Você está na página 1de 6

Teatro-fórum: propósitos e

procedimentos.
Cilene Nascimento Canda1

Resumo

O artigo apresenta reflexões sobre princípios filosóficos


e procedimentos metodológicos do Teatro-fórum, técnica
mais conhecida do Teatro do Oprimido. A escolha desta
técnica se deu pela sua ampla inserção em movimentos
populares e em redes de Teatro do Oprimido existentes em
dezenas de países. Apesar da difusão, dúvidas persistem
sobre a atuação do ator, do espectador e da encenação do
fórum. Estas são as principais questões tratadas no texto.

Palavras-chave: Teatro-fórum – Teatro do Oprimido - Encenação.

Theater-Forum: proposals and procedures

Abstract

The article presents reflections about philosophical


principles and methodological procedures of theater-forum,
the most known Theater of the Oppressed’s technique.
The choice of this technique was due your wide insertion
in popular movements and at Theater of the Oppressed’s
networks existing in dozens of countries. Despite the wide
dissemination, doubts persist about the performance of
actor, spectator and forum staging. These are the main
questions treated in the text.

 
 Key-words: Theater-forum - Theater of the Oppressed – Liberating Education

1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia/


UFBA. Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia/ UFRB.

Teatro-fórum: propósitos e procedimentos 119


U rdimento N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012 U rdimento

1. Caminhos introdutórios contudo, surgem muitas dúvidas, mas tam- mas voltada para (re)pensar o contexto de conflitos, nos quais se apresentam for-

A
bém muitas certezas. (BOAL, 2007, p. 319). de produção cultural, artística e crítica de ças, muitas vezes desiguais, o protagonis-
Apesar dos estudos de Boal serem bas- grupos economicamente excluídos. O Te- ta busca resolver o problema apresentado.
crescente utilização do Teatro-
tante difundidos por meio de livros e das atro do Oprimido trata de uma formação Sem conflito, não há fórum, por isso,
fórum é resultado da popula-
redes de multiplicação2 do Teatro do Opri- que integra a dimensão estética à reflexão
rização do arsenal estético-po- é preciso que os diferentes quereres
mido, convém afirmar a necessidade de di- política, tendo em vista a mudança das
lítico do Teatro do Oprimido dos diferentes personagens entrem
vulgação da base metodológica do Teatro- relações abusivas de poder, expressas em
e nos remete à reflexão sobre em choque, caracterizando o con-
fórum, revendo dúvidas e certezas, desafios formas distintas de opressão social. Esta é
seus princípios políticos e procedimentos flito dramático. Esse conflito não
e possibilidades de atuação teatral. Para mais uma possibilidade de formação, e não
metodológicos. O Teatr o-fórum é uma se resolve nem se dissolve em cena,
isso, partimos do seguinte questionamento: pode ser a única, visto que outros meios de
modalidade expressiva e reflexiva bastante ele, na verdade, se acirra. A peça
quais os propósitos políticos e os procedi- produção cênica precisam ser ampliados; e termina - sempre inacabada - geral-
empregada como uma das armas de forta-
mentos da técnica do Teatro-fórum? o Teatro do Oprimido atua no sentido des- mente quando o protagonista, após
lecimento de práticas culturais de grupos
Para iniciar tal debate, cabe contextu- sa democratização, por compreender que algumas tentativas, praticamente
populares. O presente texto faz a revisão
alizar, brevemente, o cenário filosófico e tais meios precisam ser utilizados por todo desiste de lutar pelo que deseja.
de suas características estéticas e políticas
artístico do Teatro do Oprimido como um ser humano e não restritos a determinados (NUNES, 2004, p. 58).
e baseia-se em estudos teóricos desenvolvi-
sistema de técnicas e jogos destinados ao grupos sociais hegemônicos.
dos por Augusto Boal (2005), Paulo Freire Nesse jogo de conflitos, torna-se evi-
exercício teatral, com o propósito de fortale-
(2001), Nunes (2004), dentre outros. Busca- dente que a tentativa do oprimido de reali-
cer a formação política e estética de sujeitos
se, neste artigo, contribuir para a compreen-
oprimidos. Tal formação visa a humaniza-
2. A técnica do Teatro-fórum: zar o seu desejo não se efetivou, por conta
são sobre os procedimentos metodológicos perspectiva filosófica e metodológica da força opositora do opressor e não por
ção e a busca pela superação das opressões,
da referida técnica, visando desmistificar mera desistência do oprimido. O problema,
seja de ordem social, psicológica ou simbó-
algumas dúvidas existentes sobre o exercí- ou o conflito, deve ser claro e apresentar-se
lica. O Teatro do Oprimido pode ser visto O Teatro-fórum é considerado por
cio artístico do Teatro do Oprimido. Cabe como uma pergunta a ser levada ao fórum.
como um campo de expressões humanas, Boal como um ensaio para a vida, por meio
salientar que a reflexão sobre tais procedi- Boal ressalta a clareza da pergunta que
de produção de sentidos, de vivências cole- do qual o espect-ator3 experimenta as possi-
mentos é sustentada pela dimensão política norteará a discussão, afirmando que o de-
tivas e de formação política. bilidades de atuação, de reivindicação da
e humanística do teatro popular. sejo do oprimido deve ficar evidente para
Evidentemente, é importante ponderar resolução de opressões vividas ou testemu-
Atuo com Teatro do Oprimido há al- todos; só a partir disso, é possível construir
os limites enfrentados nessa formação, de nhadas no contexto social. Em cena, o su-
guns anos e, nessa trajetória em diversas um fórum de debate - político e estético!
modo a evitar a consideração de que os su- jeito é portador da voz, do ato cênico e visa
redes sociais, observo dificuldades de gru- Com o término do anti-modelo, o curin-
jeitos se tornam automaticamente livres e colocar em prática as ideias e as sugestões
pos e de militantes com a utilização da ga questiona o público a respeito do que
autônomos, por participarem de um fórum de ações para a superação do problema de
4
técnica do Teatro-fórum, no que se refere se apresentou no palco e convida-o a en-
ou de um breve processo de formação po- opressão, para que possa ensaiar possibili-
especialmente à atuação do curinga, à par- trar em cena e a propor novos esquemas
lítica em Teatro do Oprimido. Para Paulo dades de atuação no contexto social.
ticipação da plateia e à direção artística do possíveis de atuação do oprimido para a
Freire, o processo formativo é caracterizado Em breves linhas, descrevemos os
espetáculo-fórum. Por esta razão, torna-se realização do seu desejo no ato cênico e
pela revisão permanente de posturas, con- procedimentos de um espetáculo de Te-
necessária a ampliação da discussão so- para, principalmente, superar ou ameni-
cepções e práticas sociais, e não é dado a atro-fórum. Em um processo de oficina
bre o Teatro-fórum, tanto no campo so- zar a opressão ali apresentada. Indepen-
priori, tampouco é transferido por outrem. ou de laboratório de um grupo de teatro,
cial, quanto no contexto acadêmico, como dente de obter um resultado satisfatório, o
Do mesmo modo, o processo formativo em os participantes (atores e/ou não-atores)
possibilidade de repensar práticas e reafir- espect-ator estará experimentando o espaço
Teatro do Oprimido é marcado pelo conta- compartilham histórias de vida que serão
mar a função política do teatro. O próprio da atuação estética e política, como um en-
to constante do sujeito com a obra de arte discutidas, avaliadas e selecionadas para a
Augusto Boal assegurou a necessidade de saio para a vida social. No fórum, o sujeito
e pela inserção em espaços de debates e de montagem. Esta técnica consiste em apre-
revisão das formas de aplicação da técnica está testando concretamente, ainda que de
criação artística. sentar um problema social em cena, um
do Teatro-fórum, por conta de sua utiliza- modo metafórico, as possibilidades de atu-
Convém, então, dimensionar que este anti-modelo (ou seja, um modelo de vida
ção em lugares mais longínquos de todo o ar no cotidiano.
arsenal dirige-se a uma formação consis- não desejado, que não deve ser visto como
mundo: Salientamos que o mais importante não
tente, não restringida ao acúmulo de téc- modelo), no qual o oprimido é impedido
O desenvolvimento de múltiplas dire- é solucionar o problema, destruir a opres-
nicas para o desempenho de personagens, de realizar um desejo, fruto da necessida-
ções do Teatro-fórum em tantos países do são ou realizar o desejo do oprimido; o que
mundo determina, inevitavelmente, uma de clara de cunho pessoal ou social. Na
2 O Projeto Teatro do Oprimido de ponto a ponto, desenvolvido cena, apresentam-se diferentes motivações importa é o debate estético e a busca por
revisão de todos os conceitos, de todas as
formas, estruturas, técnicas, métodos e pro-
pelo Centro de Teatro do Oprimido, do Rio de Janeiro, vem
formando centenas de instituições, pontos de cultura e de
do opressor e do oprimido. Em um jogo 4O Curinga é o mediador do debate entre palco e plateia,
grupos multiplicadores. Dentre outras redes sociais, é importante
cessos. (...) Dentro das múltiplas formas e destacar o Movimento dos Sem Terra, como um dos principais entre atores e espectadores. É ele o responsável por provocar
3 Espect-ator significa espectador + ator, ou seja, aquele que questões e estimular o espect-ator a subir no palco e mostrar
maneiras de se praticar o Teatro-fórum, movimentos sociais que utilizam o Teatro do Oprimido em
trabalhos artísticos e políticos. assiste e intervém na ação cênica. sua versão para a resolução do problema.

120 Cilene Nascimento Canda Teatro-fórum: propósitos e procedimentos 121


U rdimento N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012 U rdimento

alternativas, revelando que a questão im- ção de diversos procedimentos metodoló- se; oprimido é o sujeito que está sempre cisa ser desmistificada, pois Boal, em toda
plica em várias formas de atuação do opri- gicos de quebra da quarta parede, a partir em luta, em conflito com o opressor, mas sua obra, aborda a importância do belo, do
mido e não somente uma intervenção no das técnicas de distanciamento desenvolvi- não atingirá êxito por não ter condições de rigor técnico e do vigor estético da expe-
anti-modelo. Todo problema sugere meios das por Bertold Brecht, seria incorreto di- visualizar/implementar possíveis estra- riência teatral. Com este posicionamento,
diferentes de intervenção e de resolução; zer que a principal característica (e exclu- tégias para resolver o problema tratado. afirmava que
anunciar apenas uma alternativa possível é siva!) do Teatro-fórum é o diálogo efetivo Abre-se, então, o espaço para o fórum, en-
também uma atitude autoritária. Isto pode entre palco e plateia. quanto oportunidade dos participantes que O importante é que o Teatro do Oprimi-
ser reafirmado por Nunes: Embora a proposta de participação do assistem à cena opinarem, discordarem, do seja bom teatro, antes de mais nada.
Não se procura a melhor solução, mas público no ato teatral seja uma caracterís- expressarem suas ideias, mas, ao invés de Que a apresentação do anti-modelo seja,
conhecer mecanismos de poder presentes tica primordial do Teatro-fórum, sem a simplesmente dizerem o que a persona- em si, fonte de prazer estético. Deve ser
um bom e belo espetáculo, antes de ter
na situação, experimentando e buscando qual este deixaria de existir, convém des- gem deve fazer, o próprio público entra em
início a parte do fórum, isto é, a discus-
saídas, do ponto de vista do protagonista. tacar que a mera participação do público cena para mostrar a sua alternativa ante a são dramática, teatral, do tema proposto.
As alternativas são analisadas pela platéia, no palco não contempla os princípios de resolução do problema. (BOAL, 2007, p. 322).
cujas pessoas, ativadas - para usar um ter- humanização e de libertação almejados por Nesse momento, o espect-ator ingressa
mo de Boal -, se transformam de especta- Augusto Boal. O que difere o Teatro-fórum efetivamente (corpo, voz, pensamento e
dores em espect-atores - aqueles que vêem e de outras técnicas de teatro interativo é jus- ação) no palco para ensaiar possibilidades Na fonte de prazer estético, desenca-
agem. (NUNES, 2004, p. 44). tamente o seu objetivo político de emanci- de realização do desejo e da superação da deada pela forma cênica, residem os meios
Esta questão é, ainda, endossada pelo pação humana e social, atendendo a dois relação dicotômica entre opressor e opri- para a leitura da cena e da realidade social.
próprio Boal, ao tratar sobre os propósitos princípios primordiais: “a) transformação mido apresentada em cena. Se uma mulher Com este mesmo posicionamento, a disser-
do Teatro-fórum: “mais importante do que do espectador em protagonista da ação tea- decide separar-se de um marido violento, tação de mestrado de Carolina Vieira (2009)
chegar a uma boa solução é provocar um tral; b) tentativa de, através dessa transfor- por exemplo, ela precisará visualizar/ati- endossa que o espetáculo de Teatro-fórum
bom debate. Na minha opinião, o que con- mação, modificar a sociedade, e não ape- var os mecanismos de poder (a denúncia, visa “estimular os participantes do grupo
duz à auto-ativação dos espect-atores é o de- nas interpretá-la” (BOAL, 2007, p. 319). Ao a delegacia da mulher, a legislação, a famí- quanto às suas capacidades de pensar não
bate, não a solução que porventura possa estimular a intervenção efetiva do espect- lia, a lei Maria da Penha, etc.) para pôr em só política, mas esteticamente o espetáculo.
ser encontrada”. (BOAL, 2007, p. 326). Esta ator, busca-se provocar reflexões sobre as cena. O palco é um espaço metafórico, mas A teatralidade deve conviver com a refle-
auto-ativação proferida por Boal diz res- formas de opressão social apresentadas e a enquanto atua, o espect-ator estará concre- xão” (p. 72), evitando a supervalorização de
peito à possibilidade do espectador virar revisão das possibilidades de modificação tamente, em cena, simulando as possíveis um aspecto sobre outro.
um espect-ator, mobilizado para a atuação da realidade, no espaço cênico. estratégias de atuação. O teatro, apontado aqui como prática
em cena e, possivelmente, para a interven- O Teatro-fórum não é um mero jogo cultural para a liberdade, é fruto da inte-
ção na vida concreta. de entretenimento e de apresentação das ração estética e política do sujeito com seu
A técnica do Teatro-fórum foi bastan- virtudes e das habilidades de improvi-
3. Desmistificando algumas meio. Para ser político, o teatro não preci-
te inovadora no campo do fazer teatral, do sação do ator no palco. O Teatro-fórum é questões do Teatro- fórum sa ser destituído de beleza, afinal o direito
ponto de vista da criação/consolidação de considerado por Augusto Boal como uma ao belo e à qualidade da experiência cênica
uma metodologia profícua de mobilização metáfora teatral, que pode ser recriada e deve ser assegurado nas práticas culturais.
Esta parte do texto destina-se à revisão
social. O Teatro-fórum é visto por diversos reinterpretada na vida social de cada sujei- O teatro precisa ser vibrante para estimular
de princípios e procedimentos metodológi-
segmentos sociais, como “a mais radical na to presente na plateia. Assim, visa-se com o exercício humano do sonho, da liberda-
cos do Teatro-fórum, partindo de dúvidas
socialização dos meios de produção teatral, o Teatro do Oprimido “ajudar o espectador de e da emancipação; afinal, visa-se, com
encontradas em práticas5 de militância so-
pois rompe completamente a barreira pal- a se transformar em protagonista da ação esta técnica, incentivar a participação ativa
cial e nas orientações de Boal (2007) na sis-
co e platéia” (COLETIVO NACIONAL DE dramática, para que, em seguida, utilize do público, com todas as suas ferramentas
tematização do referido arsenal. O primei-
CULTURA, 2006, p. 19). Por visar romper em sua vida as ações que ensaiou na cena”. estéticas disponíveis. No espaço cênico do
ro equívoco a se desconstruir diz respeito
as barreiras existentes entre palco e plateia (DESGRANGES, 2006, p. 70). É o sentido Teatro-fórum, os elementos cênicos são uti-
à afirmação de que o Teatro do Oprimido
e entre opressores e oprimidos, o Teatro-fó- da formação política configurada em atua- lizados como qualquer forma de teatro: so-
não se preocupa da abordagem técnica e
rum integra, dialogicamente, no ato teatral ção cênico-reflexiva que está em jogo. Este noplastia, cenário, adereços, figurino, ma-
estética da encenação teatral, colocando o
aqueles que, convencionalmente, dizem e é um processo formativo do ator em cena quiagem e a construção rigorosa de bons
conteúdo como uma parte mais relevante
fazem (os atores) e aqueles que escutam e e da plateia que assiste, opina, intervém e personagens.
do que a forma artística. Esta questão pre-
assistem (o público). avalia a ação do sujeito, podendo propor Investir na formatividade da cena é
Propõe-se, por meio desta técnica, a outros modos de atuação cênica para a re- 5 Estas experiências foram observadas, especialmente, na
também um ato político, pois, “o perigo de
ruptura entre o lugar de falar e de coman- solução da questão apresentada. atuação no Projeto Teatro do Oprimido de ponto a ponto, uma encenação pobre é induzir os espect-
dar o fenômeno teatral: o palco; e o local de Ressaltamos que o oprimido não é
coordenado pelo Centro de Teatro do Oprimido e apoiado pelo atores participantes a apenas falar, discutir
Ministério da Cultura, que visa a disseminação do Teatro do
ouvir: a plateia. Porém, diante da prolifera- aquele que perdeu a batalha e resignou- Oprimido em diversas regiões, estados e municípios brasileiros, verbalmente as soluções possíveis, em vez
por meio da formação de multiplicadores em Pontos de Cultura,
movimentos sociais e organizações não-governamentais.
de fazê-lo teatralmente” (BOAL, 2007, p.

122 Cilene Nascimento Canda Teatro-fórum: propósitos e procedimentos 123


U rdimento N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012 U rdimento

324). O objetivo de fazer teatro é sobera- ca está sozinho exercendo essas funções partir daí, deve aceitar até mesmo que a pla- relação opressor/oprimido, por isso o ator
no; sem o ato cênico, não haverá Teatro- e não deve ser revestido de autoridade. teia as modifique, se isso for julgado conve- deve estar aberto ao diálogo, à troca mútua
(VIEIRA, 2009, p. 71).
fórum. Boal ainda acentua que niente” (BOAL, 2007, p. 330). e aos aprendizados que as intervenções da
É válido salientar, ainda, a importân- plateia podem produzir.
Muitas vezes, os grupos que praticam o A atuação do curinga é bastante com- cia do corpo do curinga na ação de coorde- Assim, “o ator deve ser dialético, dar
Teatro-fórum são pobres, de poucos recur- plexa, pois este é o responsável por subs- nação do fórum. Sem vigor e intensidade, e receber, dialogar, medir-se, ser estimu-
sos econômicos. Em geral, vêem-se ceno- tituir qualquer um dos sujeitos envolvidos dificilmente haverá fórum, ainda que o lante, criador. Não deve ter medo (coisa
grafias constituídas por mesa e cadeiras, e no fenômeno teatral, inclusive os atores. anti-modelo apresente inquietações e mo- que acontece com freqüência, quando se
nada mais. Isso é uma contingência, não
Porém, o seu principal papel foca-se na tivações à plateia. O curinga não intervém trata de atores profissionais) de perder
deve ser considerada opção. O ideal é que
a cenografia seja o mais elaborada possí- mediação entre o palco e a plateia, questio- dizendo o que o espet-ator deve fazer, mas seu posto no palco” (BOAL, 2007, p. 335).
vel, com todos os detalhes que julguem nando e provocando o debate, as reflexões também deve estimulá-lo, ativando-o para Esta perspectiva permite-nos refletir que o
necessários, com toda a complexidade e a participação plena do público em cena. entrar em cena, de modo a promover o de- Teatro-fórum é uma técnica de cunho dia-
que se considerar importante. O mesmo é Boal faz diversas orientações para a bate estético-político. Para isso, o curinga lético, promotora de novas sínteses para o
válido para os figurinos. É importante que
atuação do curinga, porém afirma a não- precisa estar inteiro em sua ação, com a entendimento do ato teatral e da realidade
os personagens sejam reconhecidos pelas
roupas que vestem e pelos objetos que existência de um modelo certo a ser segui- atitude física vigorosa, pois ele é também social.
utilizam. Muitas vezes, a opressão está na do. Porém, alguns equívocos precisam ser um sujeito de teatro, sua atuação também é A fim de garantir a aproximação entre
roupa, nas coisas: é preciso que coisas e evitados, como forma de assegurar a parti- cênica, ainda que sua função no momento a cena e a realidade social, a preparação
roupas sejam presentes, atuantes, claras, cipação plena do público, bem como para do fórum seja a de coordenação do debate. dos atores do Teatro-fórum perpassa por
estimulantes (BOAL, 2007, p. 333).
evitar o direcionamento das questões para Logo, seu corpo e sua voz devem estar fo- técnicas sistematizadas por Stanislavski,
o espect-ator. Este tipo de postura diretiva calizados no evento teatral. Sobre este as- de representação naturalista da realidade,
Os princípios políticos não contradi- seria um modo de alienar o sujeito em seu pecto, Boal alerta que alguns curingas adaptada aos anseios marxistas de supera-
zem a experiência estética ou a diversão. processo livre e libertador de pensar, ana- ção das relações de opressão nesta mesma
Ao contrário: é importante considerar lisar, ponderar e decidir. Por isso, o curin- têm a tendência de se diluir na platéia, realidade. Boal, em sua formação inicial
que o teatro cumprirá, de modo cada vez ga não deve manipular as questões prove- sentando-se ao lado dos demais espect- em teatro, teve sua marca stanislavskiana,
mais intenso, o seu potencial educativo, nientes das cenas no debate, com o suposto atores – isso pode ser desmobilizante. Ou- como anteparo para se pensar o trabalho
na medida em que garantir o vigor esté- objetivo de traduzir para o outro o que a tros, com o próprio corpo revelam dúvida, do ator no teatro de cunho popular. No en-
indecisão e até timidez. (...) Se o curinga
tico da experiência. Ou seja, quanto mais cena “quis dizer ou mostrar”. tanto, a representação naturalista não é a
em cena está cansado ou desorientado,
rica em imagens e intensa em cenas for a É importante valorizar a polissemia de sua cansada e desorientada imagem será única alternativa cênica possível no Teatro-
experiência estética, mais o sujeito pro- interpretações e de contribuições daqueles transmitida aos espect-atores. Se, pelo fórum. Boal, em diversos livros, trata sobre
duzirá sentidos para a compreensão da que fazem a leitura do espetáculo teatral, contrário, o curinga está atento, dinâmico, a possibilidade de travar um diálogo esté-
vida em sociedade. A democratização do especialmente porque é por meio das di- também esse dinamismo não deve signi- tico e político por meio de diferentes estilos
ficar ser impositivo! (BOAL, 2007, p. 332).
espaço para a experiência livre de cria- ferentes leituras que surgem mais possi- e de abordagens cênicas, sendo que o con-
ção, reservado a determinadas classes bilidades de intervenção cênico-social. O teúdo libertador não deve ser dispensado.
sociais, deve ser considerada uma atitu- curinga não deve expor conclusões do fó- Outra questão a ser discutida na práti- Porém, Nunes lembra que
de política de grande relevância para a rum, mas questionar a platéia e provocar ca do Teatro-fórum, diz respeito ao papel
dinâmica social emancipatória. reflexões, problematizando o que foi visto dos atores na encenação. Diferentemente Apesar dessa antiga advertência de Boal, às
Outra série de dúvidas presente e (re)feito pelo espect-ator. A atuação do do teatro convencional, o ator do Teatro- vezes, alguns praticantes do Teatro do Opri-
nesta discussão diz respeito ao papel e curinga se dá na mediação da construção de fórum deve apresentar uma estrutura dia- mido, por ignorância ou insensibilidade, se
à atuação do curinga no Teatro-fórum. novas perguntas sobre as intervenções do lética, mostrar a complexidade do perso- mantêm fixados nesse tipo de ilusão objeti-
vista, julgando fazer “uma pintura” fidedig-
Cabe salientar que o curinga é o sujeito público, a serem respondidas pela plateia nagem, que muitas vezes aparece em cena na da realidade. Ou, mesmo que acreditem
atuante da coordenação dos espetáculos por meio do ato cênico. dizendo “não”, mas pode mudar de opi- que concretizam sua leitura de mundo, sua
de Teatro-fórum, que trabalha também A interpretação pessoal deve ser feita nião e vir a dizer “sim”, assim como ocor- versão de uma dada situação, pretendem
nas funções de diretor das cenas e de com cuidado, para evitar a manipulação do re na vida. O ator do Teatro-fórum “deve que ela seja ou pareça real, como se “parecer
educador das oficinas práticas, utilizan- pensamento do outro, visto que o curinga expressar sobretudo a dúvida: cada gesto real” fosse a única forma de construir uma
peça. Entretanto é a forma dada aos perso-
do os jogos e exercícios deste arsenal. está situado em uma postura privilegiada de deve conter sua negação; cada frase deve nagens, aos diálogos, a muitas encenações
Assim, coordenação das atividades. É importante deixar pressupor a possibilidade de dizer de Teatro-fórum que tem uma intenção de
salientar que o seu papel de provocar o deba- o contrário daquilo que se diz, cada sim semelhança com a realidade cotidiana. Até
A coordenação artística reúne funções
te não lhe dá o direito de tomar decisões por pressupõe o não, o talvez” (BOAL, 2007, porque uma das pretensões do Teatro-fó-
conta própria, sem o aval da plateia. Nesse p. 335). O personagem é complexo e traz rum é que ele seja um ensaio para a reali-
que passam pelas escolhas dos elemen-
dade – para sua transformação... (NUNES,
tos da cena até o ensaio do espetáculo. É caso, ele “enuncia as regras do jogo, mas, a em si as contradições da vida social e da 2004, pp. 82 e 83).
válido ressaltar que o curinga quase nun-

124 Cilene Nascimento Canda Teatro-fórum: propósitos e procedimentos 125


U rdimento N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012 U rdimento

As considerações feitas por Nunes são 4. Algumas conclusões de fortalecimento da participação social do
pertinentes para a afirmação da autonomia (ou outras provocações) sujeito, os princípios de liberdade tanto na
e da liberdade do sujeito – o diretor, o ator reflexão, na atuação social e na produção
e o público - no processo criativo do Teatro cênica devem ser considerados em sua to-
do Oprimido. Compreendemos que o esti- O presente artigo tratou da revisão dos talidade.
lo teatral é fruto de investigação criativa e princípios filosóficos e de alguns procedi- Dessa forma, afirmamos, contundente-
coletiva, não é dado a priori por um con- mentos metodológicos do Teatro-fórum, mente, que, se o princípio de liberdade não
junto de modelos e padrões cênicos. Afi- técnica mais difundida do Teatro do Opri- se consolidar nas práticas de militantes do
nal, “o modelo é uma peça de teatro como mido. Por compreender que todo método é Teatro do Oprimido, este arsenal corre o
tantas outras, com a única diferença de que fruto de um posicionamento ético-filosófi- risco de vir a ser dogmático e tão opressor
não pode ser evangélica, não pode ser por- co, esta discussão ancorou-se no ponto de quanto às formas conservadoras de ação
tadora de mensagem, da boa palavra, e sim vista teórico de Augusto Boal, em conso- por nós criticadas, por restringir as poten-
da dúvida” (BOAL, 2007, p. 333). Tanto nância com as formas de concretização do cialidades de criação e de invenção estética
no conteúdo, quanto na forma, o Teatro- Teatro-fórum. A preocupação de Boal em do ato cênico. A criação de um estilo não
fórum não pode impor padrões de atuação sistematizar uma técnica se deu pela ne- implica em uma receita a ser seguida. Ao
cênica/social. cessidade de assegurar que esta não fosse contrário: o percurso de criação estética se
Com base nisso, compreendemos que utilizada como modo a atender a objetivos desenvolve no próprio modo de caminhar
a técnica do Teatro-fórum, apesar de apre- divergentes ou contraditórios ao Teatro do de seus atuantes.
sentar claramente princípios éticos e proce- Oprimido. Pois sua própria obra, a depen- Contudo, algumas orientações de Boal
dimentos metodológicos, pode ser recriada der dos usos e das adaptações sofridas, po- aqui expressas visam sistematizar uma téc-
pelos seus participantes de forma amplia- deria contribuir para a conservação do au- nica de teatro, com a finalidade de possibi-
da, sem a imposição de um estilo único ou toritarismo e da dicotomia entre opressor e litar a consistente utilização da mesma por
“correto” de encenação. Não se deve, entre- oprimido. grupos populares, porém tais orientações
tanto, perder de vista o horizonte político Rever propósitos e orientações didáti- não podem ser vistas como passos rígidos
de transformação da realidade, conforme cas, longe de ser uma receita a ser seguida, a serem seguidos. Devem ser, na verdade,
já anunciamos no início do texto. Acredi- permite-nos investigar problemas e tentar questionadas e recriadas a cada processo de
tamos que quanto mais a investigação de desmistificar alguns preconceitos enfren- encenação, a cada novo passo dado... a bus-
um estilo de encenação for marcada pela tados no âmbito da atuação em Teatro do ca pelo vigor estético implica na concepção,
liberdade de criação, mais libertador este Oprimido. A forma de interpretação dos criação, diálogo e concretização do produto
processo será. Para que a liberdade seja atores, a mediação do curinga e o estilo de cênico e isto tudo pode ser mediado em um
um fim, ela deve ser assegurada em seus encenação são questões que não se esgo- processo educativo crítico e humanizador.
meios, no bojo do processo de formação. tam no presente texto. Ao contrário, acre- Por fim, asseveramos que a sensibilidade,
Muitas vezes, por desconhecimento ditamos que questionar a prática do Teatro a liberdade criativa e as peculiaridades de
de outras possibilidades de encenação tea- do Oprimido é possibilitar a sua atualiza- cada elenco, de cada grupo, constituirão a
tral, alguns grupos militantes do Teatro do ção e relevância para o contexto social con- poesia e a beleza do ato cênico com todas as
Oprimido tomam uma possível interpreta- temporâneo. potencialidades estéticas e políticas men-
ção da palavra de Boal como sendo a de- Evidentemente, outras questões per- cionadas.
finitiva, a mais correta; e isso pode incidir tinentes poderiam ser citadas e enfocadas
na restrição da compreensão do próprio neste artigo. Entretanto, não nos dedica-
processo de teatro de cunho libertador. mos a esgotar todos os problemas de in-
Em sua vida, Boal sempre foi defensor da terpretação da obra de Boal, porque acre-
democratização das práticas culturais de ditamos que o debate e a polissemia de
liberdade, compreendendo que o teatro interpretações são saudáveis para a refle-
tem um significativo papel na emancipa- xão e a historicidade de qualquer proposta
ção humana e social de sujeitos. Portanto, de cunho emancipador. Porém, para que
o maior propósito do Teatro do Oprimido qualquer técnica ganhe validade social, o
é o de humanização e de fortalecimento debate sobre o assunto precisa ser fomen-
da ação/intervenção cultural, com vistas à tado. Visamos, de modo conciso, levantar
superação de todas as formas de opressão, questionamentos acerca da utilização deste
até mesmo em seu contexto de militância. significativo arsenal, compreendendo que
se o Teatro do Oprimido serve como arma

126 Cilene Nascimento Canda Teatro-fórum: propósitos e procedimentos 127


U rdimento N° 18 | Março de 2012

Referências utilizadas:

BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.


_____, _______. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
_____, _______. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.
BRECHT, Bertold. Estudos sobre teatro. Tradução de Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1978.
COLETIVO NACIONAL DE CULTURA. Teatro e Transformação Social; Teatro Fórum e Agi-
tprop.Vol. 1. CEPATEC/FNC/MINC/00463. São Paulo, 2006.
DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: Provocação e Dialogismo. São Paulo: Ed. Huci-
tec, 2006.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a prática da liberdade e outros escritos. 9ª ed. São Paulo: Paz
e Terra, 2001.
_______, _____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.
_______, _____. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Edi-
tora UNESP, 2000.
Nunes, Sílvia Balesteri. Boal e Bene: contaminações para um teatro menor. Tese de doutorado.
Doutorado em Psicologia clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC).
São Paulo: 2004. Orientação: Luiz Benedicto Lacerda Orlandi.
VIEIRA, Carolina Silva. Curinga uma carta fora do baralho: a relação diretor/espectador nos
processos e produtos de espetáculos fórum. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Gra-
duação em Artes Cênicas. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009. Orientação:
Antonia Pereira Bezerra.

128 Cilene Nascimento Canda

Você também pode gostar