Você está na página 1de 9

Os Ninguéns:

institucionalização da infância e da adolescência no Brasil


MARILIA ROVARON *

Resumo: O tratamento dispensado às crianças e aos adolescentes pobres no


Brasil é marcado, do período imperial aos dias atuais, pela repressão e controle
do Estado cuja ressonância abrange o clamor punitivo de grande parte da
sociedade. Outrora filhos dos ventres livres, meninos e meninas pobres padecem
de um tipo de identificação como potências perigosas, que precisam de tutela,
disciplina e rigorosa punição. O presente artigo busca, através de revisão
bibliográfica de pesquisas e documentos históricos, identificar as formas de
controle e de criminalização dessa população no Brasil, em especial no estado de
São Paulo. A análise contempla instituições de educação de adolescentes e jovens
que cometem algum tipo de infração, ou que, antigamente, eram tidos como
indivíduos em situação irregular.
Palavras-chave: Criminalização das juventudes; Violência estatal; Sistema
socioeducativo.
The Nobodies: institutionalization of childhood and adolescence in Brazil
Abstract: The treatment given to poor children and adolescents in Brazil is
marked, imperial period to the present day, by the repression and control of the
state whose resonance is applied or punitive cry of much of society. Once free-
bellied children, poor boys and girls die from a kind of identification as dangerous
powers, which require guardianship, discipline, and rigorous punishment. This
article seeks, through the bibliographic review of research and historical
documents, identifies the forms of control and criminalization of this population
in Brazil, especially in the state of São Paulo. The analysis includes institutions
of education of adolescents and young people who commit some kind of
infraction, or that were previously considered as irregular.
Key words: Criminalization of youths; State violence; Socio-educational system.

*
MARILIA ROVARON é Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Paulista Júlio de
Mesquita (UNESP) e há dez anos atua com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de
internação no estado de São Paulo.

225
Introdução Essa visão segregacionista e
hierarquizada — comungada por
Nove jovens morreram em um baile funk diversas instâncias da sociedade —
a partir de uma intervenção da polícia produz-se como um discurso em que a
militar (PM) na comunidade de juventude e a infância pobre são
Paraisópolis, na cidade de São Paulo, em associadas à violência.
novembro de 2019. Na favela da Zona Tal discurso compõe, mais amplamente,
Sul, onde acontecia um baile funk a representação de populações pobres
reunindo cerca de 5000 pessoas, a ação como subclasses que configuram o
da PM desencadeou um acuamento de quadro dos que devem ser afastados,
jovens dentre as quais alguns perderam a controlados, pois concebidas como
vida pisoteados e/ou agredidos. Mais um “excedentes” que divergem dos
dentre outros eventos violentos que “cidadãos produtivos” que devem ser
marcaram o Brasil nas últimas décadas, protegidos pelo Estado. Os processos de
como a Chacina da Candelária/Rio de criminalização estão no bojo da
Janeiro (1993), as inumeráveis rebeliões constituição de um sujeito perigoso, que
em espaços de confinamento (antiga deve ser cerceado, controlado e, para
FEBEM), a repressão desmedida contra tanto, as práticas de punição são
os e as jovens que participavam dos reestruturadas, combinando múltiplos
“rolezinhos” em shoppings paulistas no saberes, políticas e instituições, que
ano de 2014, as mortes de crianças e permitem o mapeamento das
adolescentes em escolas como em consideradas “áreas de risco”, assim
Realengo/Rio de janeiro (2011), Suzano designadas em função das populações
(2019)1 e nos morros e favelas cariocas, que as compõem.
durante operações militares, sobretudo
no último ano. Refletir sobre a estrutura do discurso de
controle social que recobre a juventude,
e, também, a infância de camadas
O envolvimento da Polícia Militar no
populares da sociedade brasileira pode
ocorrido explicita que a abordagem e a
conduzir a outras questões. Com o fim do
tática da corporação são diferentes das
regime ditatorial e a abertura à
realizadas em outros espaços,
democracia, muitos avanços foram
nomeadamente bairros ricos e de classe
obtidos no campo dos movimentos
média. Nas bases dessa abordagem tácita
sociais e na participação política da
é possível identificar um discurso que
sociedade civil, sobretudo no que tange
recobre a juventude periférica e de baixa
às crianças e aos adolescentes, elementos
renda com o estigma da violência,
centrais nas lutas por políticas e direitos.
localizando-a ora como vítima, ora como
Entretanto, três décadas depois, é
agente. Nesse sentido, convém pensar o
possível reconhecer que as políticas que
binômio juventude-violência a partir do
garantiriam a condição de sujeitos a esses
que Vera Malaguti Batista (2003)
jovens ainda não foram implantadas,
denominou como sistema de
tendo muito a avançar no campo
criminalização e perpetuação de estigmas executivo e judiciário. As discrepâncias
e violência atribuídos e cometidos contra entre um marco regulatório pautado em
a juventude pobre brasileira. ideias emancipatórias e garantistas
1
Acontecimentos extensamente reportados pela
mídia corporativa, impressa, eletrônica e
televisiva no Brasil nas últimas décadas.

226
(Estatuto da Criança e do Adolescente) e mecanismos disciplinares desenvolvem
um sistema de justiça juvenil seletivo em um novo modelo de investimento
seus mecanismos encarceradores saltam político sobre o corpo, incidindo sobre
à vista. todo o corpo social, além de constituírem
o elemento central de diferenciação e
Grande parte de pesquisas sobre a colonização dos ilegalismos. Segregando
juventude pobre no Brasil2 conduz a as ilegalidades populares em um espaço
pensar sobre a permanência do discurso isolado e controlado, converteu-se sua
de controle social mesmo com os reprodução em delinquência,
avanços significativos da transição transformando-a em uma “ilegalidade
democrática no tocante ao conjunto de concentrada, controlada [...] sem poder
leis e políticas da criança e da juventude. de ação, politicamente sem perigo e
A herança do autoritarismo permanece economicamente sem consequência”,
em discursos do Estado — em sendo então “diretamente útil”
instituições destinadas ao controle social (FOUCAULT, 1987, p. 147).
e ligadas ao sistema judiciário —, da
mídia e da sociedade e convida a refletir
sobre o histórico dos marcos regulatórios Nesse sentido, o debate sobre a
e sobre as contradições que permanecem, institucionalização de crianças e jovens é
ainda que supostamente transformadas um exercício de reflexão sobre o poder
desde a redemocratização. que se materializa no exercício de
O presente artigo tem por objetivo determinar e conduzir a conduta dos
principal discutir o tratamento dado às indivíduos e dos grupos, o “governo das
crianças e aos jovens pobres a partir da crianças, das almas, das comunidades,
reflexão acerca das políticas e discursos das famílias, dos doentes”
instaurados no Brasil3. A análise (FOUCAULT, 1987, p. 244) e a conduta
contempla um histórico sobre as diversas das juventudes. O controle do discurso é
instituições sociais que se encarregaram eficaz nos processos de criminalização
de crianças e de adolescentes pobres em empreendidos por instituições
contexto de abandono, delinquência ou específicas que serão mencionadas a
outra categorização a eles atribuída. A seguir. E é, mais amplamente, uma forma
leitura do processo histórico de de difusão da ideologia no sentido
responsabilização institucional sobre tais proposto por Antônio Gramsci em A
sujeitos no Brasil — a institucionalização Concepção Dialética da História (1978).
— é baseada nas ideias de Michel Para Gramsci, a ideologia é constituída
Foucault, principalmente na obra Vigiar pelos sistemas de crenças, ideias,
e Punir (1987). doutrinas e instituições: “[...] as
ideologias têm uma validade que é
Segundo o autor, a institucionalização validade ‘psicológica’: Elas ‘organizam’
serve a objetivos políticos pois envolve as massas humanas, formam o terreno
uma dinâmica em que a prisão e seus sobre o qual os homens se movimentam,
2
No campo acadêmico, é possível identificar um acadêmicas sobre a instituição FEBEM, como
caminho de aprofundamento do debate sobre o pesquisas de Marlene Guirado (1980), Maria
controle social da juventude e infância pobre no Lúcia Violante (1984), Maria Ignês Bierrenbach
Brasil que é relacionado ao estudo de instituições (1987) e Roberto da Silva (1997).
3
destinadas a tal fim. Com o fim do regime militar Este artigo é derivado da dissertação de
e, posteriormente, com a promulgação do mestrado “Fundação CASA: o passado ditatorial
Estatuto da Criança e do Adolescente, houve um no cotidiano democrático?” (ROVARON, 2017).
considerável aumento no número de pesquisas

227
adquirem consciência de sua posição, como concreta e simbólica4, já que as
lutam, etc.” (GRAMSCI, 1978, p. 63). crianças e adolescentes pobres no Brasil
são submetidos à violência no âmbito
O discurso é composto por informações familiar e nas instituições de
que, antes de serem transmitidas à confinamento, e representados
sociedade, passam por um controle geral discursivamente como vítimas e autores
de seleção de informações. Os discursos de violência (MALVASI, 2010;
sofrem influências de regras sociais, TEIXEIRA, 2006).
institucionais e detentoras de saber que,
por sua vez, garantem aos discursos o A metodologia utitlizada é de natureza
poder de serem aceitos como qualitativa, e viabilizada por análise
verdadeiros. documental. A análise contempla um
histórico sobre a institucionalização da
Com relação ao conceito de juventude infância e da juventude no Brasil a partir
que embasa estas reflexões, trata-se do da legislação e do atendimento
ponto de vista das Ciências Sociais, dispensados a este público.
especialmente da Sociologia, em que a
juventude é reconhecida como parte do No campo documental, o artigo tem
curso da vida — uma categoria social que como referência o exame crítico de leis
compõe a estrutura das diferentes faixas brasileiras que tratam dos atos
etárias. De acordo com Groppo (2000), infracionais cometidos por adolescentes,
a concepção de juventude ampara-se em com ênfase nos sistemas jurídicos de
dois critérios que mantêm relações entre regulação do controle sociopenal de
si, mas não são harmônicos: o critério adolescentes.
etário, que é sempre presente, e o critério Tratamento dispensado à criança e ao
sociocultural, que é alterado de acordo adolescente no Brasil: abordagem
com a classe social, grupo étnico, histórica
nacionalidade, gênero e contexto
regional e local a que pertence No período colonial, as instituições que
determinado indivíduo. Utilizamos, em recebiam órfãos eram educacionais e
nossas pesquisas sobre juventudes, o fundadas por jesuítas nas escolas
recorte etário que compreende a faixa elementares e por outras ordens
entre 15 e 29 anos. Entretanto, quando religiosas, além da existência das
tratamos dos adolescentes e jovens em chamadas Rodas dos Expostos5. Na
cumprimento de medida socioeducativa época imperial brasileira era vigente o
no Brasil, referimo-nos a sujeitos com Código Criminal de 1830 (primeiro
idade entre 12 e 21 anos. Código Penal Brasileiro – Lei de 16 de
dezembro de 1830), que tratava de modo
No que se refere à violência relacionada indiferenciado crianças, adolescentes e
à juventude em discursos midiáticos, adultos suspeitos de práticas criminais, e
jurídicos e institucionais, cabe defini-la os mesmos cumpriam penas de reclusão
4
Ancorados no exercício da autoridade, os relações pedagógicas, programas de ensino,
agentes gestores das instituições de confinamento formas de avaliação, etc., como uma violência da
do Brasil são os responsáveis pelos classe dominante sobre as classes populares.
5
desdobramentos da violência simbólica, cuja As Rodas, constituídas anexas a asilos de
noção é desenvolvida por Bourdieu (1975).O menores, eram aparelhos de madeira que giravam
autor expõe a força da coerção social ao redor de um eixo e que apresentava um dos
desenvolvida pelas instituições de ensino, lados vazados de modo que permitia a entrega de
considerando a transmissão cultural realizada crianças ocultando a identidade de quem
pela escola, através de seus conteúdos, métodos, abandonava.

228
em Casas de Correção ou em Código Mello Matos. O Código teve a
penitenciárias comuns6. influência da Declaração dos Direitos
da Criança (1923), do Código de
Já no período republicano, a assistência à Menores Argentino (1919) e da Lei de
infância no Brasil, se construiu ancorada Proteção à infância de Portugal (1911),
pelas resoluções internacionais que estando, portanto, respaldado no direito
embasaram a criação do Código Penal internacional.
Republicano, aprovado em 18907, cuja
intenção jurídico-social de tratamento de
uma “infância problemática” não mais O direito menorista ampliava a
estava ligada às práticas penais. O menoridade de nove para catorze anos
controle social, a partir daí, era exercido novamente e classificava os “menores”
pelo trabalho e pela educação, e a forma em duas categorias: “abandonados” e
utilizada para a educação pela “delinquentes” 10. Apenas no ano de
regeneração através do trabalho 1979 é que surgiria o Novo Código de
principalmente principal agrícola, além Menores, sob a Lei nº 6.697, de
de instruções militares8. 19/10/1979, que não considerava a
distinção entre abandonados e infratores:
No contexto da Nova Ordem estão todos em situação irregular (art. 2º,
Republicana, foi formalizado um direito incisos I, II, III, IV, V, VI) – os carentes
especializado para o menor, com economicamente. O novo Código
aspirações protecionistas9: o direito reproduzia a legislação de menores
menorista fundado com o Código de conservadora de outrora, acentuando
Menores, promulgado em 1927 (Decreto ainda mais o paradigma assistencialista e
nº 17.943) — mais conhecido como de “cura”, reforçando o ciclo perverso de
6
Durante o reinado de D. Pedro II, houve a ser uma questão de polícia e passou a ser uma
determinação de que a instrução primária das questão de assistência e proteção, garantida pelo
crianças e dos adolescentes das classes populares Estado através de instituições e patronatos.”
seria de responsabilidade das províncias, (LODOÑO 1991, apud DEL PRIORI, 1992, p.
surgindo, a partir de então, as Casas de 142). É fundamental compreender a visão de
Educandos Artífices, as Companhias de que a criança e o adolescente seriam objectos
Aprendizes Marinheiros e diferentes tipos de ajustados às necessidades de controle social,
instituições, dentre elas, as que recebiam as incapazes de discernimento e, portanto, fora do
meninas consideradas de famílias legítimas que julgamento de responsabilidade, mais fáceis de
contavam com recolhimentos criados por se moldarem à norma.(BRITO, 2007, apud
religiosos. MIRANDA, 2003, p. 12). No final do século
7
O código rebaixou a idade de inimputabilidade XIX, os juristas olham para as crianças e
penal de catorze, para nove anos de idade e o adolescentes pobres da cidade e por não estarem
encaminhamento dos menores já não mais seria sob a autoridade de seus pais e/ou tutores são
dado para as Casas de Correção, mas pela chamados de abandonados. Na primeira década
operacionalização da educação e assistência do século XX, o jurista Evaristo de Moraes
social. produz a definição das duas categorias:
8
Assim, pela pressão dos juristas, dos materialmente abandonados e moralmente
reformadores e, também, pela exigência do abandonados. O conceito de menor estava
Código Penal de 1890, o Estado de São Paulo surgindo (TEIXEIRA, 2006, p. 63).
10
instalou as duas primeiras instituições de A categoria “abandonados” era considerada a
assistência social: a Colônia Correcional e o partir da condição social, de habitação,
Instituto Disciplinar (ou Instituto Modelo). negligência, exploração e maus tratos sofridos
9
Era criado, então, o Juizado de Menores, pelo “menor”. A categoria “delinquentes” era
composto por profissionais de diferentes áreas: atribuída a partir das situações de “vadiagem”
os higienistas, os educadores e os juristas. “A (art. 28), “mendicância” (art. 29) e
questão da criança abandonada, vadia e “libertinagem” (art. 30), previstas no Código
infratora, pelo menos no plano da lei, deixou de Penal da época.

229
aprisionamento compulsório de crianças discurso da ressocialização através do
e adolescentes no país. trabalho como forma de prevenção da
delinquência, fundamentando as análises
Uma das criações da ditadura getulista institucionais dos técnicos da
foi o Serviço de Assistência a Menores FUNABEM a partir de um viés científico
(SAM), que, em 1944, se tornou um e jurídico, que respaldava suas políticas
órgão de alcance nacional. Em pouco públicas implantadas.
tempo, passou a servir como cabide de
empregos, foco de corrupção e desvio de A criminologia positivista do SAM, que
dinheiro o e a assistência prestada era considerava o menor como um
basicamente clientelista. Em razão das “indivíduo de conduta antissocial
muitas denúncias realizadas, inclusive propenso ao delito”, dava lugar a um
pelo ex-diretor do Serviço, sobre a discurso institucional funcionalista, onde
irresponsabilidade desses o menor era considerado alguém privado
estabelecimentos com o serviço prestado de condições mínimas de
aos menores foi criada a FUNABEM. desenvolvimento, justificadas pela
condição de “carência” e de “desajustes”.
Em 1964, o SAM deu lugar à Fundação
Nacional de Bem-Estar do Menor – Pode-se afirmar que a Constituição
FUNABEM. Durante a década de 1970, Federal de 1988 (CF/88) consagrou o
a FUNABEM articulou com os governos processo educativo como instrumento a
estaduais a criação de unidades da serviço dos direitos indispensáveis à
Fundação Estadual do Bem-Estar do cidadania plena. Em seu artigo 227, a Lei
Menor – FEBEM11, que concretizariam o Magna definiu o princípio legal que
ideal da PNBEM e da Doutrina de considera crianças, adolescentes e jovens
Segurança Nacional12. como sujeitos de direitos e prioridade
A proposta educativa do modelo FEBEM absoluta. A efervescência da transição
visava adequar os “menores” às democrática deu luz à promulgação do
exigências do mercado de trabalho, Estatuto da Criança e do Adolescente
através da disciplina e da obediência às (ECA – Lei nº 8.069, de 13/07/1990), que
regras, concebendo o trabalho enquanto veio para operacionalizar os direitos
instrumento de regeneração e de fundamentais dessa etapa da vida. Essa e
prevenção à delinquência infantil e outras normativas subsequentes estão
juvenil. Segundo Edson Passetti (2004) , alinhadas aos tratados internacionais
o período da ditadura legitimou o assinados pelo Brasil13.

11
A FEBEM foi atravessada por mudanças dos de 1979 até chegar ao Estatuto da Criança e do
mais variados tipos: subordinação à diferentes Adolescente.
12
Secretarias (no total, foram seis Secretarias No Estado de São Paulo, em substituição à
diferentes: Secretaria do Menor, Secretaria da Pró-Menor, a FEBEM, como diretriz da
Promoção Social, Secretaria da Criança, da FUNABEM, foi instituída em 1975. Seu
Família e do Bem-Estar Social, Secretaria do presidente era Mario Altenfelder. A primeira
Esporte e Lazer, Secretaria da Educação e unidade foi instalada no antigo Pavilhão Central
Secretaria da Justiça), alterações políticas do Quadrilátero do Tatuapé, chamada de
administrativas (durante 30 anos, 60 presidentes Unidade Desembargador Theodomiro Dias
passaram pela Instituição, o que marca uma (UE-15), inaugurada em outubro de 1977, após
ruptura de trabalho permanente no âmbito da aproximadamente um ano de reforma.
13
gestão) e também mudanças no ordenamento Dentre os quais é possível destacar o Estatuto
legal, que ia do Código de Menores Mello do Idoso, a Declaração de Salamanca, o Sistema
Matos (vigente nos primeiros anos da Nacional de Atendimento Socioeducativo
Instituição), passando pelo Código de Menores (SINASE) e o Estatuto da Juventude.

230
O Estatuto passa a entender a infância e a infância e juventude tornou-se uma
juventude como portadoras de direitos e questão de defesa nacional.
há mudança do enfoque doutrinário de
“situação irregular” para “proteção Conclusões: o clamor punitivo e a
integral”. No âmbito das políticas permanência do ciclo de
públicas, foi proposto um conjunto de aprisionamento
princípios e diretrizes que definem O ideal de punição e benemerência
propostas e ações, as quais dão esteve presente no processo histórico da
materialidade ao Sistema de Garantia dos legislação brasileira que, no
Direitos da Criança e do Adolescente — direcionamento de suas ações de
SGD (definido na Resolução 113 do prevenção à vadiagem e delinquência, ou
Conselho Nacional dos Direitos da no trato dos ‘menores criminosos e
Criança e do Adolescente — abandonados”, não se preocupou em
CONANDA). dissimular os interesses de
Para responder às demandas de violação criminalização da pobreza. O papel da
dos direitos fundamentais de crianças, punição na Política Criminal
adolescentes e jovens, o ECA instituiu as contemporânea destinada aos
Medidas de Proteção, consubstanciadas adolescentes e jovens adquire força e
entre os artigos 98 e 102 dessa lei. No capilaridade no tecido da sociedade,
caso de crianças que, eventualmente, abarcando um público alvo específico e
pratiquem ato infracional, são aplicáveis legitimado por uma sociedade que é
medidas de proteção também. Já para conivente com o recrudescimento de um
adolescentes que infracionam, foram sistema que se mostra seletivo em suas
previstas as medidas socioeducativas punições.
sintetizadas no artigo 112 e organizadas A crença da população no poder
entre os artigos 103 e 128 do estatuto. punitivo, contudo, não encontra respaldo
O ECA representou a adoção de uma em bons resultados: nos últimos vinte e
perspectiva de superação da concepção cinco anos o número de pessoas privadas
punitiva e assistencialista do Estado no de liberdade no país saltou de 90 mil para
trato desse público específico desde o 812 mil, e os índices de letalidade
Império — quando o direcionamento era policial atingiram patamares que nos
relativo à formação da força de trabalho imprimem a posição de líderes neste
e contenção das massas desvalidas—, segmento de violência em contexto
passando pela República — foco na mundial14. De acordo com alguns
proteção e na salvação da infância teóricos (BATISTA, 2010;
brasileira já não relacionada às práticas ALEXANDER, 2017; SOUZA, 2018),
penais — e pelo período da Ditadura estamos vivendo a “era do grande
Militar, quando a intervenção junto à encarceramento15”. Segundo dados do

14 15
Dados apresentados pelo Anuário Brasileiro Os números revelam um aumento
de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de significativo, se comparados às taxas de 2016,
Segurança Pública informam que o Brasil quando o total de presos era de 726 mil, segundo
registrou, entre os anos de 2011 e 2015, mais o Levantamento Nacional de Informações
mortes violentas do que a Síria, país em guerra, Penitenciárias do Departamento Penitenciário
no mesmo período. Disponível em Nacional (DEPEN), do Ministério da Justiça. Um
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie aumento de 10% no número de pessoas
/wp-content/uploads/2015/10/9-Anuario- encarceradas. A taxa corresponde à projeção
Brasileiro-de-Seguranca-Publica- realizada pelo DEPEN, que é de um aumento de, pelo
FSB_2015.pdf. Acesso em 27 dez. 2019. menos, 8,3% ao ano; isso significa que, no ano

231
Monitor da Violência, o Brasil, terceiro à espera da liberdade, que talvez nunca
maior país nas taxas de aprisionamento chegue? Os inúmeros diagnósticos do
do mundo, atrás apenas dos Estados sistema prisional revelam que o Estado
Unidos e da China, conta hoje com brasileiro tem falhado ao aplicar penas
812.564 adultos em cumprimento de que deveriam restringir apenas o direito
pena em regime fechado e semiaberto16. das pessoas à liberdade, mas que, em
inúmeros casos, acaba por implicar em
Apenas no Estado de São Paulo existem
perda da própria vida19.
hoje 6.792 adolescentes cumprindo
medida em regime de internação17 nas Do Império à contemporaneidade, pouco
unidades da Fundação CASA, sendo essa mudou. No cenário atual do país, onde
uma modalidade que deveria ser aplicada parece não mais serem necessários
aos adolescentes em caráter de exceção e discursos escusos que mascaram o
não de maneira compulsória, como vem preconceito e o ódio a determinadas
sendo adotada nos últimos anos pelos parcelas da população (não brancos,
juízes do Estado. Percebe-se que a LGBT, indígenas e populações pobres),
internação é constantemente aplicada a crianças, adolescentes e jovens
esses jovens, que passam grande parte de pertencentes às populações tidas como
suas vidas institucionalizados, sem indesejáveis são, mais do que nunca,
possibilidades de ruptura deste ciclo. alvos. São foco de um Estado que não
apenas se omite frente a barbárie, mas a
O discurso acerca da “recuperação” dos
executa, como herança de seu passado
presos parece estar ultrapassado, não
colonial e modus operandi de instituições
servindo nem mais como justificativa
que, apenas desse modo, parecem saber
para o aumento da superpopulação
atuar e garantir, assim, sua continuidade.
carcerária. Dadas as precárias condições
em que a população cumpre pena, onde
apenas 10,5% participam de atividades
educativas e 18,54%18 realizam algum
tipo de trabalho, o que se pretende com
essa massa humana, trancafiada em
espaços insalubres, sem atendimento
jurídico, médico e alimentação adequada,

de 2025, contaremos com uma população http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?t


prisional de 1,5 milhão de pessoas. itle=boletim-estat%C3%ADstico&d=79. Acesso
16
Em resposta às várias denúncias sobre as em 27/12/2019.
18
violações de direitos e as condições degradantes http://depen.gov.br/DEPEN/departamento-
em que vivem os apenados no país, o Governo penitenciario-nacional-realiza-esforco-para-
Federal estipulou como meta (2019) a ampliação atualizacao-dos-dados-do-sistema-prisional.
entre 100 mil e 150 mil novas vagas a partir da Acesso em 27/12/2019.
19
construção de novos presídios até o ano de 2022. De acordo com um levantamento do jornal O
Vale pontuar que, atualmente, 70% das prisões GLOBO feito via Lei de Acesso à Informação,
estão com um número de presos maior que a com solicitações remetidas aos 26 estados e ao
capacidade, o que significa um déficit de quase Distrito Federal, entre 2014 e 2017, pelo menos
300 mil vagas no país. Disponível em: 6.368 homens e mulheres morreram sob a
https://g1.globo.com/monitor-da- custódia do Estado, seja por doenças que infestam
violencia/noticia/2019/04/26/superlotacao- as penitenciárias, homicídios ou suicídios. Isso
aumenta-e-numero-de-presos-provisorios-volta- corresponde a cerca de 4 mortes por dia, nos
a-crescer-no-brasil.ghtml. Acesso em presídios do país. Disponível em:
01/08/2019. https://oglobo.globo.com/brasil/2018/06/24/304
17
Dados obtidos através do Boletim Estatístico 6-cadeia-de-omissoes. Acesso em 27/12/2019.
divulgado pela Fundação CASA, disponível em

232
Referências GRAMSCI, A.. A Concepção Dialética da
História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
ADORNO, S.; LIMA, R.S.; BORDINI, E.B.T.. O
1978.
adolescente na criminalidade urbana em São
Paulo. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria GROPPO, L. A.. Juventude: Ensaios sobre a
de Estado dos Direitos Humanos, 1999. juventude e históricas das juventudes modernas.
ALEXANDER, M.. A nova segregação: racismo Rio de Janeiro: Diffel, 2000.
e encarceramento em massa. São Paulo:
GUIRADO, M.. A Criança e a FEBEM. São
Boitempo, 2017.
Paulo: Perspectiva, 1980.
BATISTA, V. M.. Difíceis ganhos fáceis —
drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio RIZZINI, I.; PILOTTI, F.. A Arte de Governar
de Janeiro: Revan, 2003. crianças: a história das políticas sociais, da
legislação e da assistência à infância no Brasil. 3ª.
______________. Depois do Grande Ed. São Paulo: Cortez, 2011.
Encarceramento. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
2011.LODOÑO, F.. A Origem do Conceito
BIERRENBACH, M. I. SADER, E.;
Menor. In: PRIORE, M. D.. História da Criança
FIGUEIREDO, C. P. Fogo no pavilhão. São
no Brasil. São Paulo: Contexto, 1992.
Paulo: Brasiliense, 1987.
BISSOLI FILHO, F.. Estigmas da MALVASI, P. A.; TRASSI, M. de
Criminalização: dos antecedentes à reincidência L. Violentamente pacíficos: desconstruindo a
criminal. Florianópolis: Obra jurídica, associação juventude e violência. São Paulo:
1998.BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C.. A Cortez Editora, 2010.
reprodução: elementos para uma teoria do
sistema de ensino. Rio de Janeiro: Livraria PASSETTI, Edson. Crianças carentes e políticas
Francisco Alves, 1975. públicas. In: PRIORE, M.D.. História das
crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
BRASIL. Código de Menores (Lei nº 17.943, de
12 de outubro de 1927). PIETROCOLLA, L. G. et al. O judiciário e a
comunidade: prós e contras das medidas sócio-
BRASIL. Código de Menores (Lei nº 6.697, de educativas em meio aberto. São Paulo: Instituto
19/10/1979). Brasília: Presidência da República, Brasileiro de Ciências Criminais, 2006.
1979.
BRASIL. Constituição da República ROVARON, M.. Fundação CASA: o passado
Federativa do Brasil. (de 05 de outubro de ditatorial no cotidiano democrático? .2017, 162f.
1988). Brasília: Presidência da República, 1988. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) –
Universidade Estadual Paulista (Unesp),
BRASIL. Lei nº 8.069. Dispõe Sobre o Estatuto Faculdade de Filosofia e Ciências.
da Criança e do Adolescente. (de 13 de julho de
1990). Brasília: Presidência da República, 1990. SILVA, R.. Os filhos do Governo. São Paulo:
Ática, 1997.
BRASIL. Resolução nº 113. Institui o Sistema de
Garantias dos Direitos (de 19 de abril de 2006). SILVA, M. L. O.. Entre Proteção e Punição: o
Brasília: Conselho Nacional dos Direitos da controle sociopenal dos adolescentes. São Paulo:
Criança e do Adolescente, 2006. Unifesp, 2011.
BRASIL. Lei nº 12.594. Institui o Sistema SOUZA, T.L.S. A era do grande
Nacional de Atendimento Socioeducativo. encarceramento. Rio de Janeiro: Revan, 2018.
Brasília: Presidência da República, 2012.
FORTUNATO, M.; LAMBERT, A.; ARAÚJO, TEIXEIRA, M. L. T.. Adolescência Violência:
W.. Superintendência Pedagógica Educação e desperdício de vidas. São Paulo: Cortez, 2006.
medida socioeducativa: conceitos, diretrizes e
VIOLANTE, M. L. V.. O dilema do decente
procedimentos. São Paulo, 2010.
malandro. São Paulo: Cortez, 1982.
FOUCAULT, M.. A Ordem do Discurso. São
Paulo: Edições Loyola, 1996.
_______________ . Vigiar e punir: nascimento Recebido em 2020-01-08
da prisão. Tradução de Lígia Maria Pondé Publicado em 2020-06-07
Vassallo. 12ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

233

Você também pode gostar