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Após a crucifixão de Jesus Cristo, a religião cristã foi pouco a pouco se enraizando e
se estabelecendo na Europa e no Oriente Próximo, sobretudo, mas também na Ásia e na
África. Depois de vários séculos, alcançou seu apogeu naquilo que hoje chamamos de Idade
Média – grosso modo, entre os anos 800 (coroação de Carlos Magno) e 1300. Floresceram
nesta época confrarias espirituais como a franciscana e a dominicana; escolas de pensamento
como a tomista (aristotélica) e a eckhartiana (platônica); movimentos artísticos como o
românico e o gótico; sábios e santos como Francisco de Assis, Catarina de Siena, Alberto
Magno e Dante. Sem falar dos hospitais, universidades e asilos criados pela igreja.
Depois deste ápice, três revoluções modificaram a face da Cristandade. A primeira foi o
Renascimento (século XV); a segunda, o Iluminismo (século XVIII); e a terceira, o concílio
Vaticano II (1962-65).
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universalismo pelo individualismo, da intelectualidade pelo racionalismo. Em uma palavra, a
Renascença significou o início do “reino da quantidade”, como magistralmente explicado
por René Guénon em seus clássicos A Crise do Mundo Moderno e O Reino da quantidade
e os sinais dos tempos.
Três séculos após a Renascença, aconteceu uma segunda revolução, que traiu seu verdadeiro
propósito pelo próprio nome; os líderes do auto-denominado “Iluminismo” viam a si
mesmos como portadores da “luz” da ciência e da razão, contra as “trevas” da “superstição”
e do “dogma”. Foi , assim, uma batalha ideológica contra a religião. Caracteristicamente, o
movimento foi disseminado pela já secularizada e antitradicional maçonaria e serviu como
base ideológica da Revolução Francesa. A redução da qualidade à quantidade, da
espiritualidade ao materialismo, da interioridade à exterioridade experimentou assim um
segundo estágio e representou uma radicalização dessas tendências que foi muito além da
Renascença.
Este “reino da quantidade”, que deu seus primeiros passos na Renascença e se expandiu no
Iluminismo, alcançou a cidadela da religião com o concílio Vaticano II de 1962-65. O
concílio permitiu que a nova ideologia humanista do “progresso”, da ciência e tecnologia
invadisse os sacros limites antes reservados para o conhecimento e o amor de Deus. Mas,
desde que a religião nunca pode ser um suporte para a mentalidade materialista como
estruturada pela Renascença e o Iluminismo, e de fato está em completa oposição a ela, os
chefes do concílio buscaram um pacto e uma acomodação com a mentalidade moderna. Tal
meta constitui, contudo, uma clara traição do espírito cristão. Muito antes do Vaticano II,
ainda na década de 1920, Guénon escreveu: Qualquer compromisso entre o espírito
religioso e a mentalidade moderna enfraqueceria o primeiro e só beneficiaria a segunda, cuja
hostilidade não seria por isso diminuída, dado que o modernismo almeja a aniquilação total
de tudo que, na humanidade, reflete uma realidade superior a ela mesma (“A Crise do
Mundo moderno”). Palavras proféticas.
O principal arquiteto desta revolução dentro da igreja foi o jesuíta francês Teilhard de
Chardin; ele foi o ‘elo perdido’ entre o Renascimento, o Iluminismo e o Vaticano II. Com
seu evolucionismo panteísta com verniz cristão, Teilhard dizia que Cristo representou um
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grande “salto evolutivo” e que Deus também está sujeito à “evolução”! Seu ‘testamento
intelectual’ pode ser resumido num extrato de seu livro Cristianismo e Evolução (p.99):
Não é sem razão que um comentário espirituoso diz que se Lutero foi um cristão que
deixou a Igreja, Teilhard foi um pagão que permaneceu nela!
Juntamente com o espectro de Teilhard, podemos dizer que nossa época ainda é dominada
pelos espectros de Darwin, Marx, Freud e Jung. Alguns deles, ou todos, podem ser já
considerados “história”. Mas sua influência, percebida ou não, deixou marcas profundas em
nosso modo de pensar e agir. Os “ismos” que forjaram continuam sendo as peças básicas de
nossa “religião” secular. Esta também tem seus defensores “fundamentalistas”, que
praticam uma “intolerância religiosa” que nada fica a dever aos piores exemplos do passado.
E ai de quem ouse questionar seus “dogmas”!
Pouquíssimas pessoas e instituições não foram afetadas por tais ideias. Em razão de sua
influência no mundo ocidental, vale a pena avaliar como afetaram a Igreja Católica. Elas o
fizeram especialmente mediante a revolução que foi o concílio Vaticano II. A natureza desta
revolução pode ser apreciada pelos ditos e escritos dos papas do período, de João 23 a
Bento 16 e Francisco. Através deles, percebe-se um programa radical e sem precedentes de
rompimento com a tradição. Apesar disso, não suscitou grandes indagações por parte de um
público que permanece relativamente passivo. As citações abaixo de Paulo 6º mostram
claramente quão drástica foi a revolução. Suas palavras estão em contradição com os
próprios fundamentos do Cristianismo.
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Giovanni Battista Montini (Paulo 6º - 1963-78)
“Pode a igreja, podemos nós mesmos, fazer outra coisa senão olhar para o mundo e amá-
lo?”
“Uma corrente de amor e admiração fluiu do concílio para o mundo moderno… os valores
do mundo foram não apenas respeitados, mas honrados, seus esforços foram aprovados,
suas aspirações purificadas e abençoadas.”
“Todas as riquezas doutrinais do concílio não têm senão um propósito: servir ao homem…
Reconheçam pelo menos isso, vós humanistas modernos que renunciaram à transcendência
das coisas supremas, pelo menos este mérito e saibam reconhecer nosso novo humanismo:
Nós também, Nós mais do que ninguém, também temos o Culto do Homem!”
O pontífice que sucedeu Giovanni Battista Montini (Paulo 6) foi João Paulo 1º, o “papa
sorriso” do marketing conciliar; ele governou por apenas 33 dias. Mas legou ao seu sucessor
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um nome que já é todo um programa. De fato, João vem do “precursor” do concílio,
Luciano Roncalli (João 23, que governou a Igreja de 1958 a 63) , e Paulo de seu
“finalizador”, Montini, mas o polonês Karol Wojtyla foi além. Foi o responsável pela
manutenção das transformações feitas durante o concílio e o imediato pós-concílio. Nesse
sentido, pode-se dizer que teve um papel comparável ao de Napoleão após a Revolução
Francesa, ao impedir a implosão do aggiornamento com o caos e a divisão que se formaram
e a volta do Ancien Régime católico tradicional.
Wojtyla foi o papa da imagem, dos eventos externos, das viagens. Mas não teve nenhum
êxito no enfrentamento da desespiritualização das sociedades contemporâneas, agudizada,
não por acaso, desde o concílio. Além disso, durante os quase 27 anos de seu pontificado, as
divisões internas do Catolicismo moderno só aumentaram.
De fato, todo o “carisma“ de Karol Wojtyla não foi capaz de colocar um fim à trágica crise
que se abateu sobre a igreja desde os anos 1960. Dezenas de milhares de padres
abandonaram o sacerdócio. Segundo a revista italiana Civiltá Cattolica (de 21 de abril de
2007), 69.063 padres abandonaram o sacerdócio entre 1964 e 2004. As vocações escasseiam
tanto entre o clero secular como entre as ordens religiosas. Por todo o mundo, seminários,
escolas e conventos foram fechados. Nos EUA, dos 49 mil seminaristas existentes em 1965,
restaram hoje apenas 4.700. O número de freiras despencou de 180 mil, em 1965, para 75
mil em 2002. Os colégios católicos estadunidenses eram 1.566 em 1965; hoje são 786. Os
estudantes nestas escolas caíram de 700 mil para 386 mil no mesmo período. A freqüência à
missa caiu para menos de 20%, quando era de 75% em 1960. No Brasil, "o maior país
católico do mundo", a Igreja perde cerca de um milhão de fiéis ao ano. Pesquisa Datafolha
mostra que, entre 1997 (após a terceira visita apostólica de João Paulo 2 ao Brasil) e 2007,
ano da visita de Bento 16, o número de católicos caiu de 74% para 64%. Isso representa
cerca de 15 milhões de almas que abandonaram a barca de Pedro. No mesmo período, o
número de ateus e agnósticos mais que decuplicou, de 0,5% para 7,4%. Na Europa
Ocidental, metade dos recém-nascidos não é mais batizada na Igreja. Em contraste, as
igrejas cristãs orientais, que não tiveram nenhum aggiornamento, não experimentam esta
aguda crise e seguem em seu caminho normal tradicional.
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"Pelos frutos se conhece a árvore", ensina o Evangelho.
Karol Jozef Wojtyla foi escolhido como o 263º sucessor de São Pedro em outubro de 1978.
Ele nasceu em 18 de maio de 1920 na pequena cidade medieval de Wadovice, na Polônia.
Em 1946, com 26 anos, foi ordenado sacerdote; em 1958, foi feito bispo; em 1964,
arcebispo; em 1967, cardeal. Em 1978, sumo pontífice. Uma carreira fulminante. O primeiro
não-italiano a ocupar o papado em quase 500 anos.
Neste período, a grande paixão de Wojtyla foi indubitavelmente o teatro. Ele foi autor de
um livro dedicado ao assunto, The Acting Person. Sua tradutora resumiu seu "complexo
pensamento": "Enfatiza o valor irredutível da pessoa humana, vê uma dimensão espiritual
na interação humana, o que leva a uma concepção profundamente humanista ." Os críticos
teatrais, contudo, consideraram The Acting Person "entediante". Quanto à filosofia de João
Paulo 2, ela é composta de ideias personalistas e existencialistas, com conceitos derivados de
Heidegger, Husserl e Scheler. Outras importantes influências são os franceses Jacques
Maritain -- cujo sonho era unificar as comemorações da Queda da Bastilha com as de Santa
Joana D'Arc! -- e Teilhard de Chardin, sempre ele!, que tentou combinar numa mesma
visão Cristianismo, evolucionismo darwinista e marxismo. No seu livro O Signo da
Contradição, João Paulo II compara as intuições de Teilhard às do livro do Gênesis!
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Participante ativo do Concílio Vaticano II, a contribuição de Wojtyla foi "decisiva" – pelo
menos segundo a biografia oficial -- para a redação da Constituição pastoral Gaudium et
Spes (sobre a Igreja no mundo contemporâneo). Este documento, no entanto, foi
considerado, pelo cardeal Heenan, antigo primaz da Inglaterra, como "uma duvidosa
acomodação com tudo que está na base dos males que afetam a humanidade.”
Contrariamente a todos os concílios anteriores, sua convocação foi feita essencialmente em
resposta a motivações ideológicas e políticas, e não para encaminhar questões teológicas,
como bem mostra Rama Coomaraswamy no presente livro. A excepcionalidade do concílio
resulta, assim, como já notara Frithjof Schuon, do fato de que foi determinado não por
situações concretas avaliadas a partir da teologia, mas por abstrações ideológicas opostas a
esta última.
Laborem Exercens, sua terceira encíclica, abordou a questão do trabalho. Nela, vale-se da
linguagem ambígua tão bem explorada pelos textos do Vaticano II que se torna difícil de
entender. Ursula Oxford conta a história de um jornalista americano que perguntou aos
responsáveis do Vaticano como poderia analisar determinada greve à luz do texto. A
declaração oficial foi de que "não há uma resposta específica, ou, para colocá-lo mais
precisamente, pode-se analisá-la da maneira que a pessoa quiser".
Em Laborem Exercens, apesar do estilo vago e ambíguo de sempre, João Paulo 2º esposou
uma tendência mais ou menos socialista e condenou o capitalismo. Para ele, a "tradição
cristã nunca sustentou que o direito à propriedade privada é absoluto e intocável". Na
verdade, a Igreja sempre ensinou que o homem tem direito à propriedade privada, como
observa Leão 13 na Rerum Novarum. Apesar de todo seu alardeado conhecimento do
comunismo, João Paulo 2º pareceu esquecer-se do fato que, sem propriedade privada, o
homem não passa de escravo nas mãos do Estado todo-poderoso.
Laborem Exercens fala de "socialização satisfatória", sem nunca definir com clareza o que
entende por isso. Com seus antecessores imediatos, ele nunca condenou claramente o
comunismo, isto é, até a Centésimo Ano, em que apresenta uma visão mais otimista do
sistema de mercado, o que assinala aliás uma mudança em relação às encíclicas sociais
anteriores. Os homens do Vaticano II nunca esclareceram que há uma doutrina econômica
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especificamente cristã, que defende a mais ampla distribuição da propriedade e critica os
excessos do liberalismo e a concentração da riqueza. De outro lado, o comunismo foi
condenado em mais de duas centenas de documentos da igreja tradicional. Pio 11, por
exemplo, considerou-o "intrinsecamente perverso" e "contrário à própria lei natural", "um
pseudo-ideal de justiça, igualdade e fraternidade".
A despeito da grave crise, Wojtyla recusou-se a questionar a linha traçada por seus
antecessores imediatos. Acompanhado do setor dominante na hierarquia eclesiástica, ele
pareceu crer que a igreja, depois de séculos de balbucios e tartamudeios, subitamente nasceu
numa manhã de 1962. Em sua primeira encíclica, expressa "seu amor pela herança única
deixada à Igreja por João 23 e Paulo 6º" e sua "disposição em desenvolver este legado".
Inúmeras foram as vezes em que afirmou que "realizar os ensinamentos do Vaticano II"
seria a chave do seu governo.
Concílio este que foi analisado nas seguintes palavras pelo então principal teólogo e segundo
homem da hierarquia, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger,
depois Bento 16: "O papas esperavam uma nova unidade, mas o que ocorreu foram
contendas e dissensões de tais proporções que a Igreja parece estar passando da autocrítica
para a autodestruição. Esperávamos um novo entusiasmo, mas acabamos, pelo contrário, no
tédio e no desencorajamento. Olhávamos para um salto rumo ao futuro, mas o que
encontramos, ao contrário, é um crescente processo de decadência que em grande medida
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desenvolveu-se a partir do --- e pode ser imputado ao -- assim chamado espírito do
concílio" (Entrevista sobre a Fé, Vittorio Messori, 1985).
Durante todo o seu pontificado, João Paulo 2º continuou “sentindo a fumaça “, mas
recusou-se a identificar a origem do fogo; não compreendeu que uma instituição espiritual
não pode sobreviver com ideias vagas, frouxas, ambíguas e superficiais. De nada adiantarão
os diversos e dispendiosos projetos em curso, especialmente os de marketing e
comunicação; a história mostra que só uma ideia clara e poderosa, e respeito pelos ritos cuja
origem é supra-humana, podem sensibilizar e mover almas.
Desde então, houve muita agitação, na área litúrgica e doutrinal, falou-se muito, escreveu-se
muito, houve muitos eventos de massa, mas não se pode, em definitivo, dizer que seus
responsáveis deixaram um legado sólido para as futuras gerações. A mentalidade do
aggiornamento, à qual os anos de João Paulo 2º e, depois, de Bento 16 e de Francisco,
deram solução de continuidade, tem se caracterizado, ao contrário, pela superficialidade
intelectual e a indigência espiritual.
Apesar de ter sido o braço direito de Wojtyla por um quarto de século, alguns ainda
sustentam que as ideias do atual “papa emérito” não são suficientemente conhecidas. Seu
ideário, contudo, pode ser bem compreendido se prestarmos atenção às suas próprias
palavras. Nos anos 1950, sua tese de habilitação ao seminário de Freising, na Alemanha, foi
recusada por "falta de rigor teológico", suspeita de "heterodoxia neo-modernista" e por
"subjetivizar o conceito de Revelação". Na autobiografia La Mia Vita, Ratzinger criticou a
principal escola teológica católica, a tomista, como "fechada em si mesma, impessoal e pré-
fabricada".
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No livro Princípios de Teologia Católica, Ratzinger elogiou "o impulso dado por Teilhard
de Chardin", cuja "ousada visão incorporou o movimento histórico do Cristianismo ao
processo cósmico da evolução". Vê-se, assim, que a influência do jesuíta francês continua
forte. Bento 16 citou-o novamente na sua primeira homilia de Páscoa como papa, em abril
de 2006: “A ressurreição de Cristo é algo diferente: se tomarmos emprestada a linguagem da
teoria da evolução, trata-se da maior das mutações, o salto mais crucial rumo a uma
dimensão totalmente nova...” O espírito da fala, desnecessário realçar, é completamente
teilhardiano.
Na mesma obra, Ratzinger escreveu que "a Verdade se torna função do tempo... Fidelidade
à verdade de ontem consiste em abandoná-la e assumi-la na verdade de hoje." Na missa Pro
eligendo pontífice, contudo, rezada por ele um dia antes de ser eleito pelos cardeais,
descreveu a "ditadura do relativismo" como "o problema central da fé hoje ". O problema é
que o cerne do relativismo é justamente a ideia de que nada é definitivo e que a verdade
depende da história ou da classe social. A este respeito, Aristóteles afirmou: "Aqueles que
declaram que tudo, inclusive a verdade, segue um fluxo constante se contradizem, pois, se
tudo muda, sobre qual base podem formular uma afirmação válida?"
Comparado com seus antecessores imediatos, i.e., João 23, Paulo 6º e João Paulo 2º,
Ratzinger inaugurou um novo conceito e fase. A simples escolha do nome já diz muito. Ele
não quis ser nem um “João Paulo 3º.”, nem um Paulo ou um João a mais. Tampouco um
Pio, cujo nome indicaria repúdio ao modernismo, definido por Pio 10º (1903-14) como a
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“síntese de todas as heresias”. O modelo para o qual apontou foi Bento 15 (1914-22), papa
conciliador. Desta maneira, especulou-se que ele almejou conciliar tradição e revolução –
como se fosse possível ‘conciliar’ a verdade com o erro...
De fato, suas ações apontam na direção da correção dos “excessos” conciliares e pós-
conciliares. Ao mesmo tempo, buscou um acordo entre contrários, de onde a inevitável
ambigüidade. No jornal norte-americano The Washington Times (de 30/9/2003) informou
que era um teólogo radical durante o concílio, mas que depois passou a ser visto como um
conservador. Ele disse ademais que, como o mundo tendeu tanto para a esquerda, mesmo
um progressista de suas convicções pareceria conservador! Em La Croix (28/12/2001)
enfatizou, para quem ainda tivesse dúvidas, ser um representante da “nova Igreja” que não
crê em “retorno à tradição”.
Seja como for, o cerne da questão é que Ratzinger enfrentou os efeitos perversos
longínquos da revolução que ele mesmo ajudou a fomentar no passado. Quis limitar ou
abolir as conseqüências mais destrutivas e escandalosas das inovações conciliares. Mas
limitou-se aos efeitos. Visou os “excessos”, não a raiz do que ele mesmo denominou “auto-
demolição” da Igreja. Sua agenda apontou para uma intrincada, e irrealizável, “concertação”
entre tradição e aggiornamento, engajando-se no fundo em uma obra de Sísifo.
Francisco e a mitologia do Vaticano II
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uma instituição retrógrada, superada, passadista, mesmo reacionária, dominada por homens,
misóginos, brancos, europeus e velhos. O concílio, de outra parte, constituiu uma “lufada de
ar fresco” numa instituição supostamente enferrujada, patriarcal e contrária a toda e
qualquer adaptação ao mundo circundante e, portanto, sem futuro. Como diz um perspicaz
adágio: antes, nada mudava na Igreja, a não ser o pão e o vinho; hoje, tudo muda, menos o
pão e o vinho...
Não há nada mais distante da realidade do que tal “mitologia”. Se a Igreja tivesse sido este
corpo fossilizado e impermeável a dois milênios de história e novas experiências, como teria
sobrevido aos inúmeros desafios e confrontos que a ameaçaram ao longo deste imenso
espaço de tempo?
Para ficarmos apenas no Século XX, se fosse tal como a descrevem, certamente a Igreja
Católica não teria sobrevivido ao fascismo de Mussolini, nem ao comunismo de Stálin,
tampouco ao liberalismo ou a outros adversários históricos poderosos. Não teria
sobrevivido nem mesmo às suas divisões internas, ou ao sectarismo de algumas correntes
católicas, “progressistas” ou “conservadoras”.
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chão as Tábuas da Lei, escritas com os dedos mesmos de Deus. Depois, “passa a fio de
espada”, diz o Livro do Êxodo, cerca de três mil homens envolvidos na idolatria.
O Vaticano II se tornou como este ídolo dourado para muitos, que, mesmo sem
conhecerem a substância de suas teses e postulados, “torcem” para que o “Concílio Futebol
Clube” seja o grande vencedor -- seja lá do que for! E mais, ele se tornou algo tão
sacrossanto para algumas mentalidades que não pode ser criticado, nem questionado, caso
contrário uma enchente de insultos e ofensas submerge o infeliz que ousou tanto.
Nélson Rodrigues já dissera, nos anos que se seguiram ao concílio, que graças à sua
“dessacralização demagógica”, o Brasil ainda seria “o maior país ex-católico do mundo”.
A se crer nos inúmeros do último censo do IBGE, caminhamos a largos passos para isto. E,
parafraseando o polêmico jornalista e dramaturgo pernambucano, hoje se pode constatar
sem dificuldade que a Europa já se tornou “o maior continente ex-católico do mundo”.
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Resta saber o que o novo pontífice Francisco fará para que o próprio Catolicismo não
corra o risco de se tornar a maior “ex-tradição” do mundo!
Constatam-se alguns sinais positivos transmitidos pelo novo pontífice oficial, Francisco, em
alguns pontos de moralidade. Isto é relevante, mas pouco significa em comparação com a
questão infinitamente mais importante, e realmente decisiva, que é sua posição acerca das
falsificações do Concílio Vaticano II -- ideias estas que, traduzidas e postas em prática
mediante a nova liturgia dos Sacramentos, desvirtuaram e corromperam os ritos revelados,
como Rama Coomaraswamy mostra de forma irrefutável em seus livros.
A chave filosófica da questão foi antevista, muito antes do concílio, pelo grande René
Guénon, de quem repetimos as proféticas palavras:
“(...) desde João 23, a Igreja de Roma está ocupada por uma força estrangeira, ou seja, o clã
modernista, cujas tendências são simultaneamente maçônicas e marxistas; que,
consequentemente, os papas conciliares e pós-conciliares, incluindo, obviamente, a
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hierarquia que os aceita, são ilegítimos; que, portanto, é ilegítimo segui-los e prestar-lhes
homenagem sob qualquer forma que seja; que algumas palavras boas, ou um gesto
tranquilizador, por parte de um papa ilegítimo, não pode atenuar o que acaba de ser dito,
até que o papa retorne à ortodoxia e suprima a heterodoxia e seus efeitos; por exemplo, que
um papa possa elogiar a Santa Virgem, ou recomendar o rosário, ou organizar uma
procissão, isto em nada remove sua ilegitimidade, até que ele elimine os efeitos do concílio e
reintroduza a Missa tradicional; que é absurdo esperar, toda vez que há um novo papa, ou
um assim chamado papa, que será um bom papa, dado que será, necessariamente, um
herege, eleito por hereges, porque ele é um herege. É verdade que um papa herético poderia
por um milagre ser convertido à ortodoxia, mas, em seguida, ele iria provar isso abolindo
todas as inovações conciliares e pós-conciliares, em vez de simplesmente explorar a
estupidez dos ‘tradicionalistas’ atirando-lhes alguns ‘doces’.”
Até aqui, ninguém percebeu qualquer sinal de que o novo pontífice inclua em seu horizonte
confrontar este desafio decisivo -- que comprovaria, ademais, para além de qualquer
ambiguidade, sua ortodoxia doutrinal e sua ortopraxia ritual. Este é o ponto fundamental
que devemos nos perguntar, o resto é perfumaria.
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Publicado originalmente como introdução ao livro “Ensaios sobre A Destruição da Tradição
Cristã”, de Rama Coomaraswamy. São Paulo: Irget, 2013 (2ª edição, revista e ampliada).
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