Um dia de fúria
Do dia 19 de março em diante, correntistas e poupadores, pessoas físicas e
jurídicas, só conseguiram sacar 50 mil cruzados novos, cerca de R$ 8,3 mil em
valores atuais. O restante seria devolvido, em 12 parcelas iguais, a partir de 16 de
setembro de 1991, acrescidas de correção monetária e juros de 6% ao ano. Na
semana da posse do presidente Collor, o ministro da Fazenda do governo Sarney,
Maílson da Nóbrega, decretou feriado bancário de três dias: 14, 15 e 16 de março.
Na terça, dia 13, o presidente do Banco Central, Wadico Bucchi, deu uma entrevista
a Folha de S. Paulo para tranquilizar a população: "A caderneta de poupança é
garantida por dois governos: o que entra e o que sai. Ninguém vai confiscá-la",
garantiu.
Na dúvida, correntistas e poupadores formaram longas filas nos caixas eletrônicos
durante o feriado bancário. Na segunda, 19, a situação nas agências se agravou.
Dez milhões de brasileiros, segundo estimativas da Federação Brasileira de Bancos
(Febraban), queriam tirar dúvidas com o gerente, conferir o valor do saldo ou sacar o
dinheiro da conta.
Boa parte preferiu gastar o que sobrou no supermercado ou guardá-lo em casa. Em
muitas agências, faltou dinheiro para tanta retirada. Por essa razão, muitos gerentes
chegaram a ser presos por não terem dinheiro suficiente em caixa para pagar os
saques de seus clientes.
Em Campo Grande (MS), um agricultor teve um dia de fúria ao confirmar que seu
dinheiro estava bloqueado. Ele tinha acabado de vender uma propriedade da família
e, com o objetivo de pagar os estudos dos filhos, depositado o dinheiro na caderneta
de poupança. Indignado com o confisco, entrou no carro, avançou na direção de
uma agência do Banco Safra e estilhaçou a porta de vidro.
"O dinheiro aplicado nas cadernetas de poupança não era um dinheiro qualquer.
Para muitos, era a motivação para se viver, o meio para se atingir um sonho ou a
esperança de cura para uma doença grave. Era a garantia de uma velhice digna ou
a chance de ajudar um ente querido em dificuldade", afirma a jornalista e
historiadora Francine de Lorenzo Andozia, autora da dissertação de mestrado
Passaram a Mão na Minha Poupança - Um Estudo sobre o Impacto do Plano Collor
no Cotidiano da População Brasileira Urbana em 1990 (2019), da USP. "Ao anunciar
o bloqueio das poupanças, a ministra Zélia confiscou não apenas o dinheiro, mas,
também, a dignidade das pessoas", disse Andozia.
Sonhos interrompidos
No comércio, a situação não era lá muito diferente. Sem dinheiro, os consumidores
mudaram seus hábitos e as lojas ficaram completamente vazias. O que não foi
confiscado pelo governo era usado para fazer supermercado, pagar contas e
comprar remédios.
Para não fechar as portas, donos de bares e restaurantes passaram a aceitar
cheques e a vender fiado. De Norte a Sul, negócios foram desfeitos, viagens
canceladas, casamentos adiados. O prejuízo, dizem os especialistas, foi
incalculável. E, na maioria dos casos, irreversível.
Um empresário de Blumenau (SC), prestes a expandir seus negócios, ficou só com
uma loja. Endividado, passou a tomar empréstimos e a hipotecar bens. Não
aguentou. Em 1999, aos 60 anos, morreu de infarto. Não foi um caso isolado. Pelo
Brasil afora, milhares de empresários não tiveram como honrar seus compromissos.
Foram obrigados a suspender pagamentos e a demitir funcionários. A maioria foi à
falência.
No dia 19 de março, apenas três dias depois do anúncio do pacote econômico, um
dentista de Campos (RJ) tirou a própria vida, com um tiro no ouvido. Sua família
relatou à polícia que ele caiu em depressão ao saber que suas economias,
depositadas na caderneta de poupança, tinham sido bloqueadas. Com o dinheiro,
ele planejava comprar um apartamento em Niterói (RJ) para os filhos.
"Não tenho conhecimento de aumento das taxas de suicídio, que possa ser
associado às medidas econômicas. Falências podem ter havido, mas são parte da
dinâmica natural de uma economia competitiva", minimiza o ex-presidente Fernando
Collor de Mello.
"Não foram os eventuais erros, se os houve, mas os acertos do Plano Collor que
possibilitaram a estabilização da economia brasileira. Sem ele, a contenção da
escalada inflacionária e a modernização do país teriam sido adiadas talvez por anos,
com consequências irreversíveis para o desenvolvimento nacional", disse Collor.
Os bastidores do plano A ministra Zélia não foi a única a participar da coletiva de
imprensa que anunciou o Plano Collor. Antônio Kandir, o secretário especial de
Política Econômica; Eduardo Modiano, o presidente do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e Ibrahim Eris, o presidente do
Banco Central, fizeram parte da mesa.
A escolha de Ibrahim Eris para integrar a equipe econômica, aliás, se deu da
maneira mais inusitada possível. Quem conta é o escritor Fernando Sabino no livro
Zélia, Uma Paixão (1991): "Zélia pretendia falar com Ibrahim Elias, antigo colega
seu, mas a secretária, por engano, ligou para Ibrahim Eris. - Bom, já que é você -
disse ela, surpreendida -, precisamos conversar".
O livro de Sabino, escrito a partir de informações dadas pela própria Zélia, traz pelo
menos mais duas revelações curiosas: a poupança só foi incluída no bloqueio no
último momento - a princípio, a medida atingiria apenas as aplicações do "overnight"
- e o valor a ser confiscado só foi decidido na noite anterior ao anúncio, durante uma
festa-surpresa no resort Academia de Tênis, às margens do Lago Paranoá, em
Brasília - os valores de 20 mil e 70 mil também foram cogitados.
"Sempre que tem um problema, Zélia gosta de dar uma trégua para se distrair,
deixando o subconsciente trabalhar. Escreveu num papel os números 20, 50 e 70 e
voltou à festa", escreveu Sabino. "Ao regressar, havia optado pelos 50 mil".
Hoje, será que a ex-ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, se arrepende de
algumas das medidas tomadas em 1990? Se pudesse voltar no tempo, faria algo
diferente?
"Se pudesse voltar atrás com as informações que tinha naquele momento, não
mudaria nada", avalia a economista. "Trinta anos depois, provavelmente, não teria
tomado algumas medidas e teria tomado outras", disse a ex-ministra.
O drama de milhões de brasileiros que tiveram seus sonhos interrompidos pelo
Plano Collor ganhou as telas da TV, em novelas como Rainha da Sucata (1990), de
Silvio de Abreu; as salas de cinema, em filmes como Terra Estrangeira (1996), de
Walter Salles e Daniela Thomas; e as prateleiras das livrarias, em romances como A
Felicidade é Fácil (2011), de Edney Silvestre. Neste, Bárbara é "uma das milhares,
se não milhões, de vítimas do Plano Collor". Aos 17 anos, ela resolve entrar
ilegalmente nos EUA, para ganhar a vida como faxineira e manicure. Ex-
correspondente internacional do jornal O Globo e da TV Globo, Silvestre garante ter
conhecido muitas "Bárbaras" em Nova York, onde morou de 1991 a 2002.