tem a fazer só pode aparecer, parece- me, no interior de um ção, a mesma lei penal, ainda " não matarás", ainda acom-
campo de forças reais, isto é, um campo de forças que nun- panhada de certo número de punições se for infringida,
ca um sujeito falante pode criar sozinho e a partir da sua pa- mas desta v,e~ o co~j~to _é enquadrado, de um lado, por
~avra; é um campo de forças que não se pode de maneira ne- toda urna sene de vtgilanaas, controles, olhares, esquadri-
. nhuma controlar nem fazer valer no interior desse discurso. nhamentos diversos que permitem descobrir, antes mesmo
Por conseguinte, o imperativo que embasa a análise teórica de o ladrão roubar, se ele vai roubar, etc. E, de outro lado,
que se procura fazer - já que tem de haver um -, eu gosta- na outra extremidade, a punição não é simplesmente esse
ria que fosse simplesmente um imperativo condicional do momento espetacular, definitivo, do enforcamento, da multa
gênero deste: se você quiser lutar, eis alguns pontos-chave, ou do desterro, mas será uma prática como o encarcera-
eis algumas linhas de força, eis algumas .travas e alguns blo- mento, impondo ao culpado toda uma série de exercícios,
queios. Em outras palavras, gostaria que esses imperativos de trabalhos, trabalho de transformação na forma, simples-
não fossem nada mais que indicadores táticos. Cabe a mim mente, do que se chama de técnicas penitenciárias, traba-
saber, é claro, e aos que trabalham no mesmo sentido, cabe lho obrigatório, moralização, correção, etc. Terceira modula-
a nós por conseguinte saber que campos de forças reais to- ~ão a partir da mesma matriz: seja a mesma lei penal, sejam
mar como referência para fazer uma análise que seja eficaz Igualmente as punições, seja o mesmo tipo de enquadra-
em termos táticos. Mas, afinal de contas, é esse o círculo da mento na forma de vigilância, de um lado, e correção, do
luta e da verdade, ou seja, justamente, da prática filosófica. ou~o . Mas, desta vez, a aplicação dessa lei penal, a organi-
Enfim, um quinto e último ponto: essa relação, creio, sé- zaçao da prevenção, da punição corretiva, tudo isso vai ser
ria e fundamental entre a luta e a verdade, que é a própria di- comandad~ por ~ma série de questões que vão ser pergun-
mensão em que há séculos se desenrola a filosofia, pois bem, tas do segwnte genero, por exemplo: qual é a taxa média da
essa relação séria e fundamental entre a luta e a verdade, criminalidade desse [tipo]*? Como se pode prever estatisti-
creio que não faz nada mais que se teatralizar, se descamar, camente que haverá esta ou aquela quantidade de roub os
perder o sentidq e a eficácia nas polêmicas internas ao discur- num momento dado, numa sociedade dada, numa cidade
so teórico. Portanto proporei em tudo isso um só imperativo, dada, na cidade, no campo, em determinada.camada social,
mas que será categórico e incondicional: nunca fazer política2 • etc.? .Em _segundo lugar, h~ momentos, regiões, sistemas
Bem, gostaria agora de começar este.curso. Ele se cha- penais tais que essa taxa media vai aumentar ou diminuir?
ma, portanto, "segurança, território, população"~. As cri,s~s, a fome_, ~s guerras, as punições rigorosas ou, ao
Primeira questão, claro: o que se pode entender por "se- c~ntrar~o, as puruçoes brandas vão modifi'car essas propor-
gurança"? É a isso que gostaria de consagrar esta hora e tal- çoes? Outra_s perguntas mais: essa criminalidade, ou seja, o
vez ~próxima, enfim, conforme a lentidão ou a rapidez do roubo portanto, ou, dentro do roubo, este ou aquele tipo
que direi. Bem, um exemplo, ou melhor, uma série de exem- de roubo, quanto custa à sociedade, que prejuízos produz,
pios, melhor ainda, um exemplo modulado em três tempos. que perdas, etc.? Mai~ outras perguntas: a repressão a esses
E simples, é infantil, mas vamos começar por aí e creio que roubos ~usta quanto? É mais oneroso ter uma repressão se-.
isso me permitirá dizer um certo número de coisas. Seja vera- e ngorosa, urna repressão fraca, uma repressão de tipo
uma lei penal simplíssima, na forma de proibição, digamos,
"não matarás, não roubarás", com sua punição, digamos, o
enforcamento, ou o desterro, ou a multa. Segunda modula- • M .F.: gênero-
8 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAçAO AUlA DE 11 DE]ANEIRO DE 1978
9
exemplar e descontínua ou, ao contrário, urna repressão estudar agora. Dispositivo de segurança que vai, para dizer
contínua? Qual é o ·custo comparado do roubo e da sua re- as coisas de maneira absolutamente global, inserir o fenô-
pressão? O que é melhor, relaxar um pouco com o roubo ou meno em questão, a saber, o roubo, numa série de aconte-
relaxar um pouco a repressão? Mais outras perguntas: se o cimentos prováveis. Em segundo lugar, as reações do poder
Culpado é encontrado, vale a pena puni-lo? quanto cus~a ~te esse fenômeno vão ser inseridas num cálculo que é um
ria puni -lo? O que se deveria fazer para puru -lo e, purun- cálculo de custo. Enfim, em terceiro lugar, em vez de instau-
do-Ó, reeducá-lo? Ele é efetivamente reeducável? Ele repre- rar uma divisão binária entre o permitido e o proibido, vai-
senta, independentemente do ato que cometeu, um perigo se fixar de um lado uma média considerada ótima e, depois,
permanente, de sorte que, re~ducado ou não, re_incidiria, e~tabelec~r os limites do aceitável, além dos quais a coisa
etc.? De maneira geral, a questao que se ç:oloca sera a de sa- nao deve rr. É portanto toda uma outra distribuição das coi-
ber como, no -fundo, manter um tipo de criminalidade, ou sas e dos mecanismos que assim se esboça.
seja, o roubo, dentro de limites que sejam s~ci~ e econ<?mi- Por que tomei esse exemplo tão infantil? Para logo res-
camente aceitáveis e em tomo de uma media que Vai ser saltar duas ou três coisas que gostaria que ficassem bem
considerada, digamos, ótima para um funcionamento social claras para vocês todos e, antes de mais nada, para mim, é
dado. Pois bem, essas três modalidades me parecem carac- claro. Aparentemente, eu lhes ofereci aqui, por assim dizer,
terísticas de diferentes coisas que foram estudadas [e daque- uma espécie de esquema histórico totalmente descarnado.
las] que eu gostaria de estudar agora. . . O sistema legal é o funcionamento penal arcaico, aquele
A primeira forma, vocês conhecem, a que consiSte ~m que se conhece da Idade Média aos séculos xvn-XVIII. O
criar urna lei e estabelecer urna punição para os que a m- ~egundo é o que .podet!amos chamar de moderno, que é
fringirem, é o sistema do código legal com divisão biftária rrnplantado a partir do seculo XVIII; e o terceiro é o sistema
entre o permitido e o proibido, e um acoplamento, que e pre- digamos, contemporâneo, aquele cuja problemática come~
cisamente no que consiste o código, o acoplamento entre çou a surgir bem cedo, mas que está se organizando atual-
um tipo de ação proibida e um tipo de punição. ~ portant~ mente em tomo das novas formas de penalidade e do cál-
o mecanismo legal ou jurídico. O segundo m~carusmo, a }e1 culo do custo das penalidades: são as técnic.a s americanas6,
enquadrada por mecanismos de vigilância e. de co~e~a?, mas também européias que encontramos agora. De fato,
não voltarei a isso, é evidentemente o mecarusmo disopli- caracterizando-se as coisas assim- o arcaico, o antigo, o m o -
n~ . É o mecanismo disciplinar que vai se caracterizar pelo demo e o contemporâneo -, creio que se perde o essencial.
fato de que dentro do sistema binário do código aparece Perde-~e o essen~ial, primeiramente, é claro, porque essas
um terceiro personagem, que é o culpado, e ao mesmo tem- modalidades antigas de que eu lhes falava implicam, evi-
po, fora, além do ato legislativo que cria ale~~ do at? j~di dentemente, as que se manifestam como mais novas. No
cial que pune o culpado, aparece toda uma sene d: tecrucas sistema jurídico-legal, aquele que funcionava, em todo caso
adjacentes, policiais, médicas, psicológicas, que sao do do- aquele que dominava até o século XVIII, é absolutamente
mínio da vigilância, do diagnóstico, da eventual transfor- eviden~~ que o a~pecto disciplinar estava longe de estar au -
mação dos indivíduos. Tudo isso nós já vimos. A terceira sente, Ja que, afinal de contas, quando se impunha a um
forma é a que caracterizaria não mais o código legal, não ato, mesmo que e sobretudo se esse ato fosse aparentemen-
mais o mecanismo disciplinar, mas o dispositivo de segu- te de pouca importância e de pouca conseqüência, quando
rança5, isto é, o conjunto dos fenômenos que eu gostaria de se impunha uma punição dita exemplar, era precisamente
10 SEGURANÇA. TERRITÓRIO, POPUI:AÇÃO AÜLA DE .11 DE JANEIRO DE 1978 11
porque se pretendia obter um efeito eorretivo~ se Aão· sobre na ordem-penal, nessa ordem da ·segurança. O conjunto das
o culpado·. propriamente·- porq~e se ele fosse ex:úor.cad0· a ·medidas legislativas, dos decretos, dos reguhunentos, das cir-
correção era pouca para. ele·-, [pelo menos sobre ol* resto culares que permitem implantar os m e canismos de seguran-
da população. Nessa medida,. pode-se dizer que a prática·do ça, esse conjunto é cada-vez mais gigantesco~ Áfinal de con-
suplício como exemplo era uma técnica corretiva. e discipli- tas, o código legal referente ao roubo era relativamente mui-
nar. D'o mesmo modo que· no mesmo sistema, quando se to simples na tradição da Idade Média e da época clássica.
pUnia o roubo doméstico de maneira extraordinariamente Retornem agora todo o conjunto da legislação que vai dizer
severa - a pena de morte para um. roubo de pequeníssima re~peito não apenas ao roubo, mas ao roubo cometido pelas
monta, caso tivesse·sido.cometido. dentro de uma casa: por cnanças, ao estatuto penal' das crianças, às responsabilidades
alguém que era recebido nesta ou- empre~do - como do- por razões men~ais, todo o conjunto legislativo que dlz res-
méstico -, era evidente que se visava com· isso, no fundo, pejto a_o _q~e ~ cham_ad~, -tu~tamente, de medidas de seguran-
um crime que· só. era importante por sua probabilidade, e ça~ a VIgilanaa dos mdiVIduos depois de sua instituição: vo-
podemos dizer que aí também se havia instaurado algo como: cês vão ver que há uma verdadeira inflação legal, inflação do
um mecanismo de segurança. Poderíamos [dizerl** a -mes- código· jurídico:..legal para fazer esse sistema de segurança
ma coisa. a propósito· do· sistema disciplinar, que também funcionar. Do mesmo modo, o corp-us disciplinar também é
comporta. toda uma· série de dimensões que são propria,.. amplamente ativado e fecundado pelo estabelecimento desses
mente da· ordem. da segurança. No fundo, quando se pro- mecanismos de 5egurança. Porque, afinal de contas, para de
cura, Gorrigir um detento, um.condenado, prorura-se corri- ~ato garantir essa segurança é preciso apelar, por exemplo, e
gi-10 em função .dos.riscos de recidiva, de-reinddência. que e apenas um exemplo, para·toda·uma série de técnicas de vi-
ele apresenta, isto é, em função · do· que se · chamará; bem gilância, de vigilância-dos indivíduos, de diagnóstico do que
cedo, da sua periculosidade- ou seja, aqui também, meca- eles s.ão, d~ ~assi.ficação da sua estrutura mental, da sua pa-
nismo de segurança. Logo, os mecanismos disdplinares.não tologia propn~, etc., todo um conjunto clisciplin~ que viceja
aparecem simplesmente·a ·partir do século..XVIII~ elesjá es- sob os mecarusmos de segurança para fazê-los funcionar.
tão presentes no interior do códigojuridico-legaL Os meca- Port'a nto; vocês não têm uma série na qual os elemen-
nismos de -segurança também são antiqüíssimos Gomo-me- tos vão se suceder, os que aparecem fazendo seus predeces-
canismos. Eu também poderia dizer, inversamente, que, se so.r es desapar~cerem. Não há a era do legal, a era do disci -
tomarmos. os-mecanismos de -segurança tais como se tenta plinar, a era da segurança. Vocês não têm mecanismos de
desenvolvê -los na· época contemporânea, é absolutamente segurança .q ue ~ornam o lugar dos mecanismos disciplina:..
evidente que isso não constitui de maneira f1enhuma uma res, os qurus tenam tomado o ·lugar dos mecanismos jurídi-
colocação entre parênteses ou uma anulação das estruturas co-legais. Na verdade; vocês têm uma série de edifícios com-
jurídico-legais ou dos mecanismos disàplinares.Ao contrá- p~exos nos guais o que :Vai mudar, claro, são as próprias téc-
rio, tomem por exemplo-o que acontece' atualmente, ainda rucas que vao se aperfeiçoar ou, em todo caso, se complicar,
mas o que vai mudar, principalmente, é a dominante ou
• - . I
mrus exatamente, o sistema de correlação entre os mecanis-
.. M : Foucault diz: em compensação; a ·correção, o efeito corretivo mo~ jurídico- legais, os mecanismos di~ciplinares e os me:.
diri~-se evidentemente a o
carusl!'-os de segurança. Em outras palavras, vocês vão ter
- M.F.: tomar
uma história que ·vai ser urna história das técnicas propria -
12 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUU\ÇÃO AUU\ DE 11 DE JANEIRO DE 1978 13
mente ditas. Exemplo: a técnica celular, a detenção em ce- se vê é que essa problemática trouxe tal inflação nas técni-
las é urna técnica disciplinar. Vocês podem perfeitamente cas disciplinares, que no entanto estavam estabelecidas fa-
fazer a história dela, que remonta a bem longe. Vocês já a zia muito tempo, que o ponto em que, se não o escândalo,
encontram muito empregada na era do jurídico-legal. En- pelo menos o atrito apareceu- e a ferida foi bastante sensí-
Gontram-na empregada no caso de pessoas que têm dívi- vel para provocar reações, reações violentas e reais - , foi
das, encontram-na empregada sobretudo na ordem religio,- essa multiplicação disciplinar. Em outras palavras, foi o dis-
sa. Vocês fazem então a história dessa técnica celular (isto e, ciplinar que, na própria época em que os mecanismos de
[a história de] seus deslocamentos, [de] sua utilização), vêem segurança estão se estabelecendo, foi o disciplinar que pro-
a partir de que momento a técnica celular, a disciplin_a celu- vocou, não a explosão, porque não houve explosão, mas
lar é empregada no·sistema penal comum, que conflitos ela pelo menos os conflitos mais manifestos e mais visíveis.
suscita, como ela regride. Vocês também poderiam fazer a Então, o que eu gostaria de tentar lhes mostrar durante este
análise da técnica, nesse caso de segurança, que seria por ano é em que consiste essa tecnologia, algumas dessas tec-
exemplo a estatística dos crimes. A estatística, do~ crime~ é nologias [de segurança]*, estando entendido que cada uma
coisa qu~ não data de hote, mas tampouco e c_m~a ,t~wto delas consiste em boa parte na reativação e na transforma-
antiga. Na França, são os celebres Balanços do ~st_eno da ção das técnicas jurídico-legais e das técnicas disciplinares
Justiça que possibilitam, a partir de 18~67,, ~ estatística, d~s de que lhes falei nos anos precedentes.
crimes.Vocês podem portanto fazer a histona dessas te cru- Outro exemplo que vou simplesmente esboçar aqui,
cas. Mas há uma outra história, que seria a história das tec- mas para introduzir outra ordem de problemas ou para real-
nologias, isto é, a história muito mais global, mas, é claro, çar e generalizar o problema (aqui também são exemplos
também muito mais vaga das correlações e dos sistemas de de que já falei n vezes**). Ou seja, podemos dizer, a exclu-
dominante que fazem com que, numa sociedade dada e para são dos leprosos na Idade Média, até o fim da Idade Média8 •
este ou aquele setor dado - porque não é necessariamente É uma exclusão que se fazia essencialmente, embora tam-
sempre ao mesmo passo que as coisas vão evoluir neste ou bém houvesse outros aspectos, por um conjunto mais urna
naquele setor, num momento dado, numa sociedade dada, vez jurídico, de leis, de regulamentos, conjunto religioso
num país dado -, se instale urna tecnologia de segurança, também de rituais, que em todo caso traziam uma divisão,
por exemplo, que leva ein conta e faz funcionar no int~ri~r e uma divisão de tipo binário entre os que eram leprosos e os
da sua tática própria elementos jurídicos, elementos disci- que não eram. Segundo exemplo: o da peste (deste também
plinares, às vezes até mesmo multiplicando-os. Temos atual- já lhes havia falado 9, logo tomo a ele rapidamente). Os re-
mente um exemplo bem nítido disso, ainda a propósito gulamentos relativos à peste, tais como os vemos formula-
desse domínio da penalidade. É certo que a evolução con- dos no fim da Idade Média, no século XVI e ainda n o sécu-
temporânea, não apenas da proble~ática, da maneira co~o lo XVII, dão uma impressão bem diferente, agem. de urna
se reflete sobre a penalidade, mas 1gualmente [da] manerra maneira bem diferente, têm uma finalidade bem diferente
como se pratica a penalidade, é claro que por enquanto, faz e, sobretudo, instrumentos bem diferentes. Trata -se nesses
anos, bem uns dez anos pelo menos, a questão se coloca es-
sencialmente em termos de segurança. No fundo, a econo-
mia e a rel~ção econômica entre o custo da repressão e o • M ..F.: diSciplinares
custo da delinqüência é a questão fundamental. Ora, o que •• M. Foucault acrescenta: e que são [palavra inaw:Uvel]
SÇGURANÇA, TERRIT0R10, POPULA,ÇÃO AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 15
regulamentos relativos à peste de qua<;irilhar literalmente as quanto parecida, transformações mais ou menos do mesmo
regiões, as cidades no interior, das quais exist~ a peste, com tipo nas sociedades, digamos, como as nossas, ocidentais.
uma regulatnentação indicando à,s pessoas quando poçie-m Trata-se da emergência de tecnologias de segurança no in -
sair, como, a que horas, o que devem fazer em casa, que terior, seja de mecanismos que são propriamente mecanjs-
tipo de allmentaç~o deve~ ter, proibindo-lhes este_ ou mos de cor:ttrole social~ como no caso da penalidade, seja
aqu~le tipo de contato, obriga,ndo-ÇlS a se apresentar a ms.,.. dos ~ec~~m_os que ter;t _por ~ção _modificar em algo o
petores, a abrir-a casa aos inspetores. l'ode-se dizer que te- destino btolog:tco da especte. Entao, e e essa a questão cen-
mo~, aí, qql sistem~ que é de tipo disçiplinar, Te~;~eiro exem- tral do que eu gostaria de analisar, poderíamos dizer que
plo: o q\1~ estudamos atualmente no $eiT\inário, ~sto ~, a em nossas sociedades a economia geral de poder está se
varíola ou, a p~ do sécu\o XVIII, as prátiç(;l,S d~ inocul~ tornando da ordem da segurança? Eu gostaria portanto de
ção10. O -problema se c9loça çie ma.neir~ ·bem dif~rente-: n~o fazer aqui uma espécie de história das tecnologias de segu-
tanto imp.or- uma çliscipl,ina, ~mbo_ra a disqpl,ina [~ja] * çha- rança e tentar ver se podemos efetivamente falar de urna
mada em auxílio;- o prol;>lema fundamental vai ser o çle- s~ sociedade de segurança. Em todo caso, sob o nome de so-
ber quantas pessoas pega,ram v~ola, co{n que idade, com ci~dad: de segurança eu gostaria simplesmente de saber se
quais efe-i tos, qual a mortalidade, quais as lesõ~s ou qu~s as ha efetivamente uma econornja geral de poder que tenha a
seqüelas, qu,e riscos s~ çorr~ f~_endo-se inocular, qu~ a forma [de] ou que, em todo caso, seja dominada pela tec-
pro.babilid~d,e de um in~víd,uo vir a morr~r ou pesar va,no-. nologia de segurança.
la apesar da inoculª~ão, qu.a,is os efeitos estatísticos_sobre-~ Então, algumas características gerais desses dispositi-
pop~aç~O. em. ge.5al, em suma, todo ~ _pr~bl~ma que Ja vos de se~ança. Gostaria de ressaltar quatro, não sei quan -
não e o da ex;clusao, como. na l~pra, q\l:e Ja nao e o dª qua- to~ ..., ~nfim, vou começar analisando alguns para vocês. Em
rentena, como na peste, que vai -ser o problema das epide- pnmerro lugar, gostaria de estudar um pouquinho, assim
mia_s. e das campanhas ~édicas por meio das. quais se ten- por alto, o que poderíamos chamar de espaços de seguran-
tari_\ jugular· os fenômenos, tan.to os epiçiêmicos quanto os ça. Em segundo, estudar o problema do tratamento do alea-
e1_1dêmicos.. tório . -~m terceiro, estudar a forma de nonn'a lização que é
Aqui taml;>ém, por sinal, basta ver o c9njunto legi$lati- específica ~a s:_gur~n~a ~que não ~e parece do mesmo tipo
vo, a.s obrig,a ções çlisciplinares que os. m~c~smos d~ se~ da normahzaçao dtsc1plmar. E, enfim, chegar ao que vaj ser
rança x:nodeJ;nos inclu~m, pa~;a y~r qlJ.~ n,ao ha uma sucess;;to:_ o problema preciso deste ano, a correlação entre a técnica
lei, depois Qisci,plina,_depois segurança. A s~gurança é-Ulll,a de s~~ança e a população, ao mesmo tempo corno objeto
certa manei.J;a de acrescentar, de fa+~r funci_o[\ar~ al~m dos_ e_suJe!to desses mecanismos de segurança, isto é, a ernergên -
mecanismos·proprian:tente de Se~ança, as V~lhas ~S~t\1: c~ nao apenas da noção, mas da realidade da população.
ras d,a le~ e da disciplina. Na or:dem do djreito, portanto, na Sao, no fundo, uma idéia e uma realidade sem dúvida ab-
ordem da. medicina, e po_çieria multiplicar os ~xemplos_ - foi s.olutamente m<:;>demas em relação ao funcionamento polí-
por isso qu~ lhes citei e~te outro - ,_vo.c ês estão yendo.-qu.e tico, mas tambem em relação ao saber e à teoria políticos
encontramos ;;tpe~a.J; de t:udo uma e~olução um taRto ou anteriores ao século XVIIT.
Então, em primeiro lugar, em linhas gerais, as questões
de. espaço. Poderíamos dizer, à primeira vista e de urna ma-
• M .F:: 's erá nerra um tanto esquemática: a soberanja se exerce nos limi-
AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 17
16 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
tes de um território, a disciplina se exerce sobre o corpo dos Por outro lado, o s problemas de e spaço são igualmen -
indivíduos e, por fim, a segurança se exerce so~re o conjun- te comuns a todas as três. No caso da soberania é óbvio
to de uma população. Limites do território, corpo dos indi- pois ~ antes de .n:~s nada como uma coisa que se ~xerce n~
víduos, conjunto de uma população, tudo bem, mas não é m~en~r do_tem tono que a soberania aparece .. Mas a disci-
isso e creio que isso não cola. Não cola, primeiro, porque o plina rmpli~a uma ,r~partição es~acial, e creio que a seg-U-
problema das multiplicidades é um problema que já encon- rança tambem- e e JUStamente disso, desses diferentes tra-
tramos a propósito da soberania e a propósito da disciplina. tamentos do espaço pela soberania, disciplina e segurança
Embora seja verdade que a soberania se inscreve e funcio- que eu gostaria de lhes falar agora.
na essencialmente num território e que, afinal de contas, a , Vamos ver de n~vo uma série de exemplos. Vou pegar,
idéia de uma soberania sobre um território não povoado é e claro, o caso das crdades. A cidade era, ainda no século
uma idéia jurídica e politicamente não apenas aceitável, mas :xym, no início do século XIX também, essencialmente c~..,
perfeitamente aceita e primeira, o fato é que o exercício da racte~ada por uma especificidade juridica e administrativa
soberania em seu desenrolar efetivo, real, cotidiano, indica que a 1solav~ o~ a marcava de uma maneira bastante singu-
sempre, é claro, uma certa multiplicidade, mas que vai ser lar em relaçao as outras extensões e espaços do território.
tratada justamente seja como a multiplicidade de sujeitos, Em segundo lugar, a cidade se caracterizava por um encer-
seja [como] a multiplicidade de um povo. ram:_nto ~~ntro de um espaço murado e denso, no qual a
A disciplina também, é claro, se exerce sobre o corpo funçao ~tar nem de longe era a única. E, por fim, ela se
dos indivíduos, mas procurei lhes mostrar como, na verda- car~ctenzava por uma heterogeneidade e conômica e social
de, o indivíduo não é na disciplina o dado primeiro sobre o mwto acentuad~ em relação ao campo.
qual ela se exercia. A disciplina só existe na medida em que Ora, tudo 1sso suscitou nos séculos xvn-XVIII toda
há uma multiplicidade e um fim, ou um objetivo, ou um re- uma massa de problemas ligados ao desenvolvimento · dos
sultado a obter a partir dessa multiplicidade. A disciplina es- ~tados ~dministrativos para os quais a especificidade jurí-
colar, a disciplina militar, a disciplina penal também, a disci- dica da adade colocav~ um problema de difícil solução. Ein
plina nas fábricas, a disciplina operária, tudo isso é uma de- segundo lugar, o crescrmento do comércio e, depois, ·no ·sé-
terminada maneira de administrar a multiplicidade, de orga- culo xvm, da demografia urbana colocava o problema do
nizá-la, de estabelecer seus pontos de implantação, as seu adensamento e do seu encerramento no interior das mu -
coordenações, as trajetórias laterais ou horizontais, as traje- ralhas. O desenvolvimento das técnicas militares também
tórias verticais e piramidais, a hierarquia, etc. E, para uma colo~av~ e~se me~mo problema. Enfim, a necessidade de in_
disciplina, o indivíduo é muito mais uma determinada ma- tercamb10s economicos permanentes entre a cidade e seu
neira de recortar a multiplicidade do que a matéria-prima a entorno imediato para a subsistência, seu entorno distante
partir da qual ela é construída. A disciplina é um modo de para suas relações comerciais, tudo isso [fazia com que] 0
individualização das multiplicidades, e não algo que, a par- encerramento da cidade, seu encravamento, [também le-
tir dos indivíduos trabalhados primeiramente a título indivi- vantasse] um problema. E, em linhas gerais, era precisamen-
dual, construiria em seguida uma espécie de edifício de ele- te de:se. desen~avamento espacial, jurídico, administrativo,
mentos múltiplos. Portanto, afinal, a soberania, a disciplina, econo~co da adade que se tratava no século xvm. Ressi-
como também, é claro, a segurança só podem lidar com tuar a crda~e num espaço de circulação. Sobre esse ponto,
multiplicidades. remeto voces a um estudo extraordinariamente completo e
26 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AUIA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 27
disposição do espaço, com o escoamento das águas, com as ro x de passantes, número x de ladrões, número x de mias-
ilhas, com o ar, etc. Logo, ela trabalha sobre algo. dad?. [Em mas, etc.* Série indefinida dos elementos que se produzem:
segundo lugar,] . não se trata, p?J"a ela, de reconstruir _e:_se tantos barcos vão atracar, tantas carroças vão chegar, etc.
. dado de tal modo que se atingisse um ponto de perfe1çao, Série igualmente indefinida das unidades que se acumu-
como numa cidade disciplinar. Trata-se simplesmente de lam: quantos habitantes, quantos imóveis, etc. É a gestão
maximizar os elementos positivos, de poder circular da me- dessas séries abertas, que, por conseguinte, só podem ser
lhor maneíra possível, e de minimizar, ao contrário, o que é controladas por uma estimativa de probabilidades, é isso, a
risco e inconveniente, como o roubo, as doenças, sabendo · meu ver, que caracteriza essencialmente o mecanismo de
perfeitamente que nunca serão sup~dos. Trab,alha-se segurança.
portanto não apenas com dados naturais, mas, t~bem com . Digamos para resumir isso tudo que, enquanto a sobe-
quantidades que são relativamente compress1ve1s, mas que rania capitaliza um território, colocando o problema maior
nunca o são totalmente. Isso nunca pode ser anulado, logo da sede do governo, enquanto a disciplina arquiteta um es-
vai -se trabalhar com probabilidades. Em terceiro lugar, o paço e coloca como problema essencial uma distribuição
que se vai procurar estruturar nesses pl~ej~ent<:>s são os hierárquica e funcional dos elementos, a segurança vai pro-
elementos que se justificam por sua poliflll:clOnalid~de . O curar criar um ambiente em função de acontecimentos ou
que é uma boa rua? É uma rua na qual vai haver, e claro, de séries de acontecimentos ou de elementos possíveis, sé-
urna circulação dos chamados miasmas, logo das doenças, ries que vai ser preciso regularizar num contexto multiva-
e vai ser necessário administrar a rua em função desse pa- lente e transformável. O espaço próprio da segurança re-
pel necessário, embora pouco desejável, da rua. A rua vai mete portanto a uma série de acontecimentos possíveis,
ser também aquilo por meio do que se levam ~s merca~o remete ao temporal e ao aleatório, um temporal e um alea-
rias, vai ser também aquilo ao longo do que vru haver lo~as . tório que vai ser necessário inscrever num espaço dado. O
A rua vai ser também aquilo pelo que vão poder translt~ espaço em que se desenrolam as séries de elementos alea-
os ladrões eventualmente os amotinados, etc. Portanto sao
I • . tórios é, creio, mais ou menos o que chamamos de meio. O
todas essas diferentes funções da cidade, umas posthvas, meio é urna noção que, em biologia, só aparece - como vo-
outras negativas, mas são elas que vai ser preciso impl?ntar cês sabem muito bem - com Lamarck36 • E uma noção que,
no planejamento. Enfim, o quarto P?nto ~port~te e. que em compensação, já existe em física, que havia sido utiliza-
vai se trabalhar com o futuro, isto e, a adade nao vru ser da por Newton e os newtonianos37• O que é o meio? É o que
concebida nem planejada em função de urna p~r~epção es- é necessário para explicar a ação à distância de um corpo so-
tática que garantiria instantaneamente _a perfe1çao da fun-
bre outro. É, portanto, o suporte e o elem e nto de circulação
ção, mas vai se abrir para um futuro nao exatam~nte con-
de uma ação38 • É portanto o problema circulação e causali-
trolado nem controlável, não exatamente medido nem 'I
' dade que está em questão nessa n oção de m eio. Pois bem,
mensurável, e o bom planejamento da cidade vai s_er preci-
creio que os arquitetos, os urbanistas, os primeiros urbanis-
samente: levar em conta o que pode acontecer. Enfim, acre-
tas do século xvm, são precisamente os que, não diria uti-
dito que possamos falar aqui de uma técnica _q ue ~e vincu-
la essencialmente ao problema da segurança, 1sto e, no fun-
do, ao problema da série. Série indefinida dos elem~ntos • M . Foucault repete: Série indefinida dos elementos que sedes-
que se deslocam: a circulação, número x de carroças, nume- locam
AULA DE 11 DE]ANEfRO DE 1978 29
28 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
em que se fala do vinho que gela nos tonéis e diz: será que NOTAS
veríamos hoje, na Itália, o vinho gelar nos tonéis? 41 Pois
bem, se houve tanta mudança, não é que o clim.a mudou, é
que as intervenções políticas e econômicas do governo mo-
. dificararn o curso das coisas a tal ponto que a própria natu-
reza constituiu para o homem, eu ia dizendo um outro meio,
só. que a palavra "meio" não está em Moheau. Em conclu-
são, ele diz: " Se do clima, do regime, dos usos, do costume
de certas ações resulta o princípio desconhecido que forma
o caráter e os espíritos, pode-se dizer que os soberanos, po r
leis sábias, por instituições sutis, pelo incômodo que trazem
os impostos, pela conseqüente faculdade de suprimi-los,
enfim por seu exemplo, regem a existência física e moral dos
seus súditos. Talvez um dia seja possível tirar partido desses
meios para matizar à vontade os costumes e o espírito da
1. Cf. "1/ faut défendre la société". Cours a u College de France,
nação." 42 Como vocês estão vendo, voltamos a encontrar
1975-1 9 76, e d . p or M . Berta n i & A. Fo n.tana, Paris, Gallimard-
aqui o problema do soberano, mas desta vez o soberano não
Le Seuil ("H autes Étud es"), 1997, p. 216 ("D e quoi s'agit-il d ans
é mais aquele que exerce seu poder sobre um território a par-
cette n ouvelle techno logie d e pouvoir, d an s cette b io-politique,
tir de uma localização geográfica da sua soberania política, o
dans ce bio-pouvoir qui es t e n train de s'installer?" [De q u e se tra-
soberano é algo que se relaciona com urna natureza, ou an- ta nessa nova tecn olo gia do pod er, nessa bio política, nesse biopo-
tes, com a interferência, a intrincação perpétua de um meio der que está se instalando?]); La volonté de savoir, Paris, Gallimard,
geográfico, climático, físico com a espécie humana, na me- "Bibliotheque des his toires", 1976, p. 184 [ed . bras .: "A vontade de
dida em que ela tem um corpo e uma alma, urna existência saber", in História da sexualidade I, trad. Maria Thereza da Costa
física [e] moral; e o soberano será aquele que deverá exercer Albuquerque e J. A. Guilhon de Albuqu e rque, Rio de Janeiro,
seu poder nesse ponto de articulação em que a natureza no Graal, 1985].
sentido dos elementos físicos vem interferir com a natureza 2. Es tas últimas frases devem ser com paradas com o que
no sentido da natureza da espécie humana, nesse ponto d e Fo u cault declara, no fim d esse m esmo ano, e m s ua longa entrevis-
articulação em que o meio se toma determinante da nature- ta a D . Trombadori, sobre a s ua decepção, ao voltar da Tunísia, ante
za. É aí que o soberano vai intervir e, se ele quiser mudar a as po lêmicas teóricas d os m ovime ntos d e extrema-esqu erda de-
espécie humana, só poderá fazê-lo, diz Moheau, agindo so- p ois d e Maio d e 1968: "Falou-se na França de hiperrnarxismo, d e
bre o meio. Creio que temos aí um dos eixos, um dos ele - d eflagração d e teorias, de an átem as, d e grupuscularização. Era
m entos fundamentais nessa implantação dos mecanismos exatame nte o contrap é, o avesso, o contrário do que me havia
de segurança, isto é, o aparecime nto, não ainda de urna no- ap aixonado na Tunísia [quando dos levantes estudantis d e março
ção de meio, mas de um projeto, d e uma técnica política que de 1968] . Isso talvez explique a man e ira como procurei consid erar
se dirigiria ao meio. as coisas a partir daquele m o m e nto, e m de fasagem rela tivamente
a essas discussões infinitas, a essa hipe rmarxização [... ] Tentei fa-
zer coisas que implicassem um en gajame nto p essoal, físico e real,
e que colocassem os p roblem as e m termos c;_ç>n cretos, p recisos, de -
58 SEGURANÇA, TERRITÓRiO, POPUV..ÇÃO AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 59
ma sob certos aspectos, que ela faz eco, que ela tem uma cerra. O primeiro gesto da disciplina é, de fato, circunscre -
espécie de simetria em relação ao pensamento jurídico que ver um espaço no qual seu poder e os mecanismos do seu
dizia, por exemplo, que todo indi,víduo que aceita as leis do poder funcionarão plenamente e sem limites. E, justamen-
~eu país assina um contrato social, aceita-o e o revalida a te, se retomarmos o exemplo da polícia disciplinar d os ce -
cada instante em seu próprio comportamento, enquanto reais, tal como ela existia até meados do século XVIII, tal
aquele que, ao contrário, viola as leis, rasga o contrato so- como vocês vão encontrá-la exposta em centenas de pági-
cial, este toma -se estrangeiro em seu próprio país e, por nas do Tratado de polícia de Delamare 26, a polícia disciplinar
conseguinte, cai sob as leis penais que vão puni-lo, exilá- lo, dos cereais é efetivamente centrípeta. Ela isola, concentra,
de certo modo matá-ld4 • O delinqüente em relação a esse encerra, é protecionista e centra essencialmente sua ação
sujeito coletivo criado pelo contrato social rasga esse con- no mercado ou nesse espaço do mercado e no que o rodeia.
trato e cai do lado de fora desse sujeito coletivo. Aqui tam- Em vez disso, vocês vêem que os dispositivos de segurança,
bém, nesse desenho que começa a esboçar a noção de po- tais como procurei reconstitui-los, são o contrário, tendem
pulação, vemos estabelecer-se uma divisória na qual o povo perpetuamente a ampliar, são centrífugos. Novos elemen-
aparece como sendo, de uma maneira geral, aquele que re- tos são o tempo todo integrados, integra-se a produção, a
siste à regulação da população, que tenta escapar desse dis- psicologia, os comportamentos, as maneiras de fazer dos pro-
positivo pelo qual a população existe, se mantém, subsiste, dutores, dos compradores, dos consumidores, dos importa-
e subsiste num nível ótimo. Essa oposição povo/população dores, dos exportadores, integra-se o mercado mundial. Tra-
é importantíssima. Procurarei lhes mostrar da próxima vez ta-se portanto de organizar ou, em todo caso, de deixar cir-
como, apesar da simetria aparente em relação ao sujeito co- cuitos cada vez mais amplos se desenvolverem.
letivo do contrato social, é na verdade de uma coisa bem di- Em segundo lugar, segunda grande d iferença: a disci-
ferente que se trata e [que] a relação população-povo não é plina, por definição, regulamenta tudo. A disciplina não dei-
semelhante à oposição sujeito obediente/delinqüente, que xa escapar nada. Não só ela não permite o laisser-faire, mas
o próprio sujeito coletivo população é muito diferente do seu princípio é que até as coisas mais ínfimas não devem
sujeito coletivo constituído e criado pelo contrato social25 • ser deixadas entregues a si m esmas. A menor infração à dis -
Em todo caso, para terminar com isso, gostaria de mos- ciplina deve ser corrigida com tanto maior cuidado quanto
trar a vocês que, se quisermos entender melhor em que menor ela for. Já o dispositivo de segurança, como vocês vi-
consiste um dispositivo de segurança como o que os fisio- ram, deixa fazer* [Iaisse faire] . Não é que deixa fazer tudo,
cratas e, de maneira geral, os economistas do século XVIII mas há um nível em que o laisser-faire é indispensável. Dei-
pensaram para a escassez alimentar, se qtúsennos caracte- xar os preços subirem, deixar a escassez se estabelecer, dei-
rizar um dispositivo como esse, creio que é necessário com- xar as pessoas passarem fome, para não deixar que certa
pará-lo com os mecanismos disciplinares que podemos en- coisa se faça, a saber, instalar-se o flagelo geral da escassez
contrar não apenas nas épocas precedentes, mas na mesma alimentar. Em outras palavras, a maneira como a disciplina
época em que eram implantados esses mecanismos de se- trata do detalhe não é, em absoluto, a mesma maneira como
gurança. No fundo, creio que podemos dizer o seguinte.
A disciplina é essencialmente centrípeta. Quero dizer que a
disciplina funciona na medida em que isola um espaço, de- • Entre aspas no manuscrito, p . 7: "Já a segurança 'laissefaire', no
termina um segmento. A disciplina concentra, centra, en- sentido positivo da expressão."
AUlA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 61
60 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
os dispositivos de segurança tratam dele. A disciplina tem modelo de saturação disciplinar a vida monástica que foi, d e
. essencialmente por função impedir tudo, inclusive e princi- fa~o, o ponto de partida e a matriz, na vida monástica per-
palmente o detalhe. A segurança tem por função apoiar~se feita o que o monge faz é inteiramente regulado, dia e noi -
nos detalhes que não vão ser valorizados como bons ou rwns te, e a única coisa indeterminada é o que n ão se diz e que é
em si, que vão ser tomados corno processos necessários, J?roibid?·. No sistema da lei, o que é indeterminado é o que
inevitáveis, como processos naturais no sentido lato, e vai e perm~hdo; r;o sistema da regulação disciplinar, o que é
deterrrunado e o que se deve fazer, por conseguinte todo o
se apoiar nesses detalhes que são o que são, mas· que não resto, sendo indeterminado, é proibido.
vão ser considerados pertinentes, para obter algo que, em
No dispositivo de segurança tal como acabo de lhes ex-
si, será considerado pertinente por se situar no nível da po- por, parece-me que se tratava justamente de não adotar nem
pulação. .
o ponto de vista do que é impedido, nem o p onto de vista do
Terceira diferença. No fundo, a disciplina, e aliás os sis- que é obrigatório, mas distanciar-se suficientemente para po-
temas de legalidade também, como é que procedem? Pois der apreender o ponto em que as coisas vão se produzir, se-
bem, eles dividem todas as coisas de acordo com um códi- ja:r' elas desejáveis ou não. Ou seja, vai -se procurar reapreen-
go que é o do permitido e do proibido. Depois, no interior d:-Ia~ no plan<~ da sua natureza ou, digamos- essa palavra
desses dois campos - do permitido e do proibido-, vão es- n~~7 tinha~ no sec~o XVIII, o sentido que lhe damos hoje em
pecificar, determinar exatamente o que é proibido, o que é dia - , vru-se torna-las no plano da sua realidade efetiva. E é
permitido, ou melhor, o que é obrigatório. E pode-se d.izer a partir dessa realidade, procurando apoiar-se nela e fazê -la
que, no interior desse sistema geral, o sistema de legalida- atuar, fazer seus elementos atuar uns em relação aos outros,
de, o sistema da lei tem essencialmente por função deter- que o mecanismo de segurança vai [funcionar]*. Em outras
minar sobretudo as coisas proibidas. No fundo, o que a lei pal~~as, a lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança, sem
diz, essencialmente, é não fazer isto, não fazer tal coisa, não prmbrr nem prescrever, mas dando -se evidentemente alguns
fazer também tal outra, etc. De modo que o movimento de mstrumentos de proibiç.ã o e de prescrição, a segurança tem
especificação e de determinação num sistema de legalidade essencialmente por função responder a uma realidade de ma -
incide sempre e de modo tanto mais preciso quando se tra- neira que essa resposta anule essa realidade a que ela respon -
ta do que deve ser impedido, do que deve ser proibido. Em de- anule, ou limite, ou freie, o u regule. Essa regulação no ele-
outras palavras, é tomando o ponto de vista da desordem mento da realidade é que é, creio eu, fundamental n os dis-
que se vai analisar cada vez mais apuradárnente, que se vai positivos da segurança.
estabelecer a ordem- ou seja: é o que resta. A ordem é o que , . P?_?eríarno~ .dize~ tamb~rn que a lei tra balha no imagi-
resta quando se houver impedido de fato tudo o que é pro i- nano, Ja que a l.e1 rmagma e so pode ser formulada imaginan-
b ido. Esse pensamento negativo é o que, a meu ver, caracte- do todas as cmsas que poderiam ser feitas e não devem ser
riza um código legal. Pensamento e técnica negativos. feitas. Ela imagina o negativo. A disciplina trabalha, d e cer-
O mecanismo disciplinar também codifica perpetua- ta forma, no complementar da realidade. O h omem é malva-
mente em permitido e proibido, ou melhor, em obrigatório do, o homem é ruim, ele tem maus pensamentos, ten dên-
e proibido, ou seja, o ponto sobre o qual um mecanismo cias más, etc. Vai- se constituir, no interior do esp aço disci-
disciplinar incide são menos as coisas a não fazer do que as
coisas a fazer. Urna boa disciplina é o que lhes diz a cada
.. M .F. : atuar
instante o que vocês devem fazer. E, se tomarmos como
62 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAçAO AULA D E 18 DE JANEIRO DE 1978 63
plinar, o complem·e ntar_dessa realidade, prescrições, obri- volva e vá, siga seu caminho, de acordo com as leis, os prin-
gações, tanto mais artificiais e tanto mais coercitivas por ser cípios e os meca_rusmos que são os da realidade mesma. De
a realidade o que é e por ser ela insistente e difícil .de se do- modo que esse problema da liberdade [sobre o qual] torna-
brar. Enfim, a segurança, ao contrário da lei que trabalha no rei, espero, da próxima vez29, creio que podemos considerá-
i..J:naginário e da disciplina que trabalha no complementar lo, reapreendê-lo de diferentes formas . Claro, pode-se dizer
da realidade, vai procurar trabalhar na realidade, fazendo os - e acho que isso não seria errado, não p o de ser errado -
elementos da realidade atuarem uns em relação aos outros, que essa ideologia da liberdade, essa reivindicação da liber-
gràças a e através de toda uma série de análises e de dispo- dade foi uma das condições de desenvolvimento de formas
sições específicas. De modo que se chega, a meu ver, a esse modernas ou, se preferirem, capitalistas da economia. É ine-
ponto que é essencial e com o qual, ao mesmo tempo, todo gável. O problema é saber se, efetivam ente, na implantação
o pensamento e toda a organização das. sociedades políti- dessas medidas liberais, como p or exemplo vimos a propó-
cas modernas se encontram comprometidos: a idéia de que sito do comércio de cereais, era de fato isso que se visava ou
a política não tem de levar até o comportamento d os homens se buscava em primeira instância. Problema, em todo caso,
esse conjunto de regras, que são as regras impostas por que se coloca. Em segundo lugar, disse em algum lugar que
Deus ao home m ou tomadas necessárias simplesmente por não se podia compreender a implantação das ideologias e
sua natureza má. A política tem de agir no elemento de uma de uma política liberais no século XVTII sem ter bem presen-
realidade que os fisiocratas chamam precisamente de a físi- te no espírito que esse mesmo século XVIII, que havia rei-
ca, e eles vão dizer, por causa disso, que a política é uma fí- vindicado tão alto as liberdades, as tinha no entanto las.:.
sica, que a economia é uma física 28 • Quando dizem iss(), não treado com uma técnica disciplinar que, pegando as crian -
visam tanto a materialidade, no sentido, digamos assim, pós- ças, os soldados, os operários o nde estavam, limitava consi -
hegeliano da palavra matéria, visam na verdade essa reali- deravelmente a liberdade e proporcionava de certo m odo
dade que é o único dado sobre o qual a política deve agir e
garantias ao próprio exercício d essa liberdade30 . Pois bem,
com o qual ela deve agir. Colocar-se sempre e exclusiva-
creio que me equivoquei. Nunca estou completamente
mente nesse jogo da realidade consigo mesma - é isso,
equivocado, claro, mas, enfim, não é exatamente isso. Creio
creio eu, que os fisiocratas, que os economistas, que o pen -
sarne nto político do século XVIII e n te ndiam quando di - que o que está em jogo é algo bem diferente. É que, n a v er-
ziam que, como quer que seja, permanecemos na ordem da dade, essa liberdade, ao mesmo tempo ideologia e técnica
física e que agir na ordem política ainda é agir na ordem de governo, essa liberdade deve ser compreendida n o inte-
da natureza. rior das mutações e transformações das tecnologias de po -
Vocês vêem ao mesmo tempo que esse postulado, que- d er. E, de uma maneira mais precisa e particular, a liberda-
ro dizer esse princípio fundamental, de que a técnica polí- de nada mais ·é que o correlativo da implantação dos dispo -
tica nunca deve descolar do jogo da realidade consigo mes - sitivos de segurança. U m dispositivo de segurança só p oderá
ma, é profundamente ligado ao princípio geral do que se funcionar bem, em todo caso aquele de que lhes falei hoje,
chama liberalismo. O liberalismo, o jogo: deixar as p essoas justamente se lhe for dado certa coisa que é a liberdade, no
fazerem, as coisas passarem, as coisas andarem, laisser-fai- sentido m oderno [que essa palavra] * adquire n o século XVITI:
re, laisser-passer e laisser-aller, quer dizer, essencial e funda-
mentalmente, fazer d e maneira que a realidade se desen- • M .F.: que ela
64 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
' .
não mais as franquias e os privilégios vinculados a uma pes-
NOTAS
soa, mas a possibilidade de rnovirl1ento, de deslocamento,
processo de circulação tanto das pessoas como das coisas. E
é essa liberdade de circulação, no sentido lato do termo, é
essa faculdade de circulação que devemos entender, penso
eu, pela palaVTa liberdade, e compreendê-la corno sendo
uma das faces, um dos aspectos, uma das dimensões da irn-
plantação dos dispositivos de segurança.
A idéia de um governo dos homens que pensaria an-
tes de mais nada e fundamentalmente na natureza das coi-
sas, e não mais na natureza má dos homéns, a idéia de uma
administração das coisas que pensaria antes de mais nada
na liberdade dos homens, no que eles querem fazer, no que
têm interesse de fazer, no que eles contam fazer, tudo isso
são elementos correlativos. Uma física do poder ou um po-
der que se pensa como ação física no elemento da nature- 1 . Louis-Paul Abeille, Lettre d'un négociant sur la nature du
za e um poder que se pensa como regulação que só pode se commerce des grains, 1763, p. 4; reed. 1911, p. 91 (palavra grifada
efetuar através de e apoiando-se na liberdade de cada um, pelo autor) . Sobre essa obra, cf. infra, n o ta 17.
creio que isso ai é uma coisa absolutamente fundamental. 2 . Cf. notadamente O príncipe, cap. 25: "Quantum fortuna in re-
Não é urna ideologia, não é propriamente, não é funda- bus humanis possit et quomodo illi sit occurrendum" [De quanto pode
mentalmente, não é antes de mais nada uma ideologia. É a fortuna nas coisas humanas e de que m odo se pode resistir-lhe]
primeiramente e antes de tudo uma tecnologia de poder, é (trad. fr. J.-L. Foumel & J.-Cl. Zancarini, Paris, PUF, 2000, p. 197).
em todo caso nesse sentido que podemos lê-lo. Gostaria, 3. Cf. por exemplo N . Delamare, Traité de la police, 2~ ed., Pa-
na próxima vez, de terminar o que lhes disse sobre a forma ris, M. Brunet, 1722, t. II, pp. 294-5: "Muitas vezes é um desses fla-
geral dos mecanismos de segurança, falando dos procedi- gelos salutares, de que Deus se serve para nos castigar e nos fazer
cumprir com nosso dever. [... ] Deus muitas vezes se vale das cau-
mentos de normalização. sas secundárias para exercer na terra sua Jus tiça [... ]. Assim, seja
por nos serem elas [a escassez alimentar o u a fome] enviadas d o
céu com esse fito de nos corrigir, seja por ocorrerem pelo curso or-
~~o da natureza, ou pela malícia dos h omens, e las são em apa-
rencla sempre as mesmas, mas sempre na ordem da Providência."
Sobre esse autor, cf. infra, nota 26.
. 4. Sobre essa "avidez" imputada aos comerciantes mono po-
üzadores, que, segundo uma explicação freqüenteme nte invocada
pela polícia e pelo povo sob o Antigo Regime, teria sido a causa
essencial da penúria e da alta dos preços, cf. por exemplo N . De-
lamare, op. cit., p. 390, a pró pósito da crise dos meios de subsistên-
ci_a de 1692-93: "Mas [embora a ferrugem, na primavera de 1692,
so houvesse destruído a metade da colheita n o pé], como basta
92 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AUlA DE 25 DE]ANEIRODE 1978 93
de·um en.q uadrarnento regulamentar, era na relação entre a que são reconhecidos a este ou aquele tipo de conduta: por
vontade do soberano e a vontade submissa das pessoas que exemplo, valorização ético-religiosa do celibato dos padres e
se situava o projeto mercantilista, cameralista ou. colbertia- dos monges. Ela varia também e principalmente com, é cla-
no, se preferirem. Ora, acredito que, com os fisiocratas- de ro, o estado dos meios de subsistência, e é aí que encontra-
\lffia maneira geral, com os economistas do século xvrn -, mos o célebre aforismo de Mirabeau, que diz que a popula-
a população vai parar de aparecer como urna coleção de sú- ção nunca irá variar além, e não pode, em caso algum, ir além
ditos de direito, como urna coleção de vontades submetidas dos limites que lhe são estabelecidos pela quantidade dos
que devem obedecer à vontade do soberano por intermédio meios de subsistência20• Todas essas análises, sejam elas as de
de regulamentos, leis, decretos, etc. Ela vai ser considerada Mirabeau, do abade Pierre Jaubeft21 ou de Quesnay no ver-
um conjunto de processos que é preciso administrar no que bete "Homens" da Enciclopédia 22, tudo isso mostra com cla-
têm de natural e a partir do que têm de ·natural. reza que, nesse pensamento, a população não é essa espécie
Mas o que significa essa naturalidade* da população? de dado primitivo, de matéria sobre a qual vai se exercer a
O que faz que a população, a partir desse momento, seja ação do soberano, esse vis-à-vis do soberano. A população é
percebida não a partir da noção jurídico-política de sujeito, um dado que depende de toda urna série de variáveis que fa -
mas_como urna espécie de objeto técnico-político de urna zem que ela não possa ser transparente à ação do soberano,
gestao e de um governo? O que é essa naturalidade? Creio, ou ainda, que a relação entre a população e o soberano não
para dizer as coisas muito brevemente, que ela aparece de possa ser simplesmente da ordem da obediência ou da recu-
três m~eiras. Primeiramente, a população, tal como é pro- sa da obediência, da obediência ou da revolta. Na verdade, as
blematizada no pensamento, mas [também] na prática go- variáveis de que depende a população fazem que ela escape
vemarnental do século xvm, não é a simples soma dos in- consideravelmente da ação voluntarista e direta do soberano
divíduos que habita um território.Tampouco é resultado ape- na forma da lei. Se se diz a uma população "faça isto", nada
~as. da vontade deles de se reproduzirem. Tampouco é o vis- prova não só que ela o fará, mas também, simplesmente, que
a-VlS de urna vontade soberana que pode ou favorecê-la ou ela poderá fazê-lo . O limite da lei, enquanto só se considerar
esboçá-la. Na verdade, a população não é um dado primei- a relação soberano.:.súdito, é a desobediência do ,súdito, é o
ro, ela está na dependência de toda uma série de variáveis. " não" oposto pelo súdito ao soberano. Mas, qu~do se tra-
A população varia com o clima. Varia com o entorno mate- ta da relação entre o governo e a população, o limite do que
rial. Varia com a intensidade do comércio e da atividade de é decidido pelo soberano ou pelo governo não é necessaria-
circulação das riquezas. Varia, é claro, de acordo com as leis mente a recusa das pessoas às quais ele se dirige.
a que é submetida: por exemplo, os impostos, as leis sobre o A população a parece portanto, nessa esp écie de espes-
casamento. Varia também com os hábitos das pessoas: por sura em relação ao voluntarismo legalista do soberano,
exemplo, a maneira como se dá o dote das filhas, a rnanei- como um fe nômeno de natureza. Um fenômeno de natur e-
ra corno se assegura os direitos de primogenitura, a maneira za que não se pode mudar corno que por decreto, o que n ão
como se criam as crianças, como são ou não confiadas a urna quer dizer entretanto que a população seja uma natureza
ama. A população varia com os valores morais ou religiosos inacessível e que não seja penetrável, muito pelo contrário.
É aí que a análise dos fisiocra tas e dos economistas se tor-
na interessante, porque essa naturalidade que se n ota n o
.. naturalidade: entre aspas no manuscrito, p . 13. fato da população é perpetuamente acessível a agentes e a
94 SEGURANÇA, TERRITÓRJO, POPULAÇÃO AUlA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 95
técnicas de transformação, contanto que esses agentes e es - nal de contas, essa população é evidentemente feita de incli-
sas técnicas de transformação sejam ao mesmo tempo es:::- víduos, de indivíduos perfeitamente diferentes uns dos ou-
clarecidos, refletidos, analíticos, calculados, calculadores. E tros, cujo comportamento, pelo menos dentro de certos li-
necessário, evidentemente, não .apenas levar em conta a mites, não se pode prever exatamente. Apesar disso existe, de
mudança voluntária das leis, se as leis são desfavoráveis à acordo com os primeiros teóricos da população no século
população; mas principalmente, se se quiser favorecer a po- XVIII, pelo menos uma invariante que faz que a população
pulação ou conseguir que a população esteja numa relação tomada em seu conjunto tenha um motor de ação, e só um.
justa com os recursos e as possibilidades de um Estado, é Esse motor de ação é o desejo. O desejo - velha noção que
necessário agir sobre toda uma série de fatores, de elemen- havia feito sua aparição e que havia tido sua utilidade na di-
tos que estão aparentemente longe da própria população, reção de consciência (podeóamos eventualmente tomar so-
do seu comportamento ilnediato, longe· da sua fecundida- bre esse ponto)2.1 - , o desejo faz aqui, pela segunda vez ago-
de, da sua vontade de reprodução. É necessário, por exem- ra, sua aparição no interior das técnicas de poder e de gover-
plo, agir sobre os fluxos de moeda que vão irrigar o país, sa- no. O desejo é aquilo por que todos os indivíduos vão agir.
ber por onde esses fluxos de moeda passam, saber se eles Desejo contra o qual não se pode fazer nada. Como diz
irrigam de fato todos os elementos da população, se não Quesnay: você não pode impedir as pessoas de virem morar
deixam regiões inertes. Vai ser preciso agir sobre as exporta- onde consideraram que será mais proveitoso para elas e
ções: quanto mais houver demanda de exportação, mais onde elas desejam morar, porque elas desejam esse provei-
haverá evidentemente possibilidades de trabalho, logo pos- 4
to. Não procure mudá-las, elas não vão mud~ • Mas- e é
sibilidades de riqueza, logo possibilidades de população. aqui que essa naturalidade do desejo marca a população e se
Coloca-se o problema das importações: importando, bene- toma penetrável pela técnica governamental- esse desejo,
ficia-se ou prejudica-se a população? Se se importa, tira-se por motivos sobre os quais será necessário tomar e que
trabalho das pessoas daqui, mas, se se importa, dá-se tam- constituem um dos elementos teóricos importantes de todo
bém comida. Problema, portanto, capital no século XVIII, o sistema, esse desejo é tal que, se o deixarmos ,agir e con -
da regulamentação das importações. Em todo caso, é por tanto que o deixemos agir, em certo limite e graças a certo
todos esses fatores distantes, pelo jogo desses fatores que número de relacionamentos e conexões, acabará produzin-
vai efetivamente ser possível agir sobre a população. É por- do o interesse geral da população. O desejo é a busca do in-
tanto uma técnica totalmente diferente que se esboça, como teresse para o indivíduo. O inclivíduo, de resto, pode perfei-
vocês vêem: não se trata de obter a obediência dos súditos tamente se enganar, em seu desejo, quanto ao seu interesse
em relação à vontade do soberano, mas de atuar sobre co i- pessoal, mas há uma coisa que não engana: que o jogo es-
sas aparentemente distantes da população, mas que se sabe, pontâneo ou, em todo caso, espontâneo e, ao mesmo tem-
por cálculo, análise e reflexão, que podem efetivamente po, regrado do desejo permitirá de fato a produção de um
atuar sobre a população. É essa naturalidade penetrável da interesse, de algo que é interessante para a própria popula-
população que, a meu ver, faz que tenhamos aqui uma mu- ção. Produção do interesse coletivo pelo jogo do desejo: é o
tação importantíssima na organização e na racionalização que marca ao mesmo tempo a naturalidade da população e
dos métodos de poder. a artificialidade possível dos meios criados para geri-la.
Podeóamos dizer também que a naturalidade da popu- É importante, porque vocês vêem que com essa idéia
lação aparece de uma segunda maneira no fato de que, afi- de uma gestão das populações a partir de uma naturalida-
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de do desejo delas e da produção espontânea do interesse plexas e modificáveis, a naturalidade da população aparece
coletivo pelo desejo, que com essa idéia tem-se algo que é de uma terceira maneira. Ela aparece na constância dos fe-
o exato oposto do que era a velha concepção ético-jurídica nômenos que se poderia esperar que fossem variáveis, pois
do governo e do exercício da soberania. Pois, o que é o so- dependem de acidentes, de acasos, de condutas individuais,
berano para os juristas, e isto para os juristas medievais, mas de causas conjunturais. Ora, esses fenômenos que deve-
também para todos os teóricos do direito natural, tanto riam ser irregulares, basta observá-los, olhá-los e contabili-
para Hobbes como para Rousseau? O soberano é aquele zá-los para perceber que na verdade são regulares . Foi essa
que é capaz de dizer não ao desejo de todo indivíduo, sen- a grande descoberta, no fim do século XVII, do inglês Graunf8,
do o problema o de saber como esse "não" oposto ao dese- que, justamente a propósito dessas tabelas de mortalidade,
jo dos indivíduos pode ser legítimo e fundado na própria pôde estabelecer não apenas que a cada ano havia, de qual-
vontade dos indivíduos. Enfim, esse é um enorme proble- quer modo, um número constante de mortos numa cidade,
ma. Ora, vemos formar-se, através desse pensamento eco- mas que havia uma proporção constante dos diferentes aci-
nômico-político dos fisiocratas, urna idéia bem diferente, dentes, variadíssimos porém, que produzem essas mortes.
que é a seguinte: o problema dos que governam não deve A mesma proporção de pessoas morre de consumpção, a
ser absolutamente o de saber como eles podem dizer não, mesma proporção de pessoas morre de febres, ou de pedra,
até onde podem dizer não, com que legitimidade eles po- ou de gota, ou de icterícia 29 • E o que evidentemente deixou
dem dizer não; o problema é o de saber como dizer sim, Graunt totalmente estupefato foi que a proporção de suicí-
como dizer sim a esse desejo. Não, portanto, o limite da dios é exatamente a mesma de um ano para o outro nas ta -
concupiscência ou o limite do amor-próprio, no sentido do belas de mortalidade de Londres30 .Vêem-se também outros
amor a si mesmo, mas ao contrário tudo o que vai estimu- fenômenos regulares, como, por exemplo, que há mais ho-
lar, . favorecer esse amor-próprio, esse desejo, de maneira mens que mulheres no nascimento, mas que há mais aci-
que possa produzir os efeitos benéficos que deve necessa- dentes diversos que atingem os meninos do que as meni-
riamente produzir. Temos aí portanto a matriz de toda uma nas, de modo que, ao fim de certo tempo, a proporção se
filosofia, digamos, utilitarista 25 • E como creio que a Ideologia restabelece31 • A mortalidade das crianças é, em todo caso,
de Condillac26, enfim, o que se chamou de sensualismo, era sempre maior que a dos adultos32 • A mortalidade é sempre
o instrumento teórico pelo qual se podia embasar a prática mais elevada na cidade do que no campo33, etc. Temos aí,
da disciplina27, direi q ue a filosofia utilitarista foi o instru- portanto, uma terceira superfície de afloramento para a na-
mento teórico que embasou esta novidade que foi, na épo- turalidade da população.
ca, o governo das populações .... Não é portanto uma coleção de sujeitos jurídicos, em
Enfim, a naturalidade da população que aparece nesse relação individual ou coletiva, com urna vontade soberana.
benefício universal do desejo, que aparece também no fato A população é um conjunto de elementos, no interior do
de que a população é sempre dependente de variáveis com- qual podem-se notar constantes e regularidades até nos
acidentes, no interior do qual pode-se identificar o univer-
.. Manuscrito, p . 17: "O importante, também, é que a ' filosofia sal do desejo produzindo regularmente o benefício de todos
utilitarista' é um pouco para o govemo das populações o que a Ideolo- e a propósito do qual pode-se identificar certo número de
gia era para as disciplinas." variáveis de que ele depende e que são capazes de modifi-
98 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 99
~á-lo . Com a tomada em consideração ou, se preferirem, a ção, das campanhas, dos convencimentos. A população é
pertinentização de efeitos próprios à população, creio que portanto tudo o que vai se estender do arraigamento bioló-
temos um fenômeno muito importante: é o ingresso, no gico pela espécie à superfície de contato oferecida pelo pú-
campo das técnicas de poder, de uma natureza* que não é blico. Da espécie ao público: temos aí todo um campo d e
aquilo a que, aquilo acima de que, aquilo contra o que o so- novas realidades, novas realidades no sentid o de que são,
berano deve impor leis justas. Não há natureza e, depois, para os mecanismos de poder, os elementos pertinentes, o
acima da natureza, contra ela, o soberano e a relação de obe- espaço pertinente no interior do qual e a propósito do qual
diência que lhe é devida. Tem-se uma população cuja natu- se deve agir.
reza é tal que é no interior dessa natureza, com ajuda des- Poderíamos acrescentar ainda o seguinte: quando falei
sa natureza, a propósito dessa natureza que o soberano da população, havia uma palavra que voltava sem cessar -
deve desenvolver procedimentos refletidos de governo. Em vocês vão me dizer que fiz de propósito, mas não totalmen-
outras palavras, no caso da população tem -se algo bem di- te talvez-, é a palavra "governo". Quanto mais eu falava da
ferente de uma coleção de sujeitos de direito diferenciados população, mais eu parava de dizer "soberano". Fui levado
por seu estatuto, sua localização, seus bens, seus cargos, seus a designar ou a visar algo que, aqui também, creio eu, é re-
ofícios; [tem-se]** um conjunto de elementos que, de um lativamente novo, não na palavra, não num certo nível de
lado, se inserem no regime geral dos seres vivos e, de outro, realidade, mas como técnica nova. Ou antes, o privilégio
apresentam uma superfície de contato para transformações que o governo começa a exercer em relação às regras, a tal
autoritárias, mas refletidas e calculadas. A dimensão pela ponto que um dia será possível dizer, para limitar o poder
qual â população se insere entre os outros seres vivos é a do rei, que "o rei reina, mas não govema" 36, essa inversão
que vai aparecer e que será sancionada quando, pela pri- do governo em relação ao reino e o fato de o governo ser no
meira vez, se deixará de chamar os homens de "gênero hu- fundo muito mais que a soberania, muito mais que o reino,
mano" e se começará a chamá-los de "espécie humana" 34 • muito mais que o imperium, o problema político moderno
A partir do momento em que o gênero humano aparece creio que está absolutamente ligado à população. A série:
como espécie, no campo de determinação de todas as espé- mecanismos de segurança- população - governo e abertu-
cies vivas, pode-se então dizer que o homem aparecerá em ra do campo do que se chama de política, tudo isso, creio eu,
sua inserção biológica primeira. A população é portanto, de constitui uma série que seria preciso analisar.
um lado, a espécie humana e, de outro, o que se chama de Queria lhes pedir mais cinco minutos para acrescentar
público. Aqui também a palavra não é nova, mas seu uso uma coisa, e vocês vão compreender por quê. Está um pou -
sim35 • O público, noção capital no século XVIII, é a popula- co à margem de tudo isso37• Emergência portanto dessa coi-
ção considerada do ponto de vista das suas opiniões, das sa absolutamente nova que é a população, com a massa de
suas maneiras de fazer, dos seus comportamentos, dos seus problemas jurídicos, políticos e técnicos que levanta. Agora,
hábitos, dos seus temores, dos seus preconceitos, das suas se pegarmos o utra série de domínios, [a] do que podería-
exigências, é aquilo sobre o que se age por meio da educa- mos chamar de saberes, perceberemos - e não é uma solu-
ção que lhes proponho, mas um problema - que em toda
... natureza: entre aspas no manuscrito, p. 18 uma série de saberes esse mesmo problema da população
..... M.F.: mas aparece.
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Mais precisamente, tomemos o caso da economia po- mente pensado como um problema de bioeconomia, en-
-lítica. No fundo, na medida em que se tratou, para as pes- quanto Marx tentou contornar o problema da população e
soas que se ocupavam de finanças - já que era disso que descartar a própria noção de população, mas para voltar a en-
ainda se tratava no século XVII -, de quantificàr as riquezas, contrá-la sob a forma propriamente, não mais bioeconômi-
de medir sua circulação, de determinar o papel da moeda, ca, mas histórico-política de classe, de enfrentamento de clas-
de saber se era melhor desvalorizar ou, ao contrário, valori- ses e de luta de classes. É isto mesmo: ou a população, ou as
zar uma moeda, na medida em que se tratava de estabele- classes, e foi aqui que se produziu a fratura, a partir de um
cer ou de manter os fluxos do comércio exterior, creio que a pensamento econômico, de um pensamento de economia
"análise econômica"* permanecia exatamente no plano do política que só havia sido possível como pensamento na me-
que poderíamos chamar de análise das riquezas38 • Em com- dida em que o sujeito-população havia sido introduzido.
pensação, a partir do momento em que· se pôde fazer en- Tomem agora o caso da história natural e da biologia.
trar, no campo não apenas da teoria mas também da práti- No fundo, a história natural, como vocês sabem, tinha es-
ca econômica, esse novo sujeito, novo sujeito-objeto que é sencialmente por papel e função determinar quais eram as
a população, e isso sob seus diferentes aspectos, aspectos características classificatórias dos seres vivos que possibili-
demográficos, mas também como papel específico dos pro- tavam reparti-los nesta ou naquela casa da tabela43 • O que
dutores e dos consumidores, dos proprietários e dos que se [produziu] no século XVIII e no início do século XIX foi
não são proprietários, dos que criam lucro e dos que reco- toda uma série de transformações que fizeram que se pas-
lhem o lucro, creio que a partir do momento em que se sasse da identificação das características classificatórias à
pôde fazer entrar no interior da análise das riquezas o su- análise interna do organismo44, depois do organismo em
jeito-objeto que é a população, com todos os efeitos de sub- sua coerência anatomofuncional às relações constitutivas
versão que isso pôde ter no campo da reflexão e da prática ou reguladoras desse organismo com o meio de vida. Em li-
econômicas, então parou-se de fazer a análise das riquezas nhas gerais, é todo o problema Lamarck-Cuvier" 5, cuja so-
e abriu-se um novo domínio de saber, que é a economia lução está em Cuvier, cujos princípios de raciol)alidade es-
política. Afinal, um dos textos fundamentais de Quesnay é tão em Cuvier"6 . E, enfim, passou -se, e esta é a passagem de
o verbete "Homens" da Enciclopédia39, e Quesnay não parou Cuvier a Darwin47, do meio de vida, em sua relação consti-
de dizer ao longo de toda a sua obra que o verdadeiro go- tutiva ao organismo, à população, a população que Darwin
verno econômico era o governo que se ocupava da popula - pôde mostrar que era, d e fato, o elemento através d o qual o
ção•0 • Mas, afinal de contas, que o problema da população meio produzia seus efeitos sobre o organismo. Para pensar
ainda é, no fundo, o problema central de todo o pensamen- as relações entre o meio e o organismo, Lamarck era obri-
to da economia política até o próprio século XIX, prova-o a gado a imaginar algo como uma ação direta e como uma
célebre oposição Malthus-MarX'11 , porque, afinal de contas, modelagem do organismo p elo meio. Cuvier era obrigado,
onde está a linha que os divide a partir de um fundo ricar- por seu lado, a invocar toda uma série de coisas aparente-
diand2 que é absolutamente comum a ambos? Está em que, mente mais mitológicas, mas que na verdade lidavam mui-
para um, Malthus, o problema da população foi essencial- to mais com o campo de racionalidade, que e ram as catás-
trofes e a Criação, os diferentes atos criadores de Deus, en -
fim, pouco importa. Já Darwin encontrou o que era a popu-
• M . Foucault acrescenta: entre aspas lação, que era o veículo entre o meio e o organismo, com
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~02 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
todos os efeitos próprios da população: mutações, elimina- popu!ação e seus fenômenos especificas. É a partir da cons-
ção, etc. Foi portanto a problematização da população no tituiçao da população ~orno correlato das técnicas de poder
interior dessa análise dos seres vivos que permitiu passar da que pudemos ver abnr-se toda uma série de domínios de
história natural à biologia. A articulação história natural/bio- objetos para saberes possíveis. E, em contrapartida, foi por-
logia deve ser buscada na população. que esses ~aber:s recortav~ s~m cessar novos objetos que
Poder-se-ia dizer, creio eu, a mesma coisa acerca da a populaçao pode se constituir, se continuar, se manter
passagem da gramática geral à filologia histórica48 • A gra- como correlativo privilegiado dos modernos mecanismos
mática geral era a análise das relações entre os signos lin- de poder.
güísticos e as representações de qualquer sujeito falante ou Daí esta conseqüência: a temática do homem através
do sujeito falante em geral. A filologia só pôde nascer a par- d~s ciências humanas* que o analisam como ser vi~o, indi-
tir do momento em que uma série de pesquisas, que ha- Vlduo trabalhador, sujeito falante, deve ser compreendida a
viam sido realizadas em diversos países do mundo, particu- partir da en:ergência da população como correlato de poder
larmente nos países da Europa central e também da Rússia e como _obJeto de saber. O homem, afinal de contas, tal
por motivos políticos, conseguiu identificar a relação que como f01 pensado, definido, a partir das ciências ditas hu-
havia entre uma população e uma língua, e em que, por con- manas do século XIX e tal como foi refletido no humanis-
seguinte, o problema foi o de saber de que modo a popula- mo d~ século XIX, esse _homem nada mais é finalmente que
ção, como sujeito coletivo, de acordo com regularidades pró- uma figura da populaçao. Ou, digamos ainda, se é verdade
prias, aliás, não da população, mas da sua língua, podia no que, enquanto o problema do poder .se formulava dentro da
decorrer da história transformar a língua que falava. Aqui teoria da soberania, em face da soberania não podia existir
também foi a introdução do sujeito-população que, a meu o homem: mas apenas a noção jurídica de sujeito de direi-
ver, permitiu passar da gramática geral à filologia. t~. A _partir do momento em que, ao contrário, como vis-à-
Creio que, para resumir tudo isso, poderíamos dizer vzs nao da sobera.nja, ma~ do governo, da arte de governar,
que, se quisermos procurar o operador de transformação teve-se _a populaçao, cr:_w que podemos dizer, que o ho-
que fez passar da história natural à biologia, da análise das n:'em foi para a populaçao o que o sujeito de direito havia
riquezas à economia política, da gramática geral à filologia sido para o soberano. Pronto, o pacote está empacotado e 0
histórica, o operador que levou todos esses sistemas, esses nó [dado]**. .
conjuntos de saberes para o lado das ciências da vida, do
trabalho e da produção, para o lado das ciências das Línguas,
será na população que deveremos procurá- lo. Não da for-
ma que consistiria em dizer: as classes dirigentes, compreen-
dendo por fim a importância da população, lançaram nessa
direção os naturalistas que, com isso, se converteram em
biólogos, os gramáticos que, com isso, se transformaram em
filólogos e os financistas que se tomaram economistas. Não
é dessa forma, mas da forma seguinte: é um jogo incessan-
te entre as técnicas de poder e o objeto destas que foi pou- • ciências humanas: entre aspas no manuscrito.
co a pouco recortando no real, como campo de realidade, a •• Conjectura: p alavra inaudivel.