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PAPO DE PUTA

Conversas com Prostitutas Cariocas

E.E Borba
Elieser E. Borba. Direitos autorais do texto original © 2019
Elieser E. Borba
Todos os direitos reservados.
AGRADECIMENTOS:

Agradeço a Deus por iluminar sempre minha mente, a todas as


profissionais que se colocaram para realizar as entrevistas que
compõem esse trabalho e à paciência de minha esposa durante meu
processo de produção. Agradeço também todos os profissionais e
amigos envolvidos. Meus mais sinceros agradecimentos a todos os
leitores que acompanham meu trabalho e que nutrem em mim um
esforço cada vez maior para sempre buscar evoluir como escritor. Muito
obrigado!
NOTA DO AUTOR:

Na manhã do dia 22 de fevereiro de 2017, saí para comprar


cigarros e tomar café no bar Duvivier, na esquina da rua Duvivier com
Barata Ribeiro, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Paguei pelo maço
de cigarros e pelo café e pedi para o seu Chico colocar o último num
copo descartável, pois ao contrário de seu irmão Antônio que trabalha
no segundo turno do estabelecimento, ele não gosta que os clientes
fumem no local.
De posse de meus dois vícios matutinos me dirigi à banca de
jornal do Russo, em frente ao bar e na mesma esquina, e me surprendi
com a notícia estampada na capa do jornal:

“TRAVESTIS E MULHER SÃO PRESAS SUSPEITAS DE APLICAR


GOLPES E ASSALTAR EM COPACABANA”

Policiais da 12ª DP (Copacabana) prenderam duas travestis e uma


garota de programa apontadas como responsáveis por aplicar
golpes na Zona Sul do Rio. De acordo com o delegado Gabriel
Ferrando, o trio dopava as vítimas para assim roubá-las. O policial
calcula que o lucro com o golpe chegava a R$ 50 mil por fim de
semana. Os criminosos resgatavam o valor em contas bancárias e
ainda faziam compras em lojas de luxo.
"É um golpe similar ao Boa Noite, Cinderela. Só que no caso deste
grupo, a vítima não ficava desacordada. A pessoa reparava o que
acontecia mas não conseguia reagir", contou o delegado Gabriel
Ferrando.
As investigações que levaram à prisão do trio tiveram início com o
registro de desaparecimento de uma das vítimas do grupo. Horas
após o registro, a família foi à Delegacia de Copacabana com o
familiar, ainda atordoado, que estava desaparecido.
"Os policiais iniciaram a investigação e descobriram os gastos e
onde foram feitos. Isso possibilitou que chegássemos a outra
vítima da quadrilha", disse o delegado Ferrando.
A operação Antídoto foi deflagrada no último dia 16. Em
apartamentos em Copacabana foram presos David Daniel Alves de
Jesus, a Jéssica, de 19 anos; Alan Bruno da Silva Soares, a Bruna,
de 30 anos; e Nathália Malafaia Pinheiro, de 28 anos. Segundo o
delegado, uma das criminosas colaborou com as investigações e
vai responder o inquérito em liberdade. A criminosa deu detalhes
de como era feito o coquetel de remédios dado às vítimas e de
como agia a quadrilha.
As investigações apontam que o golpe vinha sendo aplicado há,
pelo menos, um ano, de acordo com o delegado. Ele comenta que
é importante que as pessoas que foram vítimas desse grupo
compareçam à delegacia para reconhecê-los.
Fonte: O GLOBO. Disponível em: https://g1.globo.com/rio-
de-janeiro/noticia/policia-prende-trio-que-aplicava-golpes-e-
assaltava-em-copacabana.ghtml

Confesso não ter ficado surpreendido pelo teor da matéria, sendo


eu carioca e brasileiro acostumado à vida na megalópole cheia
encantos e desencantos. O que me deixou boquiaberto foi saber que as
delinquentes em questão não só eram minhas vizinhas na rua Barata
Ribeiro, mas criminosas em potencial. Estava acostumado a sempre vê-
las após às 21hs no maior reduto de prostituição de Copacabana, a rua
Prado Junior, sempre fazendo ponto no mesmo local e com clientela
fiel. Homens sempre recém-saídos da boate Barbarella[1], do Bar da
Dulce, da Balcony ou do Mabs[2]. Vivi cerca de doze anos no eixo
Leme- Copacabana e Botafogo e em diversas madrugadas em minhas
saídas do Galeto Satts vi muito cabra que se dizia “macho”, machista e
homofóbico convicto enveredando pela portaria do prédio onde as
travestis da matéria acima residiam de braços dados com elas e
parecendo casalzinho de filme romântico.

Existe uma fantasia em torno de transexuais e prostitutas e suas


condutas na noite e na vida. É muito comum ouvirmos que são
promíscuas, se drogam demais, são dadas ao roubo, são portadoras de
doenças, realizam abortos e quando não só têem filhos para serem
crianças largadas no mundo. Afirmações que em tese são mais clichês
do senso comum do que verdade, todavia nem é preciso ser um
antropólogo, sociólogo ou historiador para saber que quaisquer
prostitutas que fazem vida nas esquinas, prostíbulos, hotéis ou em suas
residências o fazem para ter a dignidade de viver uma vida que lhes é
aviltada por uma classe política que a curto prazo causa estragos para
sociedade em geral.

Ao menos até a publicação deste livro a legislação brasileira não


coloca a prostituição como sendo crime, sendo esta legalizada como
ofício desde 2002, porém ainda não regulamentada. Isso implica que
sua prática culmine em alguns panoramas em que vários ilícitos, tais
como a mediação, a terceirização, a exploração sexual/cafetinagem e o
tráfico humano motivado para esse fim se caracterizem como tal. Muito
embora a prostituição ainda não seja regulamentada pelo Ministério do
Trabalho e Emprego, a prática da venda sexual do próprio corpo como
artifício de obter lucro pra si sendo o indivíduo maior de 18 anos não
implica em crime. Para mais esclarecimentos sobre essa temática
indico a leitura dos artigos 227, 228, 229 e 230 do Código Penal
Brasileiro ou no site do Ministério para informações sobre as condições
desta atividade como exercício profissional.
Até o momento em que li a matéria em questão, para mim elas
eram apenas trabalhadoras. Pessoas que tal qual outros brasileiros, ao
assumirem a idade adulta, exercem algum ofício e trocam o suor da
labuta por salários que nem sempre correspondem ao esforço
empregado. No caso de prostitutas e transexuais que, em geral, vivem
da noite, um tipo de trabalho ainda mais arriscado frente à possibilidade
de contrair doenças, o risco de clientes que não pagam pelo programa e
que as levam a ter prejuízos ou por vezes até a serem acometidas por
agressões físicas e assassinatos.

“Papo de Puta” é um livro de relatos transmitidos a mim por


diversas garotas de programa. Por profissionais da noite carioca. Um
trabalho o qual não foi necessário ter muita persistência, apenas
paciência para exercer uma boa escuta e por vezes aguardar o término
de um programa ou outro das entrevistadas. Os nomes de todas as
entrevistadas foram alterados, tendo sido esta a única exigência feita, a
fim de sentirem-se à vontade o suficiente em relação à segurança de
seus familiares não terem acesso ao teor de suas trajetórias e todas
elas escolheram os codinomes que foram inseridos aqui.

As duas travestis citadas também foram abordadas por mim


quando realizava o laboratório para a elaboração deste livro. Elas não
aceitaram ser entrevistadas, e me disseram que, caso eu quisesse
mesmo fazer meu trabalho teria que pagar por algumas horas de
conversa tal qual estivesse pagando por um programa e, à época, só
não paguei por não estar de posse do valor. Quando achei que valeria a
pena paguei uma, duas e até três horas de “programa” a prostitutas
transexuais ou não. Entrevistei dezenas delas. Pessoas comuns, que
usam a calada da noite para talvez disfarçar uma vida que às claras não
difere da vivência de nenhuma outra pessoa, como dos que trabalham
em escritórios, repartições públicas, mercados, shopping centers e etc.
Vidas que não funcionam à luz do dia, pelo simples fato de o dia
esconder os seus lados mais tentadores, visíveis apenas à noite, no
reflexo do glitter nos corpos e dos paetês nos vestidos aos olhos dos
que estão atrás de sexo, de uma boa curra, de matar a curiosidade ou
apenas para terem companhia. A noite tem dessas coisas...À noite,
todos os gatos são pardos!

COLABORADORES:

Mariana Lima – Revisão ortográfica

Ursula Branco – Prefácio

Rejane de Andrade Correa – Consultoria

Bianca Maria Meszar Gomes Pinto – Consultoria

Pablo Ramon Pinheiro – Capista

Claúdio Souza Lemes – Consultoria em direito

Paulo Renato Safadi - Consultoria

Lucildo Miranda da Silva – Consultoria


“Todas as noites são iguais
De longe os disfarces
Parecem reais
Mãos me vestem como luva
É tarde demais
E eu não consigo dizer não
Hoje à noite é cedo até amanhecer
Quem olhar nos olhos
Vê estrelas no chão
Num canto escuro
Pequenos goles de solidão
A noite esclarece o que o dia escondeu
O que o dia escondeu”

CAPITAL INICIAL - TODAS AS NOITES


PREFÁCIO:

Eliser E. Borba tem seu significado em uma história de família do


próprio autor, cheia do que ele oferece ao seu leitor, sua experiência
fantástica do lidar com o outro de maneira a empoderá-lo de sua
história, com respeito pelas experiências que envolve autor, sua obra, a
rua e quem vive ela e dela na sua essência tão diversa.

Elieser E. Borba é um Nelson Rodriguiano nato, que para além de


mostrar, sente “a vida como ela é”; um autor que nos leva para a vida
nua e crua do mundo real .
Papo de Puta – conversas com prostitutas na noite carioca está para
além dos estereótipos da Puta. Ele mergulha no cotidiano de mulheres,
com ou sem pau, que ganham seu sustento nas ruas do Rio de Janeiro,
da zona norte à zona sul desvelando uma realidade cheia de
significados, o que faz da prostituição um fio condutor para o leitor
compreender a relação delas com a rua, o outro e sua sexualidade.

Não são simples entrevistas ou depoimentos, são canais que se


abrem para que elas possam ser ouvidas, compreendidas a partir de
suas histórias valorosas, muitas vezes cheias de violência e medo,
outras repletas de desejo e sonhos. O autor aqui não abandona sua
formação no Serviço Social e faz uma crítica necessária ao sofrimento
socialmente construído no entorno do tema prostituição, o que dá ainda
mais dignidade à sua obra.

Mostra que as ruas fazem parte da história de vida de cada uma


delas, traçando muitas vezes seus caminhos e destinos sempre na
expectativa de que algo aconteça de melhor. Por fim, o livro respeita a
linguagem delas, lhes dá voz valorizando suas histórias e experiências
que valem a pena serem admiradas pela força e determinação em
busca do que cada uma deseja da sua relação com o mundo.
Boa reflexão
Ursula Branco

*Ursula Branco é assistente social graduada pela UERJ, mestra em


serviço social pela PUC–RIO, trabalha com participação social em
Ouvidoria e escreve sobre Violência organizacional e Assédio Moral

PATRÍCIA, 24 ANOS – VILA MIMOSA


A primeira vez que falei com Patrícia foi em uma tarde de sábado
na Vila Mimosa[3]. Reservei este dia para ali estar e tentar buscar
algum depoimento interessante para compor o livro.

A garota estava a papear com um potencial cliente, um nortista


baixinho, copo de conhaque na mão mas o bolso mais vazio do que o
necessário para se fazer bonito o suficiente no interessante jogo de
flerte que só é possível ser visto nas “zonas”. Nos puteiros todos os
homens são lindos, desde que tenham grana o suficiente para pagar
pelo programa. A lógica desses lugares é tão atípica que os homens,
em geral estão ali para escolher com quem irão fazer sexo e podem até
ser dispensados pela própria “mercadoria”, ou seja, é a maior
expressão do “pussy power[4]”. Esperei o cliente com o qual ela
conversava, ser dispensado para só assim me aproximar.

Patrícia é uma negra linda e de olhos muito penetrantes. Ela


trajava uma roupa de colegial, dessas com meias brancas até a altura
dos joelhos e camisa com um nó na altura do umbigo. Poderia ser
facilmente confundida com uma estudante normalista qualquer se não
fosse pelo fato de estar sem sutiã e vestindo uma calçinha minúscula
totalmente enterrada na bunda.

ONDE VOCÊ MORA?

PATRÍCIA – Eu moro em Honório Gurgel.

VOCÊ MORA SOZINHA OU COM ALGUÉM?

PATRÍCIA – Eu moro com os meus pais e com uma irmã mais nova. Ela
é a minha cara. Se você vê pensa até que tá falando comigo...Nosso
corpo é igualzinho, nossa voz é a mesma. Ela também gosta de praia e
tal. Nós somos muito parecidas, só que ela não faz programa que nem
eu, ainda bem.

PORQUE “AINDA BEM?”

PATRÍCIA – Ahh, porque viver nessa vida foda é foda né!! Tu sai de
casa e nunca sabe o que vai acontecer.

HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ FAZ PROGRAMAS E COMO


COMEÇOU?

PATRÍCIA – Eu já faço programa faz uns cinco anos. Comecei depois


de me desiludir com um ex–namorado. Eu gostava muito dele, muito
mesmo!! Queria me casar com ele, mas ele me traiu e fiquei muito puta.
De início queria só dar o troco pra ele sabe? Eu sabia que os amigos
dele e ele também frequentavam a Vila, e daí comecei a ir. Eu tinha
uma vizinha que me chamava e tal. Ela também trabalhava lá, me dizia
que eu era bonita e que eu iria fazer o maior sucesso por lá, daí eu fui,
mais pra botar ciúme no meu ex do que por outra coisa. Nunca bati de
frente com meu ex por lá, mas acabei ficando. Eu não conseguia
trabalho e com programa sempre entrava dinheiro...E eu gosto de fumar
maconha sabe? Preciso sustentar o meu vício!!

HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ FUMA MACONHA?

PATRÍCIA – Eu sou maconheira nata...Tenho até a hora do chá tatuada


aqui na minha costela (Ela mostra o 4:20[5] tatuado que é apenas uma
das várias tatuagens que tem no corpo).

E COMO FUNCIONA ISSO? VOCÊ FUMA NO TRABALHO?

PATRÍCIA – Eu só trabalho chapada de maconha. Fumo umas quinze


vezes por dia. Já acordo e coloco um baseado na boca. E pra gozar
também é muito bom. Eu só consigo gozar depois de ter fumado e
adoro estar fumando enquanto gozo também!

E COMO VOCÊ CONSEGUE O TEU FUMO?

PATRÍCIA – Eu compro numa favela que tem perto da minha casa, a


maconha de lá tá muito boa ultimamente. Mas lá na Vila também dá pra
conseguir. Tem muito cliente que leva e eles sempre oferecem.

ENTÃO VOCÊ SEMPRE GOZA NOS PROGRAMAS QUE FAZ?


PATRÍCIA – Não! Mesmo que eu esteja doidona de maconha não é
sempre que eu gozo não! Depende muito do cliente sabe? Mas com o
Willian eu gozo sempre, o Willian é foda!!

COMO ELE É? PORQUE COM ELE É DIFERENTE?

PATRÍCIA – Porra, o Willian é muito gostoso. Ele é negro, alto, bem


magrinho. É um cara jovem, tem 28 anos, é muito carinhoso comigo e
me paga muito bem. Eu acho que o Willian é bandido sabia?

E PORQUE VOCÊ ACHA ISSO?

PATRÍCIA – Cara, eu sempre faço programa com ele em hotel caro, e


ele chega sempre com muito dinheiro. O meu programa fora é R$ 50
meia hora e ele dá R$ 500 e ainda me dá um dinheiro pra eu pegar o
táxi pra casa. E eu sei lá, ele fica muito tempo no telefone, recebe e faz
muita ligação. Eu acho que ele é traficante, deve ser procurado pela
justiça e tudo.

MAS ELE PODE SER SÓ UM CARA BEM SUCEDIDO NA VIDA NÃO


É?

PATRÍCIA – Não sei. Não é a cara do Willian ser só um cara bem–


sucedido. Desses que vive em escritório, que tem secretária e vive
desse tipo de negócio. Ele anda sempre cheio de ouro, cordão de ouro,
pulseira de ouro, relógio caro. Mas assim, ele me trata bem pra caralho
e é um cara bonitão.

AS PESSOAS NA SUA CASA SABEM QUE VOCÊ FAZ


PROGRAMAS?

PATRÍCIA – Não, a minha famílía não sabe. Pra eles eu saio pra
trabalhar numa loja no Centro do Rio. Volto pra casa todo dia à noitinha
como se estivesse voltando da loja no final do expediente. Daí vou pra
academia...porque eu gosto de cuidar do meu corpo, sabe? O meu
corpo é o meu ganha-pão, se eu não me cuidar, não ficar com uma
marquinha de biquíni legal, eu não chamo atenção.

E OS PROGRAMAS SÃO RENTÁVEIS PRA VOCÊ?

PATRÍCIA – Depende muito do dia. Se for início de mês, sempre dá


mais grana. Mas o chato é que eu sempre tenho que deixar uma parte
do dinheiro pra casa.[6] Na Vila é mais vantagem quando aparece
programa para fazer fora, porque aí eu fico com o dinheiro todo pra
mim. Tem vezes que nem volto e do hotel mesmo eu vou embora.
Programa em hotel é bom porque os clientes bebem muito, cheiram,
fumam maconha e perdem a noção do tempo, daí eles têm que pagar
mais e depois ficam lá dormindo e eu vou embora. Teve um tempo que
eu até saí lá da Vila. Comecei a fazer programa na pista, em frente ao
Jardim Zoológico, na Via Dutra, mas acabei parando porque a rua à
noite é perigosa demais. Passava frio, chuva...Tinha cliente que às
vezes nem pagava, botava arma na minha cara e mandava ir embora!

VOCÊ TEM VONTADE DE PARAR?

PATRÍCIA – Olha, eu tenho sim, mas tem que ser pra ter um salário
bom sabe? Sair dessa vida pra ganhar um salário mínimo e não ser
valorizada eu prefiro continuar. O negócio é que eu até trabalharia por
um pouco mais de um salário, mas eu não tenho muita força pra sair...É
um lugar onde eu me encontrei. Ali eu sou alguém, tenho cliente que
me procura porque sabe que eu vou fazer bem o meu trabalho. Bem ou
mal eu sou reconhecida pelo que eu faço lá na Zona.[7] E trabalhando
noutro lugar? Sendo humilhada por patrão, por cliente pra ganhar um
salário de fome?

E VOCÊ TEM ALGUM SONHO?

PATRÍCIA – Tenho sim!! Quero ter uma casa bem legal um dia, com um
banheiro bem grande e um chuveirinho desse tipo ducha, sabe? Só pra
poder botar na minha boceta e ficar me masturbando com o jato da
água! Eu acho isso muito gostoso!

FANTINE, 28 ANOS – EDIFÍCIO PRESIDENTE 135 .


COPACABANA
Avistar Fantine pela primeira vez foi tão empolgante que acabou
sendo o divisor de águas a me fazer insistir tanto mais em entrevistá-la
para este livro. E digo isso não por ela ser linda, loira e lânguida, mas
por sua postura ao saber o que disse o porteiro do prédio onde ela mora
em relação à sua pessoa quando fui falar com ela pela primeira vez.
Ainda tentei convencê-la a não dizer nada para o homem, mas ela
insistiu e tomou o elevador decidida e eu apenas a segui.

Oi – disse ela ao porteiro, um rapaz jovem.


Sim, senhora.
Então, eu gostaria te dizer uma coisa, presta bastante atenção. O
que eu faço ou o que eu deixo de fazer no meu apartamento é
particularidade minha. Ele me disse que ao mencionar a você que
gostaria de falar comigo você disse “Haaa, tu vai lá no travecão?“
Eu sou travesti sim, ele não é um cliente que veio fazer programa
e mesmo se fosse não acho que você deveria falar da maneira
grosseira que falou a meu respeito.

O rapaz cabisbaixo só ouvia aparentemente bastante


envergonhado com a situação. E Fantine não parou por ali:
Eu não estou te falando tudo isso pra te humilhar não, espero que
você entenda. Mas é porque imagino que você precise do teu
trabalho, e ser educado com os moradores é uma forma de você
garantir o teu sustento e da família que sei que você tem, pois já vi
sua esposa e filha pequena aqui. Boa tarde!

Não foi neste dia que realizamos nossa entrevista. No entanto,


Fantine aceitou e regressei na outra semana após inúmeras ligações e
tentativas de me encaixar em seu escasso tempo para me atender num
horário entre os muitos clientes que religiosamente a visitam em seu
apartamento bacana na rua Prado Junior. Cheguei numa quinta-feira,
por volta das 14 horas e fui recebido pelo mesmo jovem porteiro. O
olhar do rapaz para mim era temeroso, ele sabia ainda não estar
doutrinado o suficiente após o sermão que ouviu da travesti a ponto de
não fazer qualquer comentário que soasse malicioso. O processo de
conscientização para alguns leva tempo. Ele preferiu manter o silêncio e
apenas me abriu a porta do elevador.

Toco a campainha e não aguardo muito até ser recebido à porta


por Fantine. Ela vestia um pequeno short jeans e um também minúsculo
top, que mais lembrava um sutiã. Convidou-me a sentar numa poltrona
de dois lugares na sala. O lap top apoiado numa mesinha de centro
estava ligado e na tela a página aberta mostrava o seu site de trabalho,
ilustrando uma foto sua. Impossível dizer que alguém que posa nu em
uma foto está super-produzido, mas ela estava muito bonita. Duas
coisas impressionavam na imagem: a beleza estonteante de quem faz
algumas mulheres literalmente “não entender o porquê” e o tamanho de
seu pênis, que por sua vez colocaria inveja em muitos marmanjos que
gostariam de ter “documentos” melhor apresentáveis. Totalmente
tentadora aos amantes de fantasias com transexuais.

Num canto da sala o telefone não para de tocar – mal começamos


a entrevista ela interrompe cinco vezes para atender, são clientes.
Muitos homens que ligam durante todos os dias e todas noites. Fantine
diz que o aparelho só para de tocar quando ela desliga na tomada, e
que ainda assim precisa fazer o mesmo em relação a seu celular. Ela
cruza as pernas, me olha de cima abaixo e pergunta o porquê de meu
interesse em entrevistá-la. Respondo ter achado seu perfil interessante,
pois conheço a maioria das prostitutas e travestis da avenida Atlântica e
dos diversos bares e bordéis, e nunca a vi por ali nas madrugadas. Pelo
contrário, sempre a encontro no mercado, na praia e em contato com
famílias, pessoas que têm filhos pequenos e que sempre a beijam,
abraçam e promovem demonstrações de carinho para com ela,
demonstração clara de que não há preconceito aparente.
E ENTÃO, A MINHA TESE É VERDADEIRA? NÃO TEM
PRECONCEITO?

FANTINE – Você parece ser um cara inteligente, é escritor, deve ter


cursado alguma faculdade e tal. Você sabe que o preconceito no Brasil
só se apresenta diferente em relação a outros lugares, mas ele tá aí
né? Ele existe, mas eu tenho amigos aqui em Copacabana, famílias que
me conhecem, gente lá de Curitiba onde eu nasci e cresci e que hoje
vivem aqui e são amigos de família, pessoas que me amam e me
tratam muito bem, eles e os filhos deles. São o tipo de gente que ensina
para os filhos que todo mundo é igual, que temos que respeitar até um
cachorro que vive na rua.

ENTÃO VOCÊ NÃO É CARIOCA?

FANTINE – Não, só estou no Rio a trabalho. Sou acompanhante.


Geralmente eu passo de um ano ou um pouco mais um estado, depois
me mudo para outro e assim vou me virando!!

QUAL FOI O ÚLTIMO ESTADO ONDE TRABALHOU ANTES DE


ESTAR NO RIO?

FANTINE – Trabalhei em Belo Horizonte por um ano e meio.

E COMO FOI O MOVIMENTO POR LÁ?

FANTINE – Foi bom, pra mim sempre é, mas aqui no Rio é muito
melhor, não tem nem como comparar. Tem a questão da praia, as
pessoas parecem que ficam mais à flor da pele aqui sabe?
VOCÊ QUER DIZER “AS PESSOAS FICAM MAIS EXCITADAS” NÃO
É?

FANTINE – Isso!! Aqui tenho muito mais clientes. Eles vêm uma vez,
voltam, continuam vindo, têm ciúme, querem exclusividade. Contando
assim é até difícil de acreditar, são homens de tudo que é tipo: casados,
noivos, solteiros, políticos, atores, jogadores de futebol, uns ricos,
outros que não são ricos e conhecidos na mídia mas que trabalham e
separam sempre que podem um dinheiro para estar uma noite inteira
comigo pelo menos uma vez por mês.

VOCÊ RECEBEU ALGUM CLIENTE FAMOSO AQUI HOJE, POR


EXEMPLO?

FANTINE – Sim, um jogador do Botafogo! Impossível eu te falar o nome


dele porque eu respeito muito os meus clientes, mas ele vem sempre,
desde que eu comecei a trabalhar aqui no Rio.

HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ ESTÁ TRABALHANDO NO RIO DE


JANEIRO?

FANTINE – Estou aqui faz mais ou menos uns oito meses.

E HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ FAZ PROGRAMAS?

FANTINE – Praticamente desde que eu comecei a mudar.

HÁ QUANTO TEMPO ACONTECEU ESSA MUDANÇA?

FANTINE – Eu ainda morava em Curitiba com a minha famíla. Eu era


um garoto comum, tinha namoradas, eu ficava com as meninas mais
bonitas do bairro onde eu morava, com as meninas mais lindas da
escola, uma vida comum pra um rapaz, mas eu sempre me senti atraída
por meninos e um dia depois dos 18 anos resolvi mudar o meu visual e
tentar ganhar a vida trabalhando com o meu corpo.

E COMO SUA FAMÍLIA REAGIU?

FANTINE – A minha família é maravilhosa, eles sempre me deram


apoio. Meu pai, minha mãe, meu irmão. O meu irmão inclusive sempre
vem me visitar, não importa onde eu esteja. Já os meus pais eu só vejo
quando viajo pra Curitiba. Eles preferiram me apoiar e continuar
amando o filho do que me perder para o mundo e para a tristeza.
Minha famíla é bem estruturada, todos tem uma cabeça muito aberta,
uma família que é rica mas ajuda muito quem é mais humilde. Amo
muito a minha família!!

VI NA FOTO NO SEU COMPUTADOR QUE VOCÊ NÃO É


OPERADA? COMO ISSO FUNCIONA PRA TI?

FANTINE – Normal!! Pra mim é muito claro que eu não sou uma mulher,
muito embora eu seja muito feminina. E eu não penso em operar,
jamais!

E PORQUE NÃO?

FANTINE – Existem duas coisas muito importantes nisso pra mim: A


minha libido e o meu trabalho. Existem relatos de muitas trans que
quando operam perdem a libido, e eu não quero perder, entende? A
outra coisa é que a maioria dos clientes que eu tenho gosta que eu
coma eles. Então pra mim, não operar é garantir que eu não perca
clientela.

ENTÃO A MAIORIA DOS CARAS QUE PROCURAM VOCÊ QUER


SER PENETRADO?

FANTINE – Pelo menos uns oitenta por cento deles. Me procuram


porque querem um pau no cu. Eles não pensam em me foder, eles
querem me chupar e que eu coma eles. Gostam que eu goze neles, na
boca deles e que bata neles. Gostam de levar surra mesmo...gostam de
ser humilhados!! Uns pedem para tomar banho de mijo, que eu cuspa
em cima deles!!

E QUAL A MÉDIA DE CLIENTES QUE VOCÊ ATENDE POR DIA?

FANTINE – Em geral de dez a quinze, às vezes chega à dezessete.


Mas eu divido muito isso durante o dia e à noite. Paro pra dar uma
descansada na parte da tarde, vou à praia, pego um sol, volto pro
apartamento, me alimento e recomeço a trabalhar com os clientes que
agendei durante a tarde, mas isso depende muito do dia. Tem dia que
não paro, vou direto até meia-noite e depois vou dormir.

QUAL É O PREÇO DO TEU PROGRAMA?

FANTINE – Eu cobro R$ 450 por hora.

VOCÊ TEM PREFERÊNCIA POR ALGUM TIPO DE HOMEM


ESPECÍFICO?

FANTINE – Gosto muito dos que têm um pau grande.

COMO É A RELAÇÃO COM OS VIZINHOS NO PRÉDIO?

FANTINE – Aqui na Prado Junior tem essa tradição né, de ser uma rua
comum de Copacabana que abriga muita prostituição, principalmente à
noite. Muitas mulheres e travestis moram nos prédios e algumas fazem
programas nos apartamentos que moram. Mas a maioria dos
moradores são pessoas que residem aqui faz tanto tempo que já estão
acostumados com a rotina do lugar. A maioria não fala nada e nem fica
achincalhando a gente!!

E QUAL É O TEU FUTURO, PENSA EM PARAR COM OS


PROGRAMAS?
FANTINE – Olha, eu quero trabalhar até onde der por causa da idade e
depois curtir minha família um pouco e fazer umas viagens pelo mundo.
Quero demais ir morar na Itália por uns tempos e sei lá, talvez adotar
uma criança.

QUAL TUA PRÓXIMA PARADA? PRA QUAL CIDADE PRETENDE


IR?

FANTINE – Eu pretendo ficar aqui no Rio por pelo menos mais uns
sete meses. Depois eu vou visitar a minha família e vou para São Paulo
passar um tempo trabalhando por lá. Dá pra ganhar bem mais grana
por lá, é a cidade onde o dinheiro circula mais.

TAMIRES, 28 ANOS – BOATE BARBARELLA

Conheci Tamires por acaso numa manhã na praia do Leme numa


época em que eu morava nesse bairro. Era comum esbarrar com ela no
mercado ou pelas ruas do entorno. No dia em que tive meu primeiro
contato com a moça eu tinha saído cedo para correr na areia como
fazia todos os dias, e ao final de meu percurso parei para conversar
com um senhor de nome Aurival, um morador de rua que sempre
encontrava pelas imediações ou em Copacabana.

Enquanto conversava com ele, ela passou por nós e Lourival fez
uma brincadeira com os chinelos que ela carregava nas mãos.
Permanecemos os três conversando por cinco minutos
aproximadamente, e quando ela se foi, Aurival me disse:

Ela é puta!!

Eu disse:

Como você sabe?

E ele:

Com certeza. É só tu olhar o jeitinho dela! Ô escritor, tu é


inocente?

Inocente com certeza não sou, mas não é de meu caráter atribuir
julgamento de valores a pessoas, e quando em geral atento para o fato
de que estou realizando tal feito tento logo me policiar. Contudo, quase
uma semana após a situação acima relatada avistei novamente a
protagonista da próxima entrevista saindo da boate Barbarella em
Copacabana numa manhã de sábado com dois clientes. De fato ela
fazia programas.

Ela é morena, cabelo preto longo e ondulado até o meio das


costas, olhos negros e um olhar que denota uma tristeza tênue. Tem
uma imensa tatuagem no ombro direito que chama muito mais atenção
do que seu corpo escultural. Seu biotipo é típico de quem dispensa
cuidados com a alimentação ou que necessita de uma vida de
segregação voluntária em academias claustrofóbicas. É o tipo de
mulher que é linda por natureza.

Conversei com ela numa fila de mercado e a acompanhei pela


calçada embaixo de uma chuva torrencial. Disse tê–la visto saindo da
Barbarella e expliquei sobre meu projeto de escrever um livro
abordando a temática da prostituição feminina. Perguntei–lhe se ela
topava participar me fornecendo uma entrevista e ela disse que sim.
Realizamos a entrevista nas areias do Leme após acompanhá–la numa
corrida matutina.

TAMIRES NÃO É SEU NOME DE BATISMO, NÉ?

TAMIRES – Não, meu nome de batismo é “L”. Eu uso esse nome


porque unsclientes me chamam de Tailandesa, e eu acho que o “T”
combina. Sou morena, cabelo preto, eu sei que tem muito homem que
gosta desses fetiches.

ONDE VOCÊ MORA?

TAMIRES – Eu moro no morro da Babilônia, aqui no Leme. Me


desculpa, a gente combinou a entrevista outro dia mas eu tava tão
chapada de maconha que acabei me esquecendo.

VOCÊ MORA SOZINHA OU COM ALGUÉM?

TAMIRES – Moro com a minha filha que tem cinco anos e com uma
amiga que me ajuda a cuidar dela quando eu estou trabalhando e pela
manhã enquanto durmo depois de chegar do trabalho.

A SUA AMIGA SABE QUE VOCÊ FAZ PROGRAMAS?


TAMIRES – Ela sabe sim!! Ela me ajuda muito. É uma amiga de muito
tempo, desde quando a gente era menina que nem a minha filha. E ela
não cuida só da minha filha. Ela cuida do cachorro e da casa
também...Eu dou um dinheiro bacana pra ela poder me ajudar.

E HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ FAZ PROGRAMAS?

TAMIRES – Olha, não faz muito tempo não!! Coisa de uns quatro anos
pra cá, desde que cheguei aqui no Rio.

E DE ONDE VOCÊ É?

TAMIRES – Eu sou do Espírito Santo.

E VOCÊ TRABALHA SÓ NA BARBARELLA?

TAMIRES – Sim, só lá mesmo. Eu não tenho pique pra encarar outra


casa. Lá é pertinho daqui de onde eu moro e eu também acho que
trabalhando num lugar só eu tenho mais pique pra aturar a carga de
energia negativa, sabe?

COMO ASSIM? ENERGIA NEGATIVA?

TAMIRES – É muita inveja, umas meninas que te olham torto por tudo.
Olham pra tua roupa, pro teu corpo, pro teu cabelo. Elas estão ali mas
não gostam de competição, sabe? Elas acham que vão perder cliente,
que vão ganhar menos dinheiro e tudo é motivo pra te olhar de cara
feia. Puteiro pra mim é um ambiente muito pesado.

E OS PROGRAMAS SÃO RENTÁVEIS PRA VOCÊ?

TAMIRES – Olha, dá pra sobreviver. Eu consigo o suficiente pra não


trabalhar nos fins de semana. Eu dou muito valor a estar com a minha
filha no final de semana, ir com ela pra praia, passear no calçadão, ir no
cinema. Eu levo isso como uma profissão...Assim, é uma profissão
difícil, não é fácil, mas eu saio pra ir trabalhar e só.

VOCÊ ACHA A PROFISSÃO DIFÍCIL?

TAMIRES – Com certeza. E não é só difícil porque você mantém


relações com pessoas que não têm nenhum vínculo. É difícil porque
exige muito de quem trabalha com isso, tem que ter muito cuidado. Eu,
por exemplo, não me cuido só porque tenho que andar na madrugada e
corro risco de vida, me cuido porque tenho que estar limpa, fico muito
mais sujeita a ter uma doença do que outras moças. Enquanto às vezes
uma garota faz um preventivo por ano eu faço três. Todo cuidado que
uma mulher comum, casada, que tem o seu marido ou namorado fixo
tem, eu tenho que ter em dobro!

VOCÊ TEM VONTADE DE PARAR?


TAMIRES – Tenho, muita vontade mesmo. Eu não vou ficar nessa vida
pra sempre. Tenho conseguido sobreviver porque bem ou mal consigo
ganhar meu dinheiro trabalhando com isso, mas tenho perdido muita
coisa também.

O QUE, POR EXEMPLO?

TAMIRES – Eu tinha um namorado que também morava comigo. A


gente já estava junto fazia uns dois anos. Ele não é o pai da minha filha,
mas sempre tratou ela como sendo filha dele e minha menina também
tem muito carinho por ele. Faz uns três meses atrás que ele foi embora.

E QUAL FOI O MOTIVO?

TAMIRES – Ele não gostava que eu levasse a vida fazendo programas.


Aceitou durante um tempo porque eu disse pra ele que um dia iria
parar.

VOCÊ ACHA QUE ELE PODE VOLTAR PRA TI?

TAMIRES – Olha, eu não sei não. Ele foi embora muito triste e eu sei
que ele continua muito ferido pra chegar e voltar pra mim numa boa.
Mas vamos ver né, a vida sempre surpreende a gente com alguma
coisa, quem sabe!
ALINE, 32 ANOS – BOATE BALCONY

O bar Barão de Campinas, na rua Ministro Viveiros de Castro, é


um estabelecimento polivalente. Funciona para abastecer o dia
daqueles que madrugam para encarar o trabalho, para saciar a fome
dos que desejam um bom prato de comida caseira na hora do almoço.
É, ponto de encontro de cachaceiros – ou não – e local onde
torcedores fiéis assistem as partidas de seus times prediletos. Todavia,
pelas manhãs, o local também funciona como pit stop de prostitutas e
clientes que acreditam piamente no ditado de que “a noite é uma
criança”.

Foi num domingo pela manhã que conheci Aline no referido bar.
Tinha ido ao mercado comprar alguns gêneros e parei no local para
tomar um gole de café e depois fumar um cigarro. Ali estava Aline com
mais duas moças que, como ela, viviam de fazer programas na Boate
Balcony, em Copacabana. À princípio ela se insinuou para mim no
intuito de me ter como cliente, algo que logo descartei. No entanto,
convidei–a para realizar uma entrevista para um livro que estava
escrevendo e que tinha como objetivo levar aos leitores os relatos de
vida de algumas prostitutas e transexuais cariocas.

A garota aceitou, mas disse que só podia realizar a entrevista


naquele dia. Eu não estava de posse de meu gravador, mas tinha em
meu bolso meu bloco de anotações, companheiro de sempre.
Atravessamos a rua em direção ao Hotel Lido, poucos metros à frente.
Para minha surpresa, o recepcionista era o pai de um amigo de
infância, e ele me cobrou menos da metade do preço para o quarto
mais barato. Ele conhece meu trabalho e sabe que eu costumava
entrevistar algumas moças nas dependências do estabelecimento. A
moça negra, de mais ou menos um metro e sessenta e cinco sentou–se
na cama e me convidou a fazer o mesmo. Repousei as compras no
móvel ao lado e começamos a entrevista.

ALINE NÃO É SEU NOME DE VERDADE, NÃO É?

ALINE – Não.

ONDE VOCÊ MORA?


ALINE – Eu moro na Posse, em Nova Iguaçu, longe pra caramba daqui
de Copacabana.

HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ FAZ PROGRAMAS?

ALINE – Não tem muito tempo não. Deve ser há uns três anos só. Eu
antes trabalhava como enfermeira.

NOSSA! VOCÊ É ENFERMEIRA?

ALINE – Sou, tenho até o registro, olha aqui (a garota mostra o


COFEN[8] que estava dentro de sua bolsa). Eu era bem mais nova
quando fiz. Tenho o maior orgulho de ter estudado e de ser enfermeira.
Minha mãe também tem muito orgulho de eu ser enfermeira, ela fala
isso pra todo mundo.

VOCÊ VIVE COM A SUA MÃE?

ALINE – Sim, moramos juntas: eu, ela e minha filha. Eu tenho uma filha
de 16 anos.

E COMO FUNCIONA ISSO? SUA MÃE E SUA FILHA SABEM QUE


VOCÊ FAZ PROGRAMAS?

ALINE – Não, Deus me livre! Minha mãe não pode saber disso nem
fodendo! Ela me mata!

ENTÃO, PRA SUA MÃE, VOCÊ TRABALHA COMO ENFERMEIRA?

ALINE – Sim, como eu trabalho à noite fica mais fácil passar a perna
nela. Eu digo que faço plantão noturno vez ou outra e venho pra cá. Ela
nem desconfia.

MAS E QUANTO AOS PLANTÕES DURANTE O DIA, O QUE VOCÊ


DIZ A ELA?

ALINE – Eu saio de casa dizendo que vou trabalhar e vou pra praia, ou
então faço algum programa com algum cliente do anúncio de jornal em
algum motel. Eu até prefiro porque ganho bem mais com os programas
de jornal.

ONDE VOCÊ TRABALHA AQUI EM COPACABANA?


ALINE – Eu trabalho na Balcony, mas às vezes fico rodando, sabe? O
forte de lá é fazer programa com gringo, e se o movimento não está
muito bom lá dentro eu saio e vou dar uma volta pela Atlântica pra ver
se cato algum grilo pela pista.

E O QUE É “GRILO”?

ALINE – A gente costuma dizer que grilo são os caras que ficam
andando na noite procurando programa na rua ou usando droga. Tem
um monte por aí, quando eu não caço eles aqui por Copacabana vou lá
pra praça Mauá. Eles ficam aos montes em frente ao Flórida e o
Scandinavia.[9]

HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ NÃO EXERCE A ENFERMAGEM?

ALINE – Parei com a enfermagem no mesmo tempo que comecei com


os programas. Mas ainda passei um tempo procurando trabalho na
minha área. Mas tá muito difícil, e quando aparece alguma coisa, paga
muito pouco. Daí ultimamente só tenho ficado com os programas
mesmo. Tem seus problemas, mas pelo menos me divirto, conheço
outras meninas, bebo, danço, e quem sabe eu não conheça um gringo
dos sonhos que me leve pra morar na Inglaterra, em Paris...

SE VOCÊ TIVESSE OPORTUNIDADE PARA IR MORAR FORA,


VOCÊ IRIA?

ALINE – Com certeza, eu iria bem mesmo! Eu falo inglês, gosto de


viver aventuras, sei lá, eu não teria problema nenhum em ir morar fora
do Brasil! Acho que só iria ficar preocupada com a minha filha.

PORQUE? A SUA MÃE CUIDA DELA, NÃO É?

ALINE – Cuida do jeito dela, sabe? A minha mãe é muito devagar e


minha filha dá nó em pingo d'água.

COMO ASSIM?

ALINE – Tu sabe que eu acho que minha filha já não é mais virgem?

MAS ELA NÃO SER MAIS VIRGEM É UM PROBLEMA PARA VOCÊ?

ALINE – Com certeza! Eu não quero que ela fique por aí dando a
boceta dela pra todo mundo e pior, sem ganhar nada pra isso! Só vai
ficar mal falada na boca dos garotos! Eu não tô dizendo que vou achar
bacana ela fazer programa que nem eu e ganhar dinheiro com isso, eu
só não desejo essa vida pra ela, sabe? Mas eu tenho certeza que ela
está dando a boceta dela por aí, eu tenho certeza!!

E VOCÊ PENSA EM PARAR DE FAZER PROGRAMA?

ALINE – Ai, eu sei lá! Eu queria mesmo era poder voltar a ser
enfermeira, ganhando um bom salário, mas tem que ser pra ganhar
bem mesmo. Senão fico nessa rotina que eu tô levando. Mas o que
mais eu queria mesmo era um dia ficar famosa, sendo puta ou não.
Falando nisso, as pessoas vão ler sobre mim nesse livro, né? Tu acha
que dá pra ficar famosa?

KARINE, 30 ANOS – AVENIDA ATLÂNTICA


Para alguém nascido e criado no subúrbio, ou mesmo na zona sul
carioca, e que se limita a estar em seu bairro e adjacências em
detrimento de agregar mais da cidade ao seu cotidiano, nega a si
mesmo o sentimento de pertença natural aos que vivem suas cidades,
as possibilidades que estas oferecem e que fazem das mesmas seus
lugares, tal como diz a canção do Arlindo Cruz sobre Madureira. Ao
menos esse é meu ponto de vista acerca dos que reclamam do Rio de
Janeiro e não observam perspectivas de melhora para a diversidade de
situações caóticas que tomam conta da cidade e fazem da vida dos que
ali vivem um pedaço do inferno na Terra.
Eu pouco sabia da vida na zona sul após me mudar para o Leme
e adotar as amenidades dessa área geográfica carioca, e desde então a
corrida na praia pela manhã, as pescarias e as pedaladas na ciclovia da
Atlântica passaram a ser minha dose de remédio cotidiano necessária
para tocar a vida antes de ser tocado pela foice afiada da “Dona Morte”.
[10] E falando desta última, não foram poucas as vezes em que tive a
certeza da mítica senhora da capa preta estar à espreita na esquina da
rua Prado Junior com Atlântica nas madrugadas em que saía em busca
de alguma moça para entrevistar. A mistura explosiva que compõe o
barril de pólvora da cafetinagem, por exemplo, envolve policiais,
traficantes de drogas e prostitutas, em que um cliente mal intencionado
pode ser apenas a chama que faltava para dar início ao caos. Quem
conhece esta localidade bem sabe ser tênue a linha que divide a
violência do prazer, muito mais fácil de ser cruzada do que o que foi
mostrado na novela “Paraíso Tropical”. Não que o folhetim de 2007
escrito por Gilberto Braga não tenha retratado de forma fiel a
prostituição de Copacabana, no entanto, se as pedras portuguesas das
calçadas do Lido falassem, teriam histórias muito mais nefastas a
contar do que as vividas por Bebel, Jáder e Olavo, vividos pela atriz
Camila Pitanga e os atores Chico Diaz e Wagner Moura,
respectivamente.

Avistei Karine pela primeira vez na avenida Atlântica, onde a moça


de pouco mais de 1,60 e muito bronzeada se oferecia a dois turistas
italianos em frente ao pomposo prédio espelhado que abriga o
Consulado do Canadá. Ela abria a canga mostrando por baixo do
minúsculo biquíni vermelho uma bunda dourada pelo sol do verão
carioca, deixando os dois homens visivelmente com um misto de tesão
e vergonha, já que estavam num local público. Após perceber que os
homens não fariam nada além de apreciar a semi-nudez da moça me
aproximei e lhe perguntei se gostaria de participar de um projeto
pessoal. Disse a ela que minha ideia se tratava de um livro contendo
relatos de mulheres e travestis que fazem programas no Rio de Janeiro.
Combinamos de nos encontrar na praia do Leme no fim da tarde do
outro dia. A garota chegou com um punhado de dinheiro em uma das
mãos no horário e local marcado.

OLÁ KARINE, TUDO BEM COM VOCÊ?

KARINE – Tudo bem sim. Você entende de dinheiro de gringo?

MAIS OU MENOS, NO QUE POSSO TE AJUDAR?

KARINE – É que antes de eu vir pra cá te encontrar eu fiz um programa


com um japonês num hotel e ele me deu isso aqui (o dinheiro em sua
mão eram dólares).

BOM, ESSE DINHEIRO É DÓLAR, VOCÊ NUNCA TINHA VISTO


DÓLARES ANTES?

KARINE – Não, nunca! E isso vale muito? Vale mais que o nosso
dinheiro daqui, né?

TENHO QUE VER QUANTO VOCÊ TEM E VER A COTAÇÂO DO


DÓLAR HOJE NO MEU TELEFONE. VOCÊ CONFIA EM ME DEIXAR
CONTAR?

KARINE – Mas claro, poxa, se eu mesma tô te pedindo pra fazer isso


pra mim!

OLHA, AQUI TEM POUCO MAIS DE R$ 900. ELE TE PAGOU UMA


GRANA BOA.

KARINE – Nossa, tem isso tudo aí? Olha que eu nem acho que eu sou
lá essas coisas pra ele ter me pagado tão bem, sabia?

SÉRIO? VOCÊ NÃO ACHA QUE O TEU TRABALHO VALE ESSE


VALOR?

KARINE – Não acho não. Eu me acho uma puta muito requengela! Tem
menina muita mais bonita aqui pela orla do que eu. Mas se ele me
pagou isso é porque deve ter gostado.

HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ FAZ PROGRAMAS?

KARINE – Não tem muito tempo não...desde que cheguei no Rio. Eu


sou mineira, minha prima me convidou pra vir pra cá pra trabalhar numa
lanchonete com ela. Comecei, mas depois de três meses a lanchonete
fechou. Ela voltou pra Minas e eu fiquei aqui. Fui morar no morro do
Chapéu Mangueira e, como estava difícil de pagar o aluguel, eu vim pra
pista pra trabalhar com programa.

E COMO É A VIDA DE GAROTA DE PROGRAMA PARA VOCÊ?

KARINE – Olha, pra mim não é muito difícil não. Eu fumo maconha, e
quando fumo eu fico com muito tesão. Sempre gosto de trepar depois
que eu fico na onda e isso acaba facilitando as coisa pra mim. Depois
que eu fumo eu sempre gosto de foder um pouquinho!
MAS ISSO FUNCIONA SEMPRE ASSIM PARA VOCÊ? FUMA E
QUER TRANSAR?

KARINE – Sim, sempre foi, desde que eu comecei a fumar. Teve um dia
desses que até aconteceu uma coisa que nunca tinha acontecido na
minha vida por causa disso.

O QUE ACONTECEU? VOCÊ PODE COMPARTILHAR COMIGO?

KARINE – Eu fiz com cinco caras ao mesmo tempo!

COMO É QUE FOI A SITUAÇÃO?

KARINE – Eu tinha fumado e desci o morro à noite pra ir trabalhar lá no


calçadão. Só que nesse dia não deu cliente nenhum. Eu fui até a areia
e fumei outro baseado que eu tinha na minha bolsa e fiquei com mais
tesão ainda. Como vi que não ia pintar cliente, fui embora pra casa.
Quando chegou aqui no Leme, eu passei em frente àquele edifício
garagem e perguntei pro porteiro se ele queria me comer. Ele disse que
sim e me colocou pra dentro, só que tinha mais dois menino que
trabalham lá na garagem limpando os carros dos bacanas e eu chamei
eles e ainda aparecerem mais dois não sei de onde. No final eu dei pra
eles tudo. Todo mundo me comeu.

VOCÊ NÃO FICOU COM MEDO?

KARINE – Não fiquei não. Eu achei uma coisa diferente, mas não fiquei
com medo não! Na verdade foi até bom depois que fui embora e ainda
estava sentindo aquela dorzinha entre as pernas, sabe? Mas é uma dor
gostosa, de que me foderam bem!

ENTÃO O FATO DE VOCÊ SER VICIADA NÃO TE ATRAPALHA?

KARINE – Não me atrapalha em nada! E você, fuma maconha


também?

FUMO CIGARRO COMUM.

KARINE – Não te incomoda se eu acender um baseado aqui não, né?

DE MANEIRA NENHUMA. MAS ISSO SIGNIFICA QUE NOSSA


ENTREVISTA CHEGOU AO FIM.

KARINE – Sim...eu vou ficar por aqui! Eu também gosto de ficar


olhando pro mar e ver o sol ir embora depois que eu fico chapada!
VALESCA, 34 ANOS – IPANEMA

É comum ouvirmos e lermos sobre o que a “carioquice” do povo


do Rio de Janeiro representa para a própria cidade ou mesmo pelo
Brasil. Em tempos de redes sociais efervescentes e de exposições
públicas cada vez mais frequentes por parte de alguns, enaltecendo a si
próprios em qualidades físicas e de caráter para talvez serem aceitos
por outrem, é bastante comum observar que o carioca em especial, de
fato, faz questão de se colocar como tal. Ser um Carioca da Gema,
Carioquíssimo, ter o DDD 021 e fazer uso da hashtag #Rio40° parece
anular a relação de pertença contida nos dizeres orgulhosos de “sou
Flamengo”, um dos mais antigos clichês populares do Sudeste
brasileiro e imortalizado na letra de Jorge Benjor, com atenção para um
detalhe: nem todos os que se dizem flamenguistas sobem as ladeiras
cheias de limo verde e viscoso que dão acesso aos barracos onde
moram as diversas “negras de nome Tereza”.

A pergunta que se segue é um pouco capciosa, mas diga você,


leitor: Na sua opinião, pode o carioca que não conhece a realidade das
favelas, sendo estas parte do romantismo e da agonia popular
característicos do Rio de Janeiro, se intitular como tal? É possível dizer
ser um carioca genuíno sem ser conhecedor das realidades
pertencentes a esse tipo de gueto? Sem nunca ter levado uma dura da
Polícia Militar quando subiu na favela para comprar o “pó” de sexta-feira
que pra alguns é mais sagrado que a missa de domingo? Sem nunca
ter recebido uma madeirada de um traficante por estar devendo à boca
de fumo? Como afirmar “ser carioca de verdade” sem nunca ter ido até
um baile funk de favela? Sem nunca ter ido na casa daquele que é
camarada na praia mas mora no morro? Dizer ser carioca nesses
termos é praticamente ser um “carioca de farmácia”, é quase uma
apropriação indébita do termo e de todo status que ele “promove”, se é
que nas últimas décadas dizer que vive no Rio de Janeiro ainda seja
sinônimo de algum glamour.

Além de escritor sou artista plástico e assistente social. Ao atuar


na última tive a oportunidade de trabalhar em diversas favelas na
cidade do Rio de Janeiro, e por ocasião da graduação que cursei na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), mudei-
me de Madureira[11] para a o morro da Babilônia, onde residi por quase
seis anos com a ideia de estar mais próximo da Gávea e me formar em
não mais que os quatro anos de graduação. Aprendi muito no cotidiano
do morro onde vivi e de outros onde atuei como profissional. Em 2013,
estando eu trabalhando no morro do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho,
conheci Valesca. Topei com ela dentro do mercado Zona Sul da rua
Visconde de Pirajá, e percebi pelo seu gogó que ela era mais do que
apenas uma “mulher comum”. Não existem maneiras melhores para
diferenciar uma trans de uma mulher do que observar mãos, pés e
gogó. Não estávamos na mesma fila, mas saímos do estabelecimento
no mesmo instante, o que me favoreceu demais para abordá-la na
calçada. Perguntei seu nome e se podia lhe acompanhar, ela assentiu.
Disse-me que se eu quissese fazer um programa seria impossível
porque ela só trabalha à noite. Acabamos seguindo pelo mesmo
caminho na rua Teixeira de Melo, e coincidentemente tomamos o
elevador que dá acesso ao Morro do cantagalo. Respondi que minha
intenção não era fazer um programa com ela, mas que gostaria muito
de poder contar com seu depoimento para um livro que eu estava
desenvolvendo. Expliquei qual era a ideia e ela aceitou com uma
condição: que eu a acompanhasse até sua casa no morro do
Cantagalo, pois ela possivelmente não teria tempo para agendarmos
um encontro para o devido fim. Como eu trabalhava no local onde ela
mora e já tinha cumprido meu horário diário de trabalho aceitei e para lá
fomos.

A conversa praticamente já teve início quando saímos do elevador


e começamos a caminhar pelos becos da favela. Alguns meninos que
brincavam no caminho perguntaram um ao outro se ela era “uma
mulher ou uma boiola[12]”. Provavelmente a noção mínima que os
garotos têem de mulheres é a que lhes foi apresentada em seus lares e
cotidiano em comum, e certamente mais vaga ainda é a noção sobre a
segunda terminologia por eles dita. Perguntei se ela se incomodava
com esse tipo de comentário:

Olha, quando se trata de crianças até que não machuca tanto


não, sabe? Pior é quando vem de adulto, de umas mulheres
despeitadas que não se cuidam e ficam com dor de cotovelo
porque eu que nem sou mulher estou melhor do que elas. Mas
esses meninos são assim, sempre me ofendem quando passo!

Chegamos em frente ao pequeno portão de alumínio que dava


acesso a sua residência. Valesca abriu-o puxando um pedaço de fio de
telefone na parte interna. Subimos um pequeno lance de escada que
dava acesso a uma espécie de portaria para o pequeno prédio de três
andares, e ainda ao lado de fora era possível ouvir os latidos de um cão
no interior da casa. Ela colocou as compras em cima da mesa e
depositou os legumes e vegetais dentro de um tanque e começou a
lavar os alimentos. Disse se preocupar demais com a origem destes e
que “é melhor prevenir do que remediar”. Perguntou-me se podia tomar
um banho antes de começarmos e concordei. Eu me pus de pé e
observei ao meu redor. O apartamento no segundo andar era estilo
americano, com cozinha e sala conjugadas. No canto esquerdo, um
pequeno quarto com a janela aberta dava a vista para o mar verde–
esmeralda da Praia de Ipanema. Em menos de dez minutos, Valesca
reapareceu com o corpo enrolado numa toalha branca e ornamentando
outra toalha de cor azul na cabeça, e nesse instante teve início nossa
entrevista.

HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ MORA AQUI?

VALESCA– Eu moro aqui há menos de um ano. Dividia o aluguel com


outra travesti, mas acabei tendo muito problema com ela e pedi para ela
ir embora.

QUAIS TIPOS DE PROBLEMAS VOCÊ TEVE COM ELA?

VALESCA – Olha, ela trabalha comigo na Lapa, continuamos


trabalhando na mesma esquina lá, não tenho problema nenhum com
ela hoje em dia, mas a questão foi que ela é muito jovem, só tem 18
anos e não tinha muita responsabilidade com o aluguel, às vezes eu
tinha que colocar do meu dinheiro pra completar o valor. E você sabe
como é em favela, né? Se o dono do lugar que você mora falar com os
“meninos”, a nossa vida fica logo em risco.

EM QUAL PARTE DA LAPA VOCÊ TRABALHA?


VALESCA – Eu faço ponto na Augusto Severo, mas fico sempre
rodando, não paro no mesmo lugar muito tempo.

E PORQUE VOCÊ FICA SEMPRE RODANDO?

VALESCA – Porque o trabalho ali é complicado. Tem travesti que é


mais antiga na área e não gosta muito da presença das outras que
estão ali há pouco tempo, que nem eu. Eu vou pro mesmo ponto todos
os dias, mas tenho que ficar na atividade. Você sabe, né, não dá pra
dar mole! Virar estatística só por causa de uns trocados não rola, meu
amor!!

ENTÃO VOCÊ TRABALHA TODOS OS DIAS?

VALESCA – Nem sempre, mas eu saio todos os dias e vou pra rua à
noite. Muito mais porque eu gosto de sexo e, trabalhando ou não, eu
sempre consigo sexo com alguém que cato pela rua.

E TU TEM PREFERÊNCIA EM RELAÇÃO A ISSO?

VALESCA – Não, nenhuma. Eu só quero alguém que me coma. Como


eu te disse antes, eu gosto muito de fazer sexo, então pra mim quando
não tô trabalhando é muito fácil conseguir porque muito homem saca
que eu sou travesti e muito homem gosta de travesti, você talvez não
saiba!

VOCÊ FAZ PROGRAMAS PELO DINHEIRO OU PELO PRAZER?

VALESCA – Eu acho que eu faço pelas duas coisas. Eu gosto muito


quando os caras chupam meu pau pra eu gozar. Gosto de ver como
muito homem que parece machão me come e continua se achando
macho...eles não são tão machos. Pra mim, quem gosta de viado
também é viado.

SÉRIO? VOCÊ ACHA ISSO MESMO?

VALESCA – Acho sim, sabe por quê? Eu vou te fazer uma pergunta.
Você acha o meu corpo bonito?

SIM, MUITO!

VALESCA – Se a gente não estivesse nessa entrevista e eu te pedisse


agora pra chupar o meu pau porque isso me deixa maluca e eu gozo
muito, você chuparia?
NÃO!!

VALESCA – Sabe por quê? Porque tu não é viado! Homem que é


homem mesmo nem olha pra travesti. Pode ser a travesti mais montada
do mundo, a mais bonita do mundo, homem que gosta de boceta não
olha!!

E VOCÊ, JÁ GOSTOU DE BOCETA UM DIA NA VIDA?

VALESCA – Cruz credo, menino, óbvio que não!! Desde pequena eu já


olhava pros meninos, pegava na rola, chupava eles quando brincava de
esconder. Eu tenho muito nojo de boceta!

COMO ASSIM? VOCÊ ACHA QUE É POSSÍVEL TER NOJO DE


ALGO QUE NUNCA PROVOU?

VALESCA – Pra mim depende muito de cada pessoa. Eu acredito que


quem é bicha nasce assim, sabe? Eu gosto mais de meninos do que de
meninas desde que era garotinha. Eu não me lembro de ter sentido
tesão por uma mulher nunca na minha vida. Eu acho que nasci no
corpo errado, eu também acredito que isso acontece, sabe? Eu tenho
nojo de boceta mesmo!

E VOCÊ SE ACHA FEMININA?

VALESCA – Sim, sim. Se você reparar, eu fiz o nariz! Não faz muito
tempo atrás. Ainda tá cicatrizando. Eu quero ficar legal, parecendo cada
vez mais uma mulher porque quero ir pra Itália. Conheço muita travesti
que fez a vida lá!
MAÍRA, 23 ANOS – VILA MIMOSA

Sexta-feira, fim de tarde de um mês de dezembro chuvoso no Rio


de Janeiro. Fiz sinal para o táxi na rua Primeiro de Março e logo que
abri a porta me joguei o mais rápido possível no banco dianteiro do
veículo para escapar da chuva:
- Boa tarde – disse o taxista
- Toca pra onde?
- Toca pra Vila Mimosa – respondi.

Ele deu uma olhada pra mim com um sorriso maroto nos lábios:

- Vai se divertir um pouquinho, né?


- Não – Eu disse.
- Estou indo trabalhar.
- E o que você faz? – perguntou o homem.
- Sou escritor. Estou entrevistando algumas prostitutas para um
novo livro que estou escrevendo.

A conversa seguiu no trajeto da avenida Presidente Vargas e o


homem se mostrou muito interessado em meu trabalho. Disse gostar
bastante de ler e que gostaria de ler o livro um dia. Tentei dar o máximo
de atenção possível para ele que de fato se demonstrava muito
empolgado, mas a chuva torrencial do lado de fora me deixava
preocupado. O verdadeiro “Carioca da Gema” sabe o que significa
chuva no Rio de Janeiro, e a praça da Bandeira – local onde se localiza
a Vila Mimosa – assim como a Barra da Tijuca e praticamente toda a
Baixada Fluminense mais parecem cenários de filmes escatológicos.
Em pouco mais de seis minutos estávamos entrando na rua Ceará e o
motorista parou o veículo na esquina desta com a rua Sotero dos Reis.
Paguei a corrida e trocamos contatos. Ele, mais uma vez, disse estar
muito interessado no resultado final do livro. Desejou–me sorte e
partimos cada qual para seu destino.
Tentei caminhar e ao mesmo tempo me abrigar da chuva, mas as
poucas marquises do local que é uma das áreas mais degradadas da
cidade são praticamente destruídas e mesmo estar embaixo delas pode
significar um acidente bem pior do que apenas estar ensopado. Olhei
ao meu redor e me recordei da infância, lá pelos idos de 1994. Nessa
época, meu pai trabalhava como motorista numa transportadora e era
comum durante algumas sextas me levar para passar o dia com ele e
os ajudantes no caminhão rodando pelo Rio de Janeiro. Geralmente, no
fim do expediente, alguns dos ajudantes pediam carona para o ponto de
ônibus mais próximo para voltarem às suas casas e sempre que tinha
algum novato que era evangélico meu pai dirigia até a Vila Mimosa,
retirava a chave da ignição e se divertia com o desespero dos homens.
Eu me lembro deles pedindo para o meu pai dar meia-volta e tirá-los
dali, alguns quase choravam, enquanto meu pai, despreocupado, comia
um espetinho de churrasco e bebia um refrigerante. Naquele período,
eu não tinha malícia suficiente para reparar se alguns dos homens
manjavam as bundinhas das meretrizes, mas tenho certeza que meu
pai não fazia isso por maldade. A ideia principal era aliviar o estresse de
um dia pesado de trabalho com alguma diversão e a brincadeira nunca
durava mais de vinte minutos, e assim conheci a famosa Vila Mimosa,
tida por muitos como a melhor “área de lazer” do Rio de Janeiro.
Enfim avistei a entrada de meu destino no primeiro beco à minha
esquerda. Caminhei a passos lentos pela multidão de homens que se
aglomerava no caminho estreito, em meio ao odor de um cheiro amargo
muito conhecido dos frequentadores da Lapa. Para os mais frágeis o
cheiro da mistura de cerveja, cachaça, urina, suor e vômito torna o
ambiente um convite para a retirada, mas os que ali frequentam são
imunes a esse coquetel diabólico, e o que lhes interessa vale muito
mais do que ir embora. No fim do percurso, estaquei no que mais
parecia a pista de subida da avenida Brasil em horário de rush.
Ninguém passava em meio ao tumulto de homens que se amontoavam
em frente a uma das casas à direita, onde uma moça negra, cabelo
Black Power muito estiloso e trajando uma fantasia de Mamãe Noel,
realizava uma performance de Pole Dance que em nada deixava a
desejar nos musicais hollywoodianos. Seu nome é Maíra, e ela era meu
motivo para estar naquele pedaço do inferno na Terra neste dia.
Assim que terminou a dança, Maíra veio em minha direção. Ela já
tinha me visto e, como tinhamos combinado a entrevista para o início da
noite num restaurante próximo dali, esse era seu último número. Ela
agachou na beira do pequeno palco e pegou o pequeno top vermelho e
branco enquanto um homem lhe deu na mão uma nota de cinquenta
reais. Ela disse que não faria mais programas, mas ele disse que o
dinheiro era apenas por ter gostado de sua apresentação. Ela não
agradeceu pela grana, mas sua resposta foi taxativa:

- Eu vi que você chegou bem depois. Da próxima vez você precisa


assistir tudo, tenho certeza de que você vai gostar bem mais do que vai
ver.

Saímos da Vila e nos encaminhamos ao local combinado para


realizarmos nossa entrevista, o boteco Bar da Frente, um dos
vencedores do concurso gastronômico “Comida di Buteco”.

EU CURTI MESMO TUA APRESENTAÇÃO. MUITO PROFISSIONAL.

MAÍRA – Que bom que você gostou! Precisa vir aqui mais vezes pra
assistir!

EU AGRADEÇO PELO CONVITE MAS NÃO FREQUENTO A ZONA


COMO ANTES.

MAÍRA – E algum dia tu já frequentou a zona? Tu não tem cara e nem


fala igual homem de zona.

E QUE TIPO DE HOMEM EU PAREÇO SER PRA TI?

MAÍRA – Ahhh, tu parece esse garotos nerds que gosta de assistir filme
e ler livro dentro de casa! Desculpa, tá? (Disse isso e soltou uma sonora
gargalhada).

SEM PROBLEMA. QUE BOM QUE CONSEGUI TE ARRANCAR UM


RISADA. VOCÊ ESTAVA MUITO SÉRIA. ESTÁ TUDO BEM
CONTIGO?

MAÍRA – Poxa, quando você me perguntou se queria fazer parte do teu


livro tu disse que era assistente social, né? A gente não se conhece
mas com certeza tu é um bom assistente social, porque eu não tô nada
bem mesmo.

E O QUE HOUVE?

MAÍRA – Eu tô meio chateada com um lance que aconteceu hoje lá


perto da minha casa. Eu fui numa dessas lojas de produto de cabelo pra
mulher, sabe? Peguei tudo o que eu queria e fui pra fila. Daí enquanto
eu tava lá esperando a minha vez eu vi duas mulher me olhando e
cochichando entre elas. Eu ouvi o que o que elas tava falando!!

E DO QUE ELAS ESTAVAM FALANDO?

MAÍRA – Elas tavam falando do meu cabelo. Eu fiquei muito puta da


vida, minha vontade era voar no pescoço daquelas duas vaca e
esganar elas!
MAS VOCÊ CONSEGUIU SEGURAR A ONDA, NÉ?

MAÍRA – Sim, sim. Eu fiquei com muita raiva, mas consegui sim. Que
ódio! Mas eu não fiquei quieta, eu não avancei pra cimas delas, mas
olhei bem na cara de uma delas, que era feia de doer, e disse “Que é
que essa mulher horrorosa, com esse dente todo separado tá olhando
pra minha cara e tá rindo? Não deve estar achando engraçado que eu
sou muito mais bonita que você né meu bem porque tu é muito feia!”

E ONDE É QUE VOCÊ MORA?

MAÍRA – Eu moro em Realengo.

E TRABALHA NA VILA FAZ MUITO TEMPO?

MAÍRA – Não, deve ter um ano e pouquinho só.

TRABALHA LÁ TODOS OS DIAS? COMO É TUA ROTINA?

MAÍRA – Eu só não vou dia de segunda e terça, mas nos outros dias eu
tô sempre lá. Durmo e como por lá mesmo.

ENTÃO VOCÊ TEM UM ROTINA LÁ DENTRO, NÃO É?

MAÍRA – Sim. Eu começo a trabalhar quando acordo, lá pelas quatro


horas da tarde. Daí eu levanto, como alguma coisa e me monto pra
começar os trabalhos.

E VOCÊ TRABALHA SEMPRE FANTASIADA?

MAÍRA – Não! É mais porque a gente tá no mês de dezembro e tá perto


do Natal que eu tô usando essa fantasia que tu viu.

E COMO É COM TUA FAMÍLIA? TU MORA COM ELES? ELES


SABEM NO QUE VOCÊ TRABALHA?

MAÍRA – Eu moro com a minha mãe, mas ela não sabe. Ela acha que
eu trabalho como doméstica na zona sul. Pra ela, eu durmo no trabalho
e folgo na segunda e terça.

COMO É A VIDA NA PROSTITUIÇÃO PRA VOCÊ?

MAÍRA – Olha, eu não vou te dizer que acho normal, mas é o que eu
tenho feito e tô conseguindo sobreviver, sabe?
E PORQUE NÃO É NORMAL PRA TI?

MAÍRA – Porra, acontece muita coisa na noite, e tu tá ligado que


mesmo lá na zona a gente tá ali mas tem contato com todo tipo de
gente! É polícia, é bandido, e o cara mais calmo é o cara que chega
louco de pó e alucinado e trata a gente igual lixo!! A noite é foda, ainda
mais pra mim que sou viciada!!

E O QUE VOCÊ USA?

MAÍRA – Não uso muita coisa não, só maconha e loló[13]!! Mas noutro
dia desses mesmo eu tava voltando pra casa e os canas me pararam
na rua.

E DAÍ?

MAÍRA – Porra, madrugada de domingo pra segunda e eu tava


voltando do trabalho. Tava com o dinheiro todo da semana e com um
tablete de cinquenta grama de maconha que eu tava levando pra fumar
em casa. Daí eles me pararam e pediram pra me revistar. Eram dois e
um deles tava me olhando com uma cara de safado, sabe?

E TU NÃO TENTOU ESCONDER O FLAGRANTE?

MAÍRA – Tentei nada, cara! Eu achei que dava pra passar batida! Tava
bem no fundo da bolsa mas aí quando um deles abriu o cheiro da
maconha subiu! Aí ele disse pro outro “Ihhh olha só o cheiro, é cheiro
de droga, hein!!” Eles jogaram tudo no chão e acharam a minha
maconha! Me colocaram o maior terror, disseram que iam me levar
presa e o caralho!

E O QUE ACONTECEU?

MAÍRA – Eles falaram que eu tinha três opção: ir presa, foder com os
dois e ficar com a maconha ou perder um dinheiro pra eles e ficar com a
maconha.

E O QUE VOCÊ FEZ?

MAÍRA – Eu disse que não ia trepar com eles porra nenhuma, comecei
a ficar alterada e acabou que eu fiquei sem meu dinheiro, sem a minha
maconha e fui pra casa revoltada! Eu odeio polícia cara, são tudo um
bando de filho da puta!!
E QUANTO VOCÊ ELES LEVARAM DE TI?

MAÍRA – Eu tava com uns três mil reais na bolsa, só me deixaram com
cem reais na mão!

ISSO ACONTECE MUITO CONTIGO?

MAÍRA – Até que não rola muito não, mas é o tipo de vida que eu levo,
né? Por isso que eu disse que não acho normal. A polícia não faz isso
com as patricinhas lá da zona sul. Eu duvido que eles ficam pedindo pra
elas abrir as bolsas, que eles parem todo mundo que tá com um
baseado na boca curtindo a praia. Mas eu, preta, no subúrbio e
andando de madrugada...

TU PENSA PENSA EM PARAR DE FAZER PROGRAMA?

MAÍRA – Penso...Até porque eu sei que eu vô ficar velha e tudo isso


aqui vai cair, meu bem! Daqui a pouco eu sou “tiririca do brejo”.

TU TEM ALGUM SONHO?

MAÍRA – Eu quero só ficar viva. Levar a vida no subúrbio, sofrendo


ameaça de polícia e de bandido não é vida pra ninguém. Só quem mora
no subúrbio sabe o que a gente passa na pista!

INDIARA, 35 ANOS – LAPA

O Centro do Rio de Janeiro é um lugar interessante, praticamente


uma caixinha de surpresas. Conheci Indiara num bar no Centro, em um
dia em que saí do trabalho decidido a beber alguma coisa e esperar o
tempo passar, pensando na vida. Soube que ela era garota de
programa pelo fato de ter sentado em minha mesa e me oferecido seus
serviços. Não aceitei a proposta do que segundo ela seria “o melhor
boquete que eu teria recebido”, mas ela, por outro lado, aceitou a
proposta para ceder a mim uma entrevista para compor o livro que
agora você, leitor, está a ler. Trocamos telefone e combinamos nosso
encontro para duas semanas depois, na Lapa.
No dia combinado, me encaminhei para o Beco do Rato, na Lapa.
Ao chegar no bar onde tínhamos marcado, a mulher não estava. Mais
ou menos cinco minutos depois, ela me ligou dizendo que iria se atrasar
porque estava num programa. Eu disse que não teria problema e que
poderia lhe aguardar. Imaginei que teria uma longa espera e muito
embora o dia quente sugerisse uma cerveja gelada, pedi ao garçom
uma água com gás e um copo com uma rodela de limão, pois prefiro
trabalhar sóbrio.
Permaneci sentado por longos minutos apenas observando o
movimento naquele típico pré–fim de semana carioca, que era ainda
mais peculiar pelo local onde eu me encontrava naquele momento. Um
frenético vai e vem de pessoas que pareciam sem destino certo, mas
que em sua maioria compartilhavam das mesmas certezas em relação
ao destino final dos que vão à Lapa numa sexta-feira à noite: se divertir,
namorar, paquerar, arrumar confusão, cair na jogatina, fazer sexo,
beber, se drogar e diminir seus dias na Terra. As madrugadas da Lapa
não são para os fracos e para os que temem as intempéries do acaso, e
no tocante desse último, se por sorte alguns frequentadores não forem
mortos metidos em brigas, por engano ou bala perdida, pode–se
terminar a noite tranquilamente dormindo bêbado dentro de um
banheiro químico qualquer atolado de bosta até pescoço, sonhando
estar na cama de casa. Acreditem, para alguns frequentadores dali isso
é um happy end.
Todo tipo de gente passava na calçada e eram desde pessoas que
estavam correndo para os pontos de ônibus, na ânsia de retornar para
seus lares sentados no coletivo, como aqueles que em nada pareciam
ter pressa e tampouco planejam retornar para casa tão cedo. Um
bêbado parou em minha mesa com um copo de cachaça na mão e
perguntou quem eu achava melhor: Pelé ou Maradona? Respondi que
Pelé tinha seu valor para o futebol brasileiro, mas que o futebol de
Maradona me agradou mais à época e levei um banho de cana[14] que
me deixou desconcertado e sem entender patavinas. Uma prostituta de
cabelo vermelho como nunca vi na vida passou por mim apressada e
sendo seguida por dois homens que lhe perguntavam se ela “fazia
programa com dois ao mesmo tempo”. O mais interessante foi um
porteiro do prédio vizinho, que sentou na mesa ao meu lado e me
contou uma série de histórias cabulosas da madrugada local, adquiridas
em seus quase quarenta anos de trabalho na mesma esquina. Histórias
que iam desde esfaqueamentos até a relação promíscua da polícia com
as prostitutas e travestis que ali fazem ponto.
Mais de meia hora se passou e quando eu já pensava que essa
entrevista tinha ido por água abaixo, meu telefone toca. Indiara estava
na linha um pouco afoita e me perguntou se eu poderia ir até o hotel
onde ela se encontrava. Segundo a mulher, ela tinha tido um problema
mas isso não atrapalharia o meu trabalho e que inclusive poderíamos
realizar tudo por lá mesmo se eu preferisse. Confesso ter sido esta a
única vez em que fiquei com receio em meio a este trabalho, mas me
encaminhei para o local: no hotel Passeio, na rua Moraes e Vale, bem
próximo de onde eu estava.
Não conhecia este hotel e, após adentrar o local, me anunciei na
portaria. O atendente, que não parecia muito satisfeito com o trabalho,
me pediu para aguardar numa espécie de antessala. O estabelecimento
de fachada simples e até arrumada disfarça bem o interior de espelunca
que é sua verdadeira face. Não aguardei muito até o momento em que
o homem me informou o número do quarto e que eu poderia subir. Eu
me encaminhei por um lance estreito de uma escada de madeira, que
rangia como cama de casal fazendo sexo hard, e tive que me espremer
entre um homem que descia com uma travesti de seios imensos e que
ainda tentava fazer “o truque”[15] para esconder seu pênis em meio ao
caminho. Após parar na porta do quarto onde Indiara me aguardava e
tocar a campainha, tive um choque a observar a cena à minha frente.
Um homem de meia-idade loiro, alto e de olhos azuis que poderia
ser bem aparentado se não fosse pela quantidade de lama em sua
roupa de grife e seu estado deplorável com as narinas ainda expelindo
a cocaína consumida na farra era amparado pela prostituta de cabelos
vermelhos que tinha passado por mim quando eu ainda estava no bar.
Ele que tinha ido para lá fazer um programa com as duas mulheres,
pelo jeito, só teria um dia a mais na vida para tentar esquecer, isto é,
caso ele se lembre de alguma coisa do que se passou. Observei a
mulher carregar o homem por alguns segundos com os pensamentos
um pouco longe da situação da qual testemunhava. Em tempos
longínquos, quando ainda era estagiário de Serviço Social de uma
empresa pública entre as mais importantes no Brasil, o homem que era
praticamente um farrapo humano a poucos metros de mim era diretor
de um setor específico e foi meu primeiro atendimento. Na ocasião, pelo
vício em àlcool e drogas, ele tinha perdido a família da qual nem sabia o
paradeiro e, após meses de tratamento e acompanhamento, conseguiu
reaver os filhos e a esposa.
Retornei ao plano terrestre com a voz de Indiara me convidando a
entrar no quarto. Suas roupas ajeitadas e o rosto maquiado intacto
denotavam que certamente, pelo estado em que se encontrava o
recém-saído cliente, seus serviços não foram acionados. Dei uma
olhada na paisagem ao lado de fora e estava começando a chover
quando finalmente começamos a entrevista.

NÓS PODEMOS FAZER A ENTREVISTA AQUI MESMO OU VOCÊ


ACHA QUE VAMOS TER PROBLEMA COM O TEMPO PARA ESTAR
NO QUARTO?

INDIARA – Não tem problema não, pode ficar tranquilo. O cliente pagou
quatro horas de programa e ainda tem bastante tempo.
COMO É QUE É? ELE PAGOU QUATRO HORAS E SAIU NAQUELE
ESTADO?

INDIARA – Porra, isso acontece direto! Tu tem que ver quando eles
cheiram pó! E esse aí que saiu não tava puro não, ele matou uma
garrafa de uísque e saiu daqui com muita cocaína no bolso.

E O QUE VOCÊ FAZ NUMA SITUAÇÃO DESSAS?

INDIARA – Olha, depende muito do cliente. Geralmente quando eles


tão muito doidão de pó, maconha ou bêbado eu nem tiro a roupa. Fico
sentada só ouvindo um monte de besteira, sem paciência. Se tiver num
hotel bom eu vou pra banheira tomar banho, fico na hidromassagem, na
sauna e se já tiverem me dado a grana vou até embora quando eles
começam a pegar no sono. Mas pra mim é chato, porque eu gosto de
foder, e aí acaba que tem vezes que eu fico na mesma.

ENTÃO QUER DIZER QUE VOCÊ GOSTA DE FAZER PROGRAMAS?

INDIARA – Não é que eu goste, mas o fato de eu gostar de trepar


facilita muito as coisas pra mim. Tem muita garota que só faz pelo
dinheiro mesmo! Eu faço pela grana e porque gosto de foder. Tem
homem que é gostoso e aí eu faço até questão de gozar!

TU FAZ PROGRAMAS HÁ MUITO TEMPO?

INDIARA – Tem uns quinze anos, mas eu sou casada.

E O TEU MARIDO SABE?

INDIARA – Olha, ele sabe, mas acaba que não fala nada porque ele
enche tanto a cara de cachaça que o mais importante pra ele é o
dinheiro que eu levo pra dentro de casa.

ELE NUNCA SE IMPORTOU?

INDIARA – Teve uma época no início que sim. Ele falava pra cacete e a
gente chegou até a se separar. Nós ficamos uns quatro meses
separados, mas ele me procurou e acabamos voltando.

ELE TE SATISFAZ NA CAMA?


INDIARA – Eu nem lembro da última vez que fiz com ele. Sexo pra mim
é fora de casa, e ele sabe que eu faço, sabe que isso é meu trabalho e
pra mim ele já nem liga mais pra isso. Eu acho até que ele tem outra, ou
outras por aí, porque pra mim homem não vive sem sexo.

VOCÊ ACHA QUE É IMPOSSÍVEL UM CARA FICAR SEM SEXO?

INDIARA – Com certeza! O que mais aparece pra mim é homem


casado, noivo, que tem namorada. Tem uns que nem tira as aliança do
dedo. Fode comigo com a aliança na mão, não estão nem aí pra
respeito pela mulher que tá em casa. Eu só faço o meu papel né!! Me
pagou? Então nem me importa se eles têm mulher ou não. Eu quero é
ganhar o meu dinheiro, tomar minha cerveja e que se dane o resto!

VOCÊ SÓ FICA PELA ÁREA DA LAPA?

INDIARA – Sim, eu não faço programa em outros lugares não.

E POR QUÊ?

INDIARA – Porque aqui a gente tem a Luana[16], que dá muita força


pra gente e não deixa ter bagunça. Eu paro sempre na porta do mesmo
bar, fico por ali pela calçada e bem ou mal as meninas são praticamente
as mesma de sempre.

O DINHEIRO QUE VOCÊ CONSEGUE COMPENSA?

INDIARA – Quando é começo de mês sempre é bom, mas no geral isso


aqui é uma guerra, né cara! É a gente tendo que ser melhor que as
travestis, e de vez em quando ainda aparece menina nova, que não
conhece o ponto e aí a gente tem que colar nelas e dar logo uma ideia,
pra ficar um pouco mais longe, na outra esquina. Mas o que acontece é
que aqui na Lapa tem muita gente que faz programa faz muito tempo já,
então acaba não tendo lugar pra todo mundo.

E OS CLIENTES? A MAIORIA SÓ PARA AQUI DENTRO DOS


CARROS, NÉ?

INDIARA – Ahhh com certeza! E tu acha que eles vão colocar a cara
sem vergonha deles pra fora? O que tu viu saindo daqui tava a pé
porque já tava muito louco, mas no geral eles param a gente de carro
na pista lá embaixo e nem sai de dentro do carro não!

VOCÊ DISSE QUE “GOSTA DE SEXO”. TEM ALGUM TIPO DE


CLIENTE QUE TE AGRADA MAIS?
INDIARA – Os que me pagam! (Risos) Eu gosto de “homem” e não
importa o tipo, mas claro que quando tem algum que me faz gozar é
muito bom, né?

E A MAIORIA CONSEGUE?

INDIARA – A verdade é que é muito difícil eu gozar, tem um processo


aí e nem todo homem entende!!

E VOCÊ PODE FALAR SOBRE ESSE PROCESSO?

INDIARA – É que eu só gozo quando os caras mijam em cima de mim.

ISSO ACONTECE HÁ TEMPOS?

INDIARA – Desde sempre!

E OS CLIENTES FAZEM ISSO NUMA BOA?

INDIARA – É como eu te falei, muito cara não entende. Uns pedem pra
ir embora, outros ficam preocupado, em como é que vão limpar tudo
depois. Eu digo “usa a toalha, porra!!” Não sei porque mas eu só
consigo sentir tesão pra gozar quando sinto aquela coisa quente me
molhando toda. Eu gosto do cheiro, gosto de olhar o cara com o pau pra
fora. Eu amo urina de homem!
LILIE, 24 ANOS – COPACABANA

Que Copacabana é a “Princesinha do Mar”, como já dizia a


canção da grande Nana Caymmi, isso é incontestável. Mas é
importante frisar que uma praia tão bela cravada dentro de uma das
maiores megalópoles existentes não cria todo seu mito mundo a fora só
com mar, areia e as Ilhas Cagarras ao fundo. São diversos os tipos de
gente que compõem a lenda que o bairro da zona sul carioca se tornou
ao longo das décadas.
Em Copacabana tem gente rica metida a besta, gente pobre
metida a rica, gente rica vivendo na pindaíba e gente pobre vivendo
melhor do que rico. Copacabana tem bandido e também tem polícia.
Tem polícia que se vende para bandido e bandido travestido de turista.
Existe os que ali trabalham mas moram no subúrbio, tem quem trabalha
em escritório, mercado ou vendendo muamba na praia, tem os que vão
à praia só para dourar o corpo, tem os que vão só para roubar os outros
e os que só querem beber uma água de coco. Alguns gostam apenas
de ali estar para fazer uma caminhada na areia, ou para dar um
mergulho e lavar a alma. A mais nova modalidade são os que só vão
até a praia de Copacabana para fazer “selfie”. Mostrar o belo na
desgraça da vida numa cidade falida pela corrupção talvez seja um
agente libertador do caos cotidiano.
Enfim, de cabo a rabo, mesmo que parte da classe política do Rio
de Janeiro trate o carioca com bastante descaso, Copacabana tem e
sempre terá sua magia, e só quem vive ou viveu suas delícias sabe o
que isso significa. Conheci Lilie em Copacabana, sentado no Molhobico
Bar e Petiscos, na rua Ronald de Carvalho. Na minha opinião, o bar
mais agradável do bairro não só por ser um reduto de torcedores do
Botafogo que é o melhor time do Rio de Janeiro, mas porque o bar
serve uma das melhores refeições que comi na vida feita pelas mãos de
uma ótima cozinheira e porque o Paulinho que é o responsável pelo
estabelecimento, também é botafoguense, como eu. Voltando à
personagem do próximo relato...Um dia, estava eu sentado no local
com o Paulo e mais dois camaradas quando a Lilie chegou. Muito
simpática e radiante como sempre, vestindo uma calça justa que
marcava o belo corpo moldado pela malhação forte e por um sem-fim
de cirurgias plásticas, com o intuito de deixá-la o mais próximo possível
da feminilidade da qual a travesti não foi agraciada ao nascer.
Já a conhecia ela de vista e por cumprimentá-la diversas vezes no
referido bar, sendo que ali era sua parada estratégica antes de ir
trabalhar depois da 22 horas. Nesse dia, no entanto, resolvi lhe
explanar acerca de meu trabalho para o livro e ela topou. Nós nos
encontramos em seu apartamento dois dias depois para realizarmos a
entrevista.

OLÁ! COMO E QUANDO FOI QUE VOCÊ COMEÇOU A FAZER


PROGRAMAS?

LILIE – Tem mais ou menos uns cinco anos.

E ALGO MUDOU DESSE TEMPO PRA CÁ?

LILIE – Ahhh muita coisa! Antes eu trabalhava pra uma sapatão, que
era minha cafetina, agora eu trabalho pra mim mesma já faz um tempo.
Outra coisa que mudou foi eu mesma, o meu corpo que não é mais o
mesmo, como tu pode ver. Pô tu me conhece aqui da área, né? Eu
agora tô muito mais feminina, eu tô até “castrada” (Disse isso e explodiu
numa gargalhada).

ENTÃO VOCÊ FEZ UMA CIRURGIA?

LILIE – Fiz. Uma cirurgia não, eu fiz algumas! Já faz uns meses que eu
fiz a última. É até por isso que eu tinha dado uma sumida aqui da área.
Mas agora eu tô de volta mais poderosa do que nunca.

ALGUMA COISA MUDOU TAMBÉM EM RELAÇÃO À CLIENTELA


PÓS-CIRURGIA?

LILIE – Ahh claro! Os olhares aumentaram, o assédio quando vou no


mercado, na farmácia, na praia. E os clientes na pista têm me abordado
bem mais do que antes. Olha só o tamanho das minhas tetas, olha o
tamanho da minha bunda! Homem safado gosta é disso!

E ONDE VOCÊ FAZ SEUS PROGRAMAS?

LILIE – Geralmente em algum hotel daqui da área mesmo ou vou na


casa da pessoa. Porque eu trabalho na rua, você sabe disso, e depois
de desenrolar no carro a gente parte pra alguns desses lugares que te
falei. No meu apartamento eu não faço programa nem fodendo!

E POR QUÊ?

LILIE – Olha, tem muita gente que pensa que quem é puta, quem faz
programa é idiota. Hoje em dia não dá mais pra confiar em ninguém. É
fazer tudo “com um olho no padre e outro na missa”. Tu nunca sabe se
o cara que tá contigo é polícia ou bandido, se tá armado ou na mão.
Tem vezes que o cliente é casado mas gosta de travesti, ou de puta e a
mulher dele vem atrás porque já está de campana e pronto...Aí tu já viu
né? É que nem aquele ditado, “cachorro que já foi mordido por cobra
tem que ter medo de linguiça”.

QUAIS OS TIPOS DE CLIENTES QUE TE PROCURAM?

LILIE – Tem de tudo meu, filho! Playboy de tudo que é canto, gente de
escritório, militar, gente da praia, gente casada, solteira, casais, até
mulher me procura pra fazer programa. E isso não é só comigo não!
Tem muita mulher que procura puta e até travesti pra fazer programa!
Tem coisa que é do arco-da-velha, menino. Se eu te contar tu nem
acredita.

POR EXEMPLO? PODE DIVIDIR ALGUMA DESSAS COISAS


COMIGO?

LILIE – Você sabe quem é o segurança que ficava aqui nessa rua, né?
Aquele que uma época até deu uns tiros pra cima de uma travesti na
Prado Junior. Tu sabe que ele arruma confusão com tudo que é travesti,
diz que não gosta de viado! Então, uma vez eu fui visitar uma amiga
que também é travesti e mora lá no Duzentão[17] e ela mora com mais
duas travesti. Cheguei lá e a gente estava na sala conversando e as
duas estavam fazendo programa com um cara que gemia e gritava que
eu acho que dava até pra ouvir do lado de fora. Quando o programa
terminou, quem saiu do quarto com elas? Ele, esse segurança! Tá bom
pra você? Vê se tu “dorme com um barulho desses”.

E COMO VOCÊ REAGIU A ESSA SITUAÇÃO?

LILIE – Tem tanta coisa nessa vida loka que nem dá mais pra ficar
abismada com nada que a gente vê! Mas pra quem conhece as atitude
desse cara, quem sabe a maneira que ela trata os gay, as lésbica e as
travesti se liga que ele é preconceituoso. Daí você vai e pega o cara
numa parada dessa? Mas o que tem mais é homem que é assim. Eles
param o carro, pegam a gente, tem uns que só querem dá o cu e
chupar rola e quando estão com os amigo, no trabalho e o cacete têm
esse discurso de ódio, posam de pai de família e tudo.

SÃO MUITOS OS CLIENTES QUE TE PEDEM PARA PENETRAR


ELES?

LILIE – Isso é muito do momento. Depende do dia e tudo mais. Mas


acontece bastante e, numa boa, não é nada que me deixa assustada.
Esse mundo em que eu vivo que é diferente do teu é isso aí mesmo! É
putaria, sacanagem, sexo, drogas e rock'n roll mesmo!!

E VOCÊ ACHA QUE NÓS DOIS VIVEMOS EM MUNDOS


DIFERENTES?
LILIE – Com certeza, meu amor!! Acorda, né!! Tu acha que dá pra
comparar a tua vida com a minha? Dá licença!

NÃO É UMA QUESTÃO DE COMPARAÇÃO. APENAS


ENXERGAMOS POR UM PONTO DE VISTA DIFERENTE. NA MINHA
OPINIÃO, NÃO EXISTEM PESSOAS QUE VIVAM NO RIO DE
JANEIRO E NÃO SEJAM ASSOLADAS PELAS MESMAS MAZELAS.

LILIE – É, tá bom, tem muito problema que é pra todo mundo e tá todo
mundo fodido. Isso é verdade, mas cara, eu sou trans, trabalho na pista
aí noite a dentro, é frio, calor, é chuva na cabeça, é cliente que não te
respeita, tem pessoas que não respeitam. Tem gente que passa e taca
ovo em cima. Aqui na pista, na madruga, quem manda no nosso corpo
é a polícia, sabia? Os polícia são donos de mim!! E aí?

VOCÊ TEM SONHOS?

LILIE – Eu quero poder trabalhar pra mim, mas só pra mim, entende?
Sem esse negócio de pertubação com polícia, com segurança de rua,
sem disputar ponto pra fazer programa. Porque é como eu te disse
ainda há pouco, os polícia são meus donos. Às vezes eu tenho que
pagar pra trabalhar pra eles. Igual os mototáxi de morro, que quando
não paga pra eles, paga pro tráfico. Se tô sem dinheiro, o pagamento é
com sexo, com boquete e por aí vai. Tem vezes que tenho que dar é
pra três, quatro polícia de uma vez só! Dentro de viatura, dentro das
cabine. O bagulho é tenso escritor...Vem pro meu mundo!

CAROLINA, 28 ANOS – VILA MIMOSA

A moça do próximo relato é mais uma das que fazem da mítica


V.M[18] ou Vila Mimosa seu “ganha pão” na difícil arte de sobreviver no
Rio de Janeiro e no Brasil. Passei por maus bocados para entrevistá–la,
como é de praxe aos que se aventuram a registrar algo dentro das
dependências desse local.
Não sei se os que ali frequentam percebem, mas todos são
monitorados o tempo inteiro por uma gama de seguranças, que são
parte do motor que faz esse grande prostíbulo a céu aberto funcionar. A
maioria policiais e bombeiros fazendo “bico[19]”, ex-policiais que ainda
portam arma, ou seguranças que são contratados para manter a ordem
que é estipulada dentro dos limites dessa área e acreditem se quiser,
muito da rotina da Vila Mimosa funciona melhor do que várias
repartições públicas ou privadas espalhadas por aí. Afinal de contas,
quem quer amanhecer com a boca cheia de formigas? É só não trepar
com alguma moça, ou beber todas e dar um calote. Simples assim!
No dia em que fui entrevistar Carolina, fui surpreendido por duas
situações inusitadas, sendo que a primeira de fato me fez tremer na
base. Eu a aguardava ao lado de fora da casa, que era ao lado da
principal “boca[20]” do lugar, quando uma outra prostituta que
trabalhava no mesmo local cismou com a minha cara. Ela estava
visivelmente alterada e era possível ver os resquícios de pó em suas
narinas. Dizia aos gritos que eu era P2[21] e que estava ali fazendo
investigação. Eu não tinha onde enfiar minha cara e todos que estavam
ao redor não paravam de olhar em minha direção. Alguns cochichavam,
outros saíam de perto. No fim das contas, ela se retirou, mas em
poucos minutos retornou com um dos seguranças e ambos vieram na
minha direção.

É esse aqui que eu te falei, ô! Ele é polícia! Tá aqui só filmando


a gente! Olha só o cabelinho dele cortado “reco”.

O homem me arrastou pra fora do beco e me imprensou contra a


primeira parede que viu. Puxou o revólver e me passou uma sugesta:

O que tu tá fazendo aqui, cumpadi?

Quando fiz menção de responder, uma moça morena vestindo


biquíni branco apareceu e perguntou ao segurança o que estava
acontecendo. Ela disse que me conhecia e que eu não era policial.
Disse pra ele me liberar e ainda me acompanhou de volta depois do
ocorrido. A mulher em questão tinha sido minha vizinha há anos e eu
nunca soube que ela era prostituta. Talvez na época – quase vinte anos
atrás – ela nem fosse mesmo, mas me lembro de que por diversas
vezes a via saindo por volta do cair da noite dizendo para uma outra
vizinha “Tô indo trabalhar!” No fim das contas, ela me salvou de uma
baita roubada naquele dia.

Outra situação que passei no mesmo dia, já quando me


encaminhava com a entrevistada para o local onde iríamos conversar,
foi uma briga entre dois homens que se digladiavam por um programa.
Eram dois homens de meia-idade que trocavam socos, chutes e
agressões verbais sem se importar com os que estavam ao redor. A
mulher disputada pelos dois – e que, imagino eu, deveria ser muito boa
no que fazia – tentava apartar a confusão. Quando por fim ela
conseguiu fazer com que os dois se desvencilhassem, foi a causadora
da maior tragédia. Enquanto ela acalmava um e o levava para longe
dali, o outro, furioso pegou o primeiro objeto que viu pela frente e
arremessou contra a cabeça dele que já tinha lhe dado as costas,
acompanhado pela mulher. Era uma dessas cadeiras metálicas de
boteco com a propaganda de uma cerveja qualquer. Não sei se o
homem sobreviveu ao ataque, mas a cadeira ficou em formato de “V” e
a quantidade de sangue que lavou o chão mais parecia o resultado de
uma perfuração de arma de fogo.
Quando conseguimos enfim nos ausentar do local, levei Carolina
até um restaurante o qual eu costumava frequentar na Tijuca. A moça
magrela, de cabelos negros e brilhantes, trajava um short jeans e uma
blusinha tipo top. Estava bastante maquiada e produzida. Disse para
mim que achava o momento um dos mais importantes da vida dela e
lhe perguntei o porquê.

CAROLINA – Poxa, sabia que eu nunca falei com um escritor?

MAS SER UM ESCRITOR NÃO É NADA DEMAIS. NA VERDADE, É


ATÉ DIFÍCIL LEVAR A VIDA COMO ESCRITOR. QUERO DIZER,
DIFÍCIL NO SENTIDO DE GANHAR GRANA SUFICIENTE PRA
VIVER ESCREVENDO LIVROS. ISSO ACONTECE COM POUCOS
ESCRITORES.

CAROLINA – Eu sei, mas caramba, eu já até li alguns livros, li poucos


livros, mas a gente não imagina que vai conhecer um escritor, e ainda
mais fazer parte do livro dele. Por isso que eu me produzi toda!

ENTÃO, CAROLINA, ONDE VOCÊ MORA?

CAROLINA – Eu moro na Rocinha, mas eu não nasci aqui no Rio não.


Eu nasci na Paraíba e vim pra cá quando tinha uns dez anos.

E QUEM VIVE CONTIGO NA ROCINHA?

CAROLINA – Mora só eu e minha menina. Ela tem 3 anos.

E COMO VOCÊ FAZ PARA CUIDAR DELA ENQUANTO TRABALHA?

CAROLINA – Eu pago uma creche que fica lá mesmo, dentro da favela.


Mas eu sempre passo a parte da manhã com ela e só saio pra trabalhar
depois do almoço e fico na Vila até umas sete horas da noite, no
máximo. É o tempo da minha vizinha pegar ela na creche pra mim.
Depois eu vou lá na casa dessa vizinha e pego minha filha.

BOM, SE VOCÊ CONSEGUE PAGAR UMA CRECHE ENTÃO É


PORQUE CONSEGUE DINHEIRO SUFICENTE PRA SUPRIR SUAS
NECESSIDADES, NÃO É?

CAROLINA – Olha, eu vô te dizer que tem até dia que é ruim...É ruim
porque o movimento é fraco, sabe? Mas no geral pra mim é bom,
porque eu consigo muito cliente. Eu sei que eu sou bonitinha, sou
pequena, sou novinha, com um corpo legal e tem homem que gosta
disso!

E VOCÊ, GOSTA DE QUE TIPO DE HOMEM? MAS DIGO, HOMEM


PRA SE RELACIONAR FORA DO TRABALHO?

CAROLINA – Ahhh eu gosto de cara carinhoso, desses que manda


flores, que me liga de manhã pra saber como é que eu estou. O último
que eu me relacionei foi lá da Vila mesmo. Conheci ele lá, ele vinha
sempre pra me ver. Tinha vezes que nem fazia programa comigo, só
sentava e conversava. Às vezes a gente saía de lá junto, comia alguma
coisa em algum lugar no caminho e eu dormia na casa dele. Nesses
dias eu deixava minha filha com a vizinha.

E VOCÊS CONTINUAM JUNTOS?

CAROLINA – Não, não. Não deu pra continuar porque ele foi preso. Ele
era bandido e eu nem sabia. Eu nem sei o que ele fazia, se matou
alguém ou não, mas ele era uma cara muito bom pra mim. O tempo em
que ficamos juntos foi o tempo mais feliz que passei com algum
homem.

E VOCÊS PERDERAM O CONTATO?

CAROLINA – Sim, depois que ele foi preso eu até ia visitar. Mas
chegou um tempo que ele não queria mais que eu fosse lá ver ele,
sabe? Ele dizia que era muita humilhação pra mim ter que passar por
revista, ficar o maior tempão na fila, embaixo de sol e de chuva. Já faz
mais de um ano que a gente não se vê.

E COMO ERA ESSA ROTINA NAS VISITAS?

CAROLINA – É verdade que é muita humilhação mesmo, porque, pra


esse pessoal que trabalha em presídio, as mulheres que vão ali pra
visitar os presos, que às vezes são até filhos, são marido, né, pra eles,
elas são tudo da vida do crime também. Sem contar que eles olham
tudo, até as partes íntima da gente, como se a gente fosse lixo. Um
tratamento muito ruim mesmo, tu não tem noção.

E COMO VOCÊ LIDA COM ISSO? COM A DISTÂNCIA? SENTE


SAUDADE DELE?

CAROLINA – Poxa, eu ainda sinto saudade dele sim. No começo eu


chorava e sentia até mais falta dele, mas agora tá até passando.
Porque bem ou mal eu tenho a minha filha pra cuidar e ter que dar
atenção, e ele fica de segundo plano. Hoje na verdade ele já nem está
mais de segundo plano, porque eu tô aqui fora e tô vivendo, né? Eu não
tô presa, na verdade o coração da gente é que sofre mais,o coração é
que parece que tá preso. Mas dor de amor, ela passa! É dolorido, mas
passa!

PS: Combinamos o término da entrevista para outro momento, pois


Carolina precisava ir buscar a filha. Entrei em contato com ela diversas
vezes via telefone, mas sem sucesso. Retornei à Vila Mimosa para
saber algo sobre ela, e uma outra moça que trabalhava no local me
disse que ela parou de trabalhar quando engravidou de um cliente.

SANDRA, 58 ANOS – COPACABANA

Conheci a transexual Sandra de forma comum e casual, como


milhares de pessoas se conhecem ao redor do mundo todos os dias,
enquanto uns se conhecem e apaixonam-se, outros se conhecem e
interagem, quando alguns sentem ódio mortal na primeira palavra
trocada. Mas isso não vem ao caso. Ambos estávamos na loja de
hortifrutigranjeiros da rua Prado Junior, e começamos uma conversa na
fila para o caixa.
Como morador de anos das imediações, eu sabia ela morava no
prédio acima do estabelecimento, e ela, como moradora de muito mais
anos que eu destas mesmas imediações, sabia bem quem eu era e o
trabalho de entrevistas que eu estava desenvolvendo junto a prostitutas
e travestis que faziam ponto em diversas áreas de Copacabana. Ela
praticamente se colocou dentro do meu projeto, do qual disse já ter
conhecimento pelo fato de duas de suas amigas já terem sido
entrevistadas por mim.
Sandra é uma pessoa de meia idade do tipo que os cariocas
dizem passar batida [22] por onde anda. É morena, bastante alta e com
um corpo escultural. No entanto, creio que seu porte de madame de
Copacabana deixa a maioria das pessoas que especulam se ela é
travesti ou mulher com uma pulga atrás da orelha. Sempre bem vestida,
abusa de vestidos longos que em geral são bastante decotados e
abertos nas costas, deixando à mostra a pele sempre bronzeada. Por
onde ela caminha chama muita atenção, seja por seus atributos físicos
ou pela sua classe. Sandra sabe se expressar muito bem, e foi inclusive
seu tato que me ajudou numa situação bastante complicada um tempo
depois de ter-lhe entrevistado.
Era uma sexta-feira, dia da abertura das Olimpíadas de 2016 na
cidade do Rio de Janeiro. Eu estava passando por um momento de
estresse contínuo em virtude do projeto para a exposição “Marcas na
Natureza[23]”, ser realizada no início de 2017 no Galpão das Artes
Urbanas, na Gávea. Este foi o último trabalho de arte que fiz como
artista plástico antes de me migrar do Brasil. No fim da tarde, havia
acabado de produzir uma das telas após quatro cafés e desci do
apartamento onde morava com o intuito de ir ao banco sacar dinheiro
para jantar no restaurante Joaquina, no Leme.
As ruas estavam em polvorosa, e principalmente na zona sul da
cidade tudo parecia um clima de festa tal como o réveillon carioca,
tirando o fato de que parecia que os efetivos de segurança da cidade
(polícias e forças armadas) estavam todos voltados só para a área
nobre. Para mim, a sensação era um misto de alívio e angústia. Para
gente preta que anda de chinelo, bermuda e camiseta apenas por se
sentir mais confortável, como eu, polícia demais é sinônimo de
possíveis problemas dentro de um quadro lógico de rótulos sociais que
nos são atribuídos, e foi dito e feito.
Dirigi-me a um Banco na avenida Nossa Senhora de Copacabana
e, logo ao entrar no local, me encaminhei ao caixa eletrônico. Percebi a
movimentação apressada de uma senhora ao meu lado, que parecia
estar aflita e ao olhar em direção à entrada do estabelecimento me
deparei com dois policiais que estavam parados, olhando diretamente
para mim, um deles apontando a pistola em minha direção. Levantei
minhas mãos e permaneci impassível como uma rocha, no que o
homem tocou minha cintura disse.

Está fazendo o que aqui?


Vim ao banco sacar dinheiro – respondi.
Deita no chão e me dá tua carteira – disse o policial, me
aplicando uma rasteira.

Retirei a carteira do bolso com um pouco de dificuldade e lhe


entreguei enquanto o outro agente me apontava seu revólver. Na
posição em que me encontrava, de bruços e com as mãos à cabeça,
pude ver todos os meus documentos e cartões caindo no chão. Logo
após ouvi um barulho mais alto, que era o som de minha própria
carteira caindo do outro lado. Percebi que muitas pessoas observavam
a cena dentro da agência bancária e ao lado de fora. Em minutos, me
tornei a atração do “interessante” circo de violência e medo que move a
megalópole carioca e faz internet, redes sociais, jornais, TV e rádio
lucrarem tanto com o sensacionalismo que nos é vendido todos os dias
a preço de banana. Digo aqui “a preço de banana” como uma “ironia
inapropriada” sendo que muito da barbárie que é transmitida pelos
meios citados é proveniente de uma violência desenfreada que em
muitos casos termina em derramamento de sangue.
O policial se abaixou um pouco e perguntou-me:
– Onde é que tu mora?

Neste momento ouvi o som da voz de Sandra, que se dirigia aos


policiais e disse em alto e bom som:

– Ele mora aqui! Na rua atrás do banco!

Ela se pôs entre meu corpo no chão e os dois agentes e disse que
o que estava acontecendo ali era um equívoco. Essa é a famosa hora
do “deixa disso”, em que muita gente intervém a favor ou contra, e a
confusão só não foi formada pela diplomacia da travesti que ainda disse
ser minha amiga e que eu era uma pessoa séria, um escritor e um
artista plástico bastante conhecido no bairro. Saímos da agência e
caminhamos alguns metros conversando. Ela dizia o quanto estava
preocupada com os rumos que a cidade e o Brasil estavam tomando e
sinceramente, nem sei se os dois sabíamos naquele momento o que
ainda estaria por vir nos anos seguintes. No fim das contas, me
perguntou sobre como andava os trabalhos com os livro e se sua
entrevista a mim fornecida, e que segue abaixo, estava a contento.

SANDRA, A TUA HISTÓRIA COM A PROSTITUIÇÃO É UM POUCO


ATÍPICA, NÃO É?

SANDRA – Sim, sim! Quero dizer, eu vivi esse mundo louco aí né, mas
a diferença é que foi num outro tempo e minha vida acabou tomando
um rumo diferente. Muito embora pra mim, mesmo que tenha sido num
outro tempo, a situação da prostituição ela não muda. A forma como ela
se dá, as motivações, os riscos e tudo mais.

QUANDO VOCÊ COMEÇOU A TRABALHAR VENDENDO O TEU


CORPO?

SANDRA – Olha, isso faz tanto tempo, menino!! (Deu uma gargalhada).
Eu era bem mais jovem mas nem tão jovem assim. Tinha 22 anos.
E ONDE VOCÊ TRABALHAVA?

SANDRA – Eu ainda não morava em Copacabana. Morava no subúrbio


com minha família e fazia viração[24] na avenida Atlântica e em frente à
antiga Help[25].

E NAQUELA ÉPOCA? COMO ERA A DINÂMICA DO TRABALHO?

SANDRA – Era muito diferente porque, é como eu te disse no início, os


tempos eram outros, mas o preconceito das pessoas era o mesmo
desse que está aí hoje em dia. Tinha os caras que davam porrada em
puta e em travesti e os caras que gostavam de bancar de maridos
recatados com esposa, família, mas que iam procurar as travecas pra
levar dedada no cu, pra ser fodido. A diferença pra mim é que,
atualmente esse tipo de gente tem um discurso de ódio que é
compartilhado com outras pessoas que pensam igual e é mais
potencializado pela internet, redes sociais e essas coisas, né. Mas dava
pra ganhar dinheiro e levar a vida, que é o que a maioria das pessoas
que enveredam por esse caminho querem, nada diferente de tanta
gente por aí que trabalha. Tentar sobreviver, sabe?

E COMO TUA VIDA TRILHOU OUTROS CAMINHOS DENTRO


DESSE UNIVERSO?

SANDRA – Na época eu já morava aqui em Copa e dividia aluguel com


outras trans lá na rua Bolívar. Eu estava trabalhando em frente à Help e
conheci lá o meu marido, que já é falecido. Fizemos um programa e ele
começou a retornar lá pra me ver. Me levava pra casa depois da gente
transar ou a gente ficava no apartamento dele mesmo. Ele era um
italiano que morava no Brasil já fazia alguns anos. Alto, loiro, forte...ele
era um homem muito bonito. Depois que ficou mais velho e adoeceu
perdeu muito disso, mas continuava um homem muito carinhoso, muito
atencioso. Foi o melhor homem com quem eu me relacionei.

ELE TE COLOCOU ALGUMA RESTRIÇÃO EM RELAÇÃO AO TEU


TRABALHO?

SANDRA – Na verdade nunca fez nada disso! A coisa aconteceu de


uma maneira muito natural porque a gente começou a namorar mesmo,
entende? Queríamos passar as noites juntos, dormindo de conchinha,
assistindo televisão igual a qualquer casal. Com o tempo eu
simplesmente deixei de ir trabalhar na rua à noite porque preferia ficar
em casa com ele. A gente saía pra ir à praia, pra jantar, pra ir ao
cinema. E pra ser sincera com você, eu já estava cansada daquela vida
que eu levava.
E O QUE TE DEIXAVA MAIS CANSADA COM A VIDA QUE ESTAVA
LEVANDO?

SANDRA – Olha, eu até acredito que tenha meninas que gostem de


levar esse tipo de vida, que encaram como um trabalho comum, normal,
mas a gente sabe que a coisa é muito romantizada, né? A coisa não é
um mar de maravilhas e com certeza tem muito mais garota de
programa que espera por oportunidades para parar de fazer programa
do que as que terminam seus dias nessa atividade. Você ter que se
deitar pra trepar com uma pessoa que nunca viu na vida, que não nutre
nenhum tipo de sentimento a não ser ver nessa pessoa um cifrão não é
uma coisa simples assim. Sem contar outras situações. Tem cara que
chegava tão cheirado de pó que não conseguia ficar de pau duro nem
pra bater punheta!

O QUE VOCÊ FAZIA EM SITUAÇÕES COMO ESTA COM CLIENTES


ALTERADOS?

SANDRA – Eu deitava lá na cama, ou dentro da banheira do hotel, e


ficava lá tomando um drink enquanto eles me chupavam.

E VOCÊ É OPERADA?

SANDRA – Não, nunca cogitei isso. Eu até tinha vontade de operar no


início porque queria ficar cada vez mais feminina. Numa época em que
passamos morando na Itália, eu quase operei, mas o meu marido
preferia que eu não operasse.

ERA UMA RELAÇÃO QUE PARECER TER SIDO DE BASTANTE


RESPEITO NÃO É?

SANDRA – Sim, sim! A gente se respeitava demais. E olha, até


algumas meninas que eram trans e moravam comigo frequentavam
nosso apartamento. Até hoje algumas delas que ainda estão vivas me
visitam...Todo mundo velha, mas sobreviventes e cheias de histórias pra
contar!

QUAIS FORAM AS CIRCUNSTÂNCIAS DAS MORTES DAS QUE SE


FORAM?

SANDRA – A maioria morreu por causa de doença. A AIDS[26] mesmo


matou muitas delas. Teve uma que morreu de sífilis[27], outras
assassinadas nas ruas, algumas morreram em outras cidades e até em
outros países.
AINDA EXISTEM AMIGAS DESSA ÉPOCA QUE CONTINUAM COM
OS PROGRAMAS?

SANDRA – Tem umas duas que ainda continuam nessa vida. Até
porque tem muito homem que a preferência é por travestis que sejam
mais velhas. Existe mercado pra isso. Assim como tem homens que
gostam de mulheres mais velhas existem aqueles que curtem travestis
mais velhas. Mas a febre de hoje são as CDzinhas[28]!! Os homens
gostam mais delas hoje em dia.

E O QUE SÃO AS CDZINHAS?

SANDRA – São umas trans novinhas, entre 16 e 18 anos. Parecem


bonequinhas, com corpinho malhadinho, bronzeado de praia,
magrinhas. Isso é coisa nova desses tempos de hoje, melhor abafar o
caso[29]! (Gargalhadas)

DEPOIS QUE SEU MARIDO FALECEU VOCÊ NUNCA SE SENTIU


TENTADA A VOLTAR A FAZER PROGRAMAS?

SANDRA – Não porque eu realmente não tenho mais necessidade


disso. Como eu te disse, nem todo mundo que está nesse caminho quer
permanecer nele, e eu não queria ficar. Deixando claro que eu nunca
imaginei encontrar o gringo dos sonhos que se apaixonaria por mim e
me tiraria dessa vida. Tem meninas que até têm esse sonho, mas
comigo aconteceu diferente. Eu e meu marido nos apaixonamos. Ele
era um homem rico, me deixou esse apartamento e mais uns três que
eu administro e consigo viver bem com o dinheiro do aluguel. Não me
falta nada e eu sei lá, sabe, mesmo que eu passasse por dificuldades
hoje em dia, sinceramente eu não voltaria mais pra essa atividade! Até
porque eu também já estou velha. Estou no tempo de descansar!

E QUAIS SÃO SEUS PLANOS PARA O FUTURO?

SANDRA – Olha, isso vai até soar meio estranho, mas o meu futuro
está aqui, no presente. Quando eu era mais jovem, pensava muito em
como seria a vida hoje, com a idade que tenho e no tempo em que a
gente tá vivendo. Eu nem achava que sobreviveria. Morar no subúrbio,
principalmente, é algo muito pesado para as pessoas que moram ali e
eu morava no subúrbio, sendo travesti, transitando nas madrugadas. Eu
sou um milagre...É um milagre a gente estar aqui levando esse papo.
Na noite de hoje mesmo vão ter travestis e mulheres que são prostitutas
morrendo na rua ou em alguma quebrada por aí. Porque essa é a
realidade dessa vida. Elas saem montadas[30] pra trabalhar à noite e
não sabem se voltam.

ELOÁ, 34 ANOS – COPACABANA

A chuva tinha dado uma trégua naquela manhã de segunda-feira.


Subi em minha motocicleta e parti com destino ao hotel Bambina, em
Botafogo. Logo ao chegar no local, Eloá me aguardava na calçada, em
frente ao estabelecimento.
Combinamos no dia anterior por telefone minha ida para encontrá-
la após seu último programa. A ideia inicial era realizarmos a entrevista
numa padaria na mesma rua, mas ela me perguntou se podia levá-la
até seu apartamento em Copacabana, pois, segundo relatou, precisava
dar uma olhada em como estavam seus filhos. Entreguei-lhe o capacete
extra e partimos.
Ela me convidou para subir e aceitei de pronto. Na subida, ela
demonstrava preocupação com as crianças. Eloá tem três filhos: um
menino de 14, uma menina de 8 e um bebê de 2 anos de idade.
Quando ela abriu a porta do apartamento, apenas o mais velho e a
menina de 8 estavam acordados. A garota correu para os braços da
mãe com um semblante de felicidade que só os que ainda têm suas
mães vivas e se relacionam bem com estas sabem como é.

Mãe, a senhora vendeu muita sopa?


Sim, filha mamãe vendeu muita, muita sopa pra comprar
Danone pra você e pros seus irmão, minha flor! A mulher disse
isso e beijou a bochecha da pequena.

O garoto, muito simpático, apertou minha mão e perguntou se eu


gostaria de tomar um café. Aceitei e, enquanto aguardava sua mãe
retornar do quarto, fiquei observando o ambiente. O apartamento é o
que alguns chamam carinhosamente de “apertamento”. Um local que,
muito embora seja aconchegante, parecia ser muito pequeno e deveras
organizado para uma moradia habitada por três crianças. Num dos
porta-retratos que ornamentavam uma cômoda, jazia a foto de quem
certamente era o pai de pelo menos um dos filhos da mulher, e isso era
atestado pela incrível semelhança física do jovem que estava na
cozinha e o homem com olhar distante na fotografia no Jardim Botânico.
A única coisa fora do comum para mim foi a quantidade de baratas que
estavam mortas pelos cantos. Apesar de estarem sem vida, algumas
pareciam frescas e coradas, resquício cabal da chacina com o inseticida
que repousava numa mesinha de centro e que as crianças usaram na
noite anterior. Outras estavam secas e envoltas em bolas de poeira,
faltando membros e antenas, como se estivessem ali por longos dias, e
era percepetível observar que essas, assim como uma grande
quantidade de farelo de pão e embalagens de doces, só faziam um
movimento migratório dentro dos cômodos.
Meu café foi servido acompanhado de biscoitos cream cracker
num pratinho de plástico cor- de-rosa. Um manjar dos deuses numa
manhã em que eu só tinha bebido um café ralo e fumado um cigarro
para começar o dia. Após me servir o alimento, o adolescente sentou-se
numa poltrona com uma Bíblia Sagrada na mão. Ele não lia em voz alta,
mas parecia estar muito atento ao que meditava no livro seguido por
muitos e não tolerado por alguns. A mãe retornou e parou ao meu lado.
Retirou um dos biscoitos do prato e mordiscou um pedaço.

– Isso aqui tá meio murcho, não tá não?


– Não, está ótimo. Isso aqui é comida! Respondi.

Pelo pouco que eu e Eloá já tínhamos conversado antes de a


entrevista ocorrer, acredito que compartilhamos de uma experiência de
vida bastante parecida, principalmente porque somos de origem pobre.
Para pessoas que já passaram fome, ter o privilégio de comer um
simples prato de sopa com uma fatia de pão dormido é algo para se
sentir agraciado, pois, como disse a escritora e poetisa Carolina Maria
de Jesus, “a tontura da fome é pior que a do álcool”, e só quem passou
fome entende a profundidade dessa frase. Ela disse que o bebê ainda
estava dormindo, enquanto observava de forma fixa o filho mais velho.

– Ele passa a maior parte do tempo assim, o meu filho. A igreja


salvou ele! E tem gente que fala mal de crente, de Jesus, que a igreja é
isso e aquilo, mas pelo menos meu filho não é viciado e nem envolvido
com nenhuma coisa ruim. A vida dele é essa aí. Ele já prega e tudo na
igreja sabia? Faz parte do grupo de adolescentes.

Ela disse isso com um orgulho notável, que só as mães tem pelos
filhos quando as famílias se relacionam bem.

– O neném ainda está dormindo. Isso é bom para podermos ter


nossa conversa, né? Eu não sei quanto tempo mais ele vai dormir, mas
acho que dá pra te falar tudo o que você precisa.
Enquanto eu preparava o gravador, o garoto tinha se ausentado
da sala para colocar o uniforme escolar e ela orientava a menina mais
nova a ter atenção com a aula. O jovem reapareceu no cômodo, deu
um beijo na mãe, se despediu de mim e saiu de mãos dadas com a
irmã. Essa foi a deixa para começarmos a entrevista.
A TUA FAMÍLIA É MUITO BONITA. A FORMA COM QUE SE
CUIDAM. SEMPRE FOI ASSIM?

ELOÁ – Mais ou menos. Na época que o pai deles era vivo era meio
complicado. Ele tinha um problema sério com bebida. Às vezes, ele
saía e só voltava depois de dois, três dias. Era uma merda. A pior fase
foi quando a gente morava lá no “duzentão”. Ali eu só faltava morrer de
aflição porque eu tava grávida da menina e o meu mais velho ainda era
pequenininho, e o duzentão tu sabe como é, né? Era gente entrando e
saindo pra comprar droga, briga, batida policial quase todo dia! Naquela
época eu comi o pão que o diabo amassou.

VOCÊ CONHECEU SEU FALECIDO MARIDO NA ÉPOCA DOS


PROGRAMAS?

ELOÁ – Sim. Eu conheci ele na pista. Na época eu fazia ponto em


frente ao Meia Pataca, aqui em Copacabana. Eu fiz vários programas
com ele e a gente acabou começando a namorar. Eu sempre gostei
muito dele. Ele era um homem muito bom, e mesmo com os pobrema
que ele tinha com o álcool, nunca me agrediu e nem às criança. Pra
você ver como são as coisa, esse apartamento aqui foi herança da
família dele e logo quando eu engravidei do primeiro filho ele passou
pro meu nome. Eu levo a vida no maior aperto, mas pelo menos um teto
a gente tem em cima da cabeça da gente!

COMO VOCÊ COMEÇOU A FAZER PROGRAMAS?

ELOÁ – Ahhh, isso foi coisa da minha irmã na época. Ela já fazia
programa, sabe? Ela parece pra caramba comigo, mas é mais bonitona
que eu, é mais cavalona[31], é toda grandona ela. E ela falava pra mim
que seria legal ir com ela, que eu ia arrumar grana e tal, e um dia
acabou que eu fui, e fui ficando, ficando até que ela mesma saiu dessa
vida aquela filha da puta e eu continuei (Risos).

ELA NÃO FAZ MAIS PROGRAMAS ATÉ HOJE?

ELOÁ – Nada, menino. Minha irmã tá casadinha, com casinha, com


maridinho e está levando a vida desse jeito. Ela tá tranquila, mas
assim...O marido dela é traficante.

E VOCÊ? COMO É PRA TI TER SAÍDO DESSA VIDA E TER


RETORNADO?

ELOÁ – Eu vou te falar verdade: dizer que gosto é mentira. Quando eu


parei com os programas, foi como ter uma carta de alforria. Eu tenho
filhos, tenho uma menina, e sei lá, é difícil fazer o que eu faço e
imaginar minha menina seguindo esse caminho. Mas o que eu faço, eu
faço por eles, no fim das contas. É conta pra pagar, comida pra botar na
mesa e eu não tenho estudo, quando consigo um trabalho é aquilo,
né...Um salário que não dá pra nada! É muita sacanagem, mas retornar
pros programas é complicado demais mesmo, sem contar o perigo que
a gente passa na rua.

EU PERCEBI QUE A SUA FILHA TE PERGUNTOU PELAS “SOPAS


QUE VOCÊ TINHA VENDIDO”. PRA ELES, VOCÊ TRABALHA NO
COMÉRCIO DURANTE À NOITE?

ELOÁ – Na verdade eu já tinha a barraca de sopa fazia um tempo,


desde antes de o pai deles morrer. Quando ele ficou doente, eu
comecei a trabalhar na sopa e dava uma grana boa. Mas depois o
dinheiro começou a ficar curto, e veio essa crise aí...As pessoa até
tavam comprando, mas o dinheiro diminuiu muito e com três crianças
não dá, cara! É muito pouco! Dei um tempo ainda antes de voltar com
os programa porque o menorzinho era muito bebezinho ainda, mas
depois de uns meses pra cá não teve jeito. O meu mais velho mesmo,
ele sabe que eu sou puta!

ELE SABE? E COMO FUNCIONA ISSO NO COTIDIANO DE VOCÊS?

ELOÁ – Ele não me julga não, sabe? Ele é um filho muito bom, o meu
filho! E eu sei que ele ora muito por mim. Ele faz muito propósito por
mim na igreja e isso pra mim já basta. Mas eu acho complicado porque
sei que tem os outros meninos da escola e da favela onde a gente
morava que zoa com a cara dele, fala que “a mãe dele é piranha” e eu
não sei como a cabeça dele fica com isso, né. Ele é só um adolescente!

QUAL É O TEU MAIOR SONHO HOJE?

ELOÁ – Primeiro é ver os meus filhos todos bem encaminhados. A do


meio, a menina, é a que mais me dá trabalho, porque não gosta de
estudar, não gosta de ir pra escola e isso me deixa revoltada. Mas eu
sei que ela é criança e isso muda com o tempo. E eu acho que ela vai
melhorar, mas de resto, criar meus filhos da melhor maneira possível e
quem sabe, depois, ter um pouco mais de tempo pra mim, pra me
cuidar e poder aproveitar um pouco da vida quando estiver com mais
idade.

TETÊ, 38 ANOS – CENTRO – RJ


Assim como acontece na zona sul carioca e em diversos locais
pelo Brasil e pelo mundo, as pessoas que transitam pelo Centro do Rio
de Janeiro não imaginam a quantidade de vida e vivências que habitam
esta área da cidade. Entre a imensidão de prédios que permeiam
pontos turísticos como a Lapa, a Catedral Metropolitana de São
Sebastião e outros locais, existem os que habitam prédios e até os ditos
“vazios urbanos[32]”, com finalidades que extrapolam somente ter um
lugar para se abrigar do frio e da chuva.
Eu me lembro que lá pelos idos dos anos 2000, por exemplo, o
Edifício Central não saía da boca do povo – pelo menos do povo
considerado “de Marinha” – e era um dos locais mais requisitados do
Centro da cidade. Nesse período, eu, que ainda era militar dessa força,
sempre ouvia pelos corredores do navio conversas que giravam em
torno desse edifício e da qualidade das prostitutas que ali faziam
programa. Na época, eu pensei em como isso poderia se dar num local
que é conhecido pelo fato de abrigar predominantemente lojas de
reparos e vendas de artigos eletrônicos, mas – pasmem – a coisa ia
muito além disso.
Na época, diziam alguns que parte do prédio era um antro de
prostituição que tinha em seu esquema de funcionamento uma espécie
de “hierarquização de putas”, o que não é nada incomum numa
sociedade de classes como a nossa. Segundo pessoas que
trabalhavam comigo naquele tempo e que eram frequentadores
assíduos dali, as mulheres se dividiam por andares. Quanto mais alto
fosse o andar, mais caro era o programa, e assim sucessivamente.
Quando preparei o projeto para esse livro, estive lá na tentativa de
captar alguém para compor as entrevistas, contudo, fiquei sabendo que
a prostituição por lá tinha se findado. Pelo menos da forma descarada
que era.
São muitas as mulheres, rapazes e cafetões que alugam até salas
comerciais em edifícios de pompa para servir de “mocó[33]” para
programas. Isso não é nada novo, ao menos aos que se apropriam da
cidade de forma a conhecer minimamente algumas dinâmicas da vida
social. Os puteiros de luz vermelha são apenas parte da engrenagem
que move esse bizarro parque de diversões da “Gotham City[34]”
carioca, que precisa bem mais do que o “Batman do Leblon[35]” pra
trazer esperanças aos seus moradores.
A entrevistada da vez é uma das habitantes do Centro do Rio. Ela
mora na rua do Rezende, uma das ruas comuns que cortam a icônica
avenida Mem de Sá, na área da Lapa. Nós nos conhecemos num
desses dias que faz tanto calor que é impossível protelar aquela cerveja
do fim de tarde. Eu bebia algo num bar quando ela saiu de um
mercadinho em frente ao estabelecimento e se dirigiu no sentido da rua
do Riachuelo. Eu já a tinha visto fazendo ponto algumas noites em
frente ao prédio do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB)[36] e
sabia que poderia ser uma das entrevistadas pelo interesse que tinha
demonstrado em meu convite a uma das colegas que estavam ao seu
lado. Como já tinha pago a bebida, deixei tudo para trás e segui a
travesti.
Consegui abordá-la na portaria do prédio onde residia, mas dois
homens com uniforme da empresa de conservação do edifício já
estavam em uma conversa com ela. Percebi que ela já tinha notado
minha presença a distância e me reconheceu, e ainda ouvi-la dizer para
um dos homens o número do apartamento e que ele poderia subir às
cinco da tarde, que estaria lhe esperando. Ambos passaram por mim
com o semblante envergonhado daqueles que vivem a vida de mentira
dos que confundem suas falas com seus atos, e Tetê se dirigiu a mim.

E aí escritor, como você está?


Estou bem! – respondi, já emendando a deixa em meu
interesse em estar ali.
E então, se lembra da minha proposta naquele dia à noite para
a sua amiga? Você está interessada em fazer parte do meu
trabalho?

Ela nem pestanejou e imediatamente me fez o convite para subir.


Aceitei-o de pronto, munido apenas de meu inseparável bloco de
anotações. O apartamento ficava no sexto andar, e era possível ouvir o
som estridente de trânsito e vida que vinha da rua lá embaixo. A
habitação consistia em três cômodos minúsculos, sendo a saleta
equipada apenas de uma poltrona tipo scarpinelli e uma mesinha de
centro de madeira, capaz de comportar no máximo duas pessoas. A
cozinha ficava espremida no canto esquerdo, dividindo a parede com o
que parecia ser o banheiro. No quarto, apenas uma cama desarrumada,
uma mesinha de cabeceira e diversas fotos que ornamentavam a
parede. Uma única janela era a responsável por lançar a luz do sol e
renovar o ar do local, que com toda simplicidade podia ser chamado de
lar por pessoas trabalhadoras que só almejam esticar os ossos nas
horas vagas. Os últimos raios de sol daquele fim de tarde se lançavam
da cama no chão de tacos puídos, e a travesti me olhava fixamente,
com um lençol nas mãos.

Desculpa a bagunça, é que eu acabei de fazer um cliente[37]


aqui antes de descer pra ir no mercadinho!
Eu é quem te peço desculpas! Não tínhamos programado nada
pra hoje e te abordei na rua sem saber qual era a tua
disponibilidade – respondi.
Não, menino, não tem problema não. Se te convidei pra subir é
porque eu tô com tempo. E é melhor até ser hoje, porque a
gente não sabe o dia de amanhã, né? O problema é que eu
desci e me esqueci que estava esse trelelê todo aqui e isso fica
até feio!

Disse apontando para a desorganização da cama que, após ter o


lençol retirado, revelava duas camisinhas usadas, que ela rapidamente
recolheu e colocou na minúscula lixeira do banheiro, com uma vergonha
latente no semblante.

Sentamo-nos na pequena sala. Um de frente para o outro, com


apenas a mesa separando nossos corpos. Tetê tem um corpo
escultural, farta em seios e em bunda, pernas morenas com coxas
roliças e cabelos pretos longos até a cintura. Se não fosse pelas mãos
masculinas e gogó protuberante, eu a entrevistaria achando que de fato
se tratava de uma mulher.

ENTÃO VOCÊ É VIAJADA, NÃO É?

TETÊ – Aiii!! Como é que você sabe, menino? Já andou entrevistando


outra que fofocou tudo da minha vida, né?

NÃO. NA VERDADE SÓ OLHEI AS FOTOS QUE ESTÃO NA PAREDE


DO QUARTO.

TETÊ – Poxa, tu é bem observador, hein?

SÃO OS OSSOS DO OFÍCIO. SOU ASSISTENTE SOCIAL, ALÉM DE


ESCRITOR, E ACREDITO QUE AMBOS TEM UM CARÁTER MUITO
INVESTIGATIVO.

TETÊ – Ah, isso é verdade! Parece até coisa de polícia, né?

NEM TANTO. MEU PROPÓSITO É OUTRO. QUAIS SÃO OS LOCAIS


NAS FOTOS?

TETÊ – Sabe que é tanta foto que depende de qual você esteja falando,
mas assim, tem foto minha ali na Holanda, na Inglaterra, na França e na
Alemanha.

VOCÊ MOROU EM TODOS ESSES LUGARES?

TETÊ – Sim, praticamente todos. Passei mais tempo num lugar, menos
tempo em outro. Às vezes sozinha, outras vezes acompanhada, mas
tive a oportunidade de conhecer todos esses lugares e até mais um
pouco, graças a Deus.
E QUAL A TUA HISTÓRIA COM ESSES PAÍSES?

TETÊ – Eu fui casada com um gringo. Ele era alemão e trabalhava


numa multinacional que tinha filiais num monte de lugar pelo mundo. Só
não lembro do nome da firma, desculpa.

VOCÊS SE CONHECERAM AQUI OU FORA DO BRASIL?

TETÊ – A gente se conheceu aqui num carnaval. Aqui no Rio mesmo.


Eu acho que ele tava aqui só pra farra, sabe? Veio pro Brasil pra fazer
sexo mesmo, turismo sexual.

MAS ENTÃO COMO VOCÊS CHEGARAM AO PONTO DE SE


CASAR?

TETÊ – Porque a gente acabou ficando muito afim um do outro. Ele foi
até conhecer a minha família na zona norte. Almoçou três domingos
direto com a gente. Comeu feijoada, arrumadinho[38] e peixe na brasa.
A minha família se amarrou na dele.

E VOCÊ FAZIA PROGRAMAS NA ÉPOCA EM QUE CONHECEU


ELE?

TETÊ – Tu acredita que não? Eu não fazia programa antes de conhecer


ele. Eu comecei a mudar o meu corpo pra mim, sabe? Eu gosto de
parecer assim como eu sou e na época eu não me prostituía.

E QUANDO COMEÇOU A SE PROSTITUIR?

TETÊ – Comecei depois de já ter me separado dele, lá na Alemanha.


Mas demorou muito até isso acontecer...A gente se separar, no caso. O
tempo que eu passei com ele foi só com ele. Não tinha outro homem.

E PORQUE VOCÊS SE SEPARARAM?

TETÊ – Porque ele era uma pessoa muito difícil. A cama com ele era
boa, ele me deixava comer ele direto, e eu gosto de foder cu de
homem, me dá tesão mesmo, e ele gostava mais de dar do que de
comer. Mas o negócio é que ele sumia. Eu ficava sozinha em casa e
não sabia por onde ele andava. Ele chegava bêbado direto em casa, e
daí, quando era inverno então que piorava tudo. Se tu já foi na Europa
ou em lugar que tem neve deve saber como é. É muito frio, tudo vazio
na rua. Eu passei uns três invernos com ele antes de a gente se
separar, mas sabe, eu sentia muita falta do verão, do sol. Eu gosto de
suar, gosto de ficar peguenta, de ir pra praia e me bronzear. Eu fiquei
até meio deprimida lá, ele me pagou psicólogo e tudo. Ele gostava de
mim, do jeito dele, mas gostava!

ELE ENCAROU BEM A SEPARAÇÃO?

TETÊ – Olha, vou te dizer que nunca mais vi ele. Não sei como ele
levou isso não, mas eu fui embora. Eu fui embora num dia em que ele
saiu pra trabalhar. Quando ele voltou, eu já não estava mais lá fazia
tempo. Até porque ele foi fazer uma viagem de trabalho, e nessa eu não
aguentei e puxei meu carro. Eu acho que nem na Alemanha eu estava
mais quando ele voltou pra casa.

VOCÊ ENTÃO RETORNOU AO BRASIL?

TETÊ – Não, não! Olha, menino, foi um rolo tão louco que eu me meti!

O QUE ACONTECEU?
TETÊ – Eu saí de casa com um dinheiro bom que eu guardava. E como
eu andava muito com ele pela cidade lá...A gente morava em Berlim,
né, e eu sabia onde ficavam as casas de massagem, casa de
prostituição. Daí, depois de pouco mais de um mês, eu fui numa pra ver
como era. Acabei ficando! O dinheiro que eu tava foi minguando e eu já
tinha colocado na cabeça que não voltava pra casa dele. Como eu tinha
alugado um apartamento perto do centro da cidade, eu fiquei fazendo
programa no lugar, mas um dia teve uma batida da polícia lá e eu me
ferrei.

POR QUE?

TETÊ – Lá na Alemanha, em muito lugar, quem é prostituta – prostituta


e trans – a gente pode fazer programa, mas tem tipo como se fosse um
cadastro, é uma licença pra trabalhar, sabe? E eu não era cadastrada.
Daí quando os polícia me pediram a documentação, eu não tinha. Até
me disseram que eu tinha um tempo pra apresentar, mas eu fui embora
de lá antes de eles voltarem.

E FOI PRA ONDE?

TETÊ – Eu fui dali pra Frankfurt e de lá peguei um voo pra Holanda.


Fiquei um ano e meio na Holanda, só depois retornei pro Brasil.

E DESDE QUE VOCÊ VOLTOU PRA CÁ VIVE DOS PROGRAMAS


QUE FAZ?

TETÊ – Olha, eu vou te dizer que não. Eu vivo com alegria, mesmo que
tenha que rebolar muito pra viver, mas eu não acho que eu “vivo dos
programas” como você falou, porque isso só me dá a grana pra poder
comer, beber e vestir. O bom é que eu passei a gostar disso, sabe? Eu
gosto de sentar numa rola e eu já te disse que gosto de comer cu de
homem. Eu sinto um prazer que eu nem sei te dizer como é que é!

E TEM ALGUM TIPO DE HOMEM QUE TE INTERESSA MAIS NO


GERAL?

TETÊ – Ahhhh eu gosto de preto! Preto com uma sunguinha branca,


então...Hummnnn!

E VOCÊ SE SATISFAZ COM OS CLIENTES?

TETÊ – Com certeza! Eu gozo com praticamente todos eles. É muito


difícil ter um que não me faz gozar. Eu jogo muito leite dentro deles!
Mas assim, eu pego muito homem na pista sem estar trabalhando
também. Tem cara que eu olho, gosto e vou te falar: tem muito homem
que me dá mole mesmo! Daí eu só convido pra subir aqui e faço os
bofes todinhos aí nessa cama, aqui no chão da sala também!

VOCÊ TEM SONHOS?

TETÊ – Eu tenho sim. Eu tenho vontade de ir embora do Brasil de vez.


De ir morar lá fora, em algum lugar que eu ainda não conheci. Tenho
vontade de ir morar na Itália, mas assim, de parar de fazer programa e
estar ali, sabe? Viver ali, aproveitar os lugares e curtir a vida. Eu
trabalho até de doméstica, se for o caso.

LUDMILA, 26 ANOS – VILA MIMOSA

Conheço algumas mulheres que são mães solteiras. Um tema


difícil de ser debatido por um homem, e muito embora até em minha
própria família e rede de amigos eu me relacione com várias mães que
criam seus filhos sozinhas, existe um espaço muito grande entre a
minha empatia e a minha vida comum para entender essa questão a
ponto de falar com coerência em meu lugar de “homem”. Por isso só irei
aqui fazer uma espécie de colocação de ordem pessoal: Você que é
homem e lê agora estas linhas, que faz pinta de chefe de família e de
defensor da moral e dos bons costumes, mas abandonou alguma
mulher grávida ao léu, pense o quanto a sua fala se aproxima dos seus
atos em seu dia. Tenho vivência suficiente para constatar que a falta de
um pai ou de uma mãe não significa necessariamente o mau
encaminhamento de crianças e adolescentes que vivem esta realidade
social, no entanto, existem questões que extrapolam o ato de um
responsável virar as costas para a realidade de um ser que ainda está
em formação. Uma formação física e de posteriormente de caráter.
Há alguns anos, quando ainda era adolescente e vivia com meus
pais em Madureira, recebemos a visita de uma tia, irmã de minha mãe,
que foi a primeira em minha família a levar o baque de um divórcio, e,
diga-se de passagem, um divórcio que veio como um meteoro na vida
dela e de todos os que estavam ao redor. Eu me lembro que, mesmo
sendo muito novo fiquei totalmente perplexo pela situação. Minha tia
descobriu que seu marido, que era um pastor evangélico, respeitado no
meio da família e amigos, tinha nada mais nada menos do que uma
outra família, e minha tia vivia uma vida pautada na vida dupla de um
homem que sustentava essas duas vidas por meio de mentiras. No dia
dessa visita, ouvi algo dela que sempre me recordo e me faz refletir
muito. Ela trabalha como enfermeira particular, profissão que aprendeu
pós-divórcio, para se manter e cuidar de dois filhos pequenos. Ela dizia
o quanto estava difícil conseguir uma colocação no mercado de
trabalho, e quando minha mãe lhe perguntou o porquê a resposta foi
estarrecedora até para mim, que era uma criança:

Eu até consigo uma coisa ou outra, mas quando os patrões


descobrem que eu sou mãe solteira me mandam embora no
outro dia. Teve gente que até de puta me chamou por ser mãe
solteira!

Isso posto, não é preciso aprofundar mais a discussão sobre esse


tema, mas é certo que separações ou mesmo abandono de lares –
principalmente por parte dos homens – ainda se travestem em sérios
resultantes sociais. Mas ora, mulheres também abandonam os
maridos? Sim. Mulheres também abandonam os lares? Sim,
certamente. Todavia, na sociedade imersa em podridão e hipocrisia em
que vivemos, um homem que abandona o lar não é taxado de gigolô
como algumas mulheres são pejorativamente taxadas de putas e tem
diversas portas fechadas em suas caras quando não recebem
propostas para fazer um sexo oral em troca de uma vaga de emprego
ou de uns míseros trocados.
Nem poderia imaginar que na época dessa conversa eu mesmo
passaria por dois divórcios em minha vida adulta, e confesso, divórcios
são doloridos. Tão doloridos quanto aqueles pesadelos que temos e de
tão ruim parecem nos impedir de acordar. Divórcios são tão doloridos
quanto arrancar o tampão do dedo numa topada, são tão doloridos do
que ter esperanças numa política que parece ser de mentira, enfim,
divórcios são doloridos para quem sai e para quem fica, mas doi muito
mais para mulheres que ficam com os filhos pequenos ou, e quando
não, com um ainda dentro da barriga.
Ludmila é uma dessas mulheres. Eu a conheci na Vila Mimosa,
numa de minhas idas para buscar possíveis entrevistas. Uma mulher
negra e “linda de morrer”, como diz a boca do povo. Bonita a ponto de
dispensar a maquiagem que usava. Quando falei com ela pela primeira
vez, ela trajava apenas sutiã e calcinha pretos, com um par de cinta-liga
na mesma cor. As meias-calças tinham buracos que acredito terem sido
feitos de propósito, e lhe davam um ar de “garota largada” que seduz
qualquer homem que se deixa envolver pelos mistérios de mulheres
que fazem o tipo rebelde. Eu me apresentei a ela e falei sobre o meu
projeto. Ela se empolgou bem mais pelo fato de estar falando com um
escritor pela primeira vez na vida do que pela proposta em si, como se
o fato de “ser um escritor” me denotasse a importância que os padeiros
têm na vida de pessoas que já acordam pensando em comer o pão
predileto da padaria também eleita a melhor do bairro. No fim das
contas, ela aceitou meu convite para entrevistá-la com a exigência de
que se realizasse num hotel específico muito próximo, na praça da
Bandeira. Nosso reencontro aconteceu uma semana depois, e fomos de
táxi da Vila Mimosa para o local escolhido por ela num trajeto que dura
pouco mais de cinco minutos. Ela parecia contente dentro do
automóvel, e isso já era um prelúdio de que nossa conversa seria
interessante.

QUE BOM QUE VOCÊ ACEITOU FAZER ESSA ENTREVISTA. ONDE


VOCÊ MORA?

LUDMILA – Que nada, pra mim será um prazer ajudar com o teu
trabalho, mas vou querer um livro quando ele sair, hein! Eu moro em
Realengo.

HÁ QUANDO TEMPO VOCÊ TRABALHA NA VILA?

LUDMILA – Já tem uns dois anos e meio, mais ou menos.

E COMO FOI QUE TUDO COMEÇOU PRA TI?


LUDMILA – Antes de trabalhar lá eu nunca tinha feito programa. Eu
era casada, mas meu marido foi embora e depois daí tudo acabou
desandando nesse caminho.

DESANDANDO? SE VOCÊ DIZ “DESANDANDO” É POR QUE NÃO


GOSTA?

LUDMILA – Com certeza que não gosto, mas saí da escola no primeiro
ano do ensino médio e quando ele foi embora as gêmeas estavam com
três aninhos.

VOCÊ TEM FILHAS GÊMEAS?

LUDMILA – Sim, elas são lindas, as minhas filhas (mostrou a foto das
filhas que leva na bolsa).

VOCÊ SABE POR QUE ELE FOI EMBORA?

LUDMILA – Olha, todo casal briga, tem desentendimento, e a gente


tava vivendo que nem cão e gato já fazia era tempo. Mas depois que
ele foi embora, eu descobri que ele tinha outra mulher. E ele tem até um
filho com ela, um menino. Minhas filhas têm um irmão e nem sabem.

ELE NUNCA MAIS TE PROCUROU? NEM PARA VER AS MENINAS?

LUDMILA – Não, nunca mais!

QUEM FICA COM ELAS PARA VOCÊ IR TRABALHAR?

LUDMILA – A minha mãe fica com elas em casa.

E A TUA MÃE SABE QUE VOCÊ FAZ PROGRAMAS?

LUDMILA – Não! Ela acha que eu trabalho em loja lá na rua da


Alfândega!

ENTÃO VOCÊ NÃO DORME LÁ NA VILA? VAI E VOLTA TODO DIA


PRA CASA?

LUDMILA – Sim, eu acho que nem consigo dormir ali não. Além do
barulho que não para, tem muita menina invejosa lá, sem contar que
também tem muita ladra. Não dá pra dar mole com nada ali. Eu já
troquei de casa umas quatro vezes lá na Vila.
E COMO É TUA VIDA FORA DO AMBIENTE DA ZONA?

LUDMILA – É normal. Eu não faço muita coisa não. Eu cuido das


minhas filhas e tento passar o tempo que posso junto com elas. Dou
atenção pra elas e brinco mesmo, sabe? Sento no chão, rolo e até de
boneca eu brinco com elas. Parece até que eu volto a ser criança!

E VOCÊ NAMORA?

LUDMILA – Não, eu não tenho namorado e nem quero.

POR QUE?

LUDMILA – Porque homem pra mim passou a ser só “uma rola”. Um


piru que tá ali pra me comer, sabe? E pra me comer tem de monte ali na
zona. Quando eles pagam, eles me comem. E se eu não achar
interessante, jogo o preço lá pra cima, que aí eles vão logo embora.

ENTÃO VOCÊ BASICAMENTE ESCOLHE OS CLIENTES?

LUDMILA – Sim, é bem por aí. Porque tem cliente que é bom, que eu
acho bonito, interessante.

E QUAL O TIPO DE CLIENTE É INTERESSANTE PARA VOCÊ?

LUDMILA – Eu falei isso de “ser interessante”, mas na verdade o que a


gente vê de fora é só um invólucro, né? Eu passo a achar mais
interessante mesmo depois de foder com o cara. Tem um cliente meu
que todo mês vai lá por exemplo...Ele vai, assim, duas ou três vezes por
mês que eu gosto de foder com ele. Ele é um paraibinha, baixinho e
não é bonito não, mas ele me come muito gostoso. Tem vezes que eu
passo tempos sem gozar e é ele que me tira da seca.

E O QUE ELE FAZ DE DIFERENTE?

LUDMILA – Cara, eu nem sei te dizer direito, mas ele me pega de


quatro assim e me come por cima de mim numa posição que eu gozo
muito. Ele se apoia em cima de mim igual uma aranha!

TEM MUITOS CLIENTES COMO ELE?

LUDMILA – Que nem ele não, até porque as pessoas são diferentes,
né, mas tem outros que são bom de foda também e que sempre
aparece.
E VOCÊ CHEGA A SENTIR FALTA DE ALGUNS DELES QUANDO
DEMORA MUITO TEMPO PARA ELES APARECEREM?

LUDMILA – Esse que eu te falei que me come igual aranha eu sinto


falta dele. Não sinto saudade, mas sinto falta porque com ele é certo de
que eu gozo! Ele é um cara fechadão, não fala muito, mas o que tem
que fazer na hora da situação ele faz...E ele me come direitinho, o filho
da puta!!

VOCÊ PENSA EM VOLTAR A ESTUDAR?

LUDMILA – Eu penso mais pelas minhas meninas, mas não tem como
encaixar estudo nessa vida louca que eu levo. Talvez um dia, quem
sabe, eu volto a estudar. Eu gosto do clima da escola, de conhecer
gente nova...E eu também gosto de estudar! Eu gosto demais de ler e,
olha, vou falar de novo pra você: eu vou esperar meu livro quando tiver
pronto, hein!

KAREN, 35 ANOS – VILA MIMOSA

Um dos trechos da canção “Puteiro em João Pessoa”, da banda


de rock Raimundos, diz que “pro rapaz não fica triste vamo onde as
nega são ativa, não há em toda João Pessoa lugar melhor que o Roda
Viva”. O “Roda Viva”, era um puteiro que realmente existiu em João
Pessoa e que hoje é um motel com o mesmo nome pertencente à
mesma dona.
É até aceitável que um puteiro possa ser caracterizado por alguns
como “o melhor lugar” para ser estar. As carências, tristezas, alegrias e
até o rancor de cada um precisam de válvulas de escape para que as
pessoas não vivam completamente nesse mundo sem parecer estarem
fugindo de uma revoada de caralhos com asas. No entanto, com toda a
certeza, existe a carga negativa desses lugares que não espantam os
caralhos com asas que sobrevoam nossa retaguarda.
Numa reportagem ao UOL[39] em 2014, um dos personagens da
história verídica cantada na letra de “Puteiro em João Pessoa”, que é
primo do autor, disse, em relação às prostitutas que trabalhavam no
Roda Viva, que “era uma brincadeira entre primos mais velhos colocar
nas moças apelidos de famosas divas do cinema”. Mesmo eu só tendo
frequentado zonas na época em que fui marujo, bem sei como
funcionam algumas coisas dentro desse universo, e uma delas é a
colocação de apelidos nas mulheres, que acabam se tornando
características que as diferenciam umas das outras no meio de grupos
de frequentadores desses espaços.
A Vila Mimosa não é diferente de outras casas de redenvu[40] do
Brasil e sempre tem as meninas que se destacam das outras por algum
motivo, sejam por qualidades, pelas vestimentas ou até mesmo pelo
não uso dessa última. Nos tempos em que a frequentei para compor
esse livro, vi de tudo um pouco. A dançarina de funk vestida de ninja, as
bronzeadas que só usavam biquíni fazendo a praia parecer ser na
esquina, as magrinhas malhadas, as gordinhas socadas, mulher com
fantasia de carnaval, com trajes de páscoa e natal e um montante de
colegiais que daria para montar uma turma inteira de algum colégio de
normalistas qualquer. Tinham fantasias para todos os gostos no que
mais se parece um “encontro cosplay[41]” de putaria.

Acredito que a maioria dos relatos aqui foram de mulheres que


fazem vida no maior puteiro do Rio de Janeiro (ou ao menos é a maior
zona a céu aberto) e a próxima entrevistada é uma destas
personagens. Comecei a lhe dar um pouco mais de atenção por ser
impossível não fazê-lo. Imaginem uma mulher morena jambo, usando
saltos que lhe faziam aparentar ter quase 1,90 de altura e trajando um
conjunto de lingerie vermelha? Pois é, esta era Karen. Praticamente
todos os dias em que ali estive na parte da noite era comum vê-la
sempre no mesmo local, uma espécie de varanda que ficava a uns dois
metros do chão e que ela parecia fazer de palco, onde dançava de
maneira performática ao som da casa que se situava em frente.
Eram poucos os que não paravam para observar, e por vezes se
formavam grupos de mais de trinta homens que se prostravam imóveis
no meio da rua como as estátuas do artista inglês Antony Gormley[42].
Ficavam estáticos, exceto apenas pelos nada discretos movimentos no
pau, um trago na bebida ou para cochichar no ouvido de outros algum
comentário sobre a mulher que ali continuava sem parecer dar a
mínima para a plateia de homens com a aparência de zumbis que se
aglomerava abaixo. Sim, ela de salto, acima e todos aqueles homens lá
embaixo, comendo na sua mão por uma simples dança, desejando seu
corpo e achando que o fato de ter um pouco de dinheiro no bolso para
pagar por sexo poderia lhes colocar algum poder sobre ela, quando na
verdade ali era a mulher que exercia o comando sobre eles.
Definitivamente, não me lembro de algum dia tê-la visto sair dali
para o quarto com algum cliente, muito embora me lembre de muitos
outros dos quais apenas lhe falavam ao ouvido e ela balançava a
cabeça em negativa. Certamente os programas aconteciam, e eu
apenas não vi situação alguma que aparentasse ser essa que é a
conclusão mais que óbvia se pensarmos que uma prostituta vai para a
zona trabalhar, e seu trabalho é oferecer sexo por dinheiro. Numa das
noites em que ali estive – e que levei um “bolo[43]” de uma das
entrevistadas, que falarei mais à frente – enfim me aproximei de Karen
e perguntei a ela se ela gostaria de fazer parte do trabalho o qual eu
estava compondo. Em menos de vinte minutos após minha abordagem
ela estava parada à minha frente vestindo um sobretudo estilo
Matrix[44] e sinalizando para tomarmos o rumo à esquerda.
Caminhamos no sentido da rua Ceará e ela perguntou se a conversa
poderia ser no motel Canário, um motel próximo dali. Suas condições
foram que eu apenas pagasse o tempo necessário no estabelecimento
e algumas bebidas para ela. Essa foi uma das duas únicas entrevistas
em que entrevistadas fizeram uso de alguma substância que altera a
percepção humana durante esse trabalho.
Subimos por uma escada estreita e tão íngreme que lembrava
alguns acessos do metrô de Londres. Tivemos que nos espremer para
dar passagem a uma moça jovem que abriu a porta acima da escada e
irrompeu correndo vestindo apenas uma calcinha azul minúscula.
Entretanto, nem foi preciso fazermos muito esforço para lhe dar
passagem, pois antes de chegar até onde estávamos ela regurgitou um
jato de vômito que chegou a respingar na minha calça. Um homem
também semi–nu surgiu na mesma porta de onde ela tinha saído e que
parecia ser o nosso destino no topo da escada.

Que porra é essa que você me deu? – bradou a mulher que


tinha os olhos arregalados, como se tivesse visto algum
demônio em sua frente.
Eu te dei maconha!! – disse o homem despenteado e pálido
que mais aparentava um fedelho num corpo de adulto mediante
sua reação.

Ela despejou mais um jato de vômito e sentou-se em um dos


degraus da escada. Um outro homem que parecia uma espécie de
garçom do lugar surgiu na porta e perguntou, preocupado, o que estava
acontecendo. Nessa altura, o rapaz já auxiliava a jovem a se levantar e
encaminhavam-se ao mesmo destino que nós, o topo da escada. Ao
cruzarmos a porta, tive a constatação de que o local era realmente a
espelunca da qual eu tanto ouvia falar, e até mais do que isso. Parte do
piso à frente estava cedendo e era visível uma espécie de caimento em
declínio. Os dois sofás que ornamentavam a recepção estavam
totalmente rasgados, como se um filhote de cachorro estivesse ficado
trancado ali resolvendo divertir-se, destruindo a forração. O mau cheiro
que vinha do corredor principal era horrível e impossível de identificar.
Talvez fosse obra do total descuido de quem administra o local e só se
importa em receber a grana de quem adentra suas portas tão louco por
sexo, drogas e bebidas que dificilmente se põe a imaginar a quantidade
de porra de diferentes homens que se misturou durante décadas para
dar origem àquele odor repugnante. Assim que visualizei o caixa que
ficava à esquerda, efetuei o pagamento do quarto por um período de
três horas, que era o tempo mínimo, juntamente com duas cervejas,
que custaram mais caro do que custam dentro do Rock in Rio[45]. Tudo
com um preço super elevado para a deplorável apresentação do lugar,
mas que é justificável pelo que já foi dito acima, ou você, leitor, pensa
que os seres que habitam o submundo da noite se preocupam com
preço alto para pagar por puta, drogas e bebidas? Na verdade, eles até
se preocupam, mas esse tipo de dor na consciência é coisa para a
ressaca moral que geralmente ocorre no dia seguinte, o que chamo de
“Daja”, uma sigla para “day after do junkie arrependido”.
Enfim adentramos no quarto, que era mais um índice indicador de
que de fato o estabelecimento era horrendo. Incontáveis marcas de
queimaduras de cigarros por todo canto, lençóis puídos e encardidos de
suor, gala, bebidas e uma lâmpada que alternadamente reduzia a
luminosidade, como se estivéssemos num filme de Poltergeist[46]. Após
abrir a porta para receber as bebidas, me sentei na cama enquanto
Karen se despiu abruptamente de seu sobretudo, deixando à mostra a
roupa vermelha que tanto chamava a atenção dos que se alegravam
com suas performances dentro da zona. A mulher bebeu o primeiro
copo de cerveja numa talagada só.

E ENTÃO, PELA FORMA QUE VOCÊ BEBEU ESSA CERVEJA,


PARECE QUE VOCÊ NÃO ESTÁ TENDO UMA NOITE FÁCIL, NÃO
É?

KAREN – Não, não...Mas isso pra mim é normal. Não existe noite fácil
lá dentro e quem leva esse tipo de vida e acha que é tranquilo tem que
procurar tratamento urgente.

SE NÃO É UMA VIDA FÁCIL, POR QUE VOCÊ TRABALHA LÁ?

KAREN – Porra, a gente tem que tocar a vida, né?

VOCÊ TEM FILHOS?

KAREN – Não, não tenho.


O QUE É MAIS DIFÍCIL NA ROTINA DA VILA MIMOSA, NA TUA
OPINIÃO?

KAREN – Isso aqui (disse isso e apontou sua vestimenta encarnada).

O QUE TEM DEMAIS COM A TUA ROUPA?

KAREN – Você não sabe como é um saco ter que vestir isso aqui e
ficar me fazendo de interessante pros olhos dos caras. Mesmo antes de
ser lésbica eu nunca gostei de ficar fazendo fetiche. Eu acho isso
ridículo!

ENTÃO VOCÊ É LÉSBICA?

KAREN – Sim, já faz uns doze anos que não me relaciono com
homens. Quero dizer, é óbvio que lá na zona eu trepo com eles e tal,
mas pra mim é só trabalho. Isso é igual dar beijo técnico de novela.
Você tá ali, mas é como se não estivesse. Eu nunca gozei com um cara
de zona, não sinto prazer nenhum. E nem me atraio por homens, lá
dentro ou aqui fora. Eu sou casada com outra mulher!

E VOCÊS ESTÃO JUNTAS HÁ MUITO TEMPO?

KAREN – Faz uns dez anos que a gente tá junta.

E A TUA COMPANHEIRA LEVA NUMA BOA O FATO DE VOCÊ


FAZER PROGRAMAS?

KAREN – Olha, ela é enciumada, mas é mais enciumada por achar que
talvez eu conheça outra mulher e largue ela do que em relação aos
homens que eu faço programa. Ela me conhece bem e sabe que eu não
tenho estímulo com eles.

ENTÃO É UMA RELAÇÃO BOA A QUE VOCÊS TÊM?

KAREN – Eu não tenho nada do que reclamar não. A gente se diverte,


se cuida e se respeita. Ela me trata melhor do que muito homem que eu
tive antes dela.

VOCÊ JÁ ESTIPULOU ALGUM LIMITE PRA SI? UM TEMPO PARA


PARAR COM OS PROGRAMAS?

KAREN – Parar de fazer programa eu acho que todo mundo que faz
quer. Seja mulher ou homem, porque tu sabe, né? Tem muito cara que
é gigolô, garoto de programa, e isso praticamente não é falado. Se fala
muito da puta, da prostituta e que mulher da vida não vale nada, mas e
os caras que também vendem o corpo? O que mais tem lá na zona sul
é isso. Uns garoto novinho que é tudo garoto de programa. Você até me
desculpa falar assim, mas então...Eu acho que quem tá nessa vida só
pensa em continuar se for louco mesmo! Pra mim, essa vida tem mais
coisa ruim do que boa.

O QUE VOCÊ COLOCARIA COMO SENDO PIOR?

KAREN – Com certeza é você sair sem saber se vai voltar pra casa. E
olha que eu nem filho tenho em casa. Mas vejo as meninas que
trabalham lá e elas têm tudo filho. A maioria delas, pelo menos. E tem
umas que têm até mais de um. Porque tu vê só, a vida nessa cidade já
é uma loucura. Se tu tem um trabalho comum, desses que sai de
manhã pra voltar no fim da tarde, tu já corre risco de tomar uma bala
perdida, de ser assaltado e tudo mais, agora imagina juntar tudo isso e
ter que trabalhar na madrugada com o tipo de gente que frequenta
puteiro? O risco de acontecer alguma coisa ruim é dobrado, tu entende?

E O DINHEIRO QUE VOCÊ GANHA? DÁ PRA VIVER?

KAREN – É tipo um dinheiro que pra mim é maldito, sabe? Compro o


que é básico pra mim e pra casa e tento organizar a vida, mas pra mim
é um dinheiro que é sujo. Ele só tem valor porque no mundo que a
gente vive infelizmente não se vive mais de troca, tirando uma ou outra
pessoa que até faz isso. Troca uma coisa por outra e assim vai vivendo,
mas isso não funciona assim pra todo mundo.

E VOCÊ TEM ALGUM SONHO?

KAREN – Olha, tu acredita que eu quero muito ser mãe de menino?


Mas muita coisa tem que mudar na minha vida pra isso, e a primeira
coisa é mudar isso aqui (apontou novamente para a roupa encarnada
que ornamentava seu corpo).
LAILA, 27 ANOS – VILA MIMOSA

Sou e sempre serei questionador, isso é um fato. Acredito que as


dúvidas em entender alguns tipos de processos da humanidade ou
mesmo aprender a receita de um bolo nos fazem buscar o
conhecimento que consiste no real patrimônio que detemos em nossas
vidas do qual ninguém nos destitui.
Um dos muitos questionamentos que faço nos tempos modernos é
sobre o uso não comedido dos telefones celulares por algumas
pessoas. Começo o relato de Laila falando sobre esse tema porque ela
é uma dessas pessoas que tratam o aparelho celular com o carinho
digno de um filhote de gato, cão ou aquele doce preferido que, por ser
tão delicioso, protelamos comer e acaba criando mofo na geladeira.
Longe de mim achar anormal o ato de dedicar alguns minutos do dia
para verificar algo nas mídias de internet, no entanto, eu que vivi os
tempos áureos das revistas Playboy e Penthouse acho triste que os
famigerados periódicos pornôs tenham sido substituídos por celulares a
mão dentro dos banheiros. Possivelmente, alguns aparelhos celulares
hoje em dia têm mais coliformes fecais que os vasos sanitários.
Assim como outras entrevistadas, Laila foi captada por mim na
Vila Mimosa e aceitou participar da entrevista para compor as linhas
que você, leitor, agora lê. Combinamos a entrevista para o hotel Gallant,
pois segundo ela, nunca tinha ido ao local. Uma moça que não era nem
alta e nem baixa. O corpo esculpido pela malhação a ponto de ter um
bíceps de colocar inveja em muitos marmanjos. Apesar de o quarto ser
um cômodo simples, a moça se sentiu deslumbrada com a vista da
varanda, que não tinha nada demais além do elevado Paulo de Frontin,
do Centro de Convenções Sulamérica e de parte de Santa Teresa. Ela
ficou tão excitada que rapidamente abriu a bolsa e puxou um baseado,
ao que prontamente eu disse.

Me desculpe, mas se você fumar maconha não poderei te


entrevistar.

Ela não questionou minha atitude e apenas colocou o cigarro na


boca, ligou a câmera do telefone e fez uma selfie com a vista
anteriormente dita ao fundo. Ela me mostrou a foto – que já estava
postada num grupo no Facebook – e perguntou o que eu tinha achado.
Observei que o grupo era uma espécie de “conglomerado de fotos de
usuários de maconha” que pareciam ali postar o uso da substância em
locais públicos e se relacionar entre si como se fossem moradores de
Amsterdã. Muito curioso, pois eu nunca tinha ouvido falar em algo
parecido, embora tenha ciência de que a quantidade de informação
digital tem sido alavancada com a expansão da globalização em canais
de internet e redes sociais.
Ela ainda permaneceu longos minutos quase que em transe,
analisando a repercusão da sua foto postada e a cada “like” que recebia
dava uma risada aguda de satisfação. Eu que estava ali, sentado à sua
frente aguardando para começar a entrevista, parecia não existir frente
ao estado de excitação da mulher. Aguardei pacientemente ela se
socializar com todos os que ela julgasse necessários para só então
começar a trabalhar.

E ENTÃO, COMO FOI A REPERCUSÃO DA TUA FOTO?

LAILA – Foi boa! Sempre é, mas eu também só posto foto em lugar


foda, tu tá ligado?

COMO FUNCIONA ESSE GRUPO?

LAILA – Ahh, as pessoas postam lá quando fumam. Sacam o baseado


em casa, no trabalho, em alguma mata fazendo trilha, na praia, na
montanha e onde dá na telha!

FAZ MUITO TEMPO QUE VOCÊ FAZ PARTE DESSE GRUPO?

LAILA – Ahhh já faz um tempão! Eu nem me lembro.

E HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ FUMA MACONHA?

LAILA – Eu fumo desde novinha. Acho que comecei a fumar quando eu


tinha quatorze anos!

E A TUA RELAÇÃO COM A MACONHA?

LAILA – Eu gosto de maconha que me dá tesão. Mas eu também gosto


de fumar pra relaxar. É o meu momento pra descansar, quando eu me
sinto bem em alguma situação ou pra deixar algum momento mais
agradável. Tipo essa situação aqui onde eu tô te dando uma
entrevista...Tá agradável demais e eu só queria deixar mais legal.

ENTENDI. E SOBRE SER “LEGAL” OU “NÃO”, COMO É TUA VIDA


FORA DA ZONA?
LAILA – Olha, eu não posso dizer que é uma vida normal. Mas eu levo
de boa! Quer dizer, tento garantir o de comer e o de vestir, o resto a
gente vai se virando como pode.

O QUE VOCÊ CONSIDERA UMA “VIDA NORMAL”?

LAILA – Ahh sei lá...Uma vida em família, por exemplo. Eu não tive
uma estrutura de família bacana. Meu pai eu nunca conheci, minha mãe
se matou e tive que ser criada por uma tia que era o demônio em
pessoa. Eu queria mesmo era sair fora dessa vida e, sei lá, ter alguém,
sabe? Encontrar um cara legal pra viver comigo, jantar junto, viajar de
férias juntos, fazer coisa de casalzinho, sabe?

E VOCÊ TEM NAMORADO?

LAILA – Não, eu não tenho, mas puta merda...Eu me meto em cada


rolo que tu não tem noção. Conseguir um namorado legal parece
aquelas “fases de videogame”, sabe? Tu fica ali murrinhando um
tempão até passar de fase, chato pra cacete!

E QUAL É A SITUAÇÃO QUE TORNA ISSO DIFÍCIL PRA TI?

LAILA – Porra, tu é homem e tu sabe! Homem é bicho que não presta!


Mente demais!

MULHERES TAMBÉM MENTEM. OU TU ACHA ISSO


EXCLUSIVIDADE MASCULINA?

LAILA – Não, claro que não acho, mas só tô dizendo que homem é
foda, difícil de lidar. Tu sai com um e ele é casado, sai com outro e ele
depois de um tempo fala que tem namorada. Mentem em tudo, poxa, o
último que eu saí eu conheci na internet. Um cara lindo e tal, mas
caralho...Maior decepção!

E QUAL FOI A SITUAÇÃO?

LAILA – Caramba, isso nunca aconteceu comigo e eu não contei isso


pra ninguém, mas vou contar pra tu. Eu te disse que conheci ele pela
internet, né? Então, a gente se falava quase todo dia e tava sendo legal,
eu tava gostando. Daí a gente marcou de se encontrar quase um mês
depois. Marcamos lá no Norte Shopping e, quando eu cheguei lá,
comecei a procurar por ele e quase levei um susto quando vi!

POR QUE?
LAILA – Cara, ele era anão! E sabe, eu nem fico triste com isso não,
porque ele é anão, mas é bonitão. O problema pra mim é que ele
poderia ter me falado antes, né?

E AÍ? COMO FOI O ENCONTRO?

LAILA – Poxa, depois do primeiro impacto de ter visto um cara que eu


imaginava, tipo como: alto e forte, e quando vi era pouco mais que na
minha cintura tudo foi tranquilo. Ele tem um papo maneiro e deu pra
ficar lá numa boa. Jantamos juntos e tudo.

E VOCÊS CONTINUAM SE ENCONTRANDO?

LAILA – A gente até se fala e tal, mas não encontrei com ele mais não.
Ele me bota a maior pressão pra sair comigo de novo, mas eu não
quero. Porque eu até encontrei com ele uma vez mais depois que nos
conhecemos no shopping. A gente até transou, mas foi muito chato o
que ele fez comigo.

E O QUE ELE FEZ?

LAILA – Ele me convidou pra ir na casa dele pra jantar um dia. Eu tava
carente e tal e fui, até na intenção de transar com ele mesmo. Não é
porque a gente é puta que se satisfaz com uma porrada de homem
diferente. E eu fui pra dar pra ele mesmo. Mas minha primeira decepção
foi a casa. Ele mora em Santa Cruz, num barraco de telha de zinco e
nem piso tem. O chão é de terra batida, sabe? Ele colocou um tapete
depois que eu cheguei, mas foi o vizinho que emprestou o tapete pra
ele. A comida foi um estrogonofe que tava até gostoso pra caramba, ele
mesmo que fez na minha frente, mas nem cama tinha, eu acho que ele
dorme num sofá velho que tinha na sala. Daí a cereja do bolo você nem
sabe. A gente ficou lá no maior rala e rola e na hora de começar a foder
ele não tinha camisinha e perguntou se eu tinha. Eu também não tinha,
e o que ele fez? Ele saiu na rua embaixo da maior chuva e foi no posto
de saúde...Sabe essas clínica da família? Então, ele foi lá e pegou um
monte de camisinha de graça e voltou todo bobo, me mostrando
aquelas camisinha da embalagem roxa que a prefeitura distribui em
época de carnaval no postinho[47]. Porra, cara, tinha uma farmácia do
lado e o cara não tinha dinheiro nem pra comprar uma camisinha pra
me comer!

E PRA VOCÊ? FOI ALGO DIFERENTE FAZER SEXO COM ALGUÉM


COMO ELE?
LAILA – O sexo por sexo mesmo não teve nada demais. A sensação
de quando alguém te come é a mesma. Quando alguma rola entra na
minha boceta não tem nada de diferente, tirando que tem cara que tem
mais pegada, o cheiro é mais gostoso e tal. E eu até poderia ver ele de
novo se não fosse por ele ter me dito um monte de coisa que não era
verdade na vida dele. Ele não me disse nada, por exemplo, sobre a
casa dele parecer um chiqueiro. Porra, o cara me convida pra jantar
com ele, pra passar a noite com ele e nem cama tem? Aí é foda, né? Eu
nem consegui dormir. Mosquito pra caralho!

E QUAIS SÃO SEUS PLANOS PARA O FUTURO?

LAILA – Pelo menos a princípio eu vou continuar trampando na Vila,


talvez botar uns anúncios pra fazer programa na casa dos clientes que
me ligarem ou então em hotel, mas eu quero muito fazer como te disse.
Quero ter família, quero encontrar um cara legal e levar uma vida
bacana. Pode até ser simples, mas com dignidade e sem mentira. Eu tô
disposta até a deixar de fumar maconha pra isso. Deixo até de ser puta!

FLÁVIA, 23 ANOS – VILA MIMOSA

Ao longo de anos, os jogadores do Santos são chamados de


“meninos da vila[48]”. O celeiro do Santos é realmente indiscutível no
que diz respeito à contribuição para o futebol nacional ao longo de
décadas, perdendo em tradição apenas para o Botafogo nesse quesito,
mas o que chama mais atenção é que no Santos muitos futebolistas
despontam ainda jovens, deixando de serem apenas promessas para
estourarem como fenômenos no futebol mundial.
Assim como acontece na Vila Belmiro, acontece na Vila Mimosa.
Obviamente não pelo fato de as garotas de programa que ali trabalham
despontarem no mundo nefasto da prostituição de luxo em caráter
mundial, mas porque muitas delas começam ali ainda cedo, pelos idos
dos 16 e 18 anos de idade.
É muito clara a observância de que três segmentos distintos
compõem a tipologia de trabalhadoras da Vila Mimosa durante as 24
horas que delimitam um dia dentro dessa que é a “zona” mais famosa
do Rio de Janeiro. As moças que trabalham durante o dia são as mais
jovens. Aparentam ter entre 16 e 18 anos e por vezes chegam vestidas
com uniformes escolares, outras com uniformes de empresas
conhecidas, mas que não passam de fachada para fingirem que saíram
de seus lares em direção aos locais onde dizem trabalhar ou estudar.
Esse grupo, em geral, começa a aparecer depois das 13horas e ali
permanece até as 18horas. Algumas parecem até ter menos idade do
que foi dito acima, mas como a lei dos puteiros funciona movida a
“besouros sem asas[49],” acredito que a maioria dos frequentadores
não se incomodem em observar meninas que poderiam ser as filhas
que estes têm em casa tal como fossem um suculento pedaço de pernil.
Existe um grupo de mulheres que acordam depois do meio-dia. As
chamadas pernoitadas[50]. Mulheres em geral mais velhas, que por
vezes têm famílias, e chegam na Vila Mimosa durante à tarde ou na
noite do dia anterior e dormem na “casa”, ao final do expediente, já
pelas quatros horas da manhã. Também existem as que ali chegam
para trabalhar no fim da tarde e permanecem até as 23horas ou meia-
noite. A preferência dos clientes é algo que é muito explícito: preferem
as mais jovens, e o assédio em relação a estas é motivo pra muitas
brigas que culminam em garrafadas e cadeiradas cinematográficas. Por
vezes, algum leão de chácara[51] do local é acionado para acalmar os
nervos dos que extravasam suas masculinidades na base da porrada,
que é distribuída gratuitamente noutra demonstração de macheza
desnecessária.
Flávia, a entrevistada da vez, faz parte deste grupo de mulheres
jovens que trabalham na Vila. Loira, bem magrela, mas com as curvas
necessárias para se fazer avaliada pela clientela e garantir a grana com
os programas que faz. Quando a conheci e apresentei a proposta para
ser entrevistada para o livro, ela estava com um grupo de oito moças
jovens que bebiam e aguardavam algum cliente ao redor de uma mesa
de sinuca ao som de funk no último beco da rua Sotero dos Reis. Flávia
foi a única a aceitar o convite não colocando condição alguma para tal.
O único problema foi conseguirmos tempo para sentarmos e fazer a
gravação da entrevista, sendo que ela tinha horários pré-determinados
para chegar e sair da zona. Para sua família, ela era apenas uma
estudante que saía às tardes para completar o ensino médio numa
escola na praça da Bandeira.
No dia em que finalmente conseguimos articular um tempo em seu
planejamento, Flávia dormiu na casa de quarta para quinta-feira.
Quando ali cheguei, o responsável me disse que ela ainda dormia e me
pediu para aguardar um pouco, e permaneci do lado de fora do beco a
observar a movimentação. Era por volta das 13horas e, como é de
costume no local, não tinha muito movimento. Poucas mulheres, poucos
clientes, pouca música ensurdecedora e pouco cheiro de churrasco dos
ambulantes queimando nas churrasqueiras das biroscas. Neste dia
pude de fato constatar que a quantidade de garotas mais jovens e
realmente absurda na parte da tarde no local. Isso me fez diretamente
pensar em como o planejamento familiar é algo importante na vida das
pessoas. Planejamento esse que inclui não só colocar outro ser no
mundo, mas ter condições de acompanhar, com atenção todos os seus
passos durante a infância e adolescência.
Permaneci por pouco mais de meia hora a ver tudo o que se
sucedia à minha volta. Como aquelas meninas tão jovens se portavam,
percebia claramente quem estava careta[52] ou quem estava
chapada[53], e mesmo algumas das que estavam caretas, em
determinados momentos, davam demonstrações claras de que toda
sensualidade que exibiam não passava de falsidade, tal como alguns
dos sorrisos do Instagram que tentam esconder línguas afiadas,
tristezas diárias e toda tentativa de demonstrar a utilidade de sortilégios
de vidas inúteis. Sempre refleti demais acerca do ato de pôr um ser no
mundo, o ato de ser pai, e embora não acredite que o “ser pai” ou “ser
mãe” denote um caráter policialesco a esta dádiva, me preocupa saber
o que poderei pensar se um dia descobrir que meu filho ou filha deixou
de comparecer um semestre inteiro na escola quando todos os dias
saía de casa com este destino. Será que eu mesmo terei tempo para
ser um pai presente, interessado e que acompanhará todas as fases de
minha criança? Por outro lado, acredito que toda juventude transviada
tenha sua justificativa. Tendo o conhecimento mínimo que minha
formação em serviço social e estudos em psicologia social e da
personalidade dentro da grade acadêmica da PUC-RIO me conferem,
não é tão complicado para mim entender que toda pessoa é o que seus
referenciais foram pra si quando crianças. Isso posto e levando em
conta as subjetividades destas mulheres, certamente elas se colocam
em tais condições de trabalho, muitas ainda sendo jovens demais, por
motivos que são diretamente ligados às suas vivências, principalmente
às interações do seio da família e posteriormente do meio sócio-
ambiental.
Após quase quarenta minutos de espera, Flávia apareceu.
Despontou da escada com uma camisola e com os cabelos presos. Me
pediu desculpas e disse que ia só apanhar algo para comer ao lado de
fora e me perguntou se teria problema esperar por ela um pouco mais.
Eu disse que não e que esperaria o tempo que fosse necessário. Ela
retornou em cinco minutos, com uma quentinha nas mãos, e sentou-se
ao meu lado. A refeição parecia ser muito para uma mulher pequena
como ela – pensei com minha cabeça masculina – mas parecia estar
bastante apetitosa, apesar de ter uma salada de maionese que sempre
é algo duvidoso para se comer em dias de calor de quarenta graus no
Rio de Janeiro. Conversamos muito pouco durante sua refeição e assim
que ela terminou, se trocou e fomos até o hotel onde eu já tinha
reservado um quarto para realizarmos nossa entrevista.

OI FLÁVIA. E ENTÃO, A COMIDA ESTAVA BOA?

FLÁVIA – Tava sim, mas eu tô cheia pra caramba. Tá vindo tudo aqui
na goela!

ACHEI A QUENTINHA MUITO CHEIA PRA ALGUÉM DO SEU PORTE


FÍSICO.

FLÁVIA – Pra mim é normal comer isso aí. Claro que não como isso
tudo todo dia. Tem vez que eu largo um pouco de comida, sabe? Eu
nem gosto de largar comida porque acho que é pecado, mas quando
tem algum programa pra fazer é chato pra caralho ter que foder com a
barriga cheia.

ENTÃO, HÁ QUANTO TEMPO TU TRABALHA LÁ NA ZONA?

FLÁVIA – Eu tô lá faz uns dois anos já.

E COMO TUDO COMEÇOU?

FLÁVIA – Eu tinha uma amiga que trabalhava lá. Eu sempre soube que
ela fazia programa e num tempo que eu passei desempregada achei
que seria bom ir lá e ver como é que era, se dava pra arrumar algum
dinheiro...Daí fui ficando.

VOCÊ JÁ CHEGOU A TER ALGUMA ATIVIDADE PARALELA AOS


PROGRAMAS?

FLÁVIA – Não. Desde quando eu comecei lá na V.M eu só faço


programa mesmo.

E COMO É PRA LEVAR TUA VIDA FORA DE LÁ? A GRANA


COMPENSA PRA TI?
FLÁVIA – Olha, é muito melhor do que ficar levando esporro de patrão.
Essa casa onde tu foi pra falar comigo é a terceira que eu trabalho
desde que comecei nessa vida e nenhum dos donos arruma problema.
Mas isso é até normal lá. A gente separa a porcentagem da casa, a
porcentagem dos programa que a gente faz fora e ninguém encrenca
com a gente por causa de horário, não arrumam quizumba se a gente
for fazer programa fora e não voltar. Pra mim, eu tenho mais liberdade
trabalhando lá do que noutro outro lugar.

VOCÊ TEM FAMÍLIA?

FLÁVIA – Tenho, mas eu moro sozinha!!

E ONDE VOCÊ MORA?

FLÁVIA – Eu moro em “Longiguaçu” (brincadeira em alusão à


localização do município de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense).

E TUA ROTINA QUANDO NÃO ESTÁ TRABALHANDO? O QUE


GOSTA DE FAZER?

FLÁVIA – Eu gosto muito é de dormir. E de ir pra praia também. Tem


vez que até consigo arrumar uns programa quando tô na praia.

MAS VOCÊ INTERROMPE TEU LAZER PARA TRABALHAR?

FLÁVIA – Ahh não, eu faço mais programa na praia quando já tô pra ir


embora de lá. Se tiver alguma chance de fazer programa logo quando
eu chego eu não faço não. Isso não!

QUAL O TIPO DE CLIENTE QUE TE PROCURA NA VILA MIMOSA?

FLÁVIA – Todo tipo de homem vai lá, né, eu acho que tu sabe disso.
Então, pra mim, é tudo só número. Eu não nego programa...Quero
dizer, se eu tiver com um caixa maneiro já eu dispenso cliente, mas no
geral eu vô fazendo e paro só quando tô cansada ou quando quero
fumar um baseado.

PARA VOCÊ, TEM DIFERENÇA TRABALHAR LÁ SOB EFEITO DE


ALGO OU NÃO?

FLÁVIA – Não, não. Eu acho até que é melhor!

POR QUE?
FLÁVIA – Porque o ambiente fica mais leve, mais agradável. Tudo fica
mais agradável com um baseadinho, né?

TEM ALGUM PONTO POSITIVO PRA TI NO TRABALHO FAZENDO


PROGRAMAS?

FLÁVIA – Eu gosto da liberdade que eu tenho, acho até que já te falei


isso, mas também é bom fazer programa fora da casa. Eu, sempre que
posso, faço porque a gente ganha muito mais, sem contar que
dependendo do cliente rola até gorjeta depois do programa, ou um
jantar num lugar chique.

TEM ALGUM CLIENTE COSTUMAZ QUE VOCÊ ACHE MAIS


INTERESSANTE DO QUE OUTROS?

FLÁVIA – Ahhh, tem o esquisitão!!

“ESQUISITÃO”? PORQUE ESSE APELIDO?

FLÁVIA – Porque ele é um cara muito estranho. Ele é magro pra


caramba, acho que ele tem alguma doença, tem um monte de mancha
pelo corpo, mas ele é desses que me leva muito pra comer onde eu
quiser depois dos programa e paga bem pra caralho! Ele parece ser
muito rico, e o mais estranho é que ele nunca me come!

COMO ASSIM? SÉRIO?

FLÁVIA – Ué, tô te falando, menino! Ele nunca me comeu. E olha que


eu faço programa com ele já tem mais de um ano. É sempre a mesma
coisa. Ele chega, paga um dinheiro maneiro pra casa, me tira de lá e a
gente parte pra algum motel. Sempre é motel chiquerérrimo. Daí
começa a brincadeira dele.

E QUAL É O TIPO DE BRINCADEIRA ELE GOSTA?

FLÁVIA – Eu não sei como é com outras meninas, mas o que ele gosta
é de não me comer. Eu acho que ele sente prazer em ver outros
homens me fodendo e fica lá cheirando cocaína, tocando punheta e
tomando champanhe.

E QUEM FAZ SEXO CONTIGO NO LUGAR DELE?

FLÁVIA – Isso aí é outra parada. Desde a primeira vez que eu fiz


programa com ele eu percebi que tinha algo estranho. A gente chegou
lá no motel e todo mundo na recepção ficou me olhando, sabe? Eu
lembro que tinha um monte de menino que era funcionário de lá e
ficaram meio que rindo e tal. Eu percebi, mas deixei pra lá. Daí, quando
a gente chegou no quarto, eu tomei um banho, tirei a roupa e ele nada.
Estava bebendo vinho e só me pediu pra ir na garagem e pegar uma
outra garrafa que estava no carro dele. Eu pedi a chave e ele disse que
eu podia ir sem, porque teria alguém lá me esperando e era pra eu
foder com quem estivesse lá no carro. Eu não entendi porra nenhuma,
mas fui. Daí quando eu cheguei lá tinha um cara vestido com a roupa
do hotel lá dentro do carro já me esperando mesmo, tá ligado?

E DAÍ?

FLÁVIA – Daí que eu fodi com o cara, peguei a garrafa e voltei pro
quarto. Tinha até câmera no carro gravando a gente fodendo!!

E COMO FOI QUANDO VOCÊ VOLTOU PARA O QUARTO?

FLÁVIA – Eu voltei foi muito puta da vida! Disse pra ele que estava lá
pra fazer programa com ele e não com outro cara e que ele tinha que
me pagar mais!

E O QUE ELE DISSE?

FLÁVIA – Ele pegou uma pataca de dinheiro grande pra caralho e


colocou em cima da cama na minha frente. Disse que podia pagar o
que eu quisesse, mas que eu teria que foder com os outros que iriam
entrar no quarto e que ele ia só ficar olhando. Ele disse que a
campainha ia tocar e que era pra eu fazer tudo o que os caras que iam
entrar quisessem. A campainha tocou e vieram mais dois, denovo com
a roupa do hotel, e eu fiz os dois lá na frente dele. Ele não falava nada,
só olhava.

E SEMPRE FOI ASSIM?

FLÁVIA – Sempre...Sempre é a mesma coisa quando eu faço programa


com ele. Uma vez um homem e uma mulher que trabalhavam no hotel
entraram dentro do quarto e eu fiz o programa com eles dois. De início,
pra mim, era muito esquisito mas hoje em dia eu nem ligo mais. Ele
deixa tudo combinado em tudo que é hotel que ele frequenta, quando
ele chega todo mundo já sabe o que vai acontecer e eu até ouvi que
tem gente que trabalha nos hotel e briga e tudo pra saber quem é que
vai subir pro quarto. Pra mim, é até bom, porque ele sempre me paga
muito bem. Eu nem tenho do que reclamar e quase sempre eu gozo
mesmo!
TU TEM ALGUM SONHO NA VIDA?

FLÁVIA – Eu quero comprar uma casa pra mim porque eu ainda moro
de aluguel, e morar de aluguel é foda! Quero ver se compro uma
caxanga perto da praia. Nem precisa ser aqui pelo Rio não, pode ser
em Saquarema, eu gosto de lá!

MALU, 28 ANOS – COPACABANA

Certamente muitas pessoas vivem algumas situações em que as


casualidades da vida colocam experiências de conhecimento de mundo,
trocas de saberes e até novas possibilidades. Enfim, em meio a todo
balaio de gato[54] que também é a vida de todo ser vivente, em um dos
dias em que prometi a mim mesmo que não iria virar a madrugada
escrevendo e que no fim da tarde após o trabalho curtiria a praia do
Leme, acabei conhecendo casualmente a transexual Malu.
Eu me lembro que estava pilotando minha motocicleta com uma
dor de cabeça terrível. Parei, estacionei na rua Dias da Rocha e entrei
na primeira farmácia que vi em minha frente. Malu ali estava comprando
algo que não sei o que é, mas ao passar por mim perguntou se eu
estava com tempo livre. Quando olhei para trás, ela me olhava de cima
a baixo, certamente não vendo o homem que estava à sua frente, mas
as cifras que eu representava para alguém que aufere sua renda com
os programas que faz.
É importante deixar claro que não faço juízo de valor algum em
relação às pessoas, estando eu e todos os seres humanos no mundo
no mesmo patamar de luta e busca por dignidade na vida, com todos os
limites e possibilidades que cada um tem. Meu pensamento em relação
ao fato de Malu vislumbrar em minha pessoa um potencial cliente veio
apenas por tê-la visto noutros momentos fazendo ponto na praça do
Lido, na avenida Atlântica e na área da Lapa. No entanto, quando ela
disse o que disse e me olhava da maneira que olhava entendi
totalmente o recado. Saí da farmácia na direção oposta de onde estava
minha motocicleta e segui um pouco a distância os passos dela, que
vez ou outra olhava para a retaguarda visando observar se sua “presa”
estava de fato fisgada.
Malu parou em frente a um prédio na rua Constante Ramos e
entrou, deixando o portão se fechar na minha cara. Observei quando
ela disse ao porteiro para abrir o portão porque eu “estava com ela”.
Entrei, agradeci e me dirigi com ela à porta do elevador. Antes de ela
sinalizar para eu entrar, disse que meu interesse não era fazer um
programa, mas sim entrevistá-la para um livro que estava escrevendo
sobre o tema da prostituição. Ela novamente me olhou de cima abaixo e
perguntou:

Você é escritor?

Assenti em afirmativa, e disse já tê-la visto em situações de


programas. Disse que achei interessante ela ter me abordado da forma
que abordou na farmácia porque poderia ser mais uma entrevista
interessante sobre essa questão. Sua primeira impressão foi dizer não.
Que não estava interessada. Então lhe perguntei:

Você não está interessada por não ser interessante para você
ou por que te incomoda o fato de nós sermos iguais?

Ela me observou de forma enigmática:

Tu nunca vai ser igual a mim, meu amor!

Você talvez se engane. Estou buscando contigo o mesmo que


você há minutos atrás buscava comigo, uma possibilidade.

Ela foi em direção à portaria e retornou com um pequeno pedaço


de papel nas mãos, me entregou e disse apenas para ligar para ela ao
fim da tarde daquele mesmo dia, porque possivelmente ela teria tempo
para fazermos a entrevista. Despedi-me e fui caminhando devolta com
uma nuvem de incógnitas sobre minha cabeça. É interessante demais
pensar em como, na vida somos por vezes muito próximos daquilo tudo
que criticamos, de maneira positiva ou negativa, e é sempre necessário
humildade para fazermos uma auto crítica que possa nos levar a
caminhos diferentes a serem trilhados em meio a todo tradicionalismo,
contraste de informações e ideias que recebemos cotidianamente
desde que nascemos. Certamente, os processos de interação social
são os agentes construtores do caráter humano ou do que muitos povos
chamam de cultura, mas a verdade é que, como disse Paulo Freire[55],
“É fundamental diminuirmos a distância entre o que dizemos e o que
fazemos, de tal forma que, num dado momento, nossa fala seja nossa
prática”.
Mais ou menos às 18 horas, liguei para Malu. Ela disse que de
fato tinha tempo e que eu poderia ir até lá para entrevistá-a. Passou-me
o número do apartamento e novamente, agora no fim do dia, me
encaminhei para a rua Constante Ramos. Após o porteiro interfonar e
me anunciar, tomei o elevador rumo ao local onde imediatamente após
eu tocar a campainha fui atendido por uma Malu que tinha os fartos
seios siliconados à mostra: estava totalmente nua. Perguntou-me se eu
gostaria de beber alguma coisa ou fumar um baseado. Eu disse que
não e apenas me sentei enquanto ela pegava o telefone celular.

Você se incomoda se eu fizer uma ligação rapidinha?

Eu disse para ela estar à vontade, e que eu tinha tempo de sobra


para aguardar. Enquanto ela falava ao telefone, observei um pouco do
apartamento, que era bastante aconchegante. diversos tipos de bebidas
repousavam num bar que era bastante farto, tudo muito limpo e
organizado, e apenas o odor intenso de maconha destoava de toda a
aparência de qualquer lar careta do apartamento. Malu tinha o corpo
muito bronzeado e os longos cabelos soltos. A marca do biquíni ainda
reluzia, mostrando que a ida à praia tinha sido produtiva do ponto de
vista da conquista do objetivo: estar convidativa a todos os olhares que
parassem em seu corpo naquela noite.

OI!! COM TODA A PRESSA QUE ESTÁVAMOS EU NÃO PERGUNTEI


SEU NOME.

MALU – Meu nome verdadeiro ou o “de guerra”? (Explodiu numa


risada)

PORQUE A RISADA?

MALU – Desculpa, é que eu fumei um banza[56] ainda agora e tô meio


chapada! Tava com skunk[57]. Tava forte pra caralho!

NOUTRA SITUAÇÃO NÃO TE ENTREVISTARIA, MAS COMO JÁ


ESTOU AQUI...

MALU – Por que?

PORQUE NÃO FAÇO AS ENTREVISTAS QUANDO ALGUÉM


INGERE ALGO, SABE?

MALU – Poxa, desculpa! Foi mal mesmo, e eu nem pensei nisso. Eu


fumo todo dia e fumo uma porrada de vezes durante o dia, então pra
mim é meio que normal. Eu tô em casa, então tô no meu habitat.
PARA MIM VOCÊ NÃO PARECE TÃO DESCONECTADA DA
REALIDADE. A QUESTÃO É: VOCÊ SE ACHA BEM O SUFICIENTE
PARA FAZERMOS A ENTREVISTA? ESTÁ À VONTADE?

MALU – Ahhh sim, eu tô bem! Só tô puta pra caralho com esse filho da
puta que eu tava falando no telefone agora. Tu se ligou que era uma
discussão, né?

EU NÃO ESTAVA PRESTANDO MUITA ATENÇÃO, MAS PERCEBI.


QUEM ERA?

MALU – O puto do meu namorado!

E QUAL FOI A SITUAÇÃO? ALGO QUE VOCÊ PODE


COMPARTILHAR?

MALU – Com certeza! Ele não gosta que eu faço programa, sabe? Ele
não gosta mesmo, mas a gente leva. E hoje ele sabe que eu tenho um
cliente que sempre às sextas foder comigo e ele tem ciúme do cara.
Onde já se viu, menino? Namorado de puta ter ciúme?

ESSE CLIENTE FAZ PROGRAMA CONTIGO HÁ MUITO TEMPO?

MALU – Faz sim.

E HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ FAZ PROGRAMAS?

MALU – Pelo menos há uns dez anos.

CONSEGUE SUPRIR TUAS NECESSIDADES COM A GRANA DO


TRABALHO?

MALU – Eu moro sozinha, então pra mim até que é tranquilo! Mesmo
que eu more na sul consigo bancar tudo o que eu gosto. O chato é que
tive que refazer meu silicone e acabo gastando uma porrada de dinheiro
com o cabelo, que sempre tem que tá feito, mas eu vivo bem.

ENTÃO TEU NAMORADO NÃO VIVE CONTIGO?

MALU – Não, Deus me livre! Quero esse encosto bem longe!

COMO ASSIM? VOCÊS SÃO NAMORADOS MAS TU PREFERE ELE


LONGE?
MALU – Eu já gostei mais dele, agora ele me perturba mais do que me
ajuda. E eu nem preciso da ajuda dele, mas é legal ter alguém, né? De
vez em quando ele vem, a gente fode, fuma um junto, conversa, vê um
filme, mas porra, o cara é muito chato quando começa a querer regular
minha vida.

E QUE TIPO DE “REGULAÇÃO” TE INCOMODA MAIS?

MALU – Ahhh, essa parada com o trabalho. Pra mim, cada um tem que
tá na sua com o seu trabalho e com a sua vida particular. Não é porque
eu faço o que faço que não tenho que ter minha vida pessoal. E isso pra
mim também é uma merda com ele, porque, como eu te disse, ele vem
aqui, a gente passa um tempo legal juntos, mas pra eu ir pra praia
tomar meu sol o cara me cobra, não vai comigo a lugar nenhum. Eu te
disse que a gente assiste filme, mas no cinema ele não me leva, e se
eu for sozinha, me liga perguntando se eu já estou dando o meu cu pra
alguém. Porra, quer comer a travesti mas não quer assumir?

E QUAL SERIA A MELHOR SOLUÇÃO PRA TI?


MALU – Pra mim, o melhor é cada um procurar o seu rumo. Mas eu
ainda não disse isso pra ele. Até por isso que liguei pra ele quando você
chegou. Eu tenho que colocar um ponto final nisso. Tem que vir de mim
essa parada!

EU JÁ TE VI FAZENDO PROGRAMA EM ALGUNS LUGARES FORA


DE COPACABANA. EXISTE ALGUM LOCAL QUE É MELHOR PRA
VOCÊ?

MALU – O negócio nem é o lugar, mas a época do mês. Porque o


melhor é foder e conseguir grana. E eu gosto de foder pra caralho, mas
gosto muito mais de dinheiro. Mas se for assim, essa parada de lugar, o
melhor pra mim é sempre na minha casa.

POR QUE?
MALU – Vou te contar um negócio muito doido, menino! Eu sou travesti,
faço programa e foda-se, pelo menos não roubo ninguém, mas tu
acredita que eu sou envergonhada pra caralho? E pra mim é melhor
fazer programa na minha casa porque aqui eu me solto.

COMO ASSIM “SE SOLTA”?

MALU – Eu faço performance! Eu gosto pra caralho de me masturbar


na frente do cliente, de sufocar cliente com o meu cu na cara dele,
gosto de sentar na rola de cliente pirocudo tipo esses negão americano
e gritar muito. Peço até pra me enforcar pra parecer que tá me
estuprando! Eu gosto pra caralho de foder desse jeito e na minha casa
eu não fico com vergonha de gritar. Quando eu fazia programa em
motel era foda. A gente passava do lado de fora e ouvia a porra toda.
Uma vez eu ouvi uma mulher gritando “Aiiii meu cu!!”.

VOCÊ PENETRA MUITOS CLIENTES OU É MAIS PENETRADA POR


ELES?

MALU – Não tem uma medida pra isso não! Depende muito do cara,
mas eu gosto mais é de dar. Se o cliente quiser que eu coma ele eu
como, mas não é todo cliente me deixa de pau duro não!

E O QUE TE DEIXA EXCITADA PARA PENETRAR UM HOMEM?

MALU – Eu me excito quando o cara entra no joguinho que eu faço.


Esse cliente que vem aqui hoje mesmo que eu te falei. Ele gosta de me
foder como se tivesse me violentando. Ele me fode com força, puxa
meu cabelo, dá na minha cara, me cospe, pisa em cima de mim. Ele
quando me come me deixa maluca! Mas ele não gosta de dar o cu
não...

QUANTO CUSTA O TEU PROGRAMA?

MALU – Bem menos do que a quantidade de bebida que alguém


consome por mês num bar pra mijar tudo e não vê a cor do dinheiro!

TU TEM ALGUM SONHO?

MALU – Ser livre. E não correr risco de morrer na pista aí na mão


desses filha das puta que mata viado.

SAMARA, 45 ANOS – COPACABANA

Além da formação acadêmica que tenho, bastante mencionada


aqui, também sou pesquisador por complementação desta, e não
querendo enaltecer minha própria pessoa, me acho um profissional de
pesquisa muito bom, tendo em vista o comprometimento que tenho com
a verdade dos fatos. Ainda assim, algo que há muito me intriga é o fato
de eu não saber se as pessoas que moram em favelas sem ali terem
nascido refletem sobre o quão complicada é essa questão.
No período em que ainda era estudante de graduação na PUC-
Rio, me mudei de Madureira, na zona norte da cidade, para o morro da
Babilônia, no Leme. Uma mudança que, para muitos conhecidos
significou negação de origens, entre outras coisas, mas que para mim
foi, naquele momento, uma questão de planejamento de vida, sendo
que se eu não ficasse mais próximo da zona sul, não me formasse
dentro da meta, que era sair da universidade em quatro anos. As obras
em Jacarepaguá se tornaram tão caóticas que comecei a perder provas
já no segundo semestre, e se porventura alguma chuva caísse em
quanto eu estivesse no ônibus era impossível passar da Barra da Tijuca
para a Gávea, e até para tomar o caminho de volta era algo inviável.
No morro da Babilônia fiz alguns amigos, até para a vida, mas
desde que ali cheguei entendi que eu, por mais que tentasse criar uma
relação de pertença com a favela isso era uma tarefa difícil. Muitos
moradores de várias faixas etárias não me viam como uma pessoa dali
e toda a carga de experiência em trabalhos e estágios dentro de favelas
representavam muito para fazer de mim um “favelado genuíno”. No fim
das contas, nada disso me tirava a alegria de ali viver e de conhecer
pela primeira vez como morador, até as tristezas que assolam a vida
dos que vivem em locais que são privados da atenção que o Estado
promove para outras áreas da cidade. Vi muito playboy tomar tapa na
cara de bandido só para poder cheirar um pouco de pó ou mesmo para
garantir o baseado da night. Vi muita gente do asfalto, homens e
mulheres, subindo o Morro por amor e os que desciam a ladeira pelo
mesmo motivo. Vi a polícia tratar trabalhadores como bandidos e tratar
os bandidos como “colegas de farda”, vi gente morrer de morte morrida
e de morte matada, e vi muitos gringos que, de tão seduzidos pelos
encantos da vista e do Rio de Janeiro que transborda natureza por
todos os cantos de concreto, assumirem a favela como sendo suas
novas casas.
Não é que eu vivesse uma luta diária para ser “aceito”, mas enfim,
vivi por ali quase sete anos e saí sem entender muito sobre a
profundidade que as raízes destes locais penetram no solo das relações
ali vividas, e que para pessoas como eu, Samara e muitas outras, não
nascidas na favela não é mais do que mais uma estadia de passagem.
Samara foi minha vizinha no morro por pelo menos quatro anos. A
primeira vez que a vi estava de passagem pela rua Gustavo Sampaio,
no Leme, e nos cruzamos em frente à padaria Duque de Caxias. Antes
de perceber a mulher atentei para os olhares de praticamente todos os
homens da calçada, que acompanhavam o rebolado da morena de
seios naturalmente fartos e dona de um corpo escultural. Tempos
depois desta situação, passamos a nos falar esporadicamente, por
determinada vez em que a ajudei com um problema junto ao conselho
tutelar. Na ocasião, ela tinha dado abrigo a uma moradora de rua que
tinha um bebê de dois meses e estava nas ruas do Leme em meio a
quase duas semanas de uma chuva ininterrupta. Ela me pediu
conselhos pois disse saber que eu era assistente social e disse ter
descoberto que a mãe do bebê estava consumindo muito álcool e que
ainda assim continuava amamentando.
Após isso, participei de um chá de bebê que ela fez para uma
amiga em sua casa e ainda fui até lá noutro momento numa festa.
Numa noite comum, como tantas outras, em que fui beber uma
caipirinha no bar Joaquina, eu a vi completamente “montada”, fazendo
ponto em frente à boate Dolce Vita, em Copacabana. Ela não me viu,
mas como “para quem sabe ler um pingo é letra”, entendi exatamente
qual era a situação, muito embora nunca tenha ouvido rumor algum de
que ela era garota de programa. Passado algum tempo, numa conversa
informal num restaurante a quilo do Leme, disse a ela tê-la visto em
frente à boate citada e lhe perguntei se estava enganado sobre o fato
dela fazer programas ou se ela estava por lá apenas para beber um
drink e ver o tempo passar. Sua resposta foi afirmativa em relação à
minha primeira colocação. Perguntei-lhe então se ela gostaria de ser
entrevistada, no que ela topou, e no outro dia já estava a sua porta com
meu fiel caderno de anotações e gravador em mãos.
A casa de Samara ficava no caminho de entrada e saída da favela
e era comum a todos que ali passavam observar a porta sempre aberta,
ornamentada por uma cortina feita de bambu que impedia observar o
que se passava no interior do imóvel. Apenas a chamei pelo nome e ela
me disse para entrar, sentar e aguardar um pouco. A casa tinha três
quartos não muito grandes, sala, cozinha e banheiro, e percebi que
vozes e risos vinham de um dos quartos. Passei pelo menos cinco
minutos aguardando quando ouvi a voz de Samara me chamando até o
cômodo onde estava. Ao chegar no local, me deparei com uma cena
inusitada: Samara se posicionava apenas de calcinha, com a bunda
quase no rosto de um homem jovem que estava deitado com o pênis
ereto para fora da bermuda, enquanto uma outra mulher tentava pegar
o melhor ângulo possível para uma fotografia do membro do rapaz.
A mulher com a câmera me fitou de cima abaixo e perguntou para
Samara:

É ele – a outra assentiu apenas olhando para trás sem mudar a


posição da bunda completamente empinada na direção do
homem.
O teu pau é grande? É maior que o dele?

Eu não tive resposta imediata, mas disse que não poderia fazer o
mesmo que o rapaz visivelmente constrangido, estava a fazer, e que
poderia retornar noutro momento. Samara me pediu para ficar e o rapaz
acabou por se retirar. Ela colocou um short jeans, enquanto juntamente
a outra mulher, riam muito. A segunda parecia enviar a foto feita com o
“sensual modelo” para alguém. Elas disseram que a foto era para um
amigo gay que morava na Suíça e queria ver o pênis de algum homem
brasileiro. Ele fez o pedido e as amigas estavam atendendo. Elas ainda
permaneceram alguns minutos numa conversa via aplicativo com o
homem, que parecia não estar tão satisfeito com a foto enviada. Ele
tinha pago pelo material.

O QUE ACONTECEU?

SAMARA – A gente enviou a foto pro amigo e ele não gostou. Tá


dizendo aqui que não gostou porque o menino tem um pouco de
barriga. Ele é daquelas bichas que gostam de bofe sarado, sabe?
Desculpa pela minha amiga ter te perguntado aquilo. Ela é meio
maluquinha assim mesmo!

SEM PROBLEMAS. FAZ PARTE DA SITUAÇÃO! EU QUE CHEGUEI


NUM MOMENTO IMPRÓPRIO. ENTÃO, HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ
FAZ PROGRAMAS?

SAMARA – Olha, a minha vida é meio doida. A gente mora aqui no


mesmo lugar, mas eu não imagino que tu saiba muito de mim. Na
verdade, muito pouca gente aqui no morro sabe da minha vida. Até
porque eu acredito que muitos pensam que eu sou puta, e tu sabe
como a galera tem preconceito com isso. A maioria simplesmente não
fala comigo, não se aproxima.

E VOCÊ É OU NÃO?

SAMARA – Eu sou, com certeza. Mas eu não vivo de programas. Eu


desço pra viração quando tô meio apertada de grana e o problema é
que ultimamente, com esse país do jeito que tá, a grana tá curta quase
sempre e eu tenho feito mais programa que o de costume. Mas se é
assim eu sou puta, porque o negócio não é se eu faço ou não faço
programas, ou não é se eu faço mais ou menos, mas quando preciso eu
faço. Quando você me perguntou sobre essa entrevista, eu quis fazer
porque eu sei que é onde eu me enquadro.

MAS NÃO É TUA PROFISSÃO?

SAMARA – Não, não! Eu sempre fui secretária bilíngue em empresas


multinacionais. Desde novinha.

QUAIS IDIOMAS VOCÊ FALA?

SAMARA – Inglês, francês, espanhol e alemão. Alemão eu não falo


muito não, eu sei mais falar putaria em alemão, mas até que eu
desenrolo bem pras coisas do cotidiano, se eu precisar.
E COMO COMEÇOU A SE PROSTITUIR?

SAMARA – Eu tinha um colega de trabalho que era francês. Um


homem bonitão, sedutor pra caramba. Nos apaixonamos e me casei
com ele. Pouco mais de um ano depois, fui embora com ele para a
França. Passei os primeiros anos com ele numa boa lá, a gente viajava
pra caramba pra outros países da Europa, a gente curtia bastante a
vida. Aí eu engravidei primeiro da minha menina e depois do menino, e
a vida foi indo. Só que um dia ele começou a mudar comigo e eu
comecei a ficar cismada com aquilo. Ele sempre foi rico, né, e achava
que eu tinha que ficar em casa e não trabalhar mais, e por mais que ele
desse tudo para as crianças e pra mim, eu fui começando a ficar
angustiada. Num dia, simplesmente peguei tudo que era meu e vim
embora. Só umas peças de roupa. A gente conversou e as crianças
ficaram com ele. Ele até que entendeu bem, apesar de ter tentado de
tudo pra que eu ficasse. Daí, quando eu voltei pro Brasil, não consegui
uma colocação profissional como a que eu tinha antes e comecei a
fazer programas.

E COMO FOI LIDAR COM ESSA NOVA REALIDADE?

SAMARA – Pra mim o mais difícil era a saudade dos meus filhos. Ainda
é, né, porque eles moram lá. Minha filha é modelo, linda! O meu filho é
atleta e a vida deles tá boa, mas eu sinto muita saudade deles. E em
relação aos programas, foi difícil, porque o ritmo era frenético. Eu queria
manter mais ou menos o padrão de vida que levava aqui antes, e pra
isso tinha que fazer muito programa. O bom é que pelo menos eu
sempre fiz mais programa com gringo do que com brasileiro. Eu já saio
na intenção dos gringos porque muita menina não fala outra língua e
não consegue desenrolar o programa, e eu só fisgo eles. Pagam muito
melhor e tem vezes que, num programa só, a grana já é boa e volto pra
casa cedo pra assistir um filme, comer uma pipoca, fazer cachorro-
quente!

ONDE VOCÊ CONCENTRA SEUS PROGRAMAS?

SAMARA – Sempre aqui pela zona sul: no Meia Pataca, na Balcony às


vezes na Cicciolina. É onde tem mais estrangeiro, né? Muitas vezes
desenrolei programa na praia. Teve muito cara que eu até me relacionei
e engatei namoro. Uns deram certo por mais tempo, outros não, mas
faz parte, né? Mas o pai dos meus filhos começou a me enviar um
dinheiro. Uma ajuda, sabe? E aí eu diminuí o ritmo dos programas e de
lá pra cá vou administrando o valor que ele me manda com o
pagamento dos trabalhos que arrumo. Aí é como eu te disse, só faço
programa mesmo quando tô com a corda no pescoço.

E COMO É PRA VOCÊ TER ESSA AJUDA DELE?

SAMARA – Pra mim é normal, até porque, mesmo que ele quisesse
que eu ficasse, a gente se separou até numa boa. E ele manda grana
porque sabe como tudo é mais difícil no Brasil. Eu acabei ficando velha
pra trabalhar com o que eu trabalhava há uns anos atrás. Hoje os
chefão gosta mais das novinhas. É triste, mas eu entendo que o tempo
passa e muitos desses caras poderosos com cargo de chefia contratam
esse padrão de meninas já pensando na foda que vão dar com elas lá
na frente, mas isso é trepada que custa caro. E ele, o meu ex–marido,
depois que as crianças foram ficando mais velhas e sempre
perguntando por mim, me ajuda muito por elas, sabe? Porque ele sabe
que eles vão ficar felizes sabendo que eu tô bem.

ENTÃO DESDE A SUA SEPARAÇÃO VOCÊ LEVA A VIDA


INTERCALANDO OS PROGRAMAS COMO SENDO UM “SEGUNDO
PLANO” PRA TI?

SAMARA – Isso! Mas eu sempre dou um jeito de não fazer porque


sinceramente eu não gosto. Eu até curto muito falar com os gringos e
estar exercitando as línguas que eu falo, mas a verdade é que por mim
não fazia mais programa nunca mais. Antes de eu voltar a fazer, e eu
voltei faz pouco tempo, eu passei uns anos sem fazer, viu? Mas
também era porque o “W”, que era o dono aqui do morro, ele me
bancava.

VOCÊ TEVE UM ENVOLVIMENTO COM ELE?

SAMARA – Sim, sim, logo que eu vim pra cá, morar aqui. Essa casa é
minha, foi ele quem me deu, com documentação e tudo. Ele queria que
aqui no morro eu fosse dele e de mais ninguém. Me dava dinheiro pra
caramba. Chegava aqui e colocava aqueles malote de dinheiro em cima
da mesa. Me falava que eu podia pegar o quanto quisesse. Era dinheiro
do tráfico, né, mas ele me ajudava e eu aceitava. Ele era um cara muito
maneiro o negão. Chegava aqui a gente transava e ficava namorando.
Era muito bom, mas também era como se fosse programa.

E O QUE ACONTECEU COM ELE? EU OUÇO TANTA COISA SOBRE


ELE MAS NÃO SEI O QUE É VERDADE OU NÃO...

SAMARA – Mataram ele lá no Vidigal. Ele saiu daqui fugido por causa
da guerra de facção e ficou lá. Só que parece que armaram uma casa
de caboclo[58] pra ele lá. Chamaram ele pra conversar e os próprios
comparsas dele mataram ele. Eu até passei um bom tempo vivendo
bem com uma grana que ele me deixou, mas agora tá meio complicado.
Por isso que vez ou outra eu tô tendo que ir pra pista.

EU ACREDITO QUE TU MORE SOZINHA, MAS SUA CASA ESTÁ


SEMPRE MOVIMENTADA. VOCÊ HOJE DIVIDE COM ALGUÉM?

SAMARA – Não eu moro sozinha mesmo, mas é que sempre tem umas
meninas que vêm aqui. Passam a tarde aqui. Elas são tudo puta,
tirando umas três, o restante é tudo mulher da vida, mas tudo gente
boa. São minhas amigas! Essa mesma que estava aqui quando você
chegou também fala um monte de idioma. Morou na Inglaterra, na
Espanha, e chegou até a ser casada com um gringo também.

QUAL É O TEU SONHO, SAMARA?

SAMARA – Eu quero muito sair do Brasil. Quero ir embora, morar fora.


Minha vontade maior mesmo é voltar para Paris e poder estar mais
perto dos meus filhos. Tô conseguindo juntar um pouco de dinheiro.
Passaporte eu tenho e não sou criminosa. Vamos ver como é que vai
ser. Daqui pro ano que vem quero ver se eu consigo ir embora.

NOTA:

Mais ou menos seis meses antes de eu me mudar do morro da


Babilônia, Samara foi embora. Despediu-se de mim e de algumas
pessoas com destino à França. Na última vez em que conversamos via
redes sociais, ela disse estar morando em Paris, trabalhando como
doméstica e muito feliz perto dos filhos.
CHRISTIANE, 25 ANOS – COPACABANA

Já foi dito e repetido aqui que a noite de Copacabana e de alguns


outros pontos do Rio de Janeiro é pitoresca. De certo que toda noite, ao
menos aos que preferem a vida noturna, reserva de tudo um pouco. Um
dia, numa conversa com uma amiga, que assim como eu, nasceu na
zona norte do Rio de Janeiro se mudando anos depois para a zona sul,
ela disse que “alguns processos sociais não se dão da mesma forma
em diferentes partes da cidade como na zona sul”. Compreendi bem o
que ela quis dizer, mas como só estava vivendo por ali há apenas três
anos, confesso que só com o tempo e a convivência passei a entender
melhor suas palavras, principalmente quando, após um longo período
morando no Leme me mudei de Botafogo e dali para Copacabana.
A Zona Norte, a Baixada Fluminense, a Zona Oeste e
Jacarepaguá têm suas noites, seus bares e seus pontos de encontro
sempre lotados de gente, pessoas que procuram o mesmo que a noite
oferece a todos os que a ela se entreguem. No entanto, fora da Zona
Sul, o cair da noite esconde mais do que revela, e lugares cada vez
mais vazios e fantasmagóricos são apenas o reflexo do berro dos que
aguardam chorando o retorno de quem não voltará por ter sido
silenciado pelo berro de um revólver. De fato, as palavras de minha
amiga fazem sentido.
Os que vivem ou mesmo transitam continuamente pela noite de
Copa sabem que tudo pode acontecer nessa área ao sul da cidade que
praticamente funciona vinte e quatro horas. Nada parece parar, e
mesmo o escuro da noite não diminui os efeitos impressos pelo sol do
dia. A busca por algo para fazer, um bar para beber e conversar ou
apenas se embriagar segue a noite na mesma intensidade que durante
o dia, com o aditivo de que, à noite, as drogas e o sexo fácil chegam
com muito mais facilidade do que à luz do sol. A tara de alguns por sexo
ou apenas por conhecer alguém que faça o dia terminar com uma boa
masturbada faz com que muitos passem madrugadas vagando como
zumbis, motivados apenas pelo mistério que ronda as inimagináveis
horas futuras que podem terminar com uma boa gozada e um cigarro
no canto da boca.
Sinceramente, não sei em que ponto sexo e droga confluem-se
até culminância de um complementar o outro para algumas pessoas.
Certamente que, alguns viciados em drogas, não conseguirão “colocar
o cabo na foice” sem um baseadinho pra tornar a coisa mais mágica,
assim como outros provavelmente irão tomar um pileque ou cheirar um
pouco de pó para se soltar mais. Mas a verdade é que, ao menos para
mim, muito embora relativamente jovem, já vivi o bastante para
compreender que o romantismo setentista globalizado no sex, drugs
and Rockn' Roll[59] imortalizado na canção de Ian Dury seja apenas um
caminho que termina com três “C”: cadeia, caixão ou cemitério. E com o
adicional do sexo formando um “simbiótico triângulo amoroso”, para
alguns, esse caminho pode terminar muito mais cedo, e não são poucos
os que são vítimas fatais de parceiros ciumentos, esposas, maridos ou
namorados e namoradas que extravasam os efeitos do álcool e outras
drogas em atos de fúria que terminam por ceifar vidas alheias.
E foi em meio a todo esse redemoinho de expectativas e situações
que fazem a noite ser noite – e principalmente a noite em polvorosa de
Copacabana – que conheci Christiane. Ela estava começando às 19
horas de uma sexta sua busca por alguns prazeres que só a noite
proporciona. No dia, eu estava sentado em um bar na rua Prado Junior.
Eu me lembro que tinha no bolso meu bloco de anotações e a ideia de
captar alguém para compor meu trabalho, mas não imaginava que esse
alguém acabaria vindo até mim de maneira tão fácil e natural.
Encontrava-me no Bar da Dulce, uma mulher negra bem magrela que
tinha um bar que ficava quase na esquina com a avenida Nossa
Senhora de Copacabana.
A proprietária, muito embora fosse acostumada a lidar com os
acontecimentos cabulosos e os diversos tipos da noite da Prado Junior,
que não são poucos, é um desses seres humanos dotados de sapiência
que poucos se dão a ter. Ela é daquelas pessoas que conversa bem e
com conhecimento mínimo sobre tudo, mas com um adicional que a faz
compôr um outro grupo de nobres seres humanos: aqueles que não são
“nobres” por terem um título de nobreza ou grana, mas que, ao não
conhecer algo, têm a humildade de dizer não saber do que se trata.
Sempre gostei de parar no Bar da Dulce para conversar com ela antes
de o relógio dar a balada da meia–noite. Enquanto no conto de fadas a
princesa se revela nesse horário, no meio da rasteiragem carioca, e por
que não mundial, meia-noite significa dinheiro na carteira, flerte e
bebedeira, maquiagem na cara, roupa colada e a revelação do lado
fatal dos que saem em busca de prazer ou de toda e qualquer diversão
que culmine em endorfina, em toda sensação que propicie bem-estar,
que se porventura terminar em sexo é ainda melhor.
Alguns conhecidos da Dulce chegaram e permaneci sozinho com
meus pensamentos. Eram duas mulheres e um bebê que devia ter
menos de um mês e que estava no colo de uma delas. Nesse instante,
percebi que Christiane passou por mim no sentido da rua Ministro
Viveiros de Castro e me olhava intensamente, e sem desviar os olhos
até atravessar a rua na direção à Barata Ribeiro. Achei estranho, mas
com certeza entendi não se tratar de uma mulher que eu conhecia ou
mesmo que tivesse tido algum envolvimento que me fizesse a fugir dela
como um desesperado. Mais ou menos dez minutos depois ela retornou
e veio diretamente até mim:

Posso me sentar aqui contigo? Tem algum problema?

Respondi que não, mas que o problema para mim poderia vir após
ela sentar. Até mesmo porque não sabia se ela tinha namorado ou
marido, que talvez a estivesse seguindo e parasse ali para resolver as
diferenças comigo, quando eu nem lhe conhecia. A mulher disse que
era sozinha e que eu não precisava me preocupar com nada nesse
sentido. Puxou pra si uma cadeira, sentou-se e foi direto ao ponto:

Vem cá, tu fuma?

Respondi que sim, oferendo-lhe meu pacote de cigarros, que a


mulher aceitou retirando um e acendendo após pegar o isqueiro ao meu
lado. Deu uma tragada calma e retornou a pousar os olhos em mim:

Eu tô querendo é maconha!

Ela não denotava fisicamente a fissura para fumar um baseado


que sua fala soou em meus ouvidos, mas eu apenas disse que não, e
ela permaneceu ali sentada, conversando comigo por longos minutos,
quase uma hora. Uma conversa franca e honesta de uma jovem
prostituta com pouco tempo de estrada, mas com a malícia que só as
Jacutingas[60] têm e que terminaria em uma entrevista em meu
apartamento.

ENTÃO VOCÊ FAZ PROGRAMAS. HÁ QUANTO TEMPO ESTÁ NA


LIDA?

CHRISTIANE – Bem menos do que muita menina que tá por aqui pela
pista, mas consigo fazer mais dinheiro às vezes numa noite que
juntando três delas.
E QUAL É O TEU SEGREDO, NA TUA OPINIÃO?

CHRISTIANE – Eu não posso te falar.

PORQUE NÃO? É ALGO ÍNTIMO? SE FOR, NÃO PRECISA FALAR.

CHRISTIANE – Não, não...Nem é por isso não, mas é que é um lance


que não dá pra falar. É coisa de fazer e se eu for fazer aqui, a gente vai
terminar na tua cama!!

ENTENDI.

CHRISTIANE – A maioria dos clientes que eu tenho eles vêm e sempre


retornam porque eu fodo bem pra caralho.

DE ONDE VOCÊ É?

CHRISTIANE – Eu sou amazonense.

E COMO É TUA HISTÓRIA COM O RIO DE JANEIRO?

CHRISTIANE – Eu vim pra cá pra visitar uma amiga de lá do Amazonas


que veio morar aqui faz uns anos. Eu, sempre que podia, vinha visitar
ela. A família dela é bem de vida e sempre pagavam minha passagem
pra vir porque nós somos muito amiga mesmo. Daí, um dia, eu tive uma
discussão em casa lá no Amazonas e vim com o pretexto de ver ela,
mas nunca mais voltei. Assim, eu queria ver minha amiga também, eu
sempre morri de saudade dela, tanto que no início aqui ela é que
sempre me deu força. Até hoje eu moro com ela, inclusive. Eu só não
quis mais voltar pra lá e ela me apoiou.

E QUANTO TEMPO FAZ QUE TU VIVE AQUI?

CHRISTIANE – Tem um ano e meio, mais ou menos.

E TUA AMIGA SABE QUE VOCÊ É PROSTITUTA?

CHRISTIANE – Sabe, ela sabe sim, mas leva de boa! Ela sempre me
apoiou em tudo, é amiga mesmo. Ela não faz programa e leva uma vida
totalmente diferente da minha. Ela administra uns patrimônios que os
pais dela têm aqui no Rio. Mas pra ela é meu trabalho e é só isso. Ela
não me julga não, tu acredita? Ela sabe que eu nunca fui boa pra
estudo e que se não for isso de fazer programa pelo menos agora no
início eu não vou ter como me sustentar.
ENTÃO PARECE QUE VOCÊS SE DÃO BEM, NÉ?

CHRISTIANE – Sim a gente se dá super–bem. Eu não vou dizer que


ela me entende perfeitamente porque ela leva uma vida de princesinha.
Tem e sempre teve tudo na mão e frequenta uns ambiente que eu não
frequento, mas não dá pitaco no que eu faço e me respeita demais. Ela
mora num apartamento aqui em Copacabana e paga tudo pra mim
também. Não me deixa colocar a mão no bolso pra nada. A única coisa
que eu não posso fazer é trazer cliente pra fazer programa onde a
gente mora junta. Isso aí jamais e eu nem penso. Faço meus programa
nos hotel, nos apartamento de alguns cliente e até na areia da praia.

VOCÊ FAZ PROGRAMA NA AREIA?

CHRISTIANE – É, mas eu faço programa na areia de noite, em dia de


calor quando o cliente só tem dinheiro pra pagar o meu programa ou
então quando paga só por um boquete. Aí é tranquilo, a gente vai lá pra
perto de onde tem o espelho d'água e fica fodendo ali e ninguém vê. Só
quando é verão mesmo que é foda, porque passa muita gente a noite
toda e aí complica.

E TEVE ALGUMA VEZ QUE VOCÊ TEVE ALGUM PROBLEMA COM


ISSO?

CHRISTIANE – Ahh, só uma, porque eu tava fumando unzinho[61] com


um cliente e nesse dia a gente só foi pra lá de noite pra fumar mesmo.
Daí quando a gente viu já tinha dois “cana” bem atrás da gente. O
polícia deu o maior tapão na cara do cliente que os óculos dele voou
longe. Puxou meu cabelo e mandou a gente sair fora dali. Mas fora isso
nunca tive problema não!

E COMO É TUA RELAÇÃO COM A MACONHA E O TRABALHO?

CHRISTIANE – Poxa, eu fumo pra me divertir mais com a situação.


Mas é claro que eu sou viciada, é foda. E se me derem maconha antes
de foder aí é que eu fodo mesmo! Eu te perguntei se tu tinha maconha
pra eu poder ir trabalhar mais tarde.

VOCÊ SÓ TRABALHA SE FUMAR? COMO É ISSO?

CHRISTIANE – Não...Se eu não fumar eu também trabalho, mas no


geral eu só saio pra trabalhar lá pelas onze ou meia-noite, depois de dar
um dois[62]. O problema é que hoje, eu não sei por que, mas os
meninos que ficam por aqui vendendo sumiram, e eu nem sei se eu vou
conseguir comprar. Tomara que quando eu sair pra trabalhar tenha
alguma menina que me salve. Mas hoje, se eu não conseguir um
baseado pra fumar eu bebo uns negócio e fica bom também. Eu sou
meio Christiane F[63]. Sabe? Com “ch” mesmo. Por isso que até te dei
esse nome pra colocar na entrevista e é o nome que eu falo que tenho
pra todo cliente. Eu amo esse livro!

VOCÊ LÊ BASTANTE?

CHRISTIANE – Porra, se tem um outro vício que eu tenho depois da


maconha é ler. Eu leio pra cacete, desde pequena. Até jornal eu gosto
de ler, pra acompanhar as coisa que estão acontecendo.

VOCÊ SÓ FAZ PONTO EM COPACABANA?

CHRISTIANE – É. Até porque, se você for ver bem, aqui em Copa é o


foco do Rio de Janeiro né, tem mais turista, tem mais gente, rola mais
grana. Eu já até pensei em cair lá pra Lapa ou pros lados ali do Centro,
mas não é tão bom quanto aqui!

E EM QUAL LUGAR POR AQUI VOCÊ FAZ PONTO?

CHRISTIANE – Eu fico circulando bastante, mas gosto mais de parar


em frente à Barbarella[64] lá pelas quatro da manhã, por aí.

POR QUE?

CHRISTIANE – Porque os caras bebem muito lá dentro e saem “pra lá


de Machu Picchu”. Quando eles saem de lá da Barbarella assim é
programa certo.

É CURIOSO QUE VOCÊ TEM TODA UMA FORMA DE


PLANEJAMENTO.

CHRISTIANE – Sim, mas tem que ter, ué! É como eu te falei, minha
amiga faz de tudo por mim, mas meu dinheiro eu tenho que conseguir
por minha conta. E na real, eu não vou fazer programa a vida toda. Vou
parar e sei lá num momento vou ter que encontrar um outro rumo, nem
que tenha que voltar a estudar. Mas enquanto eu faço o que eu tenho
feito pra me sustentar, tenho que ter meu caminho pra trabalhar, senão
eu fico pra trás e a pista tá cada vesz mais salgada. Todo dia quase
aparece uma menina nova na área. É foda, cara!

TU TEM ALGUM SONHO?


CHRISTIANE – Eu quero me casar e ter dois filhos. Um menino e uma
menina.

BÁRBARA, 30 ANOS – IPANEMA

Existem muitos mistérios que rondam nossa existência. Se


somente os índios habitavam o Brasil quando os portugueses
chegaram, se o ovo veio primeiro que a galinha ou se o Flamengo é
realmente o maior clube de futebol do Brasil como muitos flamenguistas
defendem com unhas e dentes. Mas certamente um dos mistérios mais
intrigantes é “se toda travesti gosta da Barbra Streisand.
Todavia, essas incógnitas citadas acima estão apenas entre as
mais “clichés” a rondar nossas mentes, tal como aquela velha história
que muitos têm sobre pensar se o salário do mês trabalhado vai durar
numa boa até o dia 15 sem ter que “vender o almoço para comprar a
janta”. Acredito que todos os seres humanos tenham lá suas questões
que ultrapassam a fronteira daquelas que são habitualmente ditas e
repetidas em todas as esquinas, bares, trabalho, escolas, universidades
e na intimidade do lar. E o que traz luz e respostas a esses
questionamentos deve sempre ser ponto de muita atenção da parte dos
que perguntam a si mesmos, por exemplo, o porquê de a “maioria dos
homossexuais ser assassinada por seus respectivos cafetões, em áreas
de prostituição e de consumo de drogas, inclusive em horários em que
o cidadão de bem já está dormindo,“como afirmou à revista Época, em
julho de 2011, o homem que em 2018 foi eleito presidente do Brasil ao
falar sobre o Projeto de Lei no 122[65].
Não são poucas as “lendas urbanas” em torno dos profissionais do
sexo, e certamente isso é algo que não data dos tempos atuais. Para
muitas pessoas, se alguém é mulher e está parada na esquina à noite,
é puta. Se é um homem de corpo sarado e sai à noite, é michê,[66]
usuário assíduo de álcool e outras drogas ou criminosos em potencial.
Verdades, mentiras ou falácias? O certo é que vivemos numa sociedade
de classes em permanente “luta de classes” heterogêneas em
constante luta, passíveis de cometer desde atos incríveis de amor até
as atrocidades mais absurdas, e é nesse contexto que minha história
teve início com a Bárbara. Eu já a conhecia dos meus rolés pessoais
pelas noites de Copacabana, tanto em meus programas pessoais de
caminhada, pedalada, jantares e mesas de bar, até as manhãs em que
saía para trabalhar e encontrava com ela retornando de sua lida na
Balcony. A travesti de quase dois metros de altura, linda e de um corpo
escultural me abordou muito cedo um dia dentro do mercado 24 horas
da rua Ministro Viveiros de Castro. Na época, eu morava no Leme e
trabalhava como assistente social no morro do Cantagalo, em Ipanema,
e costumava parar ali para comprar um suco e um sanduíche algumas
vezes antes de seguir meu caminho para a labuta.
Na ocasião, Bárbara não parava de me olhar desde quando
estávamos na mesma gôndola de bebidas geladas e, ao parar atrás de
mim no caixa me perguntou se eu não queria ir com ela até seu
apartamento para fazer sexo. Eu disse estar muito atrasado para o
trabalho, e que certamente não seria uma boa ideia, até porque, além
de eu ser casado não “curtia” o que ela estava me propondo, do que ela
respondeu num muxoxo de insatisfação:

– Que pena. Eu nem tô pensando em te cobrar nada. Quero te dar


porque você tem cara de que come gostoso!

Eu me retirei após pagar pelo que comprei e acendi um cigarro ao


lado de fora enquanto esperava que ela saisse do mercado, e quando
ela passou por mim, fiz-lhe o convite para ser entrevistada.
Conversamos durante o tempo em que meu cigarro ainda queimava e
ela me deixou seu telefone para que eu ligasse e pudéssemos combinar
dia e horário e mostrou-se muito receptiva. Nesse período de minha
vida, estava prestes a ir para a Inglaterra e estava juntando grana para
a viagem, por isso decidi ter um outro trabalho que me propiciasse um
acréscimo na renda. Além de trabalhar no morro do Cantagalo, também
realizava à noite o hoje extinto “Plantão Social” no projeto Delegacia
Legal. Um trabalho interessante onde assistentes sociais e psicólogos
contratados atuavam como plantonistas junto aos agentes da polícia
civil dentro das delegacias, dando uma nova abordagem a casos
específicos de violência contra a mulher, idosos, crianças entre outros.
Comecei na 14 a Delegacia Policial (DP), mas por falar idiomas fui
alocado na Delegacia de Atendimento ao Turista (DEAT), ambas no
Leblon. Me lembro bem que, no dia posterior à conversa com Bárbara,
ao estar examinando o livro do Serviço de Inteligência Policial (SIP), ou
“Book de Suspeitos”, vi uma foto de Bárbara estampando a primeira
página, juntamente a outras travestis e prostitutas suspeitas de
cometeram crimes na zona sul do Rio. Assim, recordei no ato de ter
assistido recentemente uma matéria na TV Globo em que algo tinha
ocorrido na saída de um clube noturno em Copacabana, e Bárbara,
juntamente a outra travesti, estava envolvida, e inclusive tinha sido
levada para a delegacia para prestar depoimento.
Marcamos nossa entrevista para dali a duas semanas, e nos
encontramos no início da noite em seu apartamento. Ela dividia o local
– que era bastante luxuoso – com mais duas travestis, que estavam de
saída quando cheguei. Sentei e aguardei enquanto Bárbara colocava
uma espécie de robe para finalmente nossa conversa ter início.
OI BÁRBARA! ENTÃO, COMO OS PROGRAMAS COMEÇARAM
PRA TI?

BÁRBARA – Nossa! Se for pra falar na real mesmo, começou desde


que eu era garotinho ainda.

COMO ASSIM?

BÁRBARA – Eu garoto já fodia com outros meninos por bala, doce e


um pouco de dinheiro. Na maioria das vezes, fazia mais era boquete
mesmo, nem era muito de dar o cu. Às vezes eu comia uns dois que
eram do nosso mesmo grupinho ali de amigos e tal, mas isso aí já foi
quando eu estava um pouco maior.

E QUANDO TU SE TORNOU UMA PROFISSIONAL DO SEXO?

BÁRBARA – Isso aí veio mais tarde, com o tempo. Eu já estava com 22


e já tinha tomado hormônio, tava com peito, com bunda, e daí a coisa
começou a tomar outro rumo. Um rumo mais profissional, no caso. Foi
um tempo que eu ainda trabalhava normal, como qualquer pessoa que
sai todo dia pra trampar, como você estava indo no dia que eu te
conheci, mas aí eu percebi que o dinheiro do salário sempre era pouco
pro que eu gostava. Eu gosto de Victoria Secrets, gosto usar Channel
número 8 e gosto de comer bem, me vestir bem. O dinheiro dos
programas era muito melhor e num momento eu pensei: “Porra, é isso
mesmo? Eu acordo cedo todo dia pra ganhar um salário de merda no
fim do mês?” Daí saí da firma e caí pra dentro da noite.

ENTÃO TUA MOTIVAÇÃO MAIOR FOI ESSA? A GRANA?

BÁRBARA – Com certeza foi isso, mas tem várias outras coisas
também.

POR EXEMPLO?

BÁRBARA – Desde adolescente eu tinha a ideia fixa de ir pra Itália.


Sempre quis conhecer esse país e depois de começar a fazer programa
uns anos atrás eu sempre ouvi que era muito bom por lá. Daí um dia
comecei a ter isso mais forte na minha cabeça, tipo: “Eu vou fazer
minha vida na prostituição lá na Itália”. E eu fui!

E FOI TUDO TRANQUILO?

BÁRBARA – Sempre! Eu nunca tive problema nenhum com imigração


e nem por lá. Juntei dinheiro, conheci gente, fiz amizades e muita
amizade fora do meio de trans e tal. Fiz amizades com famílias, estudei
numa escola de italiano. Eu me inteirei muito com a cultura de lá, tanto
que saí e voltei umas três vezes, e no final deste ano, se Deus quiser,
eu tô de volta na Itália.

PORQUE “SE DEUS QUISER?” VOCÊ TEM ALGUMA QUESTÃO


QUE TE IMPEÇA?

BÁRBARA – Eu tive um probleminha aí com a justiça, mas tô


resolvendo. Nada sério não, mas tenho que resolver isso primeiro antes
de estar certa mesmo de que posso sair do país sem problema.

ISSO TEM RELAÇÃO COM A MATÉRIA DA TV HÁ UM MÊS?

BÁRBARA – Menino! Você sabe disso? Gente, que vergonha!

PARA SER SINCERO RARAMENTE ASSISTO TV, MAS NO DIA


DESSA MATÉRIA ESTAVA NA CASA DE MEUS PAIS E ACABEI
ASSISTINDO.

BÁRBARA – O que aconteceu ali foi que eu e outra travesti saímos pra
fazer um programa com dois gringos, cada uma com um. Chegamos lá
no hotel onde eles estavam e foi uma putaria só, teve troca-troca e tudo,
e a travesti que tava comigo roubou eles.

SÉRIO?

BÁRBARA – Te juro! Por que eu tô falando isso e eu disse isso lá pra


polícia, e tenho falado pra todo mundo que eu conheço? Porque essa
outra travesti é conhecida minha aí da pista, da noite, mas a gente não
tem intimidade. E depois que nós fizemos o programa, voltamos todo
mundo junto pra boate ali em Copacabana. No táxi, os dois gringos
começaram a perceber que estava faltando dinheiro na carteira deles.
Daí, pagaram o táxi mas falaram com os policiais que estavam do outro
lado da rua numa viatura em frente à boate. Daí foi aquela confusão.
Eles até já tinham pago tudo pra gente. Pagaram em dólar, mas
disseram que tinham sido roubados e o dinheiro tava na bolsa dela. E
eu acabei entrando de bucha na história, é mole?

MAS ELA ASSUMIU O DELITO?

BÁRBARA – Sim, sim, ela assumiu tudo lá na delegacia, na frente de


todo mundo, e ficou “guardada” lá no mesmo dia. Eu voltei pra casa,
mas teve essa confusão toda na porta da boate, teve televisão e eu
nem sei como esse pessoal da TV chegou tão rápido pra fazer
reportagem. Sério mesmo! Agora eu tô aí “famosa” por ter aparecido na
televisão fazendo uma merda que eu nem fiz!

E TEM SIDO MAIS COMPLICADO TRABALHAR DEPOIS DISSO?

BÁRBARA – Olha, pra mim, tem sido porque eu fazia muito dinheiro ali
no Clasablanca. Também tinha muita amizade com as meninas, com os
seguranças, os taxistas, e isso é meio chato, né? Eu não tenho ido mais
lá. Agora tô indo trabalhar na Balcony, mas ainda bem que tô
conseguindo levantar quase a mesma grana de sempre, mas a gente,
apesar de ser puta e travesti tem a nossa dignidade! Meus pais me
ensinaram desde cedo a não pegar nada que é dos outros e eu sei da
minha índole. Mas, de certa maneira, é bom porque a gente aprende a
ficar mais ligada nas paradas, sabe? Eu já tinha ouvido que ela não era
tão “flor que se cheire” assim! No fundo eu que dei bobeira, porque é
como minha avó sempre disse: “Quem se mistura com porcos farelo
come!!”

E TEUS SONHOS? AINDA TEM?

BÁRBARA – Com certeza! Eu quero ir morar na Itália, mas dessa vez


vou de vez e não volto mais pra esse país filho da puta. Não que eu não
goste do Brasil, tá? Mais esse país aqui não tem respeito com o povo,
não! E pra mim, é melhor partir de vez agora que ainda não tô velha e
posso fazer um pouco de dinheiro antes de parar. Daí vou ficar só
viajando e curtindo um pouco mais a vida. Também quero muito ir num
show da Barbra Streisand um dia. Sou muito fã dela. É até por isso que
meu nome de guerra é Bárbara!

ALANA, 18 ANOS – VILA MIMOSA

Acredito ser muito difícil que você, leitor, nesse momento lendo
este livro nunca tenha ouvido na vida os ditados “tal pai, tal filho”, “filho
de peixe, peixinho é” ou “casa de ferreiro, espeto de pau”. Ditos
populares que têm tradições de décadas, mas que, ao menos na minha
opinião, têm legitimidade nula frente ao que o destino de fato reserva a
cada ser humano ao longo de suas passagens por esse plano.
No livro “O Dezoito Brumário de Luiz XVI”, Karl Marx diz que “os
homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem,
não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim, sob aquelas com
que se defrontam“. Isso posto, é bem clara a compreensão de que em
nossas vidas somos um simples produto do acaso mediante as
escolhas que fazemos pelo livre-arbítrio que nos é dado, escolhas
essas que podem nos levar para uma infinidade de caminhos que
podem ser mais alegres ou mais tristes.
De certo que todo o tradicionalismo e verticalização de valores
que nos são passados pela família, amigos, parentes e pessoas em
geral desde que nascemos têm um papel predominante no que fazemos
em relação aos gostos, preferências e escolhas. Contudo, as influências
do meio socio ambiental são muito ínfimas para determinar
definitivamente o que faremos no futuro, por exemplo. Se isso fosse
fruto de um viés determinista, os filhos de criminosos já seriam
delinquentes na tenra idade e o mesmo aconteceria com filhos e filhas
de profissionais do sexo, filhos e filhas de caminhoneiros, de
dançarinos, de professores, etc, e bem sabemos que isso não é algo
que se suceda com frequência no mundo real.
Pode soar de forma cliché, mas exceto raríssimas exceções, a
vida é e sempre será feita de escolhas pessoais. No entanto, temos
casos excepcionais onde a exceção se torna regra em vias de fato, e o
anteriormente dito “meio socio–ambiental” consegue se sobrepor a
outras possibilidades colocadas. A entrevistada da vez é uma
conhecida minha de longa data. Exatamente dos tempos em que eu
tinha 18 anos e ela ainda era uma criança. Alana é filha adotiva de um
falecido vizinho que há anos se apaixonou por uma garota de programa
da Vila Mimosa. Quando a trouxe para morar com ele, numa vila onde
toda sua família morava em Madureira, foi um verdadeiro escândalo. Eu
me lembro que algumas pessoas mudaram-se do local o mais
rápidamente que foi possível e além dos familiares que estavam
resignados, outros vizinhos passaram a torcer o nariz para ele e para a
mulher. Quando ela foi viver com ele, Alana que não era filha biológica
dele, tinha menos de um ano de idade, e não muito tempo depois a
mulher engravidou e tiveram um menino. O que me lembro é que pouco
antes de o menino completar dois anos, ela retomou à rotina de
programas na Vila Mimosa, muito mais motivada pela falta de dinheiro
para alimentar duas crianças do que pela saudade que tinha de fazer
sexo com todo tipo de homem.
Nós conversávamos muito e ela dizia ter vontade de parar de vez
um dia e se mudar para o interior. O tempo passou e meu vizinho foi
assassinado na esquina de casa. Até hoje um crime não solucionado,
mas o lado bom dessa história triste foi que os criminosos pouparam a
vida do menino que ainda bebê estava no colo do pai quando este foi
alvejado por seis tiros enquanto telefonava num orelhão. O resumo da
história é óbvio: sem a ajuda do marido morto, a mãe teve que
aumentar a intensidade dos programas e protelar o plano de parar de
vez com esse tipo de trabalho, e Alana passou a cuidar do irmão em
casa. As duas crianças cresceram praticamente sozinhas, a contar
apenas com a ajuda de uma tia de segundo grau que já era bastante
idosa e não podia dar a atenção devida a ponto de a menina, já
adolescente, começar a andar em companhias cada vez mais
estranhas.
Com o passar do tempo e me mudei do local, e numa tarde de
quarta-feira em que decidi ir até a Vila Mimosa para buscar alguma
possibilidade de entrevista, me deparo com a menina-mulher num dos
becos do puteiro, dançando funk até o chão. Calcinha enterrada na
bunda, decote fatal, cinta-liga vermelha e tudo mais. Não a via muito,
mas estava bonita demais apesar da maquiagem excessiva. Bastante
parecida com a mãe em tudo, inclusive no corpo muito bem formado.
Sua primeira impressão ao me ver foi de ficar envergonhada, e eu bem
sabia o porquê. Ela que estava com 18 anos, tinha voltado a viver na
casa onde cresceu após o pai ser assassinado e eu a via
esporadicamente por lá quando visitava meus pais, e pelo jeito ela não
queria que as pessoas soubessem que ela era garota de programa.
Perguntei se ela queria comer ou beber alguma coisa comigo fora dali e
conversamos na mesa de um restaurante. Ela comia muito rápido e
parecia o tempo todo estar assustada, como se alguém a espreitasse
na saída do estabelecimento, mas aceitou fazer a entrevista.

OI ALANA!! QUANTO TEMPO NÃO NOS VEMOS NÃO É?

ALANA – É, tem o maior tempão né? Tu não mora mais lá em


Madureira[67] não, né?

NÃO, NÃO MORO. MAS UMA VEZ POR SEMANA VISITO MEUS
PAIS LÁ. VOCÊ ESTÁ MORANDO ALI NESSE MOMENTO?

ALANA – Tô sim, na mesma avenida. Não gosto não, mas fazer o que,
né?

E PORQUE VOCÊ NÃO GOSTA DE MORAR ALI?

ALANA – Ah, cara, é muito fofoqueiro que não tem o que fazer e ficam
tomando conta da vida dos outros. Eu não gosto disso não! Vizinho
fofoqueiro é a uó[68]!! Nem fala pra ninguém que tu me viu lá na Vila
não, hein! Porra, Pelamor de Deus!

MAS ISSO NÃO MUDA. TEM EM TODO LUGAR.

ALANA – Ah, não é assim não! Eu morei lá na Areia Branca em Belford


Roxo e lá num tinha isso não. Até porque se tu ficasse de fofoquinha lá
os menino[69] dava logo o papo reto!

E QUEM SÃO “OS MENINOS”?

ALANA – É os bandido. O pessoal do movimento[70].

VOCÊ MOROU BASTANTE TEMPO POR LÁ, NÉ?

ALANA – Morei, e era muito melhor do que lá em Madureira. O pai do


meu filho é de lá. Ele é bandido também.

E ELE MORA CONTIGO NESSE MOMENTO?

ALANA – Não, ele continua lá. Quase morreu no ano passado. Quase
morreu de tiro ele.

EU NÃO SABIA QUE VOCÊ ERA MÃE!!

ALANA – Tu não devia saber nem que eu já fodia, né? (risos)


E QUANTOS ANOS TEM SEU FILHO?

ALANA – Ele tá com quatro aninhos.

VOCÊ FOI MÃE COM 15 ANOS, ENTÃO?

ALANA – Eu tava com 14 pra 15 anos!!

QUANDO E PORQUE COMEÇOU A FAZER PROGRAMAS?

ALANA – Não faz muito tempo não. A minha mãe casou de novo e foi
embora pra Cachoeira de Macacu, daí eu fiquei morando lá na casa
com o meu irmão. Aí ele foi preso, ele tá lá no Padre Severino, eu acho,
cumprindo pena porque ainda é de menor[71], e o pai do meu filho tá
jurado de morte e me mandou ir pra lá pra Madureira, que tava muito
perigoso lá.

VOCÊ SÓ FAZ PROGRAMA LÁ NA VILA?

ALANA – É, eu só faço lá mesmo. Comecei lá e só faço programa lá


dentro.

E A TUA MÃE SABE?

ALANA – Eu acho que ela ainda não sabe não! A gente não se fala já
tem um bom tempo.

VOCÊS PARARAM DE SE FALAR?

ALANA – Não, eu e ela a gente não tem problema nenhum não. Mas a
situação é que eu não gosto do marido dela e ele também tem
problema comigo. Ele tentou abusar de mim também quando eu era
pequena e é melhor ficar cada um no seu quadrado.

E ESTUDOS?

ALANA – Eu parei de estudar tem muito tempo já.

E PENSA EM VOLTAR A ESTUDAR?

ALANA – Eu até penso, mas o problema é que eu saio tarde lá da


V.M[72] e quando eu tô em casa só quero é dormir mesmo.

QUEM FICA COM O TEU FILHO ENQUANTO VOCÊ TRABALHA?


ALANA – A minha tia.

E ELA SABE QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO PROGRAMA?

ALANA – Ela eu acho que sabe. Eu falei pra ela que tô trabalhando de
camareira num motel, mas eu acho que ela sabe que eu tô fazendo
programa. Mas como ela é uma pessoa que não me perturba – mais
ajuda do que pertuba ela – eu nem fico bolada de ela dizer alguma
coisa pra alguém. Até porque eu acho que ela não vai falar isso pra
ninguém.

E A GRANA QUE TU GANHA? DÁ PRA VIVER?

ALANA – Viver numa boa não, mas dá pra eu e pro meu filho ficar bem.
De vez em quando o pai dele me manda dinheiro. De vez em quando
alguém de moto vai lá e leva um dinheiro pra nós e isso também ajuda.
Tomara que não matem ele tão cedo. Ele me ajuda muito. É um cara
vida loka[73], mas tem responsabilidade de pai na moral!

TU TEM ALGUM SONHO?

ALANA – Eu queria escrever um livro igual ao que tu tá fazendo. Queria


escrever um livro sobre o Japão. Eu gosto pra caralho do Japão e das
coisa de lá e eu queria ir pra lá, morar lá e escrever sobre como foi
minha vida lá. Mas eu tenho que voltar pra escola, isso sim, não tenho
esses palavriado todo pra escrever igual escritor escreve não.

PAULISTINHA, 18 ANOS – VILA MIMOSA

O filme “O Homem de Aço”, do diretor Zack Snyder, foi um grande


marco na minha vida. E tudo isso se dá não pela grandiosidade do filme
– que é ótimo, mas nada de tão fenomenal. O fato é que me lembro que
o assisti no dia da pré-estréia, à meia-noite de uma sexta-feira de calor
inclemente no Rio de Janeiro, e no caminho conheci o Walter.
Walter é um morador de rua como muitos que perambulam sem
eira nem beira na cidade do Rio de Janeiro, e como outros tantos o
fazem em diversas partes de um rico Brasil que é um verdadeiro
paraíso para poucos ricos que exploram pobres. Nesse dia, pedalei com
minha velha Monark Ipanema e cheguei cedo ao Roxy, em
Copacabana. Comprei meu ingresso e fui caçar algo para comer, pois
estava faminto. Entrei num restaurante árabe e me assustei quando
percebi que o rango para uma pessoa dava para ser comido por pelo
menos três, e exercitei meu lado social solicitando que o excedente de
comida fosse embalado num recipiente para viagem.
Antes mesmo de atravessar a rua no sentido do cinema, me
deparei com o Walter revirando um monte de lixo que estava entre a
calçada e a rua Nossa Senhora de Copacabana e perguntei se ele
aceitava a comida. Ele não se levantou, mas sorriu para mim e disse
que sim, que aceitava, e que eu poderia apoiar o vasilhame no “burrinho
sem rabo” que estava estacionado ao seu lado. Achei curioso como ele
estava compenetrado em sua busca por algo dentro das negras e
imensas sacolas de lixo. Percebi que ela não buscava comida, o que
tinha sido minha primeira impressão, mas ele separava cuidadosamente
uma série de artigos de decoração, roupas, sapatos, livros e até alguns
utensílios domésticos.
Perguntei-lhe o que ele faria com tudo aquilo e ele disse que no
outro dia levaria para vender na feira da Praça XV, no Centro do Rio.
Curioso, lhe perguntei se era possível conseguir uma boa grana com o
material que encontrava e sua resposta foi taxativa:

– Dá meu peixe! Dá sim! Na semana passada eu achei um relógio


Rolex e dois cordão de ôro! O garimpo sempre é bom aqui na sul, só
tem que tê disposição!

O odor era horrível e era perceptível que todo o lixo ali era uma
mistura de material orgânico com não orgânico, e o homem usava as
mãos desprovidas de luvas e só tinha sua própria camisa amarrada ao
rosto para poder aliviar ao menos um pouco todo o mau cheiro que
exalava da montanha de lixo.

– Eu só num gosto de fica longe de casa, tu me entende,


cumpadi? Porque eu tô aqui nessa condição mas num sô mindingo não!
Tenho minha caxanga lá em São Gonçalo, tenho mulher e uma filhinha
pequena, mas só vejo elas depois da feira de sábado – disse o homem,
olhando pensativo para mim, que, àquela altura, estava sentado no
meio-fio ao seu lado.

Você passa a semana inteira aqui catando coisas pra vender?


– perguntei–lhe.
Sim. De segunda a sexta eu durmo por aí debaixo das
marquise e quando é sábado à
noite eu meto meu pé pra São Gonça.

No fim das contas, meu tempo para a sessão de cinema estava


estourando, e desejei boa noite ao Walter e segui meu rumo, enquanto
ele permanecia buscando o dele na salvação proveniente do rumo que
algumas pessoas dão ao que julgam ser inútil para si.
Eu me lembro que um dos primeiros trabalhos de campo que
realizei como estudante de serviço social tratava-se de uma ação junto
a Arquidiocese da cidade para buscar a reinsceerção de moradores de
rua em suas famílias. Uma tarefa árdua, difícil e que demanda não só
um entendimento muito bom sobre atenção básica e especial como
nervos suficiente para ouvir e vivenciar histórias capazes de fazer os
mais duros corações amolecerem-se como bosta de cachorro no asfalto
em dia de calor. Nesse período, passei a entender um pouco como era
a dinâmica de pessoas que faziam dos movimentos pendular e
nomadista algo como uma nova ressignificação do flagelo urbano das
grandes metrópoles. E isso foi o que mais me tocou no primeiro e único
contato que tive com a Paulistinha.
A garota com corpo de menina, mas gênio de mulher aceitou fazer
a entrevista no primeiro dia em que falei com ela na Vila Mimosa. Os
olhos verdes combinavam com as cores esverdeadas das muitas
tatuagens pelo corpo das quais as que mais chamavam a atenção eram
a Arlequina – icônica personagem da DC Comics que nutre um amor
doentio pelo Coringa[74] – na coxa esquerda e uma folha de maconha
na coxa direita. Ambas eram imensas e bastante mal acabadas, dando
total indício da falta de talento do tatuador. Era uma moça muito bonita,
apesar de castigada pela vida, como estava para alguém com a sua
idade. Quando a abordei, ela achou que eu gostaria de fazer um
programa, e se encaminhou até mim com uma performance de dança
para lá de provocante. No entanto, depois que coloquei minha real
situação em estar ali na zona, ela topou na hora perguntando se
poderíamos sair dali para conversar num hotel que tivesse um chuveiro
e perguntou se eu tinha maconha. Respondi em negativa e ela quis
saber se poderia levar um pouco. Respondi que sim, mas que só
poderia fazer a entrevista se ela estivesse careta. Ela concordou, e
após eu aguardar meia hora subimos em minha motocicleta e partimos
com destino ao hotel. E eu, que geralmente começo fazendo as
perguntas, no entanto, fui surpreendido por uma pergunta da moça
assim que fechamos a porta do quarto.

PAULISTINHA – Tu tem como me ajudar com um negócio?

SE FOR ALGO QUE ESTEJA AO MEU ALCANCE, COM CERTEZA.


DO QUE SE TRATA?

PAULISTINHA – Eu fiz um programa antes de você chegar lá, mas a


camisinha ficou aqui dentro da minha boceta. Tá lá no fundo e eu não tô
conseguindo tirar. Tu pode me ajudar a tirar ela?
E COMO EU TE AJUDO COM ISSO?

PAULISTINHA – Eu vou deitar aqui na cama e abrir as pernas e tu


mete a mão lá e tira!

VAMOS FAZER MELHOR. VAMOS PEGAR A MOTO, TE LEVO NUM


POSTO DE SAÚDE E ALGUÉM REMOVE ISSO LÁ, PODE SER?

PAULISTINHA – Tá bom.

APÓS POUCO MAIS DE UMA HORA E DEPOIS DO PRESERVATIVO


REMOVIDO, ESTÁVAMOS DE VOLTA NO MESMO QUARTO DE
HOTEL, ONDE FINALMENTE NOSSA ENTREVISTA TEVE INÍCIO.

PAULISTINHA – Cê me desculpa, tá bom? Eu tô até com vergonha!

ISSO NÃO É MOTIVO PRA TER VERGONHA. VOCÊ ME PEDIU


AJUDA E AJUDEI TE LEVANDO NO POSTO DE SAÚDE.

PAULISTINHA – Tu sabia que eu nunca tinha ido num ginecologista na


vida?

E POR QUE NÃO?

PAULISTINHA – Eu sei lá! Talvez é por causa de falta de cuidado


mesmo. Não tive ninguém pra pegar no meu pé, pra me mostrar que
isso é importante, sei lá.

E REALMENTE ESSE ACOMPANHAMENTO QUE AS MULHRES


TÊM QUE TER É ALGO MUITO IMPORTANTE. VOCÊ PODE
DETECTAR ATÉ ALGUNS TIPOS DE DOENÇAS EM TEMPO DE
TRATAR FAZENDO PREVENTIVOS PERIÓDICOS. MAS
VAMOS LÁ. PORQUE “PAULISTINHA”?

PAULISTINHA – Porque eu sou de São Paulo.

E HÁ QUANTO TEMPO TU MORA NO RIO?

PAULISTINHA – Deve ter uns dois anos. Vim pra cá com um


namorado, mas a gente terminou depois de uns cinco meses.

ONDE VOCÊ MORA?

PAULISTINHA – Eu moro em tudo quanto é lugar. Eu moro por aí, tá


ligado?!
NÃO. O QUE É “MORAR POR AÍ”?

PAULISTINHA – Eu não tenho casa. Tava morando na rua já fazia um


ano mais ou menos.

E AGORA? QUAL A TUA SITUAÇÃO?

PAULISTINHA – Agora faz uns seis meses que eu tô morando na zona,


quer dizer, eu não moro lá, tá ligado? Mas faço programa e durmo na
casa lá pelas 4 horas da manhã e acordo de dia.

ENTÃO VOCÊ NÃO FAZ PROGRAMA HÁ MUITO TEMPO?

PAULISTINHA – Não. Só escolhi seguir essa vida pra ter um lugar pra
dormir porque tava tomando chuva na rua às vezes. Quase fui
estuprada e teve até uma vez que um pedaço da marquise caiu e
machucou minha cabeça. Caiu enquanto eu tava dormindo.

ENTÃO, SE VOCÊ NÃO ESTÁ NA ZONA, DURANTE O DIA FICA


PELA RUA?

PAULISTINHA – Até que agora não. Eu fico mais lá dentro mesmo. Vez
ou outra vou pra praia sozinha ou com alguma das menina. Tem umas
amiga lá que são umas garota muito sangue bom. Mas tenho ficado
mais lá dentro da Vila mesmo. Eu acho chato, mas como fumo muita
maconha nem percebo o tempo passar e acaba sendo até divertido às
vezes.

FALANDO EM MACONHA. POR QUE ESSAS TATUAGENS NAS


SUAS COXAS? TÊM ALGUM SIGNIFICADO PRA TI?

PAULISTINHA – Ah, essa aqui é a namorada do Coringa, eu sempre


esqueço o nome dela, mas eu gosto muito dela. Acho ela uma mina
muito sexy e maluca, igual eu sou um pouquinho. E a folha da maconha
é porque eu amo a maconha.

E VOCÊ SEMPRE FAZ PROGRAMA DEPOIS DE TER USADO


MACONHA?

PAULISTINHA – Pra mim não tem coisa melhor. Não é que eu não faça
sem maconha, mas é que é muito melhor foder quando tá no brilho[75].
Tudo é melhor quando a gente fuma unzinho.[76] Eu só não tô fumando
aqui agora porque tu deu o teu papo em mim, senão eu já tava com um
beck[77] aqui fumando.
E QUAL É A DIFERENÇA DE FAZER SEXO COM OU SEM
MACONHA PRA TI?

PAULISTINHA – A sensação é outra, e quando a gente que é puta tem


que dar pra um monte de homem num dia ou numa noite é melhor tá
chapada[78] do que tá de cara[79]. Eu gosto pra caramba de tá
chapada fodendo com algum homem que é gostoso e ele goza na
minha mão!

POR QUE NA MÃO?

PAULISTINHA – Eu sinto um negócio que eu nem sei te explicar como


o que é. É como se aquela gozada pertencesse pra mim, tu tá ligado?
Sai da piroca dele pra minha mão, é pra mim e eu fiz o cara dar aquela
gozada gostosa. Eu gosto muito também de arreganhar o meu cuzinho
e que eles gozem em cima. Não é dentro não, é em cima do meu cu. Eu
acho massa sentir a porra quente escorrendo!

E TU TEM PREFERÊNCIA PELO TIPO DE CLIENTE?

PAULISTINHA – Eu gosto mais dos que são mais gostoso. Eu olho e


tem vez que nem é só pelo dinheiro, é mais pra foder mesmo, mas
assim, eu só fodo de camisinha. Eu nunca fiz programa sem usar
camisinha. Tu até viu aí a situação que tava quando a gente chegou
aqui.

E SÃO PAULO? VOCÊ PENSA EM VOLTAR PRA LÁ?

PAULISTINHA – Não. Até porque eu não tenho mais ninguém lá. Não
tenho família, não tenho irmãos. Tenho uns conhecido lá, uns amigo,
mas nada pra me fazer ter vontade de voltar lá pra morar. O Rio de
Janeiro é legal. Cheio de problema, mas não tem lugar no Brasil que eu
acho que não tem problema.

E SONHOS? VOCÊ TEM ALGUM?

PAULISTINHA – Pô, meu, eu quero ter uma casa tá ligado? Eu quero


muito ter um teto um dia pra dizer que é meu. Pode ser até um barraco
na favela, mas eu vou ter minha casa própria. Falando nisso, tu pode
me deixar ficar aqui? Eu não vou voltar pra Vila hoje não. Tô com um
baseado aqui, vou fumar esse dorminhoco[80] e ficar por aqui mesmo.
Tu pode pagar o tempo pra eu ficar? Hoje eu só quero só dormir numa
cama legal.
NUAS:

Obrigado a você leitor que se ateve à essas páginas até o


presente momento. As entrevistadas se “despiram”, colocando pra fora
muito de suas vivências que possivelmente algumas pessoas, mesmo
próximas a elas, não tem ideia. E a que conclusões chegamos com
todos os relatos aqui transcritos?
Durante todo o período em que trabalhei com a elaboração desse
livro não tive um dia em que não olhei para as profissionais do sexo que
me deparei em suas rotinas sem deixar de pensar sobre suas histórias
pessoais.
O livro “Papo de Puta” não se trata de um trabalho acadêmico,
não tenta desvelar em teses o que explica a iniciativa de mulheres e
transexuais que se lançam no mundo da prostituição como meio de
subsistência. Muitos dizem que “os meios não justificam os fins” mas
com certeza é muito mais difícil viver com fome do que estar bem
nutrido e gozando dos privilégios que o dinheiro que todo trabalho que
os seres humanos realizam pode proporcionar do que lançar uma
infinidade de currículos em empresas sem respostas ou mesmo ter uma
porta batida na cara pelo fato de ser homosexual, trans afrontar
empregadores e colegas de trabalho que não aceitam o diferente.
Uma mulher íntima de meu âmbito de convivência, e que inclusive
foi relatada brevemente aqui, determinada vez me contou como era
difícil para ela conseguir trabalho. Ela que não é uma profissional do
sexo mas sim enfermeira relatava o quão triste era realizar uma
entrevista e perceber como os empregadores lhe torciam o nariz ao
saber que ela era “mãe solteira”. Numa ocasião inclusive ela disse ter
feito uma entrevista para cuidar de um senhor idoso em Copacabana
mas com uma semana de trabalho foi mandada embora com o estúpido
argumento colocado pela filha do homem que era cuidado de que não
queria seu pai sendo tratado por uma “por uma mãe solteira que no
mínimo era puta”. Convimemos numa sociedade que é muito plural em
todos os segmentos que venhamos a transitar, e a verdade é que por
mais que estejamos inseridos na maioria destes, pouco nos damos a
entender quais são as mínucias que fazem com que um dono de bar,
por exemplo, mesmo sabendo o quão perigoso é a área onde tem seu
comércio mantém o estabelecimento funcionando até meia–noite. As
respostas poderiam ser muitas, mas só este dono de bar sabe as
necessidades que o motiva a estar arriscando suas vida e de seus
funcionários mesmo sabendo a periculosidade que é manter as portas
do estabelecimento abertas até altas horas.
Há tempos, estudei sociologia e antropologia no ciclo básico por
ocasião de minha formação acadêmica. Muito embora tivesse clareza
de que as disciplinas eletivas obrigatórias propiciassem um maior
volume de leitura e estudo, me identifiquei com a maioria, e achei uma
boa ideia levar adiante sem entraves. Na antropologia, conheci algo
interessante denominado “grupos viciantes”, que de maneira bastante
sucinta, são constituídos por indivíduos, que de alguma forma, são
rotulados. É bastante ilustrativo o exemplo dos músicos de casa
noturna. Muitos dos que com estes se relacionam, os taxam de
promíscuos, dados a lascívia e potenciais usuários de alcool entre
outras drogas, o que por sua vez, faz com que estas pessoas se sintam
incompreendidas. No fundo, a tristeza que acomete alguns destes
profissionais é entender que são taxados como tal por pessoas que
sequer sabem como se dá a dinâmica de suas atividades laborativas. O
mesmo acontece com profissionais do sexo.
É muito interessante refletirmos sobre no trecho do relato de
Bárbara onde foi mencionado o infeliz comentário feito pelo homem que
hoje é Presidente do Brasil acerca da forma que homosexuais são
assassinados. De fato homossexuais (trans ou não) são assassinados
por seus cafetões? Todos as travestis e garotas de programa tem
cafetões? Todo cafetão é um potencial assassino? Todos os
trabalhadores do sexo realmente consomem drogas e não dormem nos
mesmos horários que os “chamados” cidadãos de bem? E ainda esses
“cidadãos de bem” são tão puros à ponto de não cometer toda e
qualquer falha humana que é passível a toda e qualquer pessoa? Essas
são perguntas que tem um caráter muito pessoal a cada um, mas
certamente é muito mais fácil uma prostituta falar de sua própria vida e
da dinâmica da mesma do que uma mulher que nunca exerceu tal ofício
ou de homens que só frequentam puteiros em busca de sexo falar o
que lhes convém e que é entreouvido por aí.
Todos os seres humanos que estão dando a cara à tapa para
sobreviver num mundo que é bacana mas repleto das mais diversas
dificuldades necessitam de algo que faça os problemas serem postos
de lado. Isso é a conhecida abstração que faz com que sigamos vivos e
com esperança de que dias melhores virão. Algumas pessoas
encontram isso lendo livros, fazendo crochet, dançando, jogando
videogame, praticando esportes, enfim, mas todos os que passam a ter
o mínimo de noção do que é a vida em sociedade – alguns mais cedo,
outros mais tardiamente – tem a percepção clara de que o uso de
drogas não é algo que se restringe apenas aos guetos e à
determinadas classes sociais ou segmentos inclusos dentro destas. Da
mesma forma como a violência tristemente representada nos altíssimos
índices de criminalidade, preconceito e abusos de todas as estirpes é,
como disse no livro “Cabeça de Porco” o antropólogo, cientista político e
escritor Luiz Eduardo Soares “a coisa mais democrática que temos no
Brasil”. Ela está aí, atingindo a todos e muito embora os ricos tenham
uma blindagem maior ainda sim estão inclusos dentre os que saem de
seus lares sem saber se irão retornar.
Por fim, pensemos que o problema talvez não seja a puta, a trans,
a lésbica ou o gay, mas sim o que nós de fato conhecemos sobre o
universo destas pessoas e mais ainda, o que conhecemos de nossos
próprios universos. Do que fomos moldados desde os primórdios até
nos tornarmos seres adultos que nos fazem ser o que somos. Quais
são as oportunidades que temos e quais aquelas que não nos são
colocadas e o porque dessa negação. Se somos nós merecedores de
sermos chamados de cidadãos quando o exercício de cidadania
depende de uma série de fatores que por vezes nos fogem ao controle
pelo simples fato de estarmos totalmente imersos num sem fim de
processos sociais que nos levam a agir muito mais por impulso do que
com a cautela necessária para ter respeito pelo outro.
O outro é igual a gente. Ama como a gente, sofre como a gente,
sonha como a gente e é gente como a gente. O outro também é calor, e
busca paz para a angustia e para a dor. O outro mesmo se faz pouco, o
faz por que acredita em seus feitos, e se não faz perfeito é porque ainda
não se encontrou. Que não sejamos mais do mesmo, a riqueza que não
vem de berço é a empatia que nos leva ao caminho do apreço, na
direção do respeito, é o caminho mais curto ao amor!
[1]
Icônica personagem de quadrinhos para adultos criada em 1962 pelo escritor e ilustrador
francês Jean-Claude Forest. A personagem chegou a ser representada num filme pela
atriz Jane Fonda. Barbarella é também o nome de uma das casas de prostituição mais
famosas do Rio de Janeiro localizada em Copacabana.
[2] O Mabs é um restaurante bastante tradicional localizado na esquina da rua Prado
Junior com a avenida Nossa Senhora de Copacabana. À noite é um dos pontos de
prostituição mais movimentados da noite carioca.
[3]
Famoso reduto de prostituição do Rio de Janeiro. Historicamente teve início com as
polacas e localizava-se no Estácio tendo como último endereço o prédio que hoje é a
Prefeitura. Atualmente a Vila Mimosa fica situada na rua Ceará, na Praça da Bandeira e
virou tema de canção imortalizada na voz do funkeiro MC Serginho.
[4] Pussy Power é a gíria utilizada por grupos feministas liberais ou simpatizantes para dar
ênfase à luta pelos direitos das mulheres e condições mais igualitárias perante a
sociedade. Também dá nome a uma canção do Iggy Pop.
[5] Existem várias versões para o termo, que foi criado nos Estados Unidos. Alguns dizem
que era um código policial para identificar usuários de maconha, outros dizem que era o
horário em que um grupo de jovens costumava se encontrar para fumar a erva na
Califórnia nos anos 1970. Contudo, funciona mundialmente como um código de referência
ao uso da maconha.
[6] A casa pode ser também designada como prostíbulo, puteiro entre outros. É o local
onde profissionais do sexo fazem performances ou simplesmente aguardam pela chegada
dos clientes. Em geral, quando fazem programas fora deste local precisam deixar parte do
valor lá.
[7] Puteiro, prostíbulo, casa de conveniência.
[8] Registro de enfermeiros no Conselho Federal de Enfermagem do Brasil.
[9] Ambas são boates que funcionam na praça Mauá, na área do Porto do Rio de Janeiro,
e são bastante conhecidas pela prostituição como carro chefe local.
[10] Mítica personagem que munida de sua foice vem a Terra levar a alma daqueles que
morrem. É também um dos personagens do ilustrador e escritor Maurício de Souza,
criador da Turma da Mônica.
[11] Imortalizado na canção do sambista Arlindo Cruz, Madureira é um bairro da zona norte
do Rio de Janeiro muito conhecido por ser um dos maiores centros comerciais do estado.
[12] Forma pejorativa de classificar um homem que é homossexual.
[13] Tipo de entorpecente inalável que tem como base o clorofórmio e o éter. Muito utilizado
por algumas pessoas em época de carnaval.
[14] Um dos apelidos dado à cachaça na cultura popular brasileira.
[15] Ardil utilizado por algumas transexuais para esconder o pênis.
[16] Luana Muniz foi uma das mais conhecidas transexuais da Lapa. Foi a pessoa que
durantes longos anos organizou as travestis e prostitutas locais. Também era responsável
pelo casarão roxo da rua Mem de Sá onde funciona a Associação de Travestis e
Transexuais do Rio de Janeiro (ATT) onde várias profissionais do sexo, pessoas
portadoras de HIV e alguns moradores de rua abrigavam–se. Ficou muito conhecida ao
sempre repetir o bordão “Travesti não é bagunça” e após posar numa foto com o padre
Fábio de Melo em 2015. Luana faleceu em 2017, aos 56 anos.
[17] O edifício Richard, atual número 194 da rua Barata Ribeiro é um prédio muito
conhecido pela maioria dos moradores da zona zul. O lendário edifício de 12 andares foi
durante muitos anos um reduto de tráfico de drogas e prostituição, dividindo essa
dinâmica com a vida de famílias que o utilizavam como residência comum. Até hoje, o
local é mal falado por alguns e ainda abriga além de prostituição algumas situações
referentes à tráfico de drogas. O local também foi tema de filme e peça de teatro.
[18] Sigla que alguns homens usam como código para identificar a Vila Mimosa.
[19] Nome dado à atividades sem vínculo empregatício que algumas pessoas exercem fora
seus trabalhos formais ou quando estão desempregadas.
[20] Forma enxuta de falar sobre “boca de fumo”. As bocas de fumo são locais no Rio de
Janeiro onde ocorre tráfico de drogas em geral. Podem se localizar dentro de favelas,
apartamentos de luxo, imóveis residencias e nos tempos atuais até via delivery.
[21] Um dos braços de atuação da polícia militar do Rio de Janeiro. Caracteriza–se pelo fato
dos agentes do Estado não atuarem uniformizados e com atividades de caráter mais
investigativo.
[22] Passar batida equivale ao termo “passar despercebida” ou “sem levantar suspeitas”.
[23] Exposição de arte realizada em 2016 pelo artista plástico e escritor Elieser Borba, autor
deste livro, a partir de materiais encontrados com um detector de metais nas praias do Rio
de Janeiro.
[24] Um dos nomes antigos atribuídos à prática da prostituição.
[25] Tradução em inglês de “socorro” a Help era uma boate muito famosa de Copacabana e
que se tornou ícone da prostituição carioca nos anos 80. Foi fechada em 2010 e hoje
abriga a nova sede do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro.
[26] É uma sigla para a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, doença sexualmente
transmissível que assolou o Mundo na década de 80 e ainda segue como uma endemia
mundial. Mesmo nos anos 2000 a AIDS continua sem cura e continua vitimando milhares
de pessoas. Sexo com preservativo é fundamental para a prevenção.
[27] Doença sexualmente transmissível também chamada de cancro duro causada pelo
sexo sem uso de preservativos quando por ocasião um dos envolvidos está infectado. A
Sífilis tem cura com tratamento a base de penicilina a depender do quadro do paciente.
Em caso de transmissão à gestantes pode causar desde má formação, aborto ou até
morte do feto.
[28] O termo CD é uma cigla utilizada para indivíduos que adeptos do crossdresser. São
pessoas que se vestem com indumentárias do sexo oposto. Cdzinhas são jovens
crossdressers que em alguns casos também se prostituem.
[29] Encerrar a conversa ou determinado assunto.
[30] Estar montada na gíria das profissionais do sexo é estar vestida para fazer programas.
[31] Apelido atribuído à mulheres de porte físico avantajado. Mulheres altas, malhadas ou
de corpo bem formado.
[32] Espaços como velhos prédios, empresas, residências e terrenos na cidade que
porventura são desocupados e permanecem por anos, determinadas vezes por décadas
sem estar sendo utilizados. Estes espaços constitucionalmente podem ser ocupados por
famílias que não tem moradia para cumprimento da função social da terra em detrimento
da especulação imobiliária (Arts 182 e 183 da Constituição Federal).
[33] O mocó é uma gíria carioca para designar “esconderijo”. Era muito usada nas décadas
de 60 e 70, período da Ditadura Civil Militar por pessoas que procuravam se entocar para
usar drogas os mesmo para planejar atos na luta contra o regime.
[34] Lendária cidade fictícia criada no Universo da DC Comics onde o justiceiro mascarado
Batman (alter ego de Bruce Wayne) atua como vigilante combatendo o crime.
[35] Homem que ficou bastante conhecido na mídia carioca por se fantasiar de Batman nas
Manifestações de junho de 2013 no Rio de Janeiro por ocasião do aumento do valor das
tarifas de ônibus perpetrado pelo então Prefeito Eduardo Paes. À época as Manifestações
tomaram proporção nacional.
[36] Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro localizado na área da Lapa, no Centro do Rio
de Janeiro.
[37] Fazer sexo com o cliente.
[38] Tipo de comida do nordeste brasileiro que tem como base a carne de sol e o feijão.
[39] Site provedor de notícias da internet.
[40] O termo rendez-vouz do francês significa “ponto de encontro”, no entanto, na
adaptação parônima para a língua portuguesa é geralmente atribuído por alguns ao se
referirem à casas de prostituição, bordéis e puteiros em geral.
[41] A palavra é uma junção de dois termos em inglês “costume” (fantasia) e “rolerplay”
(interpretação). É considerado uma prática na cultura Geek, Pop e Nerd mundial onde os
adeptos fantasiam-se de personagens de livros, quadrinhos, games, filmes e outros
universos ligados e interpretam os mesmos.
[42] Escultor e artista plástico britânico muito conhecido ao redor do mundo por seu
trabalho denominado “Corpos Presentes”. Neste, o artista realiza intervenções nas cidades
com estátuas de metal com formas humanas perfeitas que permacem nos mesmos locais por
dias.
[43] Esperar por alguém para um compromisso e a pessoa não chegar.
[44] Filme de ficção cientéfica da Warner filmes feito pelo diretores Lana Wachowski e Lilly
Wachowski estrelado por Keanu Reeves, Laurence Fishburn, Hugo Weaving, Carrie-Ane
Moss, Monica Bullucci e grande elenco.
[45] Festival de música criado pelo empresário Roberto Medina que teve sua primeira
edição em 1985, no Rio de Janeiro. O festival já conta com 8 edições além de outras que
ocorreram em Portugal, Espanha e U.S.A.
[46] É um filme de 1982 dirigido por Tobe Hooper e considerado um dos maiores clássicos
do gênero Trash de Terror.
[47] Nomenclatura dada pelas pessoas aos Postos Públicos de Saúde.
[48] Apelido dado aos jovens garotos revelados no Santos Futebol Clube ou mesmo uma
maneira de se referir ao time do Santos.
[49] Uma das maneiras de alguns cariocas se referirem à “bala”, bala perdida ou projétil de
arma de fogo.
[50] Termo usado para caracterizar um indivíduo que passou a noite em alguma esbórnia,
festa, farra ou bagunça regada em geral à bebidas e drogas.
[51] Apelido dado aos seguranças que trabalham nas entradas de prostíbulos.
[52] De cara limpa, sem estar sob efeito de alguma substância.
[53] Sob efeito de alguma substância.
[54] Dito popular para confusão.
[55] Educador, pedagogo, filósofo e escritor brasileiro que foi perseguido pela ditadura civil
militar e exilado, vivendo em Cambridge, em Genebra, Guiné Bissau e Moçambique. O
fragmento de texto foi extraído do livro “Pedagogia da Autonomia”, seu último trabalho
literário publicado em vida em 1996.
[56] Um dos nomes atribuídos à maconha por alguns usuários.
[57] Nome atribuído à variações de maconha que em geral tem uma maior concentração de
THC (Tetra–hidrocarbinol) que é a substância psicoativa da erva. Também era o apelido
de um dos mais representativos integrantes da banda carioca “Planet Hemp” que foi
retratado no cinema no filme “Legalize já! Amizade nunca Morre”. O filme é dirigido por
Johnny Araújo e Gustavo Bonafé e tem trilha sonora de Marcelo D2, Mauro Bernan e
Lourenço Monteiro. O ator pernambucano Ícaro Silva dá vida à Skunk, falecido em 1994
sem ter visto a ascensão da banda que ajudou a fundar.
[58] Emboscada.
[59] Nome de uma canção feita em 1977 pelo cantor inglês Ian Dury. O termo também é
utilizado para caracterizar o estilo Junkie de vida de algumas pessoas que, para além de
apenas curtir rock, extrapolam na vida promíscua e consumo de drogas.
[60] Apelido dado à mulheres idosas que são donas de puteiros. Uma moda que surgiu
após a interpretação que a atriz Fernanda Montenegro realizou em 1993 na novela das
20hs “Renascer”, da Rede Globo.
[61] Cigarro de maconha, baseado.
[62] Ato de fumar maconha.
[63] Abreviação para o nome da escritora alemã Christiane Vera Felscherinow. Ela é autora
do livro auto–biográfico onde relata sua experiência com o vício da heroína desde a
adolescência.
[64] História em quadrinhos de ficção científica criada por Jean–Claude Forest e
protagonizada pela heroína homônima. Foi adaptada para cinema e teve no papel de
Barbarella a atriz Jane Fonda.
[65] Também conhecida como “Lei anti–homofobia” o PL 122 foi um Projeto de Lei
apresentado pela deputada Iara Bernardi em 2006 com o objetivo de criminalizar a
homofobia no Brasil. No ano de 2019 o debate voltou a ser discutido pelo STF e até a
finalização deste livro não tinha tido uma definição.
[66] Nome dado ao valor que é pago por um programa sexual. O termo também é atribuído
à rapazes que se prostituem ou simplesmente ao ato de prostituir–se independente do
gênero.
[67] Bairro muito conhecido da Zona Norte por ser um dois maiores centros comerciais do
Rio de Janeiro e por abrigar três Escolas de Samba (Portela, Império Serrano e Tradição).
O Bairro também foi imortalizado na canção “Meu Lugar”, do sambista Arlindo Cruz.
[68] No jargão de muitas prostitutas, trans ou não, o termo é atribuído à algo ruim, que é
desagradável.
[69] Forma como alguns moradores de favelas se referem ao traficantes locais que em geral
ditam as regras em dentro das diversas comunidades cariocas.
[70] Tráfico de drogas.
[71] Termo utilizado por algumas pessoas ao dirigir determinado assunto à menores de 18
anos.
[72] Sigla usada por algumas pessoas para a “Vila Mimosa”.
[73] Termo muito exaltado em canções de funk brasileiro, o termo é oriundo do inglês “Thug
Life”, uma vida cheia de loucuras, perigos, aventuras e geralmente associada a alguma
ligação com atividades criminosas.
[74] Palhaço do crime arqui–inimigo do Batman.
[75] Estar sob efeitos de drogas.
[76] Cigarro de maconha.
[77] Cigarro de maconha.
[78] Estar sob efeito da maconha.
[79] Estar lúcido, sem ter ingerido substância alguma.
[80] Para alguns usuários de maconha um “dorminhoco” é o cigarro que se fuma à noite
para relaxar e dormir melhor.

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