas ou
então opalizadas, que ocorrem associadas regionalmente. É sabido que estas
rochas submetidas à silicificação são elas mesmas silicosas por natureza. Aliás,
nas sequências de rochas regionais, podemos observar as organizações que
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 205
mostram claramente, a migração da sílica de alto a baixo da sequência. Podemos
considerar que, o essencial da sílica provém de sua dissolução no topo e mais
em baixo de uma série de precipitações e de redissoluções contínuas.
A precipitação da sílica corresponde a outra questão. É sabido que os
sistemas naturais são muito complexos e dois fatores desempenham um papel
considerável: Os sistemas de alteração supergênica são modificados em função
das estações úmidas e secas, e depois nas sequências de rochas, como nos
arenitos, podemos observar de alto a baixo, os sistemas fissurados e os sistemas
plásmicos.
A estação das chuvas de outra parte é a responsável pela percolação das
águas, sobretudo, no topo das sequências, enquanto que, a estação seca é
responsável pela formação dos processos de evaporação. É reconhecido, que os
meios precipitados de baixo da sequência são fortemente hidratados, ao nível do
lençol freático, e a atividade da água é, portanto, forte em razão da barreira
construída pelas rochas subjacentes não alteradas, o que permitiu uma forte
dissolução dos minerais nas rochas.
Os sistemas supérgenos tal como sabemos complexos como são, se
modificam em relação às variações de umidade e de aridez sazonais. Na época
da estação chuvosa, o sistema é submetido à ação da percolação das águas,
enquanto que na estação seca a evaporação é o mecanismo de ação. Esses
processos mostram um jogo de mecanismos se produzindo concomitantemente,
em diversos pontos das sequências de rochas. Dessa forma a silicificação que
está associada a esses processos se produz obedecendo a processos diferentes
sobre dois tipos de sítios:
- na base das sequências, a umidade é elevada permitindo uma forte
dissolução dos minerais da rocha.
Num meio onde a velocidade do vetor de transporte, a água é fraca, a
sílica dissolvida precipita para formar as silcretes. Esse processo pode ser
acentuado quando a sequência considerada repousa sobre uma camada
impermeável, por exemplo, quando a Formação Utiariti repousa diretamente sobre
os basaltos da Formação Paredão Grande.
- sobre a sequência, a lixiviação da sílica pelas águas de percolação
assegura sua redistribuição rumo à base onde ela se precipita. As águas de
lixiviação são um tanto quanto saturadas de sílica, tanto que na área de estudos o
conjunto de rochas é muito rico em SiO 2. Assim, nas sequências verticais
estudadas, podemos observar claramente a migração da sílica de alto a baixo,
portanto, tal como vimos anteriormente, podemos considerar que o essencial
provém da dissolução no topo da sequência.
206 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
Outro grande problema encontrado na área de estudos está relacionado
com a atuação dos processos erosivos, isto porque com a retirada da cobertura
vegetal, localmente, para a implantação de cultivos de soja, e para a extração de
materiais para a construção civil dos afloramentos, diversos pontos apresentam
os sintomas da solifluxão (deslizes do manto de decomposição em terrenos
inclinados). Este fenômeno com a evolução provoca o aparecimento de ravinas,
principalmente durante a estação das chuvas, com o escoamento superficial
concentrado. O material é carreado para o leito do rio do Cedro, e quando não
estas ravinas evoluem para a edificação de incisões erosivas ou voçorocas.

5 – Resultados Alcançados
Quadro Geográfico-Geológico – O clima predominante regionalmente,
não é uniforme, sendo possível identificarmos um clima tropical quente a estações
contrastadas, ou seja, o de número 2 (dois), segundo a classificação de Durand-
Dastès (1968), para as grandes linhas do clima, modificada por Estienne e Godard
(1970), e apresentada por Tardy (1986). Então podemos caracterizar duas estações
distintas, uma seca que vai de abril a setembro e a outra chuvosa que ocorre de
outubro a março. A pluviosidade média anual é de 1700 mm.
Nesta variação sazonal as temperaturas oscilam entre 32° a 40° na
estação seca e varia de 28° a 34° na estação das grandes precipitações
pluviométricas.
Do ponto de vista geológico a bacia em questão está constituída por uma
sequência de rochas que evidenciam episódios deposicionais que tiveram lugar
desde o Cretáceo Superior até os dias atuais. Este conjunto está representado por
rochas pertencentes à Formação Utiariti (Grupo Parecis – Cretáceo Superior),
Coberturas Detrito-Lateríticas do Terciário e Aluviões Recentes (Figura 2) (BARROS
et al, 1982, BITTENCOURT ROSA et al. 2002 a e CPRM, 2004).
A Formação Utiariti é a unidade que constitui o topo do Grupo Parecis.
Foi reconhecida inicialmente por Barros et al. (1982) e posteriormente reestudada
por Weska (2006). Está litologicamente constituída por conglomerados basais
cíclicos, oligomíticos, com seixos e raros matacões de arenitos e quartzo, com
matriz arenosa e cimento silicoso. Arenitos conglomeráticos, arenitos e siltitos
argilosos, silcretes, e leitos opalizados predominam da porção intermediária até o
topo e, por vezes, intercalados por lentes de microconglomerados. A espessura
média deste pacote é de 100 metros.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 207


Figura 2 – Esboço da coluna estratigráfica da bacia hidrográfica do rio do Cedro.

As Coberturas Detrito-Lateríticas estão dispostas em discordância erosiva


recobrindo praticamente todas as unidades da área em apreço. As espessuras
podem variar de 0,5 a 3 metros, estando constituídas por detritos eluvionares,
coluvionares e aluvionares. Os detritos aluvionares estão relacionados às redes
hidrográficas do rio do Cedro e seus afluentes localmente.
Estas lateritas constituem crostas de óxido de ferro de cor avermelhada
escura, e ocorrem maciçamente, ou em oólitos e pisólitos, por vezes,
irregularmente. As formas maciças estão caracterizadas por níveis de crostas
regulares de espessura de alguns centímetros (0,5 a 5 cm).
As Aluviões estão referidas a área de drenagem do rio do Cedro e de seus
afluentes regionais.
No contexto geomorfológico toda esta região se descortina através do
Planalto dos Parecis, que pode ser dividido em duas unidades: A Chapada dos
Parecis e o Planalto Dissecado dos Parecis. Efetivamente essas unidades
geomorfológicas compreendem uma zona de planaltos e outra de um relevo
dissecado (Ross e Santos, 1982 e Werle e Alves da Silva, 1996). A bacia em
apreço está circunscrita no Planalto Dissecado dos Parecis.
Os solos estão representados por Solos Concrecionários, Latossolos,
Cambissolos, Neossolos Regolíticos, Litólicos e Quartzarênicos, Argissolos e
Organossolos (EMBRAPA, 1999, 2006 e MOREIRA e VASCONCELOS. 2007).
A região estudada é drenada pela rede hidrográfica do rio do Cedro e de
seus afluentes, todos pertencentes à bacia hidrográfica do rio Verde que é parte
integrante da bacia do rio Teles Pires ou São Manuel.
Na cobertura vegetal ainda encontramos traços de Florestas, e do Cerrado
(Savana), com presença de Campo Cerrado (Savana arbórea aberta), Campo
208 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
sujo (Savana parque), Campo limpo (Savana gramino-lenhosa), Matas (Ciliares e
Galerias), Cerradão (Savana arbórea densa) e Áreas desmatadas (Pastagens e
Áreas cultivadas) (OLIVEIRA et al. 1982 e BITTENCOURT ROSA et al. 2002 a, b).
Os Níveis de Silcretes e os Leitos de Opalas Associados – Os níveis
de silcretes e de opalas associadas estão relatados à fácies silicificadas.
Inicialmente elas foram descritas como fácies petrográficas silicificadas por
Stephens (1971) e Hutton et al. (1972). Contudo, segundo Meyer (1981), foi Smale
(1973) que realizou uma síntese das mesmas, apoiando-se sobre estudos
realizados na África do Sul e na Austrália, onde este autor reconheceu cinco tipos
de fácies petrográficas.
a) Tipo terraço – nesta fácies, os grãos de quartzo estão cimentados pela
sílica finamente cristalizada. O cimento pode imitar figuras de escoamento e
pode ser rico em leucoxênio.
b) Tipo conglomerado – apresenta seixos eventualmente feitos do material
do terraço, imersos numa matriz silicosa na maioria das vezes de cor vermelha.
c) Tipo Albertinia – aqui não são reconhecidos elementos detríticos; a
rocha é semelhante à da matriz do tipo terraço.
d) Tipo opalino – os elementos detríticos estão ausentes da rocha, que é
maciça, feita de opala e de calcedônia.
e) Tipo quartzito – a alimentação dos grãos de quartzo dá à rocha um
aspecto de um ortoquartzito.
Essas descrições evidenciam a complexidade e a grande variedade das
fácies encontradas, que conduzem, frequentemente, os autores a preferir
descrições escritas a figurações por fotografias e desenhos (Meyer, 1981).
Tomando por base os cinco tipos petrográficos de Smale (1973) e nas
interrelações das silcretes/opalas com os aspectos geomorfológicos da bacia
hidrográfica do rio do Cedro, foi possível determinar uma seção tipo com quatro
fácies silicificadas que constituem um encrustamento de alto a baixo da sequência
de rochas da Formação Utiariti.
Encrustamento da Formação Utiariti e as silcretes e as opalas
associadas da bacia do rio do Cedro - Tal como vimos anteriormente, as
silcretes são encontradas no topo da Formação Utiariti. Acima dessa sequência
sedimentar, encontramos níveis de brechas, cujos elementos formadores são
arenitos, arenitos quartzíticos e silcretes, distribuídos numa matriz cujo cimento é
silicoso e leitos de opalas. Desta forma seguindo o modelo de Smale (1973), o
encrustamento desta unidade na bacia do rio do Cedro foi dividido em quatro
fácies assim reconhecidas, de alto a baixo da sequência (Figura 3).

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 209


Figura 3 – Seção tipo do encrustamento da Formação Utiariti, na bacia
do rio do Cedro, no município de Lucas do Rio Verde, Estado de Mato Grosso.

a) Fácies tipo terraço – No corpo de algumas amostras, podemos


reconhecer concentrações de opala pó e a presença de cavidades geódicas
com diâmetros, que oscilam entre 0,4 a 4 cm, que são preenchidas por quartzo
esbranquiçado, amarelado e marrom, ou então por opala marrom, cinzenta ou
azulada, às vezes, em pequenas estalactites. Podemos observar essas
características nas amostras coletadas entre as localidades de Fazenda Piúva,
Porto Sebastião e Posto 30. Nas extremidades dessas cavidades, podemos
identificar a presença da lussatita.
A Lussatita é uma forma de sílica fibrosa (cristobalita de baixa temperatura),
descrita por Mallard (1890), na localidade de Lussat, no Maciço Central Francês.
Esse mineral foi reconhecido por Arbey (1980) como uma opala rica em cátions,
tais como: K+, Na+, Ca2+, Al3+, dotada de uma nítida cristalinidade. Esse mineral está
disposto em bandas contínuas milimétricas e na alteração da massa silcrética
em opala hidrofana esbranquiçada superficialmente, numa espessura de quase
dois centímetros.
b) Fácies tipo silcrética/opalina – Esta fácies corresponde às silcretes
com as opalas associadas, que se desenvolvem, desde a parte média e se repetem
na parte superior da Formação Utiariti na área estudada. Por ser resistente, ele
serve de suporte para a topografia em forma de cornijas. Nesta fácies a rocha é
semelhante àquela da matriz do tipo terraço, muito silicificada, de coloração marrom
210 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
clara e branco-amarelada contendo níveis conglomeráticos.
Amas opalizadas são encontradas, assim como concentrações aleatórias,
às vezes distribuídas em blocos sobre a superfície do terreno. Encontramos também
a sílica criptocristalina de colorações marrom e marrom-amarelada e outros
minerais sob a forma de quartzo, calcedônia e lussatita.
c) Fácies do tipo arenito – Esta fácies está representada por arenitos
microconglomeráticos de colorações branco-amarelada, avermelhada e rósea,
finos a muito finos e com pequenos seixos de quartzo esparsos de
aproximadamente 1 mm de diâmetro.
d) Fácies do tipo conglomerática – A rocha apresenta aqui seixos
quartzosos e sílex, que estão distribuídos através de uma matriz silicosa de colorações
avermelhada, amarela clara ou marrom clara, e intercalações de bandas marrons,
com bandas esbranquiçadas e lentes e nódulos efetivamente constituídos de
materiais do terraço, cobertos por uma matriz silicosa frequentemente, marrom
clara. Níveis de opalas esbranquiçadas, marrons claras e amareladas são
encontrados associados a este fácies. Lentes de arenitos silicificados contêm,
algumas vezes, seixos de mais ou menos 2 cm de diâmetro e se intercalam com
conglomerados de uma espessura que pode atingir até 0,5 m.

6 – Considerações Finais
A coletânea de dados expressa nesta descrição, embora não seja
constituída por todos aqueles que poderiam ser citados, nos permite a visualização
de uma forma eficaz e concreta, dos problemas encontrados em campo na bacia
do rio do Cedro, com relação ao tema abordado.
Mais uma vez podemos assimilar a importância geográfica dos aspectos
geográficos na descrição da caracterização de uma bacia, tal qual seja a sua
superfície.
Uma descrição da litologia de uma determinada área é um dos temas
atuais que mais se centralizam em resultados positivos, principalmente quando
ele é novo na literatura geocientífica. Desta forma foi estabelecida a divisão em
fácies da Formação Utiariti, dentro do enfoque deste trabalho.
O rio do Cedro estabelece uma relação visível com as cidades de Lucas
do Rio Verde e Tapurah e suas vizinhanças, drenadas que são pelo mesmo e seus
tributários. As crostas silcréticas e os níveis de opalas associados, predominantes
na sua rede de drenagem, se constituem numa fonte da busca para materiais de
construção, isto erradamente, entretanto elas podem ser utilizadas para outros
benefícios, principalmente na indústria, e na joalheria, e desta forma a qualidade
das mesmas terão que ser reconhecidas, doravante.
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 211
BITTENCOURT ROSA, D.; NASCIMENTO, L. A.; ROCHA, L. C. The characteristics
of the silcretes associated to the commons opals in the Cedro river hydrographical
basin – Lucas do Rio Verde Municipality – State of Mato Grosso – Brazil. DIALOGUS.
Ribeirão Preto, v.X, n.X, 20XX, p. 201-215.

ABSTRACT: This work contain data resulting of studies realized about the silcretes
and opals associated which occur in the Cedro river hydrographical basin to limit
oneself at the Lucas do Rio Verde municipality situated in the central part of the
Mato Grosso State. Regionally were identified out crops of the lithostratigraphic
unity Utiariti Formation belonging to the Parecis Group, of age related to Upper
Cretaceous, beyond of Detritical-Lateritical Covering of Tertiary and Alluvium
Recent. This sequence itself constitute of silicified fond horizontal hard crusts,
which conduct to the formation of relief type mesas, where the summit are constituted
by flagstones of silcretes and opals levels intercalated. The Cedro River drains this
area in the geomorphologic unit known as Parecis Plateau.

KEYWORDS: Lucas do Rio Verde, Cedro river, Utiariti Formation, silcretes, opals.

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216 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
A “ARTE DE SER BELLA”: APONTAMENTOS SOBRE
BELEZA E HIGIENE NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1917-1918)

Greize Dainese de LIMA∗

RESUMO: A efervescência econômica, cultural e social das primeiras décadas


do século XX, trouxe consigo também inúmeras transformações na vida das
mulheres do período. Mudanças nos hábitos higiênicos, nas vestimentas, no modo
de criar os filhos, bem como de cuidar da aparência. Como já não bastassem as
inúmeras tarefas que a mulheres deveriam desempenhar, a beleza incorpora-se
em mais um requisito deste leque. Com a ajuda das publicações da época
(almanaques e revistas) que possibilitaram uma divulgação ampla destes novos
conhecimentos.

PALAVRAS-CHAVE: Primeira República; Beleza; Higiene; Mulher.

INTRODUÇÃO
Este artigo resultou da pesquisa durante o curso de pós-graduação História
Cultura e Sociedade, cujo objetivo foi identificar elementos característicos e realizar
apontamentos sobre beleza e higiene na Primeira República entre 1917 e 1918, a
partir da coluna A “Arte de ser Bella”, publicada no almanaque “EU SEI TUDO”.
Marcadamente de cunho científico, constatação feita não apenas pela
nossa pesquisa, mas também com a ajuda da bibliografia e estudos já realizados
sobre a revista, percebemos que, na verdade, muitas das publicações realizadas
nas duas primeiras décadas do século XX, continham este mesmo discurso. A
medicina, o sanitarismo, as inovações tecnológicas, a moda, que começavam a
adentrar na vida das pessoas de maneira irreversível. Devemos ressaltar que, a
absorção destes elementos primeiramente se deu pela elite, assim paulatinamente
os “novos hábitos” chegaram à população como um todo.
A escolha da revista se faz na medida em que, acreditamos que “Eu sei
tudo”, e também as outras publicações do gênero, tem importante papel na
circulação de ideias, “a imprensa registra, comenta e participa da história. Através
dela se trava uma constante batalha pela conquista dos corações e mentes”
(FERNANDES, et. al, apud ARAUJO 2002).

Graduada em História pela Universidade Estadual de Londrina ; Especialização em História Cultura e
Sociedade pelo Centro Universitário Barão de Mauá. Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. E-mail
greize_dainese@yahoo.com.br. Orientadora Prof. Dra. Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 217


Nosso enfoque foi dado à coluna “A arte de ser Bella”, presente desde a
primeira edição. Para nosso estudo foram utilizados seis volumes. O número 1º
de junho de 1917, a número 2º julho de 1917, a número 3º agosto de 1917,
número 7º dezembro de 1917, número 9º de fevereiro de 1918, número 13º de
junho de 1918. Todos estes foram consultados no Arquivo Público e Histórico de
Ribeirão Preto SP.
A escolha destes números se deu pela quantidade de revista que o arquivo
público tinha a disposição para pesquisa. Embora o arquivo conte com outras
publicações como A Cigarra, Revista Feminina, o número maior de volumes do
almanaque “Eu sei tudo”, possibilitou uma abrangência maior e melhor do trabalho.
A metodologia do trabalhou se seguiu da seguinte maneira. No primeiro
momento se verificou a quantidade de revistas presente, a partir daí nos
concentramos nas publicações do período de 1917 a 1918 sobre o qual se
delimitou nosso recorte histórico temporal a Primeira República (1889-1930).
A partir daí buscamos verificar, de acordo com a quantidade de números
que o arquivo tinha a disposição, realizamos a leitura de várias colunas contidas
no almanaque. A que mais chamou nossa atenção foi justamente àquela destinada
ao nosso objeto de pesquisa a mulher. Através da coluna A “Arte de ser Bella”,
percebemos através dos vários números lidos e analisados, uma permanência no
discurso referente à higiene e beleza, tão em voga nas primeiras décadas do
século XX, como verificou Nicolau Sevcenko em Historia da vida privada no Brasil.
O objetivo da pesquisa foi justamente através da leitura e análise da coluna
A “Arte de ser Bella”, realizar alguns apontamentos sobre o discurso da higiene e
beleza propagada pela medicina, que tinha como alvo principal a mulher, “deveria”
não somente se adequar, mas levar toda essas “mudanças” a toda sua família,
filhos e marido. A problemática deste trabalho se apresenta na medida em que
tentamos articular a questão dos novos hábitos de beleza e higiene com essa
“modernidade” que se instaura nas primeiras décadas do século XX.
Uma mudança profunda nos hábitos se deu neste período. As revistas e
almanaques contribuíram de maneira muito significativa na propagação dessas
ideias. O presente trabalho se justifica na medida contribui através de alguns
apontamentos como cotidiano dessas pessoas é alterado e atravessado por um
discurso novo que altera significativamente a vida de todos de maneira irreversível.
O advento da República marca com profundidade a vida não somente
econômica, política, mas também a vida social das diversas pessoas daquele
período, principalmente aqueles que habitavam os grandes centros urbanos como
Rio de Janeiro, Salvador, Recife e São Paulo. As transformações são profundas e
inevitáveis, era preciso estar atrelado aos grandes centros urbanos mundiais como
218 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
Paris, Londres e Nova Iorque onde o capitalismo entra numa nova fase, a dita
Revolução Científico-Tecnológica (1870) momento de expansão da economia
industrial para todo o mundo e isso inclua o Brasil.
Essa nova configuração histórica classificada como “moderna”, passa
pela crença inabalável como ressaltou Sevcenko, “na superioridade da missão
civilizatória da Europa, disseminando seus valores e seu modo de vida” para o
resto do mundo.
É dentro deste cenário que o presente trabalho se descortina. Imerso em
transformações profundas e irreversíveis é que a maior parte da população
brasileira se vê obrigada a se adequar já que “civilizar” e “regenerar” são missões
que a recente república queria para ontem.
Assim sendo, o presente trabalho busca apontar e discutir a relação que
estava sendo estabelecida nas ultimas décadas do século XIX e as primeiras do
século XX entre o discurso dos médicos higienistas e essa “nova” mulher que lia
esses manuais e buscava se adequar e essa nova “era”. Qual era esse discurso?
Qual era a arte de ser bela? Que elementos eram necessários a essa mulher para
se tornar realmente moderna?
A problematização destes novos temas tais como: etiqueta, alimentação,
sexualidade, moda, costumes redirecionou o olhar dos historiadores sem nunca
perder de vista as implicações políticas aí inseridas.
Os variados discursos (orais, arquitetônicos, iconográficos, gestuais)
passaram a ser decodificados com mais frequência, procurando reconhecer neles
tensões sociais e sentidos históricos num determinado meio social.
O nosso trabalho se insere exatamente aí. Com breves apontamentos,
extraídos da coluna A arte de ser bela contida no almanaque Eu sei tudo,
procuramos entender que, se produziu nas primeiras décadas do século XX, um
vigoroso “receituário” de normas e técnicas que como ser e estar sempre bela e
apresentável não somente ao marido, mas para toda sociedade da época.
No primeiro capítulo Saneamento e beleza na Primeira República,
traçaremos um panorama sobre esse discurso e seu contexto histórico. Com a
ajuda da bibliografia discorremos como essas mudanças alteraram a vida das
pessoas nas grandes cidades. Revoltas urbanas, urbanização, mudanças de
hábitos, a divulgação dessas novas ideias através das revistas e almanaques.
Já no segundo capítulo Apontamentos sobre a “Arte de ser Bella” e o
discurso higienista contido na revista “Eu sei Tudo”, para tanto, realizamos alguns
apontamentos, podemos perceber como um determinado nicho desta nova
sociedade deveria ser e aparecer; a beleza atrelada a novos hábitos de higiene
jamais imaginados antes. Novos hábitos, novas crenças (o discurso da ciência,
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 219
da medicina é a bola da vez), varrer aquele passado colonial, onde se
compreendiam como atraso, pobreza, doenças deveria ser apagado com urgência.

1. SANEAMENTO E BELEZA NA PRIMEIRA REPÚBLICA


No período histórico como Primeira República, entre 1889 até 1930, o
Brasil vivenciou mudanças de toda a ordem bastante significativas. Como observou
Boris Fausto, a transição pode até ter sido “tranquila”, o mesmo não se aplica aos
anos subsequentes.
[...] como episódio, a passagem do Império a República foi quase um passeio. Em
compensação, os anos posteriores ao 15 de novembro se caracterizaram pó uma
grande incerteza. Os vários grupos que disputavam o poder tinham interesses
diversos e divergiam em suas concepções de como organizar a República (FAUSTO,
2013 p.211).
Foram diversos episódios importantes naquele período. A imigração é
um deles, segundo Fausto o Brasil recebeu entre 1887 até 1930 aproximadamente
3,8 milhões de estrangeiros, encabeçando a lista os italianos, seguida dos
japoneses, portugueses e espanhóis. A Urbanização também se destacou. Cidades
como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Salvador deram um salto significativo
em número de habitantes. O fenômeno do crescimento industrial também se fez
presente. Em São Paulo os lucros do café incentivaram a atividade. “Membros da
burguesia do café tornaram-se investidores e uma série de atividades [...] iniciou
uma grande fábrica de tecidos em Sorocaba” (FAUSTO, 2013).
Sob o ponto de vista político, a recém-instaurada República sofreu várias
designações, “as mais sugestivas são a de República oligárquica, República dos
coronéis, República do café com leite”. (FAUSTO, 2013). Todas elas para nomear
um período da história do Brasil de profundas transformações.
Diante esses fatos, como bem salientou Sevcenko, a “modernização” do
país deveria ser implantada “a todo custo”, assim:
o Rio apresentava focos permanentes de difteria, malária, tuberculose, lepra, tifo,
mas suas ameaças mais aflitivas eram a varíola e a febre amarela, que todo o verão
se espalhavam pela cidade como uma maldição. Por isso a cidade tinha, desde o
século XIX, a indesejável reputação de “tumulo de estrangeiros” (SEVCENKO,
2010, p.22).
E foi praticamente “a todo custo” que a tida “regeneração” se deu na
capital da República, o Rio de Janeiro. A Revolta de Canudos (1893 – 1897) e a
Revolta da Vacina (1904) foram marcos históricos na medida em que, a maior
parte da população mais uma vez alheia aos interesses da elite se via obrigada a

220 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


se adequar de uma hora para outra. O plano foi bastante ambicioso: executar
simultaneamente a modernização do porto, o saneamento da cidade e a reforma
urbana. Engenheiros, médicos, higienistas, as iniciativas tomadas pelas
autoridades públicas visavam unicamente atrelar a capital aos grandes centros
industrializados e exemplo a Paris, capital de um projeto de urbanização
encabeçado por Georges-Eugene Haussman copiado no mundo todo.
A Belle Époque aqui nos trópicos teve um ar bem menos “romântico” que
na Europa. Por Belle Époque entende-se o período histórico do fim do século XIX
e inicio da Primeira Guerra Mundial (1890-1914). Período caracterizado como de
grande efervescência cultural e marcantes inovações tecnológicas tais como
telégrafo, cinema e a eletricidade.
Foi uma fase de grande desenvolvimento na Europa, configurando um
período de otimismo entre a população que passou a ter grande crença no futuro
diante inúmeros avanços. Esses avanços se deram em muitas áreas, química,
eletrônica, siderurgia, bem como a medicina e higiene, o que permitiu baixar altos
índices de mortalidade da população. Uma das maneiras de ilustrar esse período
para o mundo foi a Exposição Universal de Paris de 1900 as margens do rio Sena.
Neste panorama Paris foi à capital do mundo, modelo a seguir para todas as demais.
Aqui no nosso caso, a população que vivenciou essas alucinadas transformações
não recebia nenhum tipo de informação, se viu perdida, despejada (cortiços,
sobrados, casas térreas, tudo foi colocado a “baixo”, sem nenhum tipo de
ressarcimento para os moradores) humilhada, desorientada, não conseguiu
compreender a destruição de suas casas, a truculência da qual eram vítimas, o
levante foi historicamente mal compreendido como apenas um ato de ignorância
por parte da população, segundo Garcez Marins “o Rio de Janeiro foi palco de uma
firme tentativa de reformar os costumes, aliando controle e o redesenho dos espaços
públicos ao ataque violentíssimo aos espaços privados” (GARCEZ MARINS, 2010).
Os tempos eram outros, a vida mudou, as cidades estavam em constantes
transformações, os hábitos mudaram e consequentemente a forma e a quantidade
de produtos; o consumo em si tinha mudado e alterado muito o cotidiano das
pessoas. Obviamente num primeiro momento essa mudança se deu em uma
parcela reduzida da população, mas aos poucos isso chegou a uma quantidade
bastante significativa da população. Enquanto a grande maioria sofria com as
imposições do poder público, é preciso ressaltar que, esse período também ficou
marcado pela grande euforia diante tantas novidades. Eletricidade, farmacologia,
telefone, televisão, aviões, e também os artigos de higiene como papel higiênico,
vasos sanitários, escova de dente etc., são artigos que faziam parte agora do rol da
novíssima “vida moderna”.
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 221
[...] esse período abrangeria grosso modo de 1900 a 1920 e assinala a introdução
no país de novos padrões de consumo, instigados por uma nascente mas, agressiva
onde publicitária, além desse extraordinário dinamismo cultural representado pela
interação entre as modernas revistas ilustradas, a difusão das praticas desportivas,
a criação do mercado fonográfico voltado para as musica ritmadas e mudanças
sensuais e, por ultimo mas, não menos importante, a popularização do cinema
(SEVCENKO, 2010p. 37).
É nesse viés e no afã de tentar entender a dinâmica dessa nova ordem
que se estabelece de maneira bastante complexa, que se insere nossa pesquisa.
Em meio a todos estes acontecimentos como reforma urbana, saneamento básico,
campanhas em prol da saúde e higienização dos costumes, nascimento e
crescimento de jornais, revistas, almanaques, propagandas, produtos femininos,
formam um novo homem e inevitavelmente uma nova mulher.
A história das revistas no Brasil remonta a época de D. João VI o início do
século XIX, com a criação da Imprensa Régia (1808) aliada à abertura dos portos,
o país começa a entrar em contato com o conhecimento produzido na Europa. A
primeira revista impressa em território nacional foi As Variedades ou Ensaios de
Literatura, em Salvador em 1812 (CARVALHO, 2011). Tempos depois as
publicações vão se tornando cada vez mais variadas, destinadas a públicos
específicos:
no início do século XX acompanhando a crescente evolução da indústria no país,
começam a surgir os mais variados tipos de publicações. A fotografia passa a ter
lugar de destaque junto aos periódicos nacionais a ponto de em 1900, surgir a
Revista da Semana especializada em fazer reconstituições de crimes em estúdios
fotográficos, instaurando assim, no mercado brasileiro de revistas, um modelo que
veio para ficar: veiculo recheados de ilustrações, fotos atraentes aos olhos do con-
sumidor (BAPTISTA, ABREU, s.d p. 4).
A publicidade então introduz a imagem, acrescida do enunciado ou mesmo
da reportagem para dar um plus a mais, creditando valor ao produto anunciado
dando respaldo maior e melhor aquilo que está sendo discutido ou analisado.
Esses veículos tiveram um papel primordial na difusão das ideias que
circulavam no período. Por ser de grande mobilidade, as revistas, almanaques,
contribuíram para organizar essas novidades, a dar sentidos para essa nova
sociedade e assim criaram novas linguagens dentro do universo cultural no qual
transitavam.
No nosso caso específico o almanaque “Eu Sei Tudo”, com o titulo no
mínimo pretensioso, o periódico mensal serviu como boa base para encontrarmos
registros do tipo de literatura que se lia vestimentas que se usavam, avanços
222 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
tecnológicos e também científicos, curiosidade, moda, beleza sem nunca deixar
de ressaltar que, isso era apenas uma parcela da população letrada que se utiliza
deste veiculo de informação e entretenimento.
Era uma publicação mensal, e cada edição continha em media 100
páginas, dividida em seções fixas, tais como: artigos especiais, a ciência ao alcance
de todos, conhecimentos úteis, contos e aventuras, novidades e invenções, paginas
de arte, curiosidades.
O almanaque continha uma satisfatória quantidade de fotos, o que facilitava
muito a vida do leitor, além do que, era um importantíssimo e eficaz elemento de
propaganda de produtos. As capas eram muito bem feitas para a época, geralmente
coloridas e chamativas, com letra bem legível. Segundo (Moraes, 2010) “Eu sei
tudo é precursor no sentido de abarcar os temas comuns dos produtos de massa,
das revistas contemporâneas”.
Dialogando com a historiografia já estudada sobre essa temática, o artigo
A Educação da saúde da mulher - mãe e da criança na revista “Eu Sei Tudo” nas
primeiras décadas do século XX (1910-1930), os autores nos alertam sobre a
responsabilidade que recai sobre a mulher, no caso também mãe, a despeito dos
hábitos que essa mulher deveria adequar-se, não somente ela, mas toda sua
família, desta forma:
hábitos higiênicos ajudam a manter a saúde do lar estavam sendo feitos e
reconstruídos, na medida em que os leitores entravam em contato com os saberes e
conhecimentos médicos destacados e descritos no diálogo em que a revista manti-
nha com seus interlocutores, formando nesta interação, novos comportamentos,
tidos como desejáveis e modernos. Para tal, a ciência e a tecnologia foram tomadas
o tempo todo como autoridade nas formações conformações de novos hábitos,
mesmo quando em alguns artigos se percebe certa inquietação em relação a essa
autoridade como verdadeira, mas em momento algum desautorizada.
(FERNANEDES, OLIVEIRA, et. al. s.d, p. 5)
Mesmo com certa desconfiança o aburguesamento dos hábitos se dava
de forma bastante enfática, digo isto porque, somente numa rápida folheada nos
almanaques do período, o que se percebe é uma profusão de propagandas,
produtos, tônicos fortificantes, anúncios de carros, toda a sorte de produtos,
evidenciando assim o começo de uma nascente classe onde o consumo
possivelmente vá imperar. Esses almanaques como veremos no segundo capítulo,
continham fórmulas, receitas, dicas, enfim, várias artimanhas para se adequar a
esses novos tempos de higiene e beleza.
Lembrando que, o presente estudo, visa realizar alguns breves

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 223


apontamentos sobre esse discurso sobre higiene e beleza nas primeiras décadas
do século XX, sobretudo destinado à mulher, que, mesmo o almanaque utilizado
como fonte em nossa pesquisa “Eu Sei Tudo”, não seja destinado unicamente ao
público feminino, a seção “A Arte de ser Bella” nos indica sim, que historicamente
a mulher é “cobrada” socialmente por isso. No mais, nunca se esquecendo de
salientar o diálogo constate com os trabalhos já realizados sobre o tema, que
foram de vital importância para a compreensão de muitos fatos aqui descritos.

2. APONTAMENTOS SOBRE A “ARTE DE SER BELLA” E O DISCURSO


HIGIENISTA NA REVISTA EU SEI TUDO.
As duas primeiras décadas do século XX se iniciam com diversas
mudanças para toda a população das grandes cidades. Digo isso, pois, segundo
Maluf e Mott (1998, p. 371) “era nas cidades, as quais trocavam sua aparência
paroquial por uma atmosfera cosmopolita e metropolitana”, nestas sim se
descortinaram as mudanças mais expressivas e significativas por assim dizer.
Neste segundo capítulo alguns breves apontamentos sobre e “A Arte de
Ser Bela”, coluna contida na revista “Eu Sei Tudo”, publicação mensal em formato
de almanaque, publicada pela Companhia Americana, situada na cidade do Rio
de Janeiro entre 1917 até 1958.
A revista Eu Sei Tudo tinha um caráter editorial múltiplo, como já havia
mencionada no primeiro capítulo, ela não tinha como público alvo as mulheres,
mas sim um público bastante diversificado com um conteúdo que ia de lutas,
passando por temas políticos, comportamento e também o discurso científico
vigente na época. Como nos assegura Fábio Reynol Carvalho:
a produção cientifica brasileira, ao contrário da norte-americana, estava em fase
embrionário naquela época. Todavia, mesmo sem ter consolidado sua pesquisa
cientifica, o Brasil do inicio do século XX contava com uma crescente atividade de
divulgação cientifica, especialmente no Rio de Janeiro. Jornais e revistas da capital
da República abriram espaço para as novidades tecnológicas e descobertas da
ciência; não havia porem uma divulgação sistemática (REYNOL, 2011, p.23).
Assim, o discurso da ciência toma conta dos jornais e revistas apontando
os caminhos para população em relação a como proceder de agora em diante.
Remédios, escovas de dente, receitas de beleza, hábitos higiênicos tudo isso
começou e fazer parte da vida destas pessoas (estamos nos referindo aqui quase
que essencialmente a população das grandes cidades), e as revistas tiveram um
papel importante na divulgação destas ideias.
De acordo com Fernandes, “a missão de informar a sociedade acerca

224 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


dos acontecimentos ao redor do mundo se destacava como uma característica
peculiar da revista”, de caráter geral tentava abarcar um publico grande de leitores
“assíduos” pelas novidades.
Nossa análise recaiu sobre a coluna “A arte de ser bela”, presente desde
a primeira edição da revista e permanecendo assim como raras ausências em
todos estes anos de circulação.
No exemplar de número 1º de junho de 1917, a referida coluna nos fala
sobre “a beleza dos dentes”, a recomendação quase utópica de recorrer sempre
ao dentista no máximo de três em três meses. Digo utópica, pois, se hoje em
pleno século XXI, ir ao dentista ainda é algo para poucos, devido ao preço elevado
dos tratamentos, imagina só nas primeiras décadas do século passado. Há a
menção de uma famosa professora na arte de ser bela, a dita, Lina Cavalieri,
argumenta sobre a necessidade de mudança nos hábitos alimentares “a influencia
da alimentação das inglesas nem doce nem muito ácida, nem muito quente nem
muito fria deve prevalecer” (EU SEI TUDO, 1917, nº 1, p.132).
Já no exemplar de número 13º de junho de 1918 “receitas” a seguir para
as mulheres esta na prática dos banhos a vapor. Recomendados na tentativa de
sanar vários problemas tais como: reumatismo, má circulação, brotoejas na pele
e também porque não emagrecer, sim, este aspecto tão comum na nossa
sociedade atual já estava presente nos discursos sobre higiene e beleza nas
primeiras décadas do século XX.
Interessante notar na edição de número 1º num artigo intitulado “A moda e
seus excessos”, onde quem escreve (no geral as colunas não especificava uma
assinatura individual), categoriza que “nem tudo convém a todos” (EU SEI TUDO,
1917, nº 1, p. 109). Nela se argumenta um aspecto neste campo de moda e beleza: a
discriminação dos corpos. Assim está descrito: “parece inútil dizer que o modelo de
vestido que fica bem em uma senhora alta e esbelta não pode assentar do mesmo
modo a uma criatura roliça e de baixa estatura” (EU SEI TUDO, 1917, nº 1, p.109).
Como o advento da moda, do mundo da beleza, dos ditames como se
deve ser e de como não se deve ser é que a mulher conhece mais um peso que
recai em suas costas; já não havia cobranças suficientes ligadas à maternidade,
ao casamento, sociedade, agora vem de forma bastante enfática que, seu copo
deve se adequar aos “novos tempos”. A beleza não é mais algo natural, ela é
buscada, conquistada, com várias fórmulas disponíveis nestas revistas e
almanaques.
No importante ensaio Recônditos do mundo Feminino de Marina Maluf e
Maria Lúcia Mott, nos certificamos de quão pesado era esse “fardo” para as
mulheres deste tempo:
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 225
[...] o dever ser das mulheres brasileiras nas três primeiras décadas do século foi,
assim, traçado por um preciso e vigoroso discurso ideológico, que reunia conserva-
dores e diferentes matizes de reformistas e que ao mesmo tempo em que cristalizava
determinados tipos de comportamento convertendo-os em rígidos papéis sociais
(MALUF, MOTT, 2010. p.373).
Tendo como material de pesquisa a Revista Feminina, (1915-1925) a
análise deste tipo de fonte vai ao encontro com nosso trabalho; a tentativa de
descortinar o papel cobrado e exigido das mulheres no referido período, através
do discurso contido nas publicações destinadas ou não para o público feminino.
Segundo as autoras, pretendiam-se ensinar de tudo as mulheres; na referida revista
havia colunas (assim como no almanaque Eu sei tudo) ditando ou “recomendando”
ao público feminino “Deveres de uma senhora”, nunca receber um senhor com
afetação e nunca se sentar ao seu lado. Esse “esperado” comportamento, essa
civilização dos modos era preconizado inicialmente pela elite, mas “deveria
contaminar todos e de todas as classes” (MALUF, MOTT, 2010).
Ainda na coluna “A arte de ser bela”, numero 9º de fevereiro de 1918,
verificamos que permaneceu desde a primeira edição o discurso higienista e as
inúmeras receitas destinadas as mulheres para ajudar no seu bem estar, mas
principalmente no campo da beleza. Qual a arte de ser bela? Quais elementos
eram necessários para tanto? (EU SEI TUDO, 1918, nº 9, p. 120).
Diante a análise de seis colunas “A arte de ser bela”, contidas na revista
Eu sei tudo que datam de 1917-1918, percebemos que o caminho para ser bela
era trabalhoso e muitas vezes exaustivo. Pasta para branquear os dentes composta
de folhas de salsa, limão e bicarbonato; pasta para amaciar a pele, para tornar os
cabelos macios e brilhantes, pasta para as manchas no rosto, que causavam um
aspecto feio e envelhecido as damas, era composto de álcool, água de rosas,
glicerina e acido clorídrico diluído (EU SEI TUDO, 1918, nº 9, p.120).
Como já mencionado acima os banhos se subdividiam em vários tipos e
para várias funções tais como: banhos a vapor recomendado e geralmente indicado
para moléstias da pele, banhos especiais estes sim para o embelezamento. Assim
a coluna argumenta: “é um engano pensar que se tem pele que a natureza lhe
deu; pode-se tornar muito mais bela, macia, agradável ao olhar” (EU SEI TUDO,
1918, nº 13, p. 78).
Outra categoria são os banhos aromáticos cuja receita constatava: hortelã,
salva, rosas em pó e tomilho. O bicarbonato de sódio também se fazia presente
para clarear a pele limpando e combatendo as espinhas segundo se acreditava
(EU SEI TUDO, 1918, nº 13, p.78).
Na revista de número 3º de agosto de 1917, aspectos fisiológicos como
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suor nas mãos e nos pés também poderiam ser combatidos agora com a ajuda
da medicina, Dr. Richter indicava que submergindo as mãos e pés em acido
chomico 10% por alguns minutos era possível combater esse transtorno. Os pelos
no rosto eram um problema para as mulheres; contra queda dos cabelos havia
uma receita segundo a coluna ao alcance de todos: amoníaco, essência de
therebentina e álcool (EUSEI TUDO, 1917, nº 3, p.60).
No exemplar 7º de dezembro de 1917 a indicação feita às mulheres vem
da prática da massagem. De grande ajuda na busca da saúde, a massagem é
indicada também para a beleza. “Para manter o corpo perfeito, deve-se fazer a
massagem pelo menos duas vezes por semana, complementando o tratamento
com exercícios de respiração, benefícios para a beleza do pescoço e do peito”
(EU SEI TUDO, 1917, nº 7, p.32).
Muito embora hoje para o senso comum possam parecer tolas tantas
receitas para ser bela, o que está por trás de todo esse “projeto” de beleza é na
verdade a consolidação do discurso da higiene e da ciência médica que toma
conta de quase todas as publicações da época. O discurso científico vigora e está
intrinsecamente ligada “aos novos tempos” como categorizou Sevcenko (2010,
p.20). O que se vê e a construção de uma nova sociedade, tentando modernizar
os hábitos, mas que bem salientou Maluf e Mott (2010, p.389) extremamente
ainda tradicional em relação a questões básicas como casamento, filhos e âmbito
doméstico.
“Não há felicidade se não no casamento”, “matrimônio perfeito”, “toda
mulher deve se tornar mãe” são alguns exemplos de como a sociedade conserva
em seu cerne um discurso tradicional, conservador disposto a separar muito bem
o lugar do homem e da mulher na sociedade. O que se observa através da nossa
pesquisa e também da bibliografia consultada, é que só aumentou as cobranças
para com as mulheres. Se já se fazia presente cobranças em relação ao
casamento, filhos, a casa, e todos os pesados afazeres domésticos que sempre
recaíram sobre as mesmas, o que podemos perceber é que se não bastasse ter
que trabalhar duro na casa e também na criação dos filhos, ainda tinha que estar
bela; sim bela e formosa para quando marido chegasse da “rua” ou trabalho iria
encontrar um lar limpo, agradável e sua mulher igualmente assim.
[...] encarnação de virtudes contraditórias, a mulher deveria fazer inúmeros ajustes
e concessões para, ao mesmo tempo, preservar o tradicional ideal de pureza e de
submissão, combinar com as novas expectativas burguesas de gerencia eficiente do
lar e ainda representar em sociedade o papel de companheira adequada. A nova
sociedade urbano-industrial tramava continuamente difícil papeis a ser representa-
dos pela mulher-esposa (MALUF, MOTT, 2010, p.396).

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 227


O fato é que, todas essas mudanças nas duas primeiras décadas do
século passado, alteraram a sociedade de forma difusa e desigual. Todos ou a
maior parte desses novos hábitos foram assimilados por essa elite que poderia
“pagar” pelos novos bens de consumo. A maior parte da população não conseguia
digamos “absorver” financeiramente por todas essas novidades.
Mas paulatinamente isso chegaria a todos, e não digo apenas no quesito
consumo, mas sim dos modos, costumes, conduta. É nesses almanaques como
“Eu sei tudo” que continha todas as fórmulas e modos de como proceder na vida
nova. Sobre a mulher recaem muitos papéis: mãe, mulher, esposa, amiga
companheira. A missão de criar bem os seus filhos, toda a educação deveria partir
dela. E para isso a cobrança para se informar sobre os diversos assuntos: beleza,
remédios, higiene, preparo de alimentos a lavagem correta das roupas, o cuidado
e zelo do lar deveriam ser constantes.
O que nos parece é que, não é algo tão distante daquilo que nós mulheres
vivemos hoje. Sobre a mulher, apesar de todos os avanços, ainda recai inúmeras
“cobranças” no que se refere tanto ao âmbito profissional quanto pessoal. Notamos
uma permanência quando analisamos os papeis sociais das mulheres das
primeiras décadas do século XX quanto da mulher hoje nas primeiras décadas
do século XXI.
Em relação à beleza feminina, percebemos aí talvez nas primeiras décadas
do século XX, com o aburguesamento dos modos a raiz da cobrança por um ideal
de beleza.
sobre os ombros da mulher, recaía a responsabilidade pela “poetização” da vida
conjugal. Para que o marido pudesse sintetizar na esposa esse ideal poético, entre-
tanto, ela ter como permanente preocupação o cuidado com o que era chamado de
“suas graças naturais”. O eventual desleixo da mulher com sua própria aparência
retirava-lhe o direito de aspirar à graça do marido, comprometendo a harmonia do
lar (MALUF, MOTT, 2010, p.395).
Através dos questionamentos sobre a “Arte de ser bela”, lá do início do
século XX, constatamos que era preciso certo esforço para manter pele, cabelos,
unhas, tudo em perfeita ordem. Várias “receitas” estavam distribuídas na imprensa
para disseminar as ideias de uma sociedade em constante transformação, pelo
viés da fala da ciência médica pregando novos hábitos de higiene que tinham
como alvo quase que certeiro a mulher.

228 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


CONSIDERAÇÕES FINAIS
A despeito do artigo, a ideia que o permeou foi tentear traçar alguns breves
apontamentos, através da análise da coluna A “Arte de ser Bella”, contida no
almanaque “Eu sei tudo”, no que se refere à ideia de beleza e higiene destinadas
ao público feminino. A pesquisa consistiu na análise de seis colunas, do período
de 1917 a 1918, todas contidas no Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto.
A ideia de trabalhar com revistas, almanaques se deve ao fascínio que
eles exercem não somente esteticamente, com suas propagandas e receitas de
beleza, mas também pelo alcance que essas publicações poderiam alcançar.
Assim sendo, acreditamos que através da análise desse tipo de mídia, podemos
perceber elementos importantes daquele período histórico na medida em que,
recuperamos hábitos, costumes e discursos presentes.
No primeiro capítulo, procuramos traçar um panorama geral a respeito
daquele período marcadamente complexo e dinâmico da história brasileira. O
advento da República, a urbanização de capitais como o Rio de Janeiro, onde as
medidas foram bastante controversas e muitas vezes “violentas” como bem indicou
Nicolau Sevcenko. Novos hábitos, novos discursos (medicina) vinham se impondo
na medida em que mudanças profundas se davam socialmente e
economicamente. Imigração e a transferência de capitais do café para a indústria
se aceleravam na mesma medida.
Já no segundo capítulo buscamos realizar alguns breves apontamentos
em relação à análise da coluna “A Arte de ser Bella”. O caminho percorrido foi
traçado preliminarmente através da leitura e levantamento dos dados. O que era
recorrente em todas as colunas, o discurso contido, a ideia de beleza e higiene
que se pregava. O objetivo da pesquisa foi perceber qual era a “Arte de ser Bella”
naquele dado momento, quais os caminhos e fórmulas que essa mulher deveria
percorrer para se adequar “aos novos tempos”.
O discurso da medicina fez se muito presente nessas primeiras décadas
do século XX, como observamos na nossa análise, várias fórmulas para os
cabelos, os dentes e a pele. Bicarbonato de sódio, amoníaco, glicerina e acido
clorídrico, davam o tom de como proceder quimicamente para se tornar bela.
Percebemos que, esse discurso “atingiu” a mulher como um todo nos
seus vários papeis sociais, mulher, mãe e esposa. Como já não bastassem
cobranças suficientes, os afazeres domésticos, a maternidade, o cuidado com o
marido, a mulher se viu “obrigada” a carregar mais uma, estar bela; e como
conseguir esse feito? Se adequando a esse discurso através das receitas e
formulas de embelezamento que passavam também por novos hábitos de higiene.
O trabalho realizou alguns breves apontamentos sobre esse discurso que
DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 229
permeou as duas primeiras décadas do século XX, com foco na mulher. Com a
ajuda da bibliografia, como em Recônditos do mundo feminino, onde as autoras
empreenderam uma análise bem mais ampla a respeito das transformações dos
hábitos femininos também no que se refere à beleza e higiene, percebemos que
inúmeras publicações também empreendiam no seu conteúdo um mesmo modo
de construir essa nova mulher, que deveria estar atenta e atrelada às novidades
dos “tempo modernos”.
As limitações da pesquisa se dão na medida em que sabemos que ainda
há muito que perceber nos meandros destes discursos contidos nas várias
publicações que retratam o período. Sabemos também das várias bibliografias
disponíveis para ajudar nesta empreitada como Os Bestializados de José Murilo
de Carvalho (2004) e também Trabalho Lar e Botequim de Sidney Chalhoub (2008)
que serão de vital importância para aprofundar essas análises e também dar
respaldo a futuras pesquisas e trabalhos.

LIMA, Greize Dainese. The “art of being bella”: notes on beauty and hygiene in the
first republic (1917-1918). DIALOGUS. Ribeirão Preto, v x, n x, 2014, p xx.

ABSTRACT:The economic, cultural and social ferment of the early twentieth


century also brought many changes in the lives of women of the period. Changes in
hygienic habits, in dress, mode of raising children and taking care of appearance.
Were not enough as the numerous tasks that women should play, the beauty is
incorporated in another requirement of this range. With the help of the publications
of the time (almanacs and magazines) that enabled a wide dissemination of these
new knowledge.

KEYWORDS: First Republic; Beauty; Hygiene; Woman.

REFERÊNCIAS:
CARVALHO, Fábio Reynol. Ciência de Almanaque: como as imagens de Eu sei
Tudo construíram uma guerra. Dissertação de mestrado. Unicamp, 2011.
CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que
não foi. São Paulo, Cia das Letras, 2004.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no
Rio de Janeiro da belle époque. Campinas, Unicamp, 2008.

230 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Revista Estudos Avançados,
vol. 5 Jan/Apr. 1991.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14º ed. São Paulo, Universidade de São
Paulo, 2013.
FERNANDES, A.M, OLIVEIRA, B.J, MARQUES, R. A educação da saúde da mulher-
mae e da criança na revista Eu Sei Tudo nas primeiras décadas do século XX
(1910-1930). Anais do Congresso Nacional da Educação. Cidade: SBHE.
Disponível em: <www.sbhe.org.br/congressos/cbhe5/pdf/718/pdf>. Acesso em: 10
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FIORATTI, Gustavo. O figurino que vestia o Brasil do café com leite. Revista
Pesquisa FAPESP. Edição 193. Ano: Março de 2012. Disponível em: <http://
revistapesquisa.fapesp.br/2012/03/27/o-figurino-que-vestia-o-brasil-do-
caf%C3%A9-com-leite/>. Acesso em: 10 jan. 2014.
JAYME, Lúcia de Rezende. Medidas e compassos para moças: o discurso sobre a
educação feminina na Primeira República (1889-1920). Anais da XIII Semana de
Geografia e História. Centro Universitário Barão de Mauá. Ano: Agosto de 2009.
Disponível em: <http://www.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/pdf/
00018MEDIDAS.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2014.
MALUF, Marina; MOTT, M. Lúcia. Recônditos do mundo feminino. 9º ed. In:
Fernando A. Novaes, Nicolau Sevcenko (org.) História da vida privada no Brasil.
São Paulo, Cia das Letras, 1998.
MARINS, P. César Garcez. Habitação e vizinhança: limites da privacidade no
surgimento das metrópoles brasileiras. 9º ed. In: Fernando A. Novaes, Nicolau
Sevcenko (org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo, Cia das Letras,
1998.
MORAES, Vanessa Danielle. A memória e os efeitos de sentido em EU SEI TUDO.
Revista Litteris, número 5, julho de 2010.
SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do
progresso. 9º ed. In: NOVAES, Fernando A; SEVCENKO, N. (org.) História da vida
privadas no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1998.

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 231


FONTES
APHRP – Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto.
Revista EU SEI TUDO, nº 1, Junho, 1917.
____. nº 2, Julho, 1917.
____. nº 3, Agosto, 1917.
____. nº 7, Dezembro, 1917.
____. nº 9, Fevereiro, 1918.
____. nº 13, Junho, 1918.

232 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


ÍNDICE DE AUTORES/AUTHORS INDEX

BALDIN, Marco Antônio; p. (Artigo 2)


BITTENCOURT ROSA, Deocleciano; p. (Artigo 13)
BORGES, Donaldo de Assis; p. (Artigo 1)
BOTELHO, Osmair Severino; p. (Artigo 8)
FERREIRA, Priscila Fernanda; p. (Artigo 11)
FREITAS, Nainôra Maria Barbosa de; p. (Artigo 3 e 9)
GONÇALVES, Claudio; p.( Artigo 7)
MELLO, Rafael Cardoso de; p. (Artigo 12)
MIRANDA, Leonardo Góes; p. (Artigo 3)
MOLINA, Sandra Rita; p. (Artigo 9)
NASCIMENTO, Lucelma Aparecida; p. (Artigo 13)
PAULI, Sueli Cristina de; p. (Artigo 5)
PERINELLI NETO, Humberto; p.(Artigo 7 e 11)
PRIMOLAN, Emílio Donizete; p. (Artigo 4)
ROCHA, Leonardo Cristian; p. (Artigo 14)
RODRIGUES, Luciana Andrade; p. (Artigo 5)
ROMERO Y GALVANIZ, Lucas Dario; p. (Artigo 12)
ROSA, Lilian Rodrigues de Oliveira (Artigo 9)
SANTOS , José Faustino de Oliveira; p. (Artigo 10)
SICCA, Natalina Ap. Laguna; p. (Artigo 6)
SOBREIRA, Liliane Cury; p. (Artigo 6)
LIMA, Greize Dainese de; p.(Artigo 14)

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 233


234 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.
ÍNDICE DE ASSUNTOS

arte educação, p. 87
autocompreensão da Igreja; p. 53
Beleza; p. 217
Brinquedoteca; p. 69
Constituição Federal; p. 11
café; p. 189
Catolicismo; p. 53
Cidade e Urbanismo; p. 175
Consciência histórica; p. 157
Coronelismo; p.157
currículo, p. 87
deficiência múltipla. p. 69
Deus; p. 11
dialética, p. 123
Ensino de história; p. 157
Ensino fundamental; p. 157
Era Vargas; p. 29
Estado; p.11; p. 29; p. 53
formação docente. p. 87
Formação Utiariti, p. 201
Higiene; p. 217
História Cultural; p. 41
História da Igreja; p. 11
História regional. p. 175
Hospital, p. 69
Igreja; p. 11 e p. 53
Igreja Católica; p. 29 e p. 41
INRC. p. 145
Jardinópolis (SP); p. 175
Lucas do Rio Verde, p. 201
Lúdico; p. 69
maiêutica, p. 123
memória; p. 189
Modernidade; p. 107 e p. 175
Monteiro Lobato; p. 189

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 235


micro-história; p. 107
Mulher; p. 217
opalas. p. 201p.
Paralisia Cerebral; p. 69
Patrimônio Cultural; p. 145
Platão, p.123
Política; p. 29; p.53
Primeira República; p. 217
Quadrinhos; p. 41
religião; p. 11; p.145
religiosidade; p. 145
retórica.p. 123
Ribeirão Preto; p. 107; p. 189
Rio do Cedro, p. 201
silcretes, p. 201
Sócrates, p. 123
Terceiro Ginásio; p. 107

236 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


SUBJECT ÍNDEX

art education, p. 87
Beauty; p. 217
Brazilian Federal Constitution; p. 11
Cardinal Leme, p. 29
Catholic Church, p.29 e p.41
catholic religion; p. 145
Catholicism; p. 53
Cedro river; p. 201
Cerebral Palsy; p. 69
Church; p. 11; p. 53
Church History; p. 11
City and urbanism; p. 175
coffee; p. 189
Comics; p. 41
Coronelismo; p. 157
Cultural Heritage; p. 145
Cultural History; p. 41
curriculum, p. 87
Day-to-day; p.157
dialectics; p. 123
First Republic; p. 217
God; p. 11
Historical consciousness; p. 157
Hygiene; p. 217
hospital; p. 69
INRC; (Artigo 9)p. 145
Jardinopolis (SP); p.175
Lucas do Rio Verde; p. 201
Maieutics; p. 123
memory; p. 189
micro-history; p. 107
Modernity. p. 107; p.175
Monteiro Lobato; p. 189
multiple disabilities; p. 69
Opals; p. 201

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 237


Plato; p. 123
playful; p. 69
playroom; p. 69
political; p. 53
Politics, p. 29
Regional history; p. 175
religion; p. 11; p. 145
Rhetoric; p. 123
Ribeirão Preto; p. 107; p.189
self-understanding of the Church; p. 53
Sócrates; p. 123
Silcretes; p. 201
state; p. 53
teacher formation; p. 87
Teaching of history; p. 157
Third Gymnasium; p. 107
Utiariti Formation; p. 201
Vargas government; p. 29
Woman; p. 217

238 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


Normas para publicação na revista DIALOGUS

Normas para apresentação de original


Apresentação: Os trabalhos devem ser redigidos em português e encaminhados via e-mail,
em dois arquivos separados:
- um completo (Conforme estrutura do trabalho, abaixo proposta);
- outro sem qualquer identificação do autor e com indicação da área e da sub-área do trabalho,
segundo tabela Capes.
Os textos devem ser digitados em Word (versão 6.0 ou superior), fonte 11, tipo Arial Narrown,
tendo, no máximo, vinte e cinco páginas (salvo exceção). A configuração da página deve ser a
seguinte: tamanho do papel: A4 (21,0 x 29,7 cm); margens: superior e inferior: 7,3 cm; direita e
esquerda, 5,3 cm. Espaçamento: espaço simples entre linhas e parágrafos; espaço duplo en-tre
partes do texto e entre texto e exemplos, citações, tabelas, ilustrações etc. Adentramento:
parágrafos, exemplos, citações: tabulação 1,27 cm.
No que tange ao conteúdo dos artigos, os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como
a exatidão das referências bibliográficas, são de inteira responsabilidade dos autores.
Não serão aceitos trabalhos fora das normas aqui estabelecidas.

Estrutura do trabalho
Os trabalhos devem obedecer à seguinte sequência: Título; Autor(es - por extenso e apenas o
sobrenome em maiúsculo); Filiação científica do(s) autor(es) - indicar em nota de rodapé:
Universidade, Instituto ou Faculdade, Departamento, Cidade, Estado, País, orientação, agência
financiadora (bolsa e/ou auxílio à pesquisa); Email; Resumo (com máximo de sete linhas);
PALAVRAS-CHAVE (até cinco); Texto (subtítulos, notas de rodapé e outras quebras devem ser
evitadas); Abstract e Keywords (versão para o inglês do resumo e das PALAVRAS-CHAVE
precedida pela referência bibliográfica do próprio artigo); Referências (trabalhos citados no
texto), com indicação de tradução (no caso de obras estrangeiras) e número da edição.
• Título: centralizado, letras em maiúsculo, negrito e fonte 12.
• Subtítulos: sem adentramento, apenas a primeira letras do subtítulo deve ser maiúscula e fonte
12.
• Nome(s) do(s) autor(es): nome completo na ordem direta, na segunda linha abaixo do título,
alinhado à direita. Letras maiúsculas apenas para as iniciais e para o sobrenome principal.
Fonte 12.
• Resumo: a palavra RESUMO em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na terceira
linha abaixo do nome do autor, sem adentramento. Na mesma linha iniciar o texto de resumo.
• PALAVRAS-CHAVE: a expressão PALAVRAS-CHAVE em maiúsculas, em negrito, seguida
de dois pontos, na segunda linha abaixo do resumo e uma linha cima do início do texto.
Sepa-rar os PALAVRAS-CHAVE por ponto e vírgula.
-Referência bibliográfica completa do próprio trabalho em inglês, conforme o exemplo:

DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013. 239


PÁDUA, Adriana Suzart de. Change and continuity. Comparative notes about Venezuela´s
Bo-livarian Constitution. DIALOGUS. Ribeirão Preto, v.X, n.X, 200X, p. X.
• Abstract: a palavra ABSTRACT em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na
se-gunda linha abaixo da referência bibliográfica completa do próprio trabalho em inglês, sem
adentramento. Na mesma linha, iniciar o texto do abstract.
• Keywords: a palavra KEYWORDS em maiúsculas, em negrito, seguida de dois pontos, na
segunda linha abaixo do abstract. Utilizar no máximo cinco keywords separados por ponto e
vírgula.
- Referências Bibliográficas: a palavra REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS em maiúsculas,
em negrito, seguida de dois pontos, na segunda linha abaixo do keywords. Devem ser dispostas
em ordem alfabética pelo sobrenome do primeiro autor e seguir a NBR 6023 da ABNT.
Abreviaturas - os títulos de periódicos devem ser abreviados conforme o Current Contents.
Exemplos:
Livros e outras monografias
LAKATOS, E. M., MARCONI, M. A. Metodologia do trabalho científico. 2. Ed. São Paulo:
Atlas, 1986. 198p.
Capítulos de livros
JOHNSON, W. Palavras e não palavras. In: STEINBERG, C. S. Meios de comunicação de
massa. São Paulo: Cultrix, 1972, p.47 - 66.

Dissertações e teses
BITENCOURT, C. M. F. Pátria, Civilização e Trabalho. O ensino nas escolas paulista (1917-
1939). São Paulo, 1988. Dissertação (mestrado em História) - FFLCH, USP.
Artigos e periódicos
ARAUJO, V.G. de. A crítica musical paulista no século XIX: Ulrico Zwingli. ARTEunesp (São
Paulo), v.7, p.59-63, 1991.
Trabalho de congresso ou similar (publicado)
MARIN, A. J. Educação continuada: sair do informalismo? In: CONGRESSO ESTADUAL
PAU-LISTA SOBRE FORMAÇÃO DE EDUCADORES, 1, 1990. Anais... São Paulo: UNESP,
1990, p.114-118.
Citação no texto: O autor deve ser citado entre parênteses pelo sobrenome, separado por
vír-gula da data de publicação: (BECHARA, 2001), por exemplo. Se o nome do autor estiver
citado no texto, indica-se apenas a data entre parênteses: “Bechara (2001) assinala ...”. Quando
for necessário especificar página(s), esta(s) deve(m) seguir a data, separada(s) por vírgula e
precedida(s) de p. (MUNFORD, 1949, p.513). As citações de diversas obras de um mesmo
autor, publicadas no mesmo ano, devem ser discriminadas por letras minúsculas após a data,
sem espacejamento (PESIDE, 1927a) (PESIDE, 1927b). Quando a obra tiver dois autores,
ambos são indicados, ligados por & (OLIVEIRA & LEONARDO, 1943) e quando tiver três ou
mais, indica-se o primeiro seguido de et. al. (GILLE et. al., 1960).
Notas - Devem ser reduzidas ao mínimo e colocadas no pé da página. As remissões para o

240 DIALOGUS, Ribeirão Preto v.9 n.1 n.2 2013.


rodapé devem ser feitas por números, na entrelinha superior.
Anexos e/ou Apêndices - Serão incluídos somente quando imprescindíveis à compreensão
do texto.
Tabelas - Devem ser numeradas consecutivamente com algarismos arábicos e encabeçadas
pelo título.
Figuras - Desenhos, gráficos, mapas, esquemas, fórmulas, modelos (em papel vegetal e tinta
nanquim, ou computador); fotografias (em papel brilhante); radiografias e cromos (em forma de
fotografia). As figuras e suas legendas devem ser claramente legíveis após sua redução no texto
impresso de 10,4 x 15,1 cm. Devem-se indicar, a lápis, no verso: autor, título abreviado e
sentido da figura. Legenda das ilustrações nos locais em que aparecerão as figuras, numera-das
consecutivamente em algarismos arábicos e iniciadas pelo termo FIGURA.
Anexo(s): introduzir com a palavra ANEXO(S), na segunda linha abaixo da Referencia
bibli-ográficas, sem adentramento. Continuar em nova linha, sem espaço.

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