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Ovidio Metamorfoses Edicto bilingue Tradugto, introdugto enotas de Domingos Lucas Dias Pres kien eee eUt cee) en ice) RPHOSE Colle kr) © jovem que neles triunfasse, no pugilato, na corrida, fosse a pé ou fosse de carro, recebia como distingdo uma coroa de carvalho.5! O loureiro™ nao existia ainda e FeboS3 cingia a sua bela fronte de longos cabelos com o ramo de uma drvore qualquer. [Apolo e Dafne] O primeiro amor de Febo foi Dafne, filha de Peneu.54 Esta paixio nio foi obra de um cego acaso, mas do violento rancor de Cupido. O deus de Delos,*S orgulhoso da recente vitéria sobre a serpente, vira Cupido a dobrar 0 arco, retesando-lhe a corda, e disse-lhe: “Que tens tu a ver, jovem folgazao, com essas pesadas armas? Isso so apetrechos mais préprios para os meus ombros, pois posso ferir certeiramente uma fera ou um inimigo. Ainda agora abati com incontdveis setas a soberba Piton que cobria com seu pestifero ventre tao grande extensao de terra. Satisfaz-te tu em espicagar com a tua tocha nfo sei bem que amores € nao te candidates a glorias que s6 a mim pertencem!” Responde-lhe o filho de Vénus: “Olha, Febo, teu arco pode ferir tudo. O meu vai ferir-te a ti. Quanto os animais sao inferiores a um deus, tanto a tua gléria é inferior 4 minha.” Assim falou e, cortando 0 ar com 0 batimento das asas, chega num instante ao frondoso cimo do Parnaso. De sua aljava cheia tira duas setas com fungées distintas. Uma afugenta, a outra faz brotar o amor. A que o faz nascer é dourada, com uma ponta aguda e brilhante. A que o afugenta é romba e tem chumbo no coragao da cana. Esta cravou-a o deus na ninfa, filha de Peneu. Com aquela feriu a medula de Apolo, varando-lhe os ossos. 51 Arvore especialmente consagrada a Juipiter. * A drvore de Apolo. *3 Outro nome de Apolo. * Deus-rio da Tessélia. 5 Apolo. Livro I Logo um se cnamora, $6 de ouvir a palayra amante, sta Fehe,!” comprazia-se ela Ga. logo a outra foge. Emula da c com os reconditos da floresta ¢ com os despojos da c Com uma fita, prendia 08 cabelos cafdos ao acaso. Quiseram-na muitos. Ela, desdenhando deles, livre ¢ sem paciéncia para um marido, percorre os solitarios bosques sem querer saber o gue sejam Himencu, amor ¢ 0 cai Tantas vezes o pai the disser: O pai Ihe disser Odiando ela as tochas nupciais como se fora um crime, amento, ilha, deves-me um genro.” ne, filha, uns netos.” ‘a Outras tantas vezes: “Deve cobrira seu belo rosto de um rubor envergonhado e, langando seus ternos bragos ao pescogo do pai, diz-lhe: “Consente, pai querido, que cu perpetuamente goze da minha virgindade. Jé antes 0 pai de Diana Ihe consentiu 6 mesmo.” Ele consentiu, mas nao consente a tua clegincia que sejas © que pretendes! Com teu voto contende a tua beleza. ela. Febo esta apaixonado. Ao ver Dafne, quer unir-se Eo que cle deseja, espera-o. Seus proprios oraculos o enganam.5” Como arde o restolho depois da ceifa das espigas,5# como ardem as sebes por causa do facho que o viajante aproximou demais ou abandonou ao nascer o dia, assim se inflama o deus, assim ele se abrasa no fundo do seu coragio ¢, esperando, alimenta um enganos« mor, Contempla os cabelos da ninfa, que, em desalinho, caem sobre 0 dorso e diz: “O que seria se penteados fossem"! Vé-he os olhos brilhantes de fogo, que parecem astros. Vé-lhe a boca que nao se cansa de olhar. Elogi Ihe os dedos, as mos, 0 antebraco, te desnudos. A parte coberta mais perfeit 08 bracos, em grande the parece ainda. E € nao se detém as palavras do deus, que a cham afasta-se, mais célere do que a leve bris % Febe, a Brilhante; Diana, irma de Febo. honk Ad nin prever que jamais seria correspondido. * & ceifa faria-se colhendo apenas as espigas. A palha ficava € era queimada, ey Livro} 4Ninfa, rogo-te, filha de Peneu, espera! Nao te sigo como inimigo, spera, ninfal Foge assim a ovelha do lobo, assim foge a corga ao ledo, ¢, de asa trepidante, fogem assim as pombas a dguia, cada qual fugindo a § Aide mim! Vé, nao caias, ou que os espinhos nao marquem tuas pernas, belas demais para serem feridas, e que eu nao seja para ti causa de afligo! Sao dsperos os lugares por onde agora corres. Pego-te, vai mais devagar, sustém a corrida! Eu préprio irei mais devagar também. Procura saber a quem agradaste! Nao sou um serrano, nem sou um pastor, Nao apascento por aqui, como pastor rude, nem vacas nem cabras. Nao sabes, imprudente, nao sabes de quem foges ¢, contudo, foges. Obedecem-me o pais de Delfos,? Claros, Ténedos,*! ¢ a casa real de Patara.© £ JGpiter o meu pai. Por mim se revela o que sera, 0 que foi e o que é. Por mim se harmoniza 0 poema com o som da lira. 1 inimigo, Eu tenho 0 amor como causa de persegui¢ao. E certeira a minha seta. Mais certeira do que a minha existe uma outra, que feriu o meu livre coracao. A medicina é invento meu. Por todo o mundo me chamam salutar, pertence-me o poder das plantas. Ai de mim, que o meu amor nio ha planta que o cure, as minhas artes, que a todos servem, nao servem ao dono.”63 Febo vai falando, enquanto a filha de Peneu, assustada, prossegue a sua corrida e o deixa a falar sozinho. E ainda entao lhe parecia bela. O vento desnudava-lhe o corpo € 0 sopro contrario langava-lhe para tras os vestidos. Uma leve brisa repuxava-lhe os cabelos para as costas. A fuga realcava a sua beleza. Mas o jovem deus id no esta disposto a perder mais palavras de afeto * Onde o deus tem os seus ordculos ¢ onde se celebram os Jogos Piticos. © Cidade da Jonia, famosa pelo templo de Apolo. ® Pequena ilha frente a Troia. Cidade da Licia. 8 . ; i i dag. APO's flo de Zeus ¢ de Latona, é 0 deus da profecia ¢ da adivinhagio, deus 8 artes, particularmente da miisica, é o deus arqueiro e senhor da me ft Livro I ¢, instigado pelo Amor, segue-the os passos, estugando a marcha. Como um cao da Gilia, quando avista uma lebre em terteno aberto,“ confia ele as pernas a possibilidade de alcancar a presa, ¢ esta a elas confia a sua salvagio; um, prestes a alcangé-la, espera logo té-la ¢, de pescogo estendido, reforca a corrida; a outra, sem saber se foi apanhada, furta-se as dentadas e deixa para tras as fauces que a rogam ja. Assim se passa com o deus e a virgem. Ele, veloz, em razio da esperanga; ela, em razao do medo. O perseguidor, levado pelas asas do Amon, € mais rapido, recusa o cansaco, esta jd sobre a fugitiva, aspira-lhe o cabelo caido pelas costas. Consumidas as forgas, ela empalidece. Vencida pela canseira de tio veloz fuga, olhando as aguas do Penew, grita: “Pai! Socorro! Se é que vés, 0s rios, tendes algum poder divino, destréi e transforma esta aparéncia pela qual agradei tanto.” Mal havia acabado a prece, invade-lhe os membros pesado torpor, seu elegante seio é envolvido numa fina casca, cresce-lhe a ramagem no lugar dos cabelos ¢ 0s ramos no lugar dos bragos. O pé, tao veloz ainda agora, fica preso qual forte raiz. A sua cabega é copa de arvore. $6 0 brilho nela se mantém.® E Febo ainda a ama. Pousando-lhe no tronco a mao, sente ainda o palpitar do coracio sob a nova casca. E, abracando os ramos no lugar dos membros, beija a madeira. Mas, ao beijo, a arvore retrai-se. Diz-lhe o deus: “Jé que nao podes ser minha mulher, serés certamente a minha drvore. Estarés sempre, loureiro, na minha cabeleira, na minha citara e na minha aljava. Acompanhards os generais do Lacio, quando alegres vozes entoarem cantos de triunfo e 0 Capitélio vir a sua frente os longos cortejos.% © Os romanos apreciavam varias racas de cies da Galia, sobretudo o galgo. *5 Como brilhantes sao as folhas do loureiro. © Referéncia & coroa de louros com que eram coroados os generais vencedores na ceriménia do triunfo. 83 Livro 1 Elevar-te-ds, guardia fiel, frente 4s portas de Augusto e protegeras a coroa de carvalho que a encima.” Como a minha cabega, de cabelos intonsos, mantém a juventude, mantém tu também a gloria de uma folhagem permanente.” Acabara Pea® de falar. O loureiro anuiu com a fronde nova € o deus viu-o agitar a copa como se fora a cabega. [lo] Em Heménia® ha um prado que uma escarpada floresta circunda em toda a volta. Chama-se Tempe. O Peneu, que nasce no sopé do Pindo, faz rolar pelo meio dele as suas espumosas Aguas. De uma funda queda, faz levantar nuvens de leves vapores, que voltam a cair em goticulas sobre a copa das arvores €, com 0 estrondo, perturba para Id das zonas vizinhas. E esta a morada, esta a residéncia, este o santudrio do grande rio. Sentado numa gruta cavada na rocha, ai dava ordens as aguas € as ninfas que habitam as Aguas. Os rios redinem-se ali, ¢, primeiro, os das redondezas, sem saberem se devem felicitar ou devem consolar aquele pai: 0 Esperquio, ladeado de choupos, 0 turbulento Enipeu, © velho Apidano, o ameno Anfriso e o Eante. Vém depois os outros que, por onde quer que o seu impeto os leve, conduzem para o mar as 4guas cansadas de andancas. $6 {naco falta. Escondido no fundo da gruta, com as suas lagrimas aumenta as suas 4guas, e o infeliz chora Io, a filha, como se fora perdida. Nao sabe se desfruta da vida 0u se esta junto dos manes. Mas, ao no a encontrar em parte nenhuma, cré que nao esta em nenhuma parte e, em seu espirito, receia o pior. __ © Parece que assim era, que a porta do palacio de Augusto estava ladeada por dois lourciros. * E 0 epiteto ritual de Apolo, “o deus que cura”. Antigo nome da Tessdlia. es Livro |

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