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Dinâmica territorial urbana,

turismo e meio ambiente


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Organizadores

Dinâmica territorial urbana,


turismo e meio ambiente

Natal, 2019
Coordenadoria de Processos Técnicos
Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente / Ademir Araújo da Costa, Edna
Maria Furtado, organizadores. – Natal, RN : EDUFRN, 2019.
265 p. : il., PDF ; 24,7 Mb.

Modo de acesso: https://repositorio.ufrn.br


ISBN 978-85-425-0872-7

1. Planejamento urbano. 2. Desenvolvimento urbano. 3. Turismo urbano. I. Costa,


Ademir Araújo da. II. Furtado, Edna Maria.

RN/UF/BCZM 2019/07 CDD 711.4


CDU 711.4

Elaborado por Jackeline dos S.P.S.Maia Cavalcanti – CRB-15/317

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRN


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Apresentação
A ciência geográfica, no seu processo de desenvolvimento,
historicamente, tem sido pautada pelas pesquisas que abarcam
a relação sociedade-natureza. É nesse contexto que o estudo da
organização socioespacial da atividade humana tem ressaltado
que a reestruturação do território expressa as transformações
sociais e espaciais que engendram as novas dinâmicas, bem
como reorganizam as antigas. A reestruturação do território
demonstra, assim, uma dimensão econômica, política e cultural.
Econômica quando, por meio das relações capitalistas – produ-
ção, circulação, consumo –, provoca uma constante moderni­
zação/inovação tecnológica e mudanças e/ou ajustes nas relações
de trabalho; política quando objetiva as alterações das ações do
Estado e de suas instituições, com rebatimento nas questões
ideológicas; e a dimensão cultural quando enseja transformações
dos hábitos e dos costumes observados, sobretudo nas relações
sociais e no método de ocupação e consumo dos territórios.
Destarte observa-se que a natureza do modo de produção
capitalista encontra-se presente nos processos de reestruturação
produtiva dos territórios. Assim sendo, a cada momento do
desdobramento do capital, novas ações de produção e consumo
são engendradas para atender à sua reprodução.
Deste modo, a cidade aparece, em princípio, como o novo,
o locus, o lugar próprio e apropriado para a síntese do sistema
capitalista. Porém o seu desenvolvimento subverteu o conceito
de tempo e de espaço, ou seja, onde e quando acontecem as ações,
como também modificou o ambiente, seja ele rural ou urbano,
e os serviços. Nesse contexto, vem a lume a premissa de que
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

o diálogo entre turismo e geografia não é novo nas propostas


de investigações científicas e que a cidade se constitui como o
locus principal desse diálogo.
As discussões desenvolvidas ao longo do processo de
orientação e do desenrolar das pesquisas realizadas sob a nossa
orientação se mostram por meio deste livro ora publicado.
Dessa forma, os capítulos que estão nele contidos reúnem uma
série de trabalhos que tratam de temas relacionados principal-
mente à questão urbana e ao turismo, sendo, a maioria deles,
fruto da conclusão de dissertações de mestrado orientadas por
nós, organizadores deste livro. É importante salientar que os
referidos trabalhos são ligados à Linha 2 - Dinâmica Urbana
e Regional - do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em
Geografia (PPGe), da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN), à qual estamos vinculados.
Quanto ao título do presente trabalho, achamos por bem
eleger uma temática associada à linha de pesquisa, bem como
ao enfoque das orientações por nós desenvolvidas, qual seja: A
dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente, dado o conte-
údo dos capítulos aqui contemplados estar em sintonia com a
referida temática. Nesse sentido, considerando as temáticas já
ressaltadas, este livro reúne uma série de capítulos que tratam
de questões relacionadas a planejamento estratégico, economia,
setor terciário (com destaque no turismo), expansão urbana,
especulação imobiliária e meio ambiente urbano, abordando
assuntos em níveis internacional, nacional, regional e local.
Destarte procuramos disponibilizar aos leitores um
conjunto de onze trabalhos que estão sequencialmente distri-
buídos neste livro, e que apresentamos sucintamente, a seguir,
o conteúdo tratado por cada autor.
Inicialmente, no primeiro capítulo, “Planejamento estra-
tégico e benchmarking: Montevidéu na competição urbana”,
Eugênio Ribeiro da Silva apresenta uma breve discussão na
Apresentação

qual ele enfatiza que “O espetáculo da cidade contemporânea


se dá na relação social entre os agentes produtores do espaço,
mediado pelas imagens que se criam através do marketing
urbano” (p. 10) por intermédio do planejamento estratégico,
tomando, como exemplo, a cidade de Montevidéu, no Uruguai.
O autor destaca que as imagens são elaboradas no intenso
processo de (re) criação da cidade, em cada elemento produzido
para torná-la atrativa ao capital externo.
No segundo capítulo, Thiago Augusto Nogueira de Queiroz,
por meio do texto intitulado “As centrais de abastecimento
alimentar no contexto da formação socioespacial do Brasil”,
faz um histórico considerando que essas infraestruturas de
abastecimento alimentar, as Ceasas, se constituem, simulta-
neamente, em infraestruturas e instituições do território,
formadas por diversas firmas e pessoas, atuando através de
diferentes funções, de processos recentes e antigos.
“Viagens à natureza: um olhar sobre o turismo em unida-
des de conservação” é o capítulo seguinte, defendido por Edna
Maria Furtado e Márcio Balbino Cavalcante, e discute que, desde
a sua origem, as pesquisas em Geografia vêm privilegiando a
relação sociedade-natureza, e que a referida ciência se reveste
de um papel singular, dado que o seu objeto de estudo está
“relacionado com a organização espacial das atividades huma-
nas” (p. 45). Ressaltam que as “Unidades de Conservação [...] são
espaços legalmente instituídos com o objetivo da preservação
da biodiversidade e das belezas paisagísticas ou da utilização
sustentada dos ecossistemas e de seus recursos naturais” (p. 45)
e que, devido às diversas unidades existentes no estado da
Paraíba, o conjunto desses espaços se destaca por possuir grande
potencial para o turismo. Finalmente, os autores destacam a
Pedra da Boca como uma unidade existente que preserva
um conjunto rochoso de grande beleza cênica, de composição
granítica porfirítica, cujas configurações geológico-geo-
morfológicas são ímpares, e também por abrigar espécies
da flora e da fauna endêmicas e representativas do bioma
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

caatinga. Em seu ambiente, são desenvolvidas as atividades


turísticas (p. 46).

No quarto capítulo, intitulado “Distribuição espacial


da atividade bancária no Rio Grande do Norte”, José Erimar
dos Santos e Ademir Araújo da Costa abordam a distribuição
geográfica dessa atividade, buscando compreender aspectos
da dinâmica urbana e regional potiguar estabelecida pelos
equipamentos de prestação de serviços bancários desses esta-
belecimentos mais proeminentes no estado, quais sejam, Banco
do Brasil, Banco Bradesco S.A. e Caixa Econômica Federal.
Na sequência, Edna Maria Furtado e João Mendes da Rocha
Neto, no capítulo “A cartografia dos insumos que sustentam o
turismo na cidade de Natal-RN”, afirmam que “os estudos sobre
o turismo têm ficado circunscritos ao momento do ‘acontecer
turístico’, ou seja, quando o viajante chega ao seu destino e
se utiliza de serviços diversos durante sua permanência no
local, sem considerar que, para esse momento, um conjunto
de insumos contribui, que vai desde os alimentos servidos nas
refeições, até os bens e equipamentos duráveis, passando pelos
serviços terceirizados prestados durante esse deslocamento do
turista” (p. 66). O capítulo discute ainda “a espacialização dos
insumos que dão suporte a esse ‘acontecer turístico’, tomando
por base os grandes estabelecimentos hoteleiros localizados na
Via Costeira, em Natal-RN, que operam uma complexa e diversa
cadeia de insumos” (p. 66).
No sexto capítulo “O turismo na vitrine do circuito supe-
rior e o circuito inferior do outro lado da vitrine”, os autores
José Alexandre Berto de Almada e Edna Maria Furtado discutem
a presença do modo de produção capitalista nos processos de
reestruturação dos territórios, destacando que “a cada momento
da história capitalista, novas demandas de consumo e mercado-
rias são criadas para atender a necessidade de reprodução desse
sistema” (p. 92), e que o turismo se transforma em mercadoria
Apresentação

como qualquer outra. Diante disso, os autores trazem, como


exemplo, o que vem ocorrendo ultimamente na cidade de Natal.
Logo após, no sétimo capítulo, intitulado “Arituba, Boágua
e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar: uma
leitura sobre o processo de produção do espaço”, Alian Paiva
de Arruda discute o processo de produção do espaço em que se
localizam três lagoas interdunares que fazem parte da rota do
turismo potiguar: Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN),
litoral oriental do estado. “As lagoas, que assumem, desde a
década de 1980, uma função turística, se inserem no roteiro do
turismo de massa e das massas, sendo apropriadas por agentes
sociais distintos, entre eles: o Estado, agentes de mercado e os
diversos tipos de turistas” (p. 109).
No oitavo capítulo, “A expansão do mercado imobiliá-
rio em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos habitacionais
populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados”,
Eduardo Alexandre do Nascimento e Ademir Araújo da Costa,
analisam a expansão do mercado imobiliário em Mossoró à luz
das políticas habitacionais públicas que sucederam ao longo
de quase cinquenta anos. Os referidos autores ressaltam que a
cidade de Mossoró-RN atravessou, entre os anos de 1960 e os
dias atuais, dois momentos de expansão acentuada do setor
imobiliário. O primeiro teve início com uma ampla política
habitacional desenvolvida no contexto do regime militar que
se instalou no país a partir de meados de 1960. Durante esse
período, a intensa expansão do mercado de imóveis resultou na
construção de milhares de unidades habitacionais. O segundo
momento começou a se delinear, nos primeiros anos de 2000,
em função da emergência e interação de um conjunto de fato-
res reestruturantes de caráter produtivo que redefiniram a
dimensão socioeconômica da realidade local. Essa fase, ainda
vigente, se caracteriza pelo protagonismo do capital privado
na condução do processo de produção imobiliária, pelos seus
impactos marcantes sobre a dinâmica territorial e econômica
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

de Mossoró e, sobretudo, pela elevação do preço da moradia.


Diante desta nova conjuntura, o espaço urbano de Mossoró, em
sua totalidade, entra, mais intensamente, por meio da troca e
da venda, de suas parcelas e seus objetos, nos circuitos da acu-
mulação capitalista, apresentando elementos novos em relação
ao período de atuação do Sistema Financeiro da Habitação (SFH)
do Banco Nacional da Habitação (BNH). Perante essa realidade,
o capital envolvido com a produção de habitações em Mossoró
se especializa e desenvolve novas estratégias de produção e
comercialização da habitação.
No nono capítulo, o trabalho intitulado “Geotecnologias
aplicadas à análise espaciotemporal da expansão urbana nos
municípios da Microrregião de Pau dos Ferros-RN”, os autores
Rômulo Klebson de Souza e Franklin Roberto da Costa apresen-
tam um mapeamento espaciotemporal do processo de expansão
urbana das cidades da Microrregião de Pau dos Ferros, a partir
de ferramentas de Geotecnologias, entre os anos de 1987 e 2008,
as quais aumentaram significativamente as manchas urbanas,
atingindo uma média de 109%. Ressaltam que, das dezessete
cidades avaliadas, sete demonstraram um percentual acima de
100% durante o período analisado. As demais não conseguiram
acompanhar a expansão urbana apresentada por Pau dos Ferros,
uma vez que nesta a oferta de serviços foi marcante, contri-
buindo para o desenvolvimento local e servindo de base para a
prestação de serviços a toda população do Alto Oeste Potiguar.
Em seguida, no décimo capítulo, intitulado “A produção
de castanha de caju e a dinâmica socioespacial do município de
Caraúbas-RN”, Larissa Vieira Fernandes e Edna Maria Furtado
analisam a dinâmica socioespacial de Caraúbas-RN, decor-
rente da atividade de produção de castanha de caju no período
compreendido entre os anos de 1980 e 2009. Tal atividade se
insere no município na década de 1960, levando um grupo de
empresários da cidade de Mossoró-RN a instalar uma fábrica
de beneficiamento da castanha de caju na zona urbana de
Caraúbas, denominada Ademos Ferreira da Silva – Indústria,
Apresentação

Comércio e Exportação (AFICEL). Após a instalação da unidade


industrial, a vida urbana de Caraúbas foi dinamizada elevan-
do-se o número de empregos gerados e a consequente indução
do incremento na oferta dos serviços na cidade, como também
permitiu o surgimento de vários empreendimentos comerciais
e a implantação da feira de confecções.
Finalmente, no décimo primeiro capítulo, “Sobre pedras,
entre rios: uma geografia histórica da cidade de Caicó-RN”, de
autoria de Marcos Antônio Alves de Araújo e Ademir Araújo da
Costa, procura-se revisitar a geografia histórica da cidade de
Caicó, dando ênfase a alguns aspectos referentes aos seus mitos
de origem, aos seus espaços lendários, à sua toponímia, aos
seus monumentos e aos marcos de sua evolução urbana. Diante
disso, esse trabalho permeou, como temática geral, a cidade e,
como referência empírica, o espaço urbano de Caicó. O desejo
de interpretar a cidade de Caicó, sobretudo aquela de tempos
passados, nasceu dos primeiros contatos e das experiências
que se mantiveram com o seu espaço urbano em tempos mais
recentes. Desta maneira, investigar a geografia histórica da
cidade de Caicó se dimensionou num mergulho ao universo
de significados que o olhar, lançado sobre a urbe, revelou a
importância de sua riqueza cultural e das heranças justapostas
no transcurso de, aproximadamente, três séculos de existência.
Sumário
Planejamento estratégico e benchmarking: Montevidéu na
competição urbana.....................................................................15
Eugênio Ribeiro Silva

As centrais de abastecimento alimentar e a reestruturação do


território: o caso da Ceasa-RN...................................................35
Thiago Augusto Nogueira de Queiroz

Viagens à natureza: um olhar sobre o turismo em unidades


de conservação ...........................................................................59
Márcio Balbino Cavalcante, Edna Maria Furtado

A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade


de Natal-RN..................................................................................85
Edna Maria Furtado, João Mendes da Rocha Neto

O turismo na vitrine do circuito superior e o circuito inferior


do outro lado da vitrine...........................................................115
Edna Maria Furtado, José Alexandre Berto de Almada

Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do


turismo potiguar: uma leitura sobre o processo de produção
do espaço...................................................................................136
Alian Paiva de Arruda, Edna Maria Furtado

13
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da


produção dos conjuntos habitacionais populares à produção
dos condomínios e loteamentos fechados .............................167
Eduardo Alexandre do Nascimento, Ademir Araújo da Costa

Geotecnologias aplicadas à análise espaciotemporal da


expansão urbana nos municípios da microrregião de Pau dos
Ferros-RN ..................................................................................198
Rômulo Kleberson de Souza, Franklin Roberto da Costa

A invenção de Caicó .................................................................215


Marcos Antônio Alves de Araújo, Ademir Araújo da Costa

A influência do CT-Petro nas interações entre grupos de


pesquisa em Engenharia Química da região Nordeste e o setor
produtivo ..................................................................................241
Arlindo Teixeira de Oliveira, Edna Maria Furtado,
Ademir Araújo da Costa, Ana Cristina Fernandes

14
Planejamento estratégico e
benchmarking: Montevidéu
na competição urbana
Eugênio Ribeiro Silva1

O espetáculo não é um conjunto de


imagens, mas uma relação social
entre pessoas, mediada por imagens.
Guy Debord

Introdução

O espetáculo da cidade contemporânea se dá na relação social


entre os agentes produtores do espaço, mediado pelas várias
imagens que se criam por meio do marketing urbano, isto é, o
discurso do planejamento estratégico. As imagens são elaboradas
no intenso processo de (re)criação da cidade, em cada elemento
produzido, para torná-la atrativa ao capital externo. Entre
os agentes interessados na elaboração dos grandes projetos
urbanos, estão os consultores que venderam a experiência da
realização do planeja mento estratégico em cidades europeias
às cidades da América Latina.
O planejamento estratégico aparece, segundo Capel (1998,
p. 237), por volta do “final dos anos 1980 nos Estados Unidos

1 Doutorando em Geografia. Mestre em Estudos Urbanos e Regionais.


Licenciado em Geografia (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).

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Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

(São Francisco e Detroit) e na Europa (Birmingham, Amsterdã,


Lisboa, Barcelona). Por intermédio da elaboração de um plano
estratégico, definem-se objetivos e políticas em consonância
com os agentes privados”. Antes disso, porém, a prática do que
Harvey (1996) chama de empreendedorismo urbano já é pre-
sente em cidades americanas cujas economias demandavam o
impulso de uma gestão empresarial, ao contrário da burocracia
administrativa, para escapar à degradação que assolava as
ruínas das cidades outrora receptáculos das indústrias fordistas.
Tendo em vista a crise do modelo fordista de produção e
o consequente rebatimento da crise na estrutura urbana das
cidades, empresas privadas viram a necessidade e a oportuni-
dade de reconstruir a cidade em “novas” bases. Seria preciso
encontrar meios de refazer a dependência americana da econo-
mia industrial fordista ultrapassada pela concorrência toyotista
internacional. Surgiram, assim, alianças do setor público com o
setor privado para suprir essa necessidade e refazer a imagem
da cidade para atender a uma lógica global.
Tal forma de conceber a cidade ganhou força com a crise
do petróleo, em 1973, atrelada ao esfacelamento do modelo
fordista-keynesiano, entre outros fatores mostrados por Harvey
(2010). Destarte, a transição do fordismo, caracterizado por
rígidas estruturas econômicas, políticas e geográficas, para
a acumulação flexível, muito mais aberta geograficamente,
foi seguida por uma grande transformação que ocorreu na
gestão das cidades. Trata-se da mudança do gerenciamento
para o empresariamento urbano, no qual as cidades passaram
a adotar medidas inovadoras e empreendedoras no intuito de
melhorar as condições da sua competitividade no contexto da
crise do fordismo e da crise fiscal do Estado (HARVEY, 1996).
Segundo Capel (1998, p. 236), isso coincidiu com a marcha
das políticas neoconservadoras de Ronald Reagan e Margaret
Thatcher, com a desregulamentação no campo da economia e das
relações de trabalho. Na Europa, de modo geral, o protagonismo

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Planejamento estratégico e benchmarking:
Montevidéu na competição urbana

das cidades foi uma resposta à recessão econômica da década


de 1970, quando os governos locais uniram-se aos atores urba-
nos no intuito de promover as cidades então em decadência.
No caso dos Estados Unidos, as cidades desempenharam um
importante papel no âmbito das transformações políticas e
econômicas, como consequência da crise oriunda do exacerbado
neoliberalismo dos governos Reagan e Bush. Na América Latina,
as cidades contaram com a descentralização do Estado e com
o processo de democratização política para conseguir emergir
tardiamente como protagonistas (CASTELLS; BORJA, 1996).
Pelo mundo foi se espalhando, paulatinamente, a nova
concepção de cidade reinventada segundo os interesses eco-
nômicos capitalistas. Na América Latina, essa concepção chega
(tardiamente, como foi dito) por volta do início da década de
1990, trazida por consultores estrangeiros com promessas de
inserir as cidades latino-americanas no cenário competitivo
internacional. Isso se daria por meio da promoção da cidade
para o exterior com forte marketing, união do setor público com o
setor privado, adoção de um “patriotismo cívico” pelos habitantes
(por intermédio de obras e serviços visíveis), além da inovação
político-administrativa, já que “as competências e funções dos
governos locais não podem ser definidas mediante uma legislação
estatal uniformizadora” (CASTELLS; BORJA, 1996, p. 161). Desta
feita, as alterações político-administrativas requeridas pelo pla-
nejamento estratégico atrelavam-se ao padrão neoliberalista do
Consenso de Washington, o qual demandava estruturas políticas
mais flexíveis com abertura do mercado interno.
A união dos habitantes da cidade em torno do ideal comum
que, supostamente, traria benefícios a todos é acompanhada
pelo controle social, a partir da geração de consensos. A gestão
direcionada para os interesses do setor privado tem provo-
cado, segundo Fernanda Sánchez (1999, p. 118), “profundas e
questionáveis mudanças na atuação dos governos municipais
com relação às suas prioridades na alocação de recursos e

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Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

compromissos na implementação de políticas, com tendências


cada vez maiores a uma mercantilização da vida urbana”.
Nessa mesma linha, Harvey (1996, p. 60) afirma que:
O empresariamento urbano (em oposição ao muito mais
disfarçado gerenciamento burocrático) lida aqui com a busca
da identidade local e, como tal, abre uma gama de mecanismos
para o controle social. Pão e circo foi a famosa fórmula romana,
que está sendo agora reinventada e revivida, enquanto a
ideologia da localidade, de lugar e da comunidade tornam-se
centrais na retórica política da gestão urbana que se concentra
na ideia de união como defesa contra um mundo hostil e
ameaçador do comércio internacional e da alta competição.

Para Capel (1998, p. 237), esse planejamento se trata muito


mais de uma “via retórica e de imagem, de pouca eficácia, já
que se limita a reunir os distintos operadores e entidades com
um caráter simplesmente consultivo”. Isto quer dizer que, ao
invés de haver verdadeiramente a participação da população
nas tomadas de decisões, há a falsa sensação de participação
ou contemplação (SÁNCHEZ, 1999).
Dado esse contexto, o presente capítulo discute o planeja-
mento estratégico de cidades na sua inserção no contexto latino-
-americano, tendo como pano de fundo a cidade de Montevidéu,
a qual ainda move suas políticas públicas e privadas na direção
dos grandes investimentos e da espetacularização. Para isso,
foi realizada revisão teórica que abrange desde clássicos como
Castells, Capel, Harvey, Hall, Debord e Smith até autores que
trabalham focados na discussão sobre planejamento estratégico
de cidades, como Maricato, Vainer e Sánchez. Para discutir o caso
específico de Montevidéu, foram analisados os textos de Gilmet,
Pérez Piñeyro e Güell. Além do referencial apresentado, foram
realizadas visitas in loco na capital uruguaia, para observação
e levantamento fotográfico e de dados.
No atual cenário competitivo, as cidades investem no seu
tecido urbano em uma incansável busca por melhor localização

18
Planejamento estratégico e benchmarking:
Montevidéu na competição urbana

no ranking de cidades, para atrair mais investimentos, eventos


e demanda turística solvável. Argumentou-se que Montevidéu
não se distancia das outras cidades latino-americanas, as quais
recorreram aos planos estratégicos para reinventar sua imagem
para o mercado competitivo internacional.

O benchmarking na competição urbana


O modelo do planejamento estratégico é proveniente
da lógica administrativa. Existem escolas de planejamento
estratégico espalhadas pelo mundo, as quais “têm como ori-
gem o modelo desenvolvido pela Harvard Business School que
desde 1920 incluía ações estratégicas no seu curso de política
de negócios” (LOPES, 1998, p. 80). Estratégia é um termo utili-
zado no meio militar, nas guerras. Segundo Maximiano (2008,
p. 95), “a ideia original de estratégia aplica-se a situações de
concorrência, como guerras, jogos e negócios”.
Ao incorporar elementos oriundos da lógica adminis-
trativa para inseri-los nas cidades, os gestores a tornaram um
centro de negócios, uma empresa, o que na essência não deveria
ser. Um dos elementos da administração que demonstra isso é
o benchmarking, o qual se constitui como a
técnica por meio da qual uma organização compara o seu
desempenho com o de outra ou outras, concorrentes ou não,
do mesmo ramo de negócios ou de outros, que façam algo
de maneira particularmente bem feita. A ideia é buscar as
melhores práticas da administração, para imitá-las e ganhar
vantagens competitivas (MAXIMIANO, 2008, p. 104, grifo nosso).

De um modo ou de outro, as cidades incorporaram o


benchmarking em suas práticas, já que suas gestões disputam
por agentes solváveis no turismo de lazer, de negócios, bem
como visam criar um clima favorável para atrair investimentos
em diversos segmentos, tais como comércio, universidade,
indústria, ciência, tecnologia, inovação, entre outros. Esse
quadro é somado a já existente “guerra dos lugares”, na qual

19
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

cidades, estados e até países disputam por indústrias para


fomentar a economia local. Diante desse contexto, as cidades,
a exemplo das empresas que fazem o benchmarking, buscam as
práticas administrativas que deram certo e espelham-se nelas,
imitando ou replicando os elementos ditos positivos na busca
por ganhar vantagens competitivas.
Aqui, é peculiar o exemplo de Barcelona. Desde os resul-
tados auferidos com os Jogos Olímpicos ocorridos na cidade,
em 1992, e as estratégias para promovê-la, somados ao apelo
midiático antes, durante e depois dos jogos, houve expansivo
reconhecimento internacional do modelo como exemplo a
ser seguido. A partir disso, várias cidades do mundo inteiro
quiseram repetir o sucesso barcelonês, imitando as práticas de
sucesso, isto é, utilizando-se do benchmarking, desde a escala
internacional do ranking de cidades até em escalas regionais2.
Dado esse alinhamento de intenções e replicações próprio
do planejamento estratégico de cidades, a busca pela inovação
torna-se um diferencial competitivo. Genericamente, a cidade é o
locus da invenção, da inovação, como explica Capel (1998, p. 175):
A inovação em suas diversas formas (política, social, eco-
nômica, científica ou técnica) se produz na cidade [...]. A
cidade é ao mesmo tempo a sede natural da ciência e lugar
privilegiado da inovação científica e tecnológica. É a sede
das instituições acadêmicas e dos equipamentos culturais
indispensáveis à prática da ciência.

Para Capel (1998, p. 205), “no caso das inovações técnicas


aplicadas à urbanização, o mais relevante é a capacidade das
cidades de atrair promotores que apliquem essas inovações”.
As grandes cidades, pelo seu acúmulo histórico de condições
favoráveis ao desenvolvimento (estruturas materiais e imate-
riais), tornam-se o centro dessas inovações. Essa concentração

2 Um exemplo do benchmarking em pequenas cidades pode-se visualizar


na repetição de formas urbanas em cidades litorâneas nordestinas
do Brasil, as quais competem entre si pela atração turística.

20
Planejamento estratégico e benchmarking:
Montevidéu na competição urbana

tende a se perpetuar na medida em que, “uma vez aplicada


à inovação, existe uma série de efeitos multiplicadores cujas
vantagens competitivas chegam às cidades que primeiramente
adotam as inovações” (CAPEL, 1998, p. 207).
É exatamente por isso que há uma tendência de continui-
dade da colocação das principais cidades mundiais nos primei-
ros lugares do ranking de recebimento de fluxos turísticos, de
investimentos, de concentração de negócios, entre outros. Nesse
processo, os investimentos não podem parar, tendo em vista que
o modelo adotado demanda a continuidade da busca insaciável
pelos diferenciais competitivos. Como observa Capel (1998), é um
processo circular e cumulativo: as grandes cidades do século
passado seguem assim como focos do desenvolvimento econô-
mico. Portanto, quando algumas cidades alcançam uma posição
dominante na hierarquia urbana, se mantêm nessa posição, e a
mudança do quadro é improvável. Como, então, se pode pensar
que é possível que qualquer cidade possa se projetar internacio-
nalmente encontrando os primeiros lugares dessa competição?
A via que as cidades dos países subdesenvolvidos acaba-
ram pegando foi a da imitação. Mesmo não tendo a capacidade
de ascender no ranking de cidades como Bilbao (por meio dos
investimentos em grandes projetos urbanos e arquitetura de
grife), ou cidades como Kuala Lumpur, Taipei, Shanghai, Dubai
e Abu Dhabi (que investiram pesadamente em espetaculariza-
ção), as cidades latino-americanas buscam imitar as práticas
de produção do espaço gestadas no contexto do planejamento
estratégico de cidades, ao invés de buscar seu próprio caminho
em um autêntico desenvolvimento endógeno. Como afirma
Silva (2012, p. 298):
As cidades que não estão na ponta do processo de fluxos
globais, assim, incorporam o empreendedorismo apenas
como uma roupagem, isto é, não conseguem desempenhar
as funções de uma cidade global ou não participam da dinâ-
mica global de forma preponderante. Na verdade, apenas
vão imitando as tendências e adaptando as suas realidades.

21
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Em quase todas as cidades, se vê em maior ou menor


escala: revitalização dos centros históricos; espetacularização
com arquitetura de grife; construção de arenas esportivas
monumentais; priorização de gastos em atributos turísticos
como centros de convenções e negócios, embelezamento de
avenidas, canteiros e das principais vias de acesso dos aero-
portos às áreas turísticas e nobres; tentativa de sediar eventos
esportivos como jogos olímpicos de verão e de inverno, Copa do
Mundo de Futebol, entre outros, bem como eventos de negócios,
gastronomia, lazer etc. Enfim, são vários atributos ou elementos
que as cidades produzem no intuito de inserirem-se na vitrine
da competição global.
Esses atributos formam o processo de espetacularização
da experiência urbana, no qual as pessoas vão perdendo sua
cidadania em troca do orgulho e do sentimento de pertença à
cidade objeto de espetáculo (VAINER, 2009). Segundo Sánchez
(2010, p. 470), “na cidade-espetáculo, o permanente acionamento
de imagens urbanas como estratégia legitimadora do poder se
constitui em afirmação da aparência”.
A crítica ao modelo parte da premissa de que a cidade
não deve ser vista como uma mercadoria a ser vendida para
uma demanda solvável, como alerta Vainer (2009), mas, antes
de tudo, deve ser concebida na sua importância do valor de
uso que tem para a população local. Foi se tornando uma mer-
cadoria, por exemplo, que certos ambientes de Barcelona se
tornaram inviáveis para a população local, posto que se encontre
totalmente ocupada pelo enorme fluxo turístico, como Las
Ramblas, que legalmente não podem receber manifestações de
protestos de cidadãos de Barcelona por se constituírem como
ruas turistificadas.
Em se tratando de turistificação, a revitalização aparece
como ferramenta para recontar a história do lugar no intuito de
atrair turistas, vendendo os centros históricos desgastados pelo
tempo. Contudo é questionável essa reinvenção, tendo em vista

22
Planejamento estratégico e benchmarking:
Montevidéu na competição urbana

que “a revitalização é muito mais um produto social subsidiado


pelo Estado que alguma iniciativa mágica, orgânica, de lugar”
(GOTTDIENNER, 1997, p. 72). Ora, como a revitalização seria
orgânica e de lugar se é concebida como um procedimento padrão
replicado em todas as cidades que o queiram fazer? É uma espécie
de banalização do lugar. Nas palavras de Guy Debord (1997, p. 112):
Subproduto da circulação das mercadorias, o turismo, cir-
culação humana considerada como consumo, resume-se
fundamentalmente no lazer de ir ver o que se tornou banal.
O planejamento econômico da frequência de lugares dife-
rentes já é em si a garantia de sua equivalência. A mesma
modernização que retirou da viagem o tempo, lhe retirou
também a realidade do espaço.

Encontra-se aí o maior desafio para as cidades contem-


porâneas: o de ultrapassar a monotonia e a banalidade para
conseguir alcançar vantagens competitivas. Uma cidade, uma
vez estabelecida dentro dos padrões do planejamento estra-
tégico, não pode desacelerar o ritmo de reconstrução da sua
imagem a partir da (re)criação de símbolos, monumentos e
outros adereços. Uma vez que assim procede, perde importância
para outras cidades.
Outro ponto elementar é o resultado dessa competição
entre cidades, no qual o planejamento estratégico de cidade
tem trazido a ampliação das desigualdades entre elas. Os que
pensam ser possível tornar todas as cidades competitivas sem
que haja perdas a outras cidades parecem esquecer a observação
de Marx de “que o capital cresce enormemente num lugar, numa
única mão, porque foi, em outros lugares, retirado de muitas
mãos” (SMITH, 1988, p. 212). Pensar a competição de cidades
e ignorar as desigualdades que esse processo gera é um grave
erro. Isso pode ser explicado à luz da teoria do desenvolvimento
desigual, segundo a qual
O capital se move para onde a taxa de lucro é máxima (ou,
pelo menos, alta), e os seus movimentos são sincronizados
com o ritmo de acumulação e crise. A mobilidade do capital

23
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

acarreta o desenvolvimento de áreas com alta taxa de lucro e


o subdesenvolvimento daquelas áreas onde se verifica baixa
taxa de lucro (SMITH, 1988, p. 212).

A guerra dos lugares, ampliada a partir da ação do plane-


jamento governamental, amplia as desigualdades entre cidades,
mas também na escala intraurbana, tendo em vista que as
obras e os investimentos que chegam às cidades, na verdade, se
concentram nas áreas turísticas ou onde residem as populações
de mais alta renda, enquanto as populações de menor poder
aquisitivo ficam à margem dessas transformações.

O caso de Montevidéu
No âmbito da difusão do planejamento estratégico de
cidades por parte de empresas de consultorias que faziam alusão
ao sucesso de Barcelona, cidades da América Latina aderiram
ao “novo modelo” de planejamento urbano. Aspectos como
descentralização dos Estados, aumento da legitimidade e poder
de decisão dos governos locais, abertura econômica, fomento
de parcerias do setor público com o setor privado, entre outros,
estavam na esteira das discussões do planejamento urbano
latino-americano.
Desse modo, as grandes cidades latino-americanas emergem, na
década de 90, como atores políticos e econômicos. A consolida-
ção deste novo papel dependerá da possibilidade de estímulo de
grandes projetos de cidade que contem com uma participação
ativa dos principais agentes públicos e privados e conquistem
um amplo consenso público (CASTELLS; BORJA, 1996, p. 154).

Segundo José Güell (2007), o plano pioneiro na América


Latina foi elaborado no Rio de Janeiro com o objetivo de apro-
veitar a internacionalização da economia em meados da última
década do século XX. A partir dessa experiência, outras cidades
aderiram ao planejamento estratégico, como mostram Xavier
Sánchez (2003) e Güell (2007): Santiago do Chile, Cartagena das
Índias, Montevidéu, Havana e Bogotá, além de várias outras cida-
des de nível intermediário, como Londrina, Fortaleza e Juiz de

24
Planejamento estratégico e benchmarking:
Montevidéu na competição urbana

Fora, no Brasil; Rosário, Córdoba e Rafaela, na Argentina; Tijuana


e Mérida, no México; Medellín e Bucaramanga, na Colômbia;
San Pedro Sula, em Honduras e Santiago de los Caballeros, na
República Dominicana.
O Uruguai aderiu às reformas políticas de abertura econô-
mica durante esse período. Seguindo a tendência internacional,
a cidade de Montevidéu, a qual concentra a metade da popula-
ção do país, tornou-se empreendedora, com os planejamentos
estratégicos, sobretudo para sanar os problemas econômicos
oriundos das crises da Argentina e do Brasil. Apesar da adesão do
Uruguai ao Consenso de Washington, houve resistência por parte
da população às privatizações, como no caso da Administração
Nacional de Telecomunicações (ANTEL), empresa estatal de
telecomunicações. Embora seja ainda uma empresa estatal
– tendo em vista que o desejo da população foi atendido por
plebiscito – as características de espetacularização (utilizadas
no planejamento estratégico) estão presentes na arquitetura do
edifício-sede da empresa (Figura 1), e nem sempre as medidas
tomadas são de acordo com os interesses da classe trabalhadora
(Figura 2).
O desenvolvimento urbano de Montevidéu se deu, até o
início do século XX, na região costeira próxima à Baía, na qual
se concentravam as principais atividades, devido à proximidade
com o porto, bem como ferrovias, usinas de energia elétrica,
refinaria de combustível e, por fim, os frigoríficos (GILMET,
2001). Essa dinâmica urbana de concentração das atividades
e da população nas proximidades da Baía alterou-se, como
explica Gilmet (2001, p. 6):
A partir de 1920, com o acelerado crescimento urbano de
Montevidéu e as mudanças nas preferências e comporta-
mentos sociais por parte da população mais privilegiada, a
cidade começou a apresentar uma expansão em direção leste,
sobre a área costeira. Hoje este crescimento transcende os
limites do departamento de Montevidéu. Como consequência,
as áreas residenciais próximas à Baía sofreram um processo
de abandono e perderam prestígio social.

25
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Figuras 1 e 2 – Edifício-sede da Administração Nacional de Telecomunicações


(ANTEL) e faixa dos trabalhadores reivindicando contra o desconto no salário

Fonte: acervo do autor (2014)

Desde os anos 1980, inicia-se um processo de reabilitação


da Ciudad Vieja, com o objetivo de inibir o referido abandono
da área. Com vistas ao desenvolvimento da cidade, e buscando
eficácia na tomada de decisões de caráter político, Montevidéu
elaborou o seu planejamento estratégico a partir de 1994, enfo-
cando os elementos já conhecidos pela literatura do tema: ela-
boração de parcerias entre o setor público e privado, bem como
a preocupação com a qualidade ambiental, com o bem-estar
social, com a disponibilidade e uso do solo, com as atividades
econômicas, com a capacidade de gestão, entre outras.

26
Planejamento estratégico e benchmarking:
Montevidéu na competição urbana

A receita de sucesso interpelada pelos consultores utili-


zava o discurso de que deveria haver a participação da população
somada à eficácia na gestão, o que apenas os planos estraté-
gicos poderiam realizar. A lógica do planejamento estratégico
propunha, assim, o consenso público entre os diversos setores
da sociedade, como se houvesse um interesse único na cidade,
ou seja, como se não houvesse uma intensa disputa de agentes
pelo controle das decisões segundo seus próprios interesses.
No caso brasileiro, explica Fernanda Sánchez (1999, p. 127) que:
O discurso oficial que acompanha as novas políticas destaca,
com ênfase, a vontade de envolver os cidadãos nos projetos
de renovação urbana. De fato, criaram para a maioria da
população um sentimento de orgulho e de “pertencimento”
à cidade, mas esse sentimento gera, mais do que uma partici-
pação ativa, uma participação contemplativa da nova cidade.
“Com efeito, pensamos que a assistência ao espetáculo cria
uma ilusão de participação”.

O resultado do chamado planejamento estratégico pode


ser visto, da mesma forma, na cidade de Montevidéu, sobrema-
neira mediante a leitura do seu tecido urbano, repleto de obras
de embelezamento voltadas para o público externo. A cidade,
que almejava se tornar uma espécie de Bruxelas3 do Hemisfério
Sul, foi recebendo investimentos para tornar-se atrativa ao
capital externo, principalmente no que diz respeito à atividade
turística. Por isso, foram feitas reconstruções de calçadões,
especialmente a Rambla, um calçadão de 22 km que beira o Rio
de la Plata; revitalização do centro histórico, a Ciudad Vieja; bem
como restauração de parques e espaços públicos, que hoje são
motivo de orgulho para os habitantes da cidade. Montevidéu,
com isso, buscava se destacar na competição urbana.
Nesse sentido, é válido retomar a preocupação de Smith
com o vaivém do capital. O autor demonstra a capacidade do

3 O ex-prefeito de Montevidéu, Mario Araña, desejava tornar Montevidéu


a sede administrativa do Mercosul, o que conseguiu com o passar
dos anos.

27
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

capital de reconstruir a geografia da cidade a partir dos seus


interesses, quando busca maiores lucros, gerando, por exemplo,
um retorno ao centro da cidade com as revitalizações:
O centro da cidade, que estava subdesenvolvido com a suburba-
nização da capital, agora se torna um novo lugar de desenvol-
vimento (ou melhor de re-desenvolvimento). A reestruturação
contemporânea dos Estados Unidos e, em menor escala, das
cidades europeias, envolve a concentração no centro urbano de
usos de solos recreacionais e residenciais de classe média alta,
juntamente com atividades profissionais e administrativas e
aumento na suburbanização das atividades industriais e das
atividades rotineiras de escritório (SMITH, 1988, p. 215).

Quadro parecido com o mencionado por Smith, no que


diz respeito à reestruturação produtiva nos Estados Unidos
e na Europa, pode-se ver espalhado por várias cidades dos
países subdesenvolvidos (ou explorados, para usar o termo
de Castells (1983). A área do principal porto da cidade de
Montevidéu é uma demonstração desse quadro. Apesar de
contar ainda com atividades portuárias intensas, a área tem
recebido vários turistas no decorrer dos anos, o que tem
contribuído para alavancar a economia do país, na medida
em que o turismo já chegou a ultrapassar a exportação de
carne, que é um dos setores de maior importância e orgulho
para o povo uruguaio.
O centro histórico passa por um período de efervescência
na dinâmica imobiliária, e casarios antigos são colocados à
venda devido ao processo de revitalização e animação do bairro,
como se pode ver na Figura 3. O ano de 1999 marcou o início
da reabilitação integral da Ciudad Vieja. Foram feitos percursos
para os pedestres, obras no Parque Linear do Porto da Rambla,
a instalação do Museu do Carnaval, bem como o Complexo
Cultural Alberto Wall, entre outros programas de recuperação
do patrimônio arquitetônico e da economia local.
É importante compreender que a atividade turística, para
além dos atrativos para os visitantes, demanda “implementar

28
Planejamento estratégico e benchmarking:
Montevidéu na competição urbana

uma infraestrutura básica para a população local, inserindo-a


na atividade e valorizando seus hábitos, costumes e práticas.
Sem esta preocupação, acredita-se que a população tende a se
sentir alijada do processo” (CAMPOS, 2009, p. 3).
Enquanto os turistas tomam as ruas da cidade, a classe
operária de Montevidéu vive longe das áreas centrais e precisa se
deslocar pelo menos uma hora para chegar ao local de trabalho,
tendo em vista que nas principais áreas da cidade vivem somente
os que possuem melhor poder aquisitivo ou trabalhadores que
vivem em condições precárias.
Além disso, o poder público incentiva os investimentos
privados na área. Assim, turistas que fazem passeios pelo cen-
tro histórico ficam hospedados em hotéis nas imediações ou
chegam pelos cruzeiros que atracam no porto, para aproveitar
a animação dos bares e restaurantes do entorno, fazer compras
desde grifes até souvenires (Figura 4).
O setor privado tem investido em outras áreas da cidade,
como é o caso do complexo empresarial World Trade Center,
construído sobre a costa da cidade, em Pocitos. A área vem se
transformando a partir da ação dos agentes privados, como
demonstra Pérez Piñeyro (2001, p. 7):
O responsável pelo programa administra três dos quatro
principais “shoppings” da cidade. Quando foi instalado um
deles – o “Montevidéu Shopping” – nas proximidades do
novo “complexo empresarial”, a zona constituía um tran-
quilo bairro residencial frente à enseada de um pequeno
porto de transporte. Hoje aborda um acelerado processo de
terceirização, e muitas das habitações são transformadas
em lugares comerciais.

Mesmo que os planos estratégicos motivem uma


mudança do quadro para uma “Montevidéu que queremos”,
mais justa e com bem-estar social e ambiental, as soluções
passam, ainda, pelas parcerias público-privadas, bem como
por projetos arrojados para impactar a economia local, como

29
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

o emblemático Aeroporto Internacional de Carrasco, dese-


nhado por Rafael Viñoly – arquiteto uruguaio de destaque
no cenário internacional. Outros projetos previstos, ou em
fase de implantação, são a Antel Arena, que se tornará uma
arena multifuncional flexível para receber diversos eventos,
bem como o Complexo Novo Centro, da iniciativa privada, que
objetiva dinamizar uma nova área unindo o uso residencial
ao de negócios, bem como impulsionar a dinâmica imobiliária
do entorno.

Figuras 3 e 4 – Casarios postos à venda com a revitalização


da Ciudad Vieja, de Montevidéu, a qual recebe grande
número de turistas vindo em cruzeiros

Fonte: acervo do autor (2014)

30
Planejamento estratégico e benchmarking:
Montevidéu na competição urbana

Em Punta del Este – um dos balneários de luxo mais


famosos do mundo que se localiza próximo a Montevidéu –,
a forte presença do capital imobiliário atrelada à soma de
investimentos no local valorizou a área a tal ponto que os uru-
guaios são minoria no local. A maior parte dos investimentos
imobiliários na cidade é de estrangeiros, sobretudo argentinos
e brasileiros, que chegam a comprar casas no valor de US$
7.000.000,00 (sete milhões de dólares americanos). Enquanto
isso, dificilmente se pode encontrar os habitantes originais
da região (pescadores, sem contar os anteriores, indígenas),
mas na entrada da cidade ainda se pode encontrar habitações
simples (Figuras 5 e 6).
Todas as decisões que estão sendo tomadas em Montevidéu
para dinamizar a economia local e favorecer a ascensão da
cidade no ranking global estão levando ao afastamento da popu-
lação local para as franjas da cidade. Mesmo inserindo-se no
discurso de vanguarda pela qualidade de vida e melhoria das
infraestruturas, o aumento do preço do solo decorrente dos
investimentos em projetos emblemáticos, tendencialmente,
leva ao processo de expulsão da população originária, que não
consegue suportar o alto custo de vida local. Desse modo, se
faz necessário repensar tal modelo adotado em Montevidéu,
bem como na maioria das grandes cidades da América Latina.

Considerações finais
O que se tem chamado de “via montevideana de pla-
nejamento estratégico urbano” não passa do mesmo modelo
adotado em várias municipalidades do mundo inteiro, seguindo
o Consenso de Washington e suas diretrizes. A adesão ao modelo
do planejamento estratégico de cidades apresenta as caracte-
rísticas similares ao que vem ocorrendo no mesmo período,
por exemplo, no Rio de Janeiro.
É inegável a importância que o turismo adquiriu na
cidade uruguaia, como em tantas partes do mundo, devido à

31
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

atração de turistas e à dinamização da economia. A atividade


turística emprega considerável parcela da população das
cidades e contribui para o desenvolvimento urbano. Contudo,
é preciso lembrar que, ao buscar vantagens competitivas,
uma cidade acaba por deixar outras cidades para trás. Então,
mesmo que a atividade turística empregue uma gama de
profissionais, outros tantos se encontram desempregados
em outra cidade que não possui as mesmas belezas natu-
rais ou capacidade de investimento para tornar-se polo de
atração turística.

Figuras 5 e 6 – Área com residências improvisadas


próximo à entrada de Punta del Este

Fonte: acervo do autor (2014)

32
Planejamento estratégico e benchmarking:
Montevidéu na competição urbana

Urge encontrar uma via de desenvolvimento que não


leve em conta apenas o valor de troca da cidade, mas que se
preocupe com uma maior parcela da população, a qual muitas
vezes nem consegue viver na cidade pelo elevado custo de vida.
Com isso se quer dizer que, apesar da importância do turismo,
não se pode pensar o desenvolvimento urbano apenas a partir
dessa atividade, tendo em vista que muitos habitantes ficam de
fora das melhorias nas cidades que são voltadas apenas para
os turistas solváveis.

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Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

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34
As centrais de abastecimento
alimentar e a reestruturação do
território: o caso da Ceasa-RN
Thiago Augusto Nogueira de Queiroz1

Introdução

A reestruturação do território corresponde às transformações


sociais e espaciais que conduzem às novas dinâmicas que se
sobrepõem, justapõem e contrapõem às velhas dinâmicas e
tem uma dimensão econômica, política e cultural. A dimensão
econômica sugere as modernizações tecnológicas do processo de
circulação de capital (produção, distribuição, troca e consumo)
e as mudanças nas relações de trabalho. A dimensão política
refere-se às mudanças das ações do Estado e suas instituições.
A dimensão cultural refere-se às transformações da ideologia
dominante e dos hábitos culturais proporcionados por esse
processo (MOREIRA, 2002).
O território não é formado apenas pela territorialidade do
Estado e por suas instituições, como na concepção tradicional.
Ele é constituído também pela territorialidade do capital e suas
firmas, e pelos demais agentes sociais. As territorialidades são
as relações de poder entre esses agentes e entre eles e o espaço,

1 Doutorando em Geografia (Universidade Federal do Rio Grande do


Norte). Professor de Geografia (Instituto Federal do Rio Grande do
Norte), campus São Paulo do Potengi.

35
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

ou seja, são os diferentes usos e a apropriação do espaço pelos


agentes que dele fazem parte. O território é posterior ao espaço,
ou seja, é a materialização do espaço, que é uma abstração.
Enfim, o território é formado por tessituras ou estruturas
(econômicas, políticas e culturais), por pontos ou lugares, por
linhas ou redes (RAFFESTIN, 1993). O território, dialeticamente,
tem um importante papel no processo de reestruturação, sendo,
simultaneamente, um reflexo e meio, um produto e produtor,
um condicionado e condicionador, dessas transformações eco-
nômicas, políticas e culturais.
As centrais de abastecimento alimentar, as Ceasas, são
pontos ou lugares, no território, que promoveram e promovem
uma reestruturação econômica, política e cultural no território,
principalmente no que tange à circulação de hortifrutigran-
jeiros no Brasil. Esses lugares estão interligados aos outros
pontos do território, formando as linhas ou redes territoriais.
A territorialidade das Ceasas está em conflito e em cooperação
com as territorialidades dos supermercados, hipermercados,
atacadistas, feiras livres, mercados públicos, entre outros agen-
tes. Esses conflitos e cooperações, entre os diferentes agentes,
são o que dinamizam o território.
Nesse contexto, este capítulo tem como objetivo mostrar
a função das centrais de abastecimento alimentar na rees-
truturação do território brasileiro, com o estudo de caso da
Ceasa-RN. Para tal fim, utilizaram-se como procedimentos meto-
dológicos a revisão de literatura em livros, teses, dissertações,
monografias e artigos, como também a pesquisa documental
junto à Associação Brasileira das Centrais de Abastecimento
(Abracen), à Companhia Nacional e Abastecimento e à Central
de Abastecimento S. A. do Rio Grande do Norte (Ceasa-RN).
Esses procedimentos deram suporte teórico e metodológico
para a compreensão da dimensão econômica, política e cultural
da reestruturação do território provocada pelas centrais de
abastecimento alimentar no Brasil.

36
As centrais de abastecimento alimentar e a reestruturação do território: o caso da Ceasa-RN

Este capítulo está divido em duas partes. Na primeira


parte, intitulada As centrais de abastecimento alimentar e a reestru-
turação do território, discute-se sobre o surgimento, a evolução
e a situação atual das centrais de abastecimento alimentar no
Brasil, destacando o papel desse agente na reestruturação do
território da circulação de hortifrutigranjeiros. Na segunda
parte, O caso da Ceasa-RN, demonstra-se como a Ceasa-RN, uma
das centrais de abastecimento do Brasil, promoveu e promove a
reestruturação do território, especificamente a dinâmica urbana
e regional, focalizando suas relações com os agentes produtores
agrícolas, com os supermercados, hipermercados, atacadistas,
mercados públicos e feirantes, como também, com os agentes
do capital que fazem parte desse entreposto de abastecimento.

As centrais de abastecimento alimentar


e a reestruturação do território
No final da década de 1960, a estrutura do abastecimento
alimentar, no Brasil, era constituída por três instituições cria-
das em 1962: a Superintendência Nacional de Abastecimento
(Sunab) – órgão executivo do abastecimento; a Companhia
Brasileira de Alimentos (Cobal) – órgão responsável pela cons-
tituição de estoques, regulação e comercialização de produtos;
e a Companhia Brasileira de Armazenagem (Cibrazem) – que
tinha o objetivo de criar e regular redes de armazém. Os pla-
nos financeiros relativos à produção estavam sob a tutela da
Comissão de Financiamento da Produção (CFP), criada em 1943
(LINHARES; SILVA, 1979).
A ideia da criação das centrais de abastecimento ali-
mentar surgiu com o Grupo Executivo de Modernização do
Abastecimento (Gemab), criado em 1968. No relatório oriundo
das atividades desse grupo, recomendava-se a criação e a implan-
tação de entrepostos de abastecimento nas capitais e nos prin-
cipais núcleos urbanos do país, pois esses centros passavam por
dificuldades de acesso aos alimentos. Os resultados desse grupo

37
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

de estudo também subsidiaram as metas do Primeiro Plano


Nacional de Desenvolvimento (I PND), que foi executado entre
1972 e 1974. Nesse contexto, foram criadas as primeiras centrais
de abastecimento no Brasil, por intermédio da assessoria de
organismos internacionais como a Organização das Nações
Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), e de técnicos dos
Estados Unidos e da Europa. O Segundo PND (II PND), executado
entre 1975 e 1979, também proporcionou a implantação de mais
Ceasas em todo o Brasil (LINHARES; SILVA, 1979).
No contexto da criação dessas centrais em 1972, sob a
responsabilidade da Cobal, foi criado o Sistema Nacional de
Centrais de Abastecimento (Sinac), que tinha como objetivos: a
redução dos custos de comercialização no atacado; a formação
de economias de escala; o melhoramento da qualidade dos pro-
dutos alimentícios, intensificando os serviços de classificação e
padronização dos alimentos; propiciar condições para ampliação
e difusão do Sistema de Informações do Mercado Agrícola (Sima);
a redução dos custos dos comércios varejistas, estimulando os
supermercados; a redução da flutuação da oferta dos produtos
agrícolas, aperfeiçoando os mecanismos de formação de preços
e elevando o nível de renda dos empresários agrícolas; e a busca
pela eliminação gradativa dos problemas urbanísticos (trânsito,
poluição sonora e visual, e insalubridade) decorrentes das feiras
livres (MOURÃO; MAGALHÃES, 2011). Muitos desses objetivos
não foram atingidos, ou foram atingidos apenas em algumas
centrais de abastecimento, em alguns contextos específicos.
Os objetivos do Sinac são, essencialmente, minimizadores
dos custos diretos de transação ao longo do circuito de produção,
por meio da transparência do processo de formação de preços,
da redução da flutuação de preços, da difusão do padrão de
classificação e da redução das deseconomias de aglomeração
resultantes da organização do espaço urbano. Os entrepostos
de abastecimento alimentar promovem vantagens para os
consumidores, produtores e o Estado. Para os consumidores,

38
As centrais de abastecimento alimentar e a reestruturação do território: o caso da Ceasa-RN

há uma redução do tempo de distribuição dos produtos, oferta


de bons produtos, melhor conhecimento informacional do
mercado e melhores preços e, para os produtores, há uma
maior aproximação com o mercado, motivação para melhorar
a qualidade dos produtos, facilidade de operações financeiras
e bancárias, melhorias na prestação de serviços técnicos e de
logística, redução dos custos de comercialização, aumento
da renda agrícola. Por fim, para o Estado, há facilidade na
incrementação e difusão de políticas, facilidade de controle
e fiscalização, redução das deseconomias de aglomerações
urbanas (CUNHA, 2011).
Em 1985, com a redemocratização do Estado brasileiro,
e com os imperativos da ideologia neoliberal, iniciam-se as
discussões, por parte do Governo Federal, das privatizações das
empresas estatais, entre elas, os entrepostos de abastecimento
(MOURÃO; MAGALHÃES, 2011). Era o início do pensamento neoli-
beral que tomava conta do Estado brasileiro e que se consolidou
na década de 1990. Em 1986, o Governo Federal concedeu à Cobal
o poder de transferir os controles acionários das centrais de
abastecimento para os governos estaduais ou municipais; e, em
caso de não concordância por parte dos governos dos estados
federados, os entrepostos seriam transferidos para a iniciativa
privada. Houve, nesse período, a criação de vários editais de
licitação para a compra das centrais de abastecimento, mas
nenhuma empresa se manifestou interessada na compra das
ações, até mesmo porque a comercialização dos produtos já era
privatizada, somente a gestão das centrais era estatal. Além
desse fator, há também a possibilidade de criação de cargos
comissionados e de interesses políticos na gestão das centrais
de abastecimento, o que também poderia ter inviabilizado
as privatizações.
Em 1987, o Governo Federal transferiu todas as ações da
Cobal para a União, fato que consolidou o fim do Sinac. E, em
1988, por não haver ocorrido a privatização das centrais, a União

39
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

transferiu os controles acionários das centrais de abastecimento


do Governo Federal para as instâncias estaduais ou municipais,
ação justificada pela necessidade de descentralização da gestão
(MOURÃO; MAGALHÃES, 2011). No entanto, a descentralização
ocorrida na gestão das centrais, como também ocorreu em
outros setores sociais e econômicos, se restringia apenas à
transmissão da responsabilidade do Governo Federal para os
governos estaduais e municipais. Uma verdadeira descentra-
lização não se restringe a isso, mas vai além, aumentando os
mecanismos democráticos de participação popular, neste caso,
nos entrepostos de abastecimento.
A partir do final da década de 1980, as Ceasas, em sua
maioria, passam a vivenciar problemas estruturais, a saber:
deterioração e obsoletismo das estruturas de mercado; defi-
ciência na infraestrutura de apoio; perda de competitividade;
redução da oferta de recursos humanos especializados; baixo
uso de tecnologias da informação; falta de modernização da
gestão e da operacionalização logística; deficiência na visão
estratégica; e falta de integração entre os agentes envolvidos no
processo de produção, distribuição e consumo (ZEITUNE, 2011).
Outros problemas inerentes à extinção do Sinac foram:
decadência de ações técnicas; falta de qualificação dos funcio-
nários; cessão das áreas de expansão para terceiros; prolife-
ração de agentes ineficientes; varejo mesclado com o atacado;
degradação física das instalações; falta de limpeza e higiene;
reduzido avanço na qualidade dos produtos, como também na
classificação e padronização das embalagens. Faltou ainda um
rumo para os produtores de hortigranjeiros comercializarem
seus produtos; a não participação dos produtores em feiras,
fóruns e debates sobre hortigranjeiros; os novos pavilhões
e as novas centrais de abastecimento implantadas em locais
inadequados ou construídas sem a observação de critérios
técnicos; a não renovação da equipe técnica; o desvirtuamento
dos objetivos da organização; e a não evolução dos trabalhos

40
As centrais de abastecimento alimentar e a reestruturação do território: o caso da Ceasa-RN

técnicos, dos dados estatísticos e das informações de mercado.


Em meio aos inúmeros aspectos negativos apontados, algumas
centrais tiveram melhoras na eficiência, incluindo atividades
complementares, avançando na informatização, sendo centro
de referência para o setor de hortigranjeiro de alguns estados
(MOURÃO; MAGALHÃES, 2011).
Com o processo de descentralização da gestão, cada
estado federado passou a administrar de forma particular
sua Central de abastecimento. Em 1987, foi criada, na tentativa
de manter a unidade sistêmica, a Associação Brasileira das
Centrais de Abastecimento (Abracen), que é filiada a World
Union of Wholesale Markets (WUWM) e à Federação Latino-
Americana de Mercados de Abastecimento (Flama). Em 1990, o
Governo Federal criou a Companhia Nacional de Abastecimento
(Conab), vinculada ao atual Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento (Mapa), e originada da fusão da Cobal com a
CFP e com a Cibrazem. Na década de 1990, houve uma maior
estabilidade e não teve grandes acontecimentos em relação
ao abastecimento alimentar. Até o final dessa década, pode-
-se mencionar como importante apenas a extinção da Sunab,
em 1998, pois essa instituição não exercia, naquele contexto,
nenhuma função no abastecimento depois da reestruturação
institucional das Ceasas, em um contexto no qual a Conab já
exercia o papel anteriormente atribuído à Sunab (MOURÃO;
MAGALHÃES, 2011).
O abastecimento alimentar, no Brasil, no final do
século XX, era constituído: pela Conab, que tem a função de
armazenar e estocar grãos, além de subsidiar as políticas agrí-
colas e regulamentar o mercado, a partir de um sistema de
informação em rede com as centrais de abastecimento; pela
Abracen, uma associação que reúne, em termos organizacionais,
a partir de um sistema de informação, as Ceasas, além de norma-
tizá-las tecnicamente; e, por fim, pelas centrais que executam o
abastecimento, principalmente, de produtos hortifrutigranjeiros

41
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

distribuídos para os supermercados, hipermercados, atacadistas,


mercados públicos, mercadinhos, as feiras livres, mercearias
e quitandas.
No início do século XXI, uma nova variável passa a ser
objetivada pelo abastecimento alimentar: a segurança alimen-
tar e nutricional. Tal variável tornou-se mais forte quando o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) focou, na
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-2004), o
referido tema. Tal termo foi criado pelos agentes hegemônicos
e homogeneizadores do padrão e do comportamento social,
entre eles a Organização das Nações Unidas para a Agricultura
e Alimentação (FAO-ONU), e serve para camuflar ou travestir a
problemática da fome e da miséria do mundo. No entanto, uti-
liza-se esse termo, neste trabalho, correndo-se o risco de entrar
em contradição, com a finalidade de mostrar empiricamente
o problema da circulação e do acesso ao alimento no Brasil.
A segurança alimentar, na concepção colocada pelo IBGE
(2004), é apenas um dado quantitativo, “acesso regular e perma-
nente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem
comprometer o acesso a outras necessidades essenciais”. Nessa
perspectiva, o IBGE trabalha a questão da segurança alimentar
de maneira meramente quantitativa. O Instituto busca saber
se, no domicílio entrevistado, a comida acabou antes de ter
dinheiro para comprar mais ou se algum indivíduo ficou sem
se alimentar devido à falta de dinheiro. A segurança alimentar
deve ser entendida em sua totalidade econômica, política e
cultural, não sendo apenas uma questão meramente de ter
o alimento, pois não deve estar restrita apenas ao problema
da fome, devendo-se levar em consideração: a obesidade; a
quantidade necessária, por pessoa, de nutrientes diários, como
carboidratos, proteínas e lipídios; a forma como os alimentos
adquiridos são produzidos, considerando a importância da
mão de obra familiar e da agricultura orgânica, sem uso de
agrotóxicos; e os preços dos alimentos muitas vezes altos devido

42
As centrais de abastecimento alimentar e a reestruturação do território: o caso da Ceasa-RN

ao transporte e ao número elevado de intermediários e atra-


vessadores para chegar ao consumidor final (PECHTOLL, 2011).
O diagnóstico, feito pelo IBGE, da insegurança alimentar
no Brasil, proporcionou a criação, em 2006, do Sistema Nacional
de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), que tinha como
objetivo formular e aplicar políticas de segurança alimentar,
como, por exemplo, o Plano Nacional de Segurança Alimentar,
sendo as ações desse sistema e dos planos de segurança ali-
mentar gerenciados pelo Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional, no âmbito da Secretaria Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional, que faz parte do Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Portanto, toda
uma ideologia da busca pela segurança alimentar e do combate
à desnutrição e à obesidade se propagou em torno das políticas
públicas brasileiras de abastecimento.
Essas políticas voltadas para a segurança alimentar leva-
ram um novo desafio para as centrais de abastecimento. Nessa
perspectiva, a insegurança alimentar está associada a duas
dimensões de abastecimento alimentar: a circulação (produção,
distribuição, troca, consumo) de alimentos – um componente
político e econômico; e as práticas alimentares (o quê, onde,
quando e como cada indivíduo se alimenta) – sendo este um
componente cultural da (in)segurança alimentar (PECHTOLL,
2011). Assim, as Ceasas passam a ter um importante papel na
circulação de alimentos, dando acesso a diferentes tipos de
alimentos, a diversos grupos sociais e a diversos lugares.
Os novos desafios das políticas de abastecimento alimen-
tar no século XXI são: assumir a política de segurança alimentar
e nutricional como estratégia; regular e construir um modelo
de abastecimento socialmente justo; gerir os equipamentos
públicos (os entrepostos), adequando-os à inspeção da vigi-
lância sanitária; subsidiar os programas de abastecimento; e
estimular os circuitos espaciais de produção locais e regionais
(PECHTOLL, 2011).

43
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Em 2005, os entrepostos de abastecimento já se tornavam


uma barreira à acumulação de capital, pois já não atendiam aos
anseios tecnológicos e de circulação dos agentes hegemônicos.
Na busca por uma maior eficiência da circulação de alimentos
no Brasil, e também com o objetivo de garantir a segurança
alimentar e nutricional, o Governo Federal volta a investir nas
centrais de abastecimento, com a criação do Programa Brasileiro
de Modernização do Mercado Hortigranjeiro (Prohort), no
âmbito da Conab.
O Prohort tem como objetivos desenvolver e integrar
os bancos de dados estatísticos das Ceasas; universalizar as
informações geradas; modernizar o processo de gestão técnica
e administrativa das centrais; estimular a agregação de tecno-
logia às cadeias produtivas, de acordo com as exigências dos
consumidores; modernizar a infraestrutura física e técnica;
modernizar os serviços de apoio; incentivar as interações das
centrais de abastecimento com as universidades, órgãos de
pesquisas e organizações não governamentais; e ampliar as
funções das centrais, tornando-as áreas privilegiadas para a
execução de políticas públicas de abastecimento e de segurança
alimentar (SILVA JÚNIOR, 2011). Esses objetivos do Prohort
não foram atingidos em todas as Ceasas. Somente algumas,
as maiores, e em alguns contextos específicos, atingiram essa
modernização preterida.
Portanto, os objetivos do Prohort tinham como princi-
pais linhas de modernização tecnológica: a informatização e a
agregação de dados das Ceasas, assim como a inovação tecno-
lógica da infraestrutura física dessas centrais. Na prática, essa
ideia da inovação da tecnologia da comunicação e informação,
integrando os dados dos entrepostos do Brasil, se materializou,
após 2008, com a criação do Sistema Informações Setoriais de
Comercialização (Siscom). Esse sistema se constitui em uma
base de dados da Conab que contém informações sobre a movi-
mentação física e financeira das centrais de abastecimento,

44
As centrais de abastecimento alimentar e a reestruturação do território: o caso da Ceasa-RN

demonstrando a comercialização mensal e anual das centrais,


os gráficos regionais, mensais, anuais e comparativos, além
dos relatórios fornecidos pelas centrais. Além do Siscom, está
em funcionamento o Sistema de Informação de Mercados de
Abastecimento do Brasil (Simab) e o Sistema de Informação
de Preços Diários (SISPRD), sendo, esses dois últimos, siste-
mas de acesso exclusivo aos técnicos das Ceasas, mas que são
importantes para a integração nacional, a formação da rede
de entrepostos de abastecimento no Brasil (CAMPOS, 2011).
As centrais de abastecimento alimentar, portanto, ao
longo desses anos, desde a sua criação, estruturam e reestru-
turam o território, principalmente em relação à circulação de
hortifrutigranjeiros. O sistema brasileiro das Ceasas é com-
posto por 41 instituições gestoras – das quais 26 estão filiadas
à Abracen – e por 72 entrepostos distribuídos em 22 unidades
da federação.
Do total de entrepostos, 50% estão localizados na região
Sudeste, 27% no Nordeste, 16% no Sul, 6% no Centro-Oeste,
e 1% no Norte, evidenciando-se o desenvolvimento desigual
e combinado do território brasileiro, ou seja, as desigualda-
des territoriais persistem. Há uma concentração nas regiões
Sudeste e Sul (espaços que mandam; frequentemente, velo-
zes, fluidos, luminosos), e uma rarefação nas demais regiões
(espaços que obedecem; geralmente, lentos, viscosos, opacos).
As instituições gestoras se apresentam sob diversos formatos
jurídicos, sendo duas federais, 15 estaduais, 19 municipais, cinco
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) ou
conveniadas. Na época da elaboração desse relatório da Conab,
em 2009, também estavam sendo construídos os entrepostos
de Rio Branco-AC, Colatina-ES, São Mateus-ES, Boa Vista-RR,
Barbalha-CE, Ubarana-PR e Mossoró-RN. Há uma concentração
de instituições e de entrepostos na Região Concentrada (Sudeste
e Sul do Brasil), que detém um total de 66% dos entrepostos
(CONAB, 2009). Contraditoriamente, há uma escassez nas demais

45
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

regiões, fruto de um “desenvolvimento geográfico desigual”,


de um “desenvolvimento desigual e combinado”.
Além da função de abastecimento de produtos hortifru-
tigranjeiros, as Ceasas desempenham outros papéis e serviços
associados a programas dos governos federal, estaduais e muni-
cipais, em meio aos ditames do atual período, como, por exemplo,
o armazenamento de grãos, alimentação escolar, varejo fixo
(sacolões), feiras. Além disso, desempenham programas sociais
como bancos de alimentos, sopa industrializada, assistência ao
produtor no campo e nos entrepostos, orientações nutricionais,
educação de jovens e adultos e telecentros, não se restringido
apenas à distribuição atacadista de alimentos. Essa diversidade
é fornecida de acordo com as necessidades e o empenho de
cada central de abastecimento existente. Da mesma forma,
não são todas as centrais que desempenham essa diversidade
de funções, sendo que algumas Ceasas não exercem nenhuma
função específica além do abastecimento de hortifrutigranjeiros.
A Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo
(Ceagesp-SP) é formada por 13 entrepostos, sendo responsável
por quase 24% da circulação desse tipo de produto no país, con-
siderando apenas as centrais de abastecimento. A concentração
tecnológica e informacional das regiões Sul e Sudeste é notada
com a densidade de centrais de abastecimento e no volume
total de produtos que circulam nessas regiões. Por exemplo,
a Ceagesp-SP (13 entrepostos), a Ceasa-RJ (cinco entrepostos),
a Ceasa-MG (seis entrepostos) e a Ceasa-PR (cinco entrepos-
tos), as hipercentrais de abastecimento, são responsáveis pelo
volume de quase 53% da circulação de todas as centrais no
Brasil (CONAB, 2009).
Entre as técnicas existentes no sistema de padronização
das Ceasas, direcionadas pelo Prohort, destacam-se: a logística
da infraestrutura física e a de perecíveis; os procedimentos para
higienização de frutas, legumes e verduras (FLV); a padronização,
classificação e rotulagem de FLV; os cuidados no armazenamento,

46
As centrais de abastecimento alimentar e a reestruturação do território: o caso da Ceasa-RN

manuseio e comercialização de FLV; as pesquisas sobre a taxa de


perecibilidade de FLV; as pesquisas sobre a importância de FLV
para a saúde; o uso correto de embalagens para FLV; a gestão
ambiental por meio do gerenciamento de resíduos sólidos; as
relações contratuais das centrais de abastecimento; a gestão de
pessoas e a gestão social das centrais (ABRACEN, 2011).
Essas normas técnicas que devem ser seguidas por todos os
entrepostos de abastecimento no Brasil também foram eviden-
ciadas no Plano Nacional de Abastecimento (PNA), criado no ano
de 2012, no âmbito da Abracen, e que será posteriormente votado
no Congresso Nacional para aprovação e posterior execução.
O PNA tem como principais eixos norteadores: integração do
PNA com outras políticas públicas; gestão e sustentabilidade
ambiental; modernização da gestão; evolução dos sistemas
de informações das centrais; rastreabilidade dos circuitos
espaciais de produção; evolução da infraestrutura física e de
logística das centrais; integração com feiras livres e mercados
públicos; recuperação das centrais deterioradas; boas práticas
e adequação de embalagens; padronização dos atributos das
frutas, legumes e verduras; inserção de novos segmentos como
peixes, carnes, aves, lácteos, flores e outros; redução de perdas
no circuito espacial de produção alimentar; e reestruturação
da concepção sistêmica do abastecimento alimentar no Brasil
(ABRACEN, 2012).
Portanto, as Ceasas têm como novo desafio a garantia da
segurança alimentar e nutricional. Juntamente a esse fator, há
o risco constante de novas crises no abastecimento associadas
à própria instabilidade do sistema. As reestruturações das cen-
trais de abastecimento ocorridas no século XX restringiram-se
aos aspectos territoriais, no momento da criação e expansão,
e aos aspectos políticos, como a tentativa de privatização e
a descentralização da gestão das centrais. No século XXI, a
reestruturação passa a ser predominantemente econômica,
mais precisamente uma reestruturação técnica, associada à

47
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

infraestrutura, à inovação tecnológica, como forma de atender


às novas demandas das empresas. Ressalta-se que essas ino-
vações ocorrem em momentos distintos em diferentes lugares
do território nacional, fazendo com que cada ceasa tenha sua
especificidade técnica, apesar das normas homogeneizantes.

O caso da Ceasa-RN
A Central de Abastecimento S.A. do Rio Grande do Norte
(Ceasa-RN) foi instalada em 1975, com o objetivo de abastecer,
de forma atacadista, os supermercados e hipermercados e,
consequentemente, as feiras livres e os mercados públicos. A
Ceasa-RN é formada por apenas um entreposto, localizado em
Natal, que foi criado pelo Governo Federal, dentro do Segundo
Plano Nacional de Desenvolvimento, no período da Ditadura
Militar no Brasil, sendo mais um elemento da reestruturação
do território.
Em 1988, essa central de abastecimento teve seu con-
trole acionário transferido do Governo Federal para o Governo
Estadual do Rio Grande do Norte, vinculada à Secretaria de
Agricultura, Pecuária e Pesca (Sape), passando por essa rees-
truturação institucional. Isso ocorreu no momento de descen-
tralização da gestão das centrais de abastecimento no Brasil,
com influência do pensamento neoliberal, no final da década
de 1980.
Outro fator importante para que não ocorresse a privati-
zação das Ceasas, e apenas a descentralização de sua gestão, foi
a importância político-partidária das centrais de abastecimento,
na medida em que os cargos administrativos, principalmente da
diretoria, tornaram-se moedas de trocas eleitorais. Isso pode ser
observado na lista dos presidentes da Ceasa-RN, que exerceram
cargos políticos como secretários municipais ou estaduais,
vereadores, deputados e até senadores. Outros eram filhos ou
irmãos de políticos. Muitos deles também eram agropecuaristas
ou associados à indústria de lacticínios. Entretanto alguns são

48
As centrais de abastecimento alimentar e a reestruturação do território: o caso da Ceasa-RN

profissionais de áreas que têm pouca ou nenhuma relação com a


agropecuária, como auditor fiscal, advogado e engenheiro civil.
O atual presidente, por exemplo, foi presidente do Sindicato das
Indústrias Gráficas do RN. Tais fatos exemplificam a relação
estreita entre o Estado e o mercado.
No ano de 2010, por intermédio do Prohort, programa
de modernização e expansão das centrais de abastecimento no
Brasil, criado em 2005, houve a criação de um entreposto em
Mossoró que não entrou em funcionamento devido ao descaso
do poder público estadual. Além disso, Mossoró já dispõe uma
central de abastecimento municipal. Esta central foi criada em
1977 e pertencia ao sistema Sinac, que administrava e agregava
os dados informacionais das Ceasas em escala nacional. Com
a descentralização das centrais de abastecimento alimentar,
a central de Mossoró foi transferida para o governo munici-
pal e não se integrou ao atual sistema unificador nacional, a
Abracen, não entrando nas estatísticas oficiais nacionais, sendo
popularmente denominado de “Mercado da Cobal”, visto que
na época de sua criação, a gestão dessa central, como todas as
demais centrais brasileiras, ficava a cargo da Cobal. Também
vale ressaltar que a reestruturação técnica das centrais, pouco
atingiu a Ceasa-RN, que continua com uso de tecnologias menos
modernas, no caso de algumas empresas e dos feirantes que
a constituem.
Assim, a central de abastecimento do RN tem como princi-
pal finalidade o abastecimento hortifrutigranjeiro no estado do
Rio Grande do Norte, em especial na cidade de Natal e na Região
Metropolitana. O entreposto da Ceasa-RN, localizado em Natal,
é classificado como sendo de porte médio, comercializando
anualmente, de acordo com os dados da Conab (2009), mais
de 264 mil toneladas de alimentos ao ano, e 22 mil toneladas
por mês, correspondendo a 1,1% da comercialização total das
centrais de abastecimento brasileiras. Segundo os dados da
Ceasa-RN, o crescimento anual no volume total de alimentos

49
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

vendidos está em uma média de 10%. Por exemplo, em 2012,


o volume comercializado totalizou 257.744 toneladas de ali-
mentos, o que representou uma evolução de 6,6% em relação
ao ano de 2011, que foi de 241.754,7 toneladas. Mensalmente,
são originadas cerca 310 toneladas de resíduos alimentares,
que são adquiridos pela gestão social dessa infraestrutura de
abastecimento e distribuídos à população em situação de rua
por meio do Programa Mesa da Solidariedade, popularmente
denominado de Sopão.
De acordo com os dados fornecidos pela Ceasa-RN, a área
total desse entreposto é de 76.783,82 m², distribuídos em nove
áreas de mercados permanentes, quatro áreas de mercados livres
e uma área de mercado da melancia, do melão e do abacaxi.
As áreas permanentes são compostas por 228 boxes para os
permissionários (pessoas jurídicas). As demais cinco áreas são
compostas por 1049 módulos (denominados também de pedras)
para os permissionários (pessoas físicas), produtores e atra-
vessadores. O rendimento mensal da central de abastecimento
do RN é de R$33 milhões. Ainda de acordo com os dados, tal
instituição gera 1.000 empregos diretos. Existe uma média de
74 mil pessoas e 72 mil veículos circulando mensalmente nesse
entreposto. Além disso, essa central de abastecimento tem 62
transportadores autorizados (frentistas) e 72 carregadores
autônomos (cabeceiros).
Pesquisas anteriores já demonstraram, em suas discus-
sões, a importância da Ceasa-RN para a reestruturação do
território e para o abastecimento do estado do Rio Grande do
Norte, em especial para a Região Metropolitana de Natal. O
trabalho de Medeiros (1983) constatou que 35% dos produtos
comercializados pelos permissionários da central de abas-
tecimento do RN eram vendidos para os feirantes da capital
potiguar. Em um estudo sobre as feiras livres de Natal, realizado
por Pacheco (1986), os resultados obtidos mostraram que 47%
dos feirantes desse município compravam seus produtos nessa

50
As centrais de abastecimento alimentar e a reestruturação do território: o caso da Ceasa-RN

central de abastecimento. Para além da capital potiguar, a


pesquisa de Dantas (2007) mostrou que 90% dos feirantes do
setor de frutas, legumes e verduras da feira livre do município
de Macaíba adquirem seus produtos na referida instituição.
O trabalho de Medeiros (2005) teve como foco o reapro-
veitamento de resíduos sólidos gerados por essa central de
abastecimento, por meio do Programa Mesa da Solidariedade,
desenvolvido pela Ceasa-RN. A dissertação de Vale (2007) mapeou
a distribuição da produção das principais frutas, dos legumes
e das verduras comercializados no estado do Rio Grande do
Norte mediante as informações fornecidas pela Ceasa-RN. A
dissertação de França (2005) mostrou que a produção de batata
doce do assentamento Vale do Lírio, no município de São José do
Mipibu-RN, pertencente à Região Metropolitana de Natal, era
vendida para atravessadores, que, posteriormente, revendiam
o produto nessa central de abastecimento.
Em outra pesquisa semelhante, Lopes (2008) mostrou que,
no assentamento Vale do Lírio, 1% das famílias entrevistadas
vendia sua produção diretamente nesse entreposto de abas-
tecimento, o que era uma exceção, visto que 37% das famílias
vendiam sua produção para atravessadores, que posteriormente
vendiam na Ceasa-RN. Marinho (2009) mostrou que a maior parte
das frutas consumidas no município de Canguaretama-RN é
comprada nesse entreposto, porém essas frutas eram produzidas
por pequenos produtores que residiam no próprio município.
Os trabalhos de Queiroz (2011), de Queiroz e Azevedo (2012) e
de Azevedo e Queiroz (2013) mostraram também a importância
que a Ceasa-RN tem para o fornecimento de produtos hortifru-
tigranjeiros para as feiras livres da cidade de Natal-RN.
Por fim, o trabalho de Queiroz (2014) demonstra que a
Ceasa-RN concentra e agrega fluxos, por intermédio das intera-
ções espaciais, de diversificados circuitos espaciais de produção
agrícola, desde a escala nacional, passando pela regional até
a local. As interações locais são predominantes, visto que a

51
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

maior parte dos fluxos origina-se do e no próprio estado do Rio


Grande do Norte (51%), apesar de ocorrer uma variação sazonal
e anual da produção de hortifrutigranjeiros. Os principais
municípios do RN fornecedores são Açu (36%), Baraúna (18%) e
Touros (17%), que juntos detêm 71% da produção desse estado
que é fornecida para a Ceasa-RN. Esses fluxos estaduais se dão,
principalmente, por duas rodovias: a BR-304, que liga Mossoró
(e a produção de Baraúna e Açu) a Natal; e a BR-101, que conecta
Touros à capital potiguar.
Em termos regionais, destacam-se os fluxos de hortifrutis
originados dos estados de Pernambuco (14%), Paraíba (12%),
Bahia (7%) e Ceará (3%), que totalizam 36% da produção que é
fornecida a Ceasa-RN. Por fim, na escala nacional, observam-se
com maior frequência os fluxos oriundos de São Paulo (1%),
Minas Gerais (3%) e da região Sul, sendo que os estados do Rio
Grande do Sul (4%) e Santa Catarina (4%) destacam-se pela
produção de maçã e pera, e que juntos são responsáveis por 12%
dos produtos que abastecem a central de abastecimento do RN.
Os fluxos de hortifrutigranjeiros que se originam da
Ceasa-RN são destinados para vários municípios do Rio Grande
do Norte, concentrando-se na Região Metropolitana de Natal e
diminuindo a intensidade da participação desse entreposto no
abastecimento dos demais municípios do estado. Considerando
a Região Metropolitana, em termos quantitativos, o entreposto
da Ceasa-RN fornece mercadorias, em primeiro lugar, para
supermercados e hipermercados (40%), em segundo lugar, para
feiras livres (20%) e mercados públicos (20%) e, por último, para
mercadinhos, quitandas e mercearias (20%).
Especificamente no município de Natal, a troca de horti-
frutigranjeiros, realizada pelos mercados públicos, mercadinhos,
pelas quitandas e mercearias, é inexpressiva em relação ao volume
total que circula na Central de Abastecimento do RN. Portanto, o
abastecimento realizado pela Ceasa-RN, na cidade de Natal, ocorre
principalmente nas feiras livres, onde mais de 80% dos feirantes

52
As centrais de abastecimento alimentar e a reestruturação do território: o caso da Ceasa-RN

desses segmentos se abastecem na Central. Em seguida, os super-


mercados varejistas, para os quais a Ceasa-RN também tem uma
participação maior que 80% no abastecimento. Posteriormente,
o entreposto de abastecimento do RN é responsável por mais
de 60% do abastecimento de frutas, legumes e verduras dos
supermercados atacadistas. E, por fim, é responsável por cerca
de 40% do abastecimento dos hipermercados.
Nesse sentido, desde a década de 1970, a Ceasa-RN vem
provocando o alargamento dos contextos, o alargamento das
escalas da cidade de Natal, a reestruturação do abastecimento
hortifrutigranjeiro do Rio Grande do Norte e a reestruturação
do território. Tal instituição não provoca essa ampliação das
escalas das interações espaciais isoladamente. Isso ocorre devido
a todo um conjunto de modernizações que passam a existir na
cidade. O entreposto de abastecimento do RN torna-se apenas
mais um elemento dessa modernização, da ampliação das escalas
do atual período histórico-geográfico.

Considerações finais
O objetivo do capítulo, de mostrar a função das centrais
de abastecimento alimentar na reestruturação do território, foi
atingido. Tal feito foi possível na medida em que se demonstrou a
reestruturação do território provocada pela criação e expansão
das centrais de abastecimento alimentar, pelo Governo Federal,
na década de 1970 e no início da década de 1980. Também foi
mostrado que a reestruturação política do Estado brasileiro
provocou uma reestruturação institucional das Ceasas, que tive-
ram seus controles acionários transferidos do Governo Federal
para os governos estaduais e municipais. Enfim, evidenciou-se a
reestruturação técnica das centrais de abastecimento alimentar,
a partir do Prohot, que também provocou uma reestruturação
do território com a expansão do número de entrepostos das
Ceasas em todo Brasil. Essa nova dinâmica territorial, provocada
pelos entrepostos de abastecimento no início do século XXI, está

53
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

baseada na perspectiva da segurança alimentar e nutricional,


que deve ser atingida por meio da modernização tecnológica
dessas centrais.
O objetivo do trabalho foi alcançado também devido ao
nosso estudo de caso da Central de Abastecimento S.A. do Rio
Grande do Norte, a Ceasa-RN. Esta foi criada em 1975, dentro
do I PND, quando foi projetada a criação de várias centrais
de abastecimento alimentar no Brasil. Em 1988, a Ceasa-RN,
diante da reestruturação institucional do Estado nacional,
teve seu controle acionário transferido do Governo Federal
para o Governo Estadual. Por fim, com o Prohort, que prevê
a modernização tecnológica e a expansão dos entrepostos de
abastecimento no Brasil, foi construído um novo entreposto da
Ceasa-RN no município de Mossoró-RN. Porém tal entreposto,
construído desde 2010, não entrou em funcionamento devido
à existência de uma central de abastecimento municipal, à
falta de necessidade e de demanda por uma nova central, como
também ao descaso do Governo Estadual.
Assim, o único entreposto da Ceasa-RN está localizado
no município de Natal-RN, sendo considerado pela Conab um
entreposto de porte médio. A Ceasa-RN provocou uma rees-
truturação do território, dinamizando o abastecimento de
hortifrutigranjeiros, fazendo com que o município de Natal
tenha uma interação com estados do Sul e Sudeste do Brasil e,
principalmente, com os estados da Paraíba, Pernambuco, Bahia
e Ceará, localizados no Nordeste brasileiro. No Rio Grande do
Norte, destacam-se os municípios de Açu, Baraúna e Touros,
que mantêm essa relação intrínseca com o município de Natal,
por intermédio da Ceasa-RN. A Ceasa-RN também gerou uma
dinâmica urbana e regional na Região Metropolitana de Natal
(RMN), na medida em que não só é abastecida pelos municípios
dessa região e de municípios vizinhos como também os abastece.
Em relação às interações espaciais que se originam da central
de abastecimento do RN, destacam-se os fluxos destinados

54
As centrais de abastecimento alimentar e a reestruturação do território: o caso da Ceasa-RN

aos mercados públicos, às feiras livres, aos supermercados,


aos hipermercados e aos atacadistas, não só do município de
Natal, mas de todos os demais da RMN.
No entanto, algumas lacunas ou perguntas também não
foram respondidas, a saber: como se dá o abastecimento de horti-
frutigranjeiros nas demais cidades do Rio Grande do Norte, como
Mossoró (com hipermercados, supermercados, atacadistas, feira
livre, mercado público e central de abastecimento municipal),
Caicó (com supermercados, atacadistas, mercado público e feira
livre), Pau dos Ferros (com supermercados, mercado público e
feira livre), ou em uma cidade local? Quais os desdobramentos
da circulação de hortifrutigranjeiros no Rio Grande do Norte
para o planejamento urbano-regional?
O trabalho mostrou a circulação de hortifrutigranjeiros na
cidade de Natal, destacando o papel da Ceasa-RN nesse processo.
Porém, levanta-se uma hipótese, já verificada previamente,
que essa central de abastecimento não atinge seu objetivo de
abastecer todos os municípios do Rio Grande do Norte com
produtos hortifrutigranjeiros, tendo um papel mais atuante
nos municípios próximos a Natal e de forma mais concentrada
na Região Metropolitana. Nesse sentido, há uma necessidade
de se verificar, através de uma pesquisa empírica, qual o papel
da Ceasa-RN em outras cidades do Rio Grande do Norte, como
por exemplo, Mossoró, Caicó e Pau dos Ferros, considerando a
existência de supermercados varejistas, supermercados ata-
cadistas, hipermercados, feiras livres e mercados públicos no
abastecimento de hortifrutigranjeiros desses outros municípios.
Saber essa condição da circulação de hortifrutigranjeiros,
nas diferentes cidades potiguares, é condição sine qua non para se
pensar uma política de circulação de frutas, legumes e verduras
dentro do planejamento urbano e regional. Um plano urbano e
regional de circulação de hortifrutigranjeiros, em especial no
Rio Grande do Norte, deve considerar essas diferentes dinâmicas
da circulação, levando em conta as áreas produtivas, além do

55
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

papel dos supermercados, hipermercados, atacadistas, feiras


livres, mercados públicos e Ceasa-RN, nos diferentes contextos
da rede urbana potiguar. Tal empreitada se constitui em um
futuro desafio, pensado a partir dos resultados desta pesquisa.

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As centrais de abastecimento alimentar e a reestruturação do território: o caso da Ceasa-RN

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57
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

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58
Viagens à natureza:
um olhar sobre o turismo
em unidades de conservação
Márcio Balbino Cavalcante1
Edna Maria Furtado2

Introdução – um convite ao tema

O desenvolvimento da Geografia vem sendo acompanhando,


desde sua origem, pelas pesquisas que envolvem a relação
sociedade-natureza. Nesse contexto, Costa (2008) afirma que
a ciência geográfica tem um papel relevante na medida em
que seu objeto de estudo está diretamente relacionado com a
organização espacial das atividades humanas.
Desde meados do século XIX, a criação de áreas protegidas
vem se constituindo numa das principais estratégias para a
conservação da natureza (MORSELLO, 2006). Isto se explica,
por um lado, pela degradação ambiental crescente, especial-
mente devido aos impactos da expansão urbano-industrial e à
devastação das florestas e, por outro, pela disponibilidade de
fundos internacionais para a conservação e pela possibilidade
de geração de renda por meio do turismo.

1 Mestre em Geografia pelo PPGe da UFRN.


2 Profa. Dra. do Departamento e do Programa de Pós-Graduação e
Pesquisa em Geografia (PPGe/UFRN).

59
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

De um ponto de vista genérico, unidades de conservação


ou áreas naturais protegidas são espaços legalmente instituídos
com o objetivo da conservação da biodiversidade e das belezas
paisagísticas ou da utilização sustentada dos ecossistemas e
seus recursos naturais. Para Röper (1999), do ponto de vista
geográfico, podemos entender as unidades de conservação como
uma forma de institucionalização do espaço e uma expressão
de seu controle político.
O estado da Paraíba possui grande potencial para o
turismo, uma vez que podemos encontrar, no estado, um amplo e
diversificado mosaico de paisagens, tido como atrativo turístico,
como as belas praias, valiosos sítios paleontológicos, a exemplo
do Vale dos Dinossauros, em Souza; e arqueológicos, como a Pedra
do Ingá, entre outros. Também encontramos um rico patrimônio
natural, resultado da interação dos componentes da natureza,
como o clima, a vegetação, a geomorfologia e a geologia.
Com a finalidade de proteger tais atributos, existem
atualmente 34 unidades de conservação na Paraíba, incluindo as
federais, estaduais, municipais e particulares; são 16 Unidades de
Conservação (UCs) geridas pelo Governo do estado distribuídas
em unidades geoambientais diferenciadas, a maioria localizada
na Mesorregião do litoral paraibano.
Entre as Unidades de Conservação paraibanas, merece
destaque o Parque Estadual da Pedra da Boca (PEPB), localizado
no município de Araruna e instituído pelo Decreto Estadual nº
20.889, em 07 de fevereiro de 2000 (PARAÍBA, 2000).
Dessa forma, a institucionalização do PEPB, constitu-
ído de 157,3 hectares de extensão territorial, foi realizada no
intuito de preservar seu conjunto rochoso de grande beleza
cênica, de composição granítica porfirítica, cujas configurações
geológico-geomorfológicas são ímpares, e também por abrigar
espécies da flora e da fauna endêmicas e representativas do
bioma caatinga. Em seu ambiente, são desenvolvidos os seguintes

60
Viagens à natureza:
um olhar sobre o turismo em unidades de conservação

segmentos turísticos: turismo ecológico, turismo de aventura,


turismo religioso e turismo educacional (CAVALCANTE, 2012).
A problemática desta pesquisa parte da premissa de
que, apesar da sua importância ambiental, essa Unidade de
Conservação e sua área de entorno não possuem um planeja-
mento efetivo de uso, pautado nas potencialidades e fragilidades
ambientais, na perspectiva de cumprir as funções para as quais
foi criada; e não está garantindo a conservação das riquezas
naturais e culturais em meio ao desenvolvimento das atividades
turísticas desenvolvidas na sua área.
Portanto, é necessário verificar quais as medidas miti-
gadoras precisam ser implementadas para que haja um melhor
desempenho da UC supracitada e, assim, cumprir com suas
funções ecológicas, sociais e paisagísticas.
Diante desse raciocínio, alguns questionamentos foram
norteadores do processo de análise. Entre eles, destacam-se:
as interferências na paisagem do PEPB realizadas em nome
do turismo são positivas? Quais são as ações e os projetos de
planejamento e gestão territorial implementados na UC? Como
é a interação do Parque com a comunidade do entorno? Que
resultados concretos foram alcançados no Parque Estadual a
partir das ações do Poder Público?
Partindo desse contexto, o objetivo principal deste capí-
tulo é realizar uma avaliação das atividades turísticas e das
ações de gestão territorial no Parque Estadual da Pedra da Boca
(PEPB), localizado no município de Araruna-PB.
Para a concretização deste trabalho, foram desenvolvidas
as seguintes etapas metodológicas: pesquisa e revisão biblio-
gráfica teórico-conceitual da temática proposta nas diversas
áreas do conhecimento científico, a saber: Geografia, Turismo,
Meio Ambiente, Legislação Ambiental e outros.
A etapa do trabalho de campo realizou-se no período
de janeiro de 2010 a dezembro de 2012, tendo como base a

61
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

observação participante, com o envolvimento direto nas ati-


vidades turísticas do PEPB. Para Minayo (2007), a observação
participante é um processo no qual o pesquisador/observador
mantém relação direta com seus interlocutores, no espaço da
pesquisa, com o objetivo de obter informações e compreender
o contexto da investigação.
Nessa fase, foram utilizados, como instrumentos metodo-
lógicos, registro fotográfico e entrevistas com os representantes
do Poder Público, dos visitantes e da população do entorno,
com o objetivo de coletar informações sobre o turismo na área
da pesquisa.

Um olhar geográfico sobre o turismo


em unidades de conservação
A ação humana é o principal agente de transformação
do meio ambiente, em função das intervenções no espaço geo-
gráfico, relacionadas com a realização de suas necessidades
de conquista, da sobrevivência e da expansão das práticas
capitalistas, de uma forma tão agressiva, que, atualmente, tor-
na-se complexo e difícil elaborar mecanismos e procedimentos
efetivos de práticas de conservação.
Tomando como base esses princípios, Vallejo (2005)
afirma que, a partir da criação do Yellowstone National Park
em 1972 (EUA), difundiu-se mundialmente um modelo de
intervenção governamental na formação de espaços prote-
gidos, no qual os objetivos iniciais estavam voltados para a
proteção da natureza intocada, juntamente com a promoção
do uso público pelas populações urbanas (VALLEJO, 2005;
MORSELLO, 2006).
Diante do exposto, a criação de Unidades de Conservação
é uma das alternativas efetivas para tentar despertar a consci-
ência ambiental na sociedade e convencê-la de que os recursos
naturais são finitos.

62
Viagens à natureza:
um olhar sobre o turismo em unidades de conservação

No Brasil, segundo o Sistema Nacional de Unidades de


Conservação (SNUC), instituído pela Lei nº 9.985, de 18 de julho
de 2000, entende-se por Unidades de Conservação:
Espaços territoriais e seus componentes, incluindo as águas
jurisdicionais, com características naturais relevantes, de
domínio público ou privado, legalmente instituídos pelo Poder
Público, com objetivos de conservação e de limites definidos,
sob regime especial de administração, às quais se aplicam
garantias adequadas de proteção (BRASIL, 2000, p. 1).

Entre as modalidades de unidades de conservação, a cria-


ção de parques, sejam eles nacionais, estaduais ou municipais,
tem como objetivo primordial a preservação de ecossistemas
naturais de grande relevância ecológica ou beleza cênica. De
acordo com o SNUC, os parques são espaços territoriais desa-
propriados, destinados à preservação dos ecossistemas naturais,
possibilitando a realização de pesquisa, recreação, atividade
de educação ambiental e ecoturismo. Esses parques, quando
criados, precisam possuir uma infraestrutura mínima que
venha a subsidiar a prática das atividades acima citadas.
Conforme Morsello (2006), a constatação de que as unida-
des de conservação não podem ser tratadas como “ilhas” leva,
consequentemente, à conclusão de que estas devem fazer parte
de estratégias de manejo em escala maior. Nota-se, nesse sentido,
a necessidade de implementação, monitoramento e avaliação
de ações de gestão territorial, voltadas para o desenvolvimento
do turismo, como forma de melhorar o planejamento e a gestão
dessas atividades nas unidades de conservação brasileiras.
Para Lima (2003, p. 71), as décadas de 1960 e 1970 marca-
ram o despertar para a sensibilização da opinião pública dos
países desenvolvidos com os temas e as causas ambientais, assim
como o despertar para novas atitudes frente às áreas naturais.
Segundo a autora, nesse período, a qualidade do ambiente
começa a constituir elemento de destaque do produto turístico,
e a natureza e seus componentes tornam-se pretextos para a

63
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

descoberta, a educação e o espírito de aventura, dando origem


a um novo mercado.
Do ponto de vista da Geografia, o turismo, enquanto
prática social e econômica, produz o espaço geográfico a partir
de um conjunto de ações, tornando-o produto para consumo
turístico. O espaço geográfico, nesse sentido, é entendido como
um conjunto formado pelos objetos geográficos, naturais e
artificiais, mais a sociedade que o anima (SANTOS, 2008).
Desse modo, em nome do ecoturismo, áreas remotas e
partes dos territórios, relativamente pouco alterados, dos países
estão se convertendo em destinos favoritos para turistas nada
convencionais. É notável que a beleza cênica, juntamente com
os elementos histórico-culturais existentes nas áreas naturais,
sobretudo as protegidas legalmente, representam polos de
atração e recepção de turistas e visitantes.
No Brasil, as áreas naturais protegidas, sobretudo os
parques nacionais, estão entre as principais destinações do
turismo ecológico e do ecoturismo. Tanto é que o SNUC con-
templa a prática de atividades turísticas nesses ambientes, no
caso, o turismo ecológico.
Apesar de as Unidades de Conservação serem locais des-
tinados à conservação ambiental, ao exercício da educação
ambiental, à pesquisa científica e à contemplação da natureza
em seu estado original ou mais próximo deste, a prática da
atividade turística muitas vezes não obedece a esses princípios.
Assim, a atividade turística é, muitas vezes, vista apenas como
positiva à natureza. Contudo, o turismo não apresenta apenas
impactos positivos, mas também impactos negativos, degra-
dantes e agressores ao meio ambiente (RUSCHMANN, 2005).
A autora salienta que muitas vezes valorizam-se exces-
sivamente os impactos positivos ou os benefícios da atividade,
deixando-se de lado as consequências indesejáveis e o custo.
Em relação aos aspectos positivos do ecoturismo, podemos

64
Viagens à natureza:
um olhar sobre o turismo em unidades de conservação

ressaltar: a criação de novas áreas; o engajamento das comu-


nidades locais no desenvolvimento do “orgulho étnico” e de
ambientalistas na orientação e participação em programas
de ecoturismo.
Verifica-se que os impactos negativos do ecoturismo
sobre o meio ambiente podem superar os impactos positivos
causados por essa atividade, como poluição sonora; geração
de resíduos sólidos; degradação de ecossistemas frágeis; perda
da biodiversidade; compactação dos solos resultante de piso-
teamento; aceleramento de processos erosivos; pichações nas
rochas, entre outros.
Devido aos problemas oriundos do desenvolvimento do
turismo em áreas naturais, no caso do ecoturismo, destaca-se
a necessidade de se estabelecer limites para seu crescimento,
com o intuito de monitorar e planejar tais atividades, apontando
propostas para minimizar os impactos negativos e otimizar os
impactos positivos ao meio natural e à população envolvida
nesse processo.

Contextualizando o Parque Estadual


da Pedra da Boca (PEPB)
O Parque em destaque representa um importante marco
na economia do turismo do interior do estado da Paraíba, na
geração de emprego e renda. Esse parque inaugura para essa
região o turismo religioso e de aventura, atraindo um número
considerável de visitantes que impactam no ambiente conforme
a discussão que se segue.

Espacialização da área de estudo


O Parque Estadual da Pedra da Boca (PEPB) está localizado
ao norte do município paraibano de Araruna, nas coordena-
das geográficas 6º27’24,58” S e 35º40’32,99” W. Situa-se em
zona fisiográfica de caatinga, no Planalto da Borborema, na

65
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Mesorregião Geográfica do Agreste Paraibano e na Microrregião


do Curimataú Oriental (Figura 1).

Figura 1 – Mapa de localização do Parque


Estadual da Pedra da Boca (PEPB)

Fonte: Márcio B. Cavalcante (2012)

Os limites territoriais do PEPB são: ao Norte, o município


de Passa e Fica-RN; ao Sul, Sítio Água Fria (Araruna-PB); ao
Leste, Rio Calabouço (divisa geográfica entre os Estados da PB
e RN) e a Oeste, Serra da Confusão (Araruna-PB). O PEPB está
distante 172 km de João Pessoa, capital do Estado da Paraíba;
22 km de Araruna-PB; 6 km de Passa e Fica-RN; e a 110 km de
Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte.
O principal acesso ao PEPB é pelo município potiguar de
Passa e Fica. Tomando como ponto de referência quem vem pelo
estado da Paraíba, sentido norte, o percurso segue pela Rodovia
Estadual PB-099 até o limite com o estado do Rio Grande do
Norte, segue pela Rodovia RN-092 até o município de Passa e
Fica-RN. Para os turistas e visitantes que vêm do estado do Rio
Grande do Norte, o percurso segue no sentido sul, pela Rodovia

66
Viagens à natureza:
um olhar sobre o turismo em unidades de conservação

RN-092 até este município. De Passa e Fica até o Parque são


aproximadamente 6 km (CAVALCANTE, 2012).

A gestão do PEPB – da implementação


à situação atual do parque
O Parque Estadual da Pedra da Boca (PEPB) foi criado com o
objetivo de preservar o ambiente natural e impulsionar o turismo
local. A principal característica do Parque são suas formas de relevo,
bastante diferenciadas das demais áreas da região.
Anteriormente à sua instituição como Parque Estadual,
vinha se registrando, na região, a prática de atividades ligadas
ao turismo de aventura, como a escalada e o rapel no local, bem
como atividades educacionais e científicas.
Segundo informações do Gerente do PEPB, o interesse
de criação do Parque partiu de sugestões dos praticantes dos
esportes de aventura da área para o chefe do executivo municipal
de Araruna-PB, que, com o apoio de outros políticos locais, levou
a solicitação ao governador do Estado da Paraíba na época.
Desse modo, conforme Ferreira (2006), no processo de
criação do PEPB, não houve nenhuma iniciativa de informar à
comunidade e aos usuários o que estaria por acontecer no local,
bem como, alguma forma de consulta pública para preparar a
comunidade quanto à mudança de rotina local, após a criação
de uma Área Protegida de caráter público.
No período da instituição como área de proteção integral,
o PEPB teve, como primeiras medidas, a remoção das famílias
residentes em terrenos particulares que se tornaram a área geo-
gráfica do parque. Sem suas moradias e impedidas de exercer suas
atividades de subsistência, a maioria dessas famílias foi residir no
município de Passa e Fica-RN. Sendo assim, a delimitação do Parque
foi realizada pelo Instituto de Terras e Planejamento Agrícola da
Paraíba (INTERPA). Após sua criação, em 2000, a Unidade foi

67
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

administrada, efetivamente, em 2003, pela Superintendência de


Administração do Meio Ambiente da Paraíba (SUDEMA).
Existe, na área de entorno do Parque, uma pequena
comunidade (Sítio Água Fria, Araruna-PB) formada por cerca
de dezoito famílias. De acordo com os dados e informações
coletadas na pesquisa, identificou-se a falta de integração efetiva
da população local nas atividades do PEPB. Apenas alguns con-
seguiram se firmar como guias, guarda-parques ou prestadores
de serviços. Sabe-se que, para se combater as deficiências e
gerar empregos e renda no setor turístico, é preciso inserir a
população do lugar.
Nesse sentido, Seabra (2004) afirma que o caráter sociode-
senvolvimentista do ecoturismo permeia os projetos oficiais e os
discursos políticos, sem, contudo, alcançar e envolver as comu-
nidades tradicionais que habitam as unidades de conservação.
Assim, uma importante inovação do SNUC é a previsão
de participação da sociedade por meio dos conselhos gestores
– consultivos e deliberativos, conforme a categoria, que asses-
soram a gestão da unidade. Nesse contexto, os conselhos devem
ter representação paritária de órgãos públicos e da sociedade
civil, contribuindo para a transparência da gestão da UC.
Diante do exposto, em 2003, a SUDEMA criou o Conselho
Participativo do Parque Estadual da Pedra da Boca. Esse conse-
lho, naquele ano, pretendeu envolver a presença da população
local, como também de instituições de ensino e pesquisa, enti-
dades governamentais e não governamentais e representantes
das prefeituras envolvidos no plano de turismo do local.
Naquele momento, o Conselho do PEPB possuía a seguinte
representação: SUDEMA; Associação Comunitária de Água Fria,
município de Araruna-PB; Serviço de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE-PB); Universidade Federal da Paraíba (UFPB);
Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ); Representantes
do Departamento de Geografia, Campus III da Universidade

68
Viagens à natureza:
um olhar sobre o turismo em unidades de conservação

Estadual da Paraíba (UEPB); e as Prefeituras dos municípios de


Araruna-PB e Passa e Fica-RN (FERREIRA, 2004).
Segundo informações do Gestor do PEPB, atualmente,
esse espaço de gestão democrática encontra-se paralisado,
necessitando, portanto, de sua renovação.
A criação do PEPB é de fundamental importância para a
preservação do ambiente local, composto pelo complexo rochoso
granítico e de espécies endêmicas do bioma caatinga presentes
na área do Parque (CAVALCANTE, 2012).
Entretanto existe uma carência de projetos e planos para
o PEPB por parte dos órgãos ambientais do governo do estado da
Paraíba, como ações de ordem gerencial, estrutural e ambiental,
tais como: ausência de estudos voltados para o conhecimento
dos aspectos biofísicos, sociais e conservacionistas da unidade;
zoneamento ambiental; inexistência do Plano de Manejo; estudos
da capacidade de carga turística; carência na infraestrutura
do Parque, como coletores de resíduos sólidos, placas de sina-
lização indicativa e informativa, falta de banheiros; ausência
de padronização, bem como manutenção das trilhas.
No que se refere à infraestrutura, o Parque conta com
uma estrutura mínima, apenas com uma guarita na entrada
principal e uma antiga casa de ex-morador, que servem de apoio
às atividades desenvolvidas na área.
Com relação aos recursos humanos, o PEPB conta apenas
com um gerente, que exerce o trabalho voluntário, e, atualmente,
não existem guarda-parques que possam colaborar para a manu-
tenção de uma área geográfica de 157,27 ha, além de cerca de
6.000 turistas ao ano que visitam o local. A evidente sobrecarga
de funções para apenas um indivíduo gera limitações quanto à
fiscalização e ao apoio efetivos aos turistas e visitantes da área.
Segundo o depoimento do gestor, outro ponto negativo
que dificulta a administração do PEPB é a inexistência do seu
Plano de Manejo. Esse Plano é fundamental para que a UC possa

69
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

atender aos seus objetivos de manejo, uma vez que define um


conjunto de ações interligadas e coerentes para um melhor
direcionamento das ações de intervenção na Unidade.
O Parque completou, em 2016, 16 anos de sua criação sem
esse instrumento normativo. Segundo o SNUC, o documento
deve ser elaborado até cinco anos após a instituição de uma UC.
A fim de não prejudicar os objetivos de conservação da natureza
dos Parques Estaduais, em tese, estes só poderiam estar abertos
à visitação a partir da elaboração de seu Plano de Manejo.
Desse modo, é fundamental a elaboração urgente desse
documento para o PEPB, uma vez que as normas de conduta e os cri-
térios do uso indireto dos recursos naturais devem ser claramente
estabelecidos. Convém ressaltar que a existência das formações
rochosas e espécies endêmicas da caatinga contidas no parque
deveriam garantir a imediata realização do seu Plano de Manejo.

Paisagem do Parque
As diferentes abordagens sobre paisagem apontam para
a compreensão de que ela se constitui como a porção visível do
espaço geográfico, sendo então a primeira instância do contato
do turista com o lugar a ser visitado, e está no centro do eixo
de atratividades desse lugar, sejam elas sociais, ambientais,
culturais, políticas, etc. Ela constitui-se, assim, como um dos
elementos mais importantes da atratividade nos locais turís-
ticos, pois um não se desvincula do outro, sendo diretamente
relacionados entre si. Para Yázigi (2002, p. 109):
A paisagem, indesvinculável da ideia de espaço, é constante-
mente refeita de acordo com os padrões locais de produção
da sociedade, da cultura, com os fatores geográficos e tem
importante papel no direcionamento turístico. O turismo
depende da visão.

Assim, os diversos segmentos turísticos se dão devido às


preferências das pessoas por paisagens diversificadas, relacio-
nadas às suas motivações de viagem. Dessa maneira, a paisagem

70
Viagens à natureza:
um olhar sobre o turismo em unidades de conservação

do Parque Estadual da Pedra da Boca é constituída por um


conjunto rochoso de composição granítica porfirítica, com
formações cujas configurações geológico-geomorfológicas são
ímpares e de valor cênico.
As formações identificadas no PEPB são resultantes dos
processos erosivos aos quais são submetidas as rochas. Desta
forma, a presença de minerais escuros nas rochas, como a biotita
e outros de menor resistência, faz com que essas áreas sofram a
ação do intemperismo diferencial, originando, em determina-
das partes dos corpos rochosos, cavidades de profundidade e
diâmetro bastante considerável, como é o caso da boca, na Pedra
da Boca, da gruta, na Pedra da Santa, ou dos caracteres de um
“crânio” na Pedra da Caveira. Essas formações são conhecidas,
na literatura geológica, como “Taffoni” (plural de taffone) que,
segundo Guerra e Guerra (2011, p. 594), “são cavidades hemis-
féricas cavadas em granito de paredes íngremes”.
Dessa forma, a denominação “Pedra da Boca” advém
da existência de uma formação rochosa de aproximadamente
336 metros de altura, a qual apresenta uma cavidade que, em
função da sua forma, lembra uma grande boca aberta (Figura 2).

Figura 2 – Parque Estadual da Pedra da Boca

Fonte: Márcio B. Cavalcante (2012)

71
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Os múltiplos usos do turismo no PEPB


Na análise sobre a segmentação turística do Parque
Estadual da Pedra da Boca, verificou-se a existência de quatro
segmentações turísticas: o turismo ecológico, o turismo de
aventura, o turismo religioso e o turismo educacional.

Turismo ecológico
Segundo Beni (2007), o turismo ecológico consiste no
deslocamento de pessoas para ambientes naturais, com ou
sem equipamentos receptivos, motivadas pelo desejo e pela
necessidade de fruição da natureza, observação passiva da
flora, da fauna, da paisagem e dos aspectos cênicos do entorno.
Para Ruschmann (2005), o turismo ecológico pode ser
entendido como uma forma de viajar que tem como princípios
básicos o compromisso com a proteção da natureza e com a
responsabilidade social dos turistas para com o espaço visitado.
Para a autora, o conceito de turismo ecológico transcende a ideia
daquele turismo baseado apenas nas atividades praticadas e
nas necessidades do turista. De acordo com Ruschmann (2005),
o conceito de turismo ecológico assume um caráter ideológico
de cunho preservacionista, tanto ambiental quanto social.
Nesses casos, ainda que haja preocupação com a educação e a
conscientização ambiental, a característica mais marcante é
a flexibilização ou inexistência de restrições rígidas e limites
à utilização do espaço visitado.
Existe certa confusão quanto à definição de turismo eco-
lógico e ecoturismo nos trabalhos científicos, uma vez que, por
estarem ligados a práticas turísticas em áreas naturais, são tidos
como sinônimos. Beni (2007) afirma que, no Brasil, o ecoturismo,
além de ser comumente confundido com o turismo ecológico,
está até o momento circunscrito a poucos casos, levando em
conta que as nossas áreas de conservação e proteção ambiental
não dispõem de uma política integrada e de um planejamento

72
Viagens à natureza:
um olhar sobre o turismo em unidades de conservação

estratégico de uso e ocupação voltados especificamente para


o turismo.
Nesse contexto, as atividades praticadas no PEPB, comu-
mente chamadas de ecoturismo, são, na realidade, ligadas ao
turismo ecológico, uma vez que não residem no “enfoque da
sustentabilidade evidenciado na conservação, interpretação e
vivência com a natureza como fator de atratividade, trinômio
base do ecoturismo” (BRASIL, 2010, p. 20).
No PEPB, o turismo ecológico é realizado por meio dos
passeios na área do parque, caracterizados por caminhadas
guiadas ou autoguiadas nas diversas trilhas catalogadas na área
territorial da unidade, como as trilhas da Aventura, da Boca,
das Cavernas, da Caveira, da Pedra do Letreiro, do Gemedouro,
entre outras (Figura 3).

Figura 3 – Turismo Ecológico no PEPB

Fonte: Márcio B. Cavalcante (2012)

Sendo assim, o fluxo turístico no PEPB é formado, basi-


camente, por visitantes e turistas provenientes de centros
urbanos nacionais e internacionais. De acordo com os dados
coletados na pesquisa de campo, os turistas se deslocam até o
Parque tanto por intermédio de agências de receptivo turístico

73
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

de João Pessoa-PB e Natal-RN, como por meios próprios mediante


divulgação por parte da imprensa, da internet ou de amigos.
A gestão do PEPB não dispõe de registro ou do número
exato de turistas que praticam essa modalidade nas trilhas
do parque. É certo que as trilhas poderiam ser consideradas
os produtos turísticos mais dinâmicos em uma unidade de
conservação, pois seu uso não se limita a vias de acesso. Uma
vez que, por si só, a trilha pode ser o atrativo, ela produz, no
indivíduo disposto a desbravá-la, a sensação de interagir com
os elementos da paisagem. Dessa forma, seu trajeto deve ser
planejado para que se alcancem objetivos em favor de sua con-
servação, por intermédio de atividades de educação ambiental,
tendo como ferramenta a interpretação ambiental, despertando
a sensibilidade ecológica e limitando o acesso a áreas que não
devem ser visitadas.
No contexto do PEPB, por meio das trilhas, podem ser
observadas as diversas formações rochosas, além das espécies da
fauna e da flora endêmicas do bioma caatinga existentes no local.
Algumas trilhas apresentam problemas como sinalização precária
e, em alguns pontos, até mesmo sua ausência, comprometendo
seu potencial educativo. Além disso, há trilhas com degraus,
construídos de cimento, para facilitar a caminhada, e que, por
serem artificiais, terminam descaracterizando o ambiente.
Desse modo, baseado no documento do Ministério do
Meio Ambiente Diagnóstico da Visitação em Parques Nacionais e
Estaduais (BRASIL, 2004), observam-se algumas recomendações
para subsidiar a elaboração de diretrizes para a visitação em
Unidades de Conservação. Entre estas, destacam-se o estudo
da capacidade de carga turística e o controle do tamanho dos
grupos e número de visitantes, além do estabelecimento de
infraestrutura adequada e equipamentos para a realização das
atividades de visitação.

74
Viagens à natureza:
um olhar sobre o turismo em unidades de conservação

Turismo de aventura
Outro segmento turístico de natureza presente na área
de estudo é o turismo de aventura. Considerado por Fennell
(2002) como “o primo do ecoturismo”, o turismo de aventura
possui várias definições que convergem em um mesmo ponto:
a busca incessante pelo desconhecido, pelo desafio físico e
emocional, englobando atividades que requerem treinamento
prévio e monitoramento constante.
Para Beni (2007), o turismo de aventura consiste no deslo-
camento de pessoas para espaços naturais, podendo contar ou
não com o amparo de roteiros programados e de equipamen-
tos receptivos. A motivação para a prática de tal modalidade
turística está centrada na atração exercida pelo desconhecido
e na ânsia de enfrentar situações de desafio físico e emocional.
O turismo de aventura é uma modalidade turística
que promove a prática de atividades de aventura e esporte
recreacional ao ar livre, envolvendo emoções e riscos contro-
lados e exigindo o uso de técnicas e equipamentos específicos,
a adoção de procedimentos para garantir segurança pessoal
e de terceiros e o respeito ao patrimônio ambiental e socio-
cultural (BRASIL, 2001, p. 9).

Com base nesses princípios, essas atividades podem ser


realizadas em ambientes naturais e espaços urbanos ao ar livre,
envolvem riscos e exigem o uso de técnicas e de equipamentos
específicos, bem como a adoção de determinados procedimen-
tos de segurança pessoal. Nesse sentido, verifica-se um fluxo
crescente de turistas que se dirigem ao PEPB para praticar o
turismo de aventura, por meio das modalidades da escalada
e do rapel, nas formações rochosas da área, uma vez que os
monólitos localizados no parque constituem o ambiente propício
para o desenvolvimento da prática dessa atividade nos diversos
paredões rochosos (Figura 4).
Desse modo, os principais pontos para a técnica do rapel
no PEPB são: Aroeira (55 m); Pedra da Oratória (50 m); Pedra

75
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

da Caveira (50 m); e na Boca (80 m). Outras atividades como


escalada, caminhada, mountain bike, camping, acontecem de
forma menos acentuada no ambiente do Parque.

Figura 4 – Turismo de Aventura no PEPB

Fonte: Márcio B. Cavalcante (2012)

O turismo de aventura é uma modalidade turística que


promove a prática de atividades de aventura e esporte recrea-
cional. Essas atividades são realizadas em ambientes naturais,
como no PEPB, envolvem emoções e riscos e exigem o uso de
técnicas e de equipamentos específicos, bem como a adoção de
determinados procedimentos de segurança pessoal.
Nesse sentido, no PEPB, existem moradores que prestam
o serviço de apoio aos praticantes do turismo de aventura, no
qual o turista encontra facilidades necessárias para tal prática.
Dessa forma, há uma preocupação, por parte dos prestadores
de serviço, de informar sobre alguns treinamentos básicos, bem
como fornecer suporte durante a realização das atividades.
O Parque está inserido nos contrafortes da Serra da
Confusão, assim conhecida pela existência de várias serras de
rochas graníticas que escondem grutas e cavernas quase inex-
ploradas. Dessa forma, as grandes cavidades, decorrentes não
só dos processos de intemperismo, como também das falhas e

76
Viagens à natureza:
um olhar sobre o turismo em unidades de conservação

fraturas nas rochas, vêm a impulsionar a queda de grandes blocos


rochosos formando assim os abrigos tão singulares naquela área.
A visita às cavernas do Zamboca e do Caçador, no interior do
PEPB, é uma das potencialidades do turismo de aventura do local,
onde o grau de dificuldade é alto. Algumas dessas cavernas pos-
suem importantes sítios arqueológicos, com pinturas rupestres;
outras dão abrigo a animais da fauna local, como gato-do-mato,
raposas, tejus, alguns roedores, morcegos, tatus, entre outros.
As cavidades naturais do Parque são frutos de tomba-
mentos de enormes blocos de granito que, ao caírem, formaram
abrigos sob as rochas (SANTOS, 2003). Desse modo, na maioria
das vezes, em função da disposição desses blocos, formam-se
cavidades naturais entre eles, denominadas, na literatura
geomorfológica, como furnas ou abrigos. Por essa razão, a
fragilidade da área exige estudos de capacidade de carga, ati-
vidades de educação ambiental, para que possíveis impactos,
como descaracterização pelo pisoteio, lixo, por pichações, entre
outros não sejam identificados no futuro.

Turismo religioso
Para Andrade (2008, p. 77), o turismo religioso é entendido
como:
O conjunto de atividades com utilização parcial ou total
de equipamentos e a realização de visitas a receptivos que
expressam sentimentos místicos ou suscitam a fé, a esperança
e a caridade aos crentes ou pessoas vinculadas a religiões
(ANDRADE, 2008, p. 77).

O autor afirma que o turismo religioso pode ser realizado


individualmente ou em grupos. Esses grupos religiosos, seguindo
os princípios dogmáticos e morais de seus componentes, podem
ser divididos em romaria, peregrinação e penitência.
Segundo Zimmermann (2005), o turismo religioso é aquela
modalidade turística que encontra sua motivação na fé ou na

77
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

necessidade de cultura religiosa. Essa prática está impressa na


visitação a igrejas e santuários, bem como na peregrinação, nas
romarias e nos congressos eucarísticos.
Ressalvados o turismo de férias e o de negócios, o tipo
de turismo que mais cresce é o religioso, porque – além dos
aspectos místicos e dogmáticos – as religiões assumem o papel de
agentes culturais importantes, em todas as suas manifestações
de proteção a valores antigos, de intervenção na sociedade atual
e de prevenção no que diz respeito ao futuro dos indivíduos e
das sociedades (ANDRADE, 2008).
Nesse contexto, ao longo dos anos, vem se registrando um
deslocamento de pessoas provenientes, sobretudo, do estado
do Rio Grande do Norte e de outros municípios da Paraíba até a
Pedra da Santa (Pedra do Letreiro), uma das formações rochosas
do PEPB, caracterizando o turismo religioso na área oficial do
Parque. Esses peregrinos são guiados pela fé em Nossa Senhora
de Fátima, cuja imagem está exposta na Pedra da Santa.
A Pedra da Santa recebe fiéis para a tradicional missa ao
ar livre, reunindo pagadores de promessas, devotos, visitantes
e turistas de toda região e de outros estados. Essa atividade
religiosa é realizada na área oficial do PEPB pela Arquidiocese
de Guarabira-PB, por intermédio da Paróquia de Nossa Senhora
da Conceição de Araruna-PB, com eventos programados todo
dia 13 de cada mês.
Com o objetivo de oferecer uma infraestrutura de apoio
aos fiéis durante as atividades religiosas, o governo do estado
da Paraíba construiu, próximo à Pedra da Santa, o Santuário
de Nossa Senhora de Fátima. A infraestrutura do Santuário
possui uma área para receber aproximadamente 5.000 romeiros.
De acordo com as observações e os registros fotográficos
da área, detectam-se impactos negativos na Pedra da Santa. Nos
dias em que acontecem as cerimônias religiosas, é notável o
grande número de ônibus, automóveis, motocicletas e pedestres,

78
Viagens à natureza:
um olhar sobre o turismo em unidades de conservação

provocando congestionamento na estrada de acesso ao Parque,


bem como estacionamento irregular na entrada principal do
PEPB. Ao lado da imagem de Nossa Senhora de Fátima, na Pedra
da Santa, percebem-se pichações na superfície da cavidade
da formação rochosa, muitas delas diretamente nas pinturas
rupestres. Outro impacto detectado na área diz respeito ao
grande número de turistas e visitantes no local, colaborando
para uma produção de resíduos sólidos, que por sua vez são
jogados no local, haja vista a falta de coletores como também
a ausência da limpeza do entorno por parte dos membros da
organização das atividades religiosas.

Turismo educacional
Segundo Beni (2007) o turismo educacional é uma moda-
lidade de turismo que remete às viagens de caráter cultu-
ral, realizadas com o acompanhamento de professores com
programas de aula já estruturados. Essa atividade consiste
basicamente em visitas que promovam o desenvolvimento
educacional dos estudantes.
Conforme o autor, esse conceito se estende também às via-
gens nacionais e regionais que tenham como objetivo principal
o estudo de ecossistemas e demais aspectos do meio ambiente.
Para Zimmermann (2005), esse é um segmento do turismo
que está baseado em programas e atividades que tencionam o
aprendizado, o treinamento ou a ampliação de conhecimentos
por meio de atividades realizadas in loco. Acrescenta que as
atividades inseridas no turismo educacional estão vinculadas
principalmente às áreas da antropologia, botânica, culinária,
dos idiomas, da fotografia, zoologia, entre outras. Ele enfatiza
ainda que essas viagens mobilizam estudantes e professores e
nos fazem interagir com os profissionais locais.
Por sua vez, Cunha et al. (2003) caracterizam o turismo
educacional como sendo viagens de estudo, que venham a se

79
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

constituir como ajuda aos alunos na construção da percepção


da realidade, havendo, acima de tudo, interação com os par-
ticipantes, tanto entre os estudantes entre sim como também
entre estes e os membros da comunidade visitada.
Assim, nessas conceituações para o segmento da ativi-
dade turística, tem-se levado em conta tanto o tipo de turista
que pratica essa atividade e sua motivação, como também as
características do local que é visitado.
Desse modo, o turismo educacional também se faz pre-
sente no PEPB. A beleza cênica do Parque é formada pelo con-
junto rochoso e pelos recursos faunísticos e fitogeográficos,
bem como pelos vestígios arqueológicos; é cenário e laboratório
de pesquisadores de diversas instituições e localidades, tais
como a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade
Estadual da Paraíba (UEPB), Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG), Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), entre outras. São geógrafos, biólogos, geólogos, turis-
mólogos, historiadores, entre outros profissionais atraídos pela
diversidade ambiental e cultural do local.
O Parque também recebe professores e alunos do ensino
básico, profissionalizante e superior, que encontram, no
ambiente local, a possibilidade de vivenciar in loco os conhe-
cimentos adquiridos na sala de aula. Segundo informações da
Administração do PEPB, a maioria dessas visitas é realizada
por meio do agendamento, porém a administração do PEPB não
tem o controle do número de estudantes que visitam o local.
Na realidade, o turismo educacional em unidades de
conservação, como vem acontecendo no PEPB, precisa garantir
o cumprimento de um dos objetivos principais da criação dessas
áreas que, além da preservação e da restauração da diversidade
de ecossistemas naturais, é proteger as características rele-
vantes de natureza geológica, geomorfológica, espeleológica,
arqueológica, paleontológica e cultural (BRASIL, 2000).

80
Viagens à natureza:
um olhar sobre o turismo em unidades de conservação

Desse modo, a prática do geoturismo, nesses ambientes


naturais, pode contribuir para que as pessoas despertem o
interesse pelo conhecimento e pela valorização dos aspectos
geológicos e geomorfológicos de uma região, objetivos estes
que, na maioria das vezes, são secundários na prática do ecotu-
rismo. Dessa maneira, o geoturismo pode ser uma importante
ferramenta para o desenvolvimento de ações de geoconservação
do patrimônio natural (LEITE DO NASCIMENTO; RUCHKYS;
MANTESSO-NETO, 2007).

Considerações finais
A problemática das Unidades de Conservação e das ati-
vidades nelas desenvolvidas, em especial o ecoturismo, está
longe de se resumir à definição e institucionalização de áreas
e biomas a serem protegidos. É visível que tais etapas não são
suficientes para garantir a preservação e/ou o manejo susten-
tado dos diversos ecossistemas, que, para serem alcançados,
dependem de políticas públicas efetivas.
De acordo com as informações e os dados coletados
durante o desenvolvimento da presente pesquisa, é possível
inferir que o Parque Estadual da Pedra da Boca (PEPB) é formado
por complexo rochoso de grande beleza cênica, abriga espécies
da fauna e da flora endêmicas do bioma caatinga, e possui um
cenário com importante valor histórico-cultural, com pinturas
rupestres existentes nas formações rochosas.
O Parque tem potencial para a prática de modalidades
turísticas como o turismo ecológico, de aventura, religioso e edu-
cacional, segmentos que crescem a cada ano na área em estudo.
Entretanto a visitação em áreas naturais, como qual-
quer outra atuação humana no espaço geográfico, ocasiona
alguns efeitos que são intrínsecos ao desenvolvimento da ati-
vidade. Como o impacto nulo é praticamente impossível de ser
alcançado, o que se deve buscar é a minimização dos impactos

81
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

negativos da visitação e a maximização dos impactos positivos


e da qualidade da experiência do visitante. Para tanto, faz-se
necessária a construção de estratégias e metodologias que
conciliem conservação e visitação, além da adoção de instru-
mentos e ações de manejo que contribuam para a minimização
dos impactos.
Diante desses princípios, almejando compatibilizar a
oferta turística e, ao mesmo tempo, conservar os recursos
naturais do PEPB e entorno, cabe aos seus gestores buscar a
integração das políticas e dos procedimentos de planejamento
e gestão da visitação das Unidades de Conservação, mediante
as seguintes diretrizes e ações: investir na implantação de
uma infraestrutura adequada, para que a relação da atividade
turística e da conservação do ambiente seja desenvolvida de
forma harmoniosa; ampliar programas que insiram a comuni-
dade local nas atividades do Parque; investir na formação de
guias preparados para orientar e monitorar o fluxo turístico,
e que ajudem na preservação do lugar; promover cursos e trei-
namentos voltados para a preservação e manutenção do meio
ambiente local e desenvolver campanhas didáticas em educação
e legislação ambientais, com o objetivo de conscientizar os
visitantes, moradores locais e turistas, no que se refere ao uso
e à manutenção da natureza.

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Viagens à natureza:
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84
A cartografia dos insumos
que sustentam o turismo
na cidade de Natal-RN1
Edna Maria Furtado2
João Mendes da Rocha Neto3

Introdução

O diálogo entre turismo e geografia não é novo nas propostas de


investigações científicas. No entanto, apesar da diversificação de
objetos de pesquisa possíveis de se estudar nessa relação, ainda
se percebe, por um lado, a persistência de alguns temas, que
têm sido tratados exaustivamente e que, por vezes, se repetem.
E, por outro lado, ainda permanecem lacunas sobre aspectos
relevantes nessa aproximação entre turismo e geografia.
Um desses aspectos, que se estuda bastante pensando
na perspectiva econômica, são os denominados efeitos multi-
plicadores da atividade e os transbordamentos do turismo em
determinadas localidades para o seu entorno. No entanto, as

1 Pesquisa financiada com recursos do Conselho Nacional de Pesquisa


(CNPQ), Projeto nº 482633/2012-3.
2 Doutora em Ciências Sociais e Professora do Departamento e do
Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte – UFRN.
3 Doutor em Administração Pública e Professor do Programa de Pós-
Graduação em Administração da Universidade de Brasília – UnB.

85
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

formas de evidenciar esses processos se restringem a quadros,


gráficos e tabelas os quais expressam a dimensão geográfica.
Percebe-se que tem faltado a essas análises um dos mais impor-
tantes recursos da geografia, os mapas e cartogramas que
revelem a tessitura dessas redes de relações.
Ademais, os estudos sobre o turismo têm ficado circuns-
critos ao momento do “acontecer turístico”, ou seja, quando o
viajante chega ao seu destino e se utiliza de serviços diversos
durante sua permanência no local, sem considerar que, para
esse momento, um conjunto de insumos contribui. São processos
que vão desde os alimentos servidos nas refeições até os bens e
equipamentos duráveis, passando pelos serviços terceirizados
prestados durante esse deslocamento do turista.
A proposta deste capítulo é exatamente explorar essa
espacialização dos insumos que dão suporte ao “acontecer
turístico”, tomando por base os grandes estabelecimentos hote-
leiros, localizados na Via Costeira em Natal-RN, que operam
uma complexa e diversa cadeia de insumos.
Para tanto, houve uma revisão bibliográfica que não se
prendeu a categorias analíticas, mas a autores que contribuem
para o entendimento da proposta. Além disso, foi realizado
um extenso trabalho de levantamento de dados secundários,
junto a órgãos e instituições que tratam do tema, bem como dos
primários, via aplicação de questionários nos estabelecimentos
hoteleiros de maior porte, localizados na Via Costeira, que
procurou conhecer a origem de produtos diversos.
Após a coleta de dados, houve a sua consolidação, que
evidenciou uma lógica na distribuição dos fluxos de insumos,
demonstrados por meio de uma base cartográfica que continha
não só o território brasileiro, mas o estado do Rio Grande do
Norte e o planisfério, de forma que se pudesse visualizar as
origens dos produtos e serviços pesquisados.

86
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

Esses resultados possibilitaram as análises realizadas


neste capítulo, na segunda seção, em que são apresentadas
de forma detalhada as possíveis representações cartográficas
dos dados levantados e uma breve explanação da metodologia
empregada na pesquisa empírica. Essa seção é precedida por
um breve debate teórico que procura situar o leitor no contexto
da pesquisa e, como já dito, não pretende fazer uma análise
conceitual em relação ao objeto.
Mais do que a contribuição teórica específica para o
turismo, o capítulo sugere a replicação da metodologia e o
seu posterior aperfeiçoamento, a fim de desvendar não só a
lógica espacial dos insumos dessa atividade, que também serve
para outros setores produtivos que igualmente se servem de
insumos diversificados, sobretudo em um momento no qual a
interdependência entre os espaços adquire maior relevância
em face da globalização.

Debate teórico: situando o leitor


no contexto da pesquisa
É importante destacar aspectos que traduzem (e fun-
damentam) a intenção do presente capítulo. O primeiro deles
refere-se às representações dos fatos socioeconômicos e das
possíveis formas de traduzi-los, pensando, sobremaneira, nas
expressões que a geografia utiliza para isso. Nesse sentido,
a contribuição de Marafon, Fevrier e Corrêa (2013, p. 513) é
relevante:
Entender o que é o espaço geográfico contribui para a busca
por caminhos que melhor possam auxiliar na interpreta-
ção dos fenômenos socioespaciais. Na medida em que se
identificam as características do espaço, entendendo-se as
relações que existem entre suas partes, torna-se mais simples
estabelecer os caminhos de análise [...].

As representações, portanto, em suas diversas possibilida-


des, constituem-se em um importante recurso de comunicação,

87
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

as quais trazem informações que, quando analisadas, produ-


zem interpretações dos distintos fenômenos que expressam.
Assim, tais representações muitas vezes são reveladoras de
fatos e possibilitam ultrapassar uma primeira impressão para
se aprofundar e encontrar aspectos complexos e contraditórios
que os envolve. Portanto:
[...] a representação é primordial para compreender o espaço
geográfico consolidando-se enquanto elemento fundamental
para o processo de conhecimento e de relações, pois tem
como caráter ultrapassar a dimensão tecnoinformacio-
nal, procurando a essência dos fenômenos representados
(FRANCISCHETT apud KUNZ, 2013, p. 137).

A interpretação que a geografia faz dos fenômenos pode ser


subsidiada por formas diversas de apresentação dos dados e de
suas representações, que podem ser por meio de gráficos, tabelas,
fluxogramas, quadros, etc., desde que tragam o corte espacial
desses fatos. Quando isso ocorre, há possibilidade de expressar
tais fenômenos espacialmente, seja por mapas, cartogramas,
cartas, permitindo um recurso de interpretação que é peculiar
à geografia. Sobre tal situação, Martinelli (2010, p. 137) destaca:
[...] a cartografia temática possui as funções de registrar,
tratar dados e comunicar informações reveladas por eles. Tem
como propósito central evidenciar as relações fundamentais
de diversidade, ordem e proporcionalidade, em que a reali-
zação de mapa temático para a geografia é uma atividade
de comunicação utilizada na construção do conhecimento
geográfico a fim de permitir melhor esclarecimento e maior
apropriação dos objetos da ciência geográfica.

Essas representações tratadas na forma cartográfica


seriam aquilo que Kunz (2013, p. 136) denomina de “Expressão
Espacial”, que seria: “[...] a configuração cartográfica de informa-
ções geográficas; ou seja, a expressão de determinado conjunto
de informações geográficas, considerando a espacialidade
alcançada por meio do uso da linguagem cartográfica”. Assim, a
miríade de informações disponíveis hoje nas mais diversas bases
de dados, tanto nacionais como internacionais, sinaliza, para

88
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

interpretações e análises de fenômenos diversos em múltiplas


escalas que, por sua vez, vão se expressar a partir de diferentes
recortes espaciais.
Cabe, no entanto, destacar que esse conjunto de dados
não possui sentido se não for pensado na perspectiva dos movi-
mentos que fundamentam a constituição do espaço. São esses
dados, portanto, os recursos que elucidam fatos e fenômenos,
mas também trazem reflexões. Nesse sentido, Carlos (2011,
p. 23) afirma:
[...] o espaço, tal qual pode ser pensado no pensamento geográ-
fico, funda-se e ganha sentido na análise da ação do homem
no planeta como movimento da atividade que permite a vida
na terra em sua objetividade material, constitutiva do mundo
social, na qualidade de processo civilizatório. Nessa condição
de movimento, o espaço é duração e simultaneidade de atos
e ações, situando a possibilidade de compreensão do mundo
no plano da práxis.

Com isso, pode-se afirmar que o conhecimento dos pro-


cessos adquire profundidade quando tratado espacialmente,
pois assim se manifestam similitudes e particularidades. Logo, a
representação cartográfica é instrumento fundamental para os
geógrafos e, seja qual for a sua orientação teórico-metodológica,
o recurso da espacialização é sempre um aliado nas análises.
Nesse sentido:
[...] a compreensão do que configura o espaço geográfico e de
como ocorrem suas transformações é necessária para se definir
que caminhos podem ser seguidos em termos metodológicos
para a análise dos processos socioespaciais. Considerando-se
que não existe uma fórmula para analisar os fenômenos que
se realizam no espaço geográfico, uma vez que estes são dinâ-
micos e não podem ser tomados em sua totalidade, é preciso
entender o espaço e avaliar se os elementos escolhidos são
suficientes para alcançar um resultado satisfatório na pesquisa
[...] (MARAFON; FEVRIER; CORRÊA, 2013, p. 514).

Assim, os autores discutem não somente as possibilidades,


mas também alertam para as limitações, sempre possíveis, das

89
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

representações. É natural a existência de fenômenos com tempos


diferentes e, portanto, suas representações seguem a mesma
cronologia, quando expressadas em mapas ou cartogramas.
Portanto, as mudanças em um instrumento desses que retrate
uma bacia hidrográfica são bem mais lentas do que aquelas que
mostram a expansão de uma área urbana, embora pudessem
estar associados, desde que um estivesse afetando o outro. Sobre
tal aspecto, Alves (apud MARAFON; FEVRIER; CORRÊA, 2013, p.
522) destaca: “[...] a complexidade dos fenômenos que ocorrem
no espaço geográfico dificulta a escolha de um método único
de investigação por causa da velocidade e da dinamicidade de
suas transformações [...]”.
Quando a análise se debruça sobre aspectos relacionados à
dinâmica social e econômica, há uma necessidade constante de
atualizar esses mapas e cartogramas, pois as mudanças podem
ocorrer em curtos lapsos de tempo e torná-los obsoletos se
não dialogarem com os dados produzidos a partir desses fatos.
Ademais, a velocidade dos acontecimentos afeta a escolha
do método que, na maior parte das vezes, não pode ser único,
em face da complexidade dos fenômenos tratados, bem como
para aprofundar e oferecer qualidade à análise. Nesse sentido,
Corrêa (apud MARAFON; FEVRIER; CORRÊA, 2013, p. 524) traz
uma importante contribuição, mostrando, inclusive, que
[...] as representações matricial e topológica devem, em nosso
entender, constituir-se em meios operacionais que nos per-
mitam extrair um conhecimento sobre localizações e fluxos,
hierarquias e especializações funcionais, neste sentido, uma
importante contribuição que, liberada de alguns de seus
pressupostos [...] pode ajudar na compreensão da organização
espacial [...]

Tal afirmação contribui para o entendimento que algu-


mas contribuições metodológicas das denominadas “Escolas
Tradicionais” ainda são de grande importância na compre-
ensão dos fenômenos atuais, mesmo quando analisados à luz
da dialética e de uma postura crítica do pesquisador. Nesse

90
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

sentido, muito mais do que um purismo metodológico, que


muitas vezes relega ao plano secundário algumas técnicas
importantes para a geografia, compete ao investigador lançar
mão dos recursos necessários à interpretação do seu objeto de
pesquisa. Desse modo:
Essa inteligência de representação é indispensável para o
trabalho do geógrafo, pois tem como objetivo comunicar uma
determinada ideia de modo mais preciso possível [...] ou seja,
as técnicas empregadas visam alcançar a melhor expressão
dos fatos observados no espaço (KUNZ, 2013, p. 139).

Esse breve debate sobre a expressão dos processos socio-


espaciais e das formas de representá-los cartograficamente
contribui empiricamente para o presente trabalho, qual seja a
espacialidade dos fluxos de insumos que sustentam a atividade
turística na cidade de Natal-RN. Para tanto, é necessário uma
pequena digressão sobre tais fluxos, que encaminha o segundo
aspecto relevante para o estudo, entendendo a importância
da relação entre os aspectos conceituais que tratam do tema
e a associação destes com os processos sociais e econômicos.
O ponto de partida desse debate revela-se no entendi-
mento de Milton Santos sobre a importância dos fluxos na
concepção de um dos conceitos fundamentais para a Geografia:
“O espaço é, também e sempre, formado de fixos e de fluxos.
Nós temos coisas fixas, fluxos que se originam dessas coisas
fixas, fluxos que chegam a essas coisas fixas” (SANTOS, 1991,
p. 77). Assim, os fluxos são um dos elementos na constituição
do espaço e, portanto, desempenham papel importante na sua
compreensão.
Quando pensados como parte da dinâmica que produz e
reproduz o espaço, os fluxos evidenciam movimentos e trocas de
natureza diversa que podem ser objeto de análise da Geografia
em suas diversas matizes, principalmente na abordagem eco-
nômica. Nesse sentido, a contribuição de Milton Santos traz a
relevância do conceito de fluxos para os estudos dessa natureza:

91
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

[...] os fluxos são o movimento, a circulação, e assim eles nos


dão, também, a explicação dos fenômenos da distribuição
e do consumo. Desse modo, as categorias clássicas, isto é, a
produção propriamente dita, a circulação, a distribuição e o
consumo, podem ser estudados através desses dois elementos:
fixos e fluxos (SANTOS, 1991, p. 77).

Logo, os fluxos são, desde sempre, uma importante cate-


goria para a compreensão do funcionamento das relações sociais
e econômicas nas sociedades. Sua aplicação possibilita estudos
setoriais, com escalas geográficas semelhantes ou diferentes,
ou mesmo pesquisas de corte mais amplo e geral. Enfim, cons-
tituem-se em um recurso conceitual que oferece explicações
ou suscita questões infindáveis em face das possibilidades que
se abrem para sua aplicação.
Como já foi dito antes, o uso de alguns recursos metodo-
lógicos não deve ser isolado e entendido como desta ou daquela
escola da Geografia, pois continuam sendo bastante válidos
quando analisados segundo aportes conceituais apropriados
a cada momento e à postura dos pesquisadores.
Na perspectiva da Geografia econômica, a organização
do espaço, a partir da atividade turística, foi sistematizada por
Miossec, tomando por base os círculos de von Thunen para
mostrar como as distintas frações de uma área, onde a atividade
se desenvolve, são afetadas pelos fluxos de viajantes e pelas
mudanças promovidas no espaço. Tratava-se, no entanto, de um
modelo que se limitava ao “acontecer” da atividade, sem consi-
derar as articulações espaciais necessárias a essa realização4.
Cabe destacar que os fluxos, diferentemente da perspec-
tiva que possuem na escola crítica, tiveram relevância na Nova
Geografia, quando espacializaram alguns fenômenos e contribu-
íram para estruturar modelos de redes e sistemas, a exemplo dos
estudos de Christaller e de Perroux, ainda hoje muito utilizados
por geógrafos de matizes diversos nas suas pesquisas.

4 Para aprofundar a leitura, ver Silva (1999).

92
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

Os estudos sobre circulação e trocas e, portanto, sobre


fluxos, não são novos na Geografia. Em publicações da década de
19305, por exemplo, já há menção à “geografia da circulação” e,
tratando mais especificamente de alimentos e outros produtos
de consumo imediato, já na década de 1970, há um artigo de
Judith La Corte, publicado pelo Boletim Paulista de Geografia,
intitulado “Abastecimento da cidade de São Paulo em produtos
hortifrutícolas: problemas e métodos de um estudo”.
Embora os trabalhos mencionados não tratem dos flu-
xos na perspectiva relacional, já há uma sinalização para a
importância dessa movimentação na constituição dos espaços,
e aqui a dimensão econômica entrelaça os fixos e os fluxos,
amalgamando-os como resultado final, momentâneo e proces-
sual dessas trocas. Nessa perspectiva, Milton Santos traz uma
contribuição que permite compreender a destacada função dos
fluxos no contexto da economia globalizada:
O território é formado por frações funcionais diversas. Sua
funcionalidade depende de demandas de vários níveis, desde
o local até o mundial. A articulação entre diversas frações do
território se opera exatamente através dos fluxos que são criados
em função das atividades, da população e da herança espacial
(SANTOS, 2012, p. 96, grifos nossos).

Para contribuir com o objeto aqui discutido, cabe não


somente um debate conceitual, mas um entendimento do que
seriam esses espaços na perspectiva da economia globalizada,
terceiro aspecto relevante para a compreensão do objeto deste
capítulo, que acelerou as trocas, bem como diversificou e intensi-
ficou os fluxos. Esse cenário é destacado nas palavras de Milton
Santos (2012, p. 219) “[...] a atual divisão territorial do trabalho,
criada a partir de uma tal multiplicidade e diferenciação dos
lugares, é, desse modo, mais extensa e exigente”. Assim, a divisão

5 Na obra Compêndio de Cosmografia, Cartografia, Geografia Geral e Geografia


de Portugal Continental, Insular e Ultramarino há um capítulo inteiro
dedicado à circulação e trocas, tanto no âmbito do continente europeu
como com as terras além-mar.

93
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

do trabalho em distintas escalas e a economia internacionali-


zada estabelecem novas, e complexas, lógicas nas transações
e, consequentemente, na orientação dos fluxos, tornando-os
um emaranhado cada vez menos fácil de explicar e entender.
No entanto há um fato que subjaz a essas novas estruturas
de troca: a intensa utilização do espaço e de suas potencialidades
e vocações, sejam elas naturais ou criadas artificialmente. Nesse
sentido, Milton Santos, igualmente, oferece uma contribuição
que serve àquilo que o capítulo discute, ao dizer:
Produtividade espacial ou produtividade geográfica, noção
que se aplica a um lugar, mas em função de uma determinada
atividade ou conjunto de atividades. Essa categoria se refere
mais ao espaço produtivo, isto é, ao “trabalho” do espaço. Sem
minimizar a importância das condições naturais, são as con-
dições artificialmente criadas que sobressaem, enquanto são
expressão dos processos técnicos e dos suportes geográficos
da informação [...] (SANTOS, 2012, p. 248).

Dessa forma, espaços especializados, como aqueles que


são destinados ao turismo, sejam eles vilarejos, sejam grandes
cidades, são uma junção desses quadros naturais e do trabalho
humano que os transformam em “paisagem”, objeto de desejo
e de consumo, “turistificando-os”, por meio de um conjunto de
fluxos de investimentos e de viajantes, mediados pelas políticas
públicas. Quando esse processo se dá no espaço urbano, vale
registrar a seguinte afirmação de Soares (2015, p. 233): “[...]
as contradições que se instauram a partir da promoção e da
realização do turismo no espaço urbano aparecem como efeitos
do planejamento do próprio turismo no urbano [...] da própria
organização espacial que prepara a cidade para o turismo”.
Segundo o autor, esse processo “fratura” o urbano, criando os
denominados espaços turistificados.
Nesse contexto de internacionalização das economias,
o turismo seria, então, o quarto pilar para a compreensão do
objeto do presente capítulo, uma vez que a pesquisa empí-
rica trata dos fluxos que dão sustentação a essa atividade na

94
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

cidade de Natal-RN, notadamente o bairro de Ponta Negra e seu


entorno imediato, considerado como a área mais turistificada
da capital potiguar.
O turismo é um fenômeno social que não acontece num
vazio, mas numa sociedade em funcionamento, e ele é, por sua
vez, consequência da dinâmica desta. O turismo é afetado por
condicionantes culturais, geográficos, políticos, econômicos
e legais, no âmbito nacional e internacional (BARRETO, 2003).
Portanto, também sofre as consequências dos ciclos virtuosos
e críticos do modo de produção e se reestrutura a partir deles.
A produtividade geográfica que Milton Santos destaca é
encontrada em diversas cidades brasileiras, mas em particular
no Nordeste, e relaciona-se ao turismo, visto como uma das
saídas para o problema da pobreza, que ainda afeta grandes
contingentes populacionais e atinge extensas áreas na região.
A contribuição de Dantas (2010, p. 28) elucida esse quadro:
Tem-se, no Nordeste brasileiro, a transformação de uma
região não turística em uma região com “vocação” turística
em período curto de tempo, aproximadamente 20 anos. A pro-
blemática de valorização contemporânea das zonas de praia
nos trópicos instaurou discussões que abalaram a imagem
tradicional da Região, com passagem de imagem associada à
pobreza para outra de caráter, sobretudo turística, vinculada
ao sol, às jangadas e aos coqueirais.

Assim, trata-se de uma “turistificação” quase imposta


como porta única de saída para os problemas regionais, que
se dá em meio a uma onda de crescente competitividade pelos
fluxos internacionais, instaurando-se, no Nordeste brasileiro,
uma corrida predatória entre os estados pelos viajantes vin-
dos do centro-sul do país e do exterior. David Harvey aclara
tal processo ao dizer que “[...] a competição interlocal não é
apenas pela atração da produção, mas também pela atração
de consumidores, por meio da criação de um centro cultural,
de uma paisagem urbana ou regional agradável ou de outro
artifício” (HARVEY apud SANTOS, 2012, p. 249).

95
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Quando esses destinos vão se consolidando, em face de


sua atratividade associada à sua competitividade, se avolumam
os fluxos, e se tornam locais de turismo de massa, em virtude
dos preços acessíveis praticados. Esse processo de expansão é
explicado nas palavras de Fernandes (2013, p. 111): “Enquanto
processo geográfico e uma cadeia de serviços, o turismo tem
ampliado as suas fronteiras espaciais, sociais e funcionais”.
Dessa forma, o mesmo movimento feito pelo setor de
transformação, rumo aos países da semiperiferia, foi feito pelas
grandes empresas que atuam no setor do turismo, que foi além
da indústria e alcançou áreas da denominada periferia. Isso tor-
nou algo comum encontrar a presença das principais bandeiras
da hotelaria mundial em países como Moçambique, Guatemala,
Laos ou qualquer uma das paradisíacas ilhas do Pacífico e do
Caribe. Especificamente em relação ao Brasil, Silva (2010) destaca
que, desde 2004, há um crescente investimento por parte de
grandes cadeias hoteleiras mundiais, sobretudo no Nordeste,
seja na forma de resorts, seja nas segundas residências, seja nos
complexos de lazer e esporte.
A presença em áreas longínquas tem uma trama que une o
local e o global o tempo todo, não só pela instalação desses esta-
belecimentos, ou pela presença dos hóspedes estrangeiros, mas,
sobretudo, pelos fluxos de insumos que se dão com a finalidade de
viabilizar cotidianamente seu funcionamento, seja nos insumos
que permitiram sua construção, seja naqueles que viabilizam a
permanência dos visitantes, como os alimentos e eletroeletrônicos,
sem deixar de considerar o mobiliário e os enxovais.
As transformações nas cidades turísticas do Nordeste
possuem uma dimensão estrutural vinda com os recursos dos
Programas Regionais de Desenvolvimento do Turismo (Prodetur/
NE), mas só se concluem com o processo de embelezamento
de bairros ou zonas inteiras, com intuito de atrair visitantes
e investidores para a atividade, conforme se evidencia na fala
de Dantas (2010, p. 55):

96
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

A conjugação de aeroporto, saneamento e transporte, de forte


impacto na lógica de valoração do solo na zona costeira, gera
quadro peculiar e denotador de racionalidade concentradora
das ações do estado no espaço, gerando lógica de fragmentação
representativa do pinçamento de parcelas específicas do terri-
tório e associada às políticas de desenvolvimento do turismo.

Portanto, para constituir os polos turísticos do Nordeste,


atuaram conjuntamente governos estaduais, locais e o governo
central, por meio de suas políticas públicas, cada um elaborando
estratégias para garantir competitividade em um cenário de
acirramento na disputa pelos fluxos de viajantes. Embora com
algumas sutis diferenças, uma das ações foi comum a quase todos
os estados da região Nordeste: a estruturação de “enclaves”, os
denominados Megaprojetos Turísticos.
Rodrigues (2006) afirma ser esse o modelo hegemônico no
território brasileiro que se caracteriza pela descontinuidade,
pela formação de redes complexas e funcionais, a partir da
lógica mercantil e integradora do turismo local-regional aos
fluxos de viajantes e movimentos do capital global voltado para
o lazer. A autora conclui que:
[...] esse modelo está sendo formatado com grande força na
região Nordeste, através do PRODETUR [...] sendo responsável
por uma grande transformação na valorização do território,
produzindo-se novas territorialidades que se expressam na
paisagem através de formas estandardizadas [...] (RODRIGUES,
2006, p. 307).

De forma geral, esses nucleamentos criaram espaços


altamente especializados, nos quais o turismo “se realiza”
em sua plenitude, reunindo estabelecimentos hoteleiros, de
porte diferenciado, restaurantes, bares, e outros serviços de
alimentação e lazer, além de agências de turismo receptivo
e locadoras de automóveis. Assim, todas as necessidades do
viajante estavam reunidas em um só lugar, tornando essas áreas
igualmente atrativas para as populações locais que demandam
serviços de lazer e alimentação, isso para se falar no essencial
que a atividade requer na sua estruturação.

97
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Esses passam a ser os locais estudados tanto pelo Turismo


como pela Geografia, e mesmo pela Economia, para discutir
os efeitos da atividade nos locais e na região, sob o ponto de
vista dos seus efeitos multiplicadores e dos transbordamentos.
E muitas foram as pesquisas realizadas ao longo das últimas
décadas que consideram esses espaços do “acontecer” turístico,
o que evidenciou importantes transformações nesses locais,
sem, no entanto, investigar as áreas que fornecem insumos
para que a atividade se realize.
Alguns estudos se debruçaram sobre a estrutura de
consumo dos estabelecimentos hoteleiros, a exemplo de uma
pesquisa realizada pelo SEBRAE Nacional em 2006, que deta-
lhou os bens duráveis que são adquiridos e a frequência dessas
aquisições, segundo as unidades da federação, além de esti-
mar a rotatividade desses bens em função do tempo de uso e
das manutenções.
Da mesma forma, uma pesquisa desenvolvida pelo
Governo do Distrito Federal, igualmente em parceria com o
SEBRAE-DF, teve como pano de fundo o debate sobre os efeitos
multiplicadores da atividade turística na economia. No entanto,
os agrupamentos espaciais da pesquisa dividiram-se somente em
Distrito Federal e outras Unidades da Federação, sem detalhar
a origem dos insumos utilizados na rede hoteleira. Da mesma
forma, os produtos também ficaram agregados por setores:
primário e secundário, sem que houvesse maior aprofundamento
sobre os seus locais de origem.
Há ainda que se mencionar um estudo realizado pelo
SEBRAE-PE, intitulado Cadeia produtiva do Turismo: cenários econômi-
cos e estudos setoriais, em 2006, que investigou os efeitos da atividade,
considerando, sobretudo, os grandes estabelecimentos hoteleiros
dos maiores polos daquele estado: Recife e Porto de Galinhas.
No entanto, apesar de cada uma das pesquisas já trazer
um conjunto razoável de números e resultados que qualifica o

98
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

debate sobre os fluxos de insumos e as ligações estabelecidas, ainda


careciam de uma representação geográfica na forma de mapas que
possibilitasse uma visualização da tessitura dessa rede de trocas.
A opção pela Via Costeira, na cidade de Natal-RN, resultou
dos estudos e dados estatísticos que revelam ser essa a área de
maior concentração dos grandes estabelecimentos hoteleiros
da capital potiguar, conforme mostra a fotografia seguinte.

Figura 1 – Panorâmica da fileira


de hotéis da Via Costeira – Natal-RN

Fonte: Portal Natal Notícias (http://www.natalnoticia.


com/tag/www-natalnoticia-com/2016)

Em Natal, o turismo toma fôlego, nos anos de 1990, com


a corroboração determinante das políticas públicas que apre-
sentavam como objetivo estruturar e incluir a capital potiguar
no disputado cenário regional, nacional e internacional dos
destinos turísticos, capitaneado, especialmente, pela atuação
dos governos federal, estadual e municipal.
Deve-se ressaltar que essa incorporação resulta da
segunda fase da reestruturação produtiva já mencionada, que
teve episódios marcantes, tais como: a) forte segmentação da
atividade, embora o modelo sol-mar ainda se mostre hegemô-
nico; b) desconcentração da atividade, tanto nacional como
regionalmente, com diversos polos emergindo, muitos deles
em pequenos vilarejos; c) pulverização no território brasileiro

99
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

requereu infraestruturas elementares, com vistas a garantir


acessibilidade; d) necessidade de melhorar os serviços, o que
atraiu grandes corporações internacionais ligadas tanto ao setor
hoteleiro como de alimentação e agenciamento; e e) políticas
normativas e estruturantes formuladas pelo Estado brasileiro.
Desse modo, o complexo Parque das Dunas/Via Costeira
e sua fileira de hotéis (FURTADO, 2005) foram a consequência
desse conjunto de fatores. Além da infraestrutura necessária
para o lugar existir como destino turístico, outras intervenções
ocorreram, tanto na esfera institucional como na cultural e na
social, a fim de permitir uma maior interação com essa Natal
historicamente voltada para a economia local, e no máximo
estadual, que deu lugar a uma cidade turística com traços
cosmopolitas, incorporando fortemente o terciário moderno
e subordinando-se a uma rede muito mais ampla como ponto
intermediário, considerando que tornou-se um ponto de distri-
buição de fluxos para as áreas litorâneas adjacentes ao norte e
ao sul. Nesse sentido, Barros (2009, p. 29) ressalta: “[...] a cidade
de Natal se tornou, na última década, uma destinação turística
que se destaca. Na realidade, o litoral potiguar – especialmente
Natal e o litoral sul desta cidade – vem oferecendo decisiva coo-
peração para o crescimento do turismo no Nordeste do Brasil”.
Nesse sentido, houve apostas de que o turismo poderia ser
um dos grandes motores para o desenvolvimento do Rio Grande do
Norte, tanto pelo efeito multiplicador do principal polo do estado
como também pela possibilidade de interiorização da atividade.
A aplicação dos instrumentos se deu junto aos 11 estabe-
lecimentos hoteleiros localizados na Via Costeira, considerados
todos de grande porte e que operam a partir de um conjunto
maior e mais complexo de insumos. Expressar essa espaciali-
dade é o propósito da pesquisa empírica, que será mostrada
na seção subsequente.

100
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

Transitando da teoria para a pesquisa empírica


Os formulários da pesquisa continham cerca de 90 itens,
que abrangem desde os produtos alimentícios (carnes, sorvetes,
pães), os utensílios e equipamentos duráveis (televisores, lençóis,
hidrantes), os produtos de higiene e limpeza, os serviços contra-
tados (terceirizados), todos esses itens foram complementados
quanto à procedência geográfica e a frequência de aquisição.
Além de proceder ao levantamento desses itens, a pesquisa
também considerou a frequência com que tais produtos são
adquiridos, uma vez que, do universo pesquisado, constam
alimentos perecíveis e outros bens de maior duração, o que
permite entender que não só a lógica dos fluxos varia, mas a
própria intensidade dessas trocas.
O intuito do questionário foi identificar o alcance da rede de
insumos que dá suporte à economia turística de Natal, entendendo
que, apesar de a capital potiguar ser o lugar onde a atividade se
realiza na sua essência, a cidade não é capaz de fornecer tudo
aquilo de que necessita o viajante durante sua estadia.
No entanto, por ser um instrumento aplicado em grandes
estabelecimentos hoteleiros e conter algumas informações sigi-
losas e correlatas a outros setores econômicos, houve dificuldade
de consolidar alguns dados da pesquisa, apesar de os resultados
já serem reveladores da espacialidade que dá suporte ao turismo
em Natal, conforme mostrado nos cartogramas que seguem.
É importante destacar que, no primeiro momento da pes-
quisa, foram realizadas entrevistas com os compradores desses
estabelecimentos hoteleiros, a fim de se verificar quais suas
necessidades diárias, sobretudo, as relacionadas à alimentação,
ocasião em que foi informado se os produtos eram adquiridos em
supermercados, em atacadistas ou diretamente com os produtores.
A maior parte dos hotéis informou que adquire os alimen-
tos da seguinte forma: a) hortifrutigranjeiros junto às Centrais de
Abastecimento do Rio Grande do Norte (CEASA-RN); e b) demais

101
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

alimentos industrializados em atacadistas ou supermercados. A


partir do inventário, foi feita uma pesquisa na CEASA-RN, nos
estabelecimentos que vendem para esses hotéis, o que gerou
um conjunto de cartogramas que será apresentado a seguir.

Figura 2 – Estados fornecedores de produtos para a CEASA-RN

Fonte: pesquisa de campo (2013)

No que se refere aos hortifrutigranjeiros, são perceptíveis os


aspectos relacionados à sazonalidade das culturas, o que permite
o rodízio entre unidades da federação de um mesmo produto, a
exemplo do abacaxi ou da própria maçã. Por outro lado, ainda
persiste um padrão de fornecimento de determinados produtos
regionais concentrados em determinadas unidades da federação,
como o caju, que se origina basicamente de Pernambuco, Paraíba
e Piauí e, de forma surpreendente, não foi informado o Ceará
como estado de origem, que é um tradicional produtor.
Observa-se, também, que aqueles produtos com ciclos
menores de vida, ou seja, que perecem mais rápido, são

102
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

provenientes dos estados mais próximos, e as unidades da


federação mais distantes fornecem frutos e legumes com maior
duração e resistência para o deslocamento, a exemplo de maçã,
cenoura, batata, pera e abacaxi.
Em alguns casos, como do abacaxi, chama atenção o fato
de a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA)
elencar os estados do Pará e da Paraíba, este último vizinho do
RN, como os maiores produtores brasileiros e não mencionar
o fornecimento do produto vindo dessas duas unidades da
federação, nos levando a questionar se a sazonalidade interfere
nesse “rodízio” entre os estados. Trata-se de uma questão que
ainda merece maior investigação. Da mesma forma, o coco
verde também chama atenção, uma vez que a Bahia, o Sergipe
e o Ceará são os três principais produtores do país, segundo a
EMBRAPA; e, na pesquisa, aparece o Rio de Janeiro como um
fornecedor expressivo, excetuando-se aquilo que vem do Rio
Grande do Norte.
No cenário regional, percebe-se uma crescente diversidade
de frutos e legumes vindos do próprio Nordeste, sobretudo dos
estados onde há grandes projetos de irrigação nos vales dos
grandes rios, como o São Francisco e o Jaguaribe. Em outros casos,
como da Paraíba, a presença se deveu ao grande número de perí-
metros irrigados à margem dos seus maiores reservatórios, bem
como em função de suas serras úmidas, áreas tradicionalmente
produtoras de alimentos para o estado e a região.
Em outros casos, as tradicionais regiões produtoras, como
Sergipe e sua laranja, ainda se fazem fortemente presentes
no fornecimento dessas frutas; ou os estados do centro-sul
e a produção de maçã e peras. Da mesma forma, quando se
observa a cultura do caju, a predominância é dos estados tra-
dicionais, como o Piauí, embora o Ceará não desponte como
um dos fornecedores.
Da mesma forma que foram apresentados resultados para
o país como um todo, foram realizados levantamentos sobre a

103
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

origem desses produtos dentro do estado do Rio Grande do Norte


que possibilitaram a espacialização representada no cartograma
a seguir, no qual os municípios fornecedores foram hachurados,
e percebe-se uma predominância nas áreas próximas à Natal,
localizadas na Mesorregião do Leste Potiguar.

Figura 3 – Municípios fornecedores de produtos para a CEASA-RN.

Fonte: pesquisa de campo (2013)

Em face da sua proximidade, a Mesorregião Leste Potiguar


predomina no fornecimento da maior parte dos produtos que
vêm do próprio estado, embora alguns deles tenham origem
em todas as demais mesorregiões, a exemplo do caju, da pinha,
do abacaxi e do limão siciliano. Já o feijão-verde origina-se
exclusivamente dessa mesorregião que dispõe dos melhores
solos para agricultura no estado. No Oeste e na Mesorregião
Central Potiguar, os municípios fornecedores quase sempre são
aqueles que ficam às margens dos principais cursos d’águas (rios
e barragens) onde há agricultura irrigada na forma de projetos
ou mesmo os pequenos produtores dispersos.

104
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

Ressalte-se que o estudo não pode lançar mão de dados


censitários, uma vez que o último Censo Agropecuário de que
se dispõe data de 2006 e apresenta uma considerável defasagem.
Assim, a pesquisa para cotejamento foi feita tomando por base
a pesquisa dos PIB municipais que desagrega em setores eco-
nômicos e, no caso da agricultura, em determinadas culturas
de maior expressão por município.
Esses dados indicam outra forma de representação
utilizada pela pesquisa que é a distribuição das culturas de
determinados produtos segundo os locais de origem, tanto no
estado do Rio Grande do Norte como no território nacional,
conforme mostrado no cartograma seguinte, que identifica as
localidades de origem do caju.

Figura 4 – Localidades fornecedoras de caju para a CEASA-RN

Fonte: pesquisa de campo (2013)

No caso anterior, além de mostrar a origem dos produtos,


o estudo considerou também os percentuais vindos tanto das
demais unidades da federação como dos municípios no Rio

105
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Grande do Norte, fazendo uma gradação de cores e informando


os valores. A opção de não representar os fluxos por intensidade
deveu-se ao fato de muitos deles se originarem de localidades
próximas, o que poderia criar uma dificuldade de distinção em
face da escala dos cartogramas.
Naturalmente, os maiores estabelecimentos trabalham
com um cardápio fixo e outro que pode ser de caráter regional,
estando sujeitos à sazonalidade de determinados insumos. No
entanto, a qualidade dos alimentos dessas unidades hotelei-
ras, em geral, é um fator determinante para as mudanças na
origem de alguns desses produtos, uma vez que esses grandes
estabelecimentos concorrem entre si viajantes mais exigentes.
Utilizando-se de procedimento similar ao adotado na
pesquisa sobre alimentos, procurou-se investigar onde são
fabricados alguns desses insumos, uma vez que, embora loca-
lizados em Natal, os estabelecimentos atacadistas são apenas
intermediários. Essa investigação levou, mais uma vez, a uma
complexa rede de fornecedores/fabricantes desses bens, con-
forme se verifica no mapa a seguir.
Ao verificar-se os dados sobre a origem das aquisições
dos utensílios domésticos, percebe-se que, diferentemente dos
produtos alimentícios, há, de fato, a participação de outros
estados brasileiros. Destaca-se a intensa contribuição do estado
de São Paulo como fonte fornecedora dos produtos destinados
à rede hoteleira, com participação de 76% nas vendas de uten-
sílios domésticos em comparação a outros estados, conforme
se verificou na aplicação dos formulários.
Ao se observar os dados, verifica-se a importância de
Natal como fornecedora de utensílios domésticos, uma vez que
a capital totaliza 78% da procedência das compras, o que se
explica em virtude da grande quantidade de hipermercados,
pois nestes são revendidos eletrodomésticos, além das aquisições
ocorrerem também em outros estabelecimentos especializados
localizados em Natal.

106
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

Figura 5 – Fluxo de utensílios domésticos para


a atividade turística em Natal-RN

Fonte: pesquisa de campo (2013)

Porém, quando se analisa alguns itens, especificamente


artigos de cama, mesa e banho, mesmo com a presença de
grandes empresas têxteis no RN, Natal possui pouca expres-
sividade, ficando atrás de outros estados, tais como São Paulo
(48%), Santa Catarina (29%), Paraná (10%), Pernambuco (10%)
e Rio Grande do Sul (3%). Poderíamos aqui falar em uma forte
participação extrarregional com fuga de recursos para outras
regiões, sobretudo o Sul e Sudeste.
Ao comparar-se a aquisição dos produtos alimentícios e
de consumo com a dos utensílios domésticos, observa-se uma
particularidade quanto à origem: 78% dos utensílios domésticos
são adquiridos em Natal. Da mesma forma que 97% dos produtos
de consumo durável e alimentícios também são comprados na
capital potiguar.

107
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Quando são verificadas as aquisições de bens duráveis,


como automóveis, eletrodomésticos, artigos de cama, mesa e
banho, mobiliário, observa-se que estes são adquiridos pre-
dominantemente em outras unidades da federação, lideradas
pelo estado de São Paulo, que possui 76% na procedência das
compras executadas pela rede hoteleira.
Já os acessórios decorativos, sobretudo de artesanato,
são adquiridos no mercado regional, a fim de dar um caráter
de maior proximidade com o lugar, conforme se verifica na
fotografia seguinte. A utilização de adereços decorativos tem
sido uma estratégia das grandes corporações hoteleiras que
atuam em escala global na tentativa de se estabelecer uma
relação mais integrada com as culturas locais, embora isso seja
apenas mais um recurso mercadológico.

Figura 6 – Fotografia do hall de entrada do Aram Natal Mar Hotel

Fonte: Portal do Aram Natal Mar Hotel

Ressalte-se que há um conjunto de atividades acessórias,


principalmente de prestadores de serviços, que, atualmente,
estão relacionadas com esses fluxos de insumos de grandes
estabelecimentos hoteleiros e que foram observadas durante
o desenvolvimento da pesquisa.
De forma geral, a prestação de serviços terceirizados
no hotel origina-se das necessidades do estabelecimento, a

108
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

exemplo da limpeza e recreação, ou de hóspedes, que vão reque-


rer algum profissional, como babás e guias de turismo, entre
outros. É interessante destacar esse caráter intermediador
que o hotel adquire transacionando interesses dos hóspedes e
dos prestadores de serviços diversos, que vão desde bugueiros
a massagistas, passando por esteticistas, personal trainers etc.
No que se refere à força de trabalho, de um universo de
870 empregados, aproximadamente 92% são de Natal, segundo
levantado na pesquisa. Quando se observa a participação do
interior do estado do RN nos dados referentes à origem dessa
força, os números apontam que, do universo total, apenas 8%
são do interior. Para os demais municípios do estado, o turismo
praticado na capital não resulta na inclusão dos trabalhadores.
Isso, em parte, deve-se ao exército de reserva disponível e à
pouca necessidade de qualificação para alguns desses postos
de trabalho.
No entanto, quando se faz um corte na estrutura hierár-
quica, observa-se que, dos 24 cargos gerenciais mencionados
entre os estabelecimentos, 13 são ocupados por trabalhadores
de fora do estado ou mesmo do país, o que representa mais
de 50% de profissionais importados, conforme se verifica no
levantamento. Tal fato corrobora algo que a literatura do turismo
aponta frequentemente em algumas áreas: os cargos mais altos
na hierarquia demandam maior qualificação e pagam melhores
salários. Assim, na maior parte das vezes, os postos mais altos
não são ocupados pela força de trabalho local, o que fica bastante
evidenciado quando se individualiza por estabelecimentos,
conforme se verifica no cartograma seguinte, que trata de uma
unidade hoteleira de bandeira internacional.
A pesquisa também apresenta uma forma de análise
seccionando por estabelecimento hoteleiro, uma vez que são
percebidas algumas similitudes, mas também particularidades,
sobretudo, quando estamos falando de unidades integradas a
cadeias mundiais, as quais mantêm uma outra lógica nas suas

109
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

operações de trocas, considerando que existem padrões de


mobiliário e exovais de roupa, mesa e banho. A figura a seguir
mostra a rede de fornecedores de um dos grandes estabeleci-
mentos hoteleiros que foi pesquisado.

Figura 7 – Origem da mão de obra do Hotel SERHS

Fonte: pesquisa de campo, 2013

Os dados levantados até o momento apontam para


algumas conclusões preliminares, mas, especialmente, para
a necessidade de um maior aprofundamento e de uma maior
qualificação das informações que deem conta de alcançar a
complexidade do fenômeno estudado.
O que aqui se apresentou foram tendências, visto que a
ampliação da amostra e do universo da pesquisa com entre-
cruzamentos pode trazer resultados diferentes. A intenção
maior dessa parte do estudo foi evidenciar as possibilida-
des metodológicas ainda pouco exploradas para compreen-
der fluxos em determinadas atividades econômicas e sua
lógica espacial.

110
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

Figura 8 – Rede de fornecedores do Hotel Pirâmide

Fonte: pesquisa de campo, 2013

Os resultados da pesquisa revelaram aspectos diferen-


ciados em relação a cada conjunto de insumos. No entanto,
constata-se que o interior do estado participa muito pouco,
de forma direta, do “acontecer” turístico da capital potiguar,
evidenciando uma atividade “encastelada” nos seus backward
and forward effects.

Considerações finais: um chamamento


para novos debates
A pesquisa sobre a espacialidade turística, no contexto
econômico do Rio Grande do Norte, aponta múltiplos meios
para estudá-la, com recortes diversos a partir do porte dos
estabelecimentos, da origem de seus fornecedores, além de outros
perfis possíveis de serem delimitados. Essas distinções aparecem
tanto quando se faz a segmentação por produtos, no caso dos
insumos, como também pela qualidade da força de trabalho.

111
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

O fato é que o turismo possui interfaces, disponibilizando


inúmeras possibilidades de estudo e abordagens. Mas essa
miríade de oportunidades de análise, algumas vezes, levanta
realidades à parte, ou seja, mostra somente um efeito produzido
pela atividade turística, de forma localizada, não revelando seus
efeitos para as áreas que fornecem insumos para sua reprodução.
No entanto, verificou-se que os estudos relacionados à
economia do turismo ainda carecem de informações, de dados
estatísticos que a fundamentem e de pesquisa constante. Apesar
de a metodologia utilizada servir para a obtenção de informações
necessárias ao desenvolvimento da pesquisa, constatou-se a
resistência quanto à obtenção de dados nos estabelecimentos
hoteleiros, em virtude de alguns deles serem considerados
sigilosos ou estratégicos.
Outra limitação metodológica da pesquisa, mas que pode
ser superada numa fase posterior, é identificar qual o efeito
desses recursos provenientes do fornecimento de determinados
insumos para as economias locais, bem como compreender
seus reflexos para os indivíduos que participam desse processo
produtivo.
Analisar as atividades que complementam o turismo a
partir da tessitura de uma rede de lugares evidencia um aspecto
pouco analisado, tanto pela Geografia como pelo Turismo ou
mesmo pela Economia. No caso específico, verificou-se que,
para que os viajantes tenham suas necessidades elementares
atendidas nos estabelecimentos hoteleiros, existe toda uma
logística dando-lhes o devido apoio, sendo criadas e desenvol-
vidas inúmeras atividades para tal.
Mais do que resultados, a pesquisa aponta para muitas
outras possibilidades de investigação por cortes diversos, que
podem ser por subsetores da atividade turística ou por áreas
geográficas que fornecem insumos para a atividade, partindo
da metodologia construída e apresentada.

112
A cartografia dos insumos que sustentam o turismo na cidade de Natal-RN

Acredita-se, ainda, que esta pesquisa pode responder


ou aproximar algumas análises sobre as reestruturações ter-
ritoriais em razão das novas dinâmicas econômicas que se
relacionam com o turismo.

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Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

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114
O turismo na vitrine do circuito
superior e o circuito inferior
do outro lado da vitrine
Edna Maria Furtado1
José Alexandre Berto de Almada2

Introdução

A natureza do modo de produção capitalista está presente


nos processos de reestruturação produtiva dos territórios.
A cada momento da história capitalista, novas demandas de
consumo e mercadorias são criadas para atender à necessidade
de reprodução desse sistema.
Natal, a capital do Rio Grande do Norte, não está imune a
essa característica do capitalismo, pois inseriu, em seu território,
a partir das décadas finais do século XX, uma nova mercadoria
para a reprodução desse sistema: o turismo.
Ressaltando que, segundo Furtado (2005, p. 134), “[...] o
turismo assume a identidade de uma mercadoria como outra

1 Doutora em Ciências Sociais e Professora do Departamento e do


Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte – UFRN.
2 Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte – UFRN, doutorando em Geografia pela Universidade Federal
de Pernambuco – UFPE – e professor da rede estadual de ensino do
Rio Grande do Norte.

115
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

qualquer, com a diferença de que o bem a ser consumido se


configura como o local a ser visitado, e vai, além disso, pois
mercantiliza os costumes, o folclore e a cultura”.
O turismo, interpretado como mercadoria, também é
possuidor de uma fetichização, característica que, segundo
Silveira (2002, p. 36), atende a uma questão de aptidão paisagís-
tica, uma vez que há “[...] uma produção de lugares turísticos,
alicerçada em grande parte na elaboração de um discurso, que
contribui para uma coisificação e uma fetichização de certos
pontos do território”.
A aptidão paisagística, que transforma pontos do terri-
tório em mercadoria, e, por sequência, o fetichiza, não pode
ser analisada apenas por seus atributos naturais, como lembra
Boyer (2003), uma vez que, a priori, “nenhum lugar é ‘turístico
em si’, nenhum sítio merece ser visitado [...]”. Existindo, na
realidade, uma manifestação da psicosfera3 sendo essa aptidão
um conjunto de dados psiconaturais que “são processos de
apropriação dos elementos ditos naturais, porque se esses
dados não têm artifício na sua constituição material, eles o têm
na sua constituição simbólica e social” (SILVEIRA, 2002, p. 37).
A atividade turística no Rio Grande do Norte, inicialmente,
apropriou-se simbolicamente do seu litoral ao criar um novo
uso para esse território, daquele usado pelas comunidades
pescadoras ao utilizado pela necessidade de reprodução do
capital pelo turismo.
Apenas a transformação psicológica da praia, de meio de
subsistência para uma comunidade a espaço de lazer para outra,
não basta para existir uma atividade turística pertinente aos
interesses dos grandes empresários do setor, pois, ao criar uma

3 De acordo com Milton Santos (1994), na obra Técnica, espaço e tempo,


a psicosfera é resultado das crenças, dos desejos, das vontades e dos
hábitos que inspiram comportamentos filosóficos e práticos, das
relações interpessoais e da comunhão com o Universo.

116
O turismo na vitrine do circuito superior e o circuito inferior do outro lado da vitrine

nova forma de uso do território, obrigatoriamente, é preciso


construir uma configuração territorial coerente para esse fim.
A reestruturação produtiva no Rio Grande do Norte
pelo setor turístico inicia-se entre 1980 e 1990, quando Natal
experimenta
um expressivo crescimento da atividade turística, consequ-
ência da implementação de equipamentos e infraestrutura
que tinham, e têm, com o objetivo de inscrever o estado
do Rio Grande do Norte e, em particular, a sua capital, no
circuito competitivo do turismo do Nordeste brasileiro
(FURTADO, 2007, p. 234).

A partir desse contexto, quais contradições foram


estruturadas, no espaço geográfico, a partir da materialização
desse processo de reestruturação produtiva? Se, a partir da
implementação de infraestrutura para o setor turístico, o Rio
Grande do Norte passou a participar do circuito competitivo
do turismo do Nordeste, a resposta para essa pergunta pode
continuar nessa linha de pensamento, a partir da análise dos
circuitos da economia urbana proposta por Milton Santos na
obra Espaço Dividido, na qual as transformações do território
potiguar podem ser interpretadas a partir do circuito superior
e inferior, relacionando-os ao setor econômico do turismo.
O circuito superior é marcado por uma especialização
do território, uma área onde se concentram infraestrutura e
serviços, como grandes hotéis, restaurantes, pousadas, boates,
lojas de souvenir etc.
Ao estudar o processo de reestruturação produtiva e
sua repercussão do espaço urbano, Furtado (2005) analisa a
espacialização do turismo a partir de três eixos de circulação:
eixo vertebrador, eixo de contato e eixo vitrine do turismo. Esse
último é o que nos interessa para análise do circuito superior
do turismo, pois se trata de uma área concentrada de infra-
estrutura e serviços turísticos, articulada pela Via Costeira e
a Av. Engenheiro Roberto Freire, tendo ao longo dessas vias

117
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

grandes hotéis, restaurantes, agências turísticas, boates, lojas


de souvenir etc.
O eixo vitrine do turismo e sua hinterlândia é, na reali-
dade, um espaço da cidade produzido para atender às demandas
de acumulação de reprodução do capitalismo por meio do
turismo. Porém, a “onda” do turismo não transformou apenas
a realidade urbana da capital do estado: o desdobramento
desse processo pode ser verificado nos municípios litorâneos
vizinhos. Um desses lugares é a praia de Jenipabu, situada em
Extremoz, ao norte de Natal.
O circuito superior chegou a esse destino com as agências
de viagens, no começo da década de 1990, passeio complementar
para quem procurava lazer no litoral potiguar. No entanto, nessa
praia, havia uma realidade geográfica distinta dos interesses
do setor em ascensão: as vilas de pescadores jangadeiros que
tiravam do mar sua subsistência.
A vinda dos turistas possibilitou a esses moradores um
novo modo de garantir a sobrevivência, e eles, aos poucos,
começaram a construir, em Jenipabu e nas áreas circunvizinhas,
pequenas barracas de praias para vender bebidas e alguns
pescados. Porém, ao contrário da parte central do eixo do
turismo, o objetivo primeiro desses pequenos estabelecimentos
comerciais não era acumular e reproduzir o capital, mas sim
combater a miséria e garantir a sobrevivência do dia seguinte.
A partir dessa realidade do litoral potiguar, o presente
trabalho busca analisar o processo de urbanização do que veio
a ser a atual Área de Proteção Ambiental de Jenipabu (APAJ),
que abrange as praias de Redinha Nova, Santa Rita e Jenipabu,
a partir da contradição e dependência entre circuito inferior
instalado nessa área e o circuito superior da vitrine do turismo.
A análise do circuito superior foi realizada a partir do
levantamento bibliográfico contido na literatura específica, princi-
palmente, na tese, A “onda” do turismo na cidade do sol: a reconfiguração

118
O turismo na vitrine do circuito superior e o circuito inferior do outro lado da vitrine

urbana de Natal, de Edna Maria Furtado (2005) e Da cidade ao campo:


a diversidade do saber-fazer turístico, de Luiz Cruz (1999).
A análise do circuito inferior foi realizada a partir do
trabalho de campo desenvolvido entre janeiro e junho de 2014,
nas praias da APAJ, no qual foram entrevistados quase todos os
comerciantes do local, excetuando-se os que não quiseram par-
ticipar da entrevista, totalizando 96 estabelecimentos visitados.

O circuito superior e inferior do turismo


A teoria dos dois circuitos da economia urbana surge
no começo da década de 1970, no contexto de renovação do
pensamento geográfico, aproximando a análise geográfica
do materialismo dialético. Nesse ponto, o espaço é analisado
a partir da contradição entre o circuito inferior e o superior.
O caráter inovador dessa teoria se encontra no recorte
espacial: os países subdesenvolvidos. Até então, era comum geó-
grafos utilizarem teorias desenvolvidas nos países do primeiro
mundo para explicar a realidade do terceiro mundo, muitas
vezes resultando em análises desastrosas, pois esses estudos até
então interpretavam o terceiro mundo como países em desen-
volvimento, países que estão “[...] numa situação de transição
para o que são hoje são desenvolvidos”. Porém, “a situação dos
países subdesenvolvidos não é nada comparável à dos países hoje
‘avançados’ antes de sua industrialização” (SANTOS, 2008, p. 19).
A relação entre os atuais países desenvolvidos e subde-
senvolvidos não se dá na ordem evolutiva, sendo o primeiro
o estágio final deste último, mas sim numa relação dialética,
quando a existência relacional entre esses países se contradiz, de
forma desigual e combinada. Sendo assim, é preciso incorporar,
na análise dos processos urbanos que originaram as cidades
do terceiro mundo, as suas interpelações com a escala global.
Após os eventos que resultaram no fim da divisão bipolar
do mundo, entre o final da década de 1980 e começo da década

119
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

de 1990, a geopolítica mundial passou por um novo modelo de


organização, uma nova ordem mundial. No entanto, as rugo-
sidades dos processos passados permaneceram presentes na
configuração territorial. Mesmo o mundo caminhando para o
novo milênio, a essência dos processos que estruturam o espaço
geográfico continua presente nas formas e funções.
A contradição dialética entre os dois circuitos da economia
ocorre por meio de uma relação de “[...] dependência do circuito
inferior em relação ao circuito superior” (SANTOS, 2008, p. 39).
Ainda sobre essa questão é importante ressaltar que:
um dos dois circuitos é o resultado direto da modernização
tecnológica. Consiste nas atividades criadas em função dos
progressos tecnológicos e das pessoas que se beneficiam deles.
O outro é igualmente resultado da mesma modernização,
mas um resultado indireto, que se dirige aos indivíduos que
só se beneficiam parcialmente ou não se beneficiam dos
progressos técnicos recentes e das atividades a eles ligadas
(SANTOS, 2008, p. 38).

O surgimento da atividade econômica do turismo está


diretamente relacionado à modernização tecnológica. Segundo
Boyer (2003, p. 66-67):
chegar às altas montanhas era, no século 19, uma cansativa
proeza individualista. No século 20, isto se tornou acessível
às massas graças aos engenhos mecânicos de subida da mon-
tanha. Acompanhando a difusão do turismo de montanha,
elevaram-se as estradas de ferro de cremalheira, das quais os
suíços se tornaram especialistas no último quarto do século 19.

A atividade turística não está apenas relacionada com a


aptidão geográfica, com o imaginário de um lugar a ser con-
quistado. Para um lugar tornar-se turístico, há uma realidade
tautológica: “são os turistas que estão na origem do turismo”
(KANFOU, 1996, p. 70), pois “sem turista, o lugar turístico não
tem razão de ser” (CRUZ, 1999, p. 19).
Essa característica obrigatória e tautológica do turismo
implica uma racionalização do espaço. Os Alpes suíços, conforme

120
O turismo na vitrine do circuito superior e o circuito inferior do outro lado da vitrine

Boyer (2003), só se tornaram turísticos a partir do desenvol-


vimento de uma infraestrutura, ou seja, depois que o espaço
geográfico foi dotado com a modernidade da técnica para
atender as necessidades de lazer do turista.
A realidade geográfica brasileira é muito diferente da
encontrada naquela região europeia, pois a racionalização e
a especialização da atividade turística no espaço instalou, no
lugar, o circuito superior dessa economia, que tem como base
de seu funcionamento “[...] acumular capitais indispensáveis
à continuidade das atividades à sua renovação em função dos
progressos técnicos”, ao mesmo tempo em que instalou o circuito
inferior, cuja base consiste, “antes de tudo, em sobreviver e
assegurar a vida cotidiana da família, bem como tomar parte, na
medida do possível, de certas formas de consumo particulares
à vida moderna” (SANTOS, 2008, p. 46).
O circuito superior do turismo no Brasil materializa-se no
espaço por meio das formas e funções presentes na organização
do turismo, envolvendo, por exemplo, serviços de hospedagem,
agenciamento de viagens, alimentação e loja de souvenir.
O circuito inferior do turismo surge a partir do circuito
superior e tem como público-alvo os mesmos clientes do circuito
superior, porém com outra escala de atuação e outra necessidade
final: a sobrevivência.
A atividade turística nos moldes de “sol e mar”, praticada
no litoral do Nordeste brasileiro, tem, como aptidão paisagística,
as características naturais do litoral nordestino, como as altas
taxas de luminosidade solar e belas praias4. Essas paisagens são
reproduzidas massivamente nas publicações especializadas em

4 A noção de beleza das praias nordestinas é um atributo valorativo


socialmente criado, pois nenhuma praia é bela a priori, a sua beleza
surge no contexto valorativo da inserção das praias nordestinas no
ciclo do turismo internacional, havendo uma fetichização da imagem
do litoral, geralmente associando as praias à ideia de paraíso na Terra.

121
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

viagens turísticas que despertam o interesse do consumidor para


visitar o lugar cuja imagem está estampada na capa da revista.
Ao chegar ao lugar exibido pelas revistas especializadas,
o turista não se depara apenas com a praia ensolarada, mas
com uma realidade geográfica pronta para recebê-lo. Há, nesses
lugares, uma configuração territorial pronta para ser usada, de
boates a vendedores ambulantes nas praias, e é nessa realidade
que consistem os circuitos superior e inferior do turismo.
A convivência dos dois circuitos é uma realidade unânime
no litoral nordestino, onde ocorre a prática do turismo. Para
proceder à análise da estrutura dos dois circuitos em Natal e na
APAJ, dois princípios essenciais para a definição dos circuitos
serão levados em consideração: “1) o conjunto de atividades reali-
zadas em certo contexto; 2) o setor da população que se liga a ele
essencialmente pela atividade do consumo” (SANTOS, 2008, p. 42).
Nessa perspectiva, as atividades econômicas realizadas
estão relacionadas com os estabelecimentos comerciais do
circuito inferior e do superior. Quanto ao setor da população que
se liga ao circuito inferior, há uma diferenciação em relação à
teoria dos circuitos da economia urbana, pois, nesta, o circuito
inferior tem como público-alvo a população com baixo poder
aquisitivo; e, no circuito inferior do turismo, o público-alvo são
os mesmos clientes que consomem nos estabelecimentos do
circuito superior do turismo, diferenciando entre os estabele-
cimentos do circuito inferior e superior do turismo a densidade
de capital, técnica, ciência e informação.

A vitrine do circuito superior


O circuito superior do turismo em Natal pode ser inter-
pretado a partir do eixo “vitrine” do turismo proposto na
tese de Edna Maria Furtado, indo da Via Costeira à parcela da
Av. Engenheiro Roberto Freire que interliga a praia de Ponta
Negra ao complexo hoteleiro.

122
O turismo na vitrine do circuito superior e o circuito inferior do outro lado da vitrine

A metáfora da vitrine do turismo também é pertinente à


análise dos circuitos da economia do turismo. Ao procurar, no
dicionário Bueno (1996, p. 682) de língua portuguesa, a palavra
“vitrine”, encontramos a seguinte definição: “Espécie de caixa
com tampa envidraçada ou armário com vidraça móvel em que
se resguardam objetos expostos à venda”.
O eixo da vitrine do turismo em Natal não possui a forma
de uma vitrine, mas possui a sua função: expor mercadorias para
o consumidor. Os produtos expostos na vitrine estão organizados
a partir de um conceito estético com o intuito de despertar no
consumidor o fetiche pela mercadoria, quanto mais bela for a
vitrine, maiores serão os preços e a procura pelos produtos.
O mesmo ocorre com a vitrine do turismo. Essa área
“trata-se de um espaço que se espetaculariza considerando o
embelezamento da cidade, o que corrobora o entendimento da
necessidade de Natal se ‘mostrar’ bonita para os visitantes”
(FURTADO, 2005, p. 208).
Esse processo de urbanização inicia-se na década de
1980, porém intensifica-se na década de 1990, em função da
materialização de infraestruturas em uma parcela do território
litorâneo de Natal para atender às novas demandas de uso
do turismo massificado e globalizado do mundo capitalista,
inserindo o litoral potiguar às necessidades dos processos
de reprodução ampliada do capital, consolidando o circuito
superior no estado.
“As atividades do circuito superior dispõem do crédito
bancário” (SANTOS, 2008, p. 43). Para o setor turístico de Natal,
esse crédito bancário foi milionário, resultado da parceria entre
o Estado e a iniciativa privada.
A criação da vitrine do turismo em Natal fez parte do
modelo de urbanização para o turismo adotado pelas políticas
regionais de turismo do Nordeste com o objetivo de criar polos
e corredores turísticos. Segundo Cruz (1999, p. 31), “[...] este

123
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

modelo está no centro, também, do Plano Nacional de Turismo


– PLANTUR (1992), que tem entre suas metas de execução o
programa ‘polos turísticos’”.
Além das políticas públicas nacionais como o PLANTUR, a
política regional do Programa de Desenvolvimento do Turismo
do Nordeste – Prodetur/NE foi decisiva para a implementação de
infraestrutura turística5 no Nordeste brasileiro, principalmente
em Natal, possibilitando a intensificação
[...] da “onda” turística na Via Costeira [...] pelos empreendi-
mentos hoteleiros e grandiosidade destes. Natal, que, até a
metade da década de 1980, não possuía grandes hotéis, vê, em
um espaço temporal de 15 anos, sua capacidade de hospedagem
ser multiplicada diversas vezes [...] (FURTADO, 2005, p. 208).

A importância do Prodetur/NE para o setor e a inten-


sificação da onda do turismo se justifica a partir da ação do
Governo Federal,
que contratou, em dezembro de 1994, por intermédio do
Banco do Nordeste do Brasil, operação financeira com o
Banco Interamericano de Desenvolvimento no valor de US$
400 milhões, destinada a financiar o programa de desen-
volvimento do Turismo do Nordeste – Prodetur/NE I. Essa
operação previu contrapartida mínima de US$ 270 milhões,
oferecida pela União para projetos de construção, ampliação
e modernização de aeroportos, e pelos Estados partícipes do
programa, para as demais obras de infraestrutura (TRIBUNAL
DE CONTAS DA UNIÃO, 2004, p. 19).

A instalação de grandes hotéis na Via Costeira mudou


a dinâmica urbana da Praia de Ponta Negra. Furtado (2005,
p. 211), ao analisar o período de 1980-2000, verificou que os
“[...] estabelecimentos inaugurados no bairro de Ponta Negra

5 Sobre esse tema, ver a tese de Rita Ariza Cruz: Políticas de Turismo e
(re)ordenamento de territórios no litoral do Nordeste do Brasil, que discute
a implementação dos megaprojetos no litoral nordestino, fazendo
uma análise minuciosa das políticas públicas que possibilitaram essa
configuração territorial.

124
O turismo na vitrine do circuito superior e o circuito inferior do outro lado da vitrine

foram gradativamente sendo direcionados ao turismo, como


bares, hotéis, lanchonetes, restaurantes, pousadas e empresas de
turismo”. O setor encontrou seu lócus ideal para a sobrevivência,
reprodução e expansão do setor.
A consolidação do circuito superior do turismo é verifi-
cada no estado a partir da análise estatística da receita turística
direta no Rio Grande do Norte (RN), que cresceu, gradativa-
mente, entre 2005 e 2009, indo de R$ 987,7 milhões para R$
1.255,66, correspondendo, nesse último ano, a 4,49%7 do Produto
Interno Bruto do RN.
O desdobramento desse setor é visível em outras áreas
do estado que foram atingidas direta e indiretamente pelo
circuito superior do turismo, entre as quais estão as praias
que compõem a Área de Proteção Ambiental de Jenipabu que,
desde o crescimento do setor, no início da década de 1990, está
passando por um processo de urbanização em função dos ser-
viços turísticos. No entanto, o perfil das atividades comerciais
instaladas nessa área não é o mesmo encontrado na vitrine
do turismo, pois a maioria dos negócios tem, como objetivo
principal, a reprodução direta da vida humana e não do capital.

O circuito inferior no outro lado da vitrine


Se no circuito superior temos a vitrine do turismo, no
circuito inferior temos o outro lado dessa vitrine, a realidade
que os turistas não encontram nos mostruários reluzentes
ou, no caso do Rio Grande do Norte, nas belas praias e dunas,
a contradição entre os que acumulam capital com o turismo e
os que subsistem com essa atividade.
A praia de Jenipabu entrou na vitrine do turismo em
função do potencial paisagístico de sua orla, porém os seus

6 Segundo os dados da Secretaria Estadual de Turismo do Rio Grande


do Norte.
7 Segundo os dados da Federação das Indústrias do Rio Grande do Norte.

125
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

moradores ficaram do outro lado desse lucrativo negócio, uma


vez que eles não são os donos das lojas com as belas vitrines,
são apenas trabalhadores, dependendo de uma mínima parcela
desse negócio bilionário, quando muito possuindo simples
barracas de praia com precárias condições de funcionamento.
O início dos anos 1990 marca a inserção de Natal na rota
do turismo internacional. Essa realidade desencadeou o pro-
cesso de urbanização dependente entre o circuito superior
do turismo e o circuito inferior do turismo, desenvolvido nas
praias situadas no limite entre a parte norte da capital e a
parte sul de Extremoz, transformando o território de vilas de
pescadores jangadeiros em ponto de passagem dos pacotes de
viagens oferecidos pelas agências de viagem.
Além da expansão da urbanização,
O uso das dunas de Jenipabu em Extremoz como mercadoria
turística e o processo de ocupação com construções, adentrando
o campo dunar, levou o Governo do Estado a delimitar uma área
de 1.881 hectares, abrangendo o campo dunar das localidades
de Jenipabu, Ponta de Santa Rita e Redinha Nova (Extremoz) e
Redinha (Natal), transformando-o em uma unidade de conser-
vação estadual do tipo Área de Proteção Ambiental – APA. Sua
criação teve o intuito de viabilizar o controle da degradação
do ambiente dunar, mesmo permitindo a exploração da área
pela atividade turística (MARCELINO, 1999, p. 71).

A criação da Área de Proteção Ambiental de Jenipabu,


oficializada pelo Decreto nº 12.620, de 1995, idealizava um terri-
tório com desenvolvimento econômico, estruturado no turismo
e na conservação ambiental, porém nem o desenvolvimento
econômico nem a conservação ambiental conseguiram mate-
rializar-se nesta área de proteção ambiental (APA).
Segundo Rodrigues (2000, p. 174), “considerar a atividade
turística como sustentável ou como integrante da possibilidade
do desenvolvimento sustentável é apenas desviar os termos da
questão econômica que tem por base o consumo de paisagens
naturais exóticas ou a história passada”.

126
O turismo na vitrine do circuito superior e o circuito inferior do outro lado da vitrine

A criação da Área de Proteção Ambiental impediu que os


elementos exóticos das paisagens naturais fossem turistifica-
dos, degradados no processo de transformação do natural em
mercadoria, porém também retardou a entrada de capital e o
desenvolvimento econômico, pois o modelo de desenvolvimento
que temos não é compatível com a conservação ambiental.
Esse entrave legal impediu a entrada massiva do grande
capital na APAJ, pois os recursos oriundos desse priorizaram os
investimentos no eixo da vitrine do turismo, no qual a racionali-
zação e a especialização do território, naquele ponto, permitiam
a certeza de lucratividade em curto espaço de tempo.
Embora ausente de grandes investimentos, a ideologia do
potencial econômico permaneceu no imaginário das pessoas,
principalmente daquelas com menor poder aquisitivo, que viram
nessas praias uma possibilidade de mudar de vida.
Esse contexto contribuiu para a estruturação do circuito
inferior do turismo, no outro lado da vitrine, subsistindo a
partir do fluxo temporário de turistas, que permaneciam poucas
horas nas praias de Santa Rita e Jenipabu, para estabelecer seus
pequenos negócios com um objetivo central: “[...] sobreviver e
assegurar a vida cotidiana da família, bem como tomar parte, na
medida do possível, de certas formas de consumo particulares
à vida moderna” (SANTOS, 2008, p. 46).
A utilização do território da APAJ pelo circuito inferior do
turismo não resultou numa conservação ambiental, pois muitos
dos estabelecimentos foram construídos de forma irregular,
desrespeitando as normas ambientais, resultando em uma
expansão urbana que alcançou o campo dunar, principalmente
nas praias de Redinha Nova e Santa Rita.
Para analisar a materialização do circuito inferior na
APAJ, foram realizadas, durante os meses de janeiro a julho de
2014, visitas de campo, com o intuito de identificar e classificar
as atividades comerciais presentes no perímetro legal da área
de proteção ambiental.

127
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

As pesquisas foram feitas a partir de questionários estru-


turados destinados aos proprietários ou responsáveis pelo
estabelecimento comercial, buscando conhecer dados como:
tipo de atividade de comercial, público-alvo, tempo de funcio-
namento e local de origem e a atual moradia do proprietário
ou responsável. Essas informações permitiram a identificação
do circuito inferior do turismo.
No total, foram identificados noventa e seis estabeleci-
mentos comerciais. Esse número, no entanto, não corresponde
à totalidade dos estabelecimentos, pois alguns se encontra-
vam fechados. Também houve casos em que os proprietários
ou responsáveis não aceitaram contribuir para a pesquisa,
totalizando cerca de dez comércios que não participaram da
entrevista.
Um dos critérios utilizados para classificar o circuito
inferior é a mão de obra empregada, em que “o contrato fre-
quentemente assume a forma de um acordo pessoal entre patrão
e empregado, mas a importância do trabalho familiar [...] e
do trabalho autônomo ou self-employment é grande” (SANTOS,
2008, p. 45, grifo do autor). Então, segundo esse critério, temos
a seguinte estrutura dos comércios na APAJ:

Tabela 1 – Estrutura dos comércios da APAJ


em 2014, segundo a mão de obra

Autônomo (sem funcionários) 23


Mão de obra familiar 39

De 1 a 5 funcionários 22

De 6 a 10 funcionários 4

Mais de 10 funcionários 5

Total 96

Fonte: pesquisa de campo

128
O turismo na vitrine do circuito superior e o circuito inferior do outro lado da vitrine

As características essenciais do circuito inferior estão


presentes em quase todos os comércios da APAJ, com exceção
dos comércios com mais de seis funcionários que, devido ao
nível de organização e capital empregado, tendem a integrar
o circuito superior da economia.
Além da classificação dos comércios pela natureza da
mão de obra, um dado essencial é a origem dos proprietários,
pois, se a atividade turística teve, na sua materialização no
território, a idealização de desenvolvimento para a comunidade,
a tendência é que, nesse processo, a maioria dos moradores locais
estivesse presente na condição de proprietário, mesmo com
atividades comerciais do circuito inferior, como proprietários
de estabelecimentos.
Porém o estudo de campo contribuiu para desmentir o
ideal de desenvolvimento econômico para a população local,
pois, com exceção da praia de Santa Rita, a maioria dos comer-
ciantes é oriunda de outros lugares, tanto de outros municípios
do Rio Grande do Norte quanto de outros estados, e até mesmo
de outro país, conforme o gráfico a seguir.

Gráfico 1 – Comerciantes da APAJ – 2014

Fonte: pesquisa de campo

Apesar de a praia de Santa Rita concentrar a maioria


dos moradores comerciantes, também concentra a maioria
dos comércios informais, pois a maior parte desses moradores
possui pequenas barracas nas dunas entre as praias de Santa
Rita e Jenipabu, vendendo aos turistas, que estão fazendo o
passeio de buggy, bebidas e roupas de moda praia.

129
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Os grandes investimentos do setor turístico não se con-


centraram na APAJ, porém o processo de especulação imobi-
liária esteve presente, num processo que transformou a terra
em mercadoria e modificou o modo de vida das comunidades
pescadoras, principalmente na praia de Santa Rita.
No passado, segundo a entrevista com os comerciantes
nativos dessa praia, as construções eram feitas na orla da praia.
A cada nova família que surgia, a comunidade auxiliava no
processo de construção, não havia uma regulação formal nos
terrenos nem a concepção de mercadoria.
A partir do momento em que esses lugares saíram do
ostracismo econômico, passando a integrar contraditoriamente
a vitrine do turismo, iniciou-se, também, o processo de deli-
mitação das terras. Porém os moradores não participaram dos
ganhos dessa atividade, não acompanhando financeiramente
o processo de especulação imobiliária, que resultou na saída
dos nativos da orla para ocupar, irregularmente, as encostas
do campo dunar.
Além do surgimento dos comércios ligados direta ou
indiretamente ao turismo, também teve início o processo de
urbanização contraditório nessas praias, uma vez que a rea-
lidade econômica dos nativos não acompanhou a valorização
das terras do que veio a ser a APAJ. Para continuar morando
na terra de seus antepassados, passaram a ocupar áreas irre-
gulares, principalmente os campos dunares, enquanto, nesse
mesmo momento, começam a aparecer casas de vilegiatura,
em contraste com as habitações dos nativos.
A intensificação do processo de urbanização, decorrente
da atividade turística na APAJ, pode ser mapeada a partir do
tempo de funcionamento dos comércios, uma vez que o trabalho
de campo nos mostra que o aparecimento do comércio e a sua
expansão estão diretamente relacionados com a participação
dessa porção do litoral do estado na rota do turismo nacional
e internacional de “sol e mar”.

130
O turismo na vitrine do circuito superior e o circuito inferior do outro lado da vitrine

Entre o final da década de 1970 e início da década de


1980, praticamente não existiam atividades comerciais nas
praias de Santa Rita e Jenipabu, pois os seus moradores estavam
envolvidos com atividades de subsistência, principalmente, a
pescaria com uso de jangadas, a criação de animais e o cultivo
de culturas para garantir o sustento da família.
A invenção do atrativo turístico em Jenipabu resultou no
aumento do fluxo de pessoas para essa região. Primeiramente,
a classe média de Natal, que começou a construir suas casas de
praia em Redinha Nova, Santa Rita e Jenipabu, e, alguns anos
depois, as agências de turismo colocavam, em seus pacotes de
viagem, visitas a essas praias.
Em média, a maioria dos comerciantes estabeleceu os seus
negócios há dez anos, sendo o estabelecimento comercial mais
antigo aberto há 32 anos: uma mercearia no bairro da Redinha
Nova, distante cinco quilômetros da comunidade dos Pescadores
de Santa Rita e oito quilômetros da comunidade de Jenipabu.
Analisando os dados contidos nos Anuários Estatísticos
do Turismo de 2003 a 2013, a justificativa para o período de
expansão dos comércios da APAJ ter começado há dez anos está
relacionada com o crescimento de 158% do número de desem-
barques internacionais no Rio Grande do Norte do período de
2003 a 2006, aumentando de 45.588 para 117.688 num período
de três anos.
Embora a visualização do litoral potiguar, sobretudo das
praias da Região Metropolitana de Natal, tenha aumentado expo-
nencialmente em um curto período, a maioria dos entrevistados
retratou um sentimento de decepção com o fluxo de turistas nos
últimos cinco anos, e alguns relatam estar procurando outra
possibilidade de trabalho para garantir o sustento para a família,
não confiando na atividade turística na APAJ nos próximos anos.
Alguns elementos podem justificar a diminuição do fluxo
de turista na APAJ. O primeiro é a natureza dessa atividade

131
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

econômica, que para a sua reprodução necessita do elemento


inovador, um novo lugar para ser visitado.
A rota para Natal, no cenário do turismo de massa,
iniciou no começo da década de 1990, com uma grande expan-
são nos primeiros anos do novo milênio, e a tendência atual
dessa atividade econômica é procurar novas áreas para sua
reprodução.
No estado do Rio Grande Norte, o litoral norte passou a
integrar essas novas áreas de visitação, reduzindo a praia de
Jenipabu a um ponto de passagem, destinando ao turista um
tempo de permanência de duas a três horas, conforme relato
dos entrevistados.
Outro ponto importante retratado na entrevista é a
ausência de passeios organizados por agências de turismo até
Jenipabu, excluindo-se do pacote de viagem a visita à praia.
Aliado a esse processo, tem-se o fechamento de dois hotéis três
estrelas na Redinha Nova, no ano de 2006. Ambos recebiam
clientes de agências de turismo.
Somado a esses fatores, há também uma queda do número
de desembarques internacionais no Rio Grande do Norte do
ano de 2006 para 2012, caindo 65,5%, de 117.688 para 40.488,
inferior ao número de turistas internacionais que visitaram o
estado no ano de 2003.
Esses números revelam uma dura realidade a ser enfren-
tada pelos moradores da APAJ, que migraram da pesca artesanal
para as atividades ligadas ao turismo em busca de melhor
qualidade de vida, em busca do desenvolvimento presente no
discurso das políticas públicas, pois quase todos os comércios
dependem, direta ou indiretamente, da presença dos turistas
nas praias da APAJ.
Dos 96 estabelecimentos comerciais, 64 possuem como
público-alvo o turista, os outros trinta e dois dependem da
renda que os moradores obtêm trabalhando com a atividade

132
O turismo na vitrine do circuito superior e o circuito inferior do outro lado da vitrine

turística. A queda do setor econômico do turismo gera uma


reação de depressão econômica em cadeia.
As atividades que compõem o circuito inferior são mar-
cadas pela sua relação de dependência com o circuito superior.
Desse modo, a estrutura econômica da APAJ está entrelaçada
com as estruturas do circuito superior do turismo desenvolvidas
em Natal.
O declínio do setor turístico resulta tanto na queda da
margem dos lucros dos grandes empresários do circuito superior
do turismo quanto no agravamento da situação de pobreza e
dependência econômica do circuito inferior do turismo na APAJ.

Considerações finais
A década de 1990 marca o início da reestruturação pro-
dutiva do Rio Grande Norte. Entre os setores de inovação eco-
nômica, destaca-se a inserção de sua capital na rota do turismo
internacional, desencadeando o processo de urbanização de
Natal para atender às novas demandas de uso do território,
resultando em áreas com configurações territoriais específicas
para esse setor da economia.
Esse processo de transformação urbana de Natal é iden-
tificado por Furtado (2005), por meio da onda do turismo na
cidade do sol, podendo ser compreendida a partir de três eixos,
sendo destacado aqui somente o primeiro: a “vitrine do turismo”,
concentrado entre a Via Costeira e a porção da Av. Engenheiro
Roberto Freire que conecta aquela via com a praia de Ponta
Negra e os grandes empreendimentos turísticos com serviços
de hospedagem, alimentação e lazer.
Esses processos de urbanização são resultantes do desdo-
bramento dos investimentos do Prodetur/NE na capital potiguar
que, além de investir na infraestrutura da cidade para mate-
rializar o setor, também contribuiu para a espacialização do
circuito superior e inferior do turismo no estado.

133
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

O circuito superior é composto pela vitrine do turismo,


no qual se concentram os investimentos do grande capital
que, por meio do turismo, realiza o seu processo ampliado de
reprodução. Em contrapartida, há o circuito inferior nas praias
ao norte da vitrine do turismo, com atividades comerciais
com baixa densidade de capital, buscando a subsistência dos
envolvidos na atividade.
Ao visitar a cidade de Natal, o turista não fica apenas na
área concentrada, há uma gama de lugares a serem visitados,
tanto no litoral norte quanto no litoral sul. Nas primeiras partes
do litoral ao norte de Natal, há a presença do circuito inferior do
turismo, que surgiu com a inserção da visita às dunas e praias
de Santa Rita e Jenipabu no pacote de viagem.
A chegada dos turistas nessas praias arrasta consigo um
discurso de desenvolvimento econômico para o lugar e para
os moradores locais, porém a vinda dos visitantes contribuiu
para a materialização do circuito inferior do turismo na região,
consolidando a dependência econômica dessas praias em relação
ao circuito superior.
A contradição dessa relação entre os dois circuitos é
mais perversa para quem está no lado inferior da economia.
Enquanto no eixo da vitrine do turismo temos como meta
a acumulação do capital para que os dividendos possam ser
utilizados em investimentos em diversos setores da economia,
no outro lado da vitrine a realidade é a sobrevivência; as boas
vendas garantem capital para garantir a alimentação diária
da família e para comprar os produtos a serem vendidos no
dia seguinte.
Porém, no atual contexto de crise econômica que o setor
vivencia em função da redução dos desembarques internacio-
nais, os principais prejudicados são os que necessitam desses
turistas para sobreviver, que não possuem reserva de capital
para investir em outro setor ou esperar o término da crise
econômica mundial.

134
O turismo na vitrine do circuito superior e o circuito inferior do outro lado da vitrine

Referências
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TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Relatório de Avaliação de Programa:
Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste. Brasília, 2004.

135
Arituba, Boágua e Carcará
(Nísia Floresta-RN) na rota do
turismo potiguar: uma leitura sobre
o processo de produção do espaço
Alian Paiva de Arruda1
Edna Maria Furtado2

Este capítulo tem o objetivo de analisar o processo de produção


do espaço, no qual se localizam três lagoas interdunares que
fazem parte da rota do turismo potiguar: Arituba, Boágua e
Carcará (Nísia Floresta), localizadas no litoral oriental do estado
do Rio Grande do Norte.
As lagoas de Arituba, Boágua e Carcará assumiram, desde
a década de 1980, uma função turística. Desde então, foram
inseridas no roteiro oficial do turismo potiguar e apropriadas
por agentes sociais distintos, entre eles o Estado, os agentes de
mercado e diversos tipos de turista.
Assim, no sentido de entender o processo de produção
do espaço dessas lagoas, alguns questionamentos nortearam
este estudo: quais os agentes sociais envolvidos e como se dá a

1 Mestre em Geografia e Professora do Instituto Federal de Educação,


Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). E-mail:
alian.paiva@ifrn.edu.br
2 Doutora em Ciências Sociais e Professora do Departamento e do
Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: ed.furtado@hotmail.com

136
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

atuação destes no processo de turistificação das lagoas? Qual a


intencionalidade da produção do espaço pelos agentes sociais
envolvidos? Como a atividade turística dinamiza atualmente
essa porção do litoral potiguar?
O pressuposto teórico da análise é a produção do espaço
que é entendida como um processo que se dá ao longo do tempo,
formado por um sistema de objetos e de ações que permite a
função turística, percebida no recorte espacial da pesquisa.
As discussões apresentadas neste trabalho resultam do
diálogo entre o aporte teórico (livros, dissertações, artigos
científicos) e a empiria, utilizando-se dados e informações
obtidos em documentos oficiais e na pesquisa de campo.
A partir de uma revisão bibliográfica, foi possível identifi-
car etapas do processo de produção do espaço que remontam às
principais intervenções do Estado, por meio de políticas públicas,
que viabilizaram uma infraestrutura urbana necessária para
desenvolver a atividade turística e que propiciou a entrada das
lagoas na rota do turismo do estado, dinamizando assim essa
porção do litoral oriental potiguar.
Durante a pesquisa de campo, surgiram alguns entraves
junto a órgãos públicos, como a impossibilidade de repasse de
dados oficiais ­- justificada pela inexistência de diagnósticos,
relatórios técnicos e planos de ação da gestão municipal de
Nísia Floresta, além da escassez de estudos que contemplem
diretamente a área da pesquisa, tornando os resultados deste
trabalho uma fonte primária.
Parte dos dados e das análises aqui apresentados foi
obtida a partir de entrevistas e aplicações de questionários
junto às pessoas diretamente envolvidas no contexto (mora-
dores do entorno das lagoas, bugueiros, comerciantes locais,
excursionistas e representantes do poder público local), além
da observação in loco.

137
Foram entrevistados representantes do poder público
municipal (Secretaria de Turismo e Meio Ambiente, Secretaria
de Tributação); representantes do Sindicato dos Bugueiros
Profissionais do Rio Grande do Norte (SINDBUGGY); empresários
de transporte rodoviário e motoristas de ônibus fretados; além
de comerciantes locais.
Os comerciantes locais entrevistados foram aqueles
que tinham maior tempo de trabalho nas lagoas, desde os
anos de 1980, visando perceber como eles vivenciaram e,
também, participaram do processo de turistificação das lagoas
(etapa do trabalho de campo realizada nos meses de janeiro
e fevereiro de 2010, período de alta estação para a atividade
turística potiguar).
Indispensável, também, foi compreender a importância
da prática social do excursionismo nas lagoas Arituba, Boágua
e Carcará, entendida aqui como o “turismo das massas”3, um
fenômeno social que ocorre num espaço que vem sendo produ-
zido para atender aos interesses dos proprietários das segun-
das-residências e do turismo de massa (Mapa 1).
Assim, junto aos excursionistas, turistas de um dia, pes-
soas que frequentam as lagoas por meio de excursões, foram
aplicados 74 questionários nas três lagoas em estudo, em dias
de domingo e feriado, em uma amostragem qualitativa que
visou atingir um maior número de entrevistados por local de
origem da excursão.
Foram entrevistados, também, organizadores de excursão,
oriundos de João Pessoa (PB) e de outros municípios do Rio
Grande do Norte, como Brejinho, Goianinha, Macaíba, Monte
Alegre e Natal.
Os dados resultantes dos questionários e das entrevis-
tas realizados em toda a área da pesquisa foram trabalhados

3 Para conhecer mais sobre esse assunto, ver Arruda e Furtado (2012).

138
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

estatisticamente e analisados de modo geral e individualizado,


com o objetivo de entender a dinâmica específica de cada lagoa.

Mapa 1 – Localização do recorte espacial da pesquisa: lagoas


de Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN)

Fonte: Prodetur-2006/CPRM-2006

Outros instrumentos metodológicos utilizados foram o


registro fotográfico e o georreferenciamento de dados coletados
na área da pesquisa, o que possibilitou a elaboração de mapas
temáticos.
Assim, esclarecido o percurso metodológico da pesquisa,
que em suma baseou-se numa revisão bibliográfica sobre o
tema e na análise dos resultados obtidos no trabalho de campo,
passamos ao corpo do capítulo, estruturado em três partes:
inicialmente, discute-se sobre o processo de produção do
espaço tendo a atividade turística como evento dinamizador;
em seguida, é feita uma abordagem sobre o papel do Estado e a

139
implantação de infraestrutura urbana necessária ao desenvol-
vimento da atividade turística nas lagoas; e, por fim, analisa-se
a apropriação do espaço por agentes de mercado, turistas e
poder público local.

O processo de produção do espaço: a atividade


turística como evento dinamizador
Analisar o processo de produção capitalista do espaço
requer a retomada conceitual do objeto de estudo da Geografia,
que para Santos (2008) é o espaço, o qual é formado por um con-
junto, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos
e ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro
único no qual a história se dá. É um híbrido, cujo resultado da
conjugação entre estes sistemas permite transitar do passado
ao futuro, mediante a consideração do presente.
Para esse autor, o espaço é social, ele não pode ser for-
mado apenas pelas coisas, por objetos geográficos, naturais e
artificiais, pois, além de tudo, inclui a sociedade. Santos (2008)
entende que os objetos estão distribuídos sobre um território,
formando a configuração espacial, mas, por outro lado, existem
processos sociais representativos de uma sociedade, de um dado
momento que lhes dão vida.
Ele destaca, ainda, que as formas geográficas contêm
frações do social, elas não são apenas formas, mas forma-con-
teúdo, as quais mudam de significação com o movimento, a
cada momento.
A ação, que é inerente à função, é condizente com a forma
que a contém, assim, os processos ganham inteira significação
apenas quando corporificados, sendo a ação tanto mais eficaz
quanto os objetos são mais adequados.
Santos (2008, p. 91) afirma que por intermédio da noção
de intencionalidade presente no espaço, é possível outra leitura
crítica das relações entre objeto e ação.

140
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

Outra contribuição sobre a concepção de espaço produ-


zido, das formas e da intencionalidade, vem de Andrade (1981,
p. 9), ao defender que:
Ao ser analisado, sob enfoque geográfico, a organização de
uma determinada porção do espaço, deve-se refletir sobre
o processo que determinou a organização do espaço. Isto
porque, o homem é sujeito no processo de produção do espaço,
organizando o mesmo de acordo com seus interesses, com
seus objetivos, em função da realização econômica das classes
dominantes e lançando mão do capital e dos recursos técnicos
de que dispõem [...].

O referido autor enfatiza a importância de analisar o


espaço em sua totalidade, pois o processo de produção deste
não se volta apenas para interesses de agentes sociais internos
e locais, visa, também, atender interesses de agentes sociais
externos, que são os maiores beneficiários do sistema de utili-
zação de recursos produzidos.
No caso dos espaços produzidos para a atividade turística,
Rodrigues (1997, p. 61) enfatiza: “[...] é fundamental insistir no
fenômeno do turismo em toda a sua complexidade, expressa
pelas relações sociais e pela materialização territorial que
engendra no processo de produção do espaço”.
Essa autora defende que o turismo é uma prática social,
econômica, política e cultural, transformadora de espaços e
que se situa entre as mais expressivas das sociedades pós-in-
dustriais, pois
[...] movimenta, em nível mundial, um enorme volume de pes-
soas e de capital, inscrevendo-se materialmente de forma cada
vez mais significativa ao criar e recria espaços diversificados.
[...]. De forma espontânea ou planejada, está subordinado às
políticas públicas, à iniciativa privada ou à parceria de ambas
(RODRIGUES, 1996, p. 17).

Assim, a atividade turística pode estar submetida aos


centros de decisão do capitalismo corporativo hegemônico em
nível global, como pode manifestar-se pontualmente, assumindo

141
um caráter doméstico e artesanal, a exemplo do que acontece
nas lagoas em estudo, no turismo desenvolvido pelas massas,
de forma espontânea, por excursionistas.
Cruz (1999), por sua vez, entende que o turismo, antes
de qualquer coisa, é uma prática social que tem no espaço seu
principal objeto de consumo. Uma atividade moderna que
transforma o espaço em mercadoria, inserindo-o no circuito
da troca. No seu entender,
O consumo do espaço pelo turismo é intermediado pelos
sistemas de objetos e de ações que, numa relação dialética,
formam o espaço. Esse consumo se dá através do consumo de
um conjunto de serviços, que dá suporte ao fazer turístico
(CRUZ, 1999, p. 14).

A autora destaca, também, as intervenções de agentes


sociais de naturezas distintas no espaço produzido, como o Estado
e o mercado, os quais se inserem na lógica capitalista da produção
do espaço, de modo a viabilizar a realização da atividade turística.
O Estado, por sua vez, pode agir de modo subserviente, ou não
ter uma inquestionável hegemonia no processo de produção do
espaço, e assim assume o papel de ente regulador das relações
sociais e provedor de infraestruturas, como também estabelece
as normas que regulam a vida pública e a vida privada.
Para Santos (2007, p. 27), “[...] é doravante impossível
analisar o espaço e sua evolução sem levar em conta o papel do
Estado na vida econômica e social”. O autor entende que o Estado,
juntamente com o mercado, formam um par dialético, mas não
desconsidera o fato de que um auxilie o outro. Segundo o autor:
O mercado é um fator de controle, um dado de unificação,
um conjunto de elementos capazes de estabelecer um dado
equilíbrio (equilíbrio geral da economia). Age aparentemente
sem violentar ninguém e passa de uma situação de equilíbrio
para outra (SANTOS, 1997, p. 100).

O mercado é formado por agentes sociais, os quais, em


situações de escalas local e regional, por vezes, tomam para si

142
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

a hegemonia do processo de produção do espaço no sentido de


assegurar a consecução de seus interesses.
Mas a produção do espaço turístico conta, também, com
agentes não hegemônicos e, neste caso, o papel dos turistas
não pode ser negligenciado, sendo indispensável reconhecer
sua relevância no processo.
Estado e agentes de mercado atuam no setor do turismo
em função da existência de consumidores-turistas, os quais
são, inclusive, responsáveis por alguns destinos turísticos e
por novas dinâmicas nos processos de produção dos espaços
turísticos dos quais se apropriam (CRUZ, 2007).
Nesse estudo, a autora destaca, ainda, que, ao se abordar
a produção de um espaço turístico, é necessário considerar que
o turismo não acontece sobre uma tábula rasa, sobre espaços
vazios e sem donos, mas em lugares previamente ocupados
por populações que se estabeleceram e onde vivem suas vidas
cotidianas. Assim, a autora conclui:
Não são apenas Estado, mercado e turistas que produzem os
espaços relativos aos fazeres turísticos, mas também socieda-
des que vivem nesses lugares, parte delas transformada, por
força de novas contingências, em empreendedores turísticos
ou, mesmo, em muitos casos, atuando como contra-raciona-
lidades às determinações hegemônicas (CRUZ, 2007, p. 14).

Assim, com base nessas noções sobre o processo de produ-


ção do espaço, é que se analisa a inclusão das lagoas de Arituba,
Boágua e Carcará na rota do turismo potiguar, resultado da
ação de agentes hegemônicos e não hegemônicos a partir da
década de 1980.
Com esse entendimento, lançou-se mão de identificar os
momentos que marcam o processo de produção do espaço e o
papel dos principais agentes sociais envolvidos, identificados,
nesta pesquisa, como o Estado, os agentes do mercado local
(comerciantes locais), os turistas e a sociedade local (os nativos
das lagoas).

143
Para tanto, utilizou-se de um breve resgate histórico,
sem dissociar o espaço e o tempo, contextualizando a área da
pesquisa como parte integrante do território nordestino, do
município de Nísia Floresta, e a partir de seu papel no turismo
potiguar, ou seja, uma análise que enfoca a participação da
atividade turística no processo de produção do espaço a partir
de diferentes dimensões espaciais.
Com base nestas reflexões, optou-se por estudar o espaço
em sua totalidade, visando compreender o seu processo da
produção por meio das ações dos diversos agentes que possuem
uma interface direta com a atividade turística observada nas
lagoas de Arituba, Boágua e Carcará.

A intervenção do Estado e a infraestrutura


urbana necessária ao turismo nas lagoas
O turismo não ocorre num espaço vazio, mas ocupado
historicamente. O estudo de Andrade (1981) aponta antigos
usos e outros agentes sociais na história da porção litorânea do
território potiguar. Segundo esse autor, a produção do espaço do
Rio Grande do Norte, nos moldes capitalistas, inicia-se no século
XVI, com a conquista e a exploração do território brasileiro
em tempos de expansão europeia, e baseia-se em atividades
tradicionais (agricultura e pesca).
Contudo o recorte temporal deste estudo é da década
de 1980 aos dias atuais, e partiu-se do entendimento do papel
do Estado que assumiu o papel de provedor da dinâmica de
uma atividade econômica moderna (o turismo), em parceria
com o mercado, pois, de acordo com Santos (2008), o Estado
modernizador aparece como uma condição fundamental na
criação e no fortalecimento dessas atividades.
Nessa perspectiva, é a partir da década de 1980 que as
paisagens naturais do litoral oriental do RN (onde se locali-
zam a capital Natal, o município de Nísia Floresta e as lagoas

144
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

estudadas) passam a ser alteradas pelas intervenções do Estado,


por intermédio de políticas públicas que implantam a infra-
estrutura urbana necessária ao desenvolvimento da atividade
econômica do turismo.
Para Furtado (2007), foi somente a partir desse período,
quando as políticas de cunho industrializante se esgotaram
no Nordeste, que o fenômeno do turismo passou a adquirir
relevância e se firmou como atividade econômica. E, a partir
de então, o espaço potiguar passou a ser produzido em prol da
atividade turística.
O estudo de Cruz (1999) aponta que, entre as ações do
Estado de incentivo ao setor turístico no RN, está o Projeto
Parque das Dunas/Via Costeira (PD/VC), que construiu, na capital
potiguar, a Via Costeira, rodovia com 8,5 km de extensão, com
o objetivo de atrair a instalação de redes hoteleiras, inserindo
Natal no circuito nacional de destinos turísticos, o que, segundo
Gomes (2009), trazia, na sua essência, a proposta de alavancar
o turismo de massa no estado.
Conforme Cruz (1999), o PD/VC foi o primeiro “megapro-
jeto turístico” concebido no Nordeste, cuja obra foi inaugurada
em 1983, e é considerado um marco na expansão do turismo
potiguar (CRUZ, 1999; FONSECA, 2005; FURTADO, 2005; GOMES,
2009). Para Furtado (2005), o PD/VC é um marco inaugural no
estabelecimento de políticas públicas de cunho federal, estadual
e municipal direcionadas à implantação e ao desenvolvimento
do turismo regional e local, que proporcionou, na década de
1980, um boom no turismo potiguar.
Nos anos 1990, a atividade turística ganha maior destaque
no cenário brasileiro, período de elaboração da Política Nacional
de Turismo, a qual tinha como um dos objetivos a redução das
desigualdades regionais.
A partir de então, o Estado brasileiro assume a função de
grande produtor do espaço para o turismo, por meio do papel

145
normatizador e provedor de infraestrutura para a condução
de um processo de adequação de territórios nordestinos para
um uso turístico maciço e internacionalizado.
Ainda segundo Cruz (2007), assistiu-se, nesse período, à
consagração do neoliberalismo como paradigma econômico e
político, bem como à transição de um Estado interventor para
um Estado parceiro do Mercado, o que se refletiu no turismo,
na forma de políticas públicas comprometidas com a produção
e reprodução do capital.
Esse processo de criação de um novo sistema de obje-
tos e ações para o desenvolvimento da atividade econômica
do turismo se consolida por meio de um programa federal e
conta com forte atuação dos governos dos estados nordestinos:
o Programa de Ação para Desenvolvimento do Turismo no
Nordeste (Prodetur/NE) com ênfase para o turismo baseado no
sol, na praia, no mar, no entretenimento e no lazer.
Esse programa é implantado após dez anos do PD/VC,
em meados da década de 1990, o qual, segundo Fonseca (2005),
promoveu um novo impulso ao turismo potiguar, inseriu de
modo mais efetivo o estado no fluxo turístico internacional e
atraiu investimentos turísticos de cadeias internacionais.
Para Cruz (2007), trata-se de uma política voltada para a
produção do espaço destinado ao turismo, sobretudo litorâneo,
por intermédio da qual vem sendo criado e recriado um sistema
de objetos para um turismo maciço e internacionalizado. As
ações promovem melhorias nas condições de fluidez do terri-
tório (ampliação e modernização de aeroportos, recuperação e
construção de estradas etc.), além de investimentos em gestão
e promoção da atividade (capacitação profissional, marketing).
Segundo Fonseca (2005), os investimentos realizados na
primeira fase desse programa (1996-2001), no Rio Grande do
Norte, destinaram-se ao desenvolvimento institucional, ao
Aeroporto Internacional Augusto Severo e a obras múltiplas

146
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

que contemplaram seis municípios do litoral oriental potiguar:


Ceará-Mirim, Extremoz, Natal, Nísia Floresta, Parnamirim e
Tibau do Sul.
Nísia Floresta (onde estão localizadas as lagoas) foi con-
templada com a elaboração da base cartográfica e do Plano
Diretor do município; e com a implementação de alguns trechos
viários (construção do Binário de Pirangi; melhorias na estrada
Pirangi-Barra de Tabatinga; estrada Tabatinga-Camurupim-
Barreta), que contempla a Rota do Sol, via que funciona como
corredor turístico por interligar o litoral sul oriental potiguar.
Esses investimentos foram realizados ao longo dos dois
governos estaduais de Garibaldi Alves Filho (1995-2002), mere-
cendo destaque os que estão diretamente ligados à área desta
pesquisa, como as constantes melhorias na Rota do Sol, RN-063,
que atravessa todo o município de Nísia Floresta na sua faixa
litorânea e corta o seu interior. Uma rodovia entendida, nesta
análise, como sendo estruturante para o desenvolvimento da
atividade turística nas lagoas de Arituba, Boágua e Carcará.
É válido destacar que, de acordo com informações de
representantes da Secretaria de Turismo de Nísia Floresta e
do Departamento de Estradas e Rodagens (DER-RN), outros
investimentos estão sendo pleiteados em infraestrutura urbana
para serem incluídos na próxima etapa do Programa, o Prodetur
Nacional; entre eles, a implantação do projeto “Circuito das
Lagoas” (ARRUDA, 2012) que contempla diretamente a área da
pesquisa (Mapa 1).
O projeto mencionado visa melhorias nas condições
viárias no interior de Nísia Floresta, de modo a interligar as
lagoas existentes no município por meio dos seguintes trechos
rodoviários: RN-313 à Lagoa do Bonfim; contorno da lagoa do
Bonfim; acesso às lagoas do Carcará e de Boágua; e o trecho que
liga a sede de Nísia Floresta à praia de Pirangi do Sul (BANCO
DO NORDESTE, 2008). Trechos viários que ao serem construídos

147
deverão aumentar o fluxo de pessoas e a exploração do potencial
paisagístico das lagoas.
Os referidos trechos, apesar de ainda serem de estradas
carroçáveis, já possibilitam diversos fluxos de pessoas por meio
de passeios de buggy; por veículos particulares daqueles que se
destinam às segundas residências no entorno de lagoas como
Boágua e Carcará; por ônibus de excursão ou pelos que desen-
volvem atividades esportivas ou de lazer (trilhas, caminhadas,
esporte de aventura, cavalgadas, motocross), além de servirem
como vias de acesso para a comunidade nativa.
A respeito da implementação de obras voltadas para
aumentar a fluidez do território, Cruz (2007) entende que tal
projeto corresponde a um tipo de ação estratégica emanada do
Estado, na escala federal ou estadual, no sentido de desenvol-
ver o turismo, tendo como objetivo maior tornar o território
atrativo para o capital privado. Logo, pensando desse modo,
pode-se inferir que a realização das obras que configuram o
“Circuito das Lagoas” resultará em novas transformações no
uso do território (caso sejam executadas).
Pelo exposto, pode-se dizer que a inserção de Arituba,
Boágua e Carcará na rota do turismo potiguar está diretamente
ligada às políticas públicas de infraestrutura urbana para o
desenvolvimento do turismo na porção sul do litoral oriental
potiguar. E, nesse contexto, as rodovias BR-101 e a Rota do
Sol-RN-0634 assumem a função de permitir fluxos de pessoas,
de mercadorias, de informação e de capital, contemplando

4 Segundo os dados dos arquivos do DER-RN, na década de 1980, a


RN-063 se estendia até Pirangi do Sul, enquanto o trecho Nísia
Floresta-Tabatinga denominava-se RN-02. Na década de 1990, a RN-063
passa a se chamar Rota do Sol e se estende por 52 km, partindo do
complexo viário de Ponta Negra, no entroncamento da BR-101 com a
Av. Engenheiro Roberto Freire (Natal), até à sede municipal de Nísia
Floresta, próximo ao entroncamento com a BR-101.

148
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

diretamente a área desta pesquisa, uma vez que são os principais


acessos viários às referidas lagoas.
A relevância desses fixos é abordada por Fonseca (2005),
para quem essas duas rodovias são estruturantes para a realiza-
ção do turismo potiguar no litoral sul, pois servem de “corredor
turístico” aos dois principais polos turísticos do estado (Natal e
Pipa), onde se localizam diversos atrativos do turismo de sol e
mar (praias, lagoas, dunas), concentram-se os principais serviços
(meios de hospedagem, alimentação, entretenimento) e existe
a infraestrutura urbana necessária (acessos viários, telefonia,
entre outros) para o desenvolvimento da atividade turística.
A BR-101 é uma rodovia federal que acompanha toda a
costa oriental potiguar servindo ao tráfego interestadual. Por
meio dela se estabelecem diversos fluxos, inclusive de excursio-
nistas, entre as lagoas em estudo e outros estados do Nordeste,
como Paraíba e Pernambuco.
A RN-063, denominada Rota do Sol, é foco de investimen-
tos desde meados do século XX, ao longo de vários governos
estaduais, por meio da construção, ampliação e manutenção
de trechos viários.
No início da década de 1960, existia apenas o trecho
Natal-Ponta Negra, o qual foi ampliado pelo governo estadual
de Aluízio Alves (gestão 1961-1966), mediante a construção do
trecho viário Ponta Negra-Pirangi do Norte, ligando a capital
potiguar ao litoral de Nísia Floresta (Fotografias 1 e 2).
Nessa década, a RN servia à base militar da Barreira do
Inferno, localizada no litoral do município de Parnamirim, e
às populações nativas dessa faixa do litoral, estabelecendo o
fluxo de pessoas e mercadorias. Conforme o estudo realizado
por Pontes et al. (1993), sobre o litoral de Nísia Floresta, essa
rodovia seguia da praia de Búzios em direção a Natal e servia
de meio para o transporte que seria utilizado pela construção
civil na capital.

149
Na década de 1980, essa rodovia passa a ter relevância
para a atividade turística, com a construção do trecho Pirangi
do Sul-Búzios-Tabatinga, obra realizada entre 1983-1986, durante
o governo estadual de José Agripino Maia. A partir dessa obra,
o fluxo de pessoas aumenta nessa parte sul do litoral oriental
potiguar, cuja paisagem passa a ser marcada pela construção
das segundas residências. A Fotografia 3 ilustra de modo parcial
a praia de Búzios e o principal trecho viário de acesso ao sul do
litoral oriental potiguar: RN-063.

Fotografias 1, 2 e 3 (na ordem esquerda para direita) – Vista parcial


do trecho viário Natal-Pirangi do Norte da RN-063, na década de
1960: município de Parnamirim (1), RN-063 em Nísia Floresta (2)
e Vista parcial do trecho viário Pirangi do Sul-Búzios-Tabatinga
– na altura da praia de Búzios, litoral de Nísia Floresta-RN (3)

Fonte: acervo fotográfico do Departamento


de Estradas e Rodagens (DER-RN)

Ainda na década de 1980, outros investimentos foram


realizados na RN-063, contemplando o trecho Tabatinga-sede
de Nísia Floresta, em sentido à BR-101, pelo qual se tem acesso

150
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

às lagoas de Boágua e Carcará. As obras foram realizadas ao


longo dos governos de José Agripino e Geraldo Melo. Em aproxi-
madamente uma década, esse trecho viário passou de estrada
carroçável a uma rodovia asfaltada.
Conforme percebido na pesquisa de campo, pode-se
dizer que os investimentos realizados na BR-101 e na RN-063,
quer na implantação ou nas melhorias de trechos viários, ao
longo das últimas três décadas, tornaram-se fator de atração
do mercado, cujos agentes apropriaram-se das lagoas como
espaço propício à reprodução do capital. Isso ocorreu, prin-
cipalmente, por meio dos produtos e serviços que podem
ser oferecidos aos diversos turistas que se apropriam desse
espaço até os dias atuais, como venda de terras, construções
de segundas residências, alimentação, brinquedos aquáticos,
passeio de buggy, entre outros.
Assim, infere-se que, a partir dessas rodovias, são mobili-
zados diferentes fluxos: de pessoas, de capital e de informação.
Tal inferência corrobora o pensamento de Cruz (2007, p. 56),
para quem:
A produção do espaço para o turismo passa, necessariamente,
pelo aumento da fluidez do território e pela produção, con-
sequentemente, de melhores condições de circulação. [...].
Mas, essas infraestruturas não conferem maior mobilidade
apenas a turistas e residentes. São, também e principalmente,
um meio de assegurar maior mobilidade ao capital privado
que, [...], aproveita-se da valorização desses espaços para
implementar seus empreendimentos.

Por todo o exposto, considerando-se as intervenções do


Estado, cujas obras em infraestrutura possibilitaram o aumento
da fluidez no espaço, é possível afirmar que o processo de pro-
dução do espaço turístico das lagoas se deu em dois momentos: o
primeiro, na década de 1980, caracterizando-se pela chegada das
segundas residências, e o segundo, a partir da década de 1990,
marcado pela chegada do turismo de massa, quando o espaço
passou a ser apropriado por outros agentes de mercado e por

151
uma nova demanda turística na qual os excursionistas estão
inseridos. Esse momento será discutido no tópico que segue.

A apropriação do espaço por agentes


de mercado, turistas e poder público
local: as etapas do processo
A partir dos primeiros anos da década de 1980, o entorno
das lagoas de Arituba, Boágua e Carcará passou por uma fase
de transformação mais dinâmica no que se refere ao processo
de produção do espaço. Até então, a apropriação se dava basica-
mente por nativos e o uso voltava-se para a agricultura e a pesca
de subsistência, bem como para o banho de pessoas e animais.
Essa década é marcada pela chegada dos empreendedores
imobiliários, os quais lotearam terrenos às margens e no
entorno das lagoas, dando novas funções às formas existentes.
O espaço passa a ser apropriado pelas segundas residências,
propriedades de uma “elite”, em sua maioria oriunda de Natal,
representada por médicos, políticos, juízes, entre outros, con-
forme relatos de alguns moradores antigos das lagoas. Pode-se
dizer que, nesse período, se registra a chegada dos primeiros
turistas e dos proprietários das segundas residências, os
quais, sazonalmente, utilizam esses imóveis, imprimindo a
essas lagoas, desse período em diante, a função de espaços
para o lazer turístico.
Segundo Tulik (2001), a segunda residência é uma forma de
alojamento turístico utilizado temporariamente, nos períodos
do tempo livre, por pessoas que têm sua residência permanente
em outro lugar.
No contexto desta pesquisa, as segundas residências são
denominadas de “casas de praia”, como em Arituba, localizada
na praia de Tabatinga; e, também, por “granjas”, no caso das
segundas residências localizadas no interior do município, no
entorno das lagoas de Boágua e Carcará.

152
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

As segundas residências são uma forma de apropriação


do espaço que, segundo Lopes Junior (2000), estão presentes
na paisagem do litoral sul de Natal desde a década de 1980,
compreendendo uma “franja de casas de veraneio”, estenden-
do-se inclusive pelas praias de Nísia Floresta (Pirangi do Norte,
Búzios e Tabatinga).
Esse momento é relatado por Eugênio, ex-veranista da
praia de Tabatinga e atualmente comerciante na lagoa de
Arituba, que relembra a paisagem existente quando diz que
“a beira da lagoa era só junco”, referindo-se à mata ciliar que
existia às margens da lagoa, retirada por nativos para a con-
fecção de produtos artesanais. Segundo esse entrevistado, no
início da década de 1980, “Arituba era vendida como o paraíso”.
Mas foi a partir da década de 1990 que a função turística
do espaço se intensificou, e a área da pesquisa se consolidou na
rota do turismo potiguar com a chegada do turismo de massa.
O início do processo de turistificação da lagoa é relem-
brado pelo Sr. Antônio, morador nativo da comunidade de Timbó,
que começou a trabalhar como barraqueiro em Carcará no início
da década de 1990: “[...] há vinte anos era só mato, só chegava
aqui por uma vereda, era tudo fechado [...], aí os bugueiros
foram chegando [...] traziam gringo, gente famosa (Romário,
jogador de futebol). [...] aí foi quando o povo daqui começou a
se interessar [...]”, disse o Sr. Antônio na sua entrevista.
Segundo os comerciantes locais, o principal fator de
atração para turistas nacionais e estrangeiros, que chegavam
às lagoas por meio dos passeios de buggy, já nos primeiros anos
da década de 1990, era a “paisagem nativa”. A presença desses
turistas na área despertou, espontaneamente, o interesse dos
moradores locais pela atividade turística, vista como uma fonte
de renda alternativa, e eles passaram a estabelecer relações
comerciais por intermédio da venda de alimentos e bebidas.
Nesse tempo se inicia também a construção de barracas nas
margens das lagoas.

153
Esse período também é relatado por um dos bugueiros
entrevistados, quando diz: “O que mais agradava aos turistas
que visitavam estas lagoas era a paisagem natural, o banho em
águas claras, a mata virgem, andar entre dunas [...] e depois
voltar para o hotel onde estavam hospedados”. O passeio entre
as lagoas, denominado pelos bugueiros “Passeio das Águas” ou
“Roteiro Doce”, ainda é realizado e a clientela são os turistas que
se hospedam em qualquer um dos polos turísticos do estado:
Natal e Tibau do Sul.
Com base nos dados desta pesquisa, pode-se dizer que
os bugueiros tiveram papel relevante na transformação das
lagoas como destinos turísticos, uma vez que estabeleceram
um fluxo contínuo de turistas desde os anos de 1990. Para um
membro da categoria que foi entrevistado, “foram os bugueiros
que descobriram as lagoas de Nísia Floresta”, pois só mediante o
buggy, veículo adequado para trafegar em dunas e em estradas
carroçáveis, seria possível explorar o “Roteiro Doce”.
Fonseca (2005), em seu estudo sobre competitividade
turística, reconhece que as lagoas estão entre os atrativos
turísticos mais visitados do município de Nísia Floresta5. Para
a então Secretária Municipal de Turismo e Meio Ambiente de
Nísia Floresta, Solange Portela, o que ocorre nesse município
é o “turismo de passagem”, no qual as lagoas são mais uma
opção de lazer aos que visitam o destino Natal, chegando a elas,
principalmente, pela Rota do Sol.
Furtado e Melo (2001) defendem como turismo de passa-
gem o fluxo de pessoas que circulam e consomem mercadorias
e serviços, sem que haja permanência significativa, ou seja,
o número de pessoas que passa é maior do que o número de
pessoas que fica.

5 Entre os atrativos turísticos de Nísia Floresta/RN, destacam-se: praias,


falésias, dunas, o centenário Baobá, o túmulo da filha ilustre, Nísia
Floresta, e o camarão, que é divulgado como o melhor da culinária
no destino potiguar.

154
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

Para essas autoras, diante de investimentos realizados


nessa rodovia (asfalto, duplicação), o fluxo de veículos e de
pessoas vem aumentando significativamente, provocando
transformações espaciais relevantes. Assim, a RN-063 ocupa
papel de destaque no processo de transformação das lagoas, pois
propicia o fluxo de pessoas, mercadorias e serviços oferecidos
nas lagoas.
Por fim, pode-se afirmar que houve etapas no processo de
turistificação das lagoas desde a década de 1980 e que agentes
sociais distintos se apropriaram desse espaço, entre eles: o Estado,
por intermédio de suas políticas públicas; os turistas, de origem
internacional, nacional, local e excursionistas; e os agentes de
mercado do setor formal e informal da economia, como bugueiros,
barraqueiros, vendedores ambulantes, proprietários das empresas
de ônibus, que servem às excursões, entre outros.

Arituba, Boágua e Carcará: o uso


turístico em escala local
É importante iniciar destacando que as análises apresen-
tadas nesta seção reiteram a função turística das três lagoas em
estudo, enfatizam o que há de comum no processo de produção
do espaço, porém destacam as particularidades dos objetos pre-
sentes e das ações dos agentes sociais que as tornam diferentes.
Os estabelecimentos comerciais, de um modo geral,
estão em funcionamento nessas lagoas há quase 20 anos, o que
remonta aos primeiros anos da década de 1990. As Fotografias
4, 5 e 6 referem-se às imagens das lagoas no início dos anos
2000, por meio das quais se percebe a apropriação do espaço
por comerciantes locais e por turistas.
Conforme demonstram as fotografias, a instalação física
das barracas ou do parque aquático nas margens das lagoas
destoa da paisagem “natural” que, inicialmente, atraía os turis-
tas. Atualmente, a paisagem é marcada pela concentração

155
de 24 comerciantes que atuam na área das lagoas, alguns na
prestação de serviço de alimentação (bar, restaurante) e outros
na área de entretenimento (parque aquático e/ou casa de show).

Fotografias 4, 5 e 6 (ordem) – Estabelecimentos comerciais instalados


nas margens das lagoas de Arituba (4), Boágua (5) e Carcará (6), ano 2001

Fonte: Diário de Natal, 18 jul. 2001

De um modo geral, as instalações caracterizam-se por


um funcionamento regular ao longo do ano, o que significa a
existência de uma demanda turística contínua, pois, segundo
um entrevistado, “O movimento é bom o ano todo”.
De acordo com os dados obtidos na pesquisa, os proprie-
tários atuais dos referidos estabelecimentos são de origem local
(“nativos”), ex-veranistas, bugueiros, além de alguns proprietá-
rios de origem estrangeira que adquiriram estabelecimentos no
decorrer dos primeiros anos da década de 2000 (caso particular
de Arituba).
Diante da caracterização do comércio local, desenvolvido
nas lagoas em função da atividade turística, é importante

156
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

destacar que a geração de emprego e renda é uma realidade ao


longo das duas últimas décadas, seja do tipo formal ou informal,
ou seja, de caráter temporário ou permanente, são empregados
inúmeros cozinheiros, garçons, vendedores ambulantes, guias
de turismo, entre outros.
Não se pretende aqui fazer apologia à atividade econômica
nem à qualidade dos empregos gerados, mas, diante da realidade
local, cuja população dispõe de poucas alternativas de emprego
e renda, os postos de trabalho gerados pelo turismo configuram
uma alternativa relevante, uma vez que essa atividade impul-
siona a economia de Nísia Floresta, conforme argumentado
pela então Secretária Municipal de Turismo.
São cobrados tributos municipais e estaduais à maioria
desses estabelecimentos, como o Imposto Predial e Territorial
Urbano (IPTU), taxas de alvará de funcionamento e licenciamen-
tos junto ao Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio
Ambiente (IDEMA), além de impostos trabalhistas. Fora desse
contexto, estão os que se encontram em situação irregular junto
ao poder público local, como é o caso de alguns barraqueiros
da Lagoa do Carcará, uma vez que seus estabelecimentos estão
em área de posse, impossibilitando a regularização dos serviços
oferecidos junto aos órgãos competentes.
As condições físicas desses estabelecimentos variam
de acordo com as lagoas, conforme pode ser observado nas
Fotografias 7, 8 e 9.
Na lagoa de Arituba, na década de 1990, foi executado um
projeto de urbanização, viabilizado pelo poder público municipal,
por meio do qual foram construídos sete espaços voltados para a
comercialização de alimentos, melhorando as condições sanitárias
existentes. Segundo Eugênio (comerciante entrevistado), o projeto
visava disciplinar o uso e a ocupação das margens das lagoas,
tendo como uma das preocupações a não contaminação da água
pelas fossas existentes, o que resultou numa padronização na
construção dos estabelecimentos no seu entorno.

157
Fotografias 7, 8 e 9 (ordem) – Vista parcial das
instalações físicas dos estabelecimentos comerciais,
em Arituba (7), Boágua (8) e Carcará (9), ano 2010.

Fonte: pesquisa de campo

Em Boágua e Carcará, por sua vez, inexistem ações


nesse sentido. A construção dos estabelecimentos não obe-
dece a nenhum projeto de urbanização, são construídos ao
gosto dos comerciantes, imprimindo formas que destoam da
paisagem local. É válido ressaltar a existência de construções
visivelmente precárias, cujas instalações sanitárias põem em
questão a qualidade dos serviços oferecidos, como no caso da
Lagoa do Carcará.
Observando as condições físicas dos estabelecimentos e a
infraestrutura existente quanto à rede de saneamento básico,
ao fornecimento de energia elétrica, à telefonia, à cobertura
de telefonia móvel, aspectos que são relevantes para qualificar
e viabilizar a atividade econômica do turismo, infere-se que
existe, entre as lagoas em estudo, uma determinada “hierar-
quia”, apesar de todas estarem inseridas na rota do turismo

158
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

potiguar, o que interfere diretamente no momento da escolha


destas pela clientela turística.
Como já foi mencionado, não existem dados estatísticos
sobre a demanda turística nas lagoas, mas, com a pesquisa, foi
possível perceber que, em relação ao recebimento de turistas,
Arituba encontra-se numa situação privilegiada, uma vez que se
caracteriza por receber turistas das classes mais abastadas, seguida
de Carcará. Por último, encontra-se Boágua, a qual se caracteriza,
principalmente, pela presença expressiva dos excursionistas.
Compreende-se, então, que essa diferenciação no perfil
dos turistas que frequentam cada uma das lagoas está dire-
tamente ligada às condições da infraestrutura existente, que
acabam sendo um fator de seleção para a chegada de turistas
com maior poder de consumo.
Retomando as semelhanças existentes entre as lagoas,
destaca-se que o espaço de uso comum vem sendo apropriado
por agentes da iniciativa privada, seja com a construção de
estabelecimentos comerciais na margem das lagoas, seja por
uma gama de serviços informais, volantes, que ocupam a área:
vendedores de picolé, de churrasquinho, de peixe com tapioca
(ginga), de artesanato, e de produtos “piratas” (como óculos,
CD, DVD, entre outros).
Assim, caracteriza-se a apropriação do espaço pelos
agentes de mercado; um mercado artesanal, mas que visa à
obtenção do lucro e à sobrevivência dos seus estabelecimentos
comerciais junto a uma clientela turística variada. Um misto de
turistas estrangeiros (portugueses, espanhóis, noruegueses),
nacionais (paulistas, mineiros, brasilienses), regionais (parai-
banos e pernambucanos), bem como os excursionistas oriundos
de municípios vizinhos (Natal, Parnamirim, São Gonçalo do
Amarante, Canguaretama).
São turistas com perfis diferentes quanto ao poder de
consumo e que chegam às lagoas por intermédio de guias de

159
turismo, bugueiros profissionais e amadores, em carro pró-
prio ou em excursões. Sobre essa clientela, é válida uma breve
caracterização:
• Os turistas de origem nacional e estrangeira são os clientes
“preferidos” entre os comerciantes entrevistados. Eles
frequentam as lagoas há cerca de 20 anos, com maior
intensidade entre os meses de alta estação (outubro a
março). Quanto aos dias da semana mais frequentados
por esses turistas, diferem em relação a cada lagoa. A
visitação ocorre de domingo a domingo, nas Lagoas de
Arituba e Carcará; enquanto em Boágua, eles só passam
nos dias de semana, pois, segundo um dos bugueiros
entrevistados, “O domingo é o dia do povão”, referindo-se
à presença dos “farofeiros”. Para esse entrevistado, “O
domingo devia ser feriado pro bugueiro, é bêbado em
todo canto!”. Esse depoimento representa, sobretudo,
o incômodo gerado pelos excursionistas nessas lagoas.
• Outra parte da clientela turística refere-se aos visitantes
que chegam em excursão ou em carro próprio, oriundos
de municípios vizinhos, ou mesmo de outros estados,
como Paraíba e Pernambuco. É importante destacar que
esses fluxos são viabilizados pela curta distância (menos
de uma hora) entre as lagoas e os municípios, como São
José de Mipibu, Arez, Canguaretama e da capital Natal.
A demanda caracterizada pelo excursionista, aqui enten-
dida como o turismo das massas, é comum nas lagoas desde
os primeiros anos da década de 1990, como foi constatado
na pesquisa e reforçado no relato de Seu José6, excursionista,
frequentador das lagoas em estudo, que revela: “A primeira vez
que vim aqui faz mais de 15 anos”.

6 José Aparecido, 42 anos, excursionista oriundo de Natal/RN, bairro


do Planalto. Pesquisa de campo, Lagoa de Boágua, 07 fev. 2010.

160
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

Os ônibus de excursão são mais comuns nos finais de


semana, predominantemente nos domingos e, também, nos
feriados, dada a disponibilidade de tempo livre desses turistas
que representam uma parcela da classe trabalhadora. O fluxo de
pessoas que movimentam as lagoas caracteriza-se por dezenas
de ônibus por mês, ao longo dos 12 meses do ano.
Por fim, outro tipo de “cliente”, como se refere Kelly7, são
os que chegam em carro próprio, em pequenos grupos, oriun-
dos, também, de municípios vizinhos. Segundo a comerciante,
frequentam as lagoas “desde o início”, referindo-se aos anos
1990. É interessante notar que, apesar de alguns desses turistas
também trazerem a farofa, a bebida e outros apetrechos (como
fazem os excursionistas), não são tratados como “farofeiros”.
Essa situação nos permite concluir que a imagem negativa
do excursionista está relacionada não apenas ao seu baixo poder
de consumo, mas também por andar em “bando” e comportar-se
“fora dos padrões” estabelecidos pelos comerciantes.
Outro aspecto observado é que, apesar de as lagoas esta-
rem inseridas na rota do turismo potiguar, o espaço revela
deficiências que demonstram a fragilidade da atividade, resul-
tado da omissão e negligência do poder público local, o que é
percebido por comerciantes e visitantes.
Vivencia-se nas lagoas uma situação de descuido e de
abandono, a qual é facilmente observada, tomando como exem-
plo alguns elementos da infraestrutura básica relevantes à
qualidade do produto turístico, como acessibilidade, estacio-
namento, segurança pública, saneamento básico e coleta de
resíduos sólidos (Fotografias 10, 11 e 12). Elementos estes que
agregam valor ao produto turístico e, em determinados casos,
tornam-se decisivos para a seleção dos destinos que o turista
elege visitar.

7 Waldira Francisca é proprietária da Barraca da Kelly, como é conhecida


na Lagoa de Carcará. Pesquisa de campo, Lagoa de Carcará, 13 fev. 2010.

161
Um argumento que, de certa forma, esclarece o grau de
descaso com as lagoas é o fato de que o município desenvolve suas
atividades com um reduzido quadro técnico em sua estrutura
administrativa e não possui um plano de ação, em nível local,
para o desenvolvimento da atividade turística.

Fotografias 10, 11, 12 (ordem) – Condições do acesso:


entroncamento da RN-063 com estrada carroçável, que liga à
lagoa de Carcará (10); resíduos sólidos em Boágua (11); condições
de estacionamento disponíveis aos ônibus dos excursionistas (12)

Fonte: pesquisa de campo

Segundo a representante da Secretaria de Turismo de


Nísia Floresta, as ações são regidas pelas diretrizes planejadas
em uma escala mais ampla (regional), o que dificulta observar
as especificidades do complexo fenômeno do turismo e das
deficiências existentes diante do seu desenvolvimento em escala
local. Desse modo, as necessidades mais prementes ficam sem
o atendimento necessário, o que compromete a qualidade e
a intensidade do uso turístico de Arituba, Boágua e Carcará.

162
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

Considerações finais
Realizada a leitura sobre o processo de produção do
espaço, tendo como recorte espacial de pesquisa as lagoas
de Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN), inseridas
na rota do turismo potiguar, pode-se observar que o Estado,
os agentes de mercado, os turistas e a sociedade local são os
agentes sociais responsáveis pelo processo de turistificação
das lagoas em estudo.
Nesse processo, identificaram-se alguns fixos que propi-
ciaram diferentes fluxos de pessoas e de mercadorias, como a
RN-063, denominada Rota do Sol, que passou a funcionar como
um corredor turístico, possibilitando a inclusão das referidas
lagoas na atividade econômica do turismo. O que nos permite
afirmar que, ao longo do processo de implantação dessa infra-
estrutura, o espaço passou por uma ressignificação das suas
formas, de acordo com as diretrizes do mercado e da estrutura
produtiva vigente desde a década de 1980.
O Estado age nesse processo de modo variado: às vezes,
funciona como um grande agente modificador do espaço, assu-
mindo o papel de provedor das políticas públicas; e, em outros
momentos, omite-se da sua função de ordenar o uso do espaço
para que este seja mais justo, menos desigual e com menores
conflitos, mostrando-se incapaz de garantir qualidade mínima
de acesso aos diversos turistas ou à coleta indispensável do lixo
produzido pela própria atividade turística.
É possível inferir que, apesar da negligência do poder
público local com a atividade turística desenvolvida nas lagoas,
estas são apropriadas por diversos agentes de mercado e turistas,
os quais possuem intencionalidades distintas, sejam elas volta-
das para a reprodução capitalista ou para o desfrute do lazer.
Nesse contexto, a intervenção do mercado e o consumo do
espaço apresentam-se por meio dos loteamentos de terras que
serviram à construção das segundas residências, dos serviços

163
de alimentação e entretenimento oferecidos aos vários turistas,
dos ônibus fretados pelos excursionistas, da construção da
infraestrutura disponível ou do comércio ambulante presente.
Independentemente da intensidade, o mercado está presente
nesse processo, visando a obtenção do lucro e a reprodução
do capital.
A atividade turística, por sua vez, se caracteriza pela
diversidade. As diferenças estão relacionadas à origem e ao
poder de consumo dos turistas, do turismo de massa ou das
massas, os quais se tornam desejados ou indesejados nessas
lagoas, conforme os interesses e as condições de atuação dos
comerciantes locais.
Diante do exposto, este capítulo apresentou contribui-
ções pertinentes ao processo de produção do espaço para o
desenvolvimento da atividade turística em uma porção do
litoral potiguar, que resultou na turistificação das lagoas de
Arituba, Boágua e Carcará a partir de ações concretas de agentes
hegemônicos e não hegemônicos.
Por fim, pode-se afirmar que este estudo apresenta mais
uma leitura sobre uma atividade que é, antes de tudo, uma
prática social, uma atividade econômica moderna, entre as
mais dinamizadoras de espaços, cuja complexidade, diante
das relações sociais e da materialização que se dão ao longo
do processo de turistificação dos espaços envolvidos, suscita
novas reflexões.

Referências
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-rio-grandense. Natal: Edufrn, 1981.
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164
Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta-RN) na rota do turismo potiguar:
uma leitura sobre o processo de produção do espaço

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TULIK, Olga. Turismo e meios de hospedagem: casas de temporada. São
Paulo: Rocca, 2001.

166
A expansão do mercado imobiliário
em Mossoró-RN: da produção dos
conjuntos habitacionais populares
à produção dos condomínios
e loteamentos fechados
Eduardo Alexandre do Nascimento1
Ademir Araújo da Costa2

Introdução
A cidade de Mossoró-RN atravessou, entre os anos de 1960 e
os dias atuais, dois momentos de expansão acentuada do setor
imobiliário. O primeiro teve início com uma ampla política
habitacional desenvolvida no contexto do regime militar que
se instalou no país a partir de meados de 1960. Durante esse
período, a intensa expansão do mercado de imóveis, que resultou
na construção de milhares de unidades habitacionais, instau-
rou-se em Mossoró precisamente em 1968, com a construção do
conjunto Walfredo Gurgel, localizado na Zona Leste da cidade,
e se estendeu até o final da década de 1980, período em que os
organismos de fomento à construção civil – o Banco Nacional

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia


(PPGe/UFRN), Bolsista CAPES. E-mail: eanascimentoea@gmail.com
2 Prof. Dr. do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia
(PPGe/UFRN). E-mail: ademir@ufrnet.br

167
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

de Habitação (BNH) e o Sistema Financeiro de Habitação (SFH)


–, criados pelo governo militar, foram extintos.
O segundo momento começou a se delinear nos primeiros
anos de 2000, em função da emergência e interação de um
conjunto de fatores reestruturantes de caráter produtivo, que
redefiniram a dimensão socioeconômica da realidade local.
Essa fase, ainda vigente, se caracteriza pelo protagonismo
do capital privado na condução do processo de produção do
imobiliário, pelos seus impactos marcantes sobre a dinâmica
territorial e econômica de Mossoró e, sobretudo, pela elevação
do preço da moradia.
Diante dessa nova conjuntura, o espaço urbano de
Mossoró, em sua totalidade, entra mais intensamente, por meio
da troca e da venda de suas parcelas e objetos, nos circuitos
da acumulação capitalista, apresentando elementos novos em
relação ao período de atuação do sistema BNH/SFH. Perante essa
realidade, o capital envolvido com a produção de habitações
em Mossoró se especializa e desenvolve novas estratégias de
produção e comercialização da habitação.
Surge por parte desse capital, por exemplo, a preocupação
com a localização dos empreendimentos em relação aos equipa-
mentos e aos serviços urbanos, como forma de acrescentar valor
aos imóveis – especialmente em relação aos empreendimentos
de alto padrão e aos direcionados às camadas da classe média
de maior renda. Há, ainda, um esforço no sentido de incorporar
uma variedade de equipamentos aos loteamentos e condomí-
nios fechados para a agregação de valor e para a promoção
do marketing: os atuais empreendedores do setor imobiliário
fazem intenso uso da publicidade, responsável pela exaltação da
paisagem, das “qualidades” do produto, e pela manipulação dos
desejos e anseios dos consumidores. Além das novas estratégias,
a especulação imobiliária e a substancial valorização da terra
urbana, da habitação e dos aluguéis, contribuem decisivamente

168
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

para o aprofundamento dos problemas urbanos presentes em


Mossoró, sobretudo os ligados à moradia.
O atual período de expansão do mercado imobiliário em
Mossoró também se caracteriza pela atuação de uma ampla
política habitacional, concretizada, sobretudo, no Programa
Minha Casa Minha Vida (PMCMV), que constitui o atual e
mais relevante programa habitacional do Governo Federal,
lançado sob a Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009. O PMCMV
figura como importante força motriz das transformações
ocorridas atualmente no município: movimenta um volume
representativo de capital, cria postos de trabalho e fomenta
a produção e o consumo, bem como engendra transforma-
ções importantes na paisagem a partir do acréscimo de uma
série de objetos geográficos ao tecido urbano, na forma de
infraestrutura e habitações. Ademais, a conjunção entre um
mercado imobiliário em franca expansão e a emergência
de uma política habitacional de caráter mercadológico, a
exemplo do PMCMV, tende a reforçar os problemas de ordem
socioespacial que caracterizam Mossoró, a exemplo da questão
do acesso à moradia.
A presente investigação tem como propósito central
a confrontação analítica entre o período da construção dos
grandes conjuntos habitacionais do sistema BHN/SFH, no qual
a produção e a aquisição da moradia eram reguladas direta-
mente pelo poder público a partir das Companhias de Habitação
Popular (COHAB), e o período atual, estimulado em boa medida
com recursos mobilizados pelo PMCMV, no qual a produção e a
aquisição da moradia, a despeito das regulamentações da atual
política habitacional, se realizam sob as determinações quase
absolutas da lógica do mercado. Tal confrontação deriva da
necessidade de apreender as particularidades de cada modelo
de política habitacional implementado e suas implicações sobre
o processo de urbanização do município de Mossoró-RN em
contextos geo-históricos distintos.

169
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

O presente trabalho é resultado de nossa pesquisa de


mestrado3, realizada no Programa de Pós-Graduação e Pesquisa
em Geografia (PPGe), da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN), sob a orientação do professor Dr. Ademir Araújo da
Costa. Quanto aos procedimentos metodológicos que norteiam
este trabalho, figuram o levantamento de dados e informações
a partir de fontes primárias e secundárias, estatísticas e docu-
mentais, por meio de visitas a órgãos públicos e instituições
privadas, além da observação dos processos estudados in loco.
Além disso, utilizou-se uma série de referências bibliográficas
(livros, teses, dissertações e artigos) relacionadas ao tema aqui
investigado.

A construção dos conjuntos habitacionais


em Mossoró no contexto do período
do regime militar (1964-1985)
Durante o regime militar, o governo brasileiro desenvolveu
uma ambiciosa política de desenvolvimento urbano no país. A
partir dos últimos anos da década de 1960, o Estado iniciou um
processo de reestruturação do espaço urbano nacional por meio
da criação do Programa Nacional de Cidades de Porte Médio,
responsável pelo planejamento urbano e pelo incremento da
infraestrutura dessas cidades. Assim, por conta de sua condição de
importante centro regional nordestino, Mossoró passou a ser alvo
de pro­gramas nacionais de desenvolvimento urbano. Associados
às ações implementadas pelas políticas urbanas para as cidades
de porte médio, estavam o Sistema Financeiro de Habitação (SFH)
e o Banco Nacional de Habitação (BNH), instituições responsáveis
por um amplo movimento de construção imobiliária no território
nacional. De acordo com Nabil Bonduki (2008), foram mais de
quatro milhões de habitações construídas sob as determinações

3 Disponível em: <https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/


123456789/18942/1/EduardoAN_DISSERT.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2016.

170
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

desses organismos entre 1964 e 1989, favorecendo direta e indi-


retamente diversos segmentos do capital.
A política habitacional desenvolvida pelo governo militar,
com recursos oriundos do sistema SFH/BNH e operacionalizada
pelas COHAB, constituiu um componente basilar para os avanços
verificados na economia do município de Mossoró entre as
décadas de 1960 e 1980. De acordo com dados fornecidos pelo
escritório regional da Companhia de Processamento de Dados
do Rio Grande do Norte (DATANORTE) de Mossoró, a Companhia
de Habitação Popular do Rio Grande do Norte (COHAB-RN) atuou
nesse município entre 1968 e 1989, coordenando a construção
de quase 8.000 unidades em 17 conjuntos habitacionais. A pro-
dução habitacional executada pela COHAB-RN, com a utilização
dos recursos financeiros provenientes do sistema SFH/BNH,
representou o mais relevante processo de intervenção urbana
sobre a estrutura do tecido urbano do município de Mossoró
durante os anos 1960, 1970 e 1980, fato que, para Pequeno e
Elias (2010), influenciou diretamente a configuração de novos
eixos de expansão da cidade.
A grande quantidade de unidades habitacionais cons-
truídas, somadas à construção de numerosos equipamentos
urbanos, mobilizou o capital local, outrora estagnado pela
crise das economias tradicionais: a produção de óleos vegetais,
cera de carnaúba e o beneficiamento de algodão voltado à
exportação para o sudeste do país e a Europa. A produção de
infraestrutura e habitação em massa tornou a indústria da
construção civil em Mossoró um campo fecundo para investi-
mentos lucrativos de empresários da região. Além de absorver
os capitais imobilizados de empresários da cidade, a construção
dos conjuntos habitacionais e da infraestrutura urbana, nesse
período, implicou na absorção de mão de obra estagnada oriunda
do campo, de cidades próximas e de setores da economia local
que se modernizaram, incorporando tecnologias poupadoras
de trabalho vivo, a exemplo da indústria salineira, e de setores
que entraram em decadência, como a agroindústria.

171
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

A produção de infraestrutura e dos conjuntos habitacionais


ainda tem efeitos marcantes sobre a ampliação do consumo pro-
dutivo – engendrado pelo aumento substancial da demanda por
tijolos, madeira, telhas, cimento, tintas, cal etc. – alavancando o
conjunto da economia mossoroense e de sua região de influência.
De acordo com informações fornecidas pela DATANORTE, 20
construtoras (Porpino Construtora Ltda., Fimac Ltda., Procalco,
Construtora Estrela Ltda., Bandeira de Melo Ltda., AFA, Sólidos,
Norte Brasil Ltda., Azevedo Flor Ltda., EIT, Consultoria Ltda.,
Gaspar Ltda., Certa, Encel, Tomé, Consórcio Fiel Ltda., Ecan, Weber
Engenharia, R Coelho Com e Rep Ltda., EC) passaram a atuar em
Mossoró, entre as décadas de 1960 e 1980, produzindo infraestru-
tura urbana, construindo conjuntos habitacionais, dinamizando a
produção econômica local e gerando inúmeros postos de trabalho.
Os efeitos da política de habitação popular, desenvolvida pelo
governo militar, incidiram, do mesmo modo, sobre a estrutura,
a forma e a materialidade do espaço urbano do município de
Mossoró, implicando em um processo marcante de reconfiguração
do tecido urbano e da transformação da paisagem. A massa de
capitais imobilizada e realizada durante esse período promoveu
modificações profundas na morfologia urbana da cidade. Conjuntos
habitacionais, novos equipamentos de ensino e saúde, novas
estruturas de distribuição de água e energia e prédios públicos
constituem exemplos de formas espaciais que são acrescidas ao
tecido urbano da cidade, durante as décadas de 1960, 1970 e 1980,
dando-lhe mais densidade e extensão. O mapa da Figura 1 ilustra a
extensão desse processo. As áreas em destaque, que representam
a expansão do tecido urbano de Mossoró no período em questão,
coincidem exatamente com a construção dos grandes conjuntos
habitacionais populares construídos dentro do sistema SFH/BNH,
como é o caso do Abolição e do Santa Delmira.
A cidade se expandiu, a estrutura urbana se ampliou,
alargando de maneira considerável os limites do tecido urbano.
Contudo, tal fenômeno irrompe prenhe de problemas e contra-
dições socioespaciais.

172
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

Figura 1 – A expansão do tecido urbano de Mossoró entre 1965 e 1990

Fonte: limites do perímetro urbano de bairros e municipal,


IBGE. Mancha Urbana 1965, CPRM. Mancha Urbana delimitada
a partir de interpretação da imagem LANDSAT 5/TM, 1990

A despeito do grande número de residências construídas


em Mossoró, as ações da política habitacional do governo militar
não foram suficientes para superar o problema da moradia
na cidade. O surgimento de grandes favelas durante o mesmo
período de construção dos conjuntos habitacionais consiste
numa evidência clara dos limites de tal política, enquanto
meio para equacionar o déficit de moradia no país. O processo
de favelização se intensifica em Mossoró a partir da década de
1980, estreitamente ligado a uma vigorosa dinâmica popula-
cional, caracterizada pela migração campo-cidade. Pequeno
e Elias (2010) afirmam, fundamentados em dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que, entre 1970 e
2000, a população urbana do município de Mossoró passa de
79,5 mil para 199 mil habitantes. Dessa forma, em trinta anos,
a população urbana cresceu cerca de 2,5 vezes.

173
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

O significativo deslocamento campo-cidade e o conse-


quente processo de crescimento da população mossoroense
potencializaram a demanda por habitação.
Na ausência de políticas públicas capazes de ampliar
suficientemente o estoque de habitações e de preparar a cidade
para receber esse grande contingente de pessoas, boa parte da
população migrante recorre à construção de barracos em lote-
amentos clandestinos, originando um processo de produção de
favelas em massa. A partir de 1980, esse processo rapidamente se
prolifera em Mossoró. De acordo com informações da Secretaria
de Desenvolvimento Territorial e Ambiental (SEDETEMA)4 do
município, em meados de 1990, já existiam 32 favelas reconhe-
cidas pelo poder público municipal. Eram mais de quatro mil
barracos e quase 23 mil pessoas vivendo em aglomerados sub-
normais.5 Em Mossoró, a produção de habitações promovida pelo
sistema BNH/SFH ficou muito aquém do estoque habitacional
necessário para suprir a escassez de moradias, impedindo boa
parte da população pobre de participar do mercado de imóveis
e de obter melhores condições de moradia.
As famílias contempladas com os imóveis populares da
política habitacional no período do regime militar enfrentaram
uma série de dificuldades. Associado ao problema da insuficiên­
cia de unidades habitacionais para suprir a demanda efetiva
da população mais carente, estava o problema da ausência de
infraestrutura e serviços elementares, comum aos grandes
conjuntos habitacionais construídos durante esse período.
Em Mossoró, esses assentamentos foram, na maior parte dos

4 Prefeitura Municipal de Mossoró – Secretaria de Desenvolvimento


Territorial e Meio Ambiente (SEDETEMA), 2012.
5 É o conjunto constituído por 51 ou mais unidades habitacionais carac-
terizadas por ausência de título de propriedade e, pelo menos, uma
das características a seguir: irregularidade das vias de circulação;
do tamanho e da forma dos lotes; e/ou carência de serviços públicos
essenciais (como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água, energia
elétrica e iluminação pública). Fonte: IBGE (2010).

174
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

casos, construídos em áreas periféricas da cidade, distantes


dos equipamentos urbanos e de serviços básicos como sane-
amento, saúde, educação, comércio, lazer etc., presentes nas
áreas centrais. Valença (2012), referindo-se ao padrão esparso
e difuso do processo de expansão urbana no período de cons-
trução dos grandes conjuntos do sistema BNH/SFH, trata da
ausência desses elementos como um problema característico
dos conjuntos construídos durante o período militar e aponta
suas possíveis causas:
Os grandes conjuntos foram construídos, quase sempre na
periferia das cidades, deixando, entre estes e aquelas, grandes
extensões de terras para posterior utilização, fomentando a
especulação imobiliária e marcando um padrão de expansão
urbana esparso, difuso, confuso e cheio de grandes vazios
urbanos (VALENÇA, 2010, p. 2).

Nessa perspectiva, Renato Pequeno e Denise Elias (2010)


afirmam que a adoção da localização periférica dos conjuntos
habitacionais em Mossoró pode ser verificada desde a implan-
tação do primeiro assentamento desse tipo. De acordo com os
autores, o baixo custo dos terrenos é a justificativa comumente
apresentada para tais escolhas. Desse modo, esse padrão de
expansão urbana (lacônica e caótica), largamente impulsionado
pela produção de habitações populares, originou um tecido
urbano fragmentado e socialmente excludente. Os vazios urba-
nos próximos às áreas centrais, privilegiadas pela presença
de infraestrutura e serviços essenciais aos cidadãos, foram
reservados aos processos especulativos futuros e às classes
sociais de maior rendimento. À grande massa de indivíduos de
menor renda foi reservada a periferia desurbanizada, em favelas
e/ou em conjuntos habitacionais populares, com a presença
sobremodo modesta de serviços e infraestrutura.
Déficit habitacional, segregação socioespacial e frag-
mentação do tecido urbano, problemas comuns ao período de
construção dos conjuntos habitacionais, ainda persistem em
Mossoró de maneira bastante acentuada, preservando-se como

175
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

uma continuidade do movimento histórico. O recente processo


de expansão do mercado de imóveis, diretamente envolvido na
lógica produtiva do capital, reproduz e amplia um conjunto de
contradições socioespaciais preexistentes nessa cidade.
No entanto, a despeito das continuidades, o atual pro-
cesso de produção de habitações, em decorrência da presença
dominante dos agentes capitalistas em sua condução, apresenta
algumas rupturas importantes em relação ao modelo de produ-
ção imobiliária do período de construção dos grandes conjuntos
habitacionais populares, dos quais o papel do Estado era proe-
minente na incorporação e construção dos empreendimentos.
Em função dessas mudanças, a dinâmica atual de produção
de imóveis em Mossoró traz consigo um conjunto de novos
elementos que contribuem decisivamente para o agravamento
de problemas socioespaciais preexistentes e para o surgimento
de novas desigualdades.

A emergência de um novo modelo de expansão


do capital imobiliário e o aprofundamento
das desigualdades socioespaciais do
espaço urbano mossoroense
Após o marcante crescimento da produção imobiliária em
Mossoró, sustentado pelas políticas habitacionais do governo
militar, ocorre um momento de estagnação no setor da cons-
trução civil. No período relativo à década de 1990, o mercado
imobiliário mossoroense, sem o respaldo dos recursos do sistema
BNH/SFH, já extinto nesse momento, se restringe à venda de
loteamentos em áreas periféricas e à autoconstrução, prática
que continuou movimentando de forma modesta a venda de
materiais para construção na cidade e na região. Todavia os
primeiros anos de 2000 foram marcados pela restauração da
dinâmica desse mercado de imóveis. O setor retoma sua dinâmica
atraindo um volume expressivo de capitais internos, alocados
em outros setores da economia, e externos.

176
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

De acordo com dados fornecidos pelo Sindicato da Indústria


da Construção Civil do Rio Grande do Norte (SINDUSCON-RN),
atualmente, existem 44 construtoras locais, com registro
na instituição, atuando na cidade. As de capital externo são
representadas, a princípio, por construtoras procedentes de
Natal-RN, como a Metro Quadrado, e do estado da Paraíba,
como é o caso da MASSAI; e, posteriormente, por empresas de
atuação nacional, tais como a TBK, pernambucana, e o grupo
Alphaville, que atua em todo território nacional.
A atual dinâmica do mercado imobiliário em Mossoró se
exprime necessariamente pela sua relação com uma totalidade
multiescalar. O fortalecimento do setor encontra explicação na
confluência e no enlace de uma série de fatores que se manifestam
em diferentes escalas: a contínua produção do espaço geográfico,
na forma de habitação e infraestrutura, como meio para acumu-
lação do capital; a redefinição do papel produtivo das cidades
médias brasileiras na divisão territorial do trabalho, condição
fundamental para a reestruturação da economia nacional e, por
conseguinte, para expansão do capital imobiliário para além dos
grandes centros urbanos; a formação de uma ampla estrutura
de crédito, responsável pelo incremento e pela sustentação dos
negócios imobiliários em Mossoró e no território nacional como
um todo; o fomento por parte do Estado de condições estratégicas,
fiscais e financeiras para produção de moradias populares em
massa pelo PMCMV; e, por fim, o processo de reestruturação
produtiva das bases econômicas locais e de reconfiguração do
modelo municipal de governança urbana, responsáveis diretos
pela revitalização da dinâmica produtiva da cidade e de sua
região de influência. As transformações de caráter local foram
fundamentais na instauração de condições para a expansão do
mercado de imóveis residenciais na cidade.
A dimensão geográfica constitui um elemento impres-
cindível no processo de acumulação de capitais (HARVEY,
2005). Disso é possível depreender que as novas formas e

177
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

os novos conteúdos geográficos gestados pelo processo de


expansão do mercado imobiliário em Mossoró, com uma
profusão de mudanças marcantes na paisagem e nas rela-
ções socioespaciais, exercem, como no passado, um papel
econômico determinante.
Aqui, reside uma continuidade essencial entre os dois
momentos de expansão do mercado imobiliário em Mossoró
destacados no presente trabalho. Contudo essa mesma lógica
produtiva imposta pelo capital imobiliário ao espaço urbano
de Mossoró traz em seu movimento elementos distintos do
modelo de produção imobiliária implementado pelo sistema
BNH/SFH, implicando numa descontinuidade, numa ruptura
com a forma tradicional de reprodução e organização da
geografia da cidade em questão. Essas rupturas e continui-
dades fundam um novo momento para o mercado de imóveis
da cidade. Assim, como resultado da produção de um novo
imobiliário residencial, esse espaço urbano se expande e
se reorganiza, contudo, trazendo elementos novos como a
verticalização da paisagem e a construção de condomínios
residenciais fechados horizontais de alto padrão, o que confere
um caráter de modernidade à cidade e altera expressivamente
sua estrutura e dinâmica urbanas.
A Figura 2 representa a espacialização do processo de
verticalização na cidade, concentrado numa área que abrange o
centro comercial, os bairros Santo Antônio e Alto de São Manoel
e, pricipalmente, o bairro Nova Betânia. A predominância da
verticalização nesse último bairro deve-se ao alto poder aqui-
sitivo de seu moradores, fator de atração de empreendimentos
verticalizados de alto padrão.
A Figura 3, por sua vez, representa a expansão do tecido
urbano em Mossoró entre 2003 e 2011, período de tempo no qual
o mercado imobiliário local se reestrutura, e imprime um ritmo
de construção relativamente forte. É exatamente durante esse
momento que diversos loteamentos são abertos e uma série de

178
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

condomínios fechados e conjuntos habitacionais são construídos


na cidade. Com isso, o tecido urbano se expande em todas as
direções; no entanto, algumas áreas são mais impactadas.

Figura 2 – Espacialização do processo de verticalização em Mossoró

Fonte: limites do perímetro urbano, de bairros e municipal:


IBGE. Dados catalogados em campo no ano de 2012

Essa expansão é significativa no bairro Abolição, localizado


na Zona Oeste da cidade, a partir, sobretudo, da abertura de
novos loteamentos e da ampliação de antigos, como é o caso do
loteamento Pousada das Thermas e da construção do conjunto
Monsenhor Américo Simonetti. O bairro Nova Betânia, igualmente
localizado na Zona Oeste de Mossoró, se expande na mesma
proporção. Além do acentuado processo de verticalização que
ocorre nesse bairro, a partir de meados dos anos 2000, ele passa
a receber equipamentos comerciais e de prestação de serviços
(Universidade Potiguar, Atacadão, West Shopping etc.), em torno
dos quais se estabelecem condomínios horizontais fechados
de alto padrão. O Alto do Sumaré (Zona Leste) também tem se
expandido a partir da formação de loteamentos e de empreen-
dimentos do PMCMV, especialmente os destinados às faixas da
população de maior rendimento contempladas pelo Programa.

179
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Figura 3 – Mapa: a expansão do tecido urbano


de Mossoró entre 2003 e 2011

Fonte: limites do perímetro urbano e dos bairros, IBGE;


delimitação da mancha urbana, LANDSAT

A proliferação dos condomínios fechados, a constituição


de um “novo estilo de vida” e a possibilidade de diferenciação
social são marcas do novo momento de expansão do capital
imobiliário em Mossoró. Com já foi dito, durante os anos 1970 e
1980, Mossoró se expandiu a partir da construção de conjuntos
habitacionais populares. No entanto, desde o início da década
passada, a cidade se expande mediante um novo formato de
produção imobiliária. A forma como a dinâmica atual desse
mercado vem transformando a paisagem da cidade promove a
proliferação dos condomínios fechados, horizontais e verticais,
originando um novo modo de habitar e de viver.
Esse tipo de habitação se ajusta às necessidades de mora-
dia das camadas de maior poder aquisitivo da sociedade. Os
condomínios fechados de médio e alto padrão proporcionam, ao
menos em tese, um conjunto de vantagens aos seus moradores.
Entre essas vantagens se destacam segurança, privacidade,

180
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

localização privilegiada e equipamentos de lazer contidos


no interior do próprio condomínio. Do mesmo modo, esses
novos habitats urbanos preenchem a necessidade, inerente
aos moradores de cidades de porte médio, de figurar e de se
afirmar enquanto modernos (SPOSITO, 2006). Há, por parte
das populações dessas cidades, um sentimento de emulação
em relação ao global e ao metropolitano, preenchido, em larga
medida, pela construção de uma paisagem imitativa dos grandes
centros urbanos, verticalizados e fortemente marcados pela
existência de condomínios e loteamentos fechados.
Ávidas por se assemelhar à vida metropolitana e moderna,
as classes média e alta de Mossoró afluem para os loteamentos
e condomínios fechados, corroborando com uma nova forma
de habitat e com um novo estilo de vida, diferenciado e exclu-
sivo. Nesse sentido, é possível afirmar que os condomínios
fechados, enquanto formas espaciais urbanas, preenchem,
também, necessidades existenciais. Nessa perspectiva, um fato
recente é que os promotores imobiliários não vendem mais uma
moradia ou um imóvel, mas sim um novo modo de viver, uma
ideologia, a residência como o “lugar da felicidade numa vida
cotidiana miraculosa e maravilhosamente transformada. [...]
a publicidade [...] ‘faz nascer uma nova arte de viver’, um ‘novo
estilo de vida’. A cotidianidade parece um novo conto de fadas”
(LEFEBVRE, 2008, p. 25).
Ainda com a emergência de novos sistemas de valores
suscitados pela nova “arte de viver”, inerente aos condomínios
fechados, residir nessas estruturas torna-se símbolo de status,
é uma prática que representa nitidamente a diferenciação das
classes média e alta da população de baixa renda. A proliferação
desse novo modo de habitat em Mossoró propicia à sua elite
urbana, bem como à sua classe média, não apenas uma vida
com privacidade, segura e tranquila, mas a possibilidade de
separação, de distinção social. “O que na verdade parece ser
o elemento decisivo para escolha dos que ali residem, além

181
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

do sentimento de segurança é o sentir-se entre iguais, isto é,


entre pessoas da mesma condição social” (MAIA, 2006, p. 167).
As possibilidades de diferenciação social intrínsecas ao atual
processo de expansão do capital imobiliário em Mossoró impli-
cam na produção de um espaço profundamente contraditório,
onde as possibilidades de separação dos indivíduos e das classes
sociais tornam-se mais reais.
Uma outra característica do atual processo de expansão
do mercado imobiliário em Mossoró é a criação de um novo con-
junto de mecanismos voltados para a valorização do imobiliário
residencial e do solo urbano, ausentes, ou presentes de forma
muito acanhada, durante o período de construção dos grandes
conjuntos habitacionais populares do sistema SFH/BNH. Esses
mecanismos consistem numa ruptura histórica.
Mediante essa nova conjuntura, caracterizada pela
grande relevância do setor imobiliário, o capital e os agentes
diretamente envolvidos na produção de imóveis (tais como
instituições financeiras, incorporadores, construtores e pro-
prietários fundiários) buscam, de toda forma, desenvolver
mecanismos e estratégias de valorização dos produtos imobiliá-
rios. A localização favorável dos imóveis, sobretudo, em relação
aos sistemas de objetos urbanos, aos serviços e a determinadas
atividades comerciais; a construção de empreendimentos com
equipamentos de lazer, a exemplo dos condomínios clubes;
a publicidade, que contribui para a criação de uma imagem
positiva do empreendimento; são exemplos de mecanismos e
estratégias de valorização dos imóveis no período atual.
Em Mossoró, no presente contexto, acompanhando uma
tendência geral, a localização dos empreendimentos da indústria
da construção civil de alto e médio padrão, dentro do tecido
urbano, assume uma importância central na composição do
valor dos imóveis e na realização do lucro do incorporador-
-construtor. A importância do fator locacional no âmbito da
produção imobiliária se explica, basicamente em função de dois

182
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

fatores: a renda da terra e a relação dos imóveis com o sistema


de objetos imobiliários que compõe a cidade.
Como afirma Ribeiro (1996), quem adquire um imóvel
não adquire um objeto isolado, a habitação só desempenha
efetivamente sua função (ou suas funções) em sua relação com
um sistema de objetos incorporados ao espaço. A proximidade e
a possibilidade de relacionamento da habitação com uma série
de equipamentos e serviços urbanos viabiliza a prática do “habi-
tar” (ou do habitat), além de consistir num fator fundamental
de diferenciação e composição do valor da construção. Daí a
insistente preocupação dos incorporadores e construtores em
localizar seus empreendimentos, especialmente os destina-
dos às classes de maior rendimento, próximos a um contíguo
de amenidades construídas ou naturais. De acordo com Paul
Singer (1982, p. 26), “a demanda de solo urbano para fins de
habitação [...] distingue vantagens locacionais, determinadas
principalmente pelo maior ou menor acesso a serviços urbanos
[...] e pelo prestígio social da vizinhança”.
Somada à preocupação com a localização dos empreendi-
mentos imobiliários em relação aos serviços e aos equipamentos
de infraestrutura urbana, como forma de acrescentar valor ao
produto, há, da mesma maneira, a preocupação com a qualidade
do produto em si, especialmente com os imóveis construídos
para as classes média e alta. O uso de materiais de construção de
melhor qualidade e mais sofisticados nas edificações, bem como
a incorporação de uma série de equipamentos e serviços aos
espaços coletivos dos condomínios consistem numa estratégia de
valorização do empreendimento. Em Mossoró, inúmeros condo-
mínios vêm sendo construídos com a agregação de equipamentos
que visam adicionar valor aos imóveis. Assim, torna-se comum
a construção de condomínios que contêm equipamentos como
Lobby6, salão de festas, espaço gourmet, brinquedoteca, fitness,
piscinas, deck descoberto, praça, playground, redário, gazebo

6 A palavra lobby tem origem inglesa e significa salão, hall, corredor.

183
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

teen7, guarita e apoio. Ainda, a ênfase que é dada à estética e


ao design que conduz a uma menor uniformização dos imóveis,
característica comum aos grandes conjuntos habitacionais do
BHN. A estética e o design também são meios para expressão de
símbolos. Símbolos de status social, de liberdade, da natureza,
de uma nova vida, de uma vida em comunidade e de felicidade.
Na atual conjuntura, em função da competitividade, as
empresas do setor imobiliário não podem prescindir da publi-
cidade. “Há uma relação carnal entre o mundo da produção da
notícia e o mundo da produção das coisas e das normas” (SANTOS,
2007, p. 40). Desse modo, torna-se necessário frisar o papel da
publicidade e da propaganda no fortalecimento da dinâmica
do mercado imobiliário mossoroense no presente momento.
Diferentemente do período da construção dos conjuntos habita-
cionais populares do SFH/BNH, a publicidade figura hoje como
um fator relevante para valorização e estímulo ao consumo de
imóveis em Mossoró. Outdoors, panfletos, canais de televisão e
de rádio, jornais impressos e revistas veiculam uma mensagem,
quase onipresente, de consumo e de encantamento do produto do
capital imobiliário. Em função da centralidade que, atualmente,
a propaganda exerce na produção capitalista, os frequentes
empreendimentos imobiliários lançados em Mossoró demandam
sempre estratégias de venda, que são desenvolvidas pelos pro-
fissionais de marketing e publicidade como forma de preparar o
espírito dos consumidores em potencial para o consumo desses
imóveis. A dependência estreita da publicidade por parte do
capital imobiliário é um traço característico do presente.
O marketing e a publicidade dos promotores imobiliários
não vendem apenas o imóvel, eles vendem também uma série de
ilusões, signos da ausência de realidades que se distanciam do
homem à medida que o processo “civilizatório” avança. O marke-
ting e a publicidade ligados ao capital imobiliário comercializam

7 Consiste numa pequena construção de lados abertos e com cobertura


que se ergue em jardins.

184
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

signos, e apenas signos, de felicidade, de liberdade, da natureza


e até mesmo de vida comunitária no interior dos “falanstérios
para uso dos sátrapas modernos” (LEFEBVRE, 2008, p. 145). Em
Mossoró, no presente, tais signos são produzidos e comercializados
em massa pela indústria da moradia. A intenção dos empreen-
dedores imobiliários é reunir no interior das novas formas de
habitat signos que permitem o contato ilusório com uma forma
de habitar já distante, ausente, hoje apenas residual e utópica.
Entre os elementos característicos da expansão do mer-
cado imobiliário em Mossoró no atual período, ainda destaca-se
a elevação marcante e sempre crescente dos preços da terra e
dos imóveis. A despeito de ter sido terreno comum durante a
expansão do mercado imobiliário no período do regime militar,
decorrente da construção de milhares de unidades habitacionais
e do beneficiamento de várias áreas da cidade com equipamentos
de infraestrutura, o processo de elevação dos preços da terra
e da moradia, ora vigente, manifesta-se de forma bem mais
acentuada no presente contexto. A novidade não consiste na
elevação dos preços em si, mas em sua intensificação e no papel
central que desempenha no aprofundamento das desigualdades
socioespaciais que caracterizam a cidade.
O significativo aumento dos preços da terra e dos imóveis
em Mossoró, na última década, deve-se, principalmente, ao
expressivo crescimento da demanda local por habitação. O
destacado dinamismo econômico que o município vem apre-
sentando nas últimas duas décadas, em função da produção
de petróleo, sal marinho e frutas tropicais, resulta na maior
circulação de capitais e no fortalecimento do poder aquisitivo
de parte de sua população, fato que acarreta, necessariamente,
a ampliação da demanda por imóveis. Soma-se ao incremento
dessa demanda o desenvolvimento de uma política habitacional
de amplo alcance – implementada pelo Governo Federal – que
envolve a melhoria das condições de crédito, a queda dos juros
e a produção de moradias popular em massa pelo PMCMV.

185
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Durante a construção dos grandes conjuntos habitacionais


do BHN, a demanda, em Mossoró, se ampliou em função do
processo migratório de populações pobres advindas de pequenas
cidades próximas e do campo. No presente contexto, a ampliação
da demanda vincula-se ao aumento do poder de consumo da
população local, fomentada pelo dinamismo econômico que
apresenta o município.
A afirmação de forte incremento dos preços da terra e dos
imóveis em Mossoró, durante a última década, é corroborada pelos
números dispostos a seguir. Segundo Rocha (2005), em pesquisa
desenvolvida sobre a expansão urbana de Mossoró no período
de 1980 a 2004, no ano de 2003, um lote padrão, medindo 12x30
metros, localizado no bairro Costa e Silva, Zona Leste da cidade,
era vendido, em média, por R$ 10.000. Em 2013, um lote localizado
no mesmo bairro, com as mesmas dimensões, custava em média
R$ 100.000. Um incremento médio de 900% em 10 anos, enquanto
a variação do IPCA-Geral no mesmo período foi de 72,02%. No
loteamento Pousada das Thermas, localizado na Zona Oeste da
cidade, os valores dos lotes passaram, num período de 10 anos,
por um incremento exponencial. Segundo informações de cor-
retores de imóveis da cidade, nos primeiros anos de 2000, o lote
padrão (medindo 12x30 metros) custava entre R$ 1.000 e R$ 3.000.
Atualmente esses mesmos lotes são vendidos por até R$ 50.000.
O Bairro Nova Betânia, área onde foi construído o Mossoró
West Shopping e outros equipamentos, como a Universidade
Potiguar (UnP) e o Atacadão, supermercado pertencente ao
grupo Carrefour, passou, na última década, por um processo
de valorização substancial. Devido à implantação de diver-
sos estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços
modernos e ao incremento de sua infraestrutura, essa área,
que agora constitui uma nova centralidade, passou a receber
uma série de condomínios horizontais de alto padrão com
lotes que custam, de acordo com levantamento feito em 2013,
em torno de R$ 125.000. Segundo informações fornecidas por
corretores de imóveis que atuam na cidade, os lotes localizados

186
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

nessa área, entre o fim dos anos 1990 e o início dos anos 2000,
apresentavam valores sempre inferiores a RS 5.0008.
A Figura 4 retrata a localização de áreas de franca expan-
são da dinâmica imobiliária e que apresentaram na última
década um aumento expressivo nos preços da terra.

Figura 4 – Mapa: áreas de expansão do mercado imobiliário

Fonte: IBGE. Trabalho de campo, 2013. Imagem LANDSAT 5/TM – 2012

8 Os dados referentes aos preços da terra em Mossoró foram obtidos


junto a imobiliárias locais e a partir dos classificados de jornais da
cidade como O Mossoroense, De Fato e Gazeta do Oeste.

187
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Quanto aos imóveis, em 2003, segundo pesquisa realizada


por Rocha (2005), o m² construído chegava a custar R$ 1.400 em
empreendimentos de alto padrão localizados em áreas nobres
da cidade, a exemplo do centro e do conjunto residencial Nova
Betânia. No presente momento, o m² de imóveis de alto padrão,
ainda na planta, em projetos localizados nas áreas mais valo-
rizadas da cidade, em alguns casos, supera os R$ 4.000,009, se
aproximando dos valores praticados em capitais como Natal e
Fortaleza. De acordo com informações repassadas à imprensa
local10 pelo SINDUSCOM, o valor do m² custa em média R$ 2.600,
três vezes mais caro que a média do RN (R$ 782,13) e do país
(R$ 867,83), apontada pelo levantamento do IBGE/SINAPI de
fevereiro de 201411.
Mesmo apartamentos e casas populares, construídos em
áreas periféricas, ainda bastante desurbanizadas e sem o mínimo
de infraestrutura, apresentam preços elevados em relação
às médias estadual e nacional. Essas áreas também incluem
bairros e loteamentos destinados à construção dos imóveis
dentro do PMCMV. Alto do Sumaré, Planalto 13 de Maio, Nova
Mossoró, Abolição e Pousada das Thermas são exemplos de áreas
periféricas e com importantes deficiências de infraestrutura
e serviços, que vivenciam, concomitantemente, a ampliação
dos estoques de moradia implementada pelo PMCMV e um
expressivo processo de especulação imobiliária.
O aumento do preço da terra urbana e dos imóveis em
Mossoró consiste num fenômeno que se generaliza e atinge
todos os cantos da cidade, desde as áreas centrais e nobres até as
áreas periféricas, completamente desprovidas de infraestrutura
urbana. Paralelamente ao mercado das grandes empresas e dos

9 Dado fornecido pela MCF Imóveis – CRECI 4217J.


10 Disponível em: <http://www2.uol.com.br/omossoroense/110311/
conteudo/cotidiano.htm>.
11 Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indica-
dores/precos/sinapi/default.shtm>. Acesso em: 24 mar. 2014.

188
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

grandes empreendimentos imobiliários, se forma em Mossoró


um mercado imobiliário que explora a terra, os aluguéis e os
imóveis nos assentamentos periféricos de baixa renda. Ademais,
devido à intensificação do mercado de habitações, o setor imo-
biliário formal iniciou o loteamento de glebas na zona rural do
município. Em Mossoró, o interesse do mercado imobiliário já
extrapola a zona urbana.

O aumento do preço da moradia no contexto


do Programa Minha Casa Minha Vida
Em consonância com a franca expansão do mercado
imobiliário, o desenvolvimento do PMCMV, paradoxalmente,
reproduz e aprofunda uma série de desigualdades socioespaciais
locais e impõe limites à aquisição de moradia adequada por
parte da população de menor rendimento. O atual período
de expansão do mercado imobiliário em Mossoró, a exemplo
do período correspondente às décadas de 1960, 1970 e 1980,
também se define, com seus efeitos e contradições sobre a rea-
lidade social, pela atuação de uma ampla política de habitação
desenvolvida pelo Governo Federal.
A literatura (BONDUKI, 2008; MARICATO, 1997; VALENÇA,
2010) que trata do desdobramento da política habitacional do
regime militar no Brasil, desenvolvida entre as décadas de 1960
e 1980, constata uma gama de contradições intrínsecas a tal
política. A ênfase no fortalecimento do mercado imobiliário,
com a captação de grande parte dos recursos dos programas
pelos empresários e grupos rentistas; a apropriação, pela classe
média, da maior parte dos imóveis construídos pelo sistema
BNH/SFH, denotando o caráter concentrador da política habi-
tacional do período; a construção de grandes conjuntos mono-
líticos distantes das áreas centrais das cidades e desprovidos de
infraestruturas básicas; são alguns dos descaminhos, elencados
pela literatura especializada, inerentes à política habitacional
desenvolvida pelo governo militar, que se estabeleceu no poder

189
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

a partir de 1964. Pesquisas recentes (CARDOSO 2013; ARANTES


e FIX, 2010; MARICATO, 2011; VALENÇA, 2012) demonstram
que esses mesmos problemas estão presentes no desenvolvi-
mento do PMCMV; constituem permanências históricas que
caracterizam, do mesmo modo, a atual política habitacional
do Governo Federal.
O PMCMV promove a mobilização das riquezas financeira,
fundiária e imobiliária, como meio efetivo para realização de
lucros, em praticamente todo território nacional. A criação
de uma notável estrutura de crédito voltada para a formação
e o fortalecimento de um mercado consumidor de imóveis
movimenta uma imensa cadeia produtiva ligada ao setor da
construção civil. A dinamização dessa cadeia produtiva exerce
importantes impactos sobre os investimentos e sobre o mer-
cado de trabalho. Segundo Maricato (2011, p. 68), o governo
brasileiro acertou quando atribuiu à construção de habitações
a tarefa de geração de postos de trabalho, pois a produção do
imobiliário residencial “cria demandas para trás, na indústria
que a alimenta (ferro, vidro, cerâmica, cimento) e para frente,
após sua conclusão (eletrodomésticos e mobiliários para as
novas moradias)”, exercendo efeitos multiplicadores sobre o
conjunto da economia.
Mossoró se insere nessa conjuntura e comporta uma
quantidade expressiva de empreendimentos imobiliários via-
bilizados com base nos recursos do PMCMV. Informações do
setor de protocolo e emissão de alvarás da SEDETEMA revelam
que, entre o ano de 2008 e o primeiro mês do ano de 2013, o
município possuía, entre sendo construídas e lançadas aproxi-
madamente 4.500 unidades habitacionais, constituídas por casas
e apartamentos. Esses dados indicam que, nos últimos cinco
anos, houve um importante incremento no número de cons-
truções, se comparados há anos anteriores: entre 2003 e 2007,
por exemplo, quando foram emitidos alvarás para construção
de 1.445 unidades habitacionais. Das 4.500 unidades lançadas,

190
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

construídas e em construção entre 2008 e 2013, a maior parte é


dirigida ao PMCMV, perfazendo um total de 3.241 unidades, de
acordo com dados da Secretaria Nacional de Habitação (SNH)12.
Como o Programa cria enorme expectativa em relação à
produção de moradias em larga escala e em relação ao incre-
mento da infraestrutura urbana, gera especulação e promove
o aumento exponencial do preço da terra urbana, mesmo em
áreas periféricas.
Desse modo, na medida em que o Programa promove a
especulação e o encarecimento da terra urbana, eleva dire-
tamente os preços dos seus próprios produtos, tornando-se
contraproducente em relação ao seu propósito social. Além de
estimular o mercado de imóveis e fomentar a elevação do preço
da moradia, boa parte das habitações construídas dentro do
PMCMV apresenta preços que estão muito além da realidade
econômica da população carente. Em Mossoró, a partir de levan-
tamento realizado junto às imobiliárias locais13, constatou-se
que a maior parte das unidades habitacionais construídas
dentro do PMCMV apresenta valores acima de R$ 90 mil; valores
incompatíveis com a renda da maior parte das famílias sem
moradia própria e de qualidade residentes no município. Em
termos gerais, pode-se afirmar que, por apresentarem maior
capacidade solvável e despertarem o interesse do mercado
imobiliário, em face da maior possibilidade de lucro, as faixas
2 e 3 (com renda mensal bruta entre R$ 1.600,00 e R$ 5.000,00)
são mais amplamente atendidas.
Em Mossoró, somam-se a isso os elevados preços da terra
urbana. Como a terra representa um custo importante para a
produção comercial de imóveis, a construção de moradias a

12 Fonte: SNH/ DHAB/ DUAP/ CAIXA/ IBGE. Dados coletados em 31 de


dezembro de 2012.
13 Esse levantamento foi realizado no período de 10 de março de 2014 a
27 de março de 2014, junto as seguintes imobiliárias: MCF, KM Imóveis,
MN Imóveis, Romão Imóveis, Aliança Imobiliária e Mobili Imóveis.

191
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

preços compatíveis com a primeira faixa de renda (com renda


mensal bruta até R$ 1.600,00) do Programa se inviabiliza no
município. Das 3.241 unidades do PMCMV, 2.039 unidades habita-
cionais são destinadas às faixas 2 e 3 do Programa, construídas
e/ou em construção desde 2009. A faixa 1, que concentra a
maior parte do déficit habitacional do município14, vem sendo
negligenciada. Após cinco anos do lançamento do PMCMV,
apenas o Conjunto Monsenhor Américo Simonetti (com 802
unidades habitacionais) e o Residencial Santa Júlia (com 376
moradias) foram construídos para atender famílias de baixa
renda. É preciso frisar que, em decorrência de problemas téc-
nicos apresentados na construção do Residencial Santa Júlia,
apenas o Monsenhor Américo Simonetti foi entregue à população
até o presente momento.
Indagado sobre o interesse por esse tipo de empreendi-
mento, o presidente do SINDUSCON15 em Mossoró afirmou que,
em função do alto preço da terra urbana no município e dos
baixos valores desses imóveis, sem a doação do terreno por parte
da prefeitura, eles são inviáveis do ponto de vista econômico, “é
um projeto de risco para o incorporador/construtor”. As 1.178
habitações construídas nesses dois assentamentos, destinadas
à população de baixa renda sem casa própria e/ou residindo em
condições precárias, são insuficientes diante da significativa
demanda por habitação de interesse social que o município
apresenta. Há, notadamente, um hiato significativo entre a

14 De acordo com o IBGE (2010), existem 17.700 domicílios alugados em


Mossoró, entre os quais, 12.537 abrigam famílias com renda mensal
entre 0 e 3 salários mínimos. Ainda, conforme o órgão, são 7.330
domicílios cedidos, cedidos por empregador e cedidos de outra forma.
Desses, 6.012 são habitados por famílias ou indivíduos com renda men-
sal inferior a três salários mínimos. O IBGE, a partir do Censo de 2010,
também contabilizou 1.604 domicílios em aglomerados subnormais.
15 Entrevista realizada em 16 de novembro de 2011, como parte do
trabalho de campo para produção de uma pesquisa de mestrado
desenvolvida junto ao PPGe/UFRN.

192
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

oferta de moradias de interesse social dentro do PMCMV e a


expressiva demanda por parte da população carente.
Os altos valores dos empreendimentos do PMCMV, na
modalidade Carta de Crédito FGTS (CCFGTS) – modalidade
predominante no município –, são, na prática, inacessíveis às
camadas sociais com renda inferior a três salários mínimos,
camadas da sociedade que concentram a maior parte do déficit
habitacional. O financiamento dos imóveis do PMCMV a partir
da CCFGTS pode comprometer significativamente o orçamento e
promover o endividamento perpétuo de famílias que têm renda
bruta inferior a três salários mínimos, já que essa modalidade
não proporciona os mesmos benefícios conferidos pelos finan-
ciamentos com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial
(FAR). O Quadro 1 apresenta uma simulação de financiamento
realizada no site da Caixa Econômica Federal (CEF), considerando
três situações de renda: 1, 2 e 3 salários mínimos.

Quadro 1 – Simulação de financiamento de


imóvel pela CEF – valor R$ 90.000,00

Valor da Valor do
S.M Subsídio Prestação
entrada financiamento

1 S.M R$ 39.431,98 R$ 32.608,02 R$ 17.960,00 R$ 217,00

2 S.M R$ 6.823,95 R$ 65.216,05 R$ 17.960,00 R$ 434,39

3 S.M R$ 5.458,00 R$ 81.000,00 R$ 3.542,00 R$ 539,53

Fonte: Portal da Caixa Econômica Federal

Aqui se evidenciam duas contradições importantes:


a) o alto valor da entrada exigida pelo agente financiador para
contratação do financiamento, incompatível com as faixas de
renda consideradas; b) e o alto valor das prestações mensais
em relação à renda, o que significa um impacto importante

193
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

sobre o orçamento familiar. Assim, o que ocorre na atualidade


em Mossoró, no tocante à questão da moradia, acompanha um
movimento geral captado por Harvey (2014)16: “o que vemos
hoje nos mercados imobiliários é que é quase impossível para
a maioria da população encontrar um lugar para viver que não
absorva mais da metade de sua renda”.

Considerações finais
O primeiro período de expansão do mercado de imóveis
em Mossoró, fomentado pelos recursos do sistema SFH/BHN,
resultou na construção de milhares de unidades e em mais de
uma dezena de conjuntos habitacionais. Esse fato impactou
fortemente a economia local do período e gerou transformações
marcantes na morfologia urbana de Mossoró; o tecido urbano
teve sua dimensão ampliada numa escala considerável.
O segundo momento começa a se esboçar nos primeiros
anos de 2000, em decorrência da interação de um conjunto
de fatores reestruturantes de caráter produtivo e político,
que redefiniram a dimensão socioeconômica local. Essa fase,
ainda em curso, se caracteriza pelo protagonismo do capital
privado na condução do processo de produção do imobiliário
residencial, pelos seus impactos marcantes sobre a paisagem,
produzindo novas formas de moradia, e sobre a dinâmica eco-
nômica. Ainda, o momento atual, à semelhança do primeiro, é
dinamizado por uma ampla política habitacional desenvolvida
pelo Governo Federal, cujo principal segmento é o PMCMV que,
desde 2009, é responsável pela implementação da maior parte
dos empreendimentos imobiliários na cidade.
O presente trabalho, do mesmo modo, constatou, a partir da
realidade concreta, que a atual expansão do mercado de imóveis

16 Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/527088-vive-


mos-hoje-no-que-eu-chamaria-de-democracias-totalitarias-entre-
vista-com-david-harvey>. Acesso em: 23 mar. 2014.

194
A expansão do mercado imobiliário em Mossoró-RN: da produção dos conjuntos
habitacionais populares à produção dos condomínios e loteamentos fechados

em Mossoró vem favorecendo, especialmente, a classe média e os


empresários do mercado de imóveis e da terra urbana – deixando
de fora a população carente, na qual se concentra a maior parte
do déficit habitacional. Mesmo as unidades habitacionais do
PMCMV apresentam valores altos e, portanto, são inacessíveis
à população carente. Os altos preços dos imóveis construídos
dentro do PMCMV e os altos preços da terra e dos imóveis em
geral, promovidos pela expectativa em torno da presença do
Programa na cidade, constituem um entrave à aquisição de
moradia adequada por parte da população de baixa renda.

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197
Geotecnologias aplicadas à análise
espaciotemporal da expansão
urbana nos municípios da
microrregião de Pau dos Ferros-RN1
Rômulo Kleberson de Souza2
Franklin Roberto da Costa3

Introdução
Localizada na porção oeste do Estado do Rio Grande do Norte,
a Microrregião de Pau dos Ferros é considerada um dos Polos
Regionais do Estado, por agregar as cidades que oferecem as
principais atividades de comércios e serviços públicos e privados
da Região. A implantação dessas atividades, principalmente na
cidade homônima à Microrregião, gerou, como consequência,

1 Este trabalho é o resultado de uma Pesquisa de Iniciação Científica


realizada no Curso de Geografia da UERN, Campus Pau dos Ferros-RN,
no ano de 2011. Este artigo foi publicado nos Anais do VII Salão de
Iniciação Científica da UERN, em 2011. No ano seguinte (2012), foi
apresentado no IV Simpósio Brasileiro de Ciências Geodésicas e
Tecnologias da Geoinformação e publicado em seus anais.
2 Graduado no curso de Licenciatura em Geografia do Campus
Avançado Profª. Maria Elisa de Albuquerque Maia – CAMEAM, UERN.
E-mail: romulokleberson@hotmail.com
3 Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Professor Adjunto III do
Departamento de Geografia do Campus Avançado Profª. Maria Elisa de
Albuquerque Maia – CAMEAM, UERN. E-mail: franklincosta@uern.br

198
Geotecnologias aplicadas à análise espaciotemporal da expansão
urbana nos municípios da microrregião de Pau dos Ferros-RN

um processo de urbanização crescente e desordenado, fazendo


com que o fluxo migratório também seguisse o mesmo caminho.
Percebe-se que essa urbanização acelerada se deu em todas
as cidades circunvizinhas, gerando, assim, um adensamento
populacional acima do esperado para o período observado.
Esse processo de expansão continua avançando sobre áreas que
poderão ocasionar impactos ambientais irreversíveis. Entende-se
que essas articulações decorreram de uma construção histórica,
na qual os primeiros habitantes deram o direcionamento das
ações que construíram o espaço urbano até o presente momento,
por meio da organização espacial destinada às diferentes funções
necessárias para o desenvolvimento das cidades.
Para diagnosticar o processo histórico de ocupação
urbana, faz-se necessário um planejamento estratégico ade-
quando-se às características físico-territoriais disponíveis
na cidade. Caso contrário, esta poderá sofrer consequências
desastrosas e irreversíveis, no que se refere às questões socio-
econômicas e ambientais.
Entre as ferramentas utilizadas para o planejamento
urbano, o geoprocessamento tem sido importante para a análise
das transformações urbanas decorrentes dos diferentes proces-
sos de ocupação espacial, sendo a Geografia Quantitativa, nos
anos 1970, uma das grandes correntes da Geografia, aplicada a
estudos desse gênero, acompanhados dos avanços da tecnologia,
entre eles a informática.
Em relação à importância da Geografia Quantitativa para
o desenvolvimento do Geoprocessamento, Câmara, Monteiro e
Medeiros (2001, p. 5) destacam que,
com a escola quantitativa, os estudos geográficos passam a
incorporar, de forma intrínseca, o computador como ferra-
menta de análise. Neste sentido, o aparecimento, em mea-
dos da década de 70, dos primeiros sistemas de informação
geográfica (GIS), deu grande impulso a esta escola. Ainda
hoje, em países como os Estados Unidos, em que a Geografia

199
Quantitativa é a visão dominante, os GIS são apresentados
como ferramentas fundamentais para os estudos geográfi-
cos, como indica o recente estudo da “National Academy of
Sciences” (National Research Council, 1997).

No cenário nacional, diversos autores já aplicaram as


ferramentas do geoprocessamento para a análise de expansão
urbana no país. Monteiro et al. (2008) analisaram os processos
de expansão urbana e as situações de vulnerabilidade socioam-
biental, incluindo as suas inter-relações em escala intraurbana,
tendo como base os setores censitários e as áreas de pondera-
ção e imagens de alta resolução do satélite IKONOS, em uma
região hiper-periférica da Metrópole de São Paulo no período
de 2000 a 2006. Sikora (2000) trabalhou a Análise Multitemporal
do Crescimento Urbano do Bairro Sítio Cercado (Curitiba-PR)
a partir do uso de fotografias aéreas, tendo como suporte o
Sistema de Informação Geográfica SPRING/INPE 2000.
Borsoi e Novais Junior (2008) analisaram a dinâmica
da expansão urbana do município de Caçapava-SP, utilizando
imagens do satélite LANDSAT TM-5 dos anos de 1986, 1993 e 2007,
para verificação das concordâncias/discordâncias entre a Lei
Complementar nº 254 e o Código Florestal 4771/65, que prevê a
preservação de áreas de cursos d’água e nascentes.
Bariquello (2011) procurou identificar e analisar a dinâ-
mica da expansão urbana da cidade de Botucatu-SP, ao longo
de 48 anos (1962-2010), utilizando o software SIG ArcGIS 9.3,
integrando dados socioeconômicos e naturais. Para análise
espacial, realizou interpretação de fotografias aéreas e imagens
de satélite, bem como mapas antigos. Segundo a autora, um
dos responsáveis pela expansão da cidade foi a instalação de
instituições técnicas e superiores públicas de ensino e indústrias
de grande porte. Como resultado, mostra que a área urbanizada
passa de 14,13 km² no ano de 1962 para 47,66 km² no ano de 2010.
Os exemplos citados anteriormente serviram de referência
para a realização do presente trabalho e comprovam a eficácia
no uso das ferramentas de geoprocessamento para a análise

200
Geotecnologias aplicadas à análise espaciotemporal da expansão
urbana nos municípios da microrregião de Pau dos Ferros-RN

da expansão urbana municipal, principalmente com o uso dos


SIG e do sensoriamento remoto.
Cecatto, Foresti e Kurkdijan (1993) reforçam a importância
do sensoriamento remoto para a análise da expansão urbana,
uma vez que se apresenta como um instrumento capaz de
apresentar imagens orbitais com alta frequência espaciotem-
poral. Outro aspecto a ser considerado é a forma digital de
apresentação desses dados. É possível o cruzamento dos produtos
do sensoriamento remoto com informações vetoriais e alfanu-
méricas (cartas, mapas, dados estatísticos etc.) em Sistemas
de Informações Geográficas (SIG), que permitem a atualização
contínua e o monitoramento de diferentes ambientes, entre
eles, o meio urbano.
É nesse sentido que, para este trabalho, se aplica o uso
dessas ferramentas para o mapeamento do processo de expansão
urbana da Microrregião de Pau dos Ferros, tendo em vista a
falta de dados relacionados à temática na área objeto de estudo.

Material e métodos
Para o presente trabalho, realizaram-se, em um primeiro
momento, levantamentos bibliográficos que levaram em con-
sideração temas referentes aos conceitos de planejamento,
urbanização, expansão urbana e geotecnologias.
Efetuou-se o cadastramento no site do Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (INPE), como forma de conseguir as
imagens Hardwood Research Council (HRC), no formato mono-
cromático, do satélite sino-brasileiro CBERS 2B, equivalentes
ao período 2008-2010 (as mais recentes). Após essa etapa, os
pedidos das imagens as quais continham as manchas urbanas
referentes à Microrregião de Pau dos Ferros foram feitos para,
assim, produzir o trabalho de georreferenciamento com a ima-
gem em mosaico do satélite CBERS 2B_CCD 2008 que teve como
abrangência a Microrregião de Pau dos Ferros-RN.

201
Antes da vetorização das imagens HRC, utilizou-se um
scanner para a rasterização das fotografias aéreas das cidades
mapeadas, referentes ao ano de 1987. Tais imagens, por sua vez,
foram obtidas mediante levantamento aéreo solicitado pelo
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA-RN)
no referido ano. Elas seguiam uma sequência lógica, separadas
por faixas e enumeradas individualmente, datadas do mês de
agosto de 1987 a uma altitude de aproximadamente 2.500 (dois
mil e quinhentos) metros. Vale salientar que só foi possível
identificar 9 (nove) das 17 (dezessete) cidades da área de estudo;
para as outras, a obtenção de suas respectivas manchas urbanas,
referentes ao ano de 1987, se deu a partir de imagens orbitais do
satélite LANDSAT 5, sensor TM, datada de 4 de agosto de 1987,
na órbita-ponto 216/064 – Bandas 2G5B7R. Tal imagem orbital
possibilitou uma visualização parcial da área de estudo, já que
apresentava uma resolução espacial de 30 (trinta) metros.
Após a etapa de busca e obtenção das imagens referentes
ao recorte temporal, entre os anos de 1987 e 2008, e antes de
iniciar os trabalhos de georreferenciamento e vetorização das
imagens HRC, LANDSAT 5 TM e as aerofotografias, criou-se um
banco de dados no software SIG SPRING/INPE 5.1.6.
O banco de dados geográficos, montado no ambiente SIG
SPRING/INPE 5.1.6, foi construído com planos de informação
divididos entre as categorias imagem, temático e cadastral.
A partir desse momento, foram realizados os trabalhos de
georreferenciamento de todas as imagens, orbitais e aéreas, que
consistia em transformá-las da extensão .tiff* para a extensão
.spg*, compatível com o SIG.
O próximo passo foi a vetorização dos dados, visando a
criação de polígonos referentes às áreas urbanas dos municí-
pios da Microrregião de Pau dos Ferros. Comparou-se algumas
fotografias aéreas com as cidades da região mediante o uso de
aplicativos como o Google Earth, para que se pudesse localizar e
georreferenciar as áreas urbanas na imagem CBERS 2B (Figura 1).

202
Geotecnologias aplicadas à análise espaciotemporal da expansão
urbana nos municípios da microrregião de Pau dos Ferros-RN

Figura 1 – Visualização do mosaico de imagens do satélite


CBERS 2B da região estudada no software SPRING 5.1.6

Fonte: Souza; Costa (2011)

Para as imagens CBERS 2B HRC, equivalentes ao recorte


temporal entre os anos de 2008 a 2010, a vetorização obedeceu a
critérios mais rígidos quanto ao processo de mapeamento, pois
se tinha uma resolução espacial de 4,5 metros, o que facilitou
a confecção dos mapas referentes ao ano de 2008. Quanto aos
mapas relativos ao ano de 1987, observou-se que as cidades que
continham fotografias aéreas permitiram uma melhor precisão
no mapeamento, devido à sua escala cartográfica de 1:16.500.
A vetorização dos mapas foi satisfatória, uma vez que não
existem mapas perfeitos, independentemente do tamanho ou
do tipo da escala adotada (DUARTE, 2002).
Para aquelas cidades em que não foi possível a iden-
tificação das suas áreas para o ano de 1987, utilizou-se uma
imagem do satélite (LANDSAT 5 TM_composição dos canais
2B5G7R_04/08/1987_216_064), para se fazer a vetorização.
Ressalta-se que houve dificuldades na confecção dessas

203
vetorizações, pois a baixa resolução espacial (30 metros) não
permitiu identificar, com exatidão, as manchas urbanas, já
que algumas cidades possuíam pequenas extensões de áreas
urbanas. Neste caso, contou-se com a habilidade dos executores
para delimitar as áreas consideradas urbanas na época.
Após a vetorização das áreas urbanas para os anos de
1987 e de 2008, a etapa seguinte foi a apresentação do relatório
individual dos respectivos municípios, ordenados sob uma
descrição alfabética dos nomes das cidades, em que se efetuou
um quadro comparativo acerca da expansão territorial urbana
que elas obtiveram durante o recorte temporal de vinte anos.
Para se identificar as taxas de expansão urbana, foi
preciso elaborar uma fórmula matemática, cujo objetivo foi
apresentar os valores percentuais de expansão temporal dessas
cidades. Para tanto, subtraiu-se o total da área equivalente ao
ano de 2008 (em km²) pelo ano de 1987 (em km²). Obteve-se um
valor que representou, mediante o uso de uma regra de três
simples, a taxa percentual da expansão urbana observada entre
o dado recorte temporal.

Resultados e discussão
A Microrregião de Pau dos Ferros (Figura 2) constitui-
-se numa unidade territorial localizada na Região Alto Oeste
Potiguar, cognominada de “tromba do elefante”. Esta, por sua
vez, apresenta outras ramificações, como as Microrregiões de
São Miguel e Umarizal.
A dinamicidade das duas últimas décadas ocorridas nessas
localidades se dá, principalmente, pelo aumento da circulação
de pessoas e de mercadorias. Pau dos Ferros, principal cidade
da região, caracteriza-se por ser um polo atrativo do comércio
varejista, além de ter recebido, nos últimos anos, um aumento
nos investimentos dos serviços públicos e privados, buscando
atender a demanda gerada pelo crescimento populacional nos
últimos anos em toda a região.

204
Geotecnologias aplicadas à análise espaciotemporal da expansão
urbana nos municípios da microrregião de Pau dos Ferros-RN

Figura 2 – Mapa da expansão urbana das cidades da


Microrregião de Pau dos Ferros-RN, dando ênfase
aos municípios de São Francisco do Oeste e Rafael
Fernandes em direção ao Polo Regional (Pau dos Ferros)

Fonte: adaptado de Souza e Costa (2011)

205
A oferta de serviços concentra-se basicamente na referida
cidade, que se caracteriza por assumir o papel de polo regional,
tanto pela sua dinamicidade quanto pelo elevado número de
pessoas e de mercadorias que trafegam em suas vias diaria-
mente. A abrangência dos serviços consolidados na cidade
de Pau dos Ferros extrapola seus limites, alcançando cidades
vizinhas, não só pertencentes à sua microrregião, mas também
a municípios pertencentes a estados vizinhos.
Assim, por ser uma cidade atrativa do ponto de vista
socioeconômico, Pau dos Ferros apresentou o maior crescimento
em área territorial entre as cidades de sua microrregião.
Nas demais cidades, observou-se que, para aquelas que
mantêm maior proximidade com Pau dos Ferros, a expansão
ocorreu em direção à cidade polo. É o caso das cidades de Rafael
Fernandes e São Francisco do Oeste, por exemplo, como se pode
observar na Figura 2, que apresenta o sentido da expansão
urbana desses municípios.
Para entender melhor a expansão das cidades, obtive-
ram-se, a partir dos polígonos criados no SIG, as medidas das
manchas urbanas visando compreender, desde uma análise
quantitativa, o percentual da expansão urbana de cada muni-
cípio (Tabela 1).
Percebeu-se que todas as manchas urbanas aumentaram
significativamente, cerca de aproximadamente 109% em média
(Tabela 1). Das 17 cidades que compõem a área de estudo, sete
apresentaram um percentual acima dos 100% durante o período,
como o município de Severiano Melo, cuja expansão foi acima
dos 300% (Figura 3).
As causas que favoreceram esse nível de expansão urbana
ainda são desconhecidas, visto que o objetivo do trabalho foi o
mapeamento da expansão dos perímetros das cidades, e não a
realização de um trabalho local acerca dos aspectos socioeco-
nômicos que originaram tal expansão urbana.

206
Geotecnologias aplicadas à análise espaciotemporal da expansão
urbana nos municípios da microrregião de Pau dos Ferros-RN

Tabela 1 – Situação da área urbana dos municípios


da Microrregião de Pau dos Ferros-RN, entre os anos
de 1987 a 2008, e o percentual de expansão

Mancha Mancha
Expansão
Município urbana em urbana
urbana (%)
1987 (km²) em 2008 (km²)
Pau dos Ferros 2.90 5.08 75.17%
Alexandria 1.02 1.26 23.52%
Francisco Dantas 0.15 0.28 86.67%
Itaú 0.61 1.06 73.77%
José da Penha 0.30 0.50 66.67%
Marcelino Vieira 0.44 0.86 95.45%
Paraná 0.10 0.15 50.00%
Pilões 0.12 0.33 175.00%
Portalegre 0.42 0.84 100.00%
Rafael Fernandes 0.22 0.47 113.64%
Riacho da Cruz 0.19 0.49 145.00%
Rodolfo Fernandes 0.36 0.64 77.78%
São Francisco do Oeste 0.23 0.52 126.09%
Severiano Melo 0.12 0.49 308.34%
Taboleiro Grande 0.20 0.34 70.00%
Tenente Ananias 0.43 0.80 80.05%
Viçosa 0.16 0.44 175.00%
Fonte: Souza; Costa (2011)

Por meio das observações das cartas produzidas para cada


cidade, percebeu-se que o crescimento se deu, basicamente, no
sentido em que segue o prolongamento das rodovias, sejam elas
federais, estaduais ou municipais. Isso porque a ocupação, por
parte da população em áreas próximas as vias de circulação,
teve como intuito o acesso ao deslocamento por meio de estradas
que cortam as cidades em direção à cidade-polo.

207
Figura 3 – Mapa do percentual da expansão urbana das
cidades da Microrregião de Pau dos Ferros-RN

Fonte: adaptado de Souza; Costa (2011)

208
Geotecnologias aplicadas à análise espaciotemporal da expansão
urbana nos municípios da microrregião de Pau dos Ferros-RN

Conclusão
Constatou-se que as 17 cidades que compõem a
Microrregião de Pau dos Ferros apresentaram uma expan-
são significativa, em termos proporcionais. Essa expansão foi
observada mediante diversos aspectos, sendo um dos mais
importantes a influência das rodovias, sobretudo as federais,
pois são nelas que se observa a expansão urbana em todas as
direções, mas, principalmente, em direção à cidade-polo, Pau
dos Ferros.
Esse aspecto aumentou o fluxo de pessoas e de mer-
cadorias provenientes de outras partes do país, tornando a
região um polo atrativo do setor terciário da economia da
região. Observou-se também que a maioria dos pequenos cen-
tros urbanos tem tendência para manifestar sua autonomia
econômica por intermédio do setor terciário da economia, no
qual os serviços provenientes da iniciativa pública e privada
e, principalmente, o comércio varejista, caracterizam-se por
veicularem o principal fator de giro de capital e de geração de
emprego e renda para a região.
Outro aspecto contundente foi observado no êxodo
rural que esteve presente nesses municípios, pois, em um
recorte temporal de 20 anos, a população, que antes era
essencialmente rural, hoje se apresenta majoritariamente
urbana (Figuras 4 e 5).
A cidade de Pau dos Ferros adquiriu status de cidade-polo
da região, contendo o maior número de habitantes e também
a maior área de expansão territorial urbana entre todos os
municípios, apesar de alguns desses apresentarem aumento
de suas taxas populacionais superiores à observada na cidade
de Pau dos Ferros (Figura 6).

209
Figura 4 – Mapa do percentual da dinâmica
populacional rural da Microrregião de Pau dos
Ferros-RN entre os anos de 1991 e 2010

Fonte: adaptado de Souza; Costa (2011)

210
Geotecnologias aplicadas à análise espaciotemporal da expansão
urbana nos municípios da microrregião de Pau dos Ferros-RN

Figura 5 – Mapa do percentual da dinâmica


populacional urbana da Microrregião de Pau dos
Ferros-RN entre os anos de 1991 e 2010

Fonte: adaptado de Souza; Costa (2011)

211
Figura 6 – Mapa do percentual da dinâmica
populacional total da Microrregião de Pau dos
Ferros-RN entre os anos de 1991 e 2010

Fonte: adaptado de Souza; Costa (2011)

212
Geotecnologias aplicadas à análise espaciotemporal da expansão
urbana nos municípios da microrregião de Pau dos Ferros-RN

Percebe-se, também, que a cidade-polo se destaca das


demais por receber, diariamente, uma população flutuante
superior a local, constituindo-se como a cidade de maior atração
socioeconômica da região.
As demais cidades não conseguiram acompanhar a
evolução urbana observada em Pau dos Ferros, pois, nesta
cidade, a oferta de serviços estaduais e federais foi marcante,
contribuindo no desenvolvimento local e servindo de base na
prestação de serviços à maioria da população da Região do
Alto Oeste Potiguar.
Um dos fatores que podem explicar a expansão urbana de
algumas cidades se dá nas diferentes potencialidades socioeco-
nômicas que cada uma apresenta na região. É o caso da produção
de castanha de caju em Rodolfo Fernandes e Severiano Melo, a
produção de fumo em Pilões, e outras atividades observadas nos
demais municípios, tais como o turismo nas cidades serranas
e de outros serviços.
A aposentadoria rural e outros benefícios sociais do
Governo Federal, além do funcionalismo público local, esta-
dual e federal, são também importantes para o aquecimento
e a permanência dos mercados locais que, consequentemente,
ocasionam a expansão urbana e o adensamento populacional
das cidades.
Acredita-se que este trabalho servirá de estímulo para a
realização de pesquisas que possam verticalizar as discussões
acerca das questões que impulsionaram a expansão urbana das
cidades analisadas, bem como possa servir como metodologia
para análise da expansão de pequenas e médias cidades do
semiárido brasileiro, especificamente do semiárido potiguar.

Referências
BARIQUELLO, L. M. P. Geotecnologia aplicada à análise da expansão urbana
de Botucatu-SP (1962-2010).2011. Dissertação (Mestrado em Ciências

213
Agronômicas) Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências
Agronômicas, Botucatu-SP, 2011.
BORSOI, V.; NOVAES JÚNIOR, R. A. Análise multitemporal da dinâmica
da expansão urbana em áreas de proteção permanente no município de
Caçapava-SP. Relatório Final de Projeto de Iniciação Científica – PIBIC/
CNPQ/INPE, 2008.
CÂMARA, G.; MONTEIRO, A. M. V.; MEDEIROS, J. S. de. Fundamentos
epistemológicos da ciência da geoinformação. 2001. Disponível em: <http://
www.dpi.inpe.br/livros.html>. Acesso em: 03 mar. 2010.
CECCATO, V. A.; FORESTI, C.; KURKDIJAN, M. L. N. O. Proposta
Metodológica para Avaliação da Qualidade de Vida Urbana a Partir
de Dados Convencionais e de Sensoriamento Remoto, Sistema de
Informações Geográficas (SIG) e de um Banco de Dados. In: SIMPÓSIO
BRASILEIRO DE SENSORIAMENTO REMOTO, 7., 1993, Curitiba. Anais...
Curitiba, 1993. p. 32-39.
DUARTE, P. A. Fundamentos de cartografia. Florianópolis: Editora da
UFSC, 2002.
INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS. Catálogo de imagens.
Disponível em: <http://www.dgi.inpe.br/CDSR/>. Acesso em: 06 jun.
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MONTEIRO, A. M. V et al. Análise dos processos de expansão urbana
e das situações de vulnerabilidade socioambiental em escala intraur-
bana. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPPAS, 4., 2008, Brasília. Anais...
Brasília, 2008.
SIKORA, Alex Adriano. Análise multitemporal da expansão urbana do Bairro
Sítio Cercado, Curitiba (PR). 2000. Disponível em: <http://www.utp.br/
geo/informativo/artigo_sikora-AGO04.htm>. Acesso em: 03 mar. 2010.
SOUZA, R. K.; COSTA, F. R. Geotecnologias aplicadas à análise espa-
ço-temporal da expansão urbana dos municípios da Microrregião do
Alto Oeste Potiguar. In: SALÃO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UERN,
7., 2011, Mossoró. Anais..., Mossoró, 2011.

214
A invenção de Caicó1
Marcos Antônio Alves de Araújo2
Ademir Araújo da Costa3

Introdução
Há tempos, a cidade se faz presente na história da humanidade.
Enquanto produto histórico-cultural, podemos dizer que ela
protagoniza eventos importantes que marcaram e marcam
essa história. Tais eventos são responsáveis pela sua invenção
e, consequentemente, pela formação de sua identidade. Nascida
da dualidade movimento-repouso, a cidade é o lugar para onde

1 Este texto é parte integrante da dissertação de mestrado intitulada


de “Sobre pedras, entre rios: modernização do espaço urbano de
Caicó/RN”, defendida em outubro de 2008, no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em Geografia (PPGe), da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN). Nessa dissertação, analisamos as
transformações urbanas ocorridas em Caicó ao longo das décadas
de 1950 e 1960. Essas transformações aconteceram num momento de
auge da economia algodoeira, refletindo e condicionando os projetos
de modernização urbana pensados e planejados pelas elites locais,
na tentativa de construção de uma cidade moderna no sertão do
Seridó potiguar. Para tal construção, novos objetos eram instalados
no meio geográfico da cidade, como, por exemplo: cinemas, novos
estabelecimentos comerciais, emissora de rádio, equipamentos de
energia elétrica, instituições de educação, redes telefônicas, casas de
saúde, usinas de beneficiamento de algodão, agências bancárias, entre
outros (ARAÚJO, 2008).
2 Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Norte (IFRN) e Doutorando em Geografia no PPGe/UFRN.
3 Professor Doutor do Departamento de Geografia da UFRN.

215
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

confluem sonhos, desejos e trocas materiais ou imateriais. É o


lugar de encontros e de relações que se misturam e se dissolvem
por entre vielas, becos e demais logradouros. É, portanto, a
compressão e, ao mesmo tempo, o alargamento do espaço-tempo.
Ao visitar uma cidade desconhecida, o primeiro elemento
da paisagem que se descortina ao transeunte é a forma. A cidade
se mostra ao visitante pela sua aparência. À primeira vista, pode-
ríamos imaginar que ela possui somente esse elemento para apre-
sentar. No entanto, basta percorrê-la para que outros elementos
apareçam; sons, cheiros e movimentos passam a compor a estética
da paisagem citadina. Nesse sentido, a cidade é materialidade
constituída pelas suas formas, mas, também, imaterialidade
representada pelas ações que a animam. É, destarte, produção
de um ethos, de imagens e discursos que conferem sentido e
significado ao tempo e ao espaço. Diante dessa tentativa genérica
de definição da cidade para além do concreto, propomos, neste
texto, apresentar as narrativas elaboradas pela tradição histo-
riográfica seridoense para a invenção de Caicó enquanto cidade.
O sentido de invenção, aqui utilizado, decorre das influên­
cias teóricas, que recebemos durante a nossa formação aca-
dêmica, de dois autores: o primeiro refere-se a Edward Said,
escritor e crítico literário, nascido na Palestina e radicado nos
Estados Unidos, quando em sua obra intitulada de “Orientalismo:
o Oriente como invenção do Ocidente”, desconstrói a visão
misteriosa e estereotipada do Oriente inventada pelo Ocidente
colonizador, mostrando como a representação estigmatizada dos
povos orientais foi importante para a definição dos interesses
colonialistas das principais potências imperialistas ocidentais.
Para isso, o escritor partiu da suposição de que o Oriente
não é um fato inerte do meio natural: “não está meramente lá,
assim como o próprio Ocidente não está apenas lá. [...] como
entidades geográficas e culturais – para não falar das entidades
históricas – os lugares, regiões e setores geográficos são feitos
pelo homem” (SAID, 1990, p. 16). Portanto, continua o escritor,

216
A invenção de Caicó

“assim como o próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que


tem uma história e uma tradição de pensamento, imagística
e vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o
Ocidente” (SAID, 1990, p. 16-17).
O segundo autor diz respeito ao professor e historiador
paraibano Durval Muniz de Albuquerque Júnior, quando em
seu livro “A invenção do Nordeste e outras artes”, analisa os
processos históricos, sociais e culturais que gestaram o Nordeste
enquanto “uma identidade espacial construída em um preciso
momento histórico, final da primeira década deste século [século
XX] e na segunda década, [...] produto de entrecruzamento de
práticas e discursos ‘regionalistas’” (ALBUQUERQUE JÚNIOR,
2006, p. 22).
Para ele (2009, p. 1), “o Nordeste existe porque foi inven-
tado e inventar significa exatamente que foi construído por uma
multiplicidade de personagens, de sujeitos, de práticas sociais”.
Sobre a ideia de invenção, o professor Durval Muniz discorre
que ela foi utilizada, no caso da sistematização e entendimento
da produção imagético-discursiva que gerou o Nordeste, com
o propósito de pensar:
[...] que tudo na história foi criado, foi construído pelos homens
num determinado momento, portanto, foram inventados. O
Nordeste não está escrito na natureza, o Nordeste não existia
desde sempre, o Nordeste não existe desde o período colonial,
o Nordeste emerge num determinado momento e como cons-
trução de determinados grupos sociais, com determinados
interesses, e por isso a ideia de invenção (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2009, p. 1).

Essa ideia, tensionada e problematizada pelos dois autores


supracitados, tem o intento de, justamente, contribuir com os
movimentos epistemológicos de desnaturalização dos lugares,
pondo em evidência os conteúdos históricos, culturais, políticos,
econômicos e sociais que gestam, alimentam e fomentam a
produção de tais dimensões do espaço geográfico.

217
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Assim como o Oriente e o Nordeste brasileiro, a cidade


de Caicó é também uma construção histórica, social e coletiva,
ainda que os elementos dessa construção sejam outros. É uma
ideia que tem sido inventada por múltiplos sujeitos em tempo-
ralidades diversas, que ora produzem enunciados elaborados
a partir de suas próprias vivências; ora disseminam discursos
que tentam legitimar as lendas e os mitos referentes ao surgi-
mento do lugar num espaço-tempo determinado; ora contam
e recontam impressões de outras pessoas.
Contudo, antes de apresentar as narrativas que possibi-
litaram a invenção de Caicó e a construção de sua geografia
histórica, faz-se necessário realizar, no começo da próxima
seção, um rápido sobrevoo acerca desse lugar, situando-o, atual­
mente, no contexto regional.

Caicó e o mito de origem

Ah! Caicó arcaico


Em meu peito catolaico
Tudo é descrença e fé
Ah! Caicó arcaico
Meu cashcouer mallarmaico
Tudo rejeita e quer
É com, é sem
Milhão e vintém
Todo mundo e ninguém
Pé de xique xique, pé de flor
Chico César (1990)

A epígrafe acima, extraída de uma canção escrita pelo músico


paraibano Chico César, nos anos de 1990, e em homenagem ao lugar
que o acolheu durante um período de sua vida, apresenta uma
cidade de nome Caicó que tudo rejeitava e, ao mesmo tempo, tudo
queria. Uma cidade que expressa os dilemas da condição humana
no sertão: o com e o sem chuva, a descrença e a fé de um inverno

218
A invenção de Caicó

com fartura, os espinhos do xique-xique e as flores do mandacaru,


enfim, símbolos que estão presentes ao longo da história de Caicó
e que são evocados na construção identitária da urbe.
Essa cidade que Chico César cantou e encantou está loca-
lizada no semiárido nordestino, mais precisamente no sertão
do Seridó potiguar. Segundo Morais (2005) e conforme pode ser
observado no Mapa 1, o Seridó é uma região historicamente
construída, situada na porção centro-meridional do estado
do Rio Grande do Norte e formada por 23 municípios, a saber:
Acari, Caicó, Carnaúba dos Dantas, Cerro Corá, Cruzeta, Currais
Novos, Equador, Florânia, Ipueira, Jardim de Piranhas, Jardim do
Seridó, Jucurutu, Lagoa Nova, Ouro Branco, Parelhas, Santana
do Seridó, São Fernando, São João do Sabugi, São José do Seridó,
São Vicente, Serra Negra do Norte, Tenente Laurentino Cruz e
Timbaúba dos Batistas.

Mapa 1 – Rio Grande do Norte: Caicó e sua


espacialização atual no Seridó potiguar

Fonte: IBGE (2005)

219
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Esses territórios possuem uma vinculação histórica com


Caicó, já que todos foram formados a partir do desmembra-
mento, direta ou indiretamente, de tal município, o primeiro a
se constituir no Seridó (MORAIS, 2005). Na década em que Chico
César compôs “A prosa impúrpura do Caicó”, a cidade possuía
42.783 habitantes – de um total de 50.640 (IBGE, 2016). No último
censo, em 2010, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE, 2016), a cidade contava com uma população
urbana de 57.461 habitantes, de um total de 62.709 residentes no
município, distribuídos por uma área correspondente a 1.228 km2.
Do ponto de vista histórico e econômico, Caicó é o prin-
cipal centro urbano do Seridó, desempenhando uma grande
importância na rede urbana regional. Atualmente, a cidade
polariza toda a região do Seridó potiguar e algumas partes do
Seridó paraibano, convergindo para seu espaço fluxos de pessoas
à procura de serviços de saúde, educação, finanças, comércio
etc. Esses serviços estão concentrados, majoritariamente, no
centro da cidade, o qual apresenta um ritmo intenso e contínuo
de objetos e ações, revelando o poder concentrador desse espaço
em detrimento de outros.
Além de concentrar serviços importantes para a dinâmica
urbano-regional, o centro de Caicó é o lugar de realização de
eventos que foram definidores para sua construção enquanto
cidade. Foi nesse lugar, assentado em um meio ecológico rochoso
e entre os rios Seridó4 e Barra Nova5, que Caicó se tornou cidade,
depois de ser povoação e vila. Sua genealogia está atrelada a
contos, lendas e mitos que povoam o imaginário local e que ainda

4 O rio Seridó nasce no sopé da Serra dos Cariris (ou Serra do Alagamar),
estado da Paraíba, adentra o território do Rio Grande do Norte pelo
município de Parelhas, atravessa o Seridó de leste a oeste e deságua no
rio Piranhas-Açu, na zona limítrofe dos municípios de São Fernando
e Jardim de Piranhas (MELO, 2008).
5 O rio Barra Nova é um afluente do rio Seridó, que nasce e deságua
no próprio município de Caicó.

220
A invenção de Caicó

são utilizados como “insumos” para a elaboração e reelaboração


de uma identidade territorial.
Sobre a genealogia de Caicó, a historiografia regional
narra e considera a existência de duas versões históricas, uma
mítica e outra dita “oficial”, para explicar o seu surgimento.
Para a versão mítica, o escritor seridoense Manoel Dantas (2001,
p. 97), em sua denominação sobre alguns municípios potiguares,
presente em sua obra Homens de Outr’ora, mantida em grafia
original, conta o seguinte:
Quando o sertão era virgem, a tribu dos Caicós, celebre pela
sua ferocidade, julgava-se invencível, porque Tupan vivia alí,
encarnado num touro bravio que habitava um intrincado
mufumbal, existente no local onde está, hoje situada a cidade
de Caicó. Destroçada a tribu, permaneceu intacto o misterioso
mufumbal, morada de um Deus, mesmo selvagem. Certo dia,
um vaqueiro inexperto, penetrando no mufumbal, viu-se,
de repente, atacado pelo touro sagrado, que iria, indubita-
velmente, mata-lo. Rapidamente inspirado, o vaqueiro fez o
voto a N. S. Sant’Ana de construir ali uma capela, si o livrasse
de tamanho perigo. Como por encanto, o touro desapareceu.
O vaqueiro destruiu a mata e iniciou, logo, a construção da
capela. O ano era seco e a única aguada existente era a de
um poço do rio Seridó.

O vaqueiro fez novo voto a S. Ana para o poço não secar antes
de concluída a construção da capela. O poço de Sant’Ana, como
ficou, desde então, denominado, nunca mais secou. Reza a
lenda que o espírito do Deus dos índios, expulsos do mufumbal,
foi se abrigar no poço, encarnando-se no corpo de uma ser-
pente enorme que destruirá a cidade, ou quando o poço secar,
ou quando as águas do rio, numa cheia pavorosa, chegarem
até o altar-mór da matriz [hoje Catedral] de Caicó onde se
venera a imagem da mãe de Nossa Senhora.

Conforme essa narrativa mitológica, Caicó nasceu em


torno de três elementos basilares: o vaqueiro, a água e a capela,
que podem ser compreendidos como “[...] trabalho, vida e
religiosidade, respectivamente. A mestiçagem desses elementos
configura imagens de um povo valente, terra abençoada por

221
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Deus, Rainha do Seridó” (DANTAS, 1996, p. 29). Segundo esse


mito de origem, a cidade nasceu das águas ou do labor contra
a sua escassez, e, portanto, muitos dos mitos e das lendas
concernentes à sua genealogia repousam sob as águas do rio
Seridó, especificamente sob as águas do Poço de Sant’Ana
(Figura 1).
Como pode ser observado na Figura 2, o Poço de Sant’Ana
está situado nas proximidades da Catedral de Sant’Ana, mais
precisamente nas adjacências do Complexo Turístico Ilha de
Sant’Ana6, este, por sua vez, localizado entre a zona norte e o
centro da cidade. Esse espaço, localizado em um canal secundá-
rio do rio Seridó, é um patrimônio cultural da cidade, imbuído
de segredos, mistérios e estórias que “fermentam” o mito de
origem de Caicó.
Sobre o mito, Mircea Eliade (1972, p. 11) afirma que ele
abrange uma “[...] realidade cultural extremamente complexa,
que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas
múltiplas e complementares”. Para o autor, a definição de
mito que parece a menos imperfeita por ser a mais ampla é
a seguinte:
[...] o mito conta uma história sagrada; êle relata um acon-
tecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso
do “princípio”. Em outros têrmos, o mito narra como, graças
às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou
a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um
fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento
humano, uma instituição. È sempre, portanto, a narrativa de
uma “criação”: êle relata de que modo algo foi produzido e
começou a ser (ELIADE, 1972, p. 11).

6 O Complexo Turístico Ilha de Sant’Ana trata-se de um espaço de


sociabilidade construído sobre uma ilha fluvial, localizada no rio
Seridó. Inaugurado em 2008, o Complexo é formado por uma praça
de alimentação, uma pista de cooper, um ginásio poliesportivo e um
anfiteatro.

222
A invenção de Caicó

Figura 1 – O Poço de Sant’Ana

Foto: Pesquisa de campo (2012)

Figura 2 – Situação geográfica do Poço de Sant’Ana


no contexto atual da cidade de Caicó

Fonte: Google Earth. Imagem 2016

Por, frequentemente, florescer da ausência de um conheci-


mento preciso (TUAN, 1983), o mito revela “[...] sua atividade criadora
e desvenda a sacralidade (ou simplesmente a ‘sobrenaturalidade’)
de suas obras” (ELIADE, 1972, p. 11). Em síntese, ele reverbera
as “[...] irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) no Mundo.

223
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

E é essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo


e o converte no que é hoje” (ELIADE, 1972, p. 11, grifo do autor).
Nesse sentido, o mito, em órbita no plano metafísico,
tende a camuflar dos homens os mistérios do socialmente
construído. No entanto, ele não deve ser interpretado como
algo da ordem do bestiário, do ignorante, da infantilidade, da
fabulação fantasiosa ou até mesmo como ficção desprovida de
sentido, mas como algo vivo e vivido, produto da imaginação
individual ou coletiva com razões para ter surgido e perma-
necer no imaginário social de muitas populações (SOUSA
FILHO, 2001).
No que concerne ao mito da origem de Caicó, ele traz,
imbuídas em suas narrativas, representações de um processo
de colonização que subordinou “[...] a existência da cidade à
demarcação do espaço domesticado em contraposição a um
espaço selvagem” (DANTAS, 1996, p. 29). Assim, ele deixa evi-
denciar o “[...] relato da história da colonização portuguesa no
Brasil, cuja vitória do colonizador representava a eliminação
das populações nativas” (DANTAS, 1996, p. 29). Nesse processo,
fazia-se necessário dizimar os gentios para que o território
passasse a ser usado por uma nova racionalidade do branco
colonizador. Por trás desse mito, transparece a história de (des)
povoamento do território brasileiro e, por extensão, do Seridó
potiguar e do próprio espaço caicoense.
O mito originário de Caicó articula, segundo Dantas (1996,
p. 29-30), elementos que são considerados importantes para a
formação da cidade, como, por exemplo:
A criação do gado, elemento primordial para o processo
de ocupação da região do Seridó, local onde a cidade está
encravada, além de dinamizar a economia local e esta-
belecer uma teia de relações sociais, faz emergir a figura
do vaqueiro não só como força de trabalho, mas a ela se
incorpora o sentido de valentia, bravura, que marcará a
história desse tempo e se estenderá até os nossos dias.
Tais adjetivações estão associadas a um sentimento de fé

224
A invenção de Caicó

inabalável que permite superar os obstáculos impostos,


instituindo-se como o viés que fundamentará as ações dos
homens e remediará todas as atividades socioeconômicas
da cidade.

Recorrendo aos cenários apresentados no mito de origem,


Padre Eymard Monteiro (1945) narrou histórias que teriam sido
tramadas no mesmo espaço usado por certo vaqueiro em sua
odisseia contra a fúria de um touro bravio. Uma delas refere-se
à história de “[...] u’a moça dando à luz um filho, jogou-o no Poço
de Sant’Ana, para que ninguem lhe descobrisse a deshonra. E a
cabeça dêste menino aparece, vez por outra, na superficie da
agua, sorrindo macabramente, para os que lá estão tomando
banho” (MONTEIRO, 1945, p. 31).
Segundo Padre Eymard, no “reino encantado” do Poço de
Sant’Ana, mais precisamente, “[...] na furna da pedra, debaixo da
água, era tradição também que morava um negro desaparecido,
certa vez, quando lá se banhava, brincando com outros com-
panheiros” (MONTEIRO, 1945, p. 31). Outra narrativa publicada
pelo padre refere-se ao fato de que é costume dizer-se que “[...]
quem toma banho no Poço de Sant’Ana e se retira para longe,
um dia ha de voltar a Caicó” (MONTEIRO, 1945, p. 31).
Além dessas narrativas históricas contadas por Padre
Eymard, o jornal O Povo, semanário que começou a circular
na cidade de Caicó em 9 de março de 1889, publicou duas
matérias a respeito de dois eventos que muito deram o que
falar entre a população local da época. O primeiro, publicado
no semanário de 12 de outubro de 1890, conta que o senhor
Inácio Ferreira
[...] ao aproximar-se uma tarde do poço [de Sant’Ana] viu
uma enorme cobra preta com cerca de dez palmos de corpo
erguida sobre uns ramos, e Filipe Santiago em outro dia a
viu flutuando no meio do poço. Dão enormes dimensões
do que viram, admirando mais o tamanho da cabeça. Será
alguma sucuri desgarrada do S. Francisco? O certo é que
ficaram quase interditos os banhos no poço (MEDEIROS
FILHO, 1988, p. 167).

225
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

O segundo, divulgado na edição de 1º de dezembro de


1891, relata que, no dia 26 de novembro de 1890
[...] viu-se em lutas com a cobra que existe no poço de Sant’Ana,
nesta cidade, o cidadão, Pedro Félix. Afirma ele ter sido laçado
nas pernas por ela duas vezes e com muito custo e trabalho se
pôde livrar dela, resultando ficar com as carapuças dos dedos
e unhas esfolados, atento à diligência que fez para galgar a
pedra, resultando mais passar uns dois dias amarelo, sem
sangue e com as pernas amortecidas, tal foi o aperto em que
se viu o pobre homem. Deus nos livre de tal cobra (MEDEIROS
FILHO, 1988, p. 167).

Certamente, esses contos populares ganharam grande


repercussão numa cidade pequena como a Caicó de tempos
idos, na qual a maioria dos seus habitantes se conhecia e se
reconhecia, despertando, talvez entre alguns sujeitos do lugar,
medo e temor da espécie que poderia habitar a furna encan-
tada do Poço de Sant’Ana. Ademais, o medo dos caicoenses,
alimentado pelas narrativas bíblicas repisadas pela doutrina
cristã acerca da serpente do Éden, era que essa espécie pudesse
destruir a cidade, caso as águas do poço, como roga o mito
de origem, alcançassem o altar-mor da Igreja de Sant’Ana,
atingindo a imagem da Gloriosa Senhora Sant’Ana do Seridó.
O medo é, indiscutivelmente, um dos elementos constitutivos
da cidade.
Contudo sabe-se que, numa cheia do rio Seridó, as águas
do poço já inundaram a cidade, a qual durante alguns dias
poderia ter recebido o título de Veneza Seridoense, chegando
ao altar-mor da Igreja (Figura 3), e que ele secou, pela primeira
vez, no dia 7 de março de 1938, quando, na ocasião, foi ligada
“[...] uma bomba de puxar água para o motor da uzina elétrica”
(MONTEIRO, 1945, p. 31), deixando exposta a furna tida como
encantada.
Nesse dia, “[...] quasi toda a população da cidade achegou-se
até o rio para espiar o Poço de Sant’Ana que tinha secado [...]. Foi
uma verdadeira novidade” (MONTEIRO, 1945, p. 31). E o lendário

226
A invenção de Caicó

poço que nunca havia secado, desde a construção da Igreja de


Sant’Ana, não conseguiu resistir às “[...] sêcas e ao consumo
crescente pela usina elétrica e pelo jardim da pracinha [praça
da Liberdade], e ficou de lama rachada [...]”7. E não apareceu nem
sereia, nem serpente, “[...] nem caboclo, nem menino e nem nada”
(MONTEIRO, 1945, p. 31). Porém há ainda aqueles que temem que,
um dia, a serpente possa destruir a cidade.

Figura 3 – A cidade inundada pelas águas do rio Seridó

Fonte: Acervo do Projeto Fotografia e Complexidade. Data: 1924

Além de mítico, o Poço de Sant’Ana era o lugar preferido


dos caicoenses de outrora, que o procuravam para se banhar,
“[...] pulando da pedra que me diziam ser a entrada do teu reino”
(MONTEIRO, 1945, p. 32). A teia de relações sociais era marcada
pela pessoalidade dos moradores, que se viam, se encontravam
e proseavam. Era, assim, que se organizava esse espaço mítico e
lúdico, com suas múltiplas formas de sociabilidade, adquirindo
funções e significados. Nos dias em que a cidade acordava
aromatizada com os cheiros de terra molhada, o rio Seridó

7 PRECISAMOS de jardins. Jornal A Fôlha, Caicó, ano II, n. 71, 09 jul. 1955.

227
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

também era usado pelos caicoenses para os banhos matinais.


Na ausência de lagos e praias, o caicoense tinha, durante as
boas invernadas, a opção dos banhos no rio Seridó.
Esses banhos foram noticiados pela imprensa local no
final da década de 1950, quando o jornal A Fôlha, em sua edição
do dia 16 de março de 1957, relatou o seguinte:
em uma manhã de sábado, aproximadamente às 10 horas,
após uma enchente que lavou as margens do rio Seridó, o
jovem Elias Morais, de 20 anos de idade, quando se banhava
nas águas desse rio, foi vítima de um acidente fatal, após
pular de uma ponte sobre o rio, bater a cabeça nas pedras e
ter seu corpo levado pela correnteza. Apesar das [...] buscas
imediatas, seu cadáver só foi encontrado na tarde de terça-
-feira, dois quilômetros abaixo de Caicó, já em adiantado
estado de putrefação8

As relações sociais desencadeadas pelos banhos no rio


Seridó foram narradas também por Lindomar Vale Lucena
(1982, p. 47-48), na seguinte crônica:
Os banhistas e as banhistas começam a chegar. Os gritos
inundam o ambiente, assim como as águas barrentas inun-
dam a região ribeirinha, transmitindo um som de cachoeira,
bastante melodioso para as nossas tradições. É no rio Seridó
que os caicoenses afogam as suas mágoas, extravasam toda a
sua descontração. No ambiente do rio tudo acontece: cânticos,
bebedeiras, peladas, bate-papos, ali a filosofia corre fluidi-
camente. No ‘estreito’, na ‘piscina’, à sombra das frondosas
oiticicas, ou até mesmo no ‘poço de Sant’Ana’, a algazarra e
a brincadeira surgem mesclando as areias alvas e as águas
barrentas de um rio histórico para uma cidade amada. Há os
famosos ‘pulos’ da ponte, as famosas ‘peladas’ [...]. Ainda há
na memória dos bons nadadores as braçadas de seu Heriberto,
atravessando o rio de um lado ao outro, driblando os remansos,
elegantemente. É ótimo relembrar também as peripécias da
meninada: ‘furtos’ de melancia, de caju e cajarana das terras
do coronel Zé Lima. O caicoense deseja sempre contemplar
aquelas ‘cheias’, ver a ponte repleta de gente discutindo a

8 TRÁGICO banho. Jornal A Fôlha, Caicó, ano IV, n. 159, 16 mar. 1957.

228
A invenção de Caicó

invernada, vivendo um clima de festa, observando a capelinha


de São Sebastião.

Embora esses lugares não sejam mais usados, atualmente,


pela população local para esses fins específicos, haja vista
que o rio Seridó está sob os efeitos das constantes secas que
assolam o sertão nordestino e o Poço de Sant’Ana se encontra
poluído por dejetos e resíduos tóxicos despejados em suas águas,
ainda permanecem vivos na memória individual e coletiva da
cidade, sendo referências histórico-culturais importantes para
o entendimento da invenção de Caicó e da constituição de seu
espaço urbano. Esses espaços podem ser considerados como
“[...] ‘Objetos Biográficos’ da cidade [...] [que] nasceram e viverão
eternamente com ela, tornando-se um dos seus principais
pontos de referência” (DANTAS, 1996, p. 32).

E assim Caicó se fez cidade


Ao lado do mito de origem de Caicó, a historiografia
regional considera a existência de uma versão dita oficial para
a formação da cidade de Caicó. Essa versão remete à origem “[...]
da [...] cidade à antiga Casa Forte do Cuó edificada com o objetivo
de abrigar as tropas que iriam combater os indígenas revoltados”
(MORAIS, 1999, p. 41). Mais uma vez, a disputa, envolvendo o
branco colonizador e os índios, pelo uso do território, aparece
nas imagens sobre a formação da cidade.
Segundo Medeiros Filho (1998, p. 4), no ano de 1683, a Casa
Forte do Cuó (Figura 4), também conhecida como Casa Forte do
Acauã ou do Seridó, já teria sido erguida no sítio Penedo, nas
adjacências do Poço de Sant’Ana. Ela fora construída em função
de haver “[...] eclodido um levante do gentio tapuia contra a
presença dos brancos no sertão da Capitania [do Rio Grande]”
(MEDEIROS FILHO, 1998, p. 4).
O nome da Casa Forte era oriundo da designação dada pelos
“[...] tapuias, janduis e canindés ao grande rio que, proveniente

229
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

das vertentes da atual Serra de Santana, descrevia no seu iti-


nerário um longo arco, desaguando, após cerca de vinte e cinco
léguas de curso, no rio Piranhas” (MEDEIROS FILHO, 1988, p.
5-6). O espaço, no qual a cidade de Caicó foi construída, estava
localizado, na época, “[...] à margem do então denominado RIO
QUEIQUÓ, que significava, na linguagem própria dos tapuias,
janduis e canindés, o mesmo que rio Acauã (este, no idioma
tupi)” (MEDEIROS FILHO, 1988, p. 6).
Ainda conforme Medeiros Filho (1988, p. 6), em volta
daquela Casa Forte, fora erigido o “[...] chamado Arraial do
Queiquó, designação que foi substituída, pouco a pouco, pelo
termo Caicó, uma acomodação da pronúncia do nome primitivo”.
Em meados de 1735, o Arraial foi elevado ao título de Povoação
do Caicó. Por volta de 1788, a Povoação do Caicó, de acordo
com Medeiros Filho (1988, p. 6), ganhara os foros de Vila, sob a
denominação de Vila Nova do Príncipe – sede da Freguesia9 da
Gloriosa Senhora Sant’Ana do Seridó10 (Mapa 2), desmembrada,
em 1748, da Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso do
Piancó, atual cidade de Pombal, na Paraíba – em honra ao
futuro dom João VI.

9 Para o historiador Helder Alexandre Medeiros de Macedo (2008, p. 5),


“Freguesia é terminologia colonial para designar a paróquia”. Para
Vainfas (2000 apud Macedo, 2008, p. 5), ela é “a célula básica da Igreja,
assentada na atividade dos párocos em contato com suas ovelhas,
mas que exigia o dispêndio da construção e manutenção das igrejas
matrizes e do pagamento de uma espécie de salário aos sacerdotes,
a côngrua, de modo a torná-los independentes dos fiéis. Até o final
do século XVII, não chegavam a 150 as paróquias no Brasil e, ainda
em 1820, mal excediam 600, o que significava, na prática, que um
pároco devia atender, em média, a mais de seis mil almas espalhadas
por extensões enormes ou inacessíveis”.
10 A Freguesia da Gloriosa Senhora Sant’Ana do Seridó, criada em 1747
e instalada em 1748, estava situada entre as capitanias do Rio Grande
e da Paraíba, tendo como sede a Povoação de Caicó (MACEDO, 2008).

230
A invenção de Caicó

Figura 4 – Ruínas da Casa Forte do Cuó

Foto: Pesquisa de campo (2012)

Mapa 2 – Território da Freguesia da Gloriosa


Senhora Sant’Ana do Seridó – 1748

Fonte: Elaborado a partir da base cartográfica do


IBGE (2005) e de dados de Macedo (2008)

231
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Segundo Morais (2005, p. 70), a vastidão do território da


Freguesia de Piancó, com as “[...] dificuldades de locomoção, o
crescimento da população e, por conseguinte, o aumento da
demanda por serviços religiosos, foram fatores decisivos para
o seu desmembramento em 1748, dando origem à Freguesia da
Gloriosa Senhora Sant’Ana do Seridó”. Diante disso, o processo
de desmembramento da Freguesia de Nossa Senhora do Bom
Sucesso do Piancó implicou na reordenação e na reorganização
do território, partilhado pelas capitanias do Rio Grande e da
Paraíba, instituindo “[...] um novo foco de centralidade, no
lugar chamado Caicó, situado em terras rio-grandenses. [...]
Assim, estabeleceu-se a primeira delimitação oficial referente
ao espaço identificado como Seridó, expressa em um recorte
que referendava o poder da Igreja Católica” (MORAIS, 2005,
p. 71-72).
Em 1817, de acordo com informações de Medeiros Filho
(1988, p. 41), o Padre Manuel Aires de Casal descrevia a Vila Nova
do Príncipe, sede da Freguesia do Seridó, da seguinte maneira:
noutros tempos Caicó, “[...] bem situada sobre o rio Seridó, oito
léguas acima da sua embocadura. Sant’Ana é a padroeira de sua
matriz; e seus habitantes, de várias compleições, bebem o rio,
em cujas margens cultivam feijão, hortaliças, milho e tabaco”.
Já o Frei Caneca, em sua passagem pela Freguesia por volta do
ano de 1824, quando estava em deslocamento com suas tropas
de Pernambuco para o Ceará, ao descer as quebradas do planalto
da Borborema e atingir a Vila do Príncipe pelo sopé da serra
do Samanaú, teceu o seguinte comentário sobre o pequeno
aglomerado populacional:
A vila tem uma igreja não pequena, nova e bem paramentada.
A casa do vigário é de sobrado e boa. Todas as casas são novas
de pedra e cal e fazendo um círculo, com diâmetro de trezentos
passos em uma chã. Por detrás das casas o terreno é plano,
mas pedregoso. Tem o rio três grandes poços de boa água que
nenhum verão, por mais forte, é capaz de secar (MEDEIROS
FILHO, 1988, p. 42).

232
A invenção de Caicó

Ainda segundo o Frei, a Vila era farta de alimentos, fari-


nha, milho e arroz, apesar da inexistência de um comércio, com
água abundante ao longo do rio Seridó11. Algumas décadas após
essa passagem, a Vila era elevada à categoria de cidade pela Lei
Provincial de “[...] 15 de fevereiro de 1868, conservando a mesma
denominação até 1890, quando o decreto do Governo Provisório
n. 12, de 1 de fevereiro do mesmo ano, [mudou] o nome para
cidade do Seridó” (DANTAS, 2001, p. 99). Por sua vez, esse decreto
foi revogado em 7 de julho do mesmo ano, quando na ocasião
foi solicitado que o nome de Cidade do Seridó “[...] passasse a
se denominar cidade do Caicó, nome indígena pelo qual era
geralmente conhecido desde a fundação” (DANTAS, 2001, p. 99).
Dessa forma, até adquirir o nome de Caicó, a cidade recebeu
várias denominações, como por exemplo: Povoação do Caicó,
Vila Nova do Príncipe, Cidade do Príncipe e Cidade do Seridó.
O historiador Manoel Ferreira Nobre, em suas notícias
sobre a província do Rio Grande, relata a seguinte impressão
sobre a Cidade do Príncipe:
É uma bonita cidade dominada por uma casa assobradada
de onde se goza uma vista extensa e assaz agradável. Apesar
das planícies que se estendem ao norte e ao sul, é na maior
parte montanhosa. E sujeita, como todo o alto sertão, a duas
estações: a das águas e a da seca; a primeira dura de janeiro a
maio e a segunda de junho a dezembro. Na estação das águas,
as trovoadas são frequentes e assustadoras. Na estação da
seca, os efeitos do calor são mui sensíveis: as noites, porém,
são sempre frescas. Distingue-se pelo trabalho. As mulheres
são geralmente belas, de costumes puros, sinceras nas suas
afeições, e fiéis aos deveres da família e religião (MEDEIROS
FILHO, 1988, p. 42).

Possivelmente, a casa assobradada descrita pelo histo-


riador e descortinada por Frei Caneca, em 1824, era o atual

11 DANTAS, Dom José Adelino. Homens e fatos do Seridó Antigo: no


transcurso do 133º aniversário da passagem de Frei Caneca por Caicó.
Jornal A Fôlha, Caicó, ano IV, n. 191, 26 out. 1957.

233
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Sobrado do Padre Brito Guerra, construído, entre os anos de


1810 e 1811, pelo padre Francisco de Brito Guerra, vigário local.
O escritor Mário de Andrade, ao percorrer, em janeiro de
1929, o interior do estado do Rio Grande do Norte em companhia
do historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo, fez uma
visita a Caicó e construiu a seguinte narrativa sobre a cidade:
“Caicó me assombra, bem arrumada, casas novas. [...] E assim,
grupos de casas novas, sem nenhuma espécie de vegetação,
a gente tem uma impressão danada de monumentalidade”
(ANDRADE, 1976, p. 299). Caicó se mostrava ao turista aprendiz
como uma cidade que desejava ser grande, ser moderna, ser
alvissareira. Evidente que, na época em que Mário de Andrade
transitou pelo Seridó, Caicó era uma cidade pequena, porém de
grande importância econômica e política na região.
Sobre a toponímia de Caicó, presume-se ser de origem
indígena, “[...] sendo atualmente aceita a versão que defende sua
origem vinculada aos termos Acauã e Cuó, que são sinônimos e
designam acidentes geográficos – rio e serra, respectivamente,
– da região” (DANTAS, 2003, p. 110). O primeiro termo está
atrelado ao idioma tupi e o “[...] segundo à língua dos tapuias
tarairiús. Havia, ainda, por parte dos indígenas, a identifica-
ção do termo rio por Quei. Daí presume-se que Caicó vem da
pronuncia Queiquó, termo tarairiú, significando rio do Cuó, o
mesmo Acauã pelo Tupi” (DANTAS, 2003, p. 110-111). Essa versão
se tornou, outrossim, uma herança preciosa da cultura passada,
cujo batismo do espaço e de todos os seus objetos relevantes não
foi realizado somente para ajudar as pessoas a se referenciar
e se encontrar, mas, sobretudo, tratava-se de uma verdadeira
tomada de posse simbólica ou real do espaço (CLAVAL, 2001).
Caicó teve, assim, na Igreja Matriz, hoje com status de
Catedral de Sant’Ana (Figura 5), um marco para a organização,
a produção e a expansão do seu espaço urbano, apesar de a
historiografia oficial apontar a Casa Forte do Cuó como o local
de fundação da cidade.

234
A invenção de Caicó

Figura 5 – A Matriz, hoje Catedral, de Sant’Ana

Fonte: Acervo do Museu do Seridó. Data: Primeira metade do século XX

Desse modo, a formação do espaço urbano de Caicó, “[...]


com a construção de casas e conformação de ruas, foi deslan-
chando de fato, a partir da construção da Matriz de Sant’Ana”
(MORAIS, 1999, p. 43). A igreja, nesse sentido, assumiu uma “[...]
força centrípeta capaz de aglutinar populações, assumindo
um papel relevante no processo de ocupação e povoamento de
Caicó” (MORAIS, 1999, p. 42).
Esse processo não se restringiu apenas à cidade de Caicó,
mas em algo comum a todas as cidades do Seridó que se forma-
ram e se desenvolveram no entorno das igrejas católicas. Sendo
assim, a dimensão do sagrado está presente na paisagem arqui-
tetônico-urbanística dessas cidades, em sua própria toponímia,
e nas práticas coletivas de apropriação dos espaços, recebendo
um grande investimento simbólico. Essas referências deixadas
na paisagem material das cidades denunciam o “[...] vigor com
que o sagrado falava à sociedade” (ARRAIS, 2004, p. 134).
Concernente à edificação de uma das marcas do catoli-
cismo na paisagem urbana de Caicó, isto é, a Igreja de Sant’Ana,

235
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

ela se deu por volta do ano de 1748, ano de instalação da Freguesia


do Seridó. Um relato encontrado no Livro de Tombo da Igreja
revelava o desejo dos fiéis de edificar um templo religioso no
pequeno aglomerado populacional:
Aos 26 dias do mez de Julho do ano do nascimento de Nosso
Senhor Jesus Cristo, de mil setecentos e quarenta e oito, em
dia da Senhora Sant’Ana, padroeira desta freguesia, eu, o
padre Francisco Alves Maia, Cura desta mesma Freguesia,
vim a este lugar do Caicó, onde todos os Freguezes desta dita
Freguezia ou a maior parte deles de melhor nota, assentaram
por voto unanime que fosse fundada e erecta sua Matriz com
a invocação de Senhora Sant’Ana, por ser este lugar o mais
comodo e para onde podia concorrer o povo com conveniencia
comum para todos; e aí no dito lugar acompanhado de grande
parte de povo, e com consentimento do Tenente José Gomes
Pereira, levantei uma cruz no mesmo lugar e terreno, onde
os Freguezes hão de fundar a Matriz, para cuja fundação
deu o dito Tenente José Gomes Pereira, e sua mulher Dona
Ana Maria de Assunção, a terra que fosse necessaria e con-
veniente para se levantar dita Matriz assim como para casa
do Reverendo Paroco e seus sucessores, sem pensão alguma
de fôro, não podendo, porem, os parocos criar em dita terra
gados vacum e cavalar e só sim algumas cabras para o seu
passar. E, outro sim, que querendo alguem morar no tal logar,
não o poderá fazer sem beneplacito do dito Tenente, dono da
terra e pagando-lhe fôro (MONTEIRO, 1945, p. 33-34).

A partir da construção da Igreja, erguida em terrenos


situados na parte mais baixa da cidade, deu-se o crescimento
e a consequente ampliação do arranjo urbano de Caicó. Sobre
pedras, entre rios e serras, Caicó surgiu e se expandiu. Durante
muito tempo, a cidade teve seu perímetro urbano circunscrito às
adjacências do rio Seridó e às contiguidades do Largo da Igreja
de Sant’Ana, hoje conhecido por Largo da Catedral.
Nesse espaço, “[...] estavam localizadas as residências
das famílias mais aquinhoadas, geralmente os fazendeiros da
região, que mantinham as casas fechadas durante boa parte
do ano, pois só vinham à cidade em épocas específicas, como
festas e eleições” (DANTAS, 2003, p. 111). Além de se constituir

236
A invenção de Caicó

como núcleo “[...] residencial da elite local, próximo à igreja


também se encontrava os poderes político, jurídico e econômico,
representados pela praça do mercado, o prédio da cadeia e do
senado da Câmara” (DANTAS, 2003, p. 111). A Igreja de Sant’Ana
simboliza para a cidade de Caicó a mola propulsora que possi-
bilitou o seu desenvolvimento.
Permeada pela sobreposição de tempos, Caicó foi sendo
escrita, narrada e representada por sujeitos que viveram, pas-
saram e se encantaram com a cidade, seja pelos seus mitos de
origem, seja pela sua organização socioespacial. Desse modo,
Caicó, corruptela dos termos Acauã e Cuó, foi inventada como
Cidade do Príncipe, Capital do Seridó e Rainha do Seridó,
expressando toda a importância histórica, cultural e econômica
que essa cidade teve e tem na configuração atual do Seridó
Norte-rio-grandense.

Considerações finais
A partir de narrativas e das imagens diversas, foi possível
revisitar a cidade de Caicó, sistematizando alguns eventos
importantes para o entendimento do seu processo de constitui-
ção, sobretudo aqueles referentes ao seu mito de origem, à sua
toponímia, aos seus monumentos, à sua evolução urbana e aos
contos e às lendas que ainda permeiam o seu imaginário social
local, encantando e (re)encantando aqueles que se debruçam
sobre sua geografia histórica.
Enquanto reflexo e produto dos processos de ocupação,
(des)povoamento e colonização que marcaram as disputas
em torno do uso do território do Seridó potiguar, Caicó se fez
enquanto cidade: uma cidade que a tudo rejeitava e, concomi-
tante e contraditoriamente, a tudo queria; uma Rainha cujo
reinado fora edificado por medos, desejos e sonhos.
Desde os tempos de sua criação, emancipação e insti-
tucionalização, essa cidade foi sendo escrita e reescrita por

237
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

sujeitos, sejam eles habitantes ou visitantes, que contribuíram


para a construção de sua biografia. Uma biografia elaborada a
partir de um ritmo fascinante e dialógico de recusa e sedução,
de ilusão e decepção, de razão e emoção, enfim, de elementos
da condição humana que possibilitaram a invenção do Caicó
arcaico, a produção imagético-discursiva de um lugar no sertão
do Rio Grande do Norte.

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238
A invenção de Caicó

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239
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

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240
A influência do CT-Petro nas
interações entre grupos de pesquisa
em Engenharia Química da região
Nordeste e o setor produtivo
Arlindo Teixeira de Oliveira1
Edna Maria Furtado2
Ademir Araújo da Costa3
Ana Cristina Fernandes4

Introdução

O Fundo Setorial de Petróleo e Gás Natural (CT-Petro), criado por


meio da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, tem como objetivo
estimular a produção de competências de Ciência, Tecnologia
e Inovação (CT&I) para o setor de Petróleo e Gás Natural (P&G).

1 Aluno de mestrado do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em


Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista
CAPES-DS. E-mail: arlindo.escobar@gmail.com
2 Professora Doutora Titular do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa
em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
E-mail: ed.furtado@hotmail.com
3 Professor Doutor Titular do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa
em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
E-mail de contato: ademir@ufrnet.br
4 Professora Doutora Titular do Programa de Pós-Graduação em
Geografia da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail:
anacf.ufpe@gmail.com

241
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Visando apoiar projetos que atuem no desenvolvimento das


respectivas competências, o CT-Petro busca incentivar o sur-
gimento e a consolidação das interações entre universidades e
empresas, sobretudo nas regiões menos desenvolvidas.
As interações entre universidades e empresas beneficiam
ambos os atores envolvidos, pois possibilitam que as empresas
inovem em seu processo produtivo e que os grupos de pesquisa
obtenham recursos e tomem conhecimento das demandas da
sociedade, colaborando para a identificação de novos proble-
mas de pesquisa. Portanto, a presente investigação tem como
objetivo central avaliar a atuação do CT-Petro na interação
entre os grupos de pesquisa em Engenharia Química da região
Nordeste e o setor produtivo. Contudo, inspirados em Corrêa
(2003) ao defender que uma sólida pesquisa deva transcender
o objetivo inicialmente proposto, buscamos também analisar
os rebatimentos do Fundo Setorial nas disparidades regionais
referentes às interações entre os agentes mencionados.
A escolha da Engenharia Química justifica-se pela rele-
vante quantidade de interações entre os grupos de pesquisa
dessa área de conhecimento e empresas dos diversos setores
econômicos, principalmente aquelas voltadas ao setor de P&G,
como defendem Fernandes, Silva e Souza (2011). Selecionamos
o Nordeste por se tratar de uma região periférica em relação
ao desenvolvimento de CT&I, e pelo fato de o CT-Petro, em sua
formulação, ter reservado um percentual mínimo para aplicação
dos seus recursos nessa região.
Visando atingir o objetivo da pesquisa, adotamos uma
metodologia que consiste em levantamentos e sistematizações
de documentos e dados secundários sobre a formação da base
acadêmica na área de conhecimento da Engenharia Química
no Brasil, mais especificamente na região Nordeste, mediante
os Censos 2004 e 2010 do Diretório dos Grupos de Pesquisa
(DGP) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), como também por meio de levantamentos

242
A influência do CT-Petro nas interações entre grupos de pesquisa
em Engenharia Química da região Nordeste e o setor produtivo

bibliográficos que contemplem o tema selecionado. O recorte


temporal utilizado na presente investigação, o qual se estende
entre 2004 e 2010, foi traçado justamente pelo fato de que, em
2004, a atuação do CT-Petro já estava consolidada, principal-
mente nas interações entre universidades e empresas, e o ano
de 2010 foi escolhido devido ao último Censo de Grupos de
Pesquisa divulgado pelo DGP/CNPq.
O presente trabalho é fruto de esforços exercidos pelos
quatro autores. A disciplina “Configuração do Território e
Políticas Públicas”, ministrada pelos professores doutores Edna
Furtado e Ademir Araújo ao primeiro autor no Programa de
Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (PPGe/UFRN), possibilitou o desenvolvi-
mento do capítulo por intermédio do amadurecimento teórico
e metodológico fornecido por meio das orientações presenciais,
discussões e das aulas ministradas por ambos os professores.
A base do trabalho foi estruturada com apoio na monografia
do curso de Bacharelado em Geografia da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE), a qual abordou as interações entre os
grupos de pesquisa em Engenharia Química de Pernambuco e
o setor produtivo, e em dois artigos publicados em importantes
eventos científicos: Oliveira e Fernandes (2015) e Fernandes
e Oliveira (2015). Tanto a monografia quanto os dois artigos
foram desenvolvidos pelo primeiro autor em parceria com e
sob a orientação da Professora Doutora Ana Cristina Fernandes.

Políticas públicas: uma breve discussão


No nosso cotidiano, é comum escutarmos discussões
sobre as políticas públicas, seja no encontro entre amigos em
uma mesa de bar, seja em reuniões entre Chefes de Estado. Tal
repercussão é causada, justamente, pela intervenção das polí-
ticas públicas em nossas vidas, como também pelo maior poder
de fiscalização dos gastos públicos. De acordo com Boneti (2006),
as políticas públicas correspondem às ações de intervenção na

243
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

realidade social. Ainda segundo o autor, suas análises devem


ser realizadas com uma abordagem integrada que contemple
os seus complexos ciclos.
Para Jannuzzi (2005), tais ciclos possuem quatro fases:
diagnóstico, formulação, implementação e avaliação. O diagnós-
tico corresponde à fase da observação de um problema que se
deseja resolver, o qual pode afetar toda a população brasileira
ou apenas uma pequena parcela da sociedade inserida em
uma específica localidade do país. A formulação, baseada no
diagnóstico, das políticas públicas envolve não só o Estado de
maneira isolada, mas também outros agentes que influenciam
diretamente as decisões deste.
Portanto, Boneti (2006, p. 12) defende que “é impossí-
vel considerar que a formulação das políticas públicas seja
pensada unicamente a partir de uma determinação jurídica,
fundamentada em lei, como se o Estado fosse uma instituição
neutra, como querem os funcionalistas”. Ainda de acordo com
o autor, um dos principais agentes determinantes das políticas
públicas nacionais são as elites internacionais. A nosso ver, essas
elites internacionais correspondem a uma parcela restrita da
nossa elite nacional, a qual é ao mesmo tempo global, como nos
ensina Bauman (1999). Conforme Boneti (2006), as organizações
da sociedade civil e os movimentos sociais também colaboram
para a formulação das políticas públicas, mas com diferentes
intensidades, dependendo do contexto político-econômico
vigente.
Após as políticas públicas serem formuladas, muitas vezes
de maneira conflituosa, são encaminhadas ao Poder Legislativo,
o qual avalia a viabilidade destas. Caso sejam aprovadas, vão para
as mãos dos burocratas, responsáveis pela sua implementação.
Consoante Boneti (2006, p. 68), “os burocratas são os técnicos
responsáveis por transformar as políticas públicas em projetos
de intervenção na realidade social com medidas administrativas
ou com investimentos”.

244
A influência do CT-Petro nas interações entre grupos de pesquisa
em Engenharia Química da região Nordeste e o setor produtivo

Até a implementação, a política pública passa por diversas


instâncias, tendo, na maioria dos casos, a sua idealização inicial
modificada e ajustada aos interesses dos diferentes agentes.
Segundo Boneti (2006), as políticas públicas correspondem
ao resultado das relações de poder que se estabelecem nas
interações entre os grupos econômicos e políticos, as classes
sociais e demais organizações da sociedade civil.
A avaliação de uma respectiva política pública é algo
muito importante, tanto para inteirar-se sobre o destino dos
recursos públicos quanto para medir sua efetividade e corrigir
os seus problemas. Conforme Pereira et al. (2007), a avaliação,
além de servir como uma prestação de contas aos financiadores
e à sociedade, colabora na geração de elementos para aprimorar
as políticas, as ações, os programas e projetos, assim como para
instruir decisões associadas aos instrumentos avaliados ou a
futuras iniciativas.
Para Oliveira (2005) e Boneti (2006), há certa despreocupa-
ção no âmbito acadêmico e político na avaliação dos resultados
da implementação das políticas públicas. A quantidade de
artigos científicos que tratam exclusivamente da formulação
das políticas é muito maior do que os que se prendem em avaliar
as suas repercussões socioeconômicas. Segundo Oliveira (2005),
muitos projetos e programas, no Brasil, são, de certa forma, até
bem elaborados, mas mal implantados. Isso ocorre, de acordo
com o autor, pelo fato de os formuladores das políticas públicas
separarem, claramente, a formulação da implementação, e
acabam colocando o planejamento como um simples processo
de fazer planos, como defende Jannuzzi (2005). Portanto, se
analisarmos apenas a formulação das políticas públicas, ou
apenas a implementação, acabaremos cometendo observações
equivocadas. Desta maneira, se faz importante, ao estudar uma
política pública, especialmente as de CT&I, analisar desde a sua
formulação até as suas repercussões na sociedade.

245
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Políticas públicas de CT&I e interações


entre universidades e empresas
Com a dinâmica do capital global cada vez mais evidente
e a necessidade de desenvolver soluções para os problemas
enfrentados pelas empresas e pelo restante da sociedade, a
inovação começou a ser gradativamente discutida nos âmbitos
político e acadêmico do Brasil. Para Fonseca (2012), a criação
de políticas públicas de CT&I é um fator determinante para a
consolidação de um modelo de desenvolvimento econômico
sustentável, capaz de atender às demandas sociais e empresariais
brasileiras, assim como o fortalecimento da soberania nacional
ao se tratar da produção de CT&I.
Nas diversas discussões acadêmicas, CT&I são tratadas,
muitas vezes, como se fossem uma única atividade. Apesar
de estarem altamente relacionadas entre si, as três possuem
características e importâncias distintas para a sociedade. Em
linhas gerais, acreditamos que a Ciência e a Tecnologia (C&T) são
produzidas pelas universidades e pelos institutos de pesquisa em
formato de artigos científicos e soluções para problemas pontu-
ais tecnológicos. Já a Inovação, a definimos como o resultado da
transformação desses conhecimentos científicos e tecnológicos
em bens, serviços e processos novos ou melhorados introduzidos
nos processos produtivos das empresas e no mercado em geral,
podendo beneficiar a vidas dos indivíduos.
Segundo Fernandes e Oliveira (2015), a inovação é conce-
bida como importante elemento para o crescimento econômico,
assim como relevante fator para o desenvolvimento de soluções
relacionadas aos problemas vividos pela sociedade em geral.
Ainda de acordo com esses autores (2015, p. 3), “trata-se de
um processo complexo que envolve uma grande variedade de
agentes (empresas, universidades, institutos públicos de pes-
quisa, fundações de amparo à pesquisa) e suas relações”. Tais
interações entre esses agentes, sobretudo entre as universidades

246
A influência do CT-Petro nas interações entre grupos de pesquisa
em Engenharia Química da região Nordeste e o setor produtivo

e as empresas, colaboram para que os conhecimentos científico


e tecnológico sejam convertidos em inovações.
Conforme o Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação
(MCTI) (BRASIL, 2011), o Plano Nacional de CT&I, o qual guia o
fito das políticas públicas dessa natureza, se organiza em torno
de quatro prioridades estratégicas: i) Expansão e consolidação do
Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação; ii) Promoção
da inovação tecnológica nas empresas; iii) Pesquisa, desenvolvi-
mento e inovação em áreas estratégicas; iv) Ciência, tecnologia e
inovação para o desenvolvimento social. Em todos esses quatro
eixos, é possível notar a importância das interações entre uni-
versidades e empresas para o desenvolvimento da CT&I do país.
As interações entre universidades e empresas, as quais cor-
respondem a um significativo indicador de produção de CT&I, são
muito importantes para o processo da inovação, pois permitem
que os conhecimentos científicos e tecnológicos produzidos nas
universidades sejam convertidos em inovações que possam ser
utilizadas tanto pelo setor produtivo como também pela sociedade
em geral. Em Fernandes e Oliveira (2015, p. 3), observamos que
tais interações beneficiam ambos os agentes envolvidos,
pois permitem que a universidade colabore para o desenvolvi-
mento econômico do país, obtenha recursos para realizar suas
pesquisas, além de se atualizar sobre as demandas industriais,
direcionando, assim, as suas investigações. Já a empresa,
consegue resolver seus problemas técnicos e tecnológicos,
inovar em seus processos produtivos e em produtos, além de
ter acesso aos laboratórios e bibliotecas das universidades.

Para Oliveira e Fernandes (2015, p. 3), os grupos de pes-


quisa, os quais representam as universidades nas interações com
as empresas, “contam com professores e alunos de graduações e
pós-graduações que possuem interesses acadêmicos em comum,
os quais estão organizados em um sistema cooperativo”. De
acordo com o Censo 2010 do DGP/CNPq, existem 27.523 grupos
de pesquisa distribuídos entre as regiões brasileiras. O Sudeste,
detentor do maior PIB do país e a região, historicamente, mais

247
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

beneficiada com as políticas públicas de CT&I, detém mais


grupos de pesquisa que a soma das regiões Nordeste e Centro-
Oeste. Para exemplificar o que está sendo mencionado, é válido
citar que apenas o estado de São Paulo acumula 6.359 grupos,
representando pelo menos 23% do total de grupos de pesquisa
do país, como demonstra o Censo 2010 do DGP/CNPq.
Em Oliveira e Fernandes (2015), defendemos que o baixo
número de grupos de pesquisa nas regiões Norte, Centro-Oeste
e Nordeste também pode ser explicado pela tardia implantação
das universidades nessas três regiões. De acordo com Fernandes,
Silva e Souza (2011), foi apenas após a 2ª Guerra Mundial que
houve, de fato, uma proliferação das universidades nessas regi-
ões, colaborando para a produção de CT&I nessas localidades.
O total de grupos interativos5, no Brasil, é de 3.506, o que
significa apenas 13% do total. Garcia et al. (2011) alegam que
existe uma concentração dos grupos de pesquisa interativos,
assim como o total de grupos de pesquisa, nas regiões Sul e
Sudeste. Segundo Lencioni (1999), tal fato pode ser explicado
pela presença das grandes universidades e pelo elevado número
de importantes empresas concentradas nessas cidades que,
devido à competitividade global cada vez mais acirrada, neces-
sitam inovar em seus processos produtivos com o intuito de
se manterem atuantes no mercado nacional e internacional.
As Engenharias e as Ciências Agrárias são as duas áreas
de conhecimento com mais grupos de pesquisa interativos e,
consequentemente, interações com as empresas. De acordo com
Fernandes, Silva e Souza (2011), o caso das Ciências Agrárias
pode ser justificado pelo passado histórico e pela importância
das atividades agrícolas, especialmente da soja, para a economia
brasileira. Consoante com Oliveira e Fernandes (2015), dentro da
grande área de conhecimento das Engenharias, a qual possui

5 Entende-se por grupo de pesquisa interativo aquele que mantém


interações com as empresas, sejam elas públicas ou privadas.

248
A influência do CT-Petro nas interações entre grupos de pesquisa
em Engenharia Química da região Nordeste e o setor produtivo

2.651 grupos de pesquisa, pode-se citar a Engenharia Química6


que, devido às suas competências, seus grupos de pesquisa
mantêm relacionamentos com inúmeras empresas, inclusive
com as mais interativas do país. No Brasil, o número de gru-
pos de pesquisa da Engenharia Química é de 275, quantidade
bastante relevante, representando 10,5% do total de grupos
das Engenharias.
Assim como ocorre em diversas áreas do conhecimento,
a distribuição espacial dos grupos de pesquisa interativos em
Engenharia Química é altamente heterogênea, havendo uma
forte concentração no Sul e Sudeste em detrimento das demais
regiões. Visando estimular as interações entre universidades
e empresas na área de P&G, focalizando os grupos de pesquisa
situados nas regiões periféricas (Norte e Nordeste), foi criado,
por meio de uma chamada pública de CT&I, o CT-Petro.

Fundos Setoriais de Ciência e


Tecnologia: o CT-Petro
Conforme Pacheco (1999), o CT-Petro foi o primeiro Fundo
Setorial, criado em 1997, após a aprovação da Lei do Petróleo,
iniciando suas atividades em 1999. De acordo com Raeder (2011,
p. 453), “os Fundos Setoriais surgiram no contexto do processo de
privatização de desregulamentação em diversos setores produtivos
do país durante a década de 1990”. Ainda segundo Raeder (2011),
com as empresas estatais alcançando elevados índices de desen-
volvimento tecnológico, científico e inovativo, surgiu o debate
sobre a necessidade de consolidar e avançar esforços para o desen-
volvimento inovativo em áreas estratégicas do país. Tal inovação

6 O Instituto Americano de Engenheiros Químicos (AICHE) defende que a


Engenharia Química é a área responsável por desenvolver, dimensionar,
melhorar e aplicar processos e produtos químicos. Nessa concepção,
inclui-se a construção, a operação, a análise econômica, o dimensio-
namento e a gestão de unidades industriais que concretizam esses
processos, tal como a investigação e a formação nesses domínios.

249
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

poderia ser alcançada por intermédio de estímulos financeiros


que colaborassem para a interação entre as universidades e o
setor produtivo, ou por meio da criação de núcleos internos de
Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) nas empresas.
Os Fundos Setoriais foram criados com o fito de serem
fontes complementares para subsidiar o desenvolvimento de
pesquisas relacionadas aos setores econômicos estratégicos
do país. De acordo com Pereira et al. (2007), os Fundos visam
promover a articulação entre os agentes responsáveis pelo
processo inovativo, a exemplo das interações entre empresas e
universidades. Suas receitas são provenientes de contribuições
incidentes sobre o resultado da exploração de recursos naturais
pertencentes à união, parcelas de imposto sobre produtos indus-
trializados de certos setores, como também da Contribuição
de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) incidente sobre
valores que remuneram o uso ou aquisição de conhecimentos
tecnológicos e transferência de tecnologias para o Exterior
(FINANCIADORA DE ESTUDOS E PROJETOS, 2015).
Atualmente, existem 16 Fundos Setoriais, sendo 15 coor-
denados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (FNDCT)7, o qual é vinculado ao MCTI, como
demonstra o Quadro 1. Desses 15 Fundos Setoriais, 12 destinam
seus recursos a setores específicos, como: petróleo, energia,
recursos hídricos, transporte, mineral, espacial, tecnologia
da informação, biotecnologia, automação, saúde, agronegócio
e transporte aquaviário. De acordo com Raeder (2011), os três
restantes são de natureza transversal, de forma que os recur-
sos são direcionados a qualquer projeto de qualquer setor da
economia, como, por exemplo: o Fundo Verde-Amarelo, desti-
nado às interações entre universidades e empresas; o Fundo de
Infraestrutura, o qual visa apoiar a melhoria da infraestrutura
de pesquisa das instituições públicas de C&T; o Fundo Amazônia,

7 O Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações


(Funttel) é coordenado pelo Ministério das Comunicações.

250
A influência do CT-Petro nas interações entre grupos de pesquisa
em Engenharia Química da região Nordeste e o setor produtivo

que fomenta atividades de pesquisa e desenvolvimento na


região amazônica.

Quadro 1 – Fundos Setoriais geridos pelo MCTI e marcos legais

Fundo Setorial Sigla Principal Marco Legal


Setorial de Petróleo e Gás
CT-Petro Lei n° 9.478 de 06/08/1997
Natural

Setorial de Energia CT-Energia Lei n° 9.991 de 24/07/2000

Setorial de Recursos
CT-Hidro Lei n° 9.992 de 24/07/2000
Hídricos

Setorial de Transportes
CT-Transporte Lei n° 9.992 de 24/07/2000
Terrestres e Hidroviários

Setorial de Recursos
CT-Mineral Lei n° 9.993 de 24/07/2000
Minerais

Setorial Espacial CT-Espacial Lei n° 9.994 de 24/07/2000

Verde-Amarelo FVA Lei n° 10.168 de 29/12/2000

Para a Amazônia CT-Amazônia Lei n° 10.176 de 11/01/2001

Setorial de Tecnologia da
CT-Info Lei n° 10.176 de 11/01/2001
Informação

De Infraestrutura CT-Infra Lei n° 10.197 de 14/02/2001

Setorial de Biotecnologia CT-Biotec Lei n° 10.332 de 19/12/2001

Setorial Aeronáutico CT-Aero Lei n° 10.332 de 19/12/2001

Setorial de Agronegócio CT-Agro Lei n° 10.332 de 19/12/2001

Setorial de Saúde CT-Saúde Lei n° 10.332 de 19/12/2001

Setorial de Transporte
Aquaviário e de Constru- CT-Aqua Lei n° 10.893 de 13/07/2004
ção Naval

Fonte: MCTI (BRASIL, 2012)

251
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

Os recursos desses Fundos, oriundos do FNDCT, são apli-


cados por meio de projetos selecionados mediante chamadas
públicas, cujos editais são publicados pelas agências executoras,
ou seja, pelo CNPq e a pela Financiadora de Estudos e Projetos
(Finep), esta última, secretaria executiva do FNDCT desde 1971.
O modelo de gestão dos Fundos Setoriais é baseado na existência
dos Comitês Gestores, sendo um para cada Fundo. Cada Comitê
é composto por um representante do MCTI, como também por
integrantes das agências de fomento à pesquisa, acadêmicos,
empresários e representantes do CNPq e da Finep. Em 2004, foi
estabelecida a criação do Comitê de Coordenação dos Fundos
Setoriais com o fito de integrar as ações de todos os Comitês.
O respectivo Comitê é formado pelo Ministro de CT&I e pelos
responsáveis dos Comitês Gestores de cada Fundo Setorial.
A política pública de CT&I dos Fundos Setoriais possui, em
sua formulação, certa preocupação regional. De acordo com Raeder
(2011), visando diminuir a histórica concentração da aplicação dos
recursos em PD&I nas regiões Sul e Sudeste, nove dos 15 Fundos
coordenados pela FNDCT definiram percentuais mínimos para
aplicações, os quais deveriam ser rigorosamente cumpridos, sendo
30% dos seus recursos destinados às regiões Norte, Centro-Oeste
e Nordeste, como é possível observar no Quadro 2.
Contudo o CT-Petro e o CT-Amazônia definiram o seu
próprio percentual de distribuição regional dos recursos. O
primeiro destinaria 40% ao Norte e ao Nordeste, já o segundo
direcionaria 50% ao desenvolvimento de pesquisas inovativas
voltadas à Amazônia Ocidental. O CT-Petro tem como objetivo
estimular: a inovação na cadeia produtiva do setor de P&G; a
formação e qualificação de recursos humanos; o desenvolvi-
mento, com o fito de aumentar a produtividade; a redução dos
custos e preços, como também de interações entre empresas,
universidades, instituições de ensino superior ou centros de
pesquisa do país e a melhoria da qualidade dos produtos do setor
(FINANCIADORA DE ESTUDOS E PROJETOS, 2015). De acordo com
Raeder (2011), além da preocupação com o processo inovativo no

252
A influência do CT-Petro nas interações entre grupos de pesquisa
em Engenharia Química da região Nordeste e o setor produtivo

setor de P&G, o respectivo Fundo também contempla questões


relacionadas aos impactos ambientais, como o desenvolvimento
tecnológico dos biocombustíveis.

Quadro 2 – Percentuais de recursos mínimos em


aplicações regionais dos fundos setoriais

Região com aplicações


Fundo % mínimo
mínima de recursos
CT-Petro Norte e Nordeste 40%

CT-Energia Norte, Nordeste e Centro-Oeste 30%

CT-Hidro Norte, Nordeste e Centro-Oeste 30%

CT-Transporte Sem definição de aplicação regional -

CT-Mineral Sem definição de aplicação regional -

CT-Espacial Sem definição de aplicação regional -

FVA Norte, Nordeste e Centro-Oeste 30%

CT-Amazônia Amazônia Ocidental 50%

CT-Info Sem definição de aplicação regional -

CT-Infra Norte, Nordeste e Centro-Oeste 30%

CT-Biotec Norte, Nordeste e Centro-Oeste 30%

CT-Aero Norte, Nordeste e Centro-Oeste 30%

CT-Agro Norte, Nordeste e Centro-Oeste 30%

CT-Saúde Norte, Nordeste e Centro-Oeste 30%

CT-Aqua Norte, Nordeste e Centro-Oeste 30%

Fonte: Raeder (2011), por intermédio das informações


fornecidas pelos marcos legais dos Fundos Setoriais.

Entre as fontes de recursos do CT-Petro, sendo a maioria


em comum com os outros Fundos Setoriais, a mais importante

253
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

é proveniente dos royalties da exploração e produção de P&G.


Mesmo com o considerável investimento do CT-Petro nas
atividades de PD&I no setor de P&G, é válido ressaltar que o
montante ainda é muito abaixo do que a Petrobras investe
em pesquisa. Segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás
Natural e Biocombustíveis (ANP) (2015), os investimentos em
PD&I da Petrobras, entre os anos de 1999 e 2010, foram de,
aproximadamente, R$ 5 bilhões. De acordo com Raeder (2011),
o CT-Petro aplicou cerca de R$ 740 milhões entre 1999 e 2010, o
que representa apenas um sétimo do investimento da Petrobras
em período semelhante. Devido à Cláusula de Investimento
em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), estabelecida em 1998,
a referida empresa é obrigada a investir 1% da receita dos
campos de P&G em atividades de PD&I. Além da Petrobras
interagir diretamente com diversas universidades brasileiras
e internacionais, ela possui o seu próprio núcleo de PD&I, o
Centro de Pesquisas e Desenvolvimento Leopoldo Américo
Miguez de Mello (CENPES), localizado no Rio de Janeiro. O
estado carioca corresponde à unidade federativa que mais
recebe recursos da Petrobras e do CT-Petro, devido não só
apenas à presença de grandes centros de PD&I e das principais
empresas do setor de P&G, mas também da Bacia de Campos,
a mais produtiva do país.
Segundo Raeder (2011), o CT-Petro não cumpriu o investi-
mento mínimo, previsto em sua formulação, nas regiões Norte
e Nordeste entre 1999 e 2010. Observando a Figura 1, é possível
notar que os investimentos, nessas duas regiões, chegaram a
quase 30%, e não aos 40 % previstos em lei. Em contrapartida,
o Sudeste, nesse período, englobou praticamente a metade dos
recursos do CT-Petro, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro.
A região Sul, apesar de receber menos recursos que o Nordeste,
só possui três estados, ou seja, a partilha do montante é menor
que a que ocorre entre os nove estados nordestinos.
Portanto, por meio das colocações aqui expostas, podemos
concordar com Raeder (2011) ao alegar que a concentração do

254
A influência do CT-Petro nas interações entre grupos de pesquisa
em Engenharia Química da região Nordeste e o setor produtivo

direcionamento dos recursos do CT-Petro para regiões Sul e


Sudeste segue os padrões da grande parte dos investimentos em
PD&I realizados no país. Tal direcionamento desigual influencia
o desenvolvimento das interações entre os grupos de pesquisa
em Engenharia Química do Nordeste e o setor produtivo.

Figura 1 – Recursos destinados pelo CT-Petro às regiões


entre 1999 e 2010, em percentuais aproximados

Fonte: elaboração própria, baseada em Raeder (2011) e


nos dados fornecidos pelo MCTI (BRASIL, 2012)

A influência do CT-Petro nas interações


entre os grupos de pesquisa em Engenharia
Química do Nordeste e o setor produtivo
No Brasil, o primeiro curso superior em Engenharia
Química foi fundado em 1922, na Universidade Presbiteriana
Mackenzie, em parceria com a Universidade do Estado de
Nova Iorque (University of the State of New York). Após o pio-
neirismo da Mackenzie, inúmeras instituições de ensino

255
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

fundaram o curso superior de Engenharia Química, colabo-


rando para o surgimento de grupos de pesquisa nessa área
de conhecimento.
Por intermédio do recorte temporal selecionado, por moti-
vos já mencionados, é viável avaliar a atuação do CT-Petro nas
interações entre os grupos de pesquisa em Engenharia Química
e as empresas dos diversos setores econômicos entre os anos
de 2004 e 2010. Segundo os Censos 2004 e 2010 do DGP/CNPq, é
possível notar um relevante crescimento no número de grupos
de pesquisa em Engenharia Química no Brasil, assim como em
suas interações com o setor produtivo. Contudo, mesmo com
a atuação do CT-Petro e de outros fatores, houve um aumento
na disparidade regional referente à distribuição espacial dos
relacionamentos entre os grupos e as empresas, como demonstra
a Tabela 1.

Tabela 1 – Evolução da distribuição espacial dos grupos de


pesquisa, grupos de pesquisa interativos e relacionamentos na
área de conhecimento da Engenharia Química – 2004 e 2010

Região geográfica 
Norte Nordeste Sudeste Sul BRASIL

Grupos 6 46 127 47 226

Grupos
2004

0 14 22 14 50
Interativos

Relacionamentos 0 91 96 105 292

Grupos 7 67 143 58 275

Grupos
2010

2 14 40 21 77
Interativos

Relacionamentos 5 65 185 185 440

Fonte: elaboração própria, a partir dos dados oferecidos


pelos Censos 2004 e 2010 do DGP/CNPq

256
A influência do CT-Petro nas interações entre grupos de pesquisa
em Engenharia Química da região Nordeste e o setor produtivo

Com a análise da Tabela 1, é possível notar que, em 2004, o


Sudeste englobava parcela considerável dos grupos de pesquisa
em Engenharia Química, assim como relacionamentos com o
setor produtivo, sendo, até hoje, a região mais relevante nessa
área de conhecimento. Nessa respectiva região, encontramos
as principais bacias de petróleo do Brasil, como também os
complexos de engenharia8 das grandes empresas petrolíferas,
as quais costumam recorrer às universidades com o intuito de
inovar em seus processos produtivos.
Realizando uma analogia entre os dados dos Censos 2004
e 2010, sistematizados na Tabela 1, notamos que o Sudeste
aumentou o número de grupos de pesquisa, assim como prati-
camente dobrou a quantidade de grupos interativos e de seus
relacionamentos com o setor produtivo. Tais fatos decorrem
do direcionamento dos recursos do CT-Petro para essa região,
sendo, praticamente, a metade daquilo que foi destinado a todo
o país; como também da capacidade de utilização dos recursos
provenientes do respectivo Fundo Setorial na produção de
inovações, seja na criação de núcleos internos de PD&I, seja na
interação com as universidades. Portanto, é possível perceber
que o Sudeste foi a região em que seus grupos de pesquisa
apresentaram o maior crescimento nas interações com o setor
produtivo no recorte temporal selecionado.
Em 2004, os grupos de pesquisa do Sul possuíam mais
relacionamentos com o setor produtivo do que os do Sudeste.
Por meio do direcionamento dos recursos do CT-Petro, em
2010, a respectiva região aumentou o número de grupos de
pesquisa, como também a quantidade de suas interações com
as empresas. Apesar de possuir menos grupos de pesquisa
interativos que a região Sudeste, assim como um menor número
de grupos de pesquisa em relação ao Nordeste, os grupos do
Sul se destacam na quantidade de relacionamentos com o setor
empresarial. Tal fato ocorre devido à presença, na região Sul,

8 Denominação utilizada por Santos (2006).

257
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

das duas principais universidades interativas nessa área de


conhecimento, a Universidade Regional de Blumenau (FURB)
e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), as quais,
conforme o Censo 2010 do DGP/CNPq, possuíam 127 relaciona-
mentos com o setor produtivo.
O Centro-Oeste, apesar de ter recebido 10,5% dos recursos
do CT-Petro entre 1999 e 2010, não possui nenhum grupo de
pesquisa em Engenharia Química cadastrado nos Censos 2004 e
2010 do DGP/CNPq. Acreditamos na hipótese de que os recursos
provenientes do respectivo Fundo Setorial tenham sido aplicados
em outras áreas de conhecimento que também contemplem
pesquisas direcionadas ao setor de P&G.
Entre os anos de 2004 e 2010, a região Norte é a que menos
possuía grupos de pesquisa em Engenharia Química. Mediante o
recorte temporal selecionado, nota-se que, por meio da contri-
buição do CT-Petro, o qual tem o Norte como uma de suas regiões
prioritárias, houve um singelo aumento no número de grupos de
pesquisa, como também o surgimento de dois grupos de pesquisa
interativos, inseridos na Universidade Federal do Pará (UFPA),
totalizando apenas cinco relacionamentos com o setor produtivo.
O Nordeste (outra região que, na formulação da política
pública de CT&I do CT-Petro, foi privilegiada no direcionamento
dos recursos; mas que, junto com o Norte, só recebeu 30% dos
40% dos recursos previstos por lei), aumentou consideravelmente
o número de grupos de pesquisa em Engenharia Química; porém,
na região, houve uma queda na quantidade dos seus relacio-
namentos com o setor produtivo, aumentando a disparidade
regional referente à distribuição espacial das interações. A
respectiva ocorrência pode ser justificada pelo não cumprimento
do que estava previsto na elaboração do CT-Petro, como também
pela queda no número de relacionamentos entre os grupos de
pesquisa da Bahia com as empresas, já que, pontualmente, houve
um aumento na quantidade de relacionamentos em algumas
Unidades Federativas dessa região, como demonstra a Tabela 2.

258
A influência do CT-Petro nas interações entre grupos de pesquisa
em Engenharia Química da região Nordeste e o setor produtivo

Tabela 2 – Distribuição dos grupos de pesquisa, grupos de pesquisa


interativos e relacionamentos na área de conhecimento da Engenharia
Química por Unidade Federativa da Região Nordeste – 2004 e 2010

2004 2010
Unidade
Federativa Grupos Grupos Relacio- Grupos Relacio-
Grupos
Interativos namentos Interativos namentos
Alagoas 3 0 0 8 0 0
Bahia 11 7 59 8 2 7
Ceará 3 0 0 5 0 0
Maranhão 1 0 0 0 0 0
Paraíba 6 2 9 11 2 7
Pernambuco 8 3 16 15 8 40
Rio Grande
5 1 4 9 1 10
do Norte
Sergipe 9 1 3 11 1 1
NORDESTE 46 14 91 67 14 65
Fonte: elaboração própria a partir dos dados oferecidos
pelos Censos 2004 e 2010 do DGP/CNPq

A Tabela 2 expressa as modificações que ocorreram,


ocasionadas por inúmeros fatores, entre eles a atuação do
CT-Petro, na quantidade de grupos de pesquisa em Engenharia
Química nos estados nordestinos, as quais foram percebidas por
intermédio das análises dos dados que contemplam o recorte
selecionado, ou seja, o período que se estende entre 2004 e 2010.
No Censo 2004, o Rio Grande do Norte tinha cinco grupos,
sendo um interativo, o qual pertence à Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN). Em 2010, houve um aumento
para nove grupos de pesquisa. O grupo interativo potiguar de
2004 é o mesmo de 2010, sendo que ele ampliou a quantidade
de relacionamentos com o setor empresarial, a qual subiu de
quatro para dez interações. Esse salto no estado potiguar deve-
-se, além das contribuições do CT-Petro, à instalação em 2009

259
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

da Refinaria Clara Camarão no Polo Industrial de Guamaré, o


que colaborou para a implantação de inúmeras indústrias que
buscam inovação no entorno desse Polo Petroquímico.
Por meio do Censo 2004, é possível observar que o
estado de Sergipe possuía nove grupos, sendo um interativo
da Universidade Tiradentes (UNIT), o qual, com a leitura da
Tabela 3, percebe-se que contava com três relacionamentos
com empresas. Já no Censo de 2010, esse estado passou a ter 11
grupos, entre eles um grupo de pesquisa interativo inserido
na Universidade Federal de Sergipe (UFS), que mantinha um
relacionamento com uma empresa carioca. A Paraíba, em 2004,
possuía seis grupos de pesquisa, sendo dois interativos, per-
tencentes à Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
Em 2010, o número ampliou para 11 grupos, contudo os dois
grupos de pesquisa interativos eram os mesmos de 2004.

Tabela 3 – Distribuição dos grupos de pesquisa interativos e


dos relacionamentos com o setor produtivo por instituições
de pesquisa durante os anos de 2004 e 2010

2004 2010
Unidade Grupos de Grupos de
Instituição Relaciona- Relaciona-
Federativa  Pesquisa Pesquisa
mentos mentos
Interativos Interativos
UFBA 3 28 2 7
Bahia 
UNIFACS 4 31 0 0
UFCG 2 9 2 7
Paraíba
UFPE 3 16 6 20
CETENE 0 0 1 15
Pernambuco
UNICAP 0 0 1 5
Rio Grande
UFRN 1 4 1 10
do Norte
UFS 0 0 1 1
Sergipe
UNIT 1 3 0 0
NORDESTE 14 91 14 65
Fonte: elaboração própria a partir dos dados oferecidos
pelos Censos de 2004 e 2010 do DGP/CNPq

260
A influência do CT-Petro nas interações entre grupos de pesquisa
em Engenharia Química da região Nordeste e o setor produtivo

De acordo com Fernandes e Oliveira (2015, p. 9), “em


Pernambuco houve um considerável crescimento na quantidade
de grupos de pesquisa na área de conhecimento da Engenharia
Química”. Em 2004, existiam apenas oito grupos de pesquisa
pertencentes à UFPE, sendo três interativos, totalizando 16 rela-
cionamentos com as empresas. Já em 2010, a quantidade de grupos
de pesquisa aumentou para 15, quase o dobro, entre eles, oito
interativos, formando quarenta relacionamentos com o setor
produtivo. Como já apontamos em Oliveira e Fernandes (2015, p. 9),
além das contribuições do CT-Petro, outros fatores colabora-
ram para a ampliação dos grupos de pesquisa no estado de
Pernambuco, entre eles: a construção do Centro de Tecnologias
Estratégicas do Nordeste (CETENE) em 2005, o qual faz parte do
MCTI; a reativação do curso superior de Engenharia Química
na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) que ocor-
reu em 2006; a vinda de inúmeras empresas petroquímicas
ao Complexo Industrial Portuário (SUAPE); o investimento
em PD&I das grandes empresas do setor gesseiro da Chapada
do Araripe, sertão pernambucano.

Um fato muito curioso ocorreu na Bahia, que era o


estado nordestino com mais grupos de pesquisa em Engenharia
Química. Porém, em 2010, o número de grupos despencou de 11
para oito, o de grupos interativos de sete para dois, e a quan-
tidade de relacionamentos com o setor produtivo, de 59 para
apenas sete. Os grupos de pesquisa da Universidade de Salvador
(UNIFACS) deixaram de interagir, o que acarretou uma perda
de 31 relacionamentos com as empresas, como apontamos em
Fernandes e Oliveira (2015). A hipótese, levantada ainda em
Fernandes e Oliveira (2015), para tentar elucidar esse fato, é que
a UNIFACS redirecionou o seu foco, influenciada por fatores que
até então desconhecemos, voltando-se apenas para o ensino,
já que se trata de uma universidade particular.
Enquanto praticamente todos os estados aumentaram o
número de grupos de pesquisa e de seus relacionamentos com
o setor produtivo, por meio das contribuições do CT-Petro,
exceto Maranhão e Piauí, a Bahia foi o único que teve uma

261
Dinâmica territorial urbana, turismo e meio ambiente

queda tão brusca, o que influenciou no aumento da disparidade


regional entre as regiões Nordeste, Sul e Sudeste, referente às
interações entre os grupos de pesquisa em Engenharia Química
e as empresas.

Considerações finais
No decorrer da investigação, foi possível notar a impor-
tância da realização de uma análise integrada da política
pública, avaliando não só a sua formulação, como também sua
implementação. O CT-Petro, uma política pública de CT&I, em
sua formulação, contemplava 40% dos seus investimentos para
as regiões Norte e Nordeste; mas, em sua implementação, entre
1999 e 2010, destinou apenas 30% para as duas regiões, como
nos demonstraram Raeder (2011) e os dados secundários do
MCTI (BRASIL, 2013). Portanto, se tivéssemos negligenciado a
análise integrada da respectiva política, teríamos resultados
bastante abstratos.
Os recursos destinados às regiões Sul e Sudeste colabo-
raram para a criação dos grupos de pesquisa em Engenharia
Química e para o desenvolvimento de suas interações com o
setor produtivo. Diferentemente, o Nordeste, o qual recebeu
apenas 25,30% dos recursos do CT-Petro, apesar do aumento
considerável dos grupos de pesquisa, sofreu uma diminuição
no número de suas relações com as empresas, aumentando a
disparidade regional em relação ao Sul e Sudeste referente às
interações entre grupos de pesquisa em Engenharia Química
e o setor produtivo. Porém podemos notar um aumento consi-
derável em algumas unidades federativas dessa região, como
é o caso de Pernambuco.
Desse modo, é cabível alegar que, entre 2004 e 2010, o
CT-Petro contribuiu para o desenvolvimento das interações
entre os grupos de pesquisa em Engenharia Química e o setor
produtivo no Brasil, mas aumentou a disparidade regional em
relação a tais relacionamentos, já que houve um considerável

262
A influência do CT-Petro nas interações entre grupos de pesquisa
em Engenharia Química da região Nordeste e o setor produtivo

crescimento nas regiões Sul e Sudeste e uma expressiva queda


nas interações entre os grupos da região Nordeste e as empresas.
É válido também mencionar que o CT-Petro não é o único fator
que influencia o desenvolvimento das interações entre os grupos
de pesquisa em Engenharia Química e o setor produtivo, pois o
PIB, a presença de bacias de petróleo, das universidades e das
grandes empresas nas regiões colaboram para o desenvolvi-
mento dos relacionamentos entre ambos os agentes.
Em adição ao presente trabalho, seria interessante a
realização de uma análise que pudesse ampliar o recorte tem-
poral, incluindo na investigação os dados secundários do Censo
2001 do DGP/CNPq, com o intuito de avaliar a situação das
interações antes e depois da implementação do CT-Petro. Por
fim, a presente investigação visa contribuir para a análise de
políticas públicas de CT&I a partir de uma abordagem geográfica,
ressaltando as interações entre universidades e empresas como
fatores cruciais para o desenvolvimento do processo inovativo
e, consequentemente, para o desenvolvimento regional.

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Este livro foi projetado pela equipe
editorial da Editora da Universidade
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