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O MST E A CULTURA

Les malheureux sont la puissance de la terre.


Saint-Just

A questão da posse e do uso da terra no Brasil não é meramente um problema ocasional.


Ela é efetivamente estrutural, pois organiza e conforma todos os aspectos da vida social
brasileira. Por exemplo, ela organiza o poder político. Historicamente formado por
grandes latifúndios, o poder político, regional ou nacional, se definia pela quantidade e
extensão de terra do proprietário. Terra essa que incluía populações inteiras, nativas ou
não. Desde os pequenos vilarejos, todos eram dependentes da produção e do poder
exercido pelo proprietário e lhe garantiam a posse do lucro e a disposição da vida política
e cultural da população.

A concentração histórica de vastas áreas territoriais (maiores que grande parte dos países
europeus) em mãos de uma parcela minúscula da população (o proprietário do
latifúndio), sempre serviu para concentrar riqueza, impedir a divisão de renda, a
formação de um mercado interno auto-suficiente. As terras improdutivas dos grandes
latifúndios impedem o abastecimento racional da própria população, garantindo a
permanência e a reprodução do atraso econômico e da miserabilidade (em uma palavra: a
fome).

A concentração fundiária e o latifúndio, historicamente, primeiro prenderam as pessoas


no campo, agregadas aos caprichos do poder instituído desde a época colonial. No século
XX, com os surtos de modernização sucessivos e incompletos, que transformaram o
Brasil em uma das dez maiores economias do mundo e também consagraram o país como
uma das piores divisões de renda do planeta, o processo mudou de sentido sem alterar sua
natureza corrosiva. Até a década de 1960, cerca de 80% da população vivia na campo.
Em quarenta anos esse número se inverteu. O resultado dessa urbanização selvagem, na
qual uma parcela pobre de camponeses foi atirada em um caos econômico repleto de altos
e baixos, e na qual foi mantida a condição de exclusão do produto da riqueza nacional,
trouxe a violência do campo para a cidade, tomada desde então por um imenso processo
de favelização (e com consequências sociais terríveis, entre as quais, a violência urbana, a
fome, a não-cidadania).

O MST é o resultado histórico da necessária resistência à permanência desse estado de


injustiça, desse estado de exceção contínuo. É o resultado da luta pela inversão dessa
história.

Mas isso é sabido. O que é menos conhecido, e não é menos importante, é que a
formação cultural do povo brasileiro deserdado é também alvo de suas ações. Ações
incrivelmente bem sucedidas e dignificantes.

Nos acampamentos e nos terrenos ocupados pelo MST floresce tudo aquilo que a história
e o Estado brasileiro negaram à maioria do seu povo. O movimento educa. E educação
aqui não se confunde com doutrinação ou dogmatismo. Pessoas cuja história pregressa só
conheceu o analfabetismo, aprendem a ler, através da utilização revolucionária de um dos
maiores avanços educacionais da história da cultura moderna: o método Paulo Freire. A
cidadania cultural lhes chega através da escola, do ensino formal em todos os níveis. O
movimento propicia cursos com níveis de aprendizado mais altos que as escolas regulares
do Estado, desde a infância até o ensino universitário, em vários lugares do Brasil: desde
os mais pobres até os centros universitários que desenvolvem a ciência mais avançada e
aberta que o país possui. O MST já formou doutores.

Mas talvez o maior avanço desse movimento seja justamente o princípio norteador de
suas ações culturais que não separa formação política (voltada ao direito e à cidadania),
formação educacional e produção cultural e simbólica – livre e formalizada pela
sensibilidade coletiva.

As brigadas de cultura do MST não produzem “propaganda” do movimento


simplesmente, como costumam acusar seus inimigos. Produzem arte, em sentido exato e
avançado. As brigadas de teatro não apenas “animam” as condições precárias dos
assentamentos. Elas organizam a experiência de vida e de luta dos assentados, permitem
que eles elaborem sua criatividade, seus corpos, seus sentidos, seus desejos. O mesmo
ocorre com a produção artística visual: ela ensina técnicas, história da arte, discute
estética. Tudo voltado para a viabilização da auto-expressão de um grupo social tido
sempre como “ignorante”, “inexpressivo”. O autor vira produtor, e vice-versa: o MST
produz peças, happenings, performances e filmes. Cria a imagem de um grupo social ao
qual a representação imagética de si também foi negada historicamente.

Nesse caminho, produzem literatura, escrevem livros e poemas, dentro da tradição culta.
O MST sabe que na luta pelos direitos está o direito à literatura. O direito a ser letra e
palavra. Mas a concepção popular do movimento permite também que se retomem e
continuem experiências trazidas pela tradição cultural dos diferentes lugares que compõe
a fantástica multiplicidade cultural brasileira: literatura de cordel, desafios, repentes,
panfletos. Formas consagradas e comunicativas, em diferentes sotaques e timbres. Nesse
caminho também, os sons tradicionais são recuperados e revalorizados, contra uma
cultura de massas que os despreza ou os trata como mera mercadoria. O MST canta e
dança todos os sons do Brasil. Mas também cria novos sons, permite que nasçam novas
vozes.

Um dos maiores críticos de arte do século XX, o brasileiro Mário Pedrosa, dizia que a
mais sublime missão das artes era libertar as pessoas da opressão e da alienação que o
cotidiano da injustiça social lhes impunha como norma e naturalizava como efeito. Toda
a arte genuína, dizia o grande crítico, militante socialista por toda a vida, é e terá de ser
sempre um “exercício experimental da liberdade”. O exercício destas experimentações,
desta tarefa de lutar contra o comum, inclusive no campo da linguagem, da pura criação,
é o cotidiano da luta cultural do MST. A liberdade é sua meta. Uma meta generosa que
inclui todos aqueles que a história excluiu, no Brasil ou em qualquer outro lugar. A pátria
do MST são os desgraçados da terra. Sua cultura, é a cultura dos que buscam a graça da
terra e da arte, em qualquer parte do mundo.
Francisco Alambert, Doutor em História, professor de História Social da Arte da
Universidade de São Paulo. Crítico de arte, escreve em diversas publicações no Brasil e
no exterior. Entre outros livros, escreveu, em parceria com Polyana Canhête, Bienais de
São Paulo: da era do Museu à era dos curadores, que recebeu o prêmio Jabuti em 2005
na categoria ensaio sobre arte.

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