Lívia, muito obrigado por enviar o artigo para eu ler. Achei bem legal isso, e acho que
podemos manter essa troca/rede hein...
Particularmente, gosto bastante (por achar relevante) o tema do teu texto. E acho que essa
tua escolha de pensar a crise da História no escopo maior de “crise das ciências” é muito
acertada.
Dito isso, queria comentar primeiramente o argumento e hipótese que tu apresenta como
principal no texto. Normalmente eu penso essa crise da autoridade das ciências por outro
caminho, então será um comentário dissonante – e acredito que seja bom para podermos
debater e pensar mais a respeito (eu pelo menos tive essa experiência lendo&comentando
teu texto).
Neste ensaio, meu objetivo não será tentar propor respostas para a crise disciplinar da
história, mas sim, aprofundar o diagnóstico sobre suas causas, percebendo-a dentro do
espectro mais amplo de crise de autoridade científica. Minha hipótese é a de que essa
crise é resultado da própria dinâmica interna dos conhecimentos especializados, onde a
produção massiva de pesquisas científicas em todas as áreas vem gerando uma
multiplicidade de respostas para os mesmos temas, acabando com as pretensões da
modernidade de encontrar, através da Ciência, a Verdade absoluta sobre a realidade,
gerando, para bem e para mal, uma multiplicidade de cosmovisões incapazes de
dialogar entre si. As raízes dessa pluralidade se encontrariam na própria constituição da
modernidade.
Se bem entendi teu argumento, você diz que as causas para a “crise disciplinar da história”
estão dentro do “espectro mais amplo de crise de autoridade científica”, e que essa crise
científica, por sua vez, “é resultado da própria dinâmica interna dos conhecimentos
especializados”.
Eu acho interessante apontar para as fragilidades desse modelo “especializado” do
conhecimento que configurou as universidades – universitas/corporação, Agamben
(Estudantes – pesquisa/estudo) e Coccia (A autotrofia especulativa). Mas, por outro lado,
acho que esse caráter contingente e plural das afirmações que a Ciência faz, não pode ser
culpado pela “crise” em que estamos. Nesse sentido, vi uma entrevista com o Latour há
alguns dias em que ele argumentava que, na França, o debate público sobre a Covid-19 tá
trazendo à tona essa contingencialidade da ciência e que isso era uma coisa positiva para
os/as cientistas. Acho que seria interessante pensar essa adesão/crença da população à
ciência diante desse contexto de “exposição do método”, “de produção de conhecimento-
live”, que tá sendo a pandemia. Digo isso porque acho que seria interessante testar uma
hipótese que me parece que tu aceita de antemão (principalmente a partir da leitura do
Weber): a de que a confiança tem a ver com certa centralidade/unidade/homogeneidade –
como se autoridade tivesse que ver, necessariamente, com hierarquia.
Acho que quando tu vai buscar “respostas” para a crise – no “curador de experiências
históricas” do Valdei, p.ex. -, me parece que tu vai por outro caminho, ou seja, o de afirmar
que a ciência pode ter uma autoridade sem ser hierárquica – o que significa dizer que o
caráter contingente e plural de suas afirmações pode gerar um novo pacto de confiança
(mais do que “minar a confiança”).
Enfim, se podemos suspender um pouco essa hipótese que coloca uma causalidade entre a
produção de verdades contingenciais e a crise da autoridade científica, eu gostaria de sugerir duas
outras situações para o teu “diagnóstico de crise”. Acredito que eles são dois fatores
exógenos – diferentemente da tua análise endógena, por assim dizer.
1) neoliberalização da academia: e aí eu me refiro não ao “desmonte da educação pública”,
mas a como a “racionalidade neoliberal” (nos termos do D&L e da Wendy Brown) adentra a
universidade e a produção de conhecimento – substituindo os fundamentos “humanistas”
da educação por fundamentos de mercado (lucro e competição). Não é à toa a importância
que damos a “métricas de avaliação” e a formação de “capital humano” – ou seja, os PPGs
querem formar alunos que possam criar vários “produtos”, bombar seus currículos, para
preencher relatórios que, posteriormente, farão aumentar (ou diminuir) suas “notas
CAPES” que, por sua vez, aumentarão (ou diminuirão) as “verbas” do PPGs – que
significarão mais eventos, mais bolsistas, mais equipamentos, para produzir ainda mais,
competir melhor, etc e tal.
Acho que essa lógica de produção que adentra a academia acaba por reforçar alguns
elementos da cisão com a sociedade que você menciona: hiper-especialização, linguagem (e
produção) autocentrada na academia, etc etc. Ao mesmo tempo, me parece que essa
“neoliberalização”, ao passo que instaura um “sistema de recompensas” na produção de
conhecimento científico, pode criar o que tu chamou de um “livre mercado” que
fortaleceria “cosmovisões impossíveis de dialogar” – ou seja, uma relação de consumo-
mercadoria que informaria a busca por verdades de acordo com o que pensamos: a verdade
é uma mercadoria e nós somos consumidores que procuramos a mercadoria mais de acordo
com nossos gostos. (que é um pouco o argumento de incompatibilidade entre racionalidade
neoliberal & democracia(ideia) desse pessoal)
2) promoção do negacionismo: eu senti bastante a falta do “negacionismo” no texto, Lívia.
Senti falta porque me parece que o negacionismo traz a primeiro plano o caráter político da
ciência e dessas disputas nas construções de verdades. O próprio Bruno Latour tem um livro
recente em que ele coloca a hipótese de que “a negação das mudanças climáticas organiza
todas políticas do presente”. Diz ele que desde os anos 1980 há um consenso crescente em
torno da insustentabilidade do nosso modelo de produção calcado na exploração da
Terra/natureza. Uma certa “elite” ouviu essa ameaça, e tomou suas decisões políticas: 1) os
“outros” irão pagar essa conta e, para isso, 2) vamos negar a existência do problema. O caso
da ExxonMobil e dos “mercadores da dúvida”. Ao incitar as pessoas, através de bilhões de
dólares investidos em desinformação, a serem “céticos” sobre um grandioso fato, a mutação
do clima, essas elites minaram toda uma rede que dava robustez a certos “fatos” - a saber,
uma certa “cultura comum”, “instituições que podem ser confiadas”, “uma vida pública
mais ou menos decente”, “uma mídia mais ou menos confiável”, etc.
Ou seja, podemos pensar que essa promoção do negacionismo também é um dos fatores da
“crise de autoridade” da ciência. Se em algum momento pôde haver um acordo entre o
capitalismo (suas elites), o Estado-nação (e seus governantes) e a Ciência, hoje essa relação é
de conflito e disputas – talvez por isso também estejamos na “crise da democracia liberal” –
onde, por vezes, a Ciência é estabelecida como inimigo comum (ex1. Trumpismo como
acordo entre elites e governo vs ciência; ex2. Covid no Br).
*
Bom, a princípio era isso que eu queria comentar a respeito do argumento principal. Pensar
a “crise de autoridade” em rede, com dinâmicas exógenas e endógenas. Eu acho que tu já
assumia esse caráter de “rede” na hora de sugerir soluções para o problema, mas senti que o
diagnóstico ficou um tanto autocentrado.
Como já falei bastante, quero ouvir você e os meninos comentarem. Eu ainda tenho alguns
comentários mais pontuais, mas deixo para depois. Também tenho algumas pequenas
revisões de texto que fiz lendo, Lívia, que posso te enviar depois. As respostas para aquelas
partes que você destacou e pediu que opinássemos – eu achei todas partes boas,
principalmente quando tu fala da dissertação, e manteria elas. Além disso, tenho algumas
sugestões de leituras que acho que você pode gostar.
(LATOUR, Down to Earth/Onde aterrar?
TATI ROQUE, O negacionismo no poder
DANOWSKI, Negacionalismo; O hiperrealismo das mudanças climáticas e as várias faces do
negacionismo
ORESKES, Mercadores da dúvida
******
Weber –
Mas Ciência e Cristianismo talvez não sejam os dois únicos modelos de crença, de “encantamento”, de
pensamento, que habitavam aquele momento. Talvez sejam apenas os mais ‘expansionistas’,
colonizadores ou predatórios, e, por isso, ‘de acordo’ com o Capitalismo. Não sei se o Weber não acaba
sendo um pouco eurocêntrico nessa análise...
Pós-verdade –
“Neste contexto de desconfiança institucional, a indústria multimilionária da desinformação aparece
com força e encontra na informatização uma aliada” (p. 11)
“Em todos os artigos, o especialista iniciou seu argumento afirmando que 87% dos cientistas aceitam
a teoria de seleção natural, enquanto apenas 32% da população acredita nela. Da mesma forma, 88%
dos cientistas aceitam que alimentos geneticamente modificados são seguros para o consumo, contra
apenas 37% da população. Esses dados demonstrariam a distância imensa existente entre o
conhecimento acadêmico e o público não especializado.” (p 11)
Dados estranhos
“uma parcela significativa da população acatou a decisão como acertada [a demissão do Galvão]” (p.
15)
http://app.ricyt.org/ui/v3/comparative.html?indicator=actitud_general&start_year=2008&end_year=2017
Brasil
Só riscos 2 - 2
Não sabe 1 – 8
piada
“Cientes do momento crítico pelo qual passa a disciplina, historiadores preocupados com o futuro
de sua profissão vêm refletindo sobre as maneiras de recuperar sua autoridade sobre o passado,
num esforço para tornar a história novamente relevante para as preocupações do presente,
respondendo às demandas populares por esse conhecimento” (p15)
Brasil Paralelo
“Parece que, para esse grupo, a tentativa de demonstrar imparcialidade já está superada, eles
deliberadamente abraçaram o que todos já desconfiavam e que nós não tínhamos coragem de
assumir publicamente: a narrativa histórica não é neutra.” (p. 18)
Mas o Brasil Paralelo, embora possa se assumir oficialmente como instituição politizada, usa, no Brasil
entre armas e livros, os artifícios de “objetividade” na construção do filme. Me parece que eles afirmam
que é a narrativa da “ditadura” que é politizada, e faz parte de uma grande trama cultural para
implementar o comunismo no Brasil, enquanto que eles estão trazendo a história real, revelando a
verdade para o público. O próprio estilo do documentário é isso; é um doc muito diferente dos da
Petra Costa, p.ex., e tem toda a pegada do documentário tradicional, realistão – voice-over, dar status
de especialista para os entrevistados, trazer documentos...