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Às vezes se eu me distraio
Se eu não me vigio um instante
Me transporto pra perto de você
Ruth – Everyday
Forcei as pernas a pedalarem mais depressa,
apesar de claramente estar no meu limite. Mesmo o
condomínio onde morava sendo apenas a alguns minutos
de distância da universidade, o meu bairro abrigava uma
profusão enorme de estudantes que, naquele momento,
faziam calmamente o mesmo caminho que eu. E isso
dificultava muito a tarefa de tentar chegar o quanto antes à
aula de Produção Textual. Eu me perguntava como todas
aquelas pessoas podiam caminhar com tamanha
tranquilidade, quando faltavam apenas minutos para
começar a aula. Eu, por exemplo, estava em pânico.
Jamais fui o tipo de pessoa que se atrasa para
qualquer coisa. Como disse, possuía a vida inteira
planejada previamente na minha agenda pessoal. Eu a
levava muito a sério, justamente para evitar qualquer tipo
de imprevisto.
No entanto, as decisões erradas já haviam
começado no dia anterior, quando dei ouvidos ao meu
amigo, Arthur, e concordei em ir à festa da República
Belas Tetas. Ao me lembrar desse detalhe, gargalhei sem
me importar com o quanto deveria parecer insana,
pedalando em ritmo frenético e rindo sozinha de,
aparentemente, nada. Senhor, eu ainda não me conformava
que tinha mesmo estado em um lugar com aquele nome!
Não voltei a dormir depois de ele ter me
acordado. Em vez disso, tive a péssima ideia de ir até o
centro, à tarde, resolver o problema da chave da qual
ainda não tinha tirado uma cópia para mim. Mas, antes de
continuar nas minhas desventuras, eis um fato importante
sobre Maringá: ela era uma cidade quente. E não falo de
um calor gostoso, como julguei de maneira precipitada e
completamente equivocada nas primeiras semanas
morando lá. Não, Maringá era quente como o inferno. A
sensação de andar pela cidade no verão era semelhante a
ter línguas de chamas subindo pelos membros, em
lambidas ardentes. Agora, some isso a um organismo
judiado por uma ressaca desgraçada. Pronto, acho que deu
para imaginar o dia de cão que tive. Porque foi
exatamente isso. Um dia de cão.
Sabe quando tudo parece conspirar contra você?
Todas as coisas que podem dar errado acontecem de uma
só vez? Que você se pergunta por que diabos saiu da
cama? Pois bem. Esse era um desses dias, com o
agravante de eu estar suando frio e me segurando para não
vomitar na frente de tanta gente.
Por isso, ali estava eu, correndo contra o tempo
para não me atrasar na única aula em que não podia.
Arthur foi tão enfático ao me alertar sobre a intolerância
de Adônis com a falta de pontualidade. Eu tremia só de
imaginar a péssima imagem que causaria se não chegasse
a tempo. Seria como assinar um atestado de Odeie-me, e
isso eu não queria de forma alguma. Sempre fui a
predileta de todos os professores na época do colégio, e
ali não poderia ser diferente.
De toda a forma, meu estômago embolava só de
pensar no homem que estava causando tanto alvoroço no
curso de Letras. Quero dizer, ontem, na festa, não parecia
existir outro assunto que não fosse sobre O Carrasco. Eu
achava o apelido um pouco forte, ainda mais levando em
consideração o fato de todos o terem conhecido
recentemente. Ainda não dava para saber como ele
realmente era. E se fosse apenas um dia ruim? E se tivesse
apenas batido o carro naquele mesmo dia? Ou talvez a
geladeira tivesse parado de funcionar? Ninguém precisava
estar bem o tempo todo e eu era a prova viva disso.
Encontrava-me em um péssimo dia. Quem sabe ele não
provasse, nas próximas aulas, estarem todos enganados?
Imersa em pensamentos, tranquei a bicicleta no
suporte e corri em direção ao meu bloco, verificando o
relógio no pulso esquerdo a cada dois segundos. Que a
força esteja comigo, que a força esteja comigo,
mentalizava copiosamente, desviando de alunos tranquilos
demais. Aquele era o meu mantra e sempre dava certo.
Enquanto subia o lance de escadas (pulando os
degraus de dois em dois), sobressaltei-me ao perceber
que o celular começava a tocar. Isso é hora?, pensei
irritada, tateando os bolsos nos meus shorts jeans em
busca do aparelho. A melodia chamou a atenção de alguns
olhares curiosos. Era Quase Sem Querer, da Legião
Urbana. Atrapalhei-me com as mãos e quase o deixei
estatelar-se no chão.
— CUIDADO!
Abri os olhos, sobressaltada. Tateei a cama em
busca do celular e, tão logo o alcancei, descobri ser
pouco mais de três da manhã. Com o coração batucando
de maneira violenta contra a caixa torácica, esperei os
olhos se acostumarem com a escuridão do quarto, lutando
para organizar os pensamentos caóticos o mais depressa
possível.
Um grito, eu ouvira um grito.
Não no meu sonho, mas ali no prédio. Foi a razão
para eu ter acordado de maneira tão repentina. A voz
ainda ressoava na minha mente, angustiada, sofrida e tão
alta que parecia ter vindo de algum cômodo do
apartamento. Um arrepio percorreu minha espinha e
resolvi levantar para averiguar se Arthur tinha mudado de
ideia e voltado para casa. Caminhei até a parede oposta,
tocando-a em pontos variados, em busca do interruptor. A
luz feriu meus olhos. Pestanejei até adequar a visão.
— CUIDADO! — um novo urro reverberou pelas
paredes, varrendo a cor para longe do meu rosto.
Pela máscara do Vader, o que foi isso?, pensei
comigo mesma, notando minhas mãos ligeiramente
trêmulas. Mudando de ideia, atravessei novamente o
quarto, a fim de buscar alguma pista pela janela. Lá em
baixo, o estacionamento se encontrava deserto. Se fosse
um filme de faroeste, provavelmente seria a cena em que
uma bola de feno passaria rolando com o vento. Não tinha
ninguém. As folhas nas árvores farfalhavam com o
constante sopro do vento e, no céu, a lua minguante
refletia uma luz pálida.
Suspirei fundo, resignada. Destranquei a porta do
quarto e perambulei pelo apartamento como uma alma
penada, em busca de algo fora do meu alcance. Pesquei a
garrafa de água dentro da geladeira, despejando uma
quantidade razoável em um copo de vidro estampado com
corações. Sentia-me incapaz de afastar da cabeça a
lembrança dos berros. O dono deles parecia tão
atormentado e cheio de dor... Era difícil ignorar a
urgência com a qual clamara. E o mais estranho era não se
tratar de um pedido de socorro, ou uma demonstração de
medo.
Ele gritara “cuidado”. Mas cuidado com o quê?
Esfreguei o rosto, constatando ter perdido
qualquer resquício de sono. Como poderia voltar a dormir
depois de uma súplica como aquela? Depositei o copo
dentro da pia e, no mesmo instante, fui surpreendida pelo
som de uma porta sendo destrancada e aberta. Ouvi tão
claramente que poderia ter sido ali dentro. Sem pensar
muito, percorri a distância até a entrada do apartamento,
repetindo as ações da pessoa ao lado de fora. Dentro de
mim, existia a certeza de ser o dono do grito. Eu não sabia
exatamente o porquê, mas precisava descobrir mais a
respeito. Bem, ele havia me acordado, então essa já era
uma boa desculpa.
Não encontrei ninguém no andar e, por isso, desci
as escadas apressada, tomando cuidado para não embolar
as pernas. Somente na metade do caminho fui me dar conta
de que me achava descalça e ainda vestindo um pijama
estampado com inúmeros Stormtroopers. Minhas
bochechas queimaram, porém segui o caminho mesmo
assim. Eu perdi o juízo, só pode ser isso, pensei comigo,
começando a calcular as inúmeras razões para não ser
uma boa ideia seguir uma pessoa desconhecida na calada
da noite. No entanto, eu apenas não conseguia virar as
costas e subir. Sentia-me atraída tal como as abelhas são
atraídas pelo açúcar.
Quando alcancei o térreo, reconheci a silhueta
alguns metros a minha frente mesmo que o dono dela
estivesse contra a luz. Chewbacca. Ou melhor, o professor
Adônis. Conforme me aproximava de maneira hesitante,
meus olhos foram captando fragmentos da imagem. Eles
me deixaram atordoada ao extremo.
Ele vestia apenas uma bermuda de moletom preta,
os pés descalços como os meus e o tronco nu. Reparei na
tatuagem nas costas, pouco abaixo do ombro. Tratava-se
uma sereia, constatei ao chegar um pouco mais perto, feita
em escala de cinza, cujos enormes cabelos ondulados
espalhavam-se ao redor dela. Um lindo desenho feito por
um ótimo profissional.
Chewie fumava outro cigarro e, tão logo senti o
aroma de menta no ar, entendi a razão para o seu hálito ter
aquele cheiro. Então, observando-o ali em seu momento
tão íntimo, comecei a me questionar sobre o que, de fato,
eu pretendia fazer. Já o conhecia minimamente para
imaginar a sua reação. Provavelmente seria grosseiro e
me mandaria arrumar algo para me ocupar. Preparei-me
para subir novamente, querendo dar uma última olhada no
corpo forte e alto dele. Exatamente como o verdadeiro
Chewbacca. Jamais existiu apelido que funcionasse tão
bem para alguém quanto esse funcionava para Adônis.
Como que pressentindo a minha presença, meu
vizinho olhou por cima dos ombros, a surpresa tomando
seu rosto em questão de segundos. Os olhos, pela primeira
vez, não me fitaram com raiva, mas sim com curiosidade.
Então, o inesperado aconteceu — ele deu um passo para o
lado, fazendo um gesto com a cabeça como se me
convidasse para lhe fazer companhia. Mordi o lado de
dentro da bochecha, cursando o trajeto até a posição
indicada.
Senti o peso do seu olhar e, ao buscá-lo, deparei-
me com as íris de Outono me estudando com atenção. Da
mesma maneira como fizera na aula, tão intensamente a
ponto de eu me sentir desnuda.
— Já é tarde — comentou e, apesar de
despreocupado, tinha o tom impaciente de sempre. Como
se, de maneira inconsciente, me alertasse a ficar longe. —
A donzela deveria estar dormindo a uma hora dessas.
— Eu estava.
— E por que não está mais?
— Pela mesma razão que você também não —
respondi, arrependida por ter descido. Onde eu estava
com a cabeça, no fim das contas?
Tragando o cigarro com vontade, Chewie desviou
a atenção para um casal em uma moto particularmente
barulhenta, que acabava de chegar. Observei-os
estacionar, imaginando onde poderiam ter passado a
madrugada de uma quarta-feira. Minha imaginação sempre
foi muito fértil e, por isso, fiquei tão entretida que ouvir a
voz do professor Adônis próxima da minha orelha me fez
pular de susto.
— Desculpa te acordar — disse simplesmente,
deixando a voz morrer o ar.
— Então foi você?
A memória do rugido retornou muito vívida à
minha mente. Cuidado!, tratava-se de um pedido
excessivamente simples. Porém, a maneira como foi feito
e a urgência naquele berro desentoado... De repente me vi
sem fôlego.
— Se estou pedindo desculpas... — murmurou ele,
carregado de ironia.
Seus olhos passearam pela estampa do meu pijama
e um sorrisinho rasgou os lábios. Meu rosto esquentou em
um misto de vergonha e raiva. Por que ele precisava ser
sempre tão grosseiro, sempre tão fechado?
Ignorando o alerta dado pelo meu subconsciente,
de virar as costas e deixar o Chewbacca mal humorado
para trás, aproximei-me dele um passo, motivada a
descobrir a razão dos gritos. Afinal, uma pessoa não
berrava no meio da noite sem um bom motivo.
— O que houve?
— Hum? — Ele arqueou as sobrancelhas,
estudando-me com atenção.
— Para você gritar... daquele jeito.
— Daquele jeito como?
Sua voz aumentava o tom a cada nova pergunta
feita por mim. Por Bilbo Bolseiro, aquele cara parecia um
cão raivoso prestes a avançar a qualquer momento!
Abracei o próprio tronco, na tentativa de me proteger do
seu crescente descontentamento com a situação.
— Eu não sei... Como se alguma coisa horrível
estivesse prestes a acontecer na sua frente.
Minhas palavras acionaram algum gatilho, pois
Chewie fechou a cara em uma carranca assustadora. Suas
grossas sobrancelhas se uniram, formando vincos na testa.
Ele levou a mão direita ao cabelo e afundou os dedos
compridos nele. Balançou a cabeça negativamente, tão
indignado como se eu tivesse acabado de pedir para se
despir ali mesmo. O que não seria bem uma má ideia...,
fui surpreendida pelo pensamento e respirei fundo,
querendo recobrar o juízo.
— Nada — respondeu. — Não aconteceu nada.
Pode voltar a dormir, donzela.
Por alguma razão inexplicável, o tom mandão me
deixou uma pilha de nervos. Isso e também o maldito
apelido que não tinha nada a ver comigo. Espera aí, se eu
estou acordada a culpa é dele! O mínimo que mereço é
uma explicação!
— Em primeiro lugar, tenho um nome. E, acredite,
não é donzela! Depois, deve ter acontecido, sim. Porque
ninguém fica berrando “cuidado” sem um motivo. Bom,
ninguém normal, né?
Chewie separou ligeiramente os lábios, surpreso
com a resposta. Então se aproximou até nossos narizes
quase se tocarem — isso se ele não tivesse quase dois
metros de altura, é claro.
— Escute aqui, donzela — proferiu entredentes,
frisando a última palavra. — Não sei exatamente em qual
momento você decidiu que era uma boa ideia se
aproximar de mim, mas não é! Então não perca seu tempo,
tudo bem?
— Eu... você... Argh! — Recuei um passo. — Seu
estúpido! Só tentei ser gentil!
Ao ouvir as últimas palavras, ele jogou a cabeça
para trás, soltando uma gargalhada nem um pouco
calorosa. Mordisquei a parte interna da bochecha, um
hábito terrível que piorava de acordo com o meu estado
de espírito.
— Não tenho boas lembranças da última vez em
que um de nós tentou ser gentil — murmurou mais para si
mesmo do que para mim. E, como não entendi, resolvi
ignorar.
Esfreguei o rosto, tentando varrer um pouco da
raiva para longe, mas já era tarde. Professor Adônis tinha
conseguido me envenenar com o seu amargor habitual.
— Você é um louco!
— E você, inconveniente.
Suas palavras permaneceram pairando pelo ar,
mesmo minutos após ele ter partido. Eu, por minha vez,
continuei paralisada no lugar, incapaz de entender como
conseguia colocar os meus sentimentos em ebulição com
tamanha facilidade.
As coisas não são mais como costumavam ser
Falta alguém dentro de mim
Vi você de longe
Imaginei quem você era
Imaginei como você era
Pensei que fazia o meu tipo
Chewie,
Talvez você não tenha percebido ainda, mas sua
agenda ficou comigo. Acho que peguei por engano um
pouco antes de fugir da sala de aula ontem à noite.
Prometo não ler nada se você prometer o mesmo. Este é
como um daqueles juramentos de mindinho e, portanto,
inquebrável.
Não que tenha alguma coisa importante por lá,
mas nunca se sabe, né?
Pretendo levá-la comigo para a minha cidade, só
por garantia. Arthur costuma ficar realmente curioso
quando está entediado e receio que estes quatro dias que
passará sozinho possam surtir esse tipo de efeito. Então
é melhor não arriscar.
Devolvo assim que eu estiver de volta. Desculpe
pelo inconveniente.
A propósito, aproveitando que estamos falando
— metaforicamente, é claro — sobre inconvenientes,
quero me desculpar por uma coisa da qual não tive a
oportunidade. Existe algo sobre as bebidas alcoólicas
que deveria estar impresso nos rótulos: elas são
malignas. É sério. O álcool vai parar na sua cabeça e
enquanto você dá risada pensando ser divertido, ele está
te metendo nas maiores confusões. Eu não recomendaria
nem para o meu pior inimigo. Tendo isso em mente,
saiba que a memória de certa noite envolvendo vômitos
dignos de filmes de terror e surtos psicóticos no
banheiro foi sob efeito dele (há uma grande chance de
você ter chegado a esta conclusão sozinho). Mas a
grande questão aqui é: eu não me lembrava de nada!
Fui bombardeada há alguns dias com essas
imagens embaraçosas e queria me desculpar pelo que te
fiz passar. Na verdade, muito obrigada por me ajudar
mesmo depois de eu ter te tirado do sério.
Estou te devendo uma.
Mas, por favor, não honre a fama de carrasco
quando for cobrar o favor.
Dê um beijo no Castiel,
Rebecca. (Não donzela, nem princesinha).
Qual é a nova?
Excelente timing, o seu. Acabei de sair da ótica.
Estou usando óculos.
Eu te mato!
Estou tirando print da conversa...
Rebecca!!!
É brincadeira, hahaha.
Eu também. Muita.
Hoje, aqui. Amanhã não se sabe
Vivo agora antes que o dia acabe
Neste instante, nunca é tarde
Mal começou e eu já estou com saudade
“Princesinha-donzela,
Você não me engana, ok? Sou levado a acreditar
que foi um plano muito bem arquitetado para parecer o
simples acaso. Mas estou de olho! Se você queria tanto
espionar minhas anotações, era só pedir com jeitinho
(igual quando veio contestar a nota, por exemplo).
É óbvio que eu jamais leria nada sem o seu
consentimento. Seria uma invasão de privacidade. Pode
ficar tranquila, afinal de contas, sou o Chewbacca, não
sou? Altamente confiável. Você, mais que ninguém,
deveria saber disso.
Sobre o tal evento traumático (essa é uma
palavra que você provavelmente diria), espero
tranquilizá-la repetindo algo que já falei antes: não
vamos remoer o passado.
E já que você tocou no assunto álcool, qual é
exatamente o seu lance com ele? Fiquei um pouco
preocupado com certa listinha intitulada como COISAS
PARA NUNCA MAIS FAZER. Não que eu tenha lido sua
agenda. Eu seria incapaz disso. Mas você sabe, existe a
chance de ela ter aberto acidentalmente e eu, sem a
intenção, passado os olhos sobre algo aqui ou ali.
Como, por exemplo, no adorável lembrete do dia
14/03: TRABALHO DAQUELE IDIOTA PARA
ENTREGAR!!!
Ou então o do dia seguinte: TENTAR TIRAR UMA
FOTO DO CHEWBACCA PARA COSTURAR NA BOCA
DE UM SAPO.
E talvez eu também tenha visto esse aqui, do dia
22/03: DONZELA É A VACA DA MÃE DELE!
Sobre estar me devendo uma: Castiel mandou
dizer que tem saudades. Que tal passar aqui para
devolver a minha agenda?
A.”
Daughter – Run
Balancei as pernas no ar, tentando manter os
olhos nas páginas amareladas do livro. Era um sábado de
tempo fechado, com fortes ventanias responsáveis por
portas batendo e janelas tremendo. Suspirei, sem
conseguir realmente me concentrar na leitura. Do lado de
fora, as vozes dos meus colegas de apartamento
repercutiam pelas paredes, muito altas e agitadas,
roubando toda a minha atenção.
Fechei o livro, resignada. Eu não conseguiria ler
enquanto eles não saíssem de uma vez por todas. Uma
república qualquer faria um churrasco open bar naquela
tarde. Eles passaram a semana comentando
exaustivamente a respeito e, claro, convidando-me em
todas as oportunidades possíveis. Minha resposta era
sempre não, pois queria aproveitar o dia para passear
pela cidade em minha Caloi verde-água e distrair a
cabeça da única coisa em que conseguia pensar
ultimamente. É desnecessário dizer o que — ou melhor,
quem —, né?
Calcei os chinelos e me arrastei até o quarto de
Nataly, de onde vinha toda a balbúrdia. Meus olhos
fizeram uma varredura pelo cômodo que aparentava ter
roupas até o teto. Ela marchava de um lado para o outro,
enquanto Arthur ajeitava os cabelos tranquilamente,
estudando o próprio reflexo no espelho.
— Você não viu mesmo a minha bota nova?
Aquela preta que termina no tornozelo?
— Jesus, Lily, quantas vezes preciso dizer que
não? Se eu tivesse visto, falaria logo para você parar de
andar igual a uma barata tonta.
Nataly estreitou as pálpebras, lançando um olhar
assassino para Arthur. Estava linda, como sempre. Os
cabelos trançados se encontravam presos em um rabo de
cavalo no topo da cabeça e os lábios grossos pintados
com um vibrante batom pink. Girando os calcanhares na
minha direção, ela finalmente se deu conta da minha
presença.
— Que susto!
— Desculpa. — Encolhi os ombros. — A
propósito, acho que vi sua botinha embaixo do sofá por
esses dias, já olhou lá?
Ela teve um estalo e, sem mais nem menos, saiu
como um raio pela porta. Lá de fora, sua voz veio em um
berro estridente.
— Está aqui! Você é foda, Becca!
Arthur e eu trocamos um olhar divertido e sorri
para ele. Embora estivesse se arrumando para uma festa
da qual havia falado a semana inteira, seus olhos
entregavam a preocupação e melancolia que o
acompanhavam desde o fatídico telefonema dos pais.
— Não quer mesmo ir? Mesmo, mesmo?
— Hoje eu passo. Preciso ficar um pouco sozinha.
— Tá bom, mas não vai ficar estudando a tarde
inteira, viu? Você precisa se distrair um pouco.
Uni as sobrancelhas, fingindo indignação.
— Sério que seu conselho como amigo é esse?
— Hoje é sábado. Além disso, as provas já
terminaram. E aposto que você não tem nenhum trabalho
pendente, caso contrário teria infartado a uma hora dessas.
— Você é uma péssima influência, sabia, Arthur?
— Sim, Rebecca, eu sabia. — Ele entrou na
brincadeira. — Sou seu veterano. Essa é a minha função.
Daughter – Landfill
Arfei em espanto. Aquela era a última coisa que
eu esperava quando aceitei o convite para jantar. E foi
exatamente essa a razão para ser tão especial. Quando sua
língua encontrou a minha, trazendo o sabor mentolado,
soltei a batata sem nem pensar duas vezes, enterrando as
mãos nos cabelos macios de Adônis. Sua respiração ficou
pesada em um passe de mágicas. Ele me beijava como se
estivesse faminto e somente eu pudesse saciar sua fome.
Eu entendia porque era como me sentia.
Mordi seu lábio inferior, arrancando um suspiro
pesado dele. Seus braços se fecharam ao redor da minha
cintura, acabando com o resquício de distância que ainda
restava entre nossos corpos. O peito subia e descia
rapidamente contra o meu. Uma das mãos subiu pela
minha coxa, deixando apertões urgentes, até que chegou à
curva onde começava o bumbum. Ele repousou a mão ali,
enterrando os dedos. Sua necessidade de mim me
inflamava por dentro e logo senti o corpo pegando fogo. A
ânsia lasciva que somente Adônis podia despertar chegou
de uma vez, roubando um gemido rouco do fundo da
garganta.
Ele segurou o meu queixo com firmeza, beijando-
me de uma maneira tão intensa que era quase obscena.
Então, contrariando o que nossos corpos clamavam,
descolou nossas bocas e encostou a testa na minha, ainda
de olhos fechados.
— Meu Deus, não estou conseguindo me controlar.
— Mas não precisa.
— Eu não posso, eu... — Outro suspiro. — Não
posso, Rebecca. Não dá.
Meu coração ficou do tamanho de um grão de
mostarda. Em parte por causa das palavras, mas
principalmente por ele ter me chamado pelo nome. Eu
podia contar nos dedos da mão direita quantas vezes isso
já havia acontecido. Eram tão poucas...
— Adônis... — falei em tom de súplica — Eu
quero tanto você. Não pode me mostrar o quanto me
deseja e depois recuar.
— Estou tentando fazer o que é melhor para nós
dois — sussurrou baixinho e quase não entendi.
— Não. O que estávamos fazendo é justamente o
melhor para mim neste momento. — As palavras se
atropelaram para fora da minha boca. — Não me diga que
tudo isso é medo?
— Shhhh — ele me calou com um beijinho,
apertando a força no braço que permanecia na minha
cintura. — Não é medo. Eu já te expliquei o quanto
também quero isso. Mas não posso. Nós não temos futuro,
donzela.
Ótimo, o apelido voltou.
— Por que diz isso?
— É complicado...
— Tente me explicar. Acho que mereço entender.
Respirei fundo, preenchendo os pulmões com
frustração. E, com isso, juntei a coragem que só as
pessoas que já perderam a esperança conseguem.
— Isso tem alguma coisa a ver com os seus
pesadelos?
Adônis se desvencilhou de mim. O frio que me
envolveu no segundo seguinte foi doloroso. Minha
garganta deu um nó, sufocando-me aos poucos.
— Sim e não — falou por fim, fechando os dedos
ao redor do meu pulso. Ocupou o polegar em acariciar a
minha palma com gentileza. Seus olhos desviaram dos
meus, mirando para um lugar muito longe dali. — Sempre
fui apaixonado por música. Isso é um pouco culpa do meu
pai. Ele também é professor, como a minha mãe. Dá aulas
na UEL. Cresci ouvindo rock e herdei a paixão dele.
Eu me lembrava de algo assim. Ele mencionara no
passado que começou violão muito novo, graças ao pai.
As palavras ainda permaneciam vívidas na memória. “A
música é importante para mim. Desde muito antes de eu
aprender a tocar, aliás. Foi o meu pai quem me ensinou
a gostar, então eu a vejo como uma velha amiga, sabe?
Aquela que não importa quanto tempo passe, estará
sempre de braços abertos para me receber”.
— Passei horas e mais horas da minha vida no
quarto, treinando. Meus dedos se enchiam de bolhas e
calos, mas era uma dor instigante. Soube na primeira vez
que meus dedos passaram nas cordas de um violão que
queria trabalhar com aquilo pelo resto da vida. Foi uma
certeza. Mas não aconteceu como achei que seria. —
Coçou o nariz, torcendo o rosto em uma careta
amargurada. — Eventualmente acabei mudando de ideia.
Minha vida tomou um curso diferente e, por isso, resolvi
adiar meu sonho. Achei que tinha tudo sob o controle, mas
estava longe disso, donzela. Porque a vida é essa coisinha
mandona, que gosta das coisas à sua maneira. Então,
quando cursava a faculdade de Letras, aconteceu uma
coisa que mudou minha vida.
Ele me encarou e, pelos olhos de Outono, percebi
que ainda não era o momento em que eu descobriria mais
sobre os pesadelos. Mordi o lado de dentro e aceitei sua
decisão, apesar de me corroer de curiosidade. Fui criada
pelos meus avós com espaço e compreensão, por isso
jamais pressionava alguém a dizer aquilo que não queria.
Eu também já tinha sofrido na vida e sabia que, às vezes,
o que menos queremos é precisar lidar com as memórias.
Eu adoraria conhecê-lo mais e mais, descobrir o máximo
possível sobre o homem por quem me apaixonara. Porém,
seria tão melhor quando ele se sentisse confortável para
falar. Ao menos, essa tática sempre funcionou lá em casa.
Era por essa razão que eu jamais escondia algo dos meus
avós.
— Eu perdi muitas coisas importantes, donzela. Eu
me perdi. Depois disso, percebi que não podia mais me
deixar em segundo plano. E isso nos leva ao motivo de eu
não poder me envolver com você agora. Quando prestei o
concurso para lecionar na UEM, foi com uma única
finalidade: juntar dinheiro.
Arqueei as sobrancelhas, confusa. Afinal, ninguém
economizava sem ter uma grande motivação por trás.
Lendo a dúvida no meu rosto, ele continuou.
— O salário aqui é bem melhor e, por não
conhecer ninguém em Maringá, não gastaria com
futilidades.
— E por que você precisa desse dinheiro?
— Porque vou me mudar.
— De cidade?
— De país.
— O quê?! — indaguei, atônita. — Como assim?
Para onde você vai?
Seus polegares gelados alcançaram o meu rosto,
roçando carinhosamente as bochechas. Eu gostava quando
ele fazia aquilo. Fechei as pálpebras, apreciando o
contato, desejando com todas as minhas forças que as
coisas entre nós pudessem ser tão simples quanto aquela
carícia.
— Para a Irlanda. Dois grandes amigos estão
morando em Dublin e por isso vai ser mais barato dividir
uma moradia com eles, enquanto tento ingressar na
Waterford Institute of Technology, que fica em uma
cidade vizinha.
— Mas... precisa ser lá? — Eu sabia que a
pergunta era patética, mesmo assim não fui capaz de evitá-
la. — Quero dizer, existem boas faculdades de música
aqui também. O que essa tem de tão especial?
Ele deu um sorrisinho amargurado.
— Eu não sei. Sempre gostei da Irlanda. E, além
do mais, vou poder aperfeiçoar o inglês e conhecer a
Europa. Vou poder... fugir um pouco daqui. Preciso disso,
donzela, do contrário não conseguirei seguir em frente. —
Ele fez uma pausa, segurando o meu rosto com as duas
mãos. — Você não tem nenhum objetivo que queira
alcançar cegamente?
Expirei o ar dos pulmões. Abri os olhos,
deparando-me com as íris enigmáticas de Chewie. Sim, eu
tenho, pensei comigo, finalmente começando a
compreender algumas coisas.
Desde que tive maturidade o suficiente para tomar
decisões na minha vida, todas elas foram com um único
propósito — dar um passo adiante para, um dia, conseguir
trabalhar em uma grande editora. Para outras pessoas
podia ser apenas um sonho pretencioso, mas para mim ia
muito além disso. Era uma necessidade que estava
interligada aos traumas passados. Se pudesse provar para
mim mesma que conseguia, então mostraria para ela o
quanto suas tentativas de me destruir foram em vão. E
Adônis, assim como eu, também tinha suas motivações
enraizadas no passado.
Uma onda de tristeza me afogou. Pisquei os olhos
algumas vezes, perdida em pensamentos. Ele tinha razão,
a vida era mesmo uma coisinha mandona que só gostava
das coisas à sua maneira. Nos últimos anos, jamais
desviei o foco das minhas metas. Enquanto minhas colegas
de escola namoravam, saíam e começavam a descobrir a
vida adulta, eu me mantinha atenta ao futuro que almejava.
Chewie, no entanto, havia mudado isso. Despertara
sentimentos intensos em mim, fizera com que eu me
apaixonasse. E agora nós simplesmente não podíamos ir
adiante. Não tínhamos uma possibilidade de futuro, de
acordo com suas palavras.
— Quando? — foi a única coisa que escapou da
minha garganta seca.
— Em janeiro — Encolheu os ombros. — É por
isso que não podemos. Por mais que seja difícil me
afastar quando também estou louco de vontade, sei que se
nos envolvermos agora, será tudo mais complicado ainda
na hora de partir.
O baque doeu mais do que se eu tivesse batido
com a testa em um muro chapiscado. Meu coração se
comprimiu como se grandes mãos o esmagassem. Ele iria
embora em menos de um ano. Pelas barbas de Gandalf,
aquilo era uma crueldade. Sem ter o que falar, puxei uma
lasca de pele do meu lábio inferior com os dentes. Senti
um ardor que não era nada se comparado ao estado em
que eu tinha ficado.
— Quando vai parar com isso? — perguntou,
enquanto o polegar traçava o contorno da minha boca.
Então, quando menos esperava, Chewie repousou
os lábios sobre o meus. Aquilo doeu em mim, porque se
parecia com uma despedida. Um último beijo. Ao se
afastar, notei uma manchinha de sangue pintando sua boca.
Sangue que vinha de mim, aliás.
Como não encontrei minha voz em lugar algum,
permaneci emudecida. Assenti com a cabeça, preparada
para colocar minhas roupas úmidas novamente e rumar
para o meu apartamento. Porém, antes que arriscasse o
primeiro passo, Adônis me segurou gentilmente pelos
braços, preocupação tomando seus traços.
— Não precisa ir embora agora — falou, como se
tivesse lido meus pensamentos. — Vamos jantar primeiro.
Lembra? Comer amigavelmente na minha casa amigável.
Uma risadinha fraca escapou dos meus lábios
antes que eu pudesse fazer algo a respeito.
— Tudo bem — respondi e ele sorriu
genuinamente. Isso me deu ânimos para continuar. —
Quero mesmo ver se você é melhor que o Arthur. Eu
particularmente acho que não há a menor chance. —
Brinquei, sem saber onde tinha encontrado o bom-humor
novamente.
Toda vez que estou sozinha
Não consigo evitar pensar em você
Tudo o que eu quero, tudo o que preciso
Tudo que eu vejo, é apenas você e eu
Daughter – Run
Fui desperta por uma melodia suave e
envolvente. Esfreguei os olhos para afastar o sono e, ao
abri-los, deparei-me com Adônis ao meu lado. Ele
dedilhava as cordas do violão, sentado a poucos
centímetros de mim, com as pernas cruzadas como as de
um índio. Ao me flagrar de olhos abertos, abriu um
sorriso manso que me aqueceu por dentro.
— Acorda amor, que já virou outro dia, e a gente
pode fazer tudo hoje... Não me deixe pra depois, sempre
tem um bom motivo pra nós dois. Os medos que a gente
tem em cada noite, a gente pode deixar lá... Não me
deixe pra depois, sempre tem um bom motivo pra nós
dois. — cantarolou bem humorado, piscando de maneira
irresistível ao final.
É desnecessário dizer que me derreti inteira, né?
De repente, aquela expressão “borboletas no
estômago” fez total sentido para mim. Fui tomada por uma
sensação tão deliciosa, que só pude sorrir de volta. A
faceta carinhosa de Adônis me surpreendia sempre mais.
Principalmente porque era impossível não comparar com
o Adônis de antes — o qual eu sabia permanecer lá, mas
presenciava cada vez menos.
— Boa escolha. Eu adoro Mallu Magalhães.
— Eu sei. — Ele deu de ombros. — Li na sua
agenda.
— Achei que jamais faria isso.
— Bom, não pude evitar. Foi um acidente.
Minha risada o fez rir também.
— Faz tempo que acordou?
— Donzela... você acha mesmo que eu ficaria
acordado sozinho sem ter o que fazer — perguntou,
deixando o violão de lado e deslizando o corpo até se
deitar. —, quando tenho você toda para mim?
— Meu Deus, você não facilita a tarefa de não
gostar de você, hein! — disparei, abraçando-o e
escondendo o meu rosto (provavelmente inchado de sono)
na curva do seu pescoço.
— Está tentando não gostar de mim, é?
— Ué, achei que estávamos fadados ao fim —
carreguei as palavras de drama, aproveitando que estava
com a cabeça fora do seu campo de visão para sorrir.
Sua mão gelada segurou o meu queixo, até que
nossos olhos voltaram a se encontrar.
— Humm, então é fácil assim? Essa é a sua
maneira de lidar com a situação?
Assenti, sem esconder a minha expressão travessa.
Adônis umedeceu os lábios, balançando a cabeça em
negativa. Um sorrisinho torto surgiu.
— Bom, só me resta dificultar ainda mais —
murmurou, deixando um beijinho em cada canto da minha
boca. Só isso foi o suficiente para meu coração palpitar
mais depressa.
— Vai precisar se esforçar muito!
— Não será um problema, donzela. — Ele
enterrou os dedos pelos meus cabelos, como se os
penteasse. O movimento causou um leve e gostoso
arrepio. — Agora, que tal se arrumar? Quero te levar para
conhecer o Farol e não pode ficar tão tarde, porque é uma
caminhada e tanto até lá.
— Precisamos mesmo? Aqui está tão bom.
— Também acho. — Sorriu. — Mas vir para a
Ilha do Mel e não passar lá é o mesmo que não vir,
entende? Valerá a pena, eu prometo.
— Ai, Chewie... Você só me dá trabalho — falei,
piscando para ele.
Sua gargalhada foi alta e contagiante.
— Olha quem fala! — Então, sentou-se e deixou
dois tapinhas na minha coxa. — Te espero lá fora. Não
demore!
Observei-o abandonar a barraca sem mover um
único músculo. Ainda me sentia nas nuvens pela maneira
como fui acordada. Adônis era tão carinhoso, e isso era
evidente mesmo nos menores gestos. Era uma coisa
natural para ele. Senti-me tão sortuda naquela manhã a
ponto de esquecer que, na verdade, era bem o oposto
disso. Nós éramos deveras azarados, afinal, no dia
seguinte nossa dolorosa realidade voltaria à tona.
Espreguicei-me, decidida a não sofrer por
antecedência. Em vez disso, fiz como ele me falou —
levantei depressa para que pudéssemos curtir o dia. Vesti
shorts confortáveis e calcei o par de All-Star. Porém,
quando saí para ir ao banheiro comunitário, decidi vestir
um moletom por cima da camiseta. A temperatura parecia
ter caído um pouco mais.
Encontrei-o próximo à cozinha do camping,
brincando com o cachorro cinzento que vimos dormindo
no dia anterior. Observei-os por alguns minutos antes de
ser descoberta por Adônis, que me lançou um olhar
divertido.
— Não conte ao Castiel! — pediu, com uma breve
piscadela. — Ele jamais me perdoaria. — Suas palavras
me arrancaram a mais alta das risadas, fazendo-me
constatar que mal o dia começara e eu já estava mais feliz
do que nunca.
Anavitória – Singular
Despertei com um afago suave no ombro direito e
respirações que vinham em lufadas contra meu rosto.
Pisquei algumas vezes, até encontrar Adônis com aquela
expressão linda, meio safada, olhando carinhosamente
para mim. Do lado de fora da janela, os primeiros raios
de sol coloriam o céu pálido. As cortinas balançavam
com mansidão, empurradas por preguiçosas brisas
matinais. Forcei a memória para me lembrar de quando
exatamente caí no sono, mas me deparei somente com o
vazio. Jamais imaginei que sexo fosse tão cansativo a
ponto de derrubar uma pessoa. Aliás, eu sempre ficava um
pouco desconfiada quando, nos filmes, as pessoas
acordavam lindamente enroladas em lençóis brancos. E,
no entanto, aqui estou eu, o pensamento me roubou um
sorriso.
— Você não dormiu? — questionei, passeando o
indicador pelas linhas do seu abdômen.
— Só um pouquinho.
— Teve pesadelos de novo?
Chewie negou com a cabeça, seu bom-humor era
perceptível mesmo para alguém com a mente embaralhada
pelo sono, como eu. Quem te viu, quem te vê! Mordi o
lado de dentro da bochecha para segurar a risada.
— Eu não tenho pesadelos quando estou com você
— respondeu com uma tranquilidade inabalável.
— Não?
— Hum-hum.
— Como assim? — Sorri, incrédula.
— Não sei, apenas acontece... Deve ser a força
emanando de você, princesinha.
Ri baixinho, fazendo uma careta azeda para ele
logo em seguida.
— Ah, não. Eu odeio esse apelido!
— Odeia, é? — Lançou uma piscadela para mim e
eu sabia que estava me provocando. — E posso saber o
porquê?
— É uma afronta! — expliquei. — Aprendi a
gostar de “donzela”. Mas princesinha passa uma ideia de
fragilidade que me incomoda.
— Você está sendo preconceituosa, Becca! —
brincou, apertando o meu nariz de levinho. — Quer dizer
que princesas não podem ser fortes e valentes?
— Bom, em geral não são.
— Meu Deus, isso está vindo de uma suposta fã de
Star Wars? — perguntou, balançando a cabeça em
negativa. — A princesa Leia não é uma personagem forte
o suficiente para você?
Minha gargalhada repercutiu por todo o quarto, ao
passo em que meu rosto deve ter ficado na cor de um
tomate maduro.
— Nossa, você me pegou! — lamentei,
escondendo o rosto em seu pescoço. Senti o cheiro não de
perfume, mas sim o aroma terno de sua própria pele.
Inspirei profundamente, deleitando a sensação de acordar
em seus braços, depois da madrugada maravilhosa que
passamos juntos.
Então, minha mente vagueou para o que acontecera
antes. Quero dizer, apesar de ter me prendido às últimas
horas, a noite havia sido realmente extensa, repleta de
acontecimentos. A comemoração de Arthur, o acidente, o
comportamento inesperado de Adônis. Por Bilbo
Bolseiro!, meu subconsciente exclamou com a memória.
Senti o estômago embrulhar de uma só vez quando minha
mente foi invadida pelas imagens de horas atrás. Ele
dirigindo silencioso, chorando e depois gritando comigo
sobre eu ser irresponsável. Estava tão apavorado, agora
eu percebia isso muito bem. Na hora julguei
equivocadamente que me atribuía a culpa pelo acidente,
mas não podia ser o mais distante disso. As palavras que
ele cuspia com raiva eram para si mesmo.
Enrijeci no lugar ao fazer a conexão e finalmente
ligar todos os pontos. Então, várias lembranças de dias
aleatórios foram voltando aos poucos. Era isso! Os
pesadelos, e quando ele me disse para beber com
responsabilidade, muito tempo atrás. Não pude processar
mais informações, de toda forma, pois, como se tivesse
lido meus pensamentos, Adônis segurou meu queixo com
brandura e ergueu meu rosto, buscando meus olhos.
— Em que está pensando?
Sustei o olhar, ponderando como seria a melhor
maneira de abordar o assunto. Talvez não fosse o
momento ideal, eu sabia, mas não custava tentar. Fiquei de
barriga para baixo e me sustentei nos cotovelos para ter
uma melhor visão dele. A curiosidade em seu rosto
crescia a cada segundo.
— Essa noite, quando te liguei... — minha frase
morreu no ar. Tamborilei os dedos no colchão, buscando
as palavras certas. — Você... hum... surtou.
Ouvi o som característico dele se estalando e, ao
subir o olhar, notei atordoada que estava um pouco pálido.
Tão logo notou que eu o observava, murmurou:
— Fiquei preocupado com você.
— Não parecia ser só isso.
— Como assim? — Ele colocou uma mecha de
cabelo atrás da minha orelha, umedecendo os lábios.
— Não sei... Senti que aquela raiva não era
totalmente voltada para mim.
— Eu não estava com raiva, Becca. — Sorriu com
incredulidade. — Foi o calor do momento. Você me
conhece, não sou a pessoa mais fácil do mundo.
— Não, Chewie. Você tenta se convencer disso,
mas não é verdade. Eu teria acreditado se fosse antes, só
que agora eu te conheço. É sempre tão carinhoso comigo...
e ficou tão bravo.
— É claro que fiquei! — exclamou. — Vocês
fizeram merda, não vou passar mão na sua cabeça por
isso, donzela.
Soltei o ar dos pulmões, um pouco irritada. Neste
ponto, nada tinha mudado — ele permanecia enfático no
quanto repreendia os eventos da noite anterior. Eu sabia
que tinha a minha parcela de culpa, no entanto não deixava
de considerar cruel sua maneira incisiva de lidar com a
situação.
Disposta a evitar que acabássemos discutindo,
decidi mudar de tática. Cruzei os braços sobre o peito
dele, usando-o como um travesseiro gigante. O calor do
seu corpo era convidativo e, por isso, impossível de
resistir.
— Eu sei que você passou por alguma coisa muito
ruim... algo que te deixou com sequelas permanentes.
— Sequelas? — Estreitou os olhos, desconfiado.
— Sim. Como os seus pesadelos, ou o seu medo
de se entregar para alguém.
— Eu me entreguei para alguém! — Adônis rolou
os olhos nas órbitas. — Achei que depois de ontem
tivesse ficado bem claro — resmungou, como um velho
rabugento.
Dei um tapinha em seu peito, sem conseguir
segurar a risada. Ele arqueou as sobrancelhas de maneira
ameaçadora, o que apenas me fez rir ainda mais.
— Você entendeu o que eu quis dizer! — Mordi
sua orelha direita, tentando dissipar a expressão
emburrada. Funcionou, pois, em um segundo, os lábios se
torceram para o lado em um sorrisinho a contragosto.
— Ok, posso ter demorado um pouco para me
livrar das amarras — Ele deu de ombros, forjando pouco
caso.
— Enfim, você sempre bate nessa tecla do
passado ser imutável. E desde o começo sempre cuidou
de mim em todas as vezes que eu estive bêbada... —
Expirei o ar dos pulmões. — Antigamente eu me
perguntava o motivo de você ser tão rude e fechado com
os outros quando, na verdade, é a pessoa mais carinhosa e
cuidadosa do mundo. Mas depois eu entendi, Adônis.
Você é como eu, tentando fugir da dor que existe no
mundo! — Engoli em seco quando seus olhos brilharam
além do normal. — Olha, não precisa me responder se
não quiser... eu só queria entender, só queria te conhecer
melhor. O que de tão ruim aconteceu para você ficar
assim?
— Seu timing é realmente péssimo. Para tudo. —
Sorriu tristonho, os olhos permanecendo apagados. Seus
braços me apertaram em um abraço esmagador e precisei
me ajeitar em seu corpo para não sufocar.
— Não precisa me fa... — comecei, no entanto fui
interrompida por ele.
— Você merece saber, eu só... — Pigarreou. — É
difícil falar sobre isso depois de tanto tempo. Um pouco
estranho, não sei.
Permanecemos abraçados por um momento, que
ele deve ter usado tentando encontrar uma boa dose de
coragem. Seus dedos passeavam pelo meu braço como
ondas no mar — indo e voltando continuamente. Eu podia
supor quão difícil era abrir feridas do passado, afinal, não
contava tanto tempo desde que contara minha história a
ele. Por outro lado, depois de, pela primeira vez na vida,
me abrir para alguém, experimentei uma sensação única,
de aliviar o peso das costas. Como se, muito lentamente,
as feridas começassem a coagular para, quem sabe um
dia, cicatrizar.
Resgatando-me para a realidade, Adônis desferiu
um beijo em minha testa.
— Eu já sofri um acidente de carro e perdi alguém
muito... importante para mim. Perdi a minha namorada.
Minha primeira e única namorada. — sua voz falhou ao
mesmo tempo em que eu prendi minha respiração. O
baque foi tão grande que me vi sem reação por um
momento. — Nós éramos vizinhos de rua e meio que
crescemos juntos... Não sei dizer exatamente quando
deixou de ser amizade e passou a ser amor, mas eu
gostava bastante dela. Tanto que abandonei meu sonho por
ela.
Arregalei os olhos, sem esconder a confusão que
me assolou. Por Tyrion Lannister..., pensei aturdida. Era
muito para processar e ele mal tinha começado! Notando
o meu desamparo, ele prosseguiu. Apesar de soturno, seu
tom de voz era comedido, de alguém que já não se
martirizava mais com isso.
— Pouco tempo depois de começarmos a namorar,
seu pai foi transferido para trabalhar em outro estado.
Passamos alguns meses separados, mas eu sabia que não
daria certo daquele jeito, por isso chutei o balde e prestei
vestibular de Letras, uma desculpa para ficarmos perto um
do outro. E deu certo. Por quase dois anos eu vivi o meu
paraíso, Becca. Eu não curtia tanto assim o curso, mas
adorava a liberdade de morar sozinho, adorava as festas,
a farra, adorava ter Cecília por perto e adorava ainda
mais poder fazer shows com a minha banda. Eu pensava
ser invencível — Um sorrisinho fraco pincelou seus
lábios. —, e esse foi o maior de todos os enganos que já
cometi na vida.
“Praticamente todo final de semana minha banda
tocava em alguma festa qualquer, mas, às vezes, essas
festas eram em outras cidades. Cecília e eu costumávamos
viajar no carro dela, nós dois tínhamos habilitação e nos
revezávamos, mesmo se tivéssemos enchido a cara. Eu
nunca achei que um dia pudesse dar merda. Parecia que
tínhamos tudo sob controle. — Adônis suspirou
pesadamente, esfregando o rosto em seguida. — Na noite
do acidente, sugeri dormirmos em um hotel. Foi a
primeira vez, naqueles dois anos. Não porque tive algum
pressentimento, ou algo do tipo, mas porque eu sabia que
tinha bebido demais. Mal aguentava parar em pé, imagine
então guiar o carro por duas horas.
“Nós chegamos a brigar por isso, mas ela venceu.
Sempre vencia. — Outro sorriso apareceu em seu rosto,
seguido por uma careta amargurada. — Nós capotamos o
carro, Becca. Se você visse o estado em que ele ficou...
não dava para acreditar que tinham duas pessoas lá
dentro, muito menos que uma delas saiu viva. Cecília
morreu na hora, me disseram. Eu me quebrei todo e fiquei
em coma alguns dias, mas me safei. Tenho um pino na
perna direita de recordação, e a raiva. Por que fomos tão
burros? Imprudência não é uma coisa cool, Rebecca. E eu
aprendi da pior maneira possível. Foi por isso que... você
sabe... posso ter extrapolado um pouco hoje.
— Meu Deus... — murmurei, ainda atônita. Uma
tristeza avassaladora me tomara depois de vislumbrar um
pouco da história daquele homem tão solitário. — Nossa,
eu não podia imaginar! Sinto muito que tudo isso tenha
acontecido e sinto ainda mais por ter despertado esse
trauma. Eu fui uma idiota, eu sei. Até pensei em chamar
um táxi, mas fiquei com vergonha porque ninguém mais
pareceu se importar.
— Donzela — Ele fechou os dedos ao redor do
meu pulso direito. —, nunca, nunca mesmo, faça nada
pensando em seguir a onda. Amizades só valem a pena
quando não são más influências. E, no fim do dia, somos
nós quem carregamos o peso das nossas escolhas erradas.
Nós e mais ninguém.
Fugi de seu olhar, sentindo o rosto esquentar.
— Hei... não estou brigando com você. Estou
dando um conselho, o qual gostaria de ter dado ao Adônis
do passado.
— Você está certo. — Admiti e diminuí o tom de
voz para prosseguir. — Deve ter sido muito difícil.
— Hoje não dói mais, mas no começo foi quase
impossível. Achei, em muitos momentos, que não fosse
conseguir.
— Como ela era? — perguntei, genuinamente
curiosa. Não por algum tipo de ciúme estranho de pessoas
mortas, mas para conhecer mais sobre ele. Sobre o seu
primeiro amor, pelo qual ele abrira mão de si mesmo. Ela
devia ser, no mínimo, fascinante.
Notei a surpresa em sua feição e constatei que não
ele esperava esse rumo para a conversa. Adônis coçou o
nariz, olhando para muito longe dali, como se parasse
para pensar no assunto depois de um intervalo de tempo
realmente considerável. Similar a alguém que encontra um
álbum de fotos muito velho e o folheia, relembrando cada
momento, experimentando cada sensação, perambulando
entre a familiaridade e as redescobertas de lembranças
apagadas com o tempo.
— Hum, deixa eu ver... — resmungou de repente,
enquanto seus dedos se enterravam suavemente em meus
cabelos, em carícias suaves. — Cecília era bem
romântica. Ela lia bastante, amava o Nicholas Sparks.
Não gostava tanto de rock, mas ouvia por minha causa. —
Sorriu brevemente. — Ela sempre quis ser professora
porque adorava crianças e dizia que o sonho da vida dela
era morar em uma casa com um jardim bem grande e
muitos filhos para ocupá-lo. Nós passávamos a maior
parte do tempo brigando pelas coisas mais idiotas, como,
por exemplo, quando eu dizia que sertanejo universitário
era um lixo. — Sua risada foi calorosa. Peguei-me rindo
baixinho, junto dele. — Ela ficava realmente brava.
— Você acha mesmo um lixo? — questionei,
divertida.
— Não. Eu só gostava de contrariar... você sabe.
— É, eu sei.
— Hoje eu paro para pensar e sei que
eventualmente teríamos terminado se nada disso tivesse
acontecido. A gente tinha mais diferenças que
semelhanças. Eu fico triste porque realmente queria que
Cecília alcançasse seu sonho. Ela seria uma ótima
professora... — sua voz falhou e foi seguida por um
soluço. Sem pensar muito, usei as costas da mão para
secar as lágrimas escorrendo por sua bochecha e me
aconcheguei um pouco mais nele. Adônis afundou o rosto
nos meus cabelos, voltando a me esmagar com os braços.
Apesar das lágrimas e da viagem ao passado, eu
não me arrependia de ter abordado o assunto logo depois
de termos nos entregue verdadeiramente um para o outro.
Por alguma razão, senti-me mais conectada com Chewie
do que nunca. Ele conhecia meus segredos mais íntimos e
eu sabia da sua história. Então, de uma só vez, a
melancolia foi dissipada por algo muito maior. Meu
coração se encheu de amor e eu só consegui me sentir
grata por nossas vidas, de alguma maneira, terem se
cruzado. Todas as coincidências que outrora lamentei —
como o fato de sermos vizinhos e também dele ser o meu
professor — passaram a soar como um presente. Deixei
alguns beijinhos em sua clavícula, esfregando o nariz na
pele macia do seu pescoço.
— Obrigada por me contar.
Ele cobriu minha boca com a sua, em um beijo
doce. Então, quando se afastou para me encarar nos olhos
com as íris de Outono, sussurrou palavras que guardei em
meu coração para sempre:
— Obrigado por ter mudado a minha vida,
donzela.
Pra você guardei o amor
Que nunca soube dar
O amor que tive e vi sem me deixar
Sentir sem conseguir provar
Sem entregar
E repartir
Nando Reis – Pra você guardei o amor
O quê?
E qual era?
Dezembro chegou.
Foi assim, sem avisos.
Chegou, lembrando-me de que meu tempo com
Rebecca era limitado e, por isso, aproximava-se do fim. A
partir de agora, seria uma angustiante contagem regressiva
para o iminente.
Eu estava uma pilha de nervos. Tantas coisas
passavam pela minha cabeça que era difícil acompanhar.
A principal delas era, sem sombra de dúvidas, medo. Oh,
definitivamente estava com medo! Eu me mudaria para um
novo país e isso era apavorante. Por mais que meus
amigos estivessem lá, a minha vida estava aqui. Rebecca
estava aqui. O que seria de mim? De nós?
Esfreguei o rosto, tentando pensar com clareza. Os
últimos dias não estavam sendo fáceis. Depois que as
aulas terminaram e eu cumpri com todos os meus
compromissos acadêmicos, comecei a difícil tarefa de
vender meus pertences um a um, desfazendo-me de tudo
que conquistei com suor. Foi quando finalmente me dei
conta de que a minha vida estava prestes a sofrer uma
transformação enorme, que reverberaria ao longo de anos.
Nada jamais voltaria a ser como antes. Tal como o
acidente de carro, que me tirou bruscamente de um trilho
para colocar em outro. Com a diferença de que, desta vez,
era por escolha própria. Mas, ainda assim, assustador. A
verdade é que nunca estamos preparados para sair da zona
de conforto, ainda mais quando as pessoas que você mais
ama habitam nela.
Conforme assistia à minha casa esvaziando e
minhas conquistas se dissipando pelo ar como grãos de
areia ao vento, o peso do que estava por vir começou a
recair sobre os ombros. A gota d’água foi entregar o carro
nas mãos do novo proprietário e perceber que, no novo
país, eu teria que recomeçar do zero.
É óbvio, meu subconsciente falou, zombeteiro, é
para isso que está indo, não?
E de fato era.
Sonhei com o dia da partida quase de maneira
obsessiva e lutei com todas as forças que pude para
chegar ali. Agarrei-me aquele objetivo a fim de evitar
enlouquecer. Foi ele que me sustentou por tanto tempo. Em
cada dia ruim, em cada noite assolada por um pesadelo,
eu me confortava com a esperança de que, no futuro,
deixaria tudo para trás. Seria um novo Adônis. Começaria
do zero. Então por que meu coração apertava agora que
estava na véspera de alcançar tudo que almejei com tanto
afinco?
Eu não era idiota, nem nada. Sabia que tinha tudo a
ver com Rebecca. Tudo a ver com o fato de que me
apaixonar nunca esteve nos planos. Mas ia muito além
disso. Não estava apenas apaixonado. Não, cada
pedacinho de mim amava incondicionalmente aquela
garota. Ela havia se tornado parte de mim. A peça
essencial sem a qual não existia a mais remota chance de
ser feliz. Então como seria quando eu tivesse que me
desfazer dessa peça? Como eu seria feliz novamente? Que
merda eu achava que estava fazendo?
Quando minha casa ficou tão vazia a ponto de não
ser mais possível viver lá, concluí a mudança e entreguei
as chaves na imobiliária, deslocando-me temporariamente
para o apartamento de Rebecca. Como Nataly voltara para
a cidade logo que as aulas chegaram ao fim, ficamos
apenas Becca, Arthur, Castiel e eu.
Noite após noite, sentávamos na sala e
conversávamos até as primeiras luzes do dia invadirem a
sala. Os assuntos perambulavam entre debates sérios e
cheios de engajamento — eram minoria —, para os mais
fúteis possíveis, como, por exemplo, em uma batalha entre
um Espinossauro e um T-Rex, quem teria mais chance de
vencer?
Acho que não é preciso dizer que estes eram os
meus favoritos, né?
E, embora nossos horários tenham ficado
bagunçados, eu não poderia me sentir melhor nos meus
últimos dias em Maringá. Aquele tempo que passamos
juntos foi muito necessário para mim. Em parte porque já
tinha me esquecido da leveza de se estar entre amigos,
podendo ser eu mesmo, rindo por tudo e por nada até os
olhos marejarem — coisa que se tornou tão rara depois do
acidente. Era bom perder o fôlego em meio a gargalhadas,
as quais eu nem ao menos lembrava o motivo para terem
começado. Mas, principalmente, porque desviavam a
minha atenção dos problemas e os voltaram para coisas
boas. Foi a força necessária para me manter firme em
minha decisão quando, por dentro, estava repleto de
incertezas.
Castiel, por sua vez, estava estressado naquela
casa que não reconhecia e, por isso, tudo o que fazia era
se esgueirar pelos cantos, sem entender o que estava
acontecendo. Eu nem queria imaginar como seria a viagem
de mais de dez horas trancado na gaiolinha e dentro do
compartimento de carga, sozinho, assustado. Eu me sentia
a pior pessoa do mundo quando pensava nisso. Então
apenas não pensava. Era mais fácil assim.
É por uma boa causa, repetia como mantra,
tentando convencer a mim mesmo. Porém já não tinha
tanta certeza.
Faltando pouco menos de uma semana para eu
viajar para Londrina e poder passar alguns dias com os
meus pais a fim de me despedir, Rebecca perdeu o
controle. Eu imaginava que algo assim pudesse acontecer,
porque também estava no meu limite. Um passo falso e eu
atravessaria a tênue linha que me separava do desespero.
O principal motivo de ainda não ter esmorecido era ela.
Não podia vacilar quando Becca precisava tanto de mim.
Tinha começado a arrumar minhas malas quando
ela irrompeu o quarto, cambaleante. Os olhos estavam
redondos como burquinhas e o desespero era visível em
cada centímetro de seu rosto delicado. Fazia uma tarde
muito quente de uma semana particularmente abafada e ela
vestia apenas uma camiseta minha. Por Deus, como eu
sentiria falta de vê-la nas minhas roupas!
— Você não pode ir, Chewie. Não pode! —
choramingou, cheia de urgência, mas as palavras saíram
um pouco enroladas. Vi, no mesmo instante, seus olhos
encherem de lágrimas e soube que era só questão de
tempo.
Eu não sabia o eu dizer. Simplesmente não
existiam palavras que pudessem confortá-la, tampouco a
mim mesmo. Estávamos em um beco sem saída.
Parei o que estava fazendo e me voltei para ela,
encolhendo os ombros. Rebecca arriscou dois ou três
passos, mas, quando os pés se embolaram, ela parou no
meio do caminho. Só então me ocorreu o óbvio.
— Está bêbada?! — a pergunta soou mais como
uma afirmação. Que ela resolveu ignorar, de toda forma.
— Não me deixe sozinha, por favor! Eu não sei
mais viver sem você, é o que tenho de mais bonito,
Adônis. Eu nunca imaginei o quanto a vida podia ser
maravilhosa, nunca imaginei esse mar de sensações que
abrigava dentro de mim, nunca sonhei que uma pessoa
pudesse despertar tanta coisa em outra. — Sua voz, que
já estava fraca e sem forças, vacilou perigosamente. — Eu
preciso de você comigo, olhe só para nós dois. Isso aqui
só acontece uma vez na vida. Nós fomos premiados! Não
jogue fora a coisa mais incrível que já aconteceu em
nossas vidas, ainda temos muito pela frente...
Ela parou subitamente, vencida pela vontade de
chorar.
— Becca... — chamei, sentindo-me quebrado.
Porém, contrariando minha ideia de que fosse se
acalmar, ela ficou ainda mais agitada. Com lágrimas
pululando dos olhos, aumentou o tom de voz até estar
quase aos berros.
— Você não precisa ficar em Maringá. —
Soluçou, limpando o rosto com as costas das mãos. —
Não precisa nem mesmo ficar aqui no Paraná, tem ótimas
faculdades de música no Brasil. Nós damos um jeito. Eu
procuro um emprego e vou te visitar todo final de semana,
eu...
— Rebecca... não faz assim. — Percorri a
distância entre nós, parando a poucos centímetros de
distância. Fechei os dedos ao redor dos seus pulsos,
acariciando sua pele com os polegares. Estávamos tão
próximos que eu podia sentir o cheiro de vinho em seu
hálito. — Só está dificultando tudo para nós dois. Eu te
avisei desde o começo, você quis ir adiante sabendo que
precisaríamos nos separar.
— Mas tudo mudou! Tudo mudou, Chewie. Eu não
podia imaginar quão longe chegaríamos.
— Eu sei. Eu sei que sim. Você acha que á fácil
para mim? Acha que também não estou sofrendo?
Rebecca respirou fundo, fisgando o lábio inferior,
como sempre fazia em momentos delicados.
— Não precisamos sofrer! Os planos mudam a
todo momento. Novas prioridades aparecem... Droga, por
que precisa ir embora? Por que não pode ceder e parar de
pensar só em você?
— Nossa! — exclamei, chocado. Eu sabia que ela
jamais falaria algo parecido se não estivesse tão
assustada, tão perdida. Mas isso não diminuiu o tamanho
do absurdo contido em suas palavras. — Muito bom, isso
mesmo! Vamos jogar coisas na cara um do outro, porque
com certeza vai tornar tudo tão mais fácil, né? — Cuspi,
carregado de ironia.
Por segundos que se pareceram com uma
eternidade, sustentamos o olhar. Ela foi a primeira a
reagir, desvencilhando-se de mim como se eu tivesse
desferido um tapa em seu rosto.
— Donzela, escuta... nunca escondi de você que
não queria me envolver no começo, porque eu sabia que
seria difícil. E estava certo! Está sendo foda, bem mais do
que imaginei! Você não é a única sofrendo aqui, acredite
em mim. — Suspirei, cansado. — Não é justo me pedir
para abrir mão do maior sonho da minha vida.
— Já fez isso uma vez... — murmurou baixinho.
— E me arrependo muito! Não há um dia que eu
não lamente por isso! Talvez tudo tivesse sido diferente e
Cecília estivesse viva agora. — Falei, segurando-a no
rosto gentilmente para ter certeza de que me olharia nos
olhos. Encarei-a significativamente, decidindo mudar de
estratégia. Aproximando-me ainda mais, sussurrei
baixinho. — Você abriria mão dos seus planos por mim?
Viria para Irlanda comigo?
Surpresa estampou sua feição.
— I-ir para a Irlanda? — Ecoou, balbuciando. —
Eu... eu não posso. É diferente.
— Diferente? Lá também tem editoras, sabia?
— Meus avós estão aqui. E eu ainda não sou
independente financeiramente. Não posso mudar de país
assim...
— Acabou de me dizer que arrumaria um emprego
se eu ficasse. Por que não pode fazer o mesmo nessa
situação?
— Eu não conheceria ninguém lá, Chewie. Só
você.
Assenti, chegando ao ponto em que queria.
— E não seria o suficiente?
— Hum? — Ela me encarou com surpresa. —
Sim, mas...
— Você não pode, não é? Não pode porque, no seu
sonho, não é assim que as coisas acontecem. Dentro do
seu coração, o que você sempre quis foi se formar aqui,
trabalhar em uma grande editora aqui, alcançar seus
objetivos aqui. E, por mais que me ame, não pode fazer
isso consigo mesma, porque não sabe como será o dia de
amanhã. Estou certo?
Ela permaneceu taciturna, mas sua expressão
entregou que ela tinha entendido perfeitamente bem o meu
ponto.
— Estou certo? — insisti. Como resposta, tive um
tímido menear de cabeça. — Eu também não posso fazer
isso comigo mesmo, Becca. Preciso me colocar em
primeiro lugar, mereço isso. Jamais amei alguém como
amo você — arqueei as sobrancelhas para me fazer
entender. —, mas agora eu tenho que aprender a me amar
tão intensamente. Eu era muito novo quando minha vida
mudou para sempre. Segui em frente do jeito que dava, só
que eu preciso de bem mais que isso. Não me contento em
me arrastar para frente fingindo que está tudo legal aqui
dentro. Preciso me redescobrir, preciso provar para mim
mesmo que eu posso chegar lá, assim como você também
quer desesperadamente provar para si mesma, donzela!
Uma lágrima corpulenta escorreu pela sua
bochecha pouco antes de ela se lançar em meu corpo,
abraçando-me com força. Aquela foi a sua maneira de
pedir desculpas por ter perdido o controle. Eu não a
condenava porque, no fim das contas, sentia o mesmo.
Enterrei o rosto em seus cabelos, sorvendo seu cheiro, do
qual eu sentiria muita falta. Fechei os olhos e me permiti
ficar ali, aproveitando que ainda a tinha para mim, embora
a contagem regressiva continuasse rodando.
Por favor, não chore, meu amor
Adeus
Eu quero ficar, mas agora é hora
Então por favor, não chore, meu amor
Por favor, não fique desse jeito
Porque você sabe que é difícil quando me olha dessa maneira
Cigarettes After Sex – Please don’t cry
Donzela,
Imagino que quando essa carta chegar, suas
aulas já tenham começado.
A tecnologia evoluiu há muito tempo em se
tratando de meios de comunicação, eu sei, mas acho que
dessa maneira combina muito mais com nós dois, não?
Ok, receio que esteja indo contra nosso trato de não
mantermos contato. Receio também que isso dificulte
muito aquela coisa toda de recomeçar do zero e tudo
mais. Seguir em frente... enfim. Você tem todo o direito
de não responder, se não quiser. Eu apenas não consegui
ser tão forte assim.
Você está bem? Como foram suas férias?
Espero que nenhum vizinho mal humorado tenha
se mudado para o apartamento da frente e roubado o
meu posto. Isso me deixaria bem chateado. Também
espero que o professor substituto seja um senhor de
sessenta anos prestes a se aposentar e que ele cuspa
bastante enquanto explica a matéria. Estou sendo um
pouco egoísta, mas me reservo o direito.
Como estão Arthur e Nataly? Ainda tentando te
levar para o mau caminho?
Por aqui as coisas estão uma loucura... A
primeira delas é que Castiel me odeia. Acho que ele
sente sua falta. E não o culpo, porque, porra, passo o
dia todo querendo te mostrar todas as coisas incríveis
que tem por aqui. Já me peguei, pelo menos três vezes, te
chamando como se você estivesse do meu lado.
Estou tentando me adaptar. Quando dizem que
aqui é muito frio, bem, não estão mentindo. Fora isso,
morar com outros dois homens me faz querer assassinar
alguém pelo menos 3x ao dia. Você sabe como odeio
bagunça, né?
Do sempre seu,
Adônis.
Maringá, 3 de abril de 2017.
Chewie,
Que surpresa maravilhosa receber sua carta!
Gritei por pelo menos meia hora quando vi o remetente e
gritaria muito mais se não fosse o síndico me
interfonando. Eu estava prestes a cortar os pulsos
quando ela chegou, então muito obrigada por salvar a
minha vida. (Talvez isso responda se estou bem, haha).
Brincadeiras à parte, as férias foram
deprimentes por um lado (creio que os motivos sejam
óbvios), mas maravilhosas por outro. Convidei Arthur
para viajar para Santa Cruz comigo e ele ficou radiante,
afinal, foi a primeira vez que viajou nas férias desde
quando começou a faculdade. Meus avós o amaram
(principalmente vovó, que fez questão de pintar o cabelo
dele de azul) e exigiram que ele voltasse nas próximas
férias.
Se isso te deixa aliviado, nossas novas vizinhas
são uns amores. Uma é estudante de química e a outra
de comunicação e multimeios. Nataly obviamente fez
amizade com as duas no dia da mudança, por isso às
vezes fazemos algo todos juntos. Ah, sim, respondendo a
sua pergunta sobre o mau caminho: meus amigos acham
que estou corrompida o suficiente e, de acordo com
Arthur, “o trabalho deles acabou por aqui”.
Sinto te decepcionar, mas nosso novo professor
de Produção Textual não é um senhor de sessenta anos
com problema salivar. Ele é, na verdade, um quarentão
muito sexy, é uma pena que já seja casado. Com um
homem, a propósito.
Mande um beijo para o Castiel e diga para ele
que eu o entendo, porque também te odeio. Também
estou com muita saudade. Às vezes é quase insuportável
e eu sinto raiva por precisar ser tão difícil. Algumas
noites choro até pegar no sono e acordo morrendo de
dor de cabeça. Eu saio do meu apartamento achando
que vamos nos cruzar nas escadarias e passo pela sua
vaga achando que o seu carro estará lá. Tomara que
eventualmente pare de doer tanto e as coisas fiquem
mais fáceis.
Espero que não tenha matado seus amigos. E
espero que fique frio o suficiente para você nunca mais
mostrar esse tanquinho para ninguém.
Com amor,
Becca.
Donzela,
Queria dizer que nada de muito empolgante
aconteceu desde sua carta, exceto talvez por EU TER
SIDO ACEITO NA WATERFORD INSTITUTE OF
TECHNOLOGY!!!
Porra, acho que essa é a primeira vez que me
sinto verdadeiramente feliz desde que vim morar aqui.
Nem posso acreditar que vou estudar em uma
universidade tão foda, sério, acho que não caiu a ficha
de que finalmente vou viver o meu sonho. Pena que você
não esteja aqui para que as coisas fiquem, de fato,
perfeitas.
Vejamos o que mais tenho para contar...
Ainda não matei ninguém! E isso é uma coisa
muito, muito boa, considerando que os impulsos
homicidas estejam se tornando cada vez maiores. Meus
pesadelos agora têm a ver com pilhas de louça criando
mofo e roupas sujas espalhadas pela casa toda. Acordo
no meio da madrugada imaginando uma toalha molhada
sobre o sofá e, nossa, é assustador! Espero não acabar
enfartando.
Acho que você vai ficar feliz em saber que,
embora aqui seja verão agora, está muito longe de ser o
tipo de calor para ficar sem camiseta. Ou seja, a chance
de eu exibir meu corpo para as gringas é bem remota,
pode ficar sossegada.
Castiel está começando a me perdoar e agora
podemos sofrer juntos a falta que você nos faz. O que
melhora as coisas consideravelmente. É mais fácil ter
um ombro amigo, mesmo que esse ombro em questão seja
peludo e felino, hahaha.
E, já que toquei no assunto, não tem um único
dia que eu não pense em você no mínimo umas cinquenta
vezes. Sei que parece piegas, mas juro pelo meu avental
do Darth Vader que é verdade. Volto para Brasil em
Dezembro, minha mãe está fazendo terror psicológico
para eu passar o natal com eles e eu queria muito te
visitar. Na verdade, não só visitar, mas aproveitar todo o
tempo possível com você. Sei que isso não ajuda em
nada o nosso plano inicial de seguir em frente (e talvez
seja até um pouco perigoso), mas, eu juro, eu não
consigo e nem quero seguir em frente. Quero você. Só
você e, para sempre, você. Pense a respeito, sim?
De um homem desesperado,
Adônis.
Chewie,
PELO AMOR DE ALVO DUMBLEDORE, QUE
COISA MAIS LINDA!!!!
Nossa, é desnecessário dizer que chorei por
horas, né? Mal posso esperar para ouvir, sei que vai
ficar ainda mais perfeita na sua voz. A propósito, eu
AMEI o nome da banda. Mil vezes melhor que O Tadeu,
hahaha.
Sério, são detalhes assim que tornam impossível
não te amar. Você é muito amável, sabia? O que não
facilita muito as coisas para o meu lado, mas tudo bem.
Entendo perfeitamente o seu sofrimento, por aqui
as coisas ficaram bem difíceis de novo. Tudo me lembra
você e eu tenho vontade de pegar o primeiro avião e ir
aí te visitar. Mas, bem, as coisas não são tão fáceis
assim, infelizmente.
2018 mal começou e eu já o odeio com todas as
minhas forças! Nataly se mudou logo no começo do ano.
Ela conseguiu um intercâmbio para o Canadá pelo
Ciência sem Fronteiras e volta só no ano que vem.
Estou com um pouco de inveja? Estou. Sou uma péssima
amiga? Talvez.
Como se não bastasse isso, Arthur se mudou essa
semana para São Paulo. Eu não estava esperando que
ele fosse embora tão cedo, quero dizer, a formatura dele
foi ainda no começo do mês. Então, sim, fui abandonada
pelas três pessoas que mais amo no mundo depois dos
meus avós. E sou a rainha do drama, pelo jeito, hahah.
A parte boa disso é que provavelmente esse é o
momento da minha vida em que me torno uma mulher
bem independente e foda. Tomara!
De alguém carente,
Becca.
Donzela,
Nem sei por onde começar... Minha vida está
tomando um curso inesperado, tem tantas coisas
incríveis acontecendo e eu lamento que
coincidentemente seja em um momento tão difícil para
você. Eu daria tudo para estar ao seu lado, encontrando
todos os motivos possíveis para colocar um sorriso em
seu rosto. Mas sei que você é incrível e forte o suficiente
para conseguir passar por cima disso, então vou ficar
na torcida para que as coisas se ajeitem e você fique
bem.
Sinto muito só estar respondendo agora, sinto
mesmo. Sua carta chegou há dois meses, durante as
minhas férias de verão, mas eu não estava em casa.
Acabei de voltar. E, na verdade, ainda estou vestindo as
roupas da viagem. O que nos leva ao começo da carta,
inclusive, sobre as coisas que estão acontecendo
comigo. Com a minha banda, na verdade.
No começo do ano, pouco depois de te escrever,
começamos a tocar em pubs ocasionalmente. Apenas
para relembrar os velhos tempos e, você sabe,
experimentar a sensação pela qual nós cinco somos
viciados — a de estar em um palco. Arriscamos tocar as
músicas de nossa autoria e, estranhamente, está dando
certo! Quero dizer, viajamos estes dois meses por toda a
Europa tocando nos bares mais variados e as pessoas
sabiam cantar nossas músicas! E, fora isso (que já é
foda para cacete) no Spotify, que tem só a Collision por
enquanto, já passamos de 10 mil seguidores!
Isso é 1/5 da população de Waterford. Ainda não
caiu a ficha, de verdade! E eu queria poder viver tudo
isso intensamente como meus amigos de banda, mas não
consigo. Nada chega perto do que sonhei um dia, porque
não tem como ser realmente feliz sem você aqui, Becca.
Você não sai da minha cabeça nem por um segundo e eu
acho que vou enlouquecer se não te encontrar outra vez.
Você gostaria de me ver?
Se você quiser, eu volto para o Brasil em
dezembro só para te ver. Só para você. Me diz que sim,
por favor! Vamos fingir que tudo é fácil para nós e que
temos todo o tempo do mundo.
Eu te amo muito e isso nunca vai mudar.
Adônis.
Chewie,
Essa carta é apenas para te atualizar do meu
novo endereço.
Pois é, isso foi bem inesperado, eu sei, haha.
Nataly resolveu estender o intercâmbio por mais seis
meses e eu simplesmente não aguentaria ficar mais
nenhum dia em Maringá, com todas aquelas lembranças
de vocês três me seguindo por onde quer que eu fosse.
Por isso transferi o meu curso para cá e agora moro de
novo com Arthur.
No fim das contas, voltei ao meu estado de
origem e isso é uma ironia. Mas confesso que jamais
imaginei o quanto me apaixonaria por São Paulo. É uma
cidade maravilhosa (metaforicamente, é claro, porque
sinto falta de todas aquelas árvores de Maringá.
Acredite: elas são muito úteis). Jamais experimentei
essa energia pulsante de que tudo pode acontecer a
qualquer momento e, nossa, tem tudo a ver comigo.
Parece que finalmente me encontrei.
Aliás, tenho ótimas notícias (finalmente). A
primeira e mais significativa é que EU CONSEGUI UM
ESTÁGIO NA EDITORA DRAKON!!! Uhuuuuu! Essa é
APENAS a editora que publicou Harry Potter e Jogos
Vorazes aqui no Brasil. Entre outra infinidade de livros
incríveis, é claro. Estou empolgadíssima e tremendo de
medo. Ainda não comecei, então não posso te dar
detalhes mais consistentes, mas o fato é que me pego
sorrindo a toa em vários momentos do dia quando para
pensar que as coisas estão acontecendo. Acho que agora
sei um pouco como você está se sentindo com sua banda.
A sensação é maravilhosa!
A segunda é que a sentença do processo contra
Marcela saiu! Ela foi condenada a me indenizar com
nada menos que 50 mil reais.
Cinquenta. Mil. Reais!
Por Peeta Mellark, eu ficaria contente com
míseros 50 reais, apenas pelo que representaria. Mas
assim também está ótimo, hahah. Quero dizer, eu nunca
poderei fazê-la sentir um terço do que eu senti em todos
aqueles anos, mas ao menos ela vai sentir no bolso. A
justiça foi feita e isso é maravilhoso. Agora eu posso,
enfim, ficar em paz. Obviamente esse valor será
parcelado, e ainda tem a porcentagem do advogado para
descontar, mas a parte boa é que eu terei uma mesada
pelos próximos anos.
Sua visita parece distante depois de tantos
acontecimentos, mas, ainda assim, viva na memória.
Amei ver você novamente, amei o seu cheiro na minha
pele, amei que, por algumas semanas, fomos apenas nós
novamente. E é tudo muito fácil quando somos apenas
nós.
Sinto muito sua falta.
Becca.
Chewie,
Trabalhar em uma editora não é nada parecido
com o que sonhei. Na vida real, é bem mais estressante,
menos glamouroso e diria até um pouco frustrante. Tem
tantos talentos não descobertos escondidos por aí, que
com certeza mudariam a vida de muitas pessoas, mas me
falta poder para fazer qualquer coisa a respeito. Estou
um pouco desapontada por ter levado tanto tempo para
alcançar meu sonho e então descobrir que era “só isso”.
Talvez seja a hora de percorrer novos objetivos? Eu não
sei.
Mas se tiver que trabalhar nesse emprego para
sempre, talvez eu fique muito, muito infeliz mesmo. Ele
não é para mim.
Bom, tirando isso, minhas emoções estão uma
bagunça.
Isso é um pouco culpa sua.
Na verdade, é totalmente culpa sua. Estou apenas
sendo legal, haha.
Vi que vocês assinaram contrato com uma
gravadora incrível e só consigo ficar feliz que sua vida
esteja no rumo que você sempre sonhou. Isso explica o
porquê de eu nunca mais ter notícias suas. Deve estar
muito ocupado. Só que o problema disso é que seu
silêncio está mexendo comigo além da conta. Chego em
casa dia após dia procurando uma carta sua, buscando
um pouco mais de você, sem saber quando ou se vou
encontrar. Estou desnorteada. Não faço a menor ideia de
para qual direção correr.
Andei refletindo muito sobre essa loucura que
somos nós. E então me ocorreu que, meu Deus, até
quando vou continuar me enganando com pequenas
migalhas do amor que já tive um dia? Você não está
mais aqui, nem nunca mais estará. Sua vida está
prosseguindo e, a cada passo que você dá adiante,
também é um passo a mais para longe de mim. Céus,
como isso machuca! Machuca muito saber que, embora
o meu sentimento por você continue exatamente o mesmo
— se não maior — as coisas jamais voltarão a ser como
antes. Nós nunca mais voltaremos a ser aquelas duas
pessoas que só funcionam juntas. Estou feliz por você, é
claro, mas ao mesmo tempo algo morre dentro de mim.
Arthur me diz que eu preciso seguir em frente.
Preciso superar o passado e tentar achar a minha
felicidade. Acho que concordo com ele. Nossa história
foi linda e intensa, mas isso aqui é uma ilusão, estamos
sendo inocentes por achar que vai dar em alguma coisa.
Isso aqui é um erro, Adônis.
Então, acho que você deveria saber, estou saindo
com um colega do trabalho há algumas semanas.
O amor e o carinho que sinto por você jamais
mudarão. Você foi o meu primeiro amor e, mais do que
isso, virou parte de mim. Não posso mudar isso e nem
vou. Mas eu não sei se é justo comigo mesma esperar
por alguém que não vai voltar, entende? Talvez já tenha
passado da hora de virar essa página. Não porque quero
deixar você para trás, mas porque preciso disso, ou
jamais serei feliz outra vez. E, por mais que seja difícil e
doloroso, tenho que tentar.
Espero que esteja bem,
Becca.
Rebecca,
Uau! Eu estou... sem palavras.
Surpreso? Com certeza.
Feliz? Deveria estar, eu sei. Seria tão nobre e
maduro da minha parte, não?
Só que não podia ser mais distante disso, porque,
nesse momento, estou com vontade de quebrar coisas.
Muitas delas.
Porque estou com tanta raiva? Porque sou um
idiota, é claro.
Que bom que você conseguiu nos superar. Espero
um dia também conseguir.
E, Becca, desejo verdadeiramente que seja muito
feliz.
Adônis.
Chewie,
Quem dera eu tivesse superado! Mas, dado o fato
de que terminei o namoro com um cara incrível
simplesmente porque ele não era você, acho que estou
bem longe disso, hahaha. Fico me perguntando se algum
dia vou conseguir estar com uma pessoa sem
instantaneamente me lembrar de você, ou se o único
caminho que resta para mim é adotar vários gatinhos
(peça desculpas ao Castiel) para tentar preencher o
vazio que ficou aqui dentro desde que você partiu.
Arrisco dizer que será a segunda opção.
A razão dessa carta é que eu comecei a escrever
no final do ano passado, para tentar colocar para fora
todo esse turbilhão de sentimentos que abrigo dentro de
mim. E foi tão bom! As palavras jorravam para fora sem
o menor esforço. Eu podia estar com o pior dos humores,
era só sentar para escrever que meu dia voltava a se
iluminar e as cores ficavam mais vibrantes.
Enfim, o fato é que eu nunca tive pretensão
nenhuma com isso. Nunca quis nada além de tirar o peso
dos meus ombros. Ocupar a mente para não acabar
surtando. Só que isso foi até Arthur ler escondido (sim,
ele continua sendo uma peste). Ele insistiu tanto que eu
estava desperdiçando um dom e que deveria publicar na
internet, que acabou me vencendo pelo cansaço.
Daí ele me mostrou esse site, o Wattpad, que é
uma espécie de plataforma para autores amadores
disponibilizarem suas obras gratuitamente. Então os
leitores podem ler, comentar e votar naquelas obras que
mais gostarem.
Eu fiquei bem cética e, para falar a verdade,
nunca acreditei que 1 única pessoa fosse ler. Então
imagine qual não foi a minha surpresa quando, em
apenas dois meses, o livro já tenha passado da marca
dos 5 milhões de leituras? É inacreditável! Mal posso
conceber que isso esteja mesmo acontecendo.
Talvez você esteja se perguntando por que diabos
eu te contaria tudo isso nessa altura do campeonato. E,
bem, é porque meu livro, A Linguagem do Amor, é sobre
nós dois. Não era a minha intenção falar sobre você. A
intenção era justamente NÃO falar. Escrever foi minha
tentativa de te tirar da cabeça, mas, você sabe, em se
tratando de sentimentos, nunca detive muito controle
sobre eles. Ainda não o terminei, mas estou muito
empolgada que as pessoas estejam gostando da minha
escrita e, sobretudo, da nossa história.
Me dá a certeza de que se eu pudesse voltar no
tempo para quando te conheci, teria vivido tudo
novamente, mesmo sabendo de quão angustiante seria a
sua ausência. Pelo simples fato de que fomos perfeitos
juntos. E, poucas vezes na vida, se experimenta algo
parecido.
Rebecca.
Chewie,
Eu te conheci no auge dos meus dezessete anos,
dá para acreditar?
Sei que se estivesse do seu lado, você
provavelmente reviraria os olhos para mim e diria que
adora a minha sagacidade. Não te culpo, eu sou mesmo
rainha de fazer comentários óbvios. Mas é que agora,
perto de completar vinte e dois, eu finalmente me dei
conta de como já faz tempo! Me surpreendi não só com
os anos que passaram, mas principalmente no quanto as
coisas mudaram de lá para cá, sabe? Céus, quase parece
outra vida. Tudo mudou, nossas realidades mudaram.
Quem poderia imaginar nos rumos que seguiríamos? Eu
jamais poderia fazer ideia. A única coisa que não mudou
nesse intervalo foi o meu amor por você. Mas, sendo
honesta comigo mesma, receio que isso nunca vai deixar
de ser assim. E tudo bem. Você é a minha faceta mais
bonita.
Acho tão engraçado que, por tanto tempo, me
privei do amor com medo de sofrer e fui me apaixonar
logo pelo meu professor complicado, que estava de
viagem marcada para fora do país. Quero dizer, dentro
todas as coisas fáceis, olha só onde fui parar! Talvez
você seja meu carma, Hahahah
Não sei se você vai ler essa carta, tampouco sei
se chegou a receber a última. Gosto de me convencer
que não, e esse é o único motivo para nunca mais ter
respondido. Mas, se por acaso estiver com essa em
mãos, talvez no meio de um voo para o próximo destino
da turnê da sua banda, ocupado demais para dar um
sinal de vida, saiba que esse é um adeus. É aqui que
nossos caminhos finalmente encontram a bifurcação e
você deixa de fazer parte da minha vida. Ou é nisso que
quero acreditar. O fato é que na próxima semana me
mudo desse endereço e não pretendo mais entrar em
contato com você. Isso dói em mim, mas o caminho certo
nem sempre é o fácil. Está me machucando demais adiar
esse adeus que, na verdade, já aconteceu em alguns
anos, em um hotel fazenda, com você me dizendo as
palavras mais lindas que alguém já me disse um dia.
Então, apenas para não encerrarmos com um
clima pesado que não combina em nada com nós dois,
que tal eu te contar as novidades?
A Linguagem do Amor alcançou 8 milhões de
leituras online! O que acabou chamando atenção de uma
das maiores editoras do país e, por isso, serei lançada
na Bienal de São Paulo, dia 28 de agosto às 20h. Onde
quer que você esteja nesse dia, espero que se lembre de
mim e saiba que finalmente me encontrei. Finalmente
achei algo que faça com que eu me sinta viva, como há
muito não me sentia. É o primeiro raio de felicidade
depois de uma longa tempestade.
Torço muito pela sua felicidade (e a de Castiel
também). Espero que encontre alguém incrível, que te dê
mais motivos para sorrir do que para chorar. Espero que
viaje o mundo e conheça os mais diferentes lugares e
que, em cada um deles, as pessoas o reconheçam pela
sua música e contem o quanto você os ajudou a sair de
um momento ruim.
Obrigada por me ensinar a amar.
De alguém que para sempre te desejará o bem,
Princesinha-donzela.
Estou na miséria
Não há ninguém
Que possa me confortar
Por que você não me responde?
Seu silêncio está me matando lentamente
Maroon 5 - Misery
— Você pode assinar esses dois, por favor?
Minha melhor amiga não pôde vir junto e eu queria muito
surpreendê-la. Ela ama esse livro! — subi o olhar e
encontrei uma garota que deveria estar na casa dos quinze.
Ela tinha expressivos olhos castanhos e um sorriso
nervoso estampava o rosto.
No mesmo instante, meu coração apertou
consideravelmente.
— Como é o seu nome? — perguntei, mordiscando
o lábio inferior.
— Rebeca, mas com um c só! — exclamou,
animadíssima.
— Que legal! — deixei escapar e, apenas para
confirmar a resposta, olhei de soslaio para o meu editor
que negou com um acenar de cabeça, indicando a fila que
se estendia atrás dela. De fato, era enorme. E, levando em
conta que eu só tinha mais uma hora para autografar os
livros de todas aquelas pessoas, era compreensível o
porquê de ele não hesitar em sua resposta. — Eu adoraria,
mas infelizmente não posso, me desculpa. Temos um
cronograma e se abrirmos essa exceção para uma pessoa,
vamos precisar abrir para todo mundo. E ainda tem muita
gente para assinar... — encolhi os ombros.
Ela não era a primeira a pedir e eu sabia que não
seria a última. E eu, manteiga derretida como era, ficava
chateada de não poder atender todos os pedidos. Mas
também não seria justo com todas as pessoas que haviam
conseguido as senhas.
Por sorte, Rebeca levou na esportiva e estendeu
seu livro com um sorriso enorme no rosto, no qual assinei
bem grandão, “Rebeca, espero que esse livro seja para
sempre um lembrete do quanto a vida pode nos
surpreender. Um beijo da sua xará, Becca!”.
— Aqui está — entreguei o livro em suas mãos e
ela logo veio ao meu lado, para que o fotógrafo batesse
uma foto nossa. Minhas bochechas doeram quando eu
sorri, mas, estranhamente, essa foi uma dor deliciosa que
adoraria continuar sentindo.
Era incrível saber que todas aquelas pessoas
estavam ali por mim, unicamente porque apreciavam o
meu trabalho a ponto de se importarem comigo. Ainda não
havia caído a ficha de que aquilo estava mesmo
acontecendo. Não só eu estar na minha própria sessão de
autógrafos, mas, principalmente de que pessoas me
pediam para assinar um livro a mais e eu precisava negar.
Quero dizer, nem nos meus sonhos mais incríveis e
impossíveis algo tão maravilhoso assim acontecia!
Assisti a Rebeca se afastar depois de nos
despedirmos e aproveitei o momento para pegar outra
caixa de marcadores embaixo da mesa. Fiquei tão
distraída pensando no quanto a noite estava sendo incrível
que, quando me levantei novamente, pulei no lugar ao me
deparar com o homem parado logo em minha frente. Pelo
olho de Sauron!, pensei atônita, piscando algumas vezes
apenas para confirmar se estava mesmo vendo aquilo ou a
minha mente estava com sérios, sérios problemas. Se
aquele cara não era o Thor, eu não sabia quem era! Ele
tinha, o que, dois metros de altura? Talvez mais. O fato é
que seus cabelos loiros compridos eram desconcertantes,
isso sem contar em todos aqueles músculos... Foi então
que desviei os olhos ligeiramente para a esquerda e
reparei em sua namorada, que vinha logo atrás dele,
abraçada ao meu livro como se o usasse de escudo. Ela
também não ficava muito atrás, para ser honesta. Os
cabelos castanhos caíam em cascatas pelos ombros e os
olhos avelãs me fitavam com expectativa. Não sei
exatamente a razão — talvez tenha sido culpa do seu
namorado imenso, ou apenas suas características físicas
muito semelhantes —, mas foi impossível não associá-la à
Bela, de A Bela e a Fera. E a constatação me arrancou um
sorriso.
— Becca, estou tão feliz em conhecer você! —
exclamou ela, arriscando um passo à frente, com um
sorriso no rosto. — Te acompanho desde o Wattpad... li
seu livro em um único dia e, pelos deuses, eu amei!
— Sério?! — perguntei, com um sorriso idiota no
rosto.
Não adiantava, eu continuava delirando cada vez
que alguém me dizia coisas do tipo. Era simplesmente
insano pensar que algo escrito por mim tivesse ganhado a
atenção de uma pessoa a ponto de ela não conseguir
abandonar a leitura.
— É sério!
— Nossa... eu queria conseguir exprimir o quanto
isso me deixa feliz, mas acho que dá para notar na minha
cara, né? — brinquei, fazendo-os rir.
Meu editor pigarreou com um pouco de
impaciência, lembrando-me da realidade. E, nela, eu não
tinha tempo para jogar conversa fora, embora fosse algo
realmente convidativo. Por isso, tudo o que fiz foi pegar o
livro das mãos dela, colocando-o sobre a mesa e abrindo
na folha de rosto.
— Eu assino no nome dos dois?
— Isso! — foi ele quem respondeu, olhando para
ela. Meus pensamentos foram parar inevitavelmente em
Adônis. Senti uma pontada na boca do estômago, odiando-
me por, mesmo depois de tanto tempo, não ter conseguido
superar o passado. — Nora e Átila, por favor.
— Certo.
Inclinei-me para frente e escrevi a dedicatória em
poucos segundos, devolvendo-o a Nora, que me
surpreendeu ao contornar a mesa para me abraçar.
Retribuí o gesto, ao mesmo tempo em que ele parou à
minha esquerda, para que o fotógrafo tirasse uma foto de
nós três.
E, mesmo depois de eles terem abandonado a
mesa, permaneci com o mesmo sorriso bobo no rosto,
afetada pelo carinho de Nora comigo. O que foi muito
bom, porque assim não foquei no fato de que, mesmo sem
querer, a presença deles acendeu uma parte minha muito
perigosa. Aquela que, normalmente, fazia-me chorar
ouvindo Beatles, ou cada vez que alguém falava sobre
dinossauros perto de mim — entre outras situações do
tipo.
Fazia pouco mais de duas horas que eu estava ali
e, apesar do cansaço físico e mental depois de tanto
conversar e interagir com meus leitores, a felicidade era
esmagadora e compensava todo o resto. Era justamente
por isso que eu me recusava a deixar o melhor dia da
minha vida ser apagado pela memória de Adônis. Eu não
me permitiria sentir saudades, tampouco tristeza. Não, eu
precisava ser grata por todas as coisas incríveis
acontecendo em minha vida.
Naquela manhã, quando Arthur e Nataly me
acordaram com o café na cama e um buquê lindo de Lírios
do Vale — cujo significado, segundo eles, era “volta da
felicidade” —, fiz uma promessa de que, não importa o
quanto doesse, eu lutaria para permanecer firme. Lutaria
pela volta da minha felicidade. E, no fim das contas, não
foi muito difícil, principalmente levando em consideração
a quantidade de carinho e amor que recebi de tantas
pessoas diferentes.
Além do mais, tinham também meus avós que,
assim como meus melhores amigos, não saíram do stand
da editora desde o começo da minha sessão de autógrafos.
Mesmo sem cadeiras para sentar, os quatro pareciam tão
felizes quanto eu e, cada vez que os procurava com o
olhar, encontrava-os conversando animadamente, sempre
com um grupo de pessoas diferente. Eu quase podia
imaginar vovô dizendo para cada um deles:
— Becca é a minha neta, sabia? Ela é como uma
filha para mim!
Isso deixava meu coração transbordando de amor.
Ter os quatro ali era maravilhoso e eu me sentia muito
realizada, ainda mais por ter o apoio das pessoas que
mais amava. No entanto, por mais errado que parecesse
admitir isso, ainda faltava algo. Agora eu entendia muito
bem o que Adônis me disse pouco antes de ir embora para
a Irlanda, sobre seu sonho jamais ser como sempre
almejou, porque não estaríamos mais juntos. Era
exatamente assim que eu me sentia. Como se possuísse
uma ferida dentro de mim a qual nunca cicatrizasse e que,
graças a isso, eu não pudesse viver as outras coisas sem
que sua presença estivesse tão incisiva em minha vida.
Tudo o que eu mais queria era arrancá-la, para poder me
lembrar de como era viver sem algo incomodando
constantemente. Droga, eu só queria conseguir esquecer.
Ou, ao menos, tentava me convencer disso.
Balancei a cabeça para afastar os pensamentos
turbulentos e, em seguida, abaixei para alcançar minha
garrafinha de água embaixo da mesa. A fila permanecia
enorme e eu simplesmente não podia me dar ao luxo de
continuar divagando, ainda mais quando tantas pessoas
tinham saído de suas casas para me prestigiar. Ainda
escondida atrás da mesa, percebi que já havia alguém
aguardando para me ver e, por isso, apressei-me. Dei um
longo gole e senti a água fresca descer pela garganta,
aliviando a sede. Ao levantar, encontrei um livro já aberto
na folha de rosto, apenas a minha espera. Expirei o ar dos
pulmões e, ainda ocupada em fechar a garrafinha,
perguntei distraída:
— Assino no nome de quem?
— Chewie.
Foi rápido demais e, ao mesmo tempo, pareceu
acontecer em câmera lenta. Uma dessas antíteses sem
explicação da vida. Enrijeci-me, engolindo em seco. Em
nem ao menos havia tido a chance de olhar para cima
ainda. Agora, no entanto, não seria mais preciso. Eram
muitos detalhes que, somados, dissipavam qualquer
sombra de dúvida. Em primeiro lugar, sua voz. Eu a
reconheceria mesmo em mil anos. Depois tinha o perfume
que, embora tivesse se apagado de minha memória,
reacendeu tão logo ele penetrou minhas narinas. Inspirei
profundamente, sendo invadida ao mesmo tempo pela
fragrância e pelas memórias. Mas, ainda que não houvesse
nada disso, daria para suspeitar de algo pela comoção que
se fez ao meu redor. Havia um murmúrio ocupando o
stand inteirinho, como se todos ali dentro sussurrassem
uns para os outros que o reconheciam da banda
Tyrannosaurs — ou, quem sabe, do meu livro.
Com o coração a mil por hora e morrendo de
medo do iminente, subi o olhar. Se eu ainda estava
respirando, provavelmente parei naquele exato momento.
Adônis estava ali, encarando-me com os olhos de
Outono em brasa. Sua expressão era dura, diria até brava.
As grossas sobrancelhas encontravam-se unidas,
formando vincos profundos na testa. Ele usava um chapéu
preto e a barba estilo lenhador permanecia intacta, como
eu adorava.
Notei, no entanto, que apesar da postura firme, seu
corpo entregava, de maneira sutil, o desespero que ele
tanto tentava esconder. Isso porque seus dedos tremiam
levemente, e ele não parava de bater a ponta do coturno
no chão. Mas o principal certamente era a maneira como
sua respiração estava entrecortada, tal como se ele tivesse
acabado de correr uma maratona inteira antes de estar ali.
Chocada, a única coisa que consegui verbalizar
foi:
— O que está fazendo?
— Te dando uma resposta — explicou, apoiando-
se com as duas mãos na mesa de autógrafo.
— Uma... resposta?
E então, a explosão começou. Céus, eu nem ao
menos tive tempo para me preocupar com a quantidade
alarmante de pessoas nos assistindo porque as palavras
que ele falava com tamanha intensidade e urgência
roubaram todo o meu foco.
— Sim, donzela. Viajei mais de 10 horas para te
responder! Só para dizer que te conhecer foi a coisa mais
incrível que já me aconteceu. E que, por isso, não preciso
e nem quero encontrar ninguém mais. Porque é
insignificante outra pessoa me dar motivos para sorrir
quando você deu um sentido para a minha vida. E,
donzela, viajar pelo mundo não é um sonho. Não quando
se acorda noite após noite sozinho e confuso em um quarto
de hotel, relembrando a única vez em que foi
verdadeiramente feliz na vida inteira e sentindo que um
pedaço seu morre a cada dia em que se distancia mais e
mais dessa pontinho de luz em anos de escuridão. Viajar
pelo mundo é igual acampar, só vale a pena com uma boa
companhia! — Adônis se inclinou ainda mais para frente,
ficando a pouquíssimos centímetros de distância. Então,
diminuindo consideravelmente o tom de sua voz, falou
olhando no fundo de meus olhos. — Você disse que torce
pela minha felicidade, mas, porra, Rebecca, será que você
realmente não vê? A única maneira de eu ser feliz é com
você ao meu lado!
Aquele foi o estopim para que eu jogasse o meu
juízo no lixo. Ou, ao menos, o que restava dele. Sem me
importar com nada mais além do que meu coração pedia,
levantei-me em um rompente, ignorando o resto do mundo
e focando apenas no que importava — nós dois. E, eu
juro, a vida voltou a ser boa outra vez.
Eu sabia que todas as questões envolvendo Adônis
e eu ainda estavam em aberto. Sabia que ele me devia
explicações e sabia que eu provavelmente tinha arruinado
o cronograma de autógrafos e que talvez fosse receber
uma bronca do meu editor. Mas nada disso fazia
diferença.
Naquele momento, com Adônis me beijando de um
jeito dolorosamente doce, as coisas não poderiam ser
mais simples para mim.
Nós viemos tão longe minha querida
Veja como nós crescemos
E eu quero ficar com você
Até ficarmos grisalhos e velhos
Apenas diga que você não vai embora
https://open.spotify.com/user/lolasalgado_/playlist/2
[1]
Metallica – Nothing Else Matters