Você está na página 1de 1093

Copyright © 2017 Lola Salgado

Capa: Camille Etwas


Revisão: Luísa Pinheiro
Diagramação Digital: Camille Etwas

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens,


lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com a
realidade é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou
reproduzida sob quaisquer meios existentes — tangíveis
ou intangíveis — sem autorização da autora. A violação
dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°
9.610/98, punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sumário
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Epílogo
Agradecimentos
Playlist
Sobre a Autora
Se você se sentir um turista na sua própria cidade
Então é hora de ir embora
E definir um destino
Há tantos lugares diferentes para se chamar de lar

Death Cab for Cutie – You’re a tourist

Encaixei o último cabide no guarda-roupa, ainda


tentando me familiarizar com o novo quarto. Meus olhos
fizeram uma varredura no pequeno cômodo com piso de
tacos, e nem mesmo o fato de faltarem alguns mudou a
forma maravilhosa como eu me sentia. Tudo naquela
cidade, desde as inúmeras árvores ao clima quente,
acolhia-me de braços abertos. Era como se depois de
passar a vida sendo apenas uma coadjuvante, eu
finalmente me tornasse a protagonista dos meus sonhos.
Eu via, enfim, as coisas começando a acontecer, e era a
única responsável por elas. Dependia apenas de mim, e de
mais ninguém.
Respirei fundo, sorvendo uma boa quantidade de
ar. O frescor pairando na atmosfera, a sensação de ser
invencível... Existiam muitos sentimentos inexplicáveis
me rondando. Caminhei até a janela, um sorriso
inoportuno preso nos lábios. Eu deveria me sentir triste,
ou pelo menos melancólica, depois de assistir aos meus
tão queridos avós se despedirem com os olhos marejados,
prestes a percorrerem quilômetros até Santa Cruz do Rio
Pardo, minha cidade natal. No entanto, apesar de
experimentar um friozinho subindo pela barriga, eu sabia
não se tratar de uma despedida. Soava mais como um “até
logo”.
No fim das contas, estar ali sempre foi o meu
objetivo principal. Dentre tantas universidades no estado
de São Paulo próximas de casa, escolhi o Paraná como
lar. Não por querer fugir, mas apenas para ser diferente
dela. Mostrar para nós duas a minha capacidade de
realizar meus sonhos da maneira como ela não pôde
realizar os seus e me atribuiu a culpa por isso. Provar
que, apesar da rejeição, eu segui a vida da melhor
maneira possível. Bem, isso seria muito admirável da
minha parte se ela ligasse minimamente para o fato de eu
estar ou não viva. Acho que, no fundo, ela só amava a si
mesma.
A lembrança da minha mãe trouxe uma corpulenta
nuvem de amargura para o dia, até então, ensolarado.
Mordisquei a boca, demorando-me em observar o fluxo
de pessoas caminhando lá no estacionamento. Quais eram
as suas histórias? Como haviam chegado ali?
De repente, fui desperta dos meus devaneios por
três toques leves na porta — leves até demais. Endireitei-
me, demorando alguns segundos para entender que não
seria a minha avó do outro lado, perguntando se eu estava
com fome; nem o meu avô, convidando-me para
acompanhá-lo até a padaria. Precisaria me acostumar com
os detalhes de minha nova condição chegando em
pequenas porções, revelando para mim como seria a
partir de então.
— Entre! — falei, por fim.
Tão suave quanto as batidas, foi a maneira como a
maçaneta girou e a porta se moveu, revelando Arthur. Ele
era uma figura engraçada como um todo — olhos
castanhos esbugalhados, conferindo-lhe uma expressão
eternamente assustada; cabelos platinados espetados para
todas as direções e um sorrisinho torto de alguém com
uma boa piada para contar. Soube, logo de cara, que nos
daríamos bem.
Foi com ele que conversei primeiro pela internet,
quando o resultado do vestibular foi divulgado e o meu
nome estava lindamente posicionado em terceiro lugar do
curso de Letras Português/Inglês. Encontrei Arthur em um
grupo do Facebook e, embora as chances disso dar errado
fossem gritantes, no fim das contas correu tudo bem. No
final de semana anterior à minha mudança, fui com os
meus avós para averiguar a situação do apartamento e
descobrir se seria um bom lar pelos próximos quatro
anos. Não tinha muitas expectativas, afinal, como já disse,
as chances de dar errado eram mesmo enormes. Porém,
indo contra as minhas suposições, encontramos um
apartamento consideravelmente limpo e organizado para
uma república.
Veja bem, eu falei para uma república.
Fora ele, morava mais uma garota. Os dois seriam
os meus veteranos do curso de Letras. Ela se chamava
Nataly, mas eu ainda não havia tido a chance de conhecê-
la fora da internet, pois estava passando as férias na
Disney com a família e voltaria um pouco depois das
aulas começarem. Até para mim, uma CDF assumida, isso
era completamente plausível.
Seríamos apenas nós três e isso parecia muito
promissor.
Consegui achar móveis por preços ridiculamente
baratos, neste mesmo grupo de Facebook onde encontrei
um lar.
Era incrível a quantidade de alunos querendo se
livrar o mais rápido possível dos pertences, a fim de
voltar às cidades natais. Conforme o dia da partida se
aproximava, os preços caíam e, por isso, consegui
mobiliar um quarto com uma pechincha de trezentos reais.
Tinha tudo o que um estudante poderia almejar: uma cama
modesta, um guarda-roupa surrado e uma escrivaninha
balançando de uma maneira preocupante, mas cumprindo
com a função de sustentar meu notebook.
Então, depois de acertar todos os detalhes da
mudança, ali estava eu, apoiada com as costas contra a
janela para observar Arthur atravessar o cômodo em
passos arrastados. Ao alcançar a cama, jogou-se
preguiçosamente nela e só então percebi vestir uma
camiseta com um enorme Darth Vader estampado. Ah, meu
Deus, com toda certeza nos daríamos muito bem!
— Você está legal, Rebecca? — perguntou com a
voz pastosa. Tudo em Arthur era demasiadamente devagar,
como se ele estivesse sintonizado em outra frequência.
— Sim, eu acho. Ainda não deu tempo nem de me
acostumar e nem de sentir saudade de casa... Engraçado,
não?
Ele sorriu, assentindo com a cabeça.
— Sei como é. Ainda está muito recente... mas
você vai gostar! — afirmou, espreguiçando-se.
— Há quanto tempo mora aqui?
— Dois anos.
— Você é de onde?
— Assis Chateaubriand.
— E você tem saudades? — Pare de interrogá-lo,
meu subconsciente ordenou, mas as perguntas não
paravam de pular da boca.
Arthur suspirou, com uma expressão revelando
claramente que não.
— Lá não tem nada para mim — admitiu com um
tom sombrio. — Nada que valha a pena.
Permanecemos em silêncio por alguns segundos,
absorvendo o impacto das palavras. Peguei-me seguindo
sua lógica de pensamento e constatando que, tirando os
meus avós, eu também não tinha mais nada.
Contrariando seu ritmo lento, Arthur pulou para
fora da cama em um rompante, com um sorriso animado
brotando no rosto.
— Que tal uma caminhada?
— Na verdade, eu estava pensando em terminar de
ajeitar as minhas coisas. — Encolhi os ombros, como se
me desculpasse silenciosamente.
— Vamos lá, você ainda terá muito tempo para
isso. As aulas só começam daqui a um mês. Quero te
mostrar o bairro onde vai morar pelos próximos anos.
Olhei para a janela por cima dos ombros,
pensando na melhor maneira de me esquivar sem magoá-
lo. Mas, então, o imaculado céu turquesa repetiu o convite
feito por Arthur. Fazia um dia tão bonito, com brisas
deliciosas que adentravam o quarto chacoalhando as
cortinas. Seria um desperdício ficar trancada ali a tarde
toda.
— Tudo bem — cedi, sorrindo para ele. — Estou
mesmo morrendo de fome!

Quando você pensa em amor, você pensa em dor?


Você pode me dizer o que você vê
Eu vou escolher em que acredito

Vance Joy – Mess is mine

Sempre gostei de ter as coisas sob controle. Isso


não era difícil de perceber quando se levava em conta a
maneira como eu seguia à risca a minha agenda pessoal.
Tudo precisava ser planejado com antecedência, agir por
impulso não era exatamente o meu esporte favorito. Isso
também é um pouco por causa dela. A ânsia de não seguir
os mesmos passos, de não cometer os mesmos erros, de
não ser como ela.
No meu notebook, a música já havia ido de Zé
Ramalho a Pink Floyd, passando por The Strokes no
caminho. Não sou uma pessoa com os gostos muito
definidos e atribuo isso ao fato de ter sido criada pelos
meus avós. Duas gerações de diferença, eu sempre
perambulei entre o antigo e o novo, entre o ontem e o
agora. Nunca me senti muito conectada com as pessoas da
minha idade, mas também não me sentia tão madura
quanto os mais velhos.
Por isso, aprendi a apreciar a minha própria
companhia. Um mundinho só meu, repleto de jogos de
tabuleiro, filmes de terror — quanto mais sangrentos,
melhor — e passeios na minha Caloi verde-água com
cestinha, a qual tinha feito questão de arrastar até
Maringá.
Porém, a minha maior paixão era, com toda a
certeza, os livros de fantasia. Algumas garotas nascem
para o romance, mas preciso confessar que ele nunca foi
para mim. Sempre com o nariz enfiado em uma nova
história, eu gostava de viajar pelos reinos mais distantes,
onde dragões e bruxos eram tão comuns quanto comer
torradas no café da manhã. Espelhava-me nas personagens
fortes encontradas nos livros e sonhava em ser uma
Hermione Granger ou uma Katniss Everdeen da vida
real. Talvez eu fosse o que os outros chamam de pessoa no
mundo da lua, no entanto jamais me importei muito com
isso.
Fui desperta dos pensamentos quando uma nova
música começou, desta vez era Velha e Louca, da Mallu
Magalhães.

Pode falar que eu nem ligo,


Agora eu sigo
O meu nariz,
Respiro fundo e canto
Mesmo que um tanto rouca.

Pode falar, não me importa


O que tenho de torta
Eu tenho de feliz,
Eu vou cambaleando
De perna bamba e solta.

Senti um calor gostoso no peito, dando-me conta


de que contava pouco mais de duas semanas morando ali e
eu já me sentia completamente em casa. Arthur e eu
tivemos muito tempo para nos conhecer e, para minha
surpresa, nós partilhávamos de vários gostos em comum
— dentre estes, meninos. Descobri o fato de ele ser gay
em uma abafada noite de quarta-feira, quando fomos até
feirinha da cidade providenciar o tipo de comida que
deixa os pais orgulhosos. No caminho de volta para o
nosso apartamento, cruzamos com um rapaz loiro de
enormes olhos azuis. Ele parecia ter saído de uma revista
e, enquanto eu lutava para me recuperar o fôlego, a voz
arrastada de Arthur me fez dar um pulinho de susto no
lugar.
— Meu Deus, Rebecca, você viu aquele homem?
— Se você está falando sobre o Thor que acabou
de passar, sim, eu vi!
Depois disso, passamos horas a fio debatendo
sobre famosos que achávamos ou não bonitos.
Concordamos em quase todos os tópicos, exceto por
Harry Styles. Embora eu o achasse um pedaço de mau
caminho, Arthur dizia apenas que ele ainda precisava de
muito arroz e feijão para chegar lá.
Sorri com a memória e, encarando o espelho,
inclinei o corpo ligeiramente para a esquerda, a fim de
alcançar a escova sobre a escrivaninha. Comecei pela
minha franjinha reta, bastaram algumas escovadas para
assentá-la no lugar. Meu cabelo cor de chocolate meio
amargo batia pouco abaixo do pescoço em algo oscilando
entre liso e ondulado. Eu gostava. Juntei-o sem
dificuldade em um rabo de cavalo, abandonando o
espelho em seguida.
Com exceção do cabelo, eu não herdara nenhuma
característica física da minha mãe. Ao contrário dela, com
os olhos castanhos e a pele oliva, minhas íris tinham cor
de pistache e a pele era pálida a ponto de ser possível ver
as azuladas linhas orgânicas formadas pelas veias. Eu
nunca conheci o meu pai — nem eu, nem ninguém além
dela — mas não era preciso ser um gênio da genética para
calcular que eu deveria ser como ele.
Ajoelhei ao lado da cama, pescando a maleta de
plástico debaixo dela, onde costumava guardar meus
materiais de desenho. Destaquei uma folha de papel
Canson, alinhando-a de maneira meticulosa sobre a
escrivaninha bamba. Todos os meus conhecidos insistiam
para eu investir nessa habilidade e, para muitos, foi uma
grande surpresa a minha primeira escolha para a
faculdade não ser algo relacionado a isso. No entanto, a
verdade era que eu considerava o ato de desenhar uma
válvula de escape. Era quando eu podia esvaziar minha
mente de todos os pensamentos e me conectar comigo
mesma. Jamais poderia tornar um momento tão íntimo
como forma de ganha pão. Talvez não fizesse o menor
sentido, porém algo sobre monetizar o meu dom soava de
maneira errada.
Foi esse o motivo para eu ter escolhido o curso de
Letras. As palavras, sim, eram o ar que preenchia os meus
pulmões e a força-motriz necessária para impulsionar os
meus dias. Graças aos livros, não sucumbi à tristeza pela
rejeição da minha mãe e, por essa razão, eram tão
importantes para mim. Perdi a conta de quantas vezes fugi
da realidade enfiada por tardes e mais tardes em páginas
amareladas de intermináveis livros. Meu sonho de
trabalhar em uma grande editora veio daí. Se eu pudesse
descobrir livros tão incríveis quanto aqueles com espaço
especial no meu coração, talvez mudasse a vida de outras
tantas pessoas. Já que eu não possuía o dom da escrita,
contribuiria da forma que me era palpável.
Com essa certeza, eu estava decidida a começar a
faculdade — dando o meu melhor para alcançar o sonho
traçado com tanto afinco. E nada, nem ninguém, tiraria o
foco do meu objetivo.
Ou, ao menos, era o que eu imaginava.
Escute, eu não te conheço realmente
E não acho que queira
Mas acho que posso fingir se você puder

Passion Pit – Carried away


— Arthur, estou indo ao mercado. Você precisa
de alguma coisa? — perguntei, batendo com os nós dos
dedos na porta fechada do seu quarto.
— Calma aí! — a voz pastosa veio abafada de lá
de dentro. Alguns segundos depois, a porta foi aberta com
um clique e ele apareceu do outro lado, com a cara
amassada de quem havia acabado de acordar. — Traz um
pacote de proteína de soja, por favor?
Ah, é, esqueci-me de contar, meu mais novo amigo
era vegetariano! E, para a minha sorte, um ótimo
cozinheiro. Já eu, não sabia nem fritar um ovo sem o risco
de provocar um incêndio, então agradeci aos céus por ele
ter aparecido na minha vida. Além disso, seus pratos eram
todos diferentes, muito coloridos e deliciosos. Quiche de
palmito, talharim com brócolis, galettes de cenoura e, o
meu preferido de todos, risoto de amêndoas tostadas
— também tinha uva passa nele, mas não me envergonho
em admitir ter tirado todas e arrastado para o prato de
Arthur.
Peguei a nota de vinte reais estendida na minha
direção, observando-o virar as costas para, muito
provavelmente, voltar a dormir. Se existia algo que eu
jamais entenderia era isso que as pessoas da minha idade
tinham de hibernar até metade do dia. Eu sei, pareço uma
velha falando assim, mas depois de acordar por toda uma
vida antes das sete, virou um hábito. E eu gostava muito.
De manhã existia uma atmosfera incrível de tudo-pode-
acontecer-hoje, e isso me deixava cheia de energia. Fora
isso, nada era mais delicioso, para mim, que o céu pálido
começando a receber as cores do dia, a brisa suave e
contínua da manhã, além de uma profusão de pássaros
celebrando um novo começo. Eu era uma pessoa simples
de impressionar, no fim das contas. Pequenos detalhes já
eram o suficiente para aquecer o meu coração.
Dei um pulinho até o meu quarto para escolher um
par de all-star’s da minha pequena coleção (foi o
vermelho, a propósito) e então, no segundo seguinte, já
corria animada pelos degraus em direção ao térreo. No
meio do caminho, embolei os pés um no outro e voei para
frente como uma manga madura caindo da árvore.
Agarrei-me de qualquer jeito nas barras metálicas laterais
para evitar quebrar os dentes, mas, mesmo assim, perdi o
equilíbrio e me estatelei de bunda, deslizando alguns
degraus naquela posição nada favorável.
— AIII! — gritei de dor, esfregando o bumbum,
que queimava.
— Será que a donzela não tem outro lugar para
ficar sentada?
Ergui o rosto, sobressaltada com a voz grossa
como um trovão responsável por quebrar o silêncio do
corredor. De frente para mim, estava parado um homem
tão alto quanto um urso, cujos braços fortes seguravam
uma enorme caixa de papelão parecendo realmente
pesada. Com a cabeça inclinada para buscar visão, ele me
encarava com os olhos ocre-esverdeados impacientes.
Sua expressão era a mesma de alguém que acabou de
pisar em um cocô a caminho de uma entrevista de
emprego e ainda não se conformou com isso.
Fiquei tão perplexa com sua postura rude que
demorei alguns segundos para compreender a grosseria
gratuita com a qual se dirigiu a mim.
— Se você não percebeu, não estou aqui de
bobeira. Acabei de cair!
— Mas não deixa de estar no meu caminho!
Ai, seu ogro estúpido!
Tomei um impulso para levantar, incrédula com
sua falta de empatia com o fato de que eu podia ter me
machucado. Sentindo as bochechas queimarem de raiva,
abri espaço para ele, fazendo uma reverência exagerada
para indicar o espaço livre.
— Prontinho, pode passar!
Em passos apressados que só reforçavam a sua
impaciência, o Senhor Insuportável deixou um rastro de
perfume no caminho. Tão logo o seu aroma delicioso e
repleto de feromônios penetrou minhas narinas, estaquei
no lugar, inspirando profundamente o cheiro amadeirado e
forte que pairava pelo ar. Pelas barbas de Merlin, pensei
atônita, agarrando o corrimão para refrear a moleza nas
pernas.
Então, ainda entorpecida pelo cheiro dele, ouvi-o
bufar antes de murmurar para si mesmo.
— Não era sem tempo!
Caí em mim, sendo dominada por uma chama de
ira. Ela subiu pelo meu corpo, deixando tudo ardente.
Como é que é?, meu subconsciente perguntou, estupefato.
Sem pensar direito, girei nos calcanhares e comecei a
subir atrás dele. Só percebi o que estava fazendo quando
ouvi a minha própria voz trêmula de raiva.
— Qual é a sua, hein? É sempre um idiota mal
educado com todo mundo?
Ele parou no lugar, visivelmente surpreso. Os
segundos continuaram correndo e, quando achei que fosse
apenas me ignorar e seguir o seu caminho, ele se inclinou
para frente, deixando a caixa sobre o patamar da escada.
Depois se virou, com as sobrancelhas unidas e muitos
vincos na testa.
— Perdão?
Só então tive a visão completa dele. Meus olhos
percorreram um detalhe por vez, como que para
compreender partes de um todo. Usava uma justa camiseta
de gola V cinza mescla, destacando os bíceps fortes e o
peitoral definido. O cabelo preto na altura das orelhas
fora jogado para o lado em um penteado propositalmente
desordenado (e incrivelmente sexy). No entanto, nada
disso chamava tanto a atenção quanto a barba estilo
lenhador cobrindo boa parte do rosto dele, contribuindo
com o porte de bad boy.
Só recobrei o raciocínio quando nossos olhos se
encontraram.
Eu o estava secando deliberadamente?
Não, de jeito nenhum!
— Bem... não estou com tempo para adolescentes
com os hormônios à flor da pele. Tenho muito o que fazer,
como pode ver. Até mais.
E, num impulso, deu as costas para mim
novamente, agarrando a caixa no chão e sumindo do meu
campo de visão. Permaneci olhando para o nada por
alguns minutos antes de balançar a cabeça em negativa,
decidida a tentar esquecer o encontro peculiar com o
maior ogro de todos os tempos.
Logo saí do prédio de tijolinhos à vista com uma
enorme letra G pintada em branco. Olhei ao redor, ainda
surpresa com a pequena cidade dentro de Maringá, onde
morava agora. Conhecido como “Os Blocos de Letras da
UEM”, o condomínio possuía um edifício para cada letra
do alfabeto do A ao O. Cada um deles com 32
apartamentos de três quartos. Não era preciso fazer as
contas para constatar o fato de haver uma população
considerável de estudantes morando ali.
Caminhei até o suporte para bicicletas no
estacionamento, soltando a minha Caloi do cadeado.
Empurrei-a até sair pelos portões pintados por um verde
pálido e, ao alcançar a rua, não hesitei em montar nela.
Quando comecei a pedalar a caminho do mercado,
já nem me lembrava mais do barbudo grosseiro com o
qual tive o desprazer de cruzar.
Mas mal sabia eu que ainda esbarraria muito com
ele...
Eu queria tudo o que nunca tive
Como o amor que vem com a luz
Eu vestia inveja e eu odiava aquilo
Mas eu sobrevivi
Sia – Alive

Cerca de uma hora depois, eu subia as escadas


do meu prédio com uma dúzia de sacolas pesadas
prendendo a circulação dos dedos. O bumbum ainda
protestava pelo tombo de outrora, por isso eu seguia em
passos cuidadosos, com medo de escorregar novamente.
Afinal de contas, quem, em sã consciência, gostaria de
começar as aulas com um braço quebrado?
Definitivamente, não eu.
Cheguei ao meu andar ofegante e lamentando por
pensamentos a falta que um elevador fazia na vida de uma
pessoa. Percorri o corredor com pressa para soltar as
sacolas e libertar meus dedinhos roxos, mas minhas
pernas viraram cimento quando reparei na porta aberta
próxima à minha.
Foi então que um pensamento me ocorreu e, aos
poucos, uni os acontecimentos daquele dia. O homem
barbudo. Segurando uma caixa. Fazendo, muito
provavelmente, a sua mudança. Para a droga do
apartamento da frente!
Permaneci ali, tentando calcular qual a
probabilidade de, em um condomínio com 480 moradias,
aquele insuportável ser justamente o meu vizinho. Sem
perceber, caminhei em direção à abertura, tentando coletar
qualquer informação que pudesse me dizer um pouco mais
a respeito do morador.
— Você só pode estar de brincadeira! — a voz
grave quase me fez enfartar.
O sangue se esvaiu do meu rosto. Santo Deus,
pensei assombrada, com o coração martelando
furiosamente dentro da caixa torácica. Que tipo de piada
de mau gosto era aquela? Se vergonha matasse, eu
provavelmente teria falecido logo ali.
Girei o corpo, a fim de encará-lo de frente. Ele
trazia, desta vez, duas longas tábuas de madeira, que
julguei fazerem parte de um guarda-roupa. O Lenhador
Estressado arqueou as sobrancelhas, estampando em cada
centímetro do rosto o quanto parecia me achar estúpida.
Para falar a verdade, eu estava me sentindo um pouco
assim.
— Vai continuar aí o resto do dia? — perguntou,
por fim, com aquele tom detestavelmente presunçoso.
Dei alguns passos para a direção do meu
apartamento, sentindo-me contrariada com a sua falta de
educação. Sem me encarar novamente, ele sumiu porta
adentro como um raio.
Apesar de ter os dedos latejando com o peso das
compras, a minha dignidade me manteve com os pés
colados ao chão. Alguns minutos depois, o barbudo saiu
do aposento com as mãos livres e, ao me encontrar, parou
abruptamente, como se tentasse entender o que diabos eu
ainda estava fazendo ali. Bem, essa era a mesma dúvida
que eu tinha, para ser honesta.
— Você está se mudando para cá? — a pergunta
pulou da minha boca antes que eu pudesse evitar.
— Olha só, que perspicaz!
Meus lábios se separaram ligeiramente, enquanto
eu tentava entender como ele conseguia me tirar do sério
com tamanha facilidade. Argh! Aquele... aquele
Chewbacca estúpido!
— Você é um grosso, sabia?
Um sorriso mordaz tomou seus lábios escondidos
por trás de todo aquele pelo facial. Ele se aproximou
alguns passos de mim. Por algum motivo inexplicável,
prendi a respiração.
— É um prazer conhecer você também! — disse,
escondendo as mãos nos bolsos do jeans e me dando as
costas pela terceira vez no mesmo dia.
Entrei em casa completamente atordoada.
Deparei-me com um Arthur só de bermuda, ouvindo
Nirvana no último volume enquanto lavava a pilha de
louça do jantar.
— Você demorou!
Soltei as sacolas sobre o imenso carretel de fio de
luz o qual usávamos como mesa, jogando-me em uma das
cadeiras de maneira dramática. Percebendo o meu
péssimo estado de espírito, ele secou as mãos em um pano
de prato, sentando-se de frente para mim.
— O que foi?
— Tive o azar de conhecer o nosso novo vizinho.
Ele não passa de uma versão grosseira do Chewbacca.
— Chewbacca? — perguntou ele, em seu habitual
tom arrastado, rindo da minha tentativa de ofender alguém.
— Sim, com aquela barba enorme dele, foi a única
coisa que consegui pensar.
Arthur arregalou os olhos naturalmente
esbugalhados, assumindo, em seguida, uma careta safada.
— Nosso vizinho é barbudo?!
— É.
— Ai, Becca... — Ele fez cara de quem estava
com vontade de comer uma rosquinha bem açucarada,
mas, por algum motivo muito sério, não podia. — Eu
adoro homens com barba! Acho tão másculos...
Esfreguei o rosto com as mãos, permitindo-me rir
do meu novo amigo. Sua reação espontânea dissipou um
pouco da minha raiva.
Eu disse um pouco.
— Mas ele é um idiota. Acredite em mim! Com
toda a certeza bateu o recorde de maior quantidade de
patadas por minuto.
— Ele pode estar apenas estressado com a
mudança...
— Meu Deus, Arthur! Você está mesmo
defendendo uma pessoa que nem conhece?
A minha pergunta arrancou gargalhadas de nós
dois. Rimos tanto que meus olhos lacrimejaram. Ele
encolheu os ombros, piscando para mim antes de se
levantar e procurar a proteína de soja dentro das sacolas
do mercado. Respirei fundo, secando as bochechas com as
costas das mãos.
— Bom, idiota ou não, eu preciso dar uma olhada
depois. Quem sabe não peço uma xícara de açúcar?
— Isso está muito batido! — Arquejei, incapaz de
me desfazer do sorriso no rosto. — Precisa de algo mais
original se não quiser que ele perceba suas intenções.
— Becca, sua inocente... Quem falou que eu não
quero?
Amassei uma sacola do mercado, formando uma
bolinha que usei para atirar nele em seguida.
— Para alguém tão calmo, você é muito
pervertido!
— Você não viu nem um terço. Vou fazer o
almoço... O que comprou de bom?
Enquanto Arthur revirava as sacolas com o seu
ritmo devagar, peguei-me concentrada em pensar no
vizinho irritante. Quero dizer, mesmo se ele realmente
estivesse bravo com a mudança — o que era
completamente cabível em um prédio sem elevador, diga-
se de passagem — não tinha razão para me destratar, não
é?
Bufei, raspando o dedo na superfície da mesa ao
passo em que retomava a nossa breve conversa na cabeça.
Então, sem perceber, meus pensamentos me traíram,
levando-me a caminhos perigosos. Comecei a repassar
imagens do Chewbacca mal humorado vagarosamente,
como que me deliciando com alguns detalhes. Como os
músculos do braço contraídos para sustentarem a caixa,
ou a forma como ele era irritantemente interessante, ainda
que com aquela barba estúpida de lenhador. Sério, em
pleno verão, como ele aguentava tantos pelos?
Droga, Rebecca, que merda é essa?, meu
subconsciente perguntou, de maneira acusatória. E,
percebendo o que estava fazendo, senti o rosto ferver e me
levantei de supetão, decidida a desenhar para varrer
qualquer recordação dele para fora da mente.
Entrei como um raio no meu quarto, indo direto até
os materiais de desenho. Liguei o notebook e abri a pasta
de músicas, dando play no aleatório. No mesmo momento
em que posicionava o papel na escrivaninha, a voz
contralto da Pitty reverberou contra as paredes
descascadas em alguns pontos, arrancando uma careta
azeda de mim quando começou a cantar Equalize.

Às vezes se eu me distraio
Se eu não me vigio um instante
Me transporto pra perto de você

Mordisquei o lábio inferior, incapaz de apagar o


peculiar encontro da memória. Além do mais, a música
não estava ajudando em nada.

Já vi que não posso ficar tão solta,


que vem logo aquele cheiro
Que passa de você pra mim
Num fluxo perfeito

Pesquei o lápis 6b de dentro do estojo e, sem


perceber, ocupei-me em traçar linhas até então
desconhecidas para mim. Comecei pelo cabelo
despenteado, indo para a sobrancelha grossa e expressiva
e logo em seguida para a barba espessa que o atribuía um
ar igualmente selvagem e atraente.
As horas escaparam pelos meus dedos como areia
fina durante o tempo em que pincelei a tinta aquarela com
delicadeza. Eu não conseguia entender como uma pessoa
que eu esbarrara brevemente no corredor conseguia
protagonizar os meus pensamentos de maneira tão
incisiva, mas isso precisava parar por ali. Afinal de
contas, a única razão para eu estar em Maringá era a
faculdade. Qualquer outra coisa era um desvio do foco e,
por essa razão, terminantemente proibida.
Em algumas semanas
Eu vou ter tempo
Para perceber o que está bem diante dos meus olhos

Two Door Cinema Club – What you want


Coloquei uma goiaba no bolsinho da frente da
mochila depois de andar em círculos pela sala no que
parecia ser a vigésima vez só na última hora. Eu estava
apavorada. Conferi se tinha tudo o que precisava dentro
da mochila e, tomada pela ansiedade, fui até o banheiro,
abrindo-o de uma só vez sem nem ao menos bater antes.
Deparei-me com Arthur, que tinha acabado de subir a
bermuda para o lugar, parado com as pernas abertas em
frente à privada. Com um gritinho apavorado, fechei a
porta, morrendo de vergonha. Meu coração batia tão
depressa que eu parecia prestes a vomitá-lo para fora.
Menos de um minuto depois, ele saiu, estudando-
me com atenção.
— Você já está pronta? — perguntou, segurando os
meus ombros para me forçar a encará-lo.
— Sim. Gosto de sair com antecedência.
— Mas, Becca, são cinco horas da tarde. A aula
começa só às sete!
— Nós nunca sabemos quando um imprevisto vai
acontecer...
— A UEM fica aqui do lado. Não demora nem 10
minutos se você for caminhando!
Então, agarrando a minha mão, Arthur me arrastou
até a sala, obrigando-me a sentar no sofá. Foi até a
cozinha, voltando com um enorme copo de água nas mãos.
— Toma, você precisa relaxar!
— Arth... — comecei, mas ele interrompeu.
— Eu sei que o seu coraçãozinho de CDF mal
pode esperar para começar a estudar, mas hoje é só o
primeiro dia de aula, Becca. Metade dos professores nem
se dão ao trabalho de ir na primeira semana e a outra
metade vai enrolar por uma hora inteira, fazendo
dinâmicas de apresentação. E, além disso, você está muito
arrumada! Sabe que hoje é o trote, né?
— Eu não vou participar! — afirmei, em pânico só
de imaginar as mil formas como isso poderia dar errado.
— Ah, você vai, sim! Nem que eu precise te
arrastar!
— Mas, Arthur...
— É legal! Além da melhor maneira de fazer
amizade com o pessoal da sua sala.
Cruzei os braços, sentindo-me contrariada.
— Não vim de outro estado para fazer amizade!
— Ah, qual é! Para de ser chata! O vizinho te
contagiou com o mau humor? — devo ter arregalado os
olhos ao ouvir suas palavras, porque Arthur sorriu
triunfante antes de prosseguir. — Para com isso, o trote
nem é esse bicho de sete cabeças... Só um pouquinho de
sujeira e depois vamos para a festa na república Belas
Tetas.
— Eu... Calma, o quê?
Nós permanecemos nos encarando por alguns
segundos, nos quais tentei transparecer o fato de que
jamais, em toda a minha vida, iria para uma festa em uma
república. Ainda mais com nome tão vulgar.
— Não existe a mais remota possibilidade de eu
fazer parte disso! — afirmei, com o indicador apontando
em sua direção.
— Jesus, Rebecca. É por causa do nome?
— É por causa de tudo, mas, sim, principalmente
por causa do nome!
— Você vai deixar de se divertir por causa de um
detalhe tão pequeno? — perguntou ele, com a voz pastosa.
— Olha, eu não sei qual o seu conceito de
diversão, Arthur... — levantei do sofá em um pulo. —
Mas o meu, com toda certeza, não é ficar suja por horas
num lugar apinhado de gente. Num lugar que se chama
Belas Tetas, para piorar!
— Meu Deus. Quem, em pleno século XXI, fala
“apinhado”?
Suas palavras penetraram os meus tímpanos
enquanto eu bebia um longo gole de água e, por muito
pouco, não cuspi tudo nele. Tão logo engoli o líquido com
certa dificuldade, ri desenfreadamente. Arthur me
acompanhou e, depois de um tempo considerável rindo
feito loucos, percebi que havíamos acabado de
compartilhar um acesso de riso.
— Por favoooor! — ele pediu de maneira
manhosa, ainda com a respiração entrecortada. — As
festas começaram semana passada e a maioria das
pessoas já foi em pelo menos uma delas. Se você não
passar por isso, jamais poderá dizer que é, oficialmente,
uma universitária!
— Você não vai me deixar em paz, não é?
— De jeito nenhum.
— Ok. Mas só essa!
— Você não está em posição de negociar, Becca!
Sou seu veterano, eu praticamente mando na sua vida! —
Arthur me lançou um sorriso maroto, como se isso
encerrasse a questão, sem discussões.
— Até parece! — Atirei uma almofada nele,
levantando-me para trocar de roupa por uma mais
apropriada para ficar espantosamente suja pelas próximas
horas.

Dizer que eu estava calma ao entrar na minha sala


de aula seria uma mentira deslavada. Eu estava a ponto de
ter um ataque de pânico. Bobeira, não? Mas sempre fui
assim — quando queria muito alguma coisa, ficava
ansiosíssima até acontecer. Com a faculdade não seria
diferente. Até que eu me familiarizasse, ficaria com o
coração palpitando desenfreadamente nas vésperas de
cada aula. Bastava me conformar.
E por falar nisso, Arthur estava completamente
certo sobre a sua previsão para aquela noite. A primeira
aula foi inteira usada para apresentações e a maioria
esmagadora dos alunos afirmou ter escolhido o curso por
gostar muito de ler. Não me orgulho em admitir ter dito a
mesma coisa, aliás. Mas, também, pudera, o que mais eu
esperava encontrar no curso de Letras além de pessoas
exatamente iguais a mim?
Nossa sala era grandalhona e abarrotada de mesas
e carteiras pintadas com um creme pálido e sem graça. As
amplas janelas basculantes, cujas molduras metálicas
eram de um azul bic que doía os olhos, davam vista ao
campus lá fora, repleto de árvores e prédios com
arquiteturas díspares entre si, que em nada combinavam
umas com as outras. Feita de tijolinhos a vista, tal como a
fachada do bloco, a parede das janelas era a única
diferente, uma vez que as demais eram brancas até dois
terços do teto, onde terminavam com um verde-abacate
desbotado.
O professor que deveria nos dar a aula anterior ao
intervalo faltou e, por isso, fomos todos ao refeitório, a
fim de nos conhecermos melhor. Existe algo que é preciso
saber a meu respeito, antes de mais nada: eu odeio
apresentações. Céus, eu não apenas odeio, eu detesto com
todas as minhas forças! Não por ser tímida, nem nada
parecido. O problema está naquele desconforto de não
saber exatamente o que falar ou como agir perto de outra
pessoa, então ficam os dois dando risadinhas nervosas e
sustentando um interminável silêncio constrangedor.
Agora some isso a uma sala de aula inteira se conhecendo.
Pois é, tratava-se da minha versão do purgatório.
Dos quase quarenta alunos, a maioria esmagadora
era composta por mulheres. E, com exceção de umas
quatro pessoas mais velhas, o resto era todo da minha
faixa etária. Acabei puxando assunto com uma menina que
se sentou ao meu lado na cantina e perdi a noção do tempo
enquanto ficávamos de papo furado, falando sobre nossas
cidades natais e o que estávamos achando de Maringá em
nossa breve estadia.
Achava-me tão entretida no assunto que, ao sentir
um toque suave no ombro direito, quase morri do coração.
Olhei para trás, encontrando Arthur com uma cara de
poucos amigos. Naquelas quatro semanas passando a
maior parte do tempo com ele, era a primeira vez que o
via com expressão semelhante e, por essa razão, foi
impossível não perguntar se algo tinha ocorrido.
— Ah, você vai ver o que aconteceu! — grasnou
ele, com os olhos em chamas. — Nossa professora de
Produção Textual, a Bernadete, se aposentou!
— Nossa, você está tão bravo assim por isso? —
indaguei, levantando para acompanhá-lo. — Devia gostar
muito dela!
— Não muito, para ser honesto. Mas,
definitivamente, mais do que o aprendiz de algoz que
contrataram no lugar!
— Oh — murmurei, lembrando-me de que também
teria essa matéria. Seriam as três primeiras aulas do dia
seguinte.
Caminhamos em direção ao nosso bloco sem
trocar palavra alguma. Arthur bufava eventualmente,
conforme parecia recordar de algum detalhe torturante do
novo professor.
Tão logo entramos no prédio, cruzamos com uma
menina que eu sabia ser da sala dele, pois ela já estivera
em casa uma ou duas vezes. Forcei a mente na tentativa de
evocar o nome dela, mas foi em vão. Eu simplesmente era
péssima com isso. A única coisa que tinha certeza era de
se tratar de um nome diferente...
— Pábila! — chamou Arthur em seu habitual tom
de defunto.
Realmente fora do comum, pensei comigo,
observando-a se aproximar com a mesma carranca do meu
amigo.
— Finalmente achei você! Olá, Becca! — disse,
sorrindo para mim. — Querem bala? É de menta.
Concordamos em uníssono e seguimos para os
andares superiores, onde as nossas salas ficavam. Pábila
jogou uma bala para cada um, antes de colocar para fora
aquilo que tinha entalado na garganta.
— Dá pra acreditar naquele idiota?
— Nem me lembre. Sorte que a nossa tortura será
apenas uma vez por semana!
— É tão ruim assim? — perguntei, começando a
ficar assustada.
Com uma risadinha irônica, Arthur parou de frente
para nós. Olhou para os dois lados, inspecionando se não
havia mais ninguém no corredor, e só então respondeu.
— Ele é um estúpido, um mal educado, Becca!
Mas o pior é que, quando ele entrou na sala de aula, eu
fiquei duro! Que cara gostoso!
— Fala sério, Arthur! — Pábila desferiu um
tapinha em seu peito. — Nem dá pra ver o rosto dele com
tanto pelo na frente!
— Eu acho delicioso... É uma pena que ele seja
um completo babaca sádico.
Nem consegui dar a devida atenção ao fato do meu
amigo ter se excitado com o professor. Apenas engoli em
seco, com um pensamento apreensivo começando a se
formar na cabeça. Barbudo, mal educado... Pela máscara
do Vader, não podia ser quem eu estava pensando! Ou será
que podia?
Estava prestes a pedir mais detalhes para os dois
quando refleti sobre o tamanho do absurdo da situação
como um todo. Qual a chance de o meu novo vizinho ser
também o meu professor? Quero dizer, estávamos falando
de uma cidade com mais de 340 mil habitantes, e não de
Santa Cruz do Rio Pardo, onde todos se conheciam. Santo
Deus, eu estava ficando neurótica! Talvez Arthur estivesse
mesmo certo: eu precisava descontrair um pouco.
Eu sou uma alma nova,
Eu vim até esse mundo estranho, esperando
Que eu pudesse aprender um pouco sobre dar e receber
Mas desde que eu vim para cá, senti a alegria e o medo
Percebo que estou cometendo todos os erros possíveis.
Yael Naim – New Soul

Ok, participar do trote foi a ideia mais idiota que


eu poderia ter levado em conta, dentre todas as ideias
idiotas existentes. Mas também a mais divertida. Céus,
existe algo em ser humilhado publicamente ao lado dos
seus novos colegas de classe que fortalece os laços com
eles. Some isso às rodadas de tequila e pronto, temos a
fórmula perfeita para a diversão.
Logo que a aula terminou, nossos veteranos (e,
aqui, inclua o Arthur e a Pábila, que deveriam me
proteger, mas, ao invés disso, estavam realmente
animados em fazer justamente o oposto) nos arrumaram
em fila indiana, enquanto escreviam apelidos maldosos
em papelões e colavam nos nossos peitos com fita
adesiva. Os poucos meninos da sala tiveram os cabelos
raspados e eu só conseguia me perguntar exatamente em
qual momento considerei que aquilo, de alguma forma,
poderia ser legal.
Caminhamos de mãos dadas até a Avenida
Colombo, a principal avenida ao redor do imenso campus
da UEM. O fluxo de carros, apesar de ser tarde da noite,
era contínuo. Além do mais, várias salas dos mais
variados cursos estavam ali para nos assistir. A parte boa
era que não seríamos os únicos a passar por aquilo. A
parte ruim... Bom, você deve saber.
O bombardeio começou com os ovos e eu prendi a
respiração, odiando cada vez mais o momento crucial em
que concordei com Arthur. Eu estava com sede de
vingança! Ele me pagaria dolorosamente por ter me
enganado com tanta frieza! Maldito! Porém, o ódio durou
só até a farinha. Depois vieram as tintas guaches, os
confetes e mais uma lista interminável de coisas que eu
nem imaginava que poderiam estar ali no meio. Como, por
exemplo, miojo. Depois do ódio, veio a melancolia e, por
último, a aceitação. Quando, depois de quase duas horas
de tortura, caminhamos (novamente de mãos dadas) em
direção à República Belas Tetas, eu já estava até achando
engraçado, mas existe a possibilidade de o álcool ter
ajudado nisso. Ah, sim, tinha álcool! Mesmo a grande
maioria sendo menor de idade. E, não, não podíamos
negar! Quem falava a palavrinha começando com N era
obrigada a tomar dose dupla.
Eu não era acostumada a beber, então, antes
mesmo de chegar à festa em si, já estava naquele estado
em que tudo fica mais divertido e bonito por conta do
álcool. Depois de uma hora dançando espremida entre
uma quantidade enorme de pessoas na mesma condição
deplorável que eu, já ria além do normal e abraçava
Arthur a cada vinte minutos, para reafirmar o tamanho do
meu amor e apreço pela nossa amizade. No começo ele
até tentou parecer ofendido por eu tê-lo sujado, mas
depois apenas ria e retribuía cada nova demonstração de
afeto.
— Eu tive tanta, taaaanta sorte por ter conhecido
você, Arthur! — falei com a voz enrolada e ri, ao
perceber que o meu sotaque estava exatamente como o
dele. — Sério, tinha tanta chance disso dar errado.
— Também te amo, Becca! Mas tem uma coisa que
preciso perguntar.
— Sou toda ouvidos! — Bati continência e isso,
por algum motivo, fez-me rir até perder a força nos
joelhos.
— Você já bebeu alguma vez na sua vida?
— Claro que já! — respondi, ofendidíssima. —
Todo ano eu tomo champanhe no Réveillon!
Arthur cuspiu a cerveja que tomava e me encarou
com os olhos preocupados.
— Rebecca, isso é brincadeira, né?
— Não! Por quê?
— Como está se sentindo agora?
— Estou absolutamente normal. Só um pouquinho
alegre.
Ele me estudou por algum tempo com seus olhos
redondos. Depois segurou os meus ombros e uniu as
sobrancelhas. Mordi a bochecha pelo lado de dentro, para
não rir e estragar o meu disfarce de “menina cool que
bebe socialmente e não fica bêbada”, mas foi por água
abaixo quando me passou pela cabeça as terríveis
semelhanças dele com Dobby, o elfo doméstico. Ri tanto
que precisei me sentar no chão para não fazer xixi nas
calças.
— Fica aqui quietinha, vou procurar a Pábila para
te levarmos embora!
— Ai, meu Deus, Arthur! Não precisa disso! Estou
legal! Hic! — solucei, tampando a boca com as duas mãos
em seguida. — Sério. Mas estaria melhor se as coisas
parassem de rodar um pouco!
— Sim, você está quase sóbria! — ele falou,
irônico, antes de me abandonar.
Não sei dizer quanto tempo levou até ele voltar. A
única coisa que sei é que, àquela altura, comecei a me
escorar na parede desesperada por um pouco de apoio. O
mundo rodava muito e eu me sentia dentro de uma
gigantesca máquina de lavar roupas. Inferno, talvez eu
estivesse um pouquinho bêbada.
Eu disse talvez!
Comecei a me concentrar nas pessoas interagindo
entre si para me livrar daquele desconforto que precede a
vontade de vomitar, quando a voz pastosa do Arthur me
arrancou dos devaneios abruptamente.
— Vamos?
— Até que enfim... Ah, oi, Flávia!
— Pábila! — ela me corrigiu, rindo.
Então meus olhos recaíram para o garoto ao lado
de Arthur. Tudo bem, talvez eu estivesse pior do que
imaginara! Aquele garoto estava mesmo ali ou só eu o
via?
— Hum, esse aqui é o Pedro. Ele faz
comunicação! Vai nos dar uma carona... — Arthur
explicou e, mesmo no estado catatônico no qual me
encontrava, notei suas bochechas corarem.
Flá... Pábila estudou nós três e pareceu ter
compreendido algo que eu não era capaz de pensar com a
mente nublada pelo álcool. Olhou para o celular e passou
a mão direita despreocupadamente pelos longos cabelos
loiros.
— Arthur... acabei de lembrar, prometi para a
Fernanda que dormiria na casa dela. Vou ver se a encontro
em algum lugar!
Ele assentiu, deixando um estalado beijo na
bochecha dela.
— Tchau! Nos vemos amanhã! Melhoras, Becca!
Depois disso, seguimos para o carro do Pedro, no
qual pude sentar sem me preocupar com a sujeira, pois
eles haviam forrado o banco de trás com algumas toalhas
de banho.
Mesmo a república sendo ridiculamente próxima
do nosso condomínio, a viagem pareceu interminável. Não
só pelo álcool correndo impiedosamente nas minhas
veias, mas principalmente pelo fato de, a cada semáforo
encontrado vermelho, eu servir como uma enorme vela
para os dois. Arthur parecia um dementador sugando a
alma de Pedro, e eu precisei pigarrear em alguns
momentos, para recordá-los da minha presença. Não
saberia o que fazer se, porventura, acabasse vendo
demais, se é que me entende. E eu sei que entende!
No entanto, eles estavam tão entretidos quando
estacionamos em frente ao nosso condomínio que pedi o
molho de chaves para Arthur.
— Não vou te deixar subir sozinha, Becca!
— Qual é... Só vou subir alguns lances de escada,
o que pode dar errado? Hic.
Os dois me encararam com uma expressão que
dizia claramente existir uma quantidade absurda de
possibilidades para dar errado.
— Já volto! — Arthur disse para Pedro e, no
mesmo instante, eles voltaram a se beijar como se
tentassem devorar um ao outro. Literalmente.
Pigarreei pela última vez para indicar que ainda
estava ali no carro, presenciando aquele amasso
selvagem.
— É sério, eu posso fazer isso. Estou em perfeitas
condições de subir sem causar danos maiores a ninguém!
E isso me inclui!
— Promete?
— Sim — disse, deixando um beijo na bochecha
de cada um e pulando para fora do carro.
Eu não podia estar mais enganada quanto a isso.
Se tiver qualquer coisa que você queira
Se tiver qualquer coisa que eu possa fazer
Apenas me chame que eu mandarei
Com amor, de mim, pra você

The Beatles – From me, to you


Comecei a me perguntar sobre a possibilidade de
estar com o molho de chaves errado a partir da décima
tentativa fracassada de enfiar uma delas na fechadura. A
cabeça girava muito e tudo o que eu queria — e
precisava — era me jogar contra o conforto da minha
cama, sem me importar com a sujeira presa no meu corpo
naquele momento. Isso seria assunto para quando
acordasse. A vida tem suas prioridades, não?
Experimentava novamente a chave redondinha,
agora com um pouco de força, quando ouvi a porta às
minhas costas ser aberta num rompante, provocando um
baque surdo.
— Por que você não pega uma panela pra ver se
consegue acordar o prédio todo mais depressa?
Aquele som! Eu conhecia! Vinha de uma memória
tão distante...
— Escuta aqui — ouvi a minha voz trôpega pairar
pelo ar. — O mundo está rodando, não estou conseguindo
entrar na droga da minha casa e não preciso de ninguém
para piorar ainda mais as coisas, tudo bem?
Girei nos calcanhares, ficando de frente para o
Chewbacca bad boy, e engasguei ao descobrir que estava
sem camiseta. Por alguns segundos, esqueci-me até mesmo
do que estava falando.
Em nome de Alvo Dumbledore, que merda é
essa?, meu subconsciente berrou. Eu apenas engoli em
seco, incapaz de desviar os olhos do V delicioso no final
de seu abdômen. Eu já cogitava perguntar se podia tocar
para comprovar se era real quando a voz dele voltou a
penetrar meus tímpanos, em um tom bem menos arrogante
do que da primeira vez.
— Por Deus, o que aconteceu com você?
Demorei um tempo para resgatar na memória como
deveria estar a minha aparência e, quando isso aconteceu,
comecei a ponderar se seria muito estranho eu sair
correndo da frente dele até Santa Cruz do Rio Pardo. O
barbudo arriscou um passo em minha direção e então o
impensável aconteceu. Dobrei o corpo para frente e
vomitei um jato verde e gosmento (que deixaria a menina
do Exorcista com inveja) sobre suas pernas. A única
coisa a me ocorrer foi o quanto eu estava ferrada. Aquele
cara já era arrogante sem motivo, imagina depois daquilo!
Ah, não, Rebecca!, pensei comigo mesma,
sentindo o cheiro horrível penetrar as minhas narinas.
— Puta que pariu! — ele murmurou sobressaltado,
fuzilando-me com o olhar.
Suas pernas estavam inteiras respingadas com o
vômito que mais parecia sopa de ervilha. Meu cérebro
demorou para absorver todos os detalhes.
Euzinha. Inteira suja. Vomitando nas pernas do meu
vizinho, Chewie.
Para fechar o combo, comecei a chorar tão logo
dei por mim. Não chorar como uma pessoa normal faria.
Claro que não, afinal onde estaria a humilhação, não é
mesmo? Ao invés disso, comecei a soluçar freneticamente
em busca de ar, contorcendo a cara em expressões de
sofrimento que eram muito fiéis à forma miserável como
eu estava me sentindo.
Mas. Que. Droga!
Estava tão absorta na minha própria infelicidade,
que quase tive um infarto ao sentir as mãos geladas dele
segurando os meus ombros e depois deslizando pelos
braços, até alcançarem os meus pulsos, onde os seus
dedos compridos se fecharam.
— Hei, está tudo bem! Acontece. Me empresta
aqui essa chave, deixa eu tentar abrir pra você.
Resignada, entreguei o molho nas mãos dele, sem
me dar conta de que havia ficado inteira arrepiada com a
maneira cuidadosa com a qual ele se dirigiu a mim. De
sobrancelhas unidas, ele destrancou facilmente a porta da
minha casa, sem soltar um dos meus pulsos, no entanto.
— Se me permite — pediu, indicando o interior
do meu apartamento com a cabeça.
— Esteja à vontade!
E então ele me guiou em direção ao banheiro,
sentando-me na privada e me estudando com atenção,
ajoelhando para ficar na mesma altura que eu.
— Acha que consegue tomar banho? Preciso dar
um jeito naquela bagunça...
— O quê?! — perguntei, subitamente alarmada.
Minhas bochechas esquentaram de uma só vez. — É claro
que consigo! Ou você acha que vai entrar aqui e se
aproveitar de mim?
Meu vizinho se enrijeceu ao ouvir minhas
palavras, aproximando-se perigosamente de mim com uma
expressão completamente chocada no rosto.
— Como é? — perguntou e pude sentir o seu
hálito mentolado. Sua boca abriu e fechou três vezes antes
da testa encher de vincos e os olhos claros arderem em
fúria. — Você não está insinuando que...?
— Eu não sou nenhuma idiota! Sei bem o que está
tentando!
— Qual o seu maldito problema, garota? — ele
urrou. — Olha o seu estado, eu estou tentando ser gentil!
— Ahhhh, sim, é claro! — atirei, elevando o tom a
cada palavra — Ser gentil agora compreende tirar a roupa
de uma garota bêbada?
— Eu. Não. Me. Ofereci. Para. Te. Dar. Banho! —
rosnou ele, visivelmente incrédulo com a minha postura.
— Sai daqui agora ou eu vou gritar!
Com uma risada ácida, o vizinho se levantou em
um rompante e, num ímpeto de raiva, chutou a porta do
banheiro. Estremeci com o barulho alto.
— Além de insolente, é uma cega, não? — arfou,
com a voz trêmula de ódio. — Isso é o que ganho por
tentar ajudar! Da próxima vez que encher a cara, donzela,
é bom não acordar o resto do bloco e nem vomitar no
corredor inteiro se não quiser que eu chame a polícia! E
se aquela maldita sujeira estiver lá amanhã de manhã... —
Ele esfregou o rosto agressivamente, lançando-me um
olhar assassino. — É bom que não esteja! Vai por mim!
No segundo seguinte, Chewbacca não estava mais
ali. Havia restado apenas eu e a sensação enorme de ter
sido uma idiota com ele. E o pior, gratuitamente. Mas o
que se pode fazer quando está com os pensamentos turvos
pelo álcool e se segurando para não vomitar outra vez?
Tomei um banho na água gelada, levando muito
tempo para conseguir me livrar de toda a tinta nos lugares
mais inimagináveis. Talvez ainda houvesse a chance de eu
acordar com as orelhas pintadas de azul, mas eu podia
lidar com isso. Saí do banheiro pronta para dormir, no
entanto recordei que ainda tinha o vômito verde me
esperando lá fora e, para evitar maiores problemas, era
melhor me livrar daquilo o quanto antes. Mesmo no estado
crítico no qual me encontrava.
Apenas de toalha, atravessei o meu apartamento
cuidadosamente, com medo de que tudo voltasse a girar
como antes da ducha fria. Alcancei um balde na
lavanderia e o enchi com água e uma quantidade razoável
de produto para chão com cheiro forte de lavanda. Se isso
não resolvesse o problema, eu não sabia mais o que
resolveria.
Então, ao sair para o corredor, pronta para encarar
a maior meleca que eu, literalmente, já fizera na vida, qual
não foi a minha surpresa ao me deparar com o corredor
brilhando como uma pérola?
Lancei um olhar significativo para a porta de
frente para a minha, fisgando o lábio inferior com força.
Merda, eu havia sido uma completa imbecil com o
vizinho. Voltei para dentro, trancando a porta com o
coração do tamanho de uma ervilha.
Enquanto me livrava da água dentro do balde,
sentindo uma irrefreável ânsia de vômito voltando a me
dominar, prometi para mim mesma que procuraria Chewie
para me desculpar por ter entendido tudo errado e
agradecer por ele, ainda assim, ter sido gentil.
Bom, isso era o que eu imaginava que faria.
E um erro assim tão vulgar
Nos persegue a noite inteira
E quando acaba a bebedeira
Ele consegue nos achar

Engenheiros do Hawaii – Refrão do Bolero


Campainha.
Uma sonora e mortífera campainha tocando sem
parar.
Reverberando dentro das paredes do apartamento,
cuja pintura tosca começava a descascar em pontos
variados.
Penetrando os meus tímpanos e percorrendo o
caminho até o meu cérebro. E, então, causando a mesma
sensação de se a minha massa encefálica estivesse sendo
perfurada por centenas de pontas afiadas.
Ahhhh, maldição!, pensei comigo, tentando abafar
o som maligno com o travesseiro fofinho. Foi em vão. A
pessoa do outro lado da porta só podia ser um servo do
Satanás, decidido a acabar com a minha vida.
— Já vai! — gritei e me arrependi no segundo
seguinte por isso.
Jamais, em toda a minha vida, eu voltaria a
cometer o erro de beber novamente. Eu me sentia como se
tivesse passado a noite chacoalhando em uma centrífuga.
Tudo doía — desde as órbitas dos olhos ao estômago
frágil. Fora o cheiro terrível de vômito em mim. Aliás,
isso era o de menos. Ao me levantar, o mundo girou ao
meu redor desenfreadamente, passando o recado de quem
mandava ali.
Vislumbrei a minha imagem refletida no espelho e
arquejei em surpresa. Eu estava um fiasco! Descabelada,
com manchas de tinta no rosto, olheiras enormes
emoldurando os olhos, a franja toda espetada pra cima. A
campainha voltou a ferir meus ouvidos sensíveis,
obrigando-me a atender a porta e lidar com o fato de que
toda ação tinha uma reação. Newton era um cara esperto,
no fim das contas.
Do outro lado, encontrei um Arthur que parecia
ainda não ter pregado os olhos, embora a luz do dia
começasse a invadir o apartamento de maneira tímida.
Essa seria a hora em que eu estaria acordando em um dia
normal. O cansaço pesava em seus ombros, pois ele se
encontrava um pouco curvado para frente.
— Becca, achei que não ia conseguir te acordar!
— Entrou em passos lentos, com as sobrancelhas unidas.
— Faz tempo que está tentando?
— Meia hora!
— Ah, meu Deus, sinto muito! — abracei-o pela
cintura, deixando um beijo tenro em sua bochecha. — Vou
fazer a cópia da minha chave hoje, prometo! Assim que
me livrar dessa dor de cabeça infernal!
Sua risada ecoou pelo ambiente, enquanto
caminhávamos juntos até a cozinha, sentando um de frente
para o outro.
— Você estava bem ruinzinha mesmo! Mas, para a
primeira bebedeira, está muito bem.
— Não, Arthur! — balancei suavemente a cabeça
em negativa. — Você não está entendendo... Não combino
com isso! Aliás, como cheguei em casa ontem?
— Isso é sério? — ele crispou os lábios,
assumindo um tom preocupado. — Eu te trouxe com o
Pedro, nós te deixamos lá em baixo... Você não se lembra?
Forcei a memória, encontrando apenas uma lacuna
enorme dentro da minha mente. A última coisa que eu me
lembrava era de dançar alucinadamente e abraçar o meu
amigo além do normal. Fora isso, mais nada.
— Não. Graças ao Yoda que não estou com
nenhum osso quebrado! Mas... espera aí, quem é Pedro?
Só então notei no sorrisinho insistindo em
permanecer nos lábios de Arthur. Era como se ele mal
pudesse se conter, cheio de si. Meus lábios se separaram
em surpresa e eu desferi uma sucessão interminável de
tapinhas no seu ombro. Meu amigo só era lerdo só para
algumas coisas, porque para outras...
— Eu não acredito! Me conta, eu quero saber!
— Ele faz comunicação e é todo esquisitinho, do
jeito que eu gosto.
— É porque você também é esquisitinho —
interrompi e, como resposta, Arthur atirou em mim um
pacote vazio de bolacha que jazia na mesa há dias.
Então, sem esconder nenhum detalhe (e quando
digo nenhum, estou sendo honesta), ele me contou desde
as primeiras palavras trocadas com o tal do Pedro, até as
últimas. Em alguns momentos explodi em risadas,
morrendo de vergonha, mas Arthur não era do tipo que se
importava com tabus, e por isso narrou pacientemente a
sua Noite Maravilhosa, como ele mesmo denominou.
Ele se levantou para pegar a jarra de água na
geladeira e voltou com dois copos até a mesa. Foi só ao
ver as gotas de suor escorrendo pelo plástico que me dei
conta da sede horrorosa que sentia. Bebi dois copos de
uma vez, sem me importar com o olhar divertido do meu
amigo.
— Hoje não será um dia tão divertido para você.
— Tudo bem — respondi. — É para eu não
esquecer e acabar repetindo o erro novamente.
— Sei. — Ele piscou, levantando-se em seu ritmo
tranquilo. — Vou deitar, estou acabado. Hoje eu não tenho
as primeiras aulas, parece que a Regina está com suspeita
de dengue... tadinha.
Estreitei os olhos, percebendo o olhar de ironia
presente em seu rosto. Sustentamos o olhar por algum
tempo, antes de gargalharmos desenfreadamente.
— Arthur, que horror!
— Você diz isso agora! Tem sorte porque só terá
aula com ela a partir do segundo ano. Mas sua hora vai
chegar, Becca. E, neste dia, você vai desejar que ela tenha
dengue também.
— Meu Deus, espero morrer sua amiga.
— E vai! — Ele bocejou, com os olhos
lacrimejando. Então, como se houvesse acabado de ter um
estalo, empertigou-se no lugar, encarando-me com
atenção. — E, por ser minha amiga, ouça o que estou
dizendo: não chegue atrasada na aula do Adônis hoje. Em
hipótese alguma. Sério, é melhor faltar!
— Quem é Adônis? Aquele novo professor de que
estão todos falando mal?
— O próprio — Suspirou, desanimado. — Talvez
ele merecesse ainda mais uma dengue.
— Arthur!
— Tudo bem, sua certinha... Depois da aula dele a
gente conversa. Quero ver se vai permanecer com a
mesma opinião!
— Aposto que nem é tão ruim, você que é um
chorão! — provoquei, fazendo-o rir.
— Espero que ele te reserve uma atenção
especial. Honestamente!
Arrastei a cadeira para trás, levantando em
seguida. Eu jamais conseguiria voltar a dormir, mesmo
que o meu corpo estivesse clamando por isso, mas
precisava, com urgência, dar um jeito na minha aparência.
E o primeiro item da lista seria um banho bem demorado
para me livrar dos resquícios do trote.
— Achei que morreríamos amigos!
— Nós vamos. Mas, às vezes, os amigos precisam
de um balde de água fria para ganhar um choque de
realidade!
— Se você está dizendo...
Todos os dias isto está ficando mais próximo
Indo rápido como uma montanha russa
Amor como o seu certamente virá ao meu caminho

Ruth – Everyday
Forcei as pernas a pedalarem mais depressa,
apesar de claramente estar no meu limite. Mesmo o
condomínio onde morava sendo apenas a alguns minutos
de distância da universidade, o meu bairro abrigava uma
profusão enorme de estudantes que, naquele momento,
faziam calmamente o mesmo caminho que eu. E isso
dificultava muito a tarefa de tentar chegar o quanto antes à
aula de Produção Textual. Eu me perguntava como todas
aquelas pessoas podiam caminhar com tamanha
tranquilidade, quando faltavam apenas minutos para
começar a aula. Eu, por exemplo, estava em pânico.
Jamais fui o tipo de pessoa que se atrasa para
qualquer coisa. Como disse, possuía a vida inteira
planejada previamente na minha agenda pessoal. Eu a
levava muito a sério, justamente para evitar qualquer tipo
de imprevisto.
No entanto, as decisões erradas já haviam
começado no dia anterior, quando dei ouvidos ao meu
amigo, Arthur, e concordei em ir à festa da República
Belas Tetas. Ao me lembrar desse detalhe, gargalhei sem
me importar com o quanto deveria parecer insana,
pedalando em ritmo frenético e rindo sozinha de,
aparentemente, nada. Senhor, eu ainda não me conformava
que tinha mesmo estado em um lugar com aquele nome!
Não voltei a dormir depois de ele ter me
acordado. Em vez disso, tive a péssima ideia de ir até o
centro, à tarde, resolver o problema da chave da qual
ainda não tinha tirado uma cópia para mim. Mas, antes de
continuar nas minhas desventuras, eis um fato importante
sobre Maringá: ela era uma cidade quente. E não falo de
um calor gostoso, como julguei de maneira precipitada e
completamente equivocada nas primeiras semanas
morando lá. Não, Maringá era quente como o inferno. A
sensação de andar pela cidade no verão era semelhante a
ter línguas de chamas subindo pelos membros, em
lambidas ardentes. Agora, some isso a um organismo
judiado por uma ressaca desgraçada. Pronto, acho que deu
para imaginar o dia de cão que tive. Porque foi
exatamente isso. Um dia de cão.
Sabe quando tudo parece conspirar contra você?
Todas as coisas que podem dar errado acontecem de uma
só vez? Que você se pergunta por que diabos saiu da
cama? Pois bem. Esse era um desses dias, com o
agravante de eu estar suando frio e me segurando para não
vomitar na frente de tanta gente.
Por isso, ali estava eu, correndo contra o tempo
para não me atrasar na única aula em que não podia.
Arthur foi tão enfático ao me alertar sobre a intolerância
de Adônis com a falta de pontualidade. Eu tremia só de
imaginar a péssima imagem que causaria se não chegasse
a tempo. Seria como assinar um atestado de Odeie-me, e
isso eu não queria de forma alguma. Sempre fui a
predileta de todos os professores na época do colégio, e
ali não poderia ser diferente.
De toda a forma, meu estômago embolava só de
pensar no homem que estava causando tanto alvoroço no
curso de Letras. Quero dizer, ontem, na festa, não parecia
existir outro assunto que não fosse sobre O Carrasco. Eu
achava o apelido um pouco forte, ainda mais levando em
consideração o fato de todos o terem conhecido
recentemente. Ainda não dava para saber como ele
realmente era. E se fosse apenas um dia ruim? E se tivesse
apenas batido o carro naquele mesmo dia? Ou talvez a
geladeira tivesse parado de funcionar? Ninguém precisava
estar bem o tempo todo e eu era a prova viva disso.
Encontrava-me em um péssimo dia. Quem sabe ele não
provasse, nas próximas aulas, estarem todos enganados?
Imersa em pensamentos, tranquei a bicicleta no
suporte e corri em direção ao meu bloco, verificando o
relógio no pulso esquerdo a cada dois segundos. Que a
força esteja comigo, que a força esteja comigo,
mentalizava copiosamente, desviando de alunos tranquilos
demais. Aquele era o meu mantra e sempre dava certo.
Enquanto subia o lance de escadas (pulando os
degraus de dois em dois), sobressaltei-me ao perceber
que o celular começava a tocar. Isso é hora?, pensei
irritada, tateando os bolsos nos meus shorts jeans em
busca do aparelho. A melodia chamou a atenção de alguns
olhares curiosos. Era Quase Sem Querer, da Legião
Urbana. Atrapalhei-me com as mãos e quase o deixei
estatelar-se no chão.

Tenho andado distraído


Impaciente e indeciso
E ainda estou confuso
Só que agora é diferente
Estou tão tranquilo
E tão contente

Quantas chances desperdicei


Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo o mundo
Que eu não precisava
Provar nada pra ninguém

A música já tinha chegado ao refrão quando


retomei o controle da situação, silenciando o celular ao
apertar o botão que iniciava a chamada.
— Becca! — exclamou vovó do outro lado da
linha.
No mesmo momento, percebi que não havia ligado
mais cedo a fim de contar sobre a primeira noite na
faculdade, como prometi que faria.
— Vovó! Me desculpa, me desculpa, me desculpa!
Eu sou uma neta horrível, me esqueci completamente de
ligar! — as palavras jorraram para fora da minha boca em
uma velocidade surpreendente. — Estou um pouquinho
atrasada para a aula de um professor meio intolerante...
ouvi dizer algo sobre ele esfolar os alunos impontuais,
mas acho que são só boatos.
A risada gostosa dela me envolveu e, mesmo a
quilômetros de distância, consegui visualizar
perfeitamente a sua expressão na minha mente.
— Só você mesmo... Vai lá, não quero minha neta
sem a pele por minha culpa. Mas me liga, hein!
— Não vou esquecer outra vez. Eu juro! Ligo
assim que a aula acabar. Te amo!
— Te amo, querida. Boa aula!
Tão logo afastei o celular da orelha e meus olhos
recaíram ao visor, quase desfaleci. Eu estava dez minutos
atrasada!
Dez. Minutos. Atrasada.
Meu coração deu uma guinada dentro da caixa
torácica e eu mordi os lábios nervosamente, correndo em
direção à sala. As palavras ditas por Arthur ainda no
começo do dia ecoavam nos meus pensamentos, claras
como uma lâmpada. “Não chegue atrasada na aula do
Adônis. Em hipótese alguma. Sério, é melhor faltar!”, ele
afirmara com veemência, mas será que era para tanto?
Uni as sobrancelhas, sem nem ao menos
considerar a ideia de matar uma aula. Eu jamais faria uma
coisa dessas! Decidi, por conta e risco, descobrir sozinha
como era o tal professor Adônis. Eu já nem acreditava
que ele fosse tudo isso que diziam. Alunos sempre
exageravam quando os professores eram o assunto. Eu não
me deixaria levar pela opinião dos outros.
Por isso, apenas respirei fundo, os dedos trêmulos
de nervoso. Em um ímpeto de coragem, ergui a mão na
altura do peito e bati três vezes na superfície de madeira
da porta fechada. A espera durou uma eternidade, na qual
eu me perguntei se a minha decisão tinha sido mesmo
sensata.
Quando a porta foi aberta e eu vislumbrei a pessoa
parada de frente para mim, do outro lado, engasguei com a
própria saliva e tossi feito um velho motor de carro
afogado.
O professor Adônis, vulgo Carrasco, era ninguém
menos que o meu vizinho, Chewie!
Por Lorde Voldemort, aquele, definitivamente, não
era o meu dia!
Quando você entrou o ar foi embora
E toda sombra se encheu de dúvida
Eu não sei quem você pensa que é
Mas antes que a noite acabe,
Eu quero fazer coisas ruins com você.
Jace Everett – Bad Things

Incapaz de esboçar uma reação — mesmo a mais


simples delas —, permaneci encarando os olhos ocre-
esverdeados do Chewb... Professor Adônis! É professor
Adônis, Rebecca, ralhei comigo mesma, pestanejando
enquanto a minha mente lutava para calcular qual a chance
de aquela estranha coincidência estar acontecendo na
minha vida. Dentre todas as pessoas do mundo inteiro,
precisava ser o meu vizinho insuportável?
— A donzela vai entrar ou queria só atrapalhar a
aula mesmo? — rosnou, com o cenho franzido.
— Sinto muito — murmurei, passando cabisbaixa
por ele, tal como um cachorrinho que sabe ter chateado o
dono e, por isso, coloca o rabo entre as pernas,
aguardando o castigo merecido.
Caminhei discretamente para a fila da parede,
triste por não ter conseguido o meu lugar preferido do
mundo: a primeira carteira da fila do meio. Apesar de
que, com aquele estúpido, talvez fosse realmente melhor
passar despercebida. Arrastei a cadeira suavemente,
sentindo o peso do olhar da sala inteira sobre mim. Minha
garganta ficara terrivelmente seca e eu tinha consciência
do quanto meu rosto deveria estar vermelho naquele exato
momento. Quando terminei de tirar o caderno de dez
matérias de dentro da mochila e posicionar sobre a mesa,
notei que ele estava parado de frente para a minha mesa,
com os seus quase dois metros de altura.
Mordi o lado de dentro da bochecha, nervosa com
a sua imponente e perturbadora presença. Próximo o
bastante para que o seu perfume delicioso penetrasse
minhas narinas, roubando a minha sanidade.
— Como é o seu nome?
— R-Rebecca — balbuciei.
— Bom, Rebecca — meu nome estalou em sua
língua, ele parecia se deleitar com o meu nervosismo —,
como estava dizendo para os seus colegas, eu não tolero
atrasos. Em hipótese alguma. Cada vez que atravessar
essa porta depois que ela já estiver fechada, é um décimo
a menos na média. Estamos entendidos?
— Sim.
— Sim, senhor.
— Sim, senhor — ecoei, sentindo-me ridícula. Ele
nem era tão mais velho. Na verdade, não tinha como saber
exatamente, com toda aquela barba, mas eu duvidava que
chegasse aos trinta.
Por uma fração de segundo interminável, ele
continuou me encarando, os olhos brilhando intensamente.
Eu conhecia aquele tipo de olhar... Era raiva.
Prendi a respiração, sentindo-me severamente
exposta e só voltei a usar os meus pulmões quando ele se
afastou da mesa, prosseguindo em explicar como seria o
seu método de dar aulas. Apesar de tentar me focar em sua
voz grossa como o sopro do vento em uma tempestade,
meus pensamentos insistiam em me levar para longe.
Santo Deus, qual era o problema dele comigo? Eu não o
havia dado motivo algum para me tratar assim, a menos
que ele considerasse o nosso breve encontro no dia de sua
mudança como uma justificativa plausível para o seu
desprezo.
No entanto, não era só comigo, e eu sabia. Caso
contrário, não estariam todos com aquela expressão de
morte nos rostos, cujos olhares vazios focavam em
direção nenhuma. Estiquei o pescoço para os lados,
observando um por um. Pareciam todos desconfortáveis
em permanecer ali. A sensação pairando pela sala era
semelhante à de uma ida ao ginecologista: embora
necessário, era terrivelmente incômodo e difícil.
Eu não sei quanto tempo passei distraída
observando os outros reféns do Chewbacca do mal, mas
foi só ao ouvir um pigarro impaciente que me dei conta de
que ele — assim como os demais — me observava com
atenção. Então tive a certeza de ter divagado o suficiente
para me arrepender por isso. Droga, eu deveria ter dado
atenção ao conselho de Arthur. Como queria poder voltar
no tempo e jamais ter entrado nesse calabouço! Não hoje,
e não tão despreparada!
— Começando por você, Rebecca. Conte para nós
a razão para ter escolhido o curso.
— Eu adoro ler — limitei-me a dizer, querendo
acabar logo com aquilo.
— Uma aluna de Letras que gosta de ler! Nossa!
Eis um caso que precisa ser estudado.
A ironia estava presente em cada uma de suas
palavras. Senti o rosto queimar enquanto o estômago
gelou — uma antítese de sensações. Aquele idiota... Ouvi
poucas risadas ressoarem pelas paredes da sala e
constatei que a maioria estava apenas mortificada,
temendo ser a próxima vítima. Apesar da provocação de
Adônis, resolvi não revidar. Vovô dizia constantemente
que eu era uma garota orgulhosa (às vezes ele trocava a
palavra por tinhosa), e esta era uma característica da qual
eu não me envergonhava. Eu não daria o gostinho para ele,
afinal. Embora ele tivesse debochado de mim, eu respondi
sua pergunta.
Porém, Adônis parecia não gostar de ser
contrariado, por isso, inclinou-se ligeiramente em minha
direção e insistiu, mudando a pergunta. O cheiro suave de
menta vindo dos seus lábios me deixou momentaneamente
desnorteada, como se eu conhecesse aquele cheiro de
algum lugar.
— O que planeja para depois da faculdade? Ler?
Dessa vez, a quantidade de risadas foi maior. Senti
as orelhas esquentarem, tamanha era a minha raiva.
— Na verdade, isso é exatamente o que planejo,
professor! — devolvi, cuidando para não soar muito
agressiva. — Quero trabalhar em uma grande editora,
então receio que, sim, planejo ler bastante.
Ele arqueou as sobrancelhas, deixando
transparecer a surpresa pela minha resposta. Babaca
estúpido! Bem feito para ele se achou, mesmo por um
segundo sequer, que eu ficaria acuada.
Meus membros delgados, assim como as
bochechas rosadas destacando-se no mar lívido da minha
pele; ou os olhos de pistache... todo o conjunto contribuía
para a imagem de fragilidade que eu tanto odiava.
Contudo, eu suspeitava que o agravante fosse o corte de
cabelo, com aquela franjinha reta. Ela me roubava vários
anos, fazendo parecer que tinha recém completado quinze
anos. O grande engano das pessoas sempre foi tomar a
minha aparência de maneira errônea, literalmente julgar o
livro pela capa. Olhando para mim, a maioria imaginava
que eu era uma garota delicada demais para conseguir me
defender sozinha. Mas não poderiam estar mais
enganados! Eu não queria ser aquela mocinha dos
romances. Pelo contrário, eu ansiava ser a heroína das
fantasias, empunhando espadas e vestindo cotas de malha.
Assentindo levemente com a cabeça, Adônis se
afastou alguns passos, voltando-se para outra aluna.
Tratava-se de uma garota loira sentada na extremidade
oposta, ocupada em descascar pacientemente o esmalte
roxo das unhas. Com um som que parecia uma tosse, ele
chamou a atenção dela e logo pude ver a cor ser drenada
para fora de seu rosto harmonioso.
Foi só então que consegui reparar no meu
professor. Eu digo reparar mesmo nele. Porque até aquele
segundo, eu apenas estivera olhando, sem
verdadeiramente enxergar. Com o seu perfume
amadeirado ainda presente nas minhas narinas, permiti
meus olhos o estudarem com atenção. Ele usava um jeans
rasgado nos joelhos tão justo que não conseguia cobrir os
coturnos de couro marrons e, por isso, terminava acima
deles. Uma camiseta branca contornando perfeitamente os
músculos misturava-se a sua pele tão pálida quanto a
minha, por cima da qual um cordão de couro pendia com
um reluzente anel prateado servindo de pingente (não pude
deixar de associá-lo ao Frodo, de Senhor dos Anéis). Por
fim, um relógio no pulso esquerdo, cuja grossa pulseira,
também de couro, parecia ter sido feita para o pulso dele.
Empertiguei-me na cadeira ao me dar conta de que
estava deliberadamente o engolindo com os olhos. Qual
era o meu maldito problema? O cara era um tirano... Eu
nem devia gastar o meu tempo dando a ele qualquer tipo
de atenção.
Quando subi o olhar novamente para o seu rosto,
para tentar me concentrar no que dizia, encontrei os olhos
claros me estudando com intensidade. Parecia até mesmo
lerem os meus pensamentos. Ele foi tão rápido em desviar
o olhar que eu me perguntei, ainda arfando com nosso
breve contato, se tinha sido mesmo real.
Faz um tempo desde que me senti assim por causa de alguém
Eu gostaria de conhecer mais você, de verdade
Oh, oh, de conhecer você, mais

Heartless Bastards – Only for you


Diminuí o ritmo das pernas até finalmente cessar
as pedaladas, deixando a bicicleta deslizar pela descida
suavemente. A brisa noturna acariciava o meu rosto,
oferecendo trégua para o calor insuportável de Maringá.
Ao alcançar os portões do condomínio, girei o
guidão para a direita de uma vez, fazendo uma curva
fechada. Apesar de ter planejado voltar para casa
empurrando a Caloi em uma caminhada tranquila com
Arthur, ele havia me avisado no intervalo que dormiria na
casa de Pedro.
— Isso não é justo! — reclamei, mordendo um
pedaço da coxinha de frango e ignorando o olhar de
reprovação do meu amigo. — Eu planejava passarmos a
madrugada fazendo um boneco vodu para o professor
Adônis!
A gargalhada de Arthur ressoou alta pela cantina,
atraindo alguns olhares curiosos em nossa direção.
— Nossa! Cadê a minha amiga defensora de
professores e o que você fez com ela?
— Cala a boca. — Bati no ombro dele com o meu.
— Você tinha razão, ele é um babaca sádico!
— Eu sei!
— Mas o pior é que a sua macumba antes da aula
funcionou. Ele me deu uma atenção muito especial. Parece
não ter ido com a minha cara logo que me viu. Na
verdade, ele me olha como se me odiasse!
— Você chegou atrasada?
Dei um longo gole no refrigerante, assentindo
despreocupadamente.
— Ai, Becca... — Arthur se lamentou, como uma
esposa cansada de pedir ao marido para não deixar a
toalha molhada na cama, mas que continuava
encontrando-a lá, da mesma maneira. — Você precisa
começar a me ouvir! Por que entrou na sala?
Permanecemos conversando enquanto os minutos
do intervalo corriam e, na ânsia por contar cada detalhe
da excêntrica aula com o professor Adônis, acabei me
esquecendo de mencionar o fato de ele ser o nosso
vizinho. Fiquei tão perplexa que o importante detalhe
fugiu da cabeça.
Tão logo ouvimos o sinal percorrer toda a
extensão da universidade, despedimo-nos com um abraço
rápido e eu o assisti se distanciar em uma velocidade
surpreendentemente lenta.
Afastei a lembrança da cabeça, pulando da
bicicleta e percorrendo o caminho até o bicicletário com
tranquilidade. Eu ainda precisava telefonar para os meus
avós, ou teria sérios problemas. Com um pesado suspiro,
encaixei a roda da frente entre as hastes de ferro, tirando a
mochila das costas para pescar a corrente e o cadeado em
seguida.
Agachei-me, concentrada em travar a minha tão
amada Caloi, quando uma nova rajada de vento
ricocheteou contra o meu rosto, levando um perfume
conhecido, embora eu não conseguisse me lembrar de
onde. Puxei o ar de uma vez, preenchendo os pulmões na
tentativa de absorver ao máximo aquele cheiro delicioso.
Pela cabeça do Ned Stark, que gostoso..., pensei
comigo mesma, jogando a mochila nas costas novamente.
Comecei a caminhar em direção a entrada do prédio com
um enorme G pintado em branco, enquanto tateava os
bolsos da mochila, em busca das chaves. Trombei em algo
muito sólido e dei alguns passos para trás, perdendo o
equilíbrio. Uma enorme mão de dedos longilíneos se
fechou ao redor do meu pulso para me impedir de cair. O
toque gelado me fez estremecer.
— Olhe por onde anda!
Ao mirar para cima, encontrei os inquietantes
olhos ocre do meu vizinho me encarando de volta, cheios
de impaciência. Eu queria agradecer, mas parecia que um
gato tinha comido a minha língua. Em algum lugar distante
da memória, existia a sensação de já conhecer aquele
contato frio como metal, embora ele não tivesse me
tocado quando nos conhecemos, tampouco hoje, na aula.
Meus olhos recaíram sobre o cigarro preso nos
seus lábios e, ao constatar que eu nunca havia sentido
nenhum cheiro nele além do perfume maravilhoso, não
pude refrear minha língua.
— Você fuma!
O professor Adônis elevou as sobrancelhas,
parecendo confuso e atônito ao mesmo tempo. Nos sulcos
formados em sua testa, era possível ler claramente a
pergunta “e daí?”. No entanto, essa não foi a sua
resposta. As bonitas íris foram em direção à mão ainda
me agarrando com força e, como se estivesse
desconcertado com a situação, soltou-me de súbito.
Apesar de as lembranças de toda a grosseria dele
na aula permanecerem vívidas na memória, por alguma
razão desconhecida fiquei decepcionada por não ter mais
seus dedos frios na minha pele.
Pigarreei, confusa com o rumo perigoso tomado
pelos pensamentos.
— Desculpa, eu me distraí procurando as chaves.
— Sem problemas — a resposta veio seca, como
era de se esperar.
Seus olhos ainda continham o mesmo brilho
agressivo da aula. Era nítido para mim o quanto ele não
me suportava, eu apenas não entendia o porquê. Quero
dizer, nunca tive inimigos ao longo da minha vida, muito
menos professores. Costumava ser a aluna modelo, mas
não com ele. Tudo bem, eu o chamei de idiota no nosso
primeiro encontro, porém, em minha defesa, ele realmente
tinha sido um grosso comigo! De toda forma, o mais
engraçado era que, dentro de mim, existia a sensação de
culpa. Como se houvesse uma razão para aquele olhar
ferino lançado por ele sem trégua. O que era um absurdo,
pois eu nem ao menos o conhecia direito.
Dei de ombros, decidida a subir e acabar com
aquele estranho encontro. Se ele não gostava de mim,
paciência. Não é como se eu fosse morrer por isso. O azar
seria unicamente dele. Como a boa aluna que sempre fui,
não precisava da sua simpatia para me sair bem. Lancei
uma última olhadela ao homem taciturno de frente para
mim, concentrado em soprar fumaça para fora dos
pulmões. Retomando os passos lentamente, finalmente
alcancei o molho de chaves dentro da mochila e, enquanto
fechava o zíper com um pouco de pressa, fui surpreendida
por sua voz intensa, responsável por um calafrio que
desceu pela espinha.
— Está se sentindo melhor?
Estupefata, girei nos calcanhares, ficando
novamente de frente para Chewie. Ele encolheu os
ombros, atirando a guimba do cigarro para longe.
Escondeu as mãos nos bolsos do jeans e avançou dois
passos em minha direção.
— Como assim?
— Estava passando mal ontem.
— Como você sabe? — perguntei, com o coração
perdendo uma batida. Santo Gandalf, o que foi que eu
fiz?, pensei, aterrorizada com as opções surgindo em
minha mente alarmada.
— Você não lembra?
— Ah, meu Deus! Lembrar o quê? — fui incapaz
de esconder o pânico na voz.
Sustentamos o olhar pelo que pareceram horas,
apesar de ser óbvio para mim que não passaram de
segundos. Chewie estreitou as pálpebras, como se tentasse
decidir se acreditava ou não em mim. Ele arriscou mais
um passo à frente, carregando o perfume inebriante
consigo. Perdi a força nos joelhos, sem conseguir
compreender como um homem tão estúpido conseguia me
deixar daquela maneira. Eu só podia ser louca!
— Hein? — insisti. — Lembrar o quê?
Ele balançou a cabeça em negativa e jurei ter visto
a sombra de um sorriso em seus lábios.
— Esquece.
— Ahn? Não! — respondi, com as bochechas
queimando. Como assim ele achava que podia deixar a
minha cabeça lotada de teorias e simplesmente se
esquivar? — Não, de jeito nenhum. Agora me fala! Você
também foi à república Belas Tetas, é isso?
— O quê?! — o professor Adônis deu uma
risadinha zombeteira. — Não, eu não estava nesta... Belas
Tetas.
Proferiu as últimas palavras com mais ênfase e
percebi que era para me deixar envergonhada. Ele
conseguiu com maestria, porque no mesmo instante fechei
os olhos, querendo sumir dali o quanto antes. Respirei
fundo antes de encarar as enigmáticas íris. Elas tinham a
mesma cor das folhas secas no Outono. Olhos de Outono.
Lancei um olhar de súplica para que ele acabasse
logo com aquilo e respondesse a minha dúvida e, para o
meu alívio, o meu pedido foi atendido.
— Nós apenas nos esbarramos no corredor,
donzela. Você estava péssima... O que, aliás, nos leva à
pergunta inicial. Está se sentindo melhor?
— Na medida do possível — respondi, raspando a
ponta do all-star no cascalho do chão. — Bom, preciso
subir... Meus avós estão esperando um telefonema. Sinto
muito pela trombada!
Girei 180 graus, mas, antes de sequer começar a
andar, sua voz veio novamente ao meu encontro.
— Eu vou pelo mesmo caminho — falou, surgindo
ao meu lado em uma fração de segundo.
Confusa com a situação como um todo, permaneci
calada enquanto subíamos os três lances de escada, até
alcançarmos o nosso andar. Rodopiei nervosamente o
chaveiro na mão quando alcancei o meu apartamento,
acenando para ele com a cabeça.
Tinha acabado de empurrar a porta quando, pela
terceira vez na última meia hora, sua voz grave e intensa
me surpreendeu.
— Não deveria voltar sozinha a uma hora dessas...
Ouvi dizer que é um bairro perigoso.
— Eu não vim caminhando. Tenho uma bicicleta...
Uma Caloi verde-água com cestinha e tudo. — Ok, por
que eu falei a última parte?
— Mesmo assim, não deixa de ser arriscado.
— Certo. — assenti, confusa. — Hum... Obrigada
e até mais.
E então fechei a porta, tentando me convencer de
que o fato de as minhas pernas tremerem como um
massageador elétrico não significava nada de mais.
Se você pudesse se controlar por um instante
Então você veria que eu seria
Sua desculpa para ter um amante
Sua própria montanha para escalar
Você veria
Snowmine – Let me in

— CUIDADO!
Abri os olhos, sobressaltada. Tateei a cama em
busca do celular e, tão logo o alcancei, descobri ser
pouco mais de três da manhã. Com o coração batucando
de maneira violenta contra a caixa torácica, esperei os
olhos se acostumarem com a escuridão do quarto, lutando
para organizar os pensamentos caóticos o mais depressa
possível.
Um grito, eu ouvira um grito.
Não no meu sonho, mas ali no prédio. Foi a razão
para eu ter acordado de maneira tão repentina. A voz
ainda ressoava na minha mente, angustiada, sofrida e tão
alta que parecia ter vindo de algum cômodo do
apartamento. Um arrepio percorreu minha espinha e
resolvi levantar para averiguar se Arthur tinha mudado de
ideia e voltado para casa. Caminhei até a parede oposta,
tocando-a em pontos variados, em busca do interruptor. A
luz feriu meus olhos. Pestanejei até adequar a visão.
— CUIDADO! — um novo urro reverberou pelas
paredes, varrendo a cor para longe do meu rosto.
Pela máscara do Vader, o que foi isso?, pensei
comigo mesma, notando minhas mãos ligeiramente
trêmulas. Mudando de ideia, atravessei novamente o
quarto, a fim de buscar alguma pista pela janela. Lá em
baixo, o estacionamento se encontrava deserto. Se fosse
um filme de faroeste, provavelmente seria a cena em que
uma bola de feno passaria rolando com o vento. Não tinha
ninguém. As folhas nas árvores farfalhavam com o
constante sopro do vento e, no céu, a lua minguante
refletia uma luz pálida.
Suspirei fundo, resignada. Destranquei a porta do
quarto e perambulei pelo apartamento como uma alma
penada, em busca de algo fora do meu alcance. Pesquei a
garrafa de água dentro da geladeira, despejando uma
quantidade razoável em um copo de vidro estampado com
corações. Sentia-me incapaz de afastar da cabeça a
lembrança dos berros. O dono deles parecia tão
atormentado e cheio de dor... Era difícil ignorar a
urgência com a qual clamara. E o mais estranho era não se
tratar de um pedido de socorro, ou uma demonstração de
medo.
Ele gritara “cuidado”. Mas cuidado com o quê?
Esfreguei o rosto, constatando ter perdido
qualquer resquício de sono. Como poderia voltar a dormir
depois de uma súplica como aquela? Depositei o copo
dentro da pia e, no mesmo instante, fui surpreendida pelo
som de uma porta sendo destrancada e aberta. Ouvi tão
claramente que poderia ter sido ali dentro. Sem pensar
muito, percorri a distância até a entrada do apartamento,
repetindo as ações da pessoa ao lado de fora. Dentro de
mim, existia a certeza de ser o dono do grito. Eu não sabia
exatamente o porquê, mas precisava descobrir mais a
respeito. Bem, ele havia me acordado, então essa já era
uma boa desculpa.
Não encontrei ninguém no andar e, por isso, desci
as escadas apressada, tomando cuidado para não embolar
as pernas. Somente na metade do caminho fui me dar conta
de que me achava descalça e ainda vestindo um pijama
estampado com inúmeros Stormtroopers. Minhas
bochechas queimaram, porém segui o caminho mesmo
assim. Eu perdi o juízo, só pode ser isso, pensei comigo,
começando a calcular as inúmeras razões para não ser
uma boa ideia seguir uma pessoa desconhecida na calada
da noite. No entanto, eu apenas não conseguia virar as
costas e subir. Sentia-me atraída tal como as abelhas são
atraídas pelo açúcar.
Quando alcancei o térreo, reconheci a silhueta
alguns metros a minha frente mesmo que o dono dela
estivesse contra a luz. Chewbacca. Ou melhor, o professor
Adônis. Conforme me aproximava de maneira hesitante,
meus olhos foram captando fragmentos da imagem. Eles
me deixaram atordoada ao extremo.
Ele vestia apenas uma bermuda de moletom preta,
os pés descalços como os meus e o tronco nu. Reparei na
tatuagem nas costas, pouco abaixo do ombro. Tratava-se
uma sereia, constatei ao chegar um pouco mais perto, feita
em escala de cinza, cujos enormes cabelos ondulados
espalhavam-se ao redor dela. Um lindo desenho feito por
um ótimo profissional.
Chewie fumava outro cigarro e, tão logo senti o
aroma de menta no ar, entendi a razão para o seu hálito ter
aquele cheiro. Então, observando-o ali em seu momento
tão íntimo, comecei a me questionar sobre o que, de fato,
eu pretendia fazer. Já o conhecia minimamente para
imaginar a sua reação. Provavelmente seria grosseiro e
me mandaria arrumar algo para me ocupar. Preparei-me
para subir novamente, querendo dar uma última olhada no
corpo forte e alto dele. Exatamente como o verdadeiro
Chewbacca. Jamais existiu apelido que funcionasse tão
bem para alguém quanto esse funcionava para Adônis.
Como que pressentindo a minha presença, meu
vizinho olhou por cima dos ombros, a surpresa tomando
seu rosto em questão de segundos. Os olhos, pela primeira
vez, não me fitaram com raiva, mas sim com curiosidade.
Então, o inesperado aconteceu — ele deu um passo para o
lado, fazendo um gesto com a cabeça como se me
convidasse para lhe fazer companhia. Mordi o lado de
dentro da bochecha, cursando o trajeto até a posição
indicada.
Senti o peso do seu olhar e, ao buscá-lo, deparei-
me com as íris de Outono me estudando com atenção. Da
mesma maneira como fizera na aula, tão intensamente a
ponto de eu me sentir desnuda.
— Já é tarde — comentou e, apesar de
despreocupado, tinha o tom impaciente de sempre. Como
se, de maneira inconsciente, me alertasse a ficar longe. —
A donzela deveria estar dormindo a uma hora dessas.
— Eu estava.
— E por que não está mais?
— Pela mesma razão que você também não —
respondi, arrependida por ter descido. Onde eu estava
com a cabeça, no fim das contas?
Tragando o cigarro com vontade, Chewie desviou
a atenção para um casal em uma moto particularmente
barulhenta, que acabava de chegar. Observei-os
estacionar, imaginando onde poderiam ter passado a
madrugada de uma quarta-feira. Minha imaginação sempre
foi muito fértil e, por isso, fiquei tão entretida que ouvir a
voz do professor Adônis próxima da minha orelha me fez
pular de susto.
— Desculpa te acordar — disse simplesmente,
deixando a voz morrer o ar.
— Então foi você?
A memória do rugido retornou muito vívida à
minha mente. Cuidado!, tratava-se de um pedido
excessivamente simples. Porém, a maneira como foi feito
e a urgência naquele berro desentoado... De repente me vi
sem fôlego.
— Se estou pedindo desculpas... — murmurou ele,
carregado de ironia.
Seus olhos passearam pela estampa do meu pijama
e um sorrisinho rasgou os lábios. Meu rosto esquentou em
um misto de vergonha e raiva. Por que ele precisava ser
sempre tão grosseiro, sempre tão fechado?
Ignorando o alerta dado pelo meu subconsciente,
de virar as costas e deixar o Chewbacca mal humorado
para trás, aproximei-me dele um passo, motivada a
descobrir a razão dos gritos. Afinal, uma pessoa não
berrava no meio da noite sem um bom motivo.
— O que houve?
— Hum? — Ele arqueou as sobrancelhas,
estudando-me com atenção.
— Para você gritar... daquele jeito.
— Daquele jeito como?
Sua voz aumentava o tom a cada nova pergunta
feita por mim. Por Bilbo Bolseiro, aquele cara parecia um
cão raivoso prestes a avançar a qualquer momento!
Abracei o próprio tronco, na tentativa de me proteger do
seu crescente descontentamento com a situação.
— Eu não sei... Como se alguma coisa horrível
estivesse prestes a acontecer na sua frente.
Minhas palavras acionaram algum gatilho, pois
Chewie fechou a cara em uma carranca assustadora. Suas
grossas sobrancelhas se uniram, formando vincos na testa.
Ele levou a mão direita ao cabelo e afundou os dedos
compridos nele. Balançou a cabeça negativamente, tão
indignado como se eu tivesse acabado de pedir para se
despir ali mesmo. O que não seria bem uma má ideia...,
fui surpreendida pelo pensamento e respirei fundo,
querendo recobrar o juízo.
— Nada — respondeu. — Não aconteceu nada.
Pode voltar a dormir, donzela.
Por alguma razão inexplicável, o tom mandão me
deixou uma pilha de nervos. Isso e também o maldito
apelido que não tinha nada a ver comigo. Espera aí, se eu
estou acordada a culpa é dele! O mínimo que mereço é
uma explicação!
— Em primeiro lugar, tenho um nome. E, acredite,
não é donzela! Depois, deve ter acontecido, sim. Porque
ninguém fica berrando “cuidado” sem um motivo. Bom,
ninguém normal, né?
Chewie separou ligeiramente os lábios, surpreso
com a resposta. Então se aproximou até nossos narizes
quase se tocarem — isso se ele não tivesse quase dois
metros de altura, é claro.
— Escute aqui, donzela — proferiu entredentes,
frisando a última palavra. — Não sei exatamente em qual
momento você decidiu que era uma boa ideia se
aproximar de mim, mas não é! Então não perca seu tempo,
tudo bem?
— Eu... você... Argh! — Recuei um passo. — Seu
estúpido! Só tentei ser gentil!
Ao ouvir as últimas palavras, ele jogou a cabeça
para trás, soltando uma gargalhada nem um pouco
calorosa. Mordisquei a parte interna da bochecha, um
hábito terrível que piorava de acordo com o meu estado
de espírito.
— Não tenho boas lembranças da última vez em
que um de nós tentou ser gentil — murmurou mais para si
mesmo do que para mim. E, como não entendi, resolvi
ignorar.
Esfreguei o rosto, tentando varrer um pouco da
raiva para longe, mas já era tarde. Professor Adônis tinha
conseguido me envenenar com o seu amargor habitual.
— Você é um louco!
— E você, inconveniente.
Suas palavras permaneceram pairando pelo ar,
mesmo minutos após ele ter partido. Eu, por minha vez,
continuei paralisada no lugar, incapaz de entender como
conseguia colocar os meus sentimentos em ebulição com
tamanha facilidade.
As coisas não são mais como costumavam ser
Falta alguém dentro de mim

Metallica – Fade to Black


Já haviam se passado três semanas do começo
das aulas quando Nataly chegou, na tarde de um sábado
especialmente quente. Arthur e eu jogávamos Banco
Imobiliário no chão da sala. O ventilador apontado em
nossa direção eventualmente fazia as cédulas
multicoloridas saírem voando pelo cômodo.
Eu ganhava disparadamente do meu amigo. Cada
vez que ele caía em uma das minhas propriedades e
precisava me dar um pouco mais de dinheiro por isso, eu
era obrigada a ouvi-lo dizer com um sorriso travesso no
rosto:
— Azar no jogo, sorte no amor!
E, bom, levando em conta o fato de Pedro estar
cada vez mais presente no meu dia-a-dia, talvez ele
tivesse razão.
Arthur estava prestes a entrar em falência no
momento em que o barulho característico de uma chave
destravando a fechadura nos surpreendeu. Meu coração
deu uma guinada tão logo percebi quem conheceria. Por
alguma razão, descobri-me assustada. Ele, por outro lado,
parecia uma criança que acabara de receber a notícia de
que todo dia seria Natal a partir de então.
Levantou-se em um pulo — o que era bizarro,
afinal, tratava-se de Arthur, o menino-lesma — e correu
até a porta, chegando uma fração de segundo antes de
Nataly aparecer do outro lado, com duas malas de rodinha
maiores que ela.
Com um impulso, ergui o corpo sem muita pressa e
assisti ao abraço interminável e barulhento dos dois.
Como já espiara suas fotos no Facebook, sabia como ela
era. No entanto, não esperava que fosse tão baixinha e
magrinha. Eu não entendia como Arthur podia abraçá-la
daquela maneira sem quebrá-la ao meio, por exemplo.
A pele de Nataly tinha cor de caramelo e os
cabelos encontravam-se trançados no estilo Box Braids,
chegando até a cintura. Seus lábios carnudos eram lindos
como os da Angelina Jolie e as sobrancelhas no melhor
estilo Cara Delevingne. Ela parecia ter saído de uma
revista!
Nataly soltou Arthur depois de uma eternidade e
saltitou até mim, envolvendo-me com mais força do que
eu esperava. Eu não era uma pessoa alta, mas me sentia
dessa forma com o topo de sua cabeça mal alcançando
meu pescoço. Correspondi ao abraço, constatando que o
motivo para os dois darem tão certo morando juntos era
por serem justamente opostos: enquanto ele tinha um ritmo
devagar, quase parando, ela exalava energia. Talvez eu
fosse o meio termo ali.
— Becca, você é ainda mais linda pessoalmente!
— exclamou, com sua voz aguda.
— Eu ia dizer o mesmo.
— Então já gostei de você.
Sem dizer palavra alguma, desvencilhou-se de
mim, caminhando em direção à mala maior, cujo rosa doía
nos olhos. Abrindo o zíper com destreza, arrancou dois
pacotes lá de dentro de tamanhos e formatos muito
díspares entre si.
— Eu trouxe presentes da Disney para vocês! —
explicou ela, jogando o pacote maior para Arthur. —
Bom, na verdade estão mais para lembranças porque eu
ainda não ganhei na Mega Sena, né?
Nossas risadas preencheram a sala. Nataly se
sentou no sofá e me entregou uma embalagem retangular e
comprida, parecendo ansiosa para abrirmos os pacotes de
uma vez.
— Caramba... Obrigada! — agradeci, começando
a rasgar o embrulho.
— É de boas vindas... Espero que goste!
Como Arthur era todo lento, consegui revelar o
meu presente antes dele. E quase gritei ao vislumbrar o
que tinha dentro do pacote. Em parte por amar tudo
relacionado a Star Wars, mas, principalmente, porque
dentre todos personagens existentes, era justamente o
Chewbacca que eu tinha preso nas mãos. Então, sem
conseguir raciocinar direito, caí na gargalhada. Ri tanto
que, às vezes, precisava puxar o ar e imitava o barulho de
um porco. Minha barriga ficou até dolorida. Os dois me
encaravam como se eu fosse uma maluca.
Quando finalmente consegui parar de rir, limpei as
lágrimas com as costas das mãos e depois as levei ao
peito, enquanto minha respiração ofegante suavizava aos
poucos. Meus olhos recaíram para a expressão
desapontada no rosto de Nataly. Só então percebi ter
passado a impressão errada.
— Você o odeia, não é? — indagou ela, sem jeito.
— Não — gemi, controlando-me para não voltar a
rir daquela ironia enorme. — Meu Deus, não. Me
desculpa... Eu amei. De verdade. Você não podia ter
escolhido um presente melhor. — Sorri. — Aliás, como
sabia que eu gosto de Star Wars?
— Perguntei ao Arthur!
Nós duas o encaramos e, com isso, meu amigo
pareceu acordar de um transe.
— Por que você ria, então, Becca?
— Porque foi uma coincidência enorme ela ter
escolhido justamente o Chewbacca!
Ela pegou a embalagem da minha mão, estudando
o brinquedo.
— Eu não conheço nada sobre os filmes. Ia
perguntar ao vendedor qual era o mais popular, mas daí
encontrei esse bichinho peludinho e achei tão fofo! —
Nataly justificou, encolhendo os ombros.
— Temos um novo professor. — expliquei. — E,
desde quando o conheci, só consigo pensar nele assim. É
a minha recompensa pessoal por todas as grosserias.
Aquele barbudo rabugento só sabe bramir, igual ao
Chewbacca.
— Calma! Adônis é o nosso vizinho? — Arthur
perguntou com os olhos muito arregalados. Pareciam
prestes a saltar do rosto. — Por favor, me diz que você é
apenas péssima em inventar apelidos e por isso chama os
dois da mesma forma!
Arqueei as sobrancelhas, desconfiada de que
estivesse blefando. Meu amigo poderia, sim, ter sugerido
o Chewbacca para tirar sarro da minha cara. Afinal, ele
sabia muito bem o quanto o professor me adorava.
— Ele mora no apartamento da frente!
— Não! Isso não pode ser verdade. Sério mesmo?
— insistiu, aparentando o mesmo atordoamento que senti
quando, algum tempo atrás, deparei-me com o vizinho na
faculdade e descobri ser o famoso Carrasco. — Tipo,
mesmo, mesmo?
Assenti com a cabeça, notando sua expressão se
obscurecer quase instantaneamente. Nataly olhava de um
para o outro com cara de quem não fazia a menor ideia do
que acontecia.
— Qual a chance de nós nunca termos nos cruzado
aqui, nesse intervalo de tempo? — Arthur murmurou,
emburrado.
— De quem vocês estão falando? — ela
finalmente se pronunciou. — Quem é esse professor?
— Ele substituiu a Bernadete em Produção
Textual, amiga!
— Nossa, mas é assim tão ruim?
Mal a pergunta foi lançada, Arthur e eu caímos na
gargalhada. Nossas risadas eram nervosas e cúmplices,
pois entendíamos quão bem o apelido descrevia nosso
novo professor.
— Isso é um sim? — Ela uniu as sobrancelhas,
confusa. — Eu quero saber tudo!
— Nataly, querida, você vai precisar sentar!
— E como vai! — completei.
Eu e você
Não é assim tão complicado
Não é difícil perceber
Quem de nós dois
Vai dizer que é impossível
O amor acontecer?
Ana Carolina – Quem de nós dois

— Vocês estão brincando comigo, isso sim! —


Nataly grunhiu, depois de Arthur ter contado sobre
professor Adônis costumar expulsar da aula quem não
deixasse o celular no silencioso e este porventura
começasse a tocar. — Já entendi tudo, combinaram essa
historinha só para me deixar assustada! Arthur, isso é tão
você!
— Quem me dera fosse brincadeira, Lily. O cara é
um sádico. Gostoso, não posso negar, mas absolutamente
sádico.
Ela procurou meu olhar instantaneamente, para
confirmar se era verdade. Assenti desanimada,
encolhendo os ombros como se dissesse “sinto muito”.
Embora ainda não contasse um mês desde o início
das aulas, Adônis já tinha honrado muito bem o apelido
conquistado pelo campus. O Carrasco. Eu não sabia quem
fora o gênio responsável por isso, no entanto me sentia
consolada por saber que todo mundo sofria tanto quanto
eu. Bom, não exatamente como eu, porque aquele
Chewbacca estúpido parecia ter algo pessoal comigo.
Depois da fatídica madrugada em que acordei com
seus berros desesperados e tentei estabelecer uma
conexão, as coisas pioraram drasticamente entre nós.
Sempre quando nos cruzávamos, fosse pelos corredores
da UEM, fosse pelas escadarias do nosso prédio, ele não
tentava disfarçar o quanto aparentava me achar
repugnante. Nem mesmo na sala de aula. Ele simplesmente
me detestava. E, tratando-se de Adônis, isso era realmente
desgastante.
Quero dizer, aquele homem não era nada fácil.
Todo mundo estava ciente sobre a sua intolerância a
atrasos, conversas, celulares tocando, assim como
qualquer outra coisa que pudesse atrapalhar minimamente
a aula. Certa noite, por exemplo, gritou minutos a fio com
o professor da sala ao lado por fazer uma dinâmica na
qual os alunos precisavam bater palmas. Lembro-me de,
em determinado momento, tê-lo ouvido falar aos berros
algo como “já pensou em dar aula para o primário, já que
gosta tanto de balbúrdia?”.
Mas não era só isso. Professor Adônis tinha
manias, muitas delas. Eram detestavelmente irritantes.
Nós não podíamos nos dirigir a ele sem usar o pronome
senhor. A menos, é claro, que quiséssemos levar uma
patada na frente dos demais. E, bem, ninguém queria. Na
segunda semana de aula, uma aluna desavisada que
prolongara as férias foi embora chorando depois de tentar
discutir sobre ele não ter o direito de tirar um décimo da
média por conta dos atrasos. Só eu sei o quanto demorei
para conseguir tirar a expressão desolada dela da minha
cabeça.
Adônis odiava quem não prestasse atenção em
suas valiosas palavras. Se alguém se distraísse — mesmo
por uma fração de segundo — das explicações e tivesse o
azar de ser descoberto pelos olhos ligeiros do Carrasco,
era convidado a explicar a matéria em seu lugar. É
desnecessário dizer que não existia a opção de negar,
certo? Por isso todos ficavam roboticamente atentos a
cada mísero movimento. Ninguém queria passar pela
experiência traumática de explicar o conteúdo recebendo
suas perguntas afiadas.
Aliás, por falar em perguntas, elas eram o terror
de qualquer aluno com o mínimo aceitável de sanidade.
Adônis nos bombardeava com elas durante as torturantes
aulas. Embora parte de mim soubesse ser o seu dever
como professor, eu o odiava pela maneira como fazia
isso. Odiava ainda mais que oito em cada dez perguntas
fossem dirigidas a mim. Na minha opinião, esse era o
comportamento que mais honrava o apelido. Se eu
fechasse os olhos, conseguia visualizar perfeitamente a
imagem dele parando em frente a minha mesa, com a
expressão desafiadora precedente a uma pergunta. Não
respondê-lo era incabível, mesmo quando não se sabia a
resposta. E, caso alguém falasse algo errado, precisava
arcar com as consequências. Elas consistiam,
basicamente, em Adônis realizando o que sabia de
melhor: fazendo-nos desejar a própria morte apenas para
nos vermos livres dele.
Ok, estou brincando.
Ou não.
— Vocês estão com cara de velório — Nataly
rompeu o silêncio.
— Você também estaria se já conhecesse o
Carrasco — murmurei e Arthur concordou com a cabeça.
Olhando de um para o outro, ela abriu um sorriso
animado e se levantou do sofá em um pulo.
— Já sei como acabar com esse clima pesado.
Vamos jogar verdade ou consequência!
— Ótima ideia, Lily — falou Arthur, com o seu
característico tom moroso. — Comprei uma Catuaba para
comemorar o meu primeiro mês com Pedro, mas ela cairia
bem melhor hoje.
— Arrasou, amigo!
Verdade ou consequência? Com... Catuaba? Pela
cabeça de Ned Stark, preciso sair daqui o quanto antes.
Enquanto meus colegas de apartamento corriam
para a cozinha, aproveitei a deixa para escapar da sala.
Mesmo sendo um sábado à noite propício para diversão, a
ideia de encher a cara me parecia inconcebível. Quero
dizer, só de lembrar como a tequila me deixara algumas
semanas atrás, eu já sentia um calafrio percorrer o corpo.
Meu conceito de recreação era tão discrepante das demais
pessoas da minha idade. Ademais, eu tinha um trabalho
para entregar na segunda-feira, o qual gostaria de revisar
outra vez.
Eu tinha acabado de fechar a porta do meu quarto
quando ouvi Arthur gritar de outro cômodo:
— BECCA, NEM PENSE EM ESCAPAR!
Mordi o lábio inferior, ponderando se me fingir de
morta resolveria o problema. Ledo engano! Menos de dois
segundos depois, o meu amigo escancarou a porta, sem
nem ao menos bater antes.
— Arthur, seu louco, e se eu estivesse pelada? —
ralhei com ele, atirando o travesseiro em sua direção.
— Não tem nada aí que eu queira ver. — Ele
jogou o travesseiro em mim, acertando o ombro direito.
— Agora, anda, eu sei que você fugiu de nós.
— Eu? Claro que não! Já estava vindo para o
quarto, de qualquer jeito. Achei o momento adequado.
Tenho um trabalho da faculd...
— Não ouse terminar a frase! Pelo amor de Deus,
você só sabe estudar? Hoje é sábado.
Dei de ombros, fazendo a minha melhor expressão
de súplica.
— Arthur, prometi para mim mesma não beber
nunca mais! É horrível... Acordei com dor de cabeça,
cheirando a vômito e só conseguia ficar em pé
cambaleando. Não desejo isso nem para o professor
Adônis, e olha que desejo muitas coisas ruins para ele!
— Primeiro: você reclama demais. — Arthur
apontou o indicador para mim, estudando-me com os
olhos naturalmente esbugalhados. — Segundo: não estou
te dando uma escolha. E, por fim: se eu ouvir esse nome
mais uma vez essa noite, não me responsabilizarei pelos
meus atos.
— É sério, eu não posso, eu...
— Você já não fez esse trabalho semana passada?
— Já, mas...
— E já não revisou pelo menos duas vezes?
Cruzei os braços, contrariada.
— Hein? — Arthur provocou, arqueando as
sobrancelhas.
— Sim, eu já re...
— Caso encerrado. Você tem dois minutos para
estar na sala ou te tranco na casa do Carrasco!
Apesar de eu ter tentado manter uma postura
rígida, foi por água abaixo tão logo suas palavras
penetraram meus tímpanos. Explodi em risadas, fazendo-o
rir comigo.
— Ah, não, por favor! Tudo menos isso!
— Catuaba ou Carrasco, Rebecca. A escolha está
em suas mãos — falou entre risos, antes de fazer uma
saída dramática do meu quarto.
Todo este tempo eles me deixaram pensando
O amor é um barco que aos poucos vai afundando

Little Joy – Brand new start


Para quem nunca tinha bebido mais do que alguns
goles de champanhe nas datas festivas, eu estava indo
longe demais, e ainda nem havia se passado um mês na
faculdade. Eu não almejava ser o tipo de pessoa que
perde a cabeça quando vai morar longe da família, mas
também não podia ser tão ruim me divertir um pouco com
meus colegas de apartamento quando todos os trabalhos
da faculdade se encontravam em dia, não?
Nataly enrolou as tranças em um imenso coque no
topo da cabeça e então girou a garrafa no meio da roda,
com um sorriso diabólico no rosto. Quando o bico
apontou para mim, os dois irromperam em risadas.
Revirei os olhos, destampando-a para servir uma dose.
Arthur dera a ideia de bebermos antes de escolher entre
verdade ou consequência. Tornaria as coisas mais
interessantes, de acordo com as suas próprias palavras.
Eu não cansava de me surpreender com quão discrepantes
nossas opiniões eram. Quero dizer, se dependesse de mim,
estaria realmente confortável em passar a noite de sábado
regada a filmes de terror na Netflix. Mas, para as pessoas
da minha idade, a ideia de se divertir sem ter tudo
rodando parecia inconcebível.
Respirei fundo, prendendo a respiração antes de
jogar a bebida garganta adentro. Raspei as costas da mão
sobre os lábios, sentindo o organismo incendiar. De olhos
lacrimejando, direcionei toda a sorte de palavrões para
cada um deles, por pensamentos.
— V-verdade — balbuciei, concentrando-me para
não vomitar tudo o que já havia bebido naquela noite.
Considerando o fato de a Catuaba se achar pela metade e
estarmos apenas em três, supunha-se que tinha sido uma
quantidade relevante.
Nataly e Arthur se entreolharam e eu mordi o lado
de dentro da bochecha. Não sei se era por ter convivido
algum tempo sozinha com ele antes dela chegar, mas a
cumplicidade dos dois me deixava roxa de ciúmes. Não
fazia o menor sentido, até porque eles eram amigos muito
antes. Mesmo assim, presenciar a maneira natural como se
comunicavam sem dizer uma única palavra me deixava
desconfortável. A verdade era que jamais consegui criar
laços tão fortes com alguém — exceto os meus avós, é
claro. Minhas amizades nunca duravam o bastante e eu me
sentia como uma folha ao vento: sem raízes, sem amarras.
— Você já namorou alguém? — perguntou ela,
com uma das sobrancelhas erguidas.
Até que demorou para chegarmos nesse assunto...
— Não.
— Ninguém? — Arthur insistiu. — Tipo, nem um
namorinho de colégio sequer?
Oh, Céus...
— Não, ninguém.
Dei de ombros, um pouco irritada pela expressão
de espanto compartilhada pelos dois. E daí se eu nunca
me envolvi com ninguém? Isso não deveria ser assim tão
importante na vida de uma pessoa, sobretudo se essa
pessoa tivesse apenas dezessete anos, não é? Bom, ao
menos foi o que pensei, mas pelo visto me enganei, pois
eles continuaram me encarando como se eu fosse de outro
mundo.
— Como assim, Becca? — Arthur parecia
perplexo. — Calma aí, não vai me dizer que é virgem?
Separei os lábios em surpresa, chocada com o
rumo da conversa. Nataly me fitava com curiosidade
esperando uma reação e, como não veio, falou por mim:
— Ai, meu Deus! Não acredito. Você é!
Estreitei os olhos, olhando de um para o outro sem
entender a incredulidade em seus rostos.
Pelos dragões de Daenerys Targaryen, que droga
está acontecendo aqui? Meus colegas de apartamento
estão mesmo fiscalizando minha sexualidade?
— E daí, gente? A maioria na minha idade também
é!
— Ah, meu bem, você se surpreenderia... — Ela
deu uma risadinha, piscando para mim.
Arthur continuou me estudando exasperado, como
se tivesse acabado de descobrir que dividiu apartamento
por quase um mês com uma serial killer.
Não ter feito sexo ainda é assim tão assustador?
— Por que você nunca... quis?
— Arthur, não está na cara? — Nataly feriu meus
tímpanos com a voz aguda. — Ela está esperando a
pessoa certa! É tão bonitinho!
— Não! — Empertiguei-me no lugar
automaticamente. — Não tem nada a ver. Não procuro
ninguém! Não tenho a menor necessidade de me apaixonar
e... — Suspirei, dando-me conta de como fui agressiva na
minha resposta. — Estamos mesmo discutindo minha
virgindade?
Ficamos nos olhando por um bom tempo antes de
explodirmos em risos. Talvez fosse o efeito da Catuaba,
mas ri até perder o fôlego. Na minha insignificante
experiência com bebidas alcóolicas, havia percebido um
estado de alegria precedente ao momento quando tudo
rodava que era bom. As coisas ficavam leves e tudo
parecia incrivelmente divertido. O problema era que eu
ainda não conseguia identificar a linha tênue separando o
céu do inferno.
Quando finalmente conseguimos normalizar as
respirações, Arthur segurou meu rosto com as duas mãos,
deixando um beijo estalado na bochecha. Assim próximo
de mim, pude sentir um pouco do seu cheiro de incenso.
Depois de conhecê-lo, jamais poderia deixar de associar
esse aroma a ele.
— Eu já disse o quanto amo você morar conosco,
dentre todas as repúblicas onde poderia ter parado? Mas
Nataly e eu temos muito trabalho pela frente.
— Muito trabalho...?
— Para te corromper, é claro. — Piscou, fazendo-
me gargalhar novamente.
— Cala a boca, Arthur!
— Becca, é sério, não quero parecer invasiva,
mas estou tão curiosa. — Nataly se manifestou. — Por
quê?
— É, na verdade também estou! Você é muito
bonita... Deve ter aparecido uma pancada de gente
querendo tirar uma lasquinha, não?
— Você é terrível sabia? — Dei uma cotovelada
nele, fazendo-o rir.
O silêncio que se instaurou na sala foi realmente
desconfortável. Respirei fundo, tomando um longo gole de
Catuaba, no bico mesmo, a fim de encontrar uma dose de
coragem.
Se vou falar sobre isso, a bebida pode vir a
calhar...
— A minha mãe me teve muito nova e nunca
hesitou em demonstrar o quanto arruinei sua vida. É por
isso que fui criada pelos meus avós... mas essa é uma
história para outro dia. — Sorri para eles. — Desde que
comecei a entender um pouco melhor a situação, prometi
para mim mesma não ser igual a ela. Em nenhum aspecto.
Então nunca me envolvi com ninguém. Vou ter muito tempo
para isso no futuro, quando for mais velha... Agora o foco
é a faculdade.
— Você é mesmo uma nerd! — Arthur brincou,
fazendo cosquinha nas minhas costelas. — Mas,
francamente, acha mesmo que vai conseguir controlar o
seu coração até lá?
— Bom, não é querendo me gabar, mas fui bem
sucedida em todo esse tempo, não é?
— Sei... Você diz isso agora! — falou Nataly, com
um sorriso amigável no rosto. — Quero só ver quando o
amor te pegar de jeito.
Ergui as mãos para o alto, dando a batalha como
perdida. Discutir com eles não me levaria a lugar nenhum,
porém no fundo tinha certeza absoluta de que isso jamais
aconteceria. Nunca fui uma pessoa romântica. Paixão não
era para mim. Existiam outras prioridades e, no fim das
contas, não podia cometer os mesmo erros da minha mãe.
Por mais triste que pudesse parecer, eu não acreditava no
amor. Não nesse tipo de amor, ao menos.
O que eu mal podia sonhar, no entanto, era o
quanto as coisas ainda mudariam dali para frente.
Você precisa passar algum tempo, amor
você precisa passar algum tempo comigo
E eu sei que você vai encontrar, amor
Eu vou possuir seu coração

Death Cab for Cutie – I will possess your heart


— Eu te desafio a correr pelado no
estacionamento! — ouvi minha voz ressoar desafinada
pela sala.
Arthur levou as mãos à boca, perplexo, ao passo
em que Nataly ria desenfreadamente do sofá.
— Qual é, Becca, não vou fazer isso!
— Ah, você vai, sim — disse ela, apontando o
indicador de maneira enfática. — Se precisei telefonar
para um pizzaria e gemer como se estivesse tendo um
orgasmo, você vai correr pelado, sim. Sem objeções.
— Mas, gente, isso é diferente. Eu posso até ser
preso!
Levantei com um impulso, debruçando-me na
janela da sala para espiar o movimento lá em baixo. Não
havia nenhuma alma viva para contar história.
— Para de chorar, Arthur. Não tem ninguém lá.
— Jesus, isso tudo é vontade de me ver sem
roupa? — ele fingiu estar indignado. — Era só pedir com
carinho.
— Vai logo, para de drama! — Nataly sorriu,
balançando o celular em frente ao rosto dele. — Vamos
ficar aqui em cima registrando esse momento.
Meu amigo balançou a cabeça em negativa,
olhando-me com cara de súplica. Quase chegava a me
comover. Quase.
— Becca, você não é assim! — Ele abriu os
braços, tentando me enlaçar pelo pescoço. — Você é uma
menina doce e eu te amo!
— Sai pra lá! — Empurrei-o pelos ombros
levemente. — Para de me bajular. Eu tive que ligar para a
Pábila e dar em cima dela, lembra?
Ele teve um acesso de riso, sendo acompanhado
por Nataly. Cruzei os braços emburrada, perguntando-me
quão arrependida ficaria quando o efeito do álcool
finalmente passasse.
— Acredite em mim, vai ser muito difícil
esquecer.
— Vai ser difícil esquecer isso também —
respondi, indicando a janela com a mão.
Arthur encolheu os ombros e começou a se despir
na nossa frente. Com a sua velocidade característica (ou
falta dela), ele tirou a camiseta, seguindo para a bermuda.
Quando estava prestes a se livrar da cueca, no entanto,
não pude conter um grito:
— NÃO FAÇA ISSO!
— Ué, mas você pediu.
— Eu sei, mas pensando melhor, isso acabaria
com nossa amizade — falei séria, arrancando gargalhadas
deles.
— Olha, Arthur, ela está certa. Não quero ter
pesadelos com essa cena.
— Vão se ferrar! Agora, se me dão licença,
preciso correr no estacionamento como um retardado.
— Não vai ser realmente um desafio, né? —
Nataly provocou e, como resposta, ele mostrou o dedo
médio antes de sair porta afora, munido de uma
determinação invejável.
Nós duas nos encaminhamos à janela, ficando lado
a lado para presenciar nosso amigo pagando o castigo.
Ela sorriu maliciosamente, seus olhos de ônix brilhavam
em ansiedade.
Alguns minutos depois ele apareceu no
estacionamento, o cabelo platinado se sobressaía na noite.
Nataly ligou a câmera do celular, mirando para ele
enquanto corria de um lado para o outro, ou o mais
próximo disso, dado o fato de que até assim conseguir ser
lento.
Um grupinho de rapazes passou por ele, fazendo
Nataly e eu rirmos histericamente. Mesmo lá de cima,
dava para perceber o quanto isso o deixara constrangido.
Foi quando percebi o quanto eu estaria encrencada no meu
próximo desafio.
Como ficamos por horas a fio apenas escolhendo
“verdade” na brincadeira, chegamos a um acordo de que
ninguém podia pedir essa opção mais de uma vez seguida.
E, como na última rodada eu tinha feito justamente isso,
agora seria obrigada a ter um desafio.
Que Dumbledore me proteja!
A porta foi aberta com um baque surdo, fazendo-
me dar um pulinho de susto.
— Rebecca, você está tão ferrada!
Nataly gargalhou, atirando-se novamente no sofá.
— Sua reação foi hilária, amigo.
— Lily, o seu também está guardado, fica fria!
Observamos Arthur vestir novamente as roupas,
antes de se sentar no chão da sala, com uma carranca
dominando o rosto. Mordi o lado de dentro da bochecha
para evitar rir mais. Isso só pioraria meu castigo.
Cruzei os dedos atrás das costas, torcendo para a
garrafa apontar para Nataly. Não seja eu, não seja eu, não
seja eu, torci por pensamentos, porém foi exatamente o
que aconteceu. Depois de dar três voltas completas, a
tampinha verde ficou de frente para mim, arrancando-me
um gemido desanimado.
Essa não...
— Ah, nada como a vingança! — disse ele, com
um sorriso mordaz.
Fiz a melhor expressão de pena que pude,
pestanejando além do normal para meu amigo.
Normalmente funcionava, mas naquela noite foi justamente
o contrário. Pareceu acender algo dentro dele, pois Arthur
praticamente gritou:
— Eu já sei!
Estudei a expressão sua satisfeita e, ao mesmo
tempo, animada. No mesmo instante, senti um peso enorme
recair sobre os ombros.
Droga, estou realmente ferrada!
— Você precisa entrar na casa do Carrasco!
— Eu... Calma, o quê?! — Engasguei com a
saliva, tamanha foi minha surpresa. — Eu... na casa do...
Arthur, não!
— Não existe essa opção, Becca.
— Mas, Arthur... Como? O que vou falar pra ele?
— Isso já é com você, ué. Lily, você tem alguma
ideia? — perguntou, segurando-se para não rir.
Dado o silêncio que veio a seguir, olhamos para o
sofá, encontrando Nataly adormecida. Instintivamente,
conferi o meu relógio de pulso, descobrindo já passar das
duas. Cruzes, eu não tinha a menor ideia de há quanto
tempo estávamos naquela brincadeira perigosa.
— Não dá. Já está muito tarde.
— Rebecca! — Arthur apontou o indicador de
maneira ameaçadora, tal como Nataly fizera com ele, não
muito tempo atrás.
— Mas, Arthuuuuur! — choraminguei, começando
a considerar me atirar pela janela, só para evitar o
iminente.
Ignorando meus protestos, ele chacoalhou nossa
colega de apartamento, fazendo-a despertar abruptamente.
— Ahn? E-eu estava apenas descansando —
balbuciou, fazendo-nos rir.
— Lily, o desafio da Rebecca é dar um jeito de
entrar na casa do professor novo.
— O Carrasco?
Nataly nem ao menos tentou disfarçar a excitação.
Mesmo sem conhecê-lo pessoalmente, já tinha uma ideia
boa de como era sua personalidade.
Arthur assentiu, fazendo-me estremecer somente
com a perspectiva de encarar Chewie naquelas
circunstâncias.
— Gente, isso... isso é demais. Ele vai gritar
comigo e... — minha voz morreu no ar ao ver a cara que
eles faziam para mim. — Não posso.
— Ah, para com isso, Becca. Vou ficar bravo se
você se recusar! Todo mundo fez coisas que não gostava
essa noite.
— Só que isso já é demais!
— Claro que não. — Nataly se dirigiu a mim,
sorrindo. — É só você inventar alguma desculpa qualquer.
Vai ser moleza!
— Como o quê?
— Sei lá... Diz que não está entendendo o
conteúdo dele e precisa de ajuda, algo assim.
— Na madrugada de um sábado? — indaguei,
desejando com todas as forças simplesmente poder
aparatar para longe dali, como em Harry Potter.
Arthur e Nataly se entreolharam, daquele jeito
irritante que conseguiam se comunicar e, antes que
pudesse fazer algo a respeito, eles pararam um de cada
lado, segurando-me pelos braços e me arrastando pelo
apartamento em direção à saída.
— Parem com isso! Gente, vamos pensar em outra
coisa. Se quiserem eu posso sair pelada no
estacionamento. Tudo menos isso. Pelo amor de Obi-wan
Kenobi! — as palavras pulavam para fora da minha boca,
mas não causaram a menor empatia nos meus colegas.
Em um segundo eu me encontrava dentro de casa e,
no seguinte, tinha sido trancada para fora.
— Só vamos abrir depois que você fizer o
desafio! — ouvi a voz de Arthur dizer lá de dentro.
Depois disso, o silêncio.
Senti a cabeça rodar, como um lembrete do álcool
correndo nas veias. Aquilo não podia estar acontecendo.
Eu não queria nem imaginar as possíveis reações de
Chewbacca diante de um incômodo na calada da noite.
Cocei a cabeça, sendo atingida em cheio por duas certezas
cruéis — os meus amigos eram perversos e eu estava
indiscutivelmente ferrada!
Sem ter uma alternativa, avancei em direção ao
apartamento do meu vizinho. Que a força esteja comigo,
pensei, levando o indicador à campainha.
Tenho procurado por você
(...)
Nunca tinha sentido uma ansiedade como essa antes
Agora aqui você está entrando exatamente à minha porta

Lanny Kravitz – Again


Nem ao menos tive tempo para me arrepender.
Mal tirei o dedo do botão da campainha e a porta foi
aberta, revelando Chewie sem camisa, para meu terror.
Notei a surpresa em seu rosto ao se deparar comigo e só
então me dei conta de não ter pensado em nada para dizer.
Emudecida pelo nervoso, desci o olhar involuntariamente
para o V desconcertante, o qual sabia que encontraria no
final do seu abdômen.
Um suave pigarrear fez o meu rosto pegar fogo em
uma velocidade surpreendente.
— Pois não? — Ele arqueou a sobrancelha.
Que merda eu estou fazendo?, perguntei-me, ao
perceber que secava deliberadamente o meu vizinho-
professor-chewbacca-carrasco. Céus, era muito para
processar e minha cabeça simplesmente não cooperava.
Lutando para encontrar a voz em algum lugar
dentro de mim, fitei os olhos de Outono que continuavam
me encarando cheios de curiosidade.
— M-meus amigos me... trancaram para fora —
titubeei, sentindo-me idiota ao extremo.
— E daí?
Sempre tão amável!
— Eu não tenho para onde ir.
— E você espera que eu faça o que exatamente...?
— perguntou com um pouco de rispidez, fazendo-me
separar os lábios em surpresa.
Argh! Esse estúpido sem o mínimo de empatia!
— Eu achei... Nada, esquece. Você não tem nada a
ver com isso. Não sei o que me deu na cabeça.
Girei nos calcanhares para sair dali, mas, antes de
dar o primeiro passo, seus dedos gelados se fecharam ao
redor do meu pulso, refreando-me.
Crispando os lábios, ele olhou para porta atrás de
mim e depois suas íris percorreram o meu corpo, como se
tentasse entender a situação. Para ser honesta, nem mesmo
eu compreendia. Meu estômago revirou com o simples
gesto. Eu estava um caco. Vestia somente uma camiseta
enorme de ficar em casa e me encontrava descalça.
Adônis respirou fundo e deu um passo para o lado,
abrindo passagem. Fiquei perplexa por estar prestes a
entrar no apartamento dele e, por isso, congelei no lugar.
Meus pés pareciam feitos de chumbo.
— Se você vai ficar plantada aí no corredor a
noite inteira, me avise logo para eu poder voltar ao que
fazia.
Assenti com a cabeça, engolindo em seco.
— Eu... com licença — murmurei, atravessando a
porta em direção ao calabouço.
Consegui me infiltrar! Não acredito!
Segui reto pelo corredor, indo em direção à sala.
O perfume amadeirado e forte dele parecia impregnado
em cada centímetro do apartamento, por isso inspirei
fundo, tragando o delicioso aroma. A planta era familiar,
porém causava estranhamento por ser o inverso da minha.
Em vez de a sala ser à esquerda, por exemplo, era à
direita.
Apesar de o piso de tacos ser semelhante ao do
meu apartamento (incluindo o fato de faltarem alguns),
quase não era visível, uma vez que um amplo e felpudo
tapete chumbo o escondia. Dois sofás marfim estavam
posicionados em L, conferindo uma atmosfera
aconchegante à sala, assim como a profusão de quadrinhos
em tamanhos variados, os quais se espalhavam em uma
desordem estranhamente harmônica na parede posterior ao
estofado maior. A mesinha de centro era composta por
quatro caixotes de madeira envernizada que, juntos,
formavam um artefato atual e cheio de personalidade. Um
pouco à frente, encontrava-se um móvel vintage de pés
palito e divisões aparentes, sobre o qual a televisão fora
colocada. A casa dele em nada era parecida com as
mansões impessoais e monocromáticas dos mocinhos
milionários em livros de romance. Não, era como se cada
detalhe abrigasse um pouquinho do meu anfitrião, como se
tudo ali dentro imprimisse quem ele era. Tratava-se de um
verdadeiro lar.
Fui surpreendida por um vulto pulando nos meus
pés e soltei um berro estridente.
— Porra, donzela, o que foi isso?
Com o coração batucando como a bateria de uma
escola de samba, constatei o motivo do susto — um gato
laranja muito gordo e peludo. Ele me estudou com os
desconfiados olhos azuis por alguns segundos antes de
soltar um miado baixo e pular para o sofá de dois lugares,
onde se aninhou.
— Seu gatinho me assustou.
— Ele é mesmo muito ameaçador — Chewie
falou com ironia e notei a sombra de um sorriso por trás
da barba de lenhador.
Revirei os olhos e um sorriso finalmente apareceu
no rosto dele. Indiquei com a mão o lugar vago ao lado do
bichano.
— Posso me sentar?
— É para isso que serve.
Aconcheguei-me no assento e então meus olhos
foram direto para o sofá maior, onde um lustroso violão
preto se encontrava repousado. Desesperada para
amenizar a estranheza da visita, acabei perguntando o
óbvio:
— Você toca?
— Tirou essa conclusão sozinha?!
Nossa!
— Você é assim com todo mundo? — perguntei.
— Ou só comigo?
— Desculpa, mas você não colabora. É sempre
tão sagaz?
Quis xingá-lo de idiota, como fizera quando nos
conhecemos, mas, como estava em sua casa, contive-me
em morder o lado de dentro da bochecha, para evitar fazer
uma besteira. Talvez tenha deixado transparecer a forma
como me senti, pois nenhum outro comentário veio na
sequência.
Ele sentou no braço do sofá maior e, sem desviar
os desconcertantes olhos de mim, ocupou-se em estalar os
dedos, os pulsos e, por fim, o pescoço. Assisti ao ritual
um pouco horrorizada, lembrando-me da minha avó me
advertindo a jamais, em hipótese alguma, fazer o mesmo.
A menos que eu quisesse ferrar com as minhas
articulações, é claro — o que não era o caso.
— Comecei aos dez — falou Adônis,
sobressaltando-me. Pisquei os olhos algumas vezes,
tentando me situar e, como que percebendo a minha
dúvida, ele completou — O violão.
— Ah, sim. Legal. — Pigarreei, desconcertada por
ele ter tentado ser minimamente gentil. — Eu já tentei
aprender, um tempo atrás. Sei tocar Come as You Are e
Que País é Esse.
— E Smoke on The Water?
— Não cheguei nessa. — Encolhi os ombros.
— É uma pena. — Sorriu. — Ela faz parte do trio
de músicas que todo mundo estuda quando começa a tocar.
Peguei-me rindo baixinho, para a minha surpresa,
com a cabeça ainda aérea, incapaz de acreditar na
situação se desenrolando ao meu redor. Quero dizer, eu,
bêbada, na casa do professor mais odiado da universidade
— por mim também, inclusive —, falando sobre aulas de
violão e até mesmo me divertindo. Aquela era uma cena
até então inconcebível, mesmo para uma imaginação fértil
como a minha. Arthur me metia em cada uma...
— É tipo um pacote de iniciante? — perguntei,
querendo manter o tom leve da conversa.
— Sim. Você só pode afirmar ter conhecimentos
básicos depois disso.
— Acho que falhei miseravelmente. — Meus
olhos focaram no instrumento descansando inocentemente
sobre o sofá e, sem pensar muito bem no que fazia, ouvi-
me pronunciando o maior absurdo de todos: — Você
poderia me ensinar agora!
Desejei morrer tão logo as minhas palavras foram
jogadas ao ar. Um sorriso torto pincelou os lábios dele
enquanto se levantava, já assumindo a constante postura
defensiva.
— Pedindo aulas particulares para o Carrasco,
hein?
— V-você sabe do apelido? — Meu rosto queimou
instantaneamente, como se eu mesma o tivesse criado. No
entanto, apesar de não ter, sabia possuir uma parcela de
culpa, afinal também o chamava daquela forma.
Além de Chewbacca, é claro.
E sádico, louco, lenhador estressado, entre outras
coisas...
Minha nossa, sou uma pessoa desprezível, pensei
desanimada.
— Posso ser muitas coisas, donzela, mas surdo
não é uma delas.
Lembrei-me das inúmeras vezes em que este
apelido fora repetido naquele sábado, por mim e pelos
meus colegas, e quis sair correndo o mais depressa
possível dali.
— Sinto muito, eu...
— Tudo bem — ele me interrompeu. — Não
vamos criar caso com um detalhe tão pequeno. Em vez
disso, me conte: por que desistiu do violão?
Separei os lábios, atordoada com a pergunta
despretensiosa. Como meu vizinho permanecia
constantemente na defensiva, jogar conversa fora não era
exatamente o esperado.
Forcei a memória, lembrando-me das poucas aulas
presenciadas há alguns anos, antes de abandonar a ideia
de aprender a tocar um instrumento.
— Nenhum motivo especial. Só não era a minha
praia.
— E qual é a sua praia?
— Bom, eu diria que são os livros, mas você
certamente já sabe disso — respondi afiada, fazendo-o rir
baixinho.
— Muito bem observado.
— Falando sério, agora, eu gosto muito de
desenhar. Poderia fazer o tempo inteiro e não acharia
ruim.
— Ah, é? — surpresa tomou seus traços
harmoniosos. Precisei mordiscar o lábio inferior para não
rir da reação tão espontânea.
— É o meu escape da realidade. Não que eu tenha
tantos motivos para isso... Mas, às vezes, não importa
quão bom foi o dia, tudo o que mais quero é poder fugir
por algumas horinhas. — Encolhi os ombros. — Você
deve me entender.
— Mais do que imagina — Professor Adônis
soltou um pesado suspiro e sua expressão endureceu um
pouco. — A música é assim para mim, também. Desde
muito antes de eu aprender a tocar, aliás. Foi o meu pai
quem me ensinou a gostar, então a vejo como uma velha
amiga, sabe? Aquela que não importa quanto tempo passe,
estará sempre de braços abertos para me receber.
Talvez por ser a frase mais longa já dita por ele
sem uma boa dose de ironia, fiquei emudecida. Já estava
tão acostumava com o lado agressivo e impaciente de
Chewie que até descartara a possibilidade de ele ter uma
faceta doce e gentil. Por isso foi um choque espiar um
pouquinho do que tinha escondido dentro da casca
rudimentar mostrada para o mundo.
Percebendo o meu silêncio, ele inclinou
ligeiramente a cabeça para o lado.
— O que foi? — despertei do transe ao ouvir sua
voz grave invadindo os meus tímpanos.
— Nada. Fiquei aqui pensando... Você, assim
como eu, escolheu o curso de Letras quando tinha outra
paixão.
— Parece que, afinal, temos algo em comum.
— Você nunca pensou em cursar a faculdade de
música? — perguntei por fim, curiosa para saber um
pouquinho mais sobre ele.
— Para ser honesto, sim. — Coçou o nariz,
olhando para algum lugar que parecia ser muito longe
dali. — Era a minha primeira opção. Mas as
circunstâncias me fizeram mudar a posição do leme.
Estudei sua aparência por alguns segundos. A
barba cheia, o cabelo caindo em suaves cascatas até a
altura da orelha e o visual, como um todo, combinava
mais com um músico do que com um professor de Letras.
Distraída, acabei externando o meu pensamento.
— Você faz mesmo o estilo rock star.
Ele abriu um sorriso divertido. A visão deixou
meus dedos gelados de nervoso, embora não conseguisse
entender o porquê.
— Você me descobriu! Eu tive uma banda na
época da faculdade.
— Sério? — arregalei os olhos, tentando formar
uma imagem daquele homem robusto arrebatando
corações com sua guitarra. — E como se chamava?
— O Tadeu.
— O Tadeu?! — ecoei e ele concordou com a
cabeça. — Jamais existiu um nome tão ruim para uma
banda, em toda a história. — Arranquei uma risada de
Adônis. — Posso até imaginar a qualidade das músicas...
— Sinto te decepcionar, donzela, mas não
tocávamos nada da nossa autoria. Fazíamos cover dos
Beatles.
Meu queixo caiu no mesmo instante. Tínhamos
mesmo duas coisas em comum ou era impressão minha?
— Tudo bem, agora você ganhou a minha atenção.
Não me importaria se por acaso você resolvesse pegar o
violão e me mostrar o que sabe.
— Então gosta deles também? — Notei o sorriso
se alargar no rosto dele. — Quem sabe outro dia... Talvez
você possa me mostrar um de seus desenhos. Seria uma
troca justa.
Chewie cruzou os braços, unindo as sobrancelhas
como se tivesse acabado de se lembrar de algum detalhe
importante.
— O que aconteceu para você ter sido expulsa da
própria casa?
Senti o meu coração acelerar com a pergunta.
Desde que pisara ali, ele estivera agitado além do normal,
e isso não melhorava nada com as íris de Outono focadas
em mim ininterruptamente.
— Nós estávamos jogando verdade ou
consequência. — Comecei, decidida a contar a verdade.
No entanto, ao me recordar de que a brincadeira consistia
em entrar na casa dele como forma de reprimenda, resolvi
mudar um pouquinho alguns detalhes. — E-eu me recusei
a fazer o desafio, por isso acabei trancada para fora.
— Ótimos amigos, os seus. — Apesar da ironia,
Chewie sorria.
— O que seria de mim sem eles? — Entrei na
brincadeira.
— E qual era o castigo?
— Qual castigo?
— O que você não quis fazer.
Engasguei com a minha própria saliva. Tossi
desenfreadamente, aproveitando a oportunidade para
buscar na minha mente alguma desculpa plausível. No
entanto, não era exatamente a tarefa mais fácil do mundo
pensar em qualquer coisa quando estava ocupada
sufocando até a morte.
Pressentindo o pior, Adônis percorreu a distância
entre nós e me encheu de tapinhas nas costas, até eu
conseguir respirar normalmente.
— Era tão grave assim? — perguntou.
— Você não sabe o quanto — gemi.
O gatinho dele pulou no meu colo subitamente,
fazendo-me berrar uma segunda vez na mesma noite. Com
os joelhos trêmulos, encarei os olhos cristalinos do
bichano, agradecendo mentalmente por me salvar do
interrogatório. Quando ergui o olhar, encontrei Chewie
com as sobrancelhas arqueadas e uma expressão
impagável no rosto.
— Foi mal — Encolhi os ombros. —, mas ele está
querendo provocar um infarto em mim, sei disso!
Adônis tombou a cabeça para trás, soltando uma
gargalhada responsável por uma comichão nas minhas
entranhas. Fisguei o lábio inferior, tentando recobrar o
juízo escondido por trás de todo o álcool correndo por
minhas veias. Mas como era possível quando ele ria tão
genuinamente? Isso era tão... não ele.
Cocei a nuca, dando-me conta de que percorria
caminhos perigosos outra vez. Aliás, desde quando o
conhecera, há algumas semanas, vinha fazendo isso com
frequência. Porém, não podia me dar ao luxo de esquecer
sua personalidade em sala de aula. Afinal, o apelido
Carrasco não era em vão. E como não!
— Não liga para ela, Castiel. Ainda não teve
oportunidade para saber como você é adorável. — Seus
dedos compridos se enterraram na pelagem acobreada do
gatinho, que correspondeu com um ronronar suave, como
o motor de um tratorzinho de brinquedo. Por alguma
razão, a palavra “ainda” reverberou na minha cabeça
como um sino estridente.
— Castiel? — Indaguei e ele assentiu. — Por
causa de Supernatural?
— Na verdade, sim. Você conhece?
Mesmo sem ter a intenção, algo na forma como ele
fez a pergunta me deixou ligeiramente ofendida. Era
aquela velha história de pressupor fragilidade por causa
da minha aparência. Eu mal podia mensurar o quanto
odiava isso!
— É só a minha série favorita.
Sua expressão não contribuiu em nada com o meu
estado de espírito. Endireitei-me no sofá, cruzando os
braços.
— Surpreso?
Ele jogou as mãos no bolso da bermuda,
assumindo um irresistível sorriso torto. Droga, eu disse
irresistível?
— Um pouco, confesso. Primeiro Beatles, agora
Supernatural... Eu esperava mais algo como princesas da
Disney para você.
Apesar de captar o tom provocativo e entender ser
uma brincadeira, não pude evitar o calor que invadiu o
meu rosto de uma vez.
— Você se surpreenderia com as pessoas de
deixasse esses pré-julgamentos de lado, sabia?
— Faço das suas palavras as minhas, donzela. —
Ele piscou, lembrando-me de que seu apelido era
Carrasco, no fim das contas.
Você já precisou de alguém, mas não encontrou ninguém?
Então, meu bem, por que não fica mais um pouco?

Mallu Magalhães – Don’t you leave me


Apertei a campainha novamente, desejando com
todas as forças que, diferente das demais vezes, alguém
me atendesse. Os segundos caminharam em um silêncio
clínico. Nem mesmo o mais escasso som vinha de dentro
do meu apartamento.
Droga, eu mato eles! Ah, se mato!, mentalizei,
imaginando toda sorte de técnicas de tortura as quais
adoraria colocar em prática.
Encostei a testa na porta, desanimada. Quando
espiara o relógio pela última vez, ele marcava pouco mais
de quatro horas. Eu não ousaria olhar novamente. Estava
abusando demais da boa vontade do meu anfitrião. E ele
não era a pessoa mais paciente do mundo.
No mesmo instante em que me lembrei dele, o ouvi
inspirar profundamente. A impaciência era perceptível
mesmo sem encará-lo. Pensando bem, quando revelei o
desejo de retornar ao meu apartamento, ele tinha
parecido... decepcionado. É claro, existia a chance
gritante de aquela percepção ser coisa da minha cabeça,
afinal, havia muita Catuaba no meu organismo — mesmo
indo ao banheiro a cada cinco minutos. No entanto, depois
de horas conversando amigavelmente, ele tinha assumido
um tom bem menos receptivo desde que havíamos saído
para o corredor.
Já começava a considerar madrugar ali mesmo, a
espera de um sinal de vida dos meus colegas, quando ouvi
sua voz grossa ressoar pelo corredor deserto.
— Vamos entrar.
— O quê? — Girei nos calcanhares, encontrando-
o recostado no batente com as mãos nos bolsos da
bermuda. Foi preciso muita força de vontade para não
escorregar os olhos para baixo... Pelo amor de Vader,
Rebecca! Se controle!, censurei-me, sentindo o rosto
queimar. — Entrar?! — perguntei, apenas para confirmar
se tinha ouvido direito.
— Depois de tocar a campainha dezoito vezes,
receio que ninguém vá abrir a porta — falou emburrado.
Eu queria rebater a ironia, porém só consegui
absorver uma informação com o cérebro anuviado pelo
álcool.
— Dezoito vezes? Que mentira!
— É... Eu comecei a contar depois de um tempo.
Foi bem mais que isso.
Esfreguei o rosto somente para escapar das
desconcertantes íris ocre-esverdeadas me encarando,
aguardando uma reação.
— E então? — indagou depois de um longo
silêncio. — Vamos perder quanto mais da nossa noite de
sono?
— Mas eu não posso dormir na sua casa. Você é o
meu professor.
— Qual sua outra opção, donzela? — rosnou,
aparentando estar prestes a perder as estribeiras.
— Eu não sei. — Quando finalmente tirei as mãos
da frente do rosto, encontrei-o com aquele conhecido
brilho no olhar. Aquele que sempre dirigia a mim, de
repugnância. Por alguma razão, sua abrupta mudança de
postura me afetou além do esperado e, num ímpeto de
raiva, ouvi-me praticamente gritar na calada da noite. —
Olha, não estou conseguindo pensar direito. Eu não
funciono sob pressão, tá bom? Você não está ajudando em
nada me olhando com essa cara de quem chupou um limão
azedo! Poxa.
Adônis arregalou os olhos claros por uma fração
de segundo, surpreso com minha reação. Logo em seguida
fechou a cara, dando de ombros.
— Como quiser. — Ele estendeu a mão, girando a
maçaneta atrás de si e abrindo a porta com um pouco de
rispidez. — Se conseguir se decidir antes de raiar o dia,
não hesite em me procurar, princesinha.
Então desapareceu para dentro, deixando-me para
trás com cara de tacho.
Calma, ele me chamou de... princesinha?!
Cruzei os braços sobre o peito, buscando na
memória uma profusão de palavras nada educadas para
dirigir ao meu irritante vizinho. Por que precisava ser tão
desagradável? Céus, o homem parecia sempre na
defensiva! E além de tudo ainda tinha conseguido arrumar
um apelido mais detestável que o outro. Idiota! E pensar
que senti remorso por chamá-lo de Carrasco ainda àquela
noite...
Sentei-me no corredor, tentando ignorar o mal-
estar avançando sobre meu corpo. Essa era a apenas
minha segunda experiência com o álcool, mas a lista de
traumas já era extensa. Caí em mim sobre a condição
deplorável na qual me encontrava: largada sozinha no
escuro, com uma quantidade escassa de peças de roupa
cobrindo o corpo e sem conseguir formular pensamentos
lógicos.
Bastou isso para me livrar do orgulho o mais
rápido possível. No fim das contas, minha dignidade fora
permanentemente danificada no momento em que corri
como uma garotinha indefesa para os braços de Adônis.
Ok, não foi exatamente assim, apenas
metaforicamente. Mas ainda era algo do qual me
arrependeria posteriormente. E disso eu não tinha a mais
remota dúvida.
Entrei como um raio em seu apartamento, pois não
queria acabar mudando de ideia. Para a minha surpresa,
encontrei-o ainda na cozinha, munido da mesma expressão
exausta de uma pessoa tentando lidar com uma criança
fazendo manha. Tão logo nossos olhos se encontraram,
suas sobrancelhas arquearam como se me desafiasse
silenciosamente, e a sombra de um sorriso apareceu entre
toda a pelugem facial daquele insuportável. Anotei
mentalmente o quanto o odiava. Quero dizer, ele tinha um
dom intrínseco de despertar o pior em mim. Era
necessário pouco tempo em sua companhia para o meu
sangue ferver. Como conseguia ter tanta influência sobre
mim?
Apesar da vontade crescente de descontar nele
todas as frustrações da noite, lembrei-me de que apesar
dos pesares, Chewbacca estava disposto a me ajudar.
Tinha até mesmo sido agradável na maior parte da
madrugada. Isso significava muito para alguém
desamparado como eu. Por isso apenas engoli o orgulho
outra vez.
— Posso mesmo ficar aqui?
— Achei que a resposta estivesse implícita
quando eu disse “vamos entrar”.
Ótimo, pensei chateada, se tínhamos estabelecido
o mínimo de cordialidade nas horas em que
permanecemos conversando, ela acabou de se dissipar.
E graças a mim!
Antes de eu sequer pensar na resposta, minha
barriga falou em meu lugar. O sonoro e prolongado ronco
foi responsável pela nova onda de calor que tomou o meu
rosto no segundo seguinte. Eu nem mesmo tinha percebido
o buraco negro dentro de mim. Como era possível que em
um instante eu estivesse bem e no seguinte pudesse comer
a cidade inteira?
Sem dizer palavra alguma, ele abandonou o posto
e se dirigiu à geladeira, de onde tirou uma bandeja de
presunto e uma de queijo, além de uma caixa de suco de
uva; deixando todos sobre a mesa. Taciturna, observei-o
caminhar tranquilamente até um armário e pegar uma
embalagem de pão de forma.
— O que está fazendo? — perguntei, embora fosse
muito óbvio para mim.
Meu vizinho encolheu os ombros, arrastando uma
cadeira que indicou com a cabeça.
— Não está com fome?
— Não — respondi categoricamente, mas fui
traída pelo estômago outra vez. Eu parecia abrigar alguma
criatura dento de mim, como em Alien e o Oitavo
Passageiro.
— Sei. Acho que o seu corpo discorda de você.
— Seus olhos recaíram para a mesa e ele uniu as
sobrancelhas grossas. — Não gosta de sanduíche? Posso
preparar outra coisa.
Presenciar o homem apelidado de Carrasco sendo
gentil novamente era uma cena realmente desconcertante.
Ainda mais porque comigo ele parecia ser ainda pior que
com os demais. Sempre cobrando além da conta e me
deixando com a sensação constante de me considerar tão
burra quanto uma lesma. Mas ali estava ele, preocupado
em ser um bom anfitrião quando eu nem ao menos tinha
sido convidada. Adônis era tão confuso! Principalmente
para uma pessoa embriagada.
— Eu não quero dar trabalho.
— Tarde demais para isso. — Sorriu, amenizando
consideravelmente o clima entre nós. — Mas você ainda
pode colaborar comigo.
Mordi o lado de dentro da bochecha,
compreendendo que o mau humor dele fora ocasionado
pelo meu comportamento arisco lá do corredor. Aliás, a
ideia de tentar retornar ao meu lar veio de mim, no fim
das contas. Talvez Adônis tenha interpretado minha atitude
quase desesperada — tocando a campainha sem parar —,
como anseio por me livrar dele. No entanto, em minha
defesa, era só para deixá-lo em paz!
Montei um sanduíche para mim e o abocanhei sem
encarar o meu professor. Ele permaneceu ali, no entanto.
Quieto, com as costas apoiadas na parede e os olhos
voltados para mim. Mesmo sem vê-lo, eu sabia que eles
estudavam, sentia o peso deles e este era o aspecto de
Adônis mais intrigante. Em que estaria pensando?
Sei como você se sente por dentro
(...)
Algo está mudando dentro de você
E você não sabe

Guns N’ Roses – Don’t cry


Foram precisos dois sanduíches para saciar
minha fome, mas, também, pudera, passei horas sem
ingerir nada além de Catuaba. Em seus movimentos
silenciosos, Adônis me entregou uma barrinha de
chocolate, com uma expressão desanimada no rosto.
— Não, obrigada — respondi automaticamente,
mas ele apenas negou com a cabeça.
— Vai se sentir melhor com um pouco de glicose
no sangue.
Emudeci, lembrando-me de já ter ouvido algo a
respeito do açúcar cortar o efeito do álcool e, por isso,
tomei o doce da mão dele. Seus dedos gelados tocaram
em mim e me peguei estremecendo.
Qual o meu maldito problema?
Se ele percebeu minha reação, decidiu ignorar.
Aproveitei o momento para perguntar algo que ficou na
minha cabeça:
— Como sabe que bebi?
— Não é difícil perceber, donzela — falou
despreocupadamente e, por alguma razão, senti o rosto
queimar de vergonha pela enésima vez. — E você mesma
me disse que estava jogando verdade ou consequência.
— O que tem a ver? Podia ser com suco!
— Claro. Afinal, é o que todos fazem por aí, não?
— Ele nem ao menos tentou disfarçar a ironia.
Empertiguei-me no lugar, constrangida por
constatar que, nos nossos poucos encontros fora da
faculdade, estive bêbada em dois deles. O pensamento me
causou um incômodo semelhante a uma unha encravada e
percebi o quanto não gostava de ter a imagem associada a
festas e baderna. Afinal, isso não tinha nada a ver
comigo... e tudo a ver com ela.
— Não faço isso sempre — comecei, sem
entender exatamente o porquê. — É a segunda vez na
minha vida inteira que bebo e, preciso salientar, as duas
foram igualmente traumáticas! — Adônis arqueou as
sobrancelhas ligeiramente, fazendo-me perceber a gafe
que tinha acabado de cometer. — Não que você tenha
contribuído com isso. Mas ser expulsa da própria casa
não é exatamente a situação mais divertida do mundo.
— Certo. — Ele me encarou em um misto de
surpresa e confusão.
— Sabe o que é pior? Não estou aqui para fazer
amizades, farrear, nem nada do tipo. Não sou uma Maria
vai com as outras, desesperada por aceitação. — As
palavras pulavam para fora da minha boca em uma
velocidade surpreendente. Mas a chance de eu
simplesmente me calar naquela altura do campeonato era
nula. — Eu só quero permanecer focada nos estudos,
como estive a vida inteira. Preciso me formar e correr
atrás dos meus sonhos. Nada mais me importou a vida
inteira. Eu não posso ser como ela, você entende? Eu... —
Interrompi a frase, começando a soluçar.
Ótimo, agora estou chorando, pensei atônita, as
lágrimas quentes rolando pelas bochechas.
— Donzela... — chamou Adônis, perplexo, no
entanto eu era incapaz de ouvi-lo. Retomei a sabatina,
chorando feito uma criancinha assustada.
— Preciso provar para todo mundo o quanto sou
forte e consigo o que quero. Não posso dar esse gostinho
para a mulher que destr...
— Rebecca! — chamou novamente e, desta vez me
calei no mesmo instante. Com exceção das apresentações,
em sua primeira aula, ele nunca mais me chamara pelo
nome. Era sempre “donzela”, por mais que eu odiasse e
pedisse para parar. A propósito, parecia ser justamente
esse o motivo dele persistir com o apelido.
Adônis parou atrás de mim, com seus quase dois
metros de altura, antes de levar as mãos frias aos meus
ombros, fazendo-me arfar de surpresa.
— Você tem o quê? Dezoito anos?
— Dezessete. Entrei adiantada na escola —
respondi em um sussurro, sem entender o rumo da
conversa.
— Não estou te condenando por se divertir em um
sábado à noite na sua casa e com seus amigos, tá bom?
Mesmo eles sendo companhias duvidosas — Ele sorriu e
olhou para a direita. — Não é, Castiel?
Mirei na mesma direção, encontrando seu peludo
companheiro de apartamento se arrastando contra o pé da
mesa. Foi impossível dominar um sorriso depois isso.
Aquele homem rudimentar tinha um gatinho de estimação.
Quem poderia imaginar?
— Você é nova, ainda vai encher a cara muitas
vezes. E não tem problema nenhum. Apenas... apenas faça
isso de maneira responsável para não acabar arrependida
depois.
Chewbacca sorriu com amargura, soltando-me.
Fiquei ligeiramente desapontada por não ter mais suas
mãos em mim e tentei atribuir a culpa disso ao álcool. Só
podia ser isso, é claro.
— Vou arrumar as camas — murmurou,
abandonando a cozinha em seguida.
Castiel permaneceu me olhando desconfiado com
suas safiras e só se moveu quando me levantei. Ao chegar
à sala, deparei-me com Adônis terminando de forrar o
sofá maior com um lençol. Pela janela era possível
observar o céu começando a ganhar as primeiras luzes
pálidas do dia.
— Não precisa dormir aqui! — falei, sentindo-me
péssima por ter arruinado completamente a noite dele.
Meu professor colocou o travesseiro em uma das
extremidades do sofá, girando nos calcanhares para ficar
de frente para mim, com cara de deboche.
— Quem disse que estou arrumando para mim?
Claro, como não pensei nisso?
— Oh, desculpa, eu achei...
— Que eu abandonaria o conforto da minha cama
e dormiria todo torto no sofá? Sério mesmo, donzela?
Apesar do tom leve, não pude evitar me sentir
meio idiota por ter acreditado, mesmo por um minuto
sequer, que Chewbacca faria algo do tipo. Suas íris me
observaram com atenção antes dele erguer as mãos no ar,
em derrota.
— É brincadeira! Você vai dormir no meu quarto,
a cama já está arrumada.
— Mas... — bufei ao ver a expressão petulante
dele.
Ele estava se divertindo as minhas custas! Céus,
dentre o turbilhão de sensações contraditórias causadas
por ele àquela noite, a vontade de esganá-lo era a mais
recorrente, com toda certeza.
— Não me olhe com essa cara de quem está
prestes a chorar. — Ele abriu um sorriso largo e eu senti a
boca do estômago congelar. O fato de ser tão singular
presenciá-lo sorrindo tornava o gesto, de alguma forma,
especial. Além do mais, era um sorriso lindo, embora
custasse admitir isso. Eu não conseguia entender a razão,
mas queria ter a oportunidade de ver mais vezes.
Cristo, eu realmente estou pensando no sorriso
dele?, perguntei-me, incrédula, anotando mentalmente
nunca, nunca mais em toda minha vida, tomar uma gotinha
de álcool sequer. Não, era muito perigoso. Despertava
sentimentos confusos, os quais eu não podia — e nem
queria — lidar.
Segui o meu professor até o quarto dele. Parando
de supetão, Adônis indicou o lado de dentro com a
cabeça, sem atravessar a porta. Meus olhos fizeram uma
varredura pelo cômodo, buscando mais detalhes a
respeito do homem ao meu lado. Como o restante da casa,
o quarto era limpo e organizado (além do esperado para
um homem vivendo sozinho). A cama de casal estava
posicionada na extremidade oposta à porta, ladeada por
dois criados-mudos idênticos, os quais integravam a
moderna cabeceira de pallet que se estendia pela parede.
Ondulando-se preguiçosamente com as brisas vindas lá de
fora, grossas cortinas de algodão cru cobriam a janela,
exceto por uma fresta quase insignificante, por onde feixes
de luz do alvorecer penetravam. As duas paredes restantes
do quarto eram ocupadas pelo modesto guarda-roupa de
canto talhado em madeira imbuia. E, finalizando a
composição, um imenso espelho retangular jazia
recostado logo ao lado da janela.
Ao entrar pude sentir, mais forte que no restante do
apartamento, o aroma amadeirado e viril que me fazia
revirar os olhos de tão bom.Caminhei até a cama de casal
e me sentei, timidamente, sentindo-me um pouco estranha
por estar ali. De repente, tudo pareceu íntimo demais e eu
adoraria rasgar a pele de Arthur e de Nataly com os
dentes por me colocarem naquela situação. Mas, por outro
lado, não tinha sido tão ruim, tinha?
— Tudo certo? — sua voz grave percorreu a
distância entre nós sem dificuldade. Assenti com a cabeça
e ele continuou. — A chave está na porta. Não hesite em
trancá-la se for te deixar mais tranquila.
Uni as sobrancelhas, ao mesmo tempo grata e
confusa com a oferta, principalmente levando em conta a
maneira como o maxilar dele se contraiu logo em seguida.
Parecia insatisfeito com algo que eu não conseguia
deduzir o que fosse.
— Vou descer para fumar um cigarro e já volto. Se
precisar de alguma coisa, sinta-se em casa. — Coçou a
nuca, um pouco sem jeito, e começou a fechar a porta.
Antes dele sumir de meu campo de visão, no entanto,
chamei-o.
Adônis tornou a aparecer, com o rosto barbudo e
expressão séria.
— Obrigada por... por me acolher — murmurei,
tentando esboçar um sorriso, que saiu tímido. Ele me
encarou significativamente, pigarreando antes de
responder.
— Boa noite, donzela — disse, deixando-me
sozinha.
Olhei ao redor por segundos a fio, acostumando-
me com os móveis sóbrios, que, de alguma forma, diziam
tanto sobre o meu anfitrião. Tão logo os meus olhos
recaíram para a fechadura da porta, descartei a ideia de
trancá-la. Eu não o conhecia quase nada, no entanto sabia
o suficiente para acreditar que Adônis não era uma pessoa
má. Para começar, ele jamais teria me recebido ali, se
este fosse o caso, muito menos deixado a chave para mim.
Ele podia ser grosseiro e um pouco sem jeito com as
pessoas, porém bastava fitar seus olhos para constatar que
jamais faria mal para alguém, nem mesmo a uma mosca.
Eu poderia dormir tranquila.
Levantei-me apenas para apagar a luz e logo me
enfiei embaixo dos lençóis, imaginando que, noite após
noite, era ali onde Adônis dormia, afinal de contas. Estar
em uma cama de casal era a melhor coisa que me havia
acontecido nas últimas horas, pois tinha espaço de sobra
para ocupar. Pensei em Chewie, com todo o seu tamanho,
apertado no sofá apenas para me proporcionar um pouco
de privacidade, e sorri largamente.
Ajeitei-me de bruços, a única maneira como
conseguia pegar no sono, abraçando o travesseiro
confortavelmente. O cheiro dele se encontrava em cada
centímetro do tecido e aquilo fazia o meu estômago
revirar com uma sensação desconhecida. Cansada de
brigar com minha mente depois de uma noite turbulenta e
completamente improvável, apenas aceitei que o meu
professor era cheiroso pra caramba e me permiti sorver
os resquícios do seu perfume, até ser embalada por ele.
Nos meus sonhos, as desconcertantes íris de
Outono foram me visitar, assim como o hálito mentolado e
o toque frio, com seus dedos tranquilos. Ele disse
qualquer coisa, da qual não consigo me recordar, e
permaneceu recostado sobre o batente da porta,
observando-me dormir com uma expressão ilegível. Por
alguma razão, eu adoraria saber interpretá-la.
Não vejo a hora de te reencontrar
E continuar aquela conversa
Que não terminamos ontem
Ficou pra hoje

Nando Reis – All Star


Cheirinho de café.
Nada era mais familiar que o aroma agradável que
o meu cérebro tinha associado ao começo de um novo dia.
Eu me lembrava da minha casa em Santa Cruz do
Rio Pardo, tão diferente do apartamento onde vivia agora.
Se forçasse a memória, podia visualizar com clareza
minha avó caminhando de um lado para o outro pela
cozinha, colocando toda sorte de comidas deliciosas
sobre a mesa do café da manhã. Especialmente o bolo de
goiabada. Meu Deus, ele chegava a ser uma obscenidade
de tão bom. Enquanto isso, vovô estaria ocupado
pacientemente em passar a bebida fumegante para a
garrafa térmica azul-calcinha. Era a mesma desde quando
eu me considerava gente. Uma adorável garrafa coberta
por frisos e uma tampinha da mesma cor.
Respirei fundo, estranhando o fato de Arthur ter
levantado antes de mim. Desde que eu me mudara para
Maringá, isso jamais aconteceu. Nem uma vez sequer.
Como Nataly não gosta de café, eu podia descartar a
possibilidade de ela ser a responsável. Logo, só podia ser
ele. Estiquei as pernas pela cama espaçosa, relutante em
acordar.
Cama espaçosa?, minha mente ecoou e, no mesmo
estante, ouvi um alarme ressoando por ela. Mas, espera, a
minha cama não é espaçosa!
Abri os olhos, encontrando a realidade tão temida
— eu tinha dormido na casa do meu professor de
Produção Textual. Como pude esquecer?
Instantaneamente, o coração deu uma forte guinada. Na
noite anterior tive a ajuda do álcool para lidar com a
situação bizarra na qual nos meti, mas como o faria
naquela manhã? Como encararia os olhos desconcertantes
dele? Droga.
Resignada a encarar o que viria pela frente,
abracei o travesseiro uma última vez, afundando o rosto
nele para sorver o cheiro já quase apagado de Chewie.
Girei o corpo para a direita e soltei um grito apavorado
logo em seguida.
— Meu Deus! — gemi, colocando a mão direita
sobre o peito só para garantir que não enfartava. — Você
quer me matar?!
Plantado em frente à porta, Adônis abriu um
sorrisinho. Instantaneamente, foquei no meu braço
esquerdo apertando o travesseiro dele contra o corpo com
a mesma urgência com a qual abraçaria uma maleta cujo
interior estivesse forrado de dinheiro. Soltei-o
imediatamente e senti rosto esquentar de uma só vez,
como se alguém estivesse com um maçarico apontado
para ele.
— Não sabia exatamente como te acordar. Sinto
muito.
Mordisquei o lábio inferior, tomando impulso com
os braços para me sentar. Espiei para fora da janela e
notei o sol já em seu ponto mais alto. Para alguém que
gostava de acordar cedo, eu estava indo muito, muito mal.
— Dormiu bem? — perguntou, ainda sorrindo.
— Uhum — murmurei, mas como ele permaneceu
me fitando, senti a necessidade de completar. — Fico feliz
que tenha cedido o quarto para mim. Essa cama é o
paraíso!
Um silêncio desconfortável invadiu o ambiente,
enquanto eu avaliava quão estranhas as palavras podiam
soar. Se enxergou algum duplo sentido, porém, ele
ignorou.
— E você? — indaguei, por fim.
— Tão bem quanto se pode dormir em um sofá
com metade do seu tamanho — falou e, quando eu estava
prestes a responder, adicionou — É brincadeira, o sofá
foi bom o bastante. Não dormia tão bem assim há muito
tempo. — Concluiu, dando uma piscadela para mim.
Minha garganta secou. Um gesto tão simples e
despretensioso como aquele e eu já estava toda esquisita.
Só que, dessa vez, não tinha como atribuir a culpa dos
sentimentos confusos ao álcool. E isso me preocupava.
Escondendo as mãos no bolso da bermuda, Adônis
deu um passo para trás.
— Bom, Castiel e eu estamos te esperando na
cozinha. Você sabe onde fica o banheiro, né?
— S-sim. — balbuciei, desconcertada com a
atmosfera calorosa o rondando. Aquilo definitivamente
era o total oposto do que eu conhecia. — Já estou indo lá
com vocês, obrigada.
Permaneci encarando a porta mesmo minutos após
Chewie ter saído. Acordar com ele no quarto não era o
esperado, mas, agora que pensava a respeito, algo dentro
de mim vibrava. Como sou idiota, pensei desanimada,
caminhando para fora sem pressa. Não era como se ele
tivesse feito algo de mais, é claro. Mas, por outro lado,
ele não tentava realmente me acordar. Apenas permanecia
ali, parado, com as íris de Outono miradas em mim. Por
que precisava me encarar tanto? Aquilo me
desestabilizava.
Assim como o restante da casa, o banheiro era
limpo e organizado. Eu diria que até mais que o do meu
apartamento. Sim, com certeza era. Fiquei de frente para o
espelho, sem conseguir ignorar as olheiras gritantes
circundando os olhos. Passei a mão na franja para
assentá-la na testa da melhor maneira possível. A pior
parte de dormir fora de casa — não que fosse uma prática
recorrente para mim — era não ter uma escova de dente.
Encarei a de Adônis repousada no suporte inocentemente
e a minha mão coçou para pegá-la. Não, de jeito nenhum,
Rebecca. Isso é perturbador. Suspirei e tomei o creme
dental. Resolveria o problema, por ora.
Aproveitei o momento para enrolar um pouco. Era
besteira e eu sabia disso, mas não conseguia evitar a
vergonha. Pelo cajado de Gandalf, eu tinha dormido na
casa do meu professor! Imagine só se isso caísse no
ouvido dos outros alunos, a impressão errada que poderia
causar. Logo eu, a odiada do Carrasco, dormindo em sua
casa... Pareceria com algo inconcebível para mim.
Balancei a cabeça e saí de uma vez, decidindo que
a minha mente se tornava cada vez mais perigosa. Era
melhor mantê-la ocupada. Conforme me aproximava da
cozinha, o cheirinho de café se fazia ainda mais
irresistível. Atravessei a porta o mais silenciosamente
possível, sem querer denunciar minha chegada. Isso
porque Adônis se ocupava com alguma coisa na pia e a
visão me dava vontade de rir. Não de um jeito ruim. Era
apenas irresistível assistir àquele homem rudimentar
concentrado em quebrar um ovo com tamanho cuidado.
Fisguei o lado de dentro da bochecha,
aproximando-me da mesa. Pelo canto dos olhos, notei
Castiel me observando como se me dissesse “se você não
falar, eu falo”. Céus, aquele gatinho era muito expressivo!
Como permaneci emudecida, ele me denunciou com um
sonoro miado.
Adônis olhou por cima do ombro e sorriu. Será
que você não pode simplesmente parar com isso?,
pensei, fingindo não ser nada de mais a palpitação em meu
peito, está tornando tudo mais difícil.
— Gosta de omelete no café da manhã? —
perguntou, deixando um prato sobre a mesa. O aroma
invadiu minhas narinas e despertou um monstro lá de
dentro, pois logo em seguida ele rugiu tão sonoramente
quanto fizera durante a madrugada.
— Eu nunca comi, mas está com uma cara tão boa
que vou provar.
Assentindo, ele empurrou o prato até a
extremidade onde eu me encontrava. Afastei uma cadeira
e me sentei, enquanto ele voltava para a pia. Alcancei o
café e me servi em uma caneca com estampa de
dinossauros responsável por me arrancar um sorriso. Fiz
uma varredura sobre o que tinha na mesa e minhas
bochechas voltaram a queimar. Em parte porque era muita
comida e estava claro que ele fazia apenas para me
agradar, mas, por outro lado, não tinha a única coisa que
eu mais prezava no desjejum.
— Será que... — minha voz saiu baixíssima.
Pigarreei, começando novamente. — Será que você
poderia pegar um pouco de leite para mim? Não consigo
tomar café puro.
— Que ultraje! — brincou, voltando para a mesa
com outro prato. — O meu café está na lista de melhores
bebidas do mundo e você vai misturar com leite? Estou
ofendido.
Não pude segurar a risada. Presenciar o Carrasco
de bom humor era quase chocante. Se eu contasse para
qualquer pessoa da faculdade a maneira atenciosa com a
qual me tratava, provavelmente gargalhariam na minha
cara. Acontece que eu mesma mal podia acreditar, apesar
de ver com os meus próprios olhos.
Adônis foi até a geladeira e trouxe uma caixinha
de leite, colocando-a a centímetros de mim.
— Quer que eu esquente?
— Não precisa. — Sorri. — A propósito, adorei
as canecas — comentei, ao notar que a dele era
exatamente como a minha. — Gosta de dinossauros ou foi
só por acaso?
— Você não reparou o lençol onde dormiu?
— Talvez você não tenha notado, mas eu não
estava exatamente nas melhores condições — falei e ele
jogou a cabeça para trás, rindo gostosamente. — Então,
não. Não notei.
— Está ficando mais afiada ou é impressão
minha? — Abriu um sorriso torto e eu perdi o fôlego por
alguns segundos.
Não seja ridícula, Rebecca.
Pare com isso.
Como a pergunta parecia retórica, decidi ignorar.
— Eu tinha cinco anos quando meu pai foi na
locadora e voltou com o VHS de Jurassic Park. Você
pode imaginar uma criança empolgada com alguma coisa.
Assisti umas três vezes seguidas, no mínimo. E falei sobre
o T-Rex e os Velociraptors talvez por meses. Acho que se
ele suspeitasse disso tudo, jamais teria escolhido este
filme.
Sem nem perceber, ri despreocupadamente. Na
minha cabeça, a imagem de um mini Chewie fissurado por
dinossauros se formou com tamanha clareza que era como
se eu tivesse presenciado a cena.
— Então se eu vasculhar a sua casa, vou encontrar
mais coisas relacionadas a isso?
— Com certeza, vai. — aquele sorriso de tirar o
fôlego apareceu em seus lábios outra vez.
Apanhei os talheres posicionados à minha direita e
cortei um pedaço de omelete. Ela cheirava muito bem.
Meu Deus, como cheirava!
Levei à boca um pouco apreensiva, mas logo me
vi devorando o prato de uma só vez. De frente para mim,
Adônis bebericava o café com as íris vidradas em cada
movimento meu.
— Parece que gostou — falou por fim, parecendo
satisfeito.
— Você é muito bom nisso — admiti, lambendo os
beiços, sem me importar se era um pouco obsceno. —
Realmente bom. Estava delicioso. Obrigada.
— Disponha.
Não sei dizer quanto tempo permanecemos ali,
conversando como se fossemos velhos amigos. Na noite
anterior, quando toquei sua campainha, não poderia
imaginar nem em mil anos como seria agradável passar
algumas horas com ele. Também, pudera, era difícil
enxergá-lo de outra forma além de estúpido, afinal era
isso que insistia em mostrar para as demais pessoas. Mas,
ali, presenciando-o sorrir genuinamente e descobrindo
mais e mais sobre o homem que despertava sensações tão
engraçadas em mim, eu ousava ser otimista. Talvez as
coisas melhorassem entre nós. Talvez eu me permitisse
apreciar sua companhia. Quem sabe até mesmo não
gostasse dele eventualmente?
Meu Deus, eu disse gostar?
Mas que droga! Apenas pare com isso, Rebecca!
Seus olhos, eles cantam uma música para mim
E eu gostaria de dançar ao som dela, de verdade
E eu abrirei meu coração
E eu abrirei só para você
Heartless Bastards – Only for you

Abocanhei um pedaço de torta de brócolis,


folheando o caderno em busca das anotações que ainda
não tinha revisado para a prova. Ajeitei-me no sofá,
esticando as pernas preguiçosamente enquanto Nataly se
ocupava em lixar as unhas, deitada de costas no chão.
Incomodada com o silêncio em demasia, corri os
olhos até Arthur e, percebendo que ele também me
encarava, desviei-os rapidamente para o caderno. Mesmo
pouco mais de uma semana após a verdade ou
consequência responsável pelo pernoite na casa de
Adônis, eu continuava decidida a manter a frieza com os
dois. Em minha opinião, era merecida. Até porque, se ele
não tivesse me acolhido, o que eu teria feito?
Respirei fundo, retomando o estudo. Não podia me
dar ao luxo de ficar com a cabeça no mundo da lua.
Naquela noite eu teria a segunda prova do ano letivo, mas,
além dela, ainda viriam mais quatro pela frente, ao longo
da semana. Fora os intermináveis trabalhos pipocando de
todos os cantos, principalmente em Produção Textual.
Céus, nós não passávamos nem mesmo uma única aula
sem precisar entregar um relatório que fosse. E como era
difícil agradar Adônis! Ele não fazia vista grossa mesmo
com errinhos que os demais professores costumavam
deixar passar batido. Qualquer motivo era o suficiente
para ele arrancar alguns pontinhos a mais. Eu tinha até
medo de quando suas provas chegassem. Sério.
Ao pensar nele, mordisquei o lábio inferior,
arrancando uma lasca de pele responsável por um filete
de sangue. Droga, ralhei comigo mesma. Eu nunca
aprendia. Tinha essa mania e, por conta disso, vivia com a
boca machucada. Mas como podia evitar quando aquele
homem me deixava tão desconcertada? Bastava sua
imagem invadir minha mente para meu corpo começar a
reagir de maneira estranha: ora o coração palpitava, ora
os punhos fechavam com força. Ele tinha uma habilidade
muito rara de conseguir me tirar do sério mesmo sem estar
presente.
Depois de passarmos uma madrugada inteira
juntos e eu ter dormido em sua casa, fui inocente o
bastante para imaginar que as coisas ficariam mais
agradáveis entre nós dois, mesmo minimamente. Grande,
grande engano! Afinal, quais as chances de ele deixar de
ser um ogro? Eu deveria saber que eram remotas.
Principalmente comigo, o seu alvo principal.
Semelhante à noite em que ele me acordou a
primeira vez com os seus berros e eu tentei me aproximar,
ele se tornou ainda mais exigente do que já era.
Praticamente todas as perguntas das aulas eram dirigidas a
mim, e ai da donzela se ela não soubesse responder. O
apelido era usado com tanta frequência por ele que,
quando eu menos esperava, todos os outros alunos
passaram a me chamar assim. Além disso, Chewie tinha
aquele tom vil de falar comigo, como se me aturar dentro
da sala de aula fosse um castigo com o qual ele não
pudesse lidar.
Eu queria ter a paciência do mestre Yoda para
aturar as provocações dele sem me afetar tanto, no entanto
bastava ouvir sua voz de trovão para a boca do estômago
virar um nó. Se com todos os alunos Adônis já honrava o
apelido de Carrasco, comigo fazia ser fichinha. E não, não
estou exagerando! Adoraria que fosse drama da minha
parte, para falar a verdade. Mas não era.
Fechei o caderno de uma só vez, subitamente
perdendo a vontade de estudar. Naquela noite eu teria
duas aulas seguidas com ele e a constatação me deixava
deprimida. A vida podia ser cruel quando queria. Estar na
faculdade era um dos maiores sonhos da minha vida e eu
adoraria curtir ao máximo. Com todos os outros
professores era sempre prazeroso assistir a uma aula,
descobrindo coisas novas e estudando matérias
empolgantes. Adônis, porém, arruinava um pouco daquele
calorzinho gostoso causado pelos demais. Conviver com
ele era como começar a comer um apetitoso bolo de
chocolate para descobrir, na primeira mordida, estar
azedo.
E a pior parte era que, apesar de tudo, eu me
lembrava da faceta doce que conheci e me perguntava por
que não podia ser sempre assim?
— Pode prestar atenção na aula, por favor,
donzela? — Adônis perguntou de maneira ácida, parado
como um urso na frente da minha mesa. — Ou será que é
pedir demais?
Subi os olhos por ele, relembrando da pior
maneira onde eu estava. Se existia um lugar no mundo
onde não podia divagar, certamente era na aula do
Carrasco. Apesar de ter plena consciência disso,
simplesmente não conseguia focar em uma palavra sequer.
Eu atribuía a culpa unicamente ao meu avô, por ter me
ligado no intervalo para avisar que precisava conversar
sério comigo. Como se o fato de ter me deixado curiosa
não fosse o bastante, algo no tom de voz dele despertou
aquela parte negra que habitava dentro de mim. Eu era
incapaz de decidir se desejava que o tempo passasse
rápido para descobrir qual era a pauta da conversa, ou
devagar, para evitá-la ao máximo.
Empertiguei-me no lugar.
— Sinto muito.
— Sinto muito, senhor.
— Sinto muito, senhor — ecoei, odiando-o um
pouquinho mais. Ele morreria se uma única vez eu me
esquecesse daquele maldito pronome? Será que era tão
insensível a ponto de não perceber o meu péssimo estado
de espírito?
Sustentei o olhar com rebeldia, desafiando-o a me
tirar do sério. Eu sempre fui uma aluna exemplar e jamais
faltei com respeito a um professor, mas não hesitaria em
mandá-lo à merda naquela noite, se fosse necessário.
Como se tivesse lido meus pensamentos, ele se
limitou a bater com o dedo indicador na folha sobre a
minha mesa. Só então me dei conta da presença dela ali.
Demorei-me observando-o enquanto se afastava
em direção à extremidade oposta da sala. Usava uma
touca na cabeça, apesar de não estar frio, que combinava
muito bem com o estilo despojado dele. Era meio
caidinha para trás e harmonizava com sua camisa jeans.
Só parei de secá-lo quando, em um rompante, ele
me espiou novamente, fazendo o meu rosto queimar. Achei
o momento oportuno para fazer o que ele havia pedido,
antes que o desse mais motivos para pegar no meu pé. Por
isso, abaixei a cabeça para o xerox abandonado. Tratava-
se de uma atividade de interpretação. Era recorrente nas
aulas de Produção Textual. De acordo com ele, só era
possível escrever bons textos quando se sabia
verdadeiramente ler um.
Suspirei, alcançando a lapiseira para começar.

Dreaming of You – Cigarettes After Sex

Vi você de longe
Imaginei quem você era
Imaginei como você era
Pensei que fazia o meu tipo

E agora eu estou sonhando com você


Quero você, sim, eu quero
Aposto que você nunca soube disso
Acho que você combinaria bem comigo
Quero você o tempo todo
E agora eu estou sonhando
Sonhando, sonhando, sonhando
Sonhando com você
E agora eu estou sonhando
Sonhando, sonhando, sonhando
Sonhando com você

Você é a única que eu estou convidando


Você é a única que está me chamando para tê-la

Não consegui chegar aos exercícios. Por alguma


razão, a letra da música me deixou com as palmas das
mãos suando frio. Engoli em seco, usando de todas as
forças para me convencer ser muito provavelmente uma
coincidência enorme. Uma peça do destino, mentalizei,
batendo a ponta da lapiseira ferozmente contra o tampo da
carteira.
No entanto, aquelas palavras faziam tanto sentido
para mim. Era como se tivessem saído dos meus
pensamentos. Exceto pela parte de querer ele, é claro. Eu
não o queria. Longe disso. Talvez desejasse decifrar a
razão para ser tão indigesto, mas definitivamente não tê-
lo.
Mordi o lábio machucado com força e só me
arrependi quando senti uma pontada de dor. Então ergui o
rosto, deparando-me com as cores dos enigmáticos olhos
de Adônis voltadas para mim. Ele estava recostado contra
o quadro negro, com as mãos apoiadas na moldura de
madeira. Sua expressão era a mesma que sempre
estampava o rosto quando estava prestes a fazer uma
pergunta — desafiadora.
— Alguma dúvida? — perguntou.
Voilà!, pensei, sorrindo internamente.
— Não, senhor — falei e ele assentiu, mas não
parou de me estudar.
Eu faria de tudo para descobrir o que passava pela
cabeça de Chewbacca quando me encarava daquele jeito
por segundos a fio.
Tentando fugir do peso do seu olhar, voltei à
atenção para a minha atividade.
1) Levando em consideração o tom assumido
pelo eu-lírico, elabore uma dissertação
interpretativa e exemplifique o seu ponto com
trechos da música.

Curvei o tronco para frente, começando a


transcrever a maneira como cada palavra conversava com
os meus sentimentos. No entanto, foi só ao entregar que eu
me dei conta de que Adônis poderia interpretar de
maneira equivocada o meu exercício, enxergando
entrelinhas inexistentes. Ou assim eu pensava que elas
fossem.
Tem vez que as coisas pesam mais
Do que a gente acha que pode aguentar
Nessa hora fique firme
Pois tudo isso logo vai passar

Marcelo Jeneci – Felicidade


Meu coração congelou quando o celular começou
a tocar. Mesmo sabendo que aquele momento
eventualmente chegaria, estar diante dele era alarmante.
Por alguma razão, algo no tom usado pelo meu avô na
ligação do dia anterior tinha despertado sensações
indesejáveis. Eu não queria lidar com elas, não mais.
Preferia quando aqueles sentimentos esmagadores ficavam
trancafiados lá no passado.
Ainda assim, era preciso atender ao telefone. Vovô
estaria do outro lado e eu sabia que não deveria ser fácil
para ele também, talvez por isso tenha me dado algum
tempinho para a tal conversa séria. Por alguma razão, eu
já conseguia antever qual seria a pauta, embora ele não
tivesse adiantado nada. A minha mãe. Só podia ser ela.
Toda a infelicidade da minha vida sempre vinha na
companhia dela. Isso não terminaria nunca?
Com os dedos trêmulos, aceitei a chamada e levei
o aparelho à orelha.
— Becca, querida, está ocupada?
Mirei a tela do notebook, onde o trabalho
começado de Adônis me esperava. Suspirando
pesadamente, fechei-o de uma vez.
— Não, vovô. Tudo bem com vocês? — perguntei,
querendo ganhar tempo. Talvez ele não percebesse o meu
jogo.
— Na medida do possível. Liguei porque preciso
te contar uma coisa que... bom, não sei ao certo como vai
reagir. — Droga, não funcionou!
— Você comentou ontem... — gemi. — A-
aconteceu algo?
O ouvi expirar do outro lado da linha. Eu podia
visualizá-lo perfeitamente bem. Provavelmente estaria
com os lábios crispados e a mão encaixada na testa,
sobrepondo os olhos castanhos levemente caidinhos.
— Não sei como falar de outro jeito além de indo
direto ao ponto. Sua mãe entrou em contato conosco.
Estremeci, empurrando a cadeira para longe da
escrivaninha com a ponta dos pés. De repente, me senti
claustrofóbica. Fazia o quê? Quatro anos? A verdade é
que desde quando ela se mudara para outro Estado com o
novo namorado, nunca mais tive notícias. Era como se
estivesse morta. Para mim, estava.
— Por quê? — foi a única palavra a sair dos meus
lábios. Em minha cabeça, um alarme fora disparado. Eu
ouvia sem parar: problema, problema, problema.
— Marcela está grávida, Becca. De uma menina.
O parto está previsto para meados de setembro. Ela quer
vir a Santa Cruz do Rio Pardo logo depois do nascimento,
para conhecermos.
Demorei além do necessário para absorver o que
ele disse, porque, para mim, não fazia sentido. Soavam
como palavras desconexas pairando pelo ar. A minha
mãe... grávida?
— Ela falou ou perguntou alguma coisa sobre
mim?
O silêncio que se fez em seguida respondeu a
minha pergunta.
Não consigo recordar o restante da conversa. Se o
meu avô tentou me consolar, ou se desistiu e acabou
passando o telefone para vovó, que era mais doce com as
palavras. Talvez tenha só desligado ao notar o meu estado
estarrecido, mas jamais saberei dizer. Parei de processar
novas informações.
Lá do fundo da memória, uma lembrança surgiu
sem minha permissão. Fechei os olhos, querendo afastá-
la, mas era inevitável. Não tinha para onde fugir.
Saí da piscina lotada de adultos que não
conhecia e olhei ao redor, à procura da minha mãe.
Anoitecia, a fome tinha batido e eu simplesmente não
aguentava mais permanecer naquela festa que nada
tinha a ver com crianças da minha idade. Depois de
percorrer cada centímetro da chácara, encontrei-a em
um dos quartinhos do casebre, atracando-se com um
homem qualquer. Funcionava sempre da mesma maneira
— ela convencia os meus avós de que queria um tempo
comigo. “É apenas um passeio de mãe e filha”, dizia, de
maneira convincente, fazendo-os acreditar em mais uma
mentira. Então me arrastava para todos os lugares nos
quais eu daria tudo para não estar e sumia de perto,
sempre para os braços de algum estranho. Sempre para
longe de mim.
Em um misto de vergonha e choque, fiquei
paralisada. Minhas pernas pesavam toneladas. Meus
olhos permaneciam fixos nas mãos dele apertando os
seios dela, enquanto ela rebolava em seu colo. Eu só
conseguia pensar no quanto odiava tudo aquilo. Qual
era o prazer sádico dela em precisar me ter junto
quando obviamente não fazia a menor diferença?
Fui pega no flagra. Quando menos esperava, um
par de íris azuis me fitou com atenção. Ele a tirou do
colo com um movimento brusco. Depois disso veio
aquele olhar dela tão conhecido. Ele dizia, mesmo
silenciosamente, o tamanho do desprezo nutrido por
mim. Dizia que eu era o atraso de sua vida. Aquele que
me desafiava a contar para os meus avós um pouquinho
que fosse e esperar pelas consequências.
Ainda assim, ela não se contentou com isso.
Levantou-se graciosamente com um sorriso no rosto e
veio até mim em passos mansos. Agarrou o meu braço
com um pouco de força e me levou até o banheiro. Lá
fora, a música era estridente. Mas a única coisa que eu
ouvia era a afirmação de todas as coisas das quais eu já
sabia. Ela não hesitava em dizer o quanto me odiava.
Não me deixava esquecer, nem por um único segundo.
Aproveitava cada oportunidade para me fazer acreditar
o quanto eu era insignificante.
E, às vezes, eu acreditava.
— Becca?! — a voz pastosa de Arthur me tirou
das trevas. Só então me dei conta de que eu chorava e da
maneira como fazia isso.
Meus ombros se agitavam a cada nova puxada de
ar para os pulmões e a gola da camiseta se encontrava
ensopada, depois de tantas lágrimas rolando pelo meu
rosto caírem ali.
Sem pensar duas vezes, abri os braços. Eu nunca
fui muito de precisar ser confortada, até porque jamais
tive amigos para todas as horas. Limitava-me a manter
alguns colegas na escola e isso era tudo. Mas, então,
vendo a preocupação nos traços de Arthur e percebendo a
sinceridade dela, não tive como fazer diferente. Senti a
necessidade de tê-lo ali para mim. Já nem lembrava mais
que estivera brava com o meu colega de apartamento.
Indo contra o ritmo naturalmente lento, ele
percorreu o espaço entre nós em questão de segundos,
envolvendo-me. Recostei a cabeça contra seu peito e me
permiti viver aquela dor. Augustus Waters dizia em A
culpa é das Estrelas que “Esse é o problema da dor. Ela
precisa ser sentida”. Essa frase, apesar de tirada de um
livro de romance, fazia todo o sentido do mundo para
mim.
Abraçada ao meu amigo, sorvi seu cheiro suave de
incenso e comecei a me acalmar quando senti seus dedos
percorrerem carinhosamente a minha lombar.
Permanecemos unidos sem trocar palavra alguma pelo que
pareceram horas. Não era preciso dizer nada, porque
aquele era o tipo de silêncio confortável que só é
alcançado quando o nível de intimidade já é alto o
suficiente.
— Quer conversar? — perguntou, em determinado
momento. Neguei com a cabeça categoricamente. Não me
sentia confortável para contar nada a respeito da minha
mãe. Pelo menos ainda não. — Tem certeza?
Desvencilhei-me dele, secando as bochechas com
as costas das mãos.
— Tenho, obrigada. Vou tentar esquecer isso, por
enquanto. Preciso terminar um trabalho complexo do
nosso professor preferido do mundo.
— Tudo bem, mas antes vamos colocar um sorriso
nesse rostinho de boneca. Sei exatamente o que pode te
animar!
Arregalei os olhos, incapaz de dominar um
sorriso. A dúvida deve ter ficado óbvia no meu rosto, pois
ele continuou.
— Torta de banana!
— Ai, Arthur. Eu já disse que te amo? — Abracei-
o outra vez. De todas as receitas veganas maravilhosas
que ele fazia, a torta de banana era, com toda certeza do
mundo, sua especialidade. Era impossível permanecer
triste depois dela.
— Vem, vamos lá — disse, entrelaçando os dedos
nos meus e me arrastando em direção à porta. — A Lily
deve estar roendo as unhas de preocupação. Foi ela quem
te ouviu chorando.
— Sério? — quis perguntar por que ela não tinha
entrado no quarto junto dele, mas Arthur aparentou ler os
meus pensamentos, uma vez que respondeu minha pergunta
interna logo em seguida.
— Ela está envergonhada desde aquele sábado.
Não para de se culpar pelas coisas que poderiam ter dado
errado.
Minhas bochechas esquentaram de vergonha. Eu
tinha feito parecer, ao evitá-los por tanto tempo, que a
minha noite e manhã com Adônis fora como uma de suas
aulas — terrível. No entanto, não podia ser o mais
distante disso. Vez ou outra eu ainda me pegava retomando
os acontecimentos, sem entender como ele conseguia
mudar tanto.
Enfim, não era esse o caso. Arthur e Nataly eram
os meus colegas de apartamento. Minha segunda família.
Viveríamos muito tempo juntos para eu agir daquela
maneira por tão pouco. E, de pensar que eles estavam ali
para mim quando eu continuava nutrindo rancor, julgava-
me um pouco estúpida.
Foi por isso que, ao sair do quarto, abri os braços
para Lily tal como fiz com Arthur. Há uma coisa que a
minha avó sempre disse para me animar e eu levava
comigo para a vida inteira: os momentos ruins serviam
para intensificar os bons. Da mesma forma, aquela notícia
arrebatadora dada por vovô teve, ao menos, uma parte
boa — fez as coisas entre nós três voltarem aos eixos.
Então, se você estiver solitária
Você sabe que eu estou aqui
Esperando por você
Eu sou apenas uma mira
Eu estou apenas a um tiro de distância de você
Franz Ferdinand – Take me out

Esfreguei o rosto ao constatar que tinha pouco


tempo até dar o horário de me arrumar para a faculdade.
Mas eu simplesmente não conseguia me concentrar nas
palavras na tela do notebook. Minha única vontade era
tirar os materiais de desenho debaixo da cama e me
afundar em alguma ilustração pelo máximo de horas
possível. Queria me desconectar.
A torta de banana de Arthur serviu como uma boa
injeção de ânimos, no entanto nem mesmo ela conseguiu
arrancar de mim a vontade constante de cair no choro.
Meus olhos se pareciam com piscinas furadas, vazando
ininterruptamente. Eu não deveria me afetar tanto e sabia
disso, porém o meu coração não estava no mesmo time
que eu, pelo jeito.
Fiz aquele som horrível de soluço quando se está
há muito tempo chorando e limpei as lágrimas com a barra
da camiseta. Se não tivesse o maldito trabalho de Adônis
para apresentar dali a algumas horas, eu poderia muito
bem matar aula.
Mordi o lado de dentro da bochecha, sem
acreditar na ideia que acabara de ter. Faltar? Pelo amor
de Deus, Rebecca, ralhei comigo mesma. Estava decidida
a ser o mais discrepante possível daquela... pessoa
horrorosa. E a faculdade era o primeiro item da lista. Eu
a levava muito a sério. Obsessivamente, até.
Então, na tentativa de afastar a atenção da minha
mãe e do acontecimento responsável por mudar o rumo da
tarde, meus pensamentos foram automaticamente para o
meu professor, que era também o meu vizinho. Embora
este último detalhe estivesse me tirando do sério nos
últimos três dias.
Não suportava mais acordar no meio da
madrugada por causa dos berros. Eles tinham parado
durante um período de tempo suficiente para eu me
esquecer de que já haviam existido. Agora, no entanto,
tinham voltado com tudo. Noite após noite, eu despertava
apavorada com sua voz grossa ainda presente em cada
centímetro do apartamento.
Era sempre a mesma coisa.
CUIDADO!
Nataly apostava com unhas e dentes que ele era
louco e vivia pedindo para ligarmos ao síndico,
reclamando. Arthur, por outro lado, não podia nem ao
menos conceber a ideia.
— Ele já é difícil mesmo sem um motivo para nos
odiar, Lily. Imagina se dermos um.
Eu estava do lado de Arthur, para ser honesta. Não
pelos mesmos motivos, afinal receava não existir uma
maneira de Adônis me tratar pior de como já tratava. Mas
também não achava justo culpá-lo por algo de que não
tinha controle. Eram apenas pesadelos, no fim das contas.
Devia ser tão ruim para ele quanto era para nós.
Isso não significava que eu não estivesse tão brava
quanto os meus colegas, porque estava sim.
Mas, além disso, eu ficava a cada dia um
pouquinho mais curiosa. As perguntas pululavam dentro
da cabeça sem dar trégua. Por que ele gritava sempre a
mesma coisa? Por que tinha tanto desespero impregnado
em seu pedido? E por que nos dias subsequentes aos
pesadelos ele parecia ficar um pouco mais mal humorado
do que o habitual?
Cruzes, eram tantos por quês!
No entanto, a pergunta mais insistente e também a
que mais me assustava era: por que não conseguia tirá-lo
dos pensamentos nem por um maldito segundo?
Droga, nada disso estava certo! Tudo bem, ele era
realmente bonito, e eu tinha começado a fantasiar aqueles
braços fortes ao redor dos meus ombros... Isso sem nem
mencionar os olhos de Outono.
Para, Rebecca! Pelo anel de Frodo Bolseiro. Isso
está ficando ridículo.
Pigarreei, fingindo ter tudo sob o controle.
Empertiguei-me no lugar e foquei no trabalho novamente.
Você só precisa se concentrar nisso, em nada mais,
mentalizei, tentando me convencer de que era assim tão
simples.
Eu não compreendia como tinha conseguido
terminar o trabalho a tempo, mas ali estava ele, salvo no
pen drive. Apesar de todas as tentativas da minha mente
de me boicotar, fugindo para longe da responsabilidade,
estava feito.
Encarei o relógio e descobri ter poucos minutos
para me aprontar, ou acabaria chegando atrasada. E, tendo
em vista que a primeira aula seria a do Carrasco, isso era
inconcebível.
Saí do quarto levando algumas peças de roupa
embaixo do braço e agradeci aos céus por encontrar o
banheiro desocupado. Os banhos de Nataly não eram
exatamente os mais rápidos do mundo, e não preciso nem
dizer os de Arthur, né? Ele era uma lesma naturalmente,
imagine então relaxado com uma agradável corrente de
água morna caindo nas costas. Às vezes era preciso apelar
às ameaças para conseguir arrancá-lo lá de dentro.
Como não podia demorar, entrei no box apressada
e foi então que o primeiro flashback apareceu — eu me
encontrava sentada sobre o vaso sanitário, com Adônis
ajoelhado à minha frente, uma expressão preocupada
tomando o rosto. A imagem parecia tão real que me
assustava. Olhei para a privada, pensando no tamanho do
absurdo daquela cena. Ele jamais estivera ali.
Ensaboei o corpo sem conseguir parar de pensar
que eu não sabia ao certo como tinha chegado ao
apartamento na noite do trote. E se...? Não, não podia ter
uma alternativa em que Adônis estivesse presente. Não
fazia o menor sentido. Ele nem ao menos esteve na festa.
Desliguei o chuveiro e puxei a toalha de uma só
vez contra mim. No momento em que comecei a me secar,
a lembrança invadiu minha mente em pequenas porções.
Como quando recebemos uma mensagem muito grande
pelo celular e ela chega fragmentada e fora de ordem.
Chewie entrando comigo no apartamento e logo
depois ajoelhado na minha frente, ali mesmo. Também
tinha o seu hálito mentolado, disso lembro muito bem. Ele
chutou a porta, parecia bravo com alguma coisa que eu
dissera.
— Da próxima vez que encher a cara, donzela, é
bom não acordar o resto do bloco e nem vomitar no
corredor inteiro se não quiser que eu chame a polícia! E
se aquela maldita sujeira estiver lá amanhã de manhã...
É bom que não esteja! Vai por mim!
Engoli em seco, compreendendo a situação.
Recordei as palavras que disse a ele e meu rosto queimou
de vergonha. Meu Deus, eu nunca mais queria beber na
minha vida!
Só tinha me causado problemas até aquele
momento. A pior parte estava em não poder confiar no
próprio cérebro, já que ele tinha simplesmente apagado
um pedaço da minha memória e resolvido devolver de
uma hora para outra. Algumas coisas passaram a fazer
mais sentido para mim, como na madrugada em que
encontrei Chewbacca fumando no térreo e ele me
perguntou se eu me sentia melhor; assim como quando
dormi no seu apartamento e ele me disse para trancar a
porta se quisesse.
Que vergonha!
Como pude agir como uma maluca sem mais nem
menos?
Encará-lo depois de me lembrar deste evento
fatídico seria difícil. Principalmente porque, apesar de ter
rosnado ameaças, ele arrumou a minha bagunça no
corredor. Exatamente como fizera pouco mais de uma
semana atrás, quando bati na porta dele pedindo abrigo —
negou a princípio, com o seu jeito rabugento de ser, mas
depois fez o possível para me deixar à vontade.
Fiz uma careta azeda quando constatei que
precisava me retratar, embora a ideia não me agradasse
nem um pouco. Só de tentar conceber a ideia de procurá-
lo para conversar, já sentia as palmas das mãos suarem
frio e os joelhos tremerem. Chewbacca me
desestabilizava e isso era fato.
Eu só não tinha decidido ainda se isso era,
necessariamente, algo ruim.
Os meus sonhos
Eu procuro acordar
E perseguir meus sonhos
Mas a realidade que vem depois
Não é bem aquela que planejei
Ira! – Eu quero sempre mais

Bati a ponta da caneta contra a superfície da


mesa impiedosamente, esperando todos os alunos saírem
para que eu pudesse voar no pescoço de Chewbacca.
Aquele idiota! Como teve a audácia de me dar nota quinze
em um trabalho valendo cinquenta? Argh! Juro por Darth
Vader, se eu tivesse um sabre de luz faria pedacinhos de
Adônis. Como faria. Respirei fundo, controlando-me para
não ataca-lo enquanto ainda existiam testemunhas na sala
de aula.
Já contava uma semana que eu tinha recuperado a
memória sobre meu comportamento inadequado da noite
do trote. Depois disso, remoí obsessivamente o ocorrido,
buscando a melhor maneira de me desculpar, quando, na
verdade, eu queria jamais ter me lembrado de nada.
Apesar de receber uma notícia arrasadora sobre a
minha mãe, dei o meu melhor para entregar um trabalho
impecável. E esse era o motivo principal da minha
chateação. Não existia tempo ruim para mim, tratando-se
de estudar. Mas de que adiantou, de toda a forma? Ele me
perseguia. Só podia ser alguma coisa pessoal.
Mordisquei o lábio nervosamente, concluindo que,
no fim das contas, era exatamente isso. O incidente
aconteceu antes da nossa primeira aula e desde então, ele
sempre fora pior comigo do que com os demais alunos —
embora já fosse cruel o bastante com eles. Com certeza
devia ser algum tipo de revanche estúpida. Pensando bem,
eu também ficaria furiosa após limpar o vômito de alguma
vizinha histérica qualquer.
Só que não fazia sentido!
Se fosse isso, ele jamais teria me acolhido quando
precisei. Tampouco sido tão gentil. Céus, ele preparou o
café da manhã para mim! Isso não combinava nada com o
esperado para alguém querendo se vingar. A menos que a
omelete estivesse envenenada e, dado o fato de eu
continuar muito bem, obrigada, não era o caso.
Droga, Adônis fazia meus neurônios entrarem em
curto circuito. Entendê-lo era algo de que eu já tinha
desistido há algum tempo. Não tinha como!
Sentindo-me ainda mais irritada, bufei
audivelmente e comecei a apanhar meus materiais,
jogando-os de qualquer jeito dentro da mochila. Só então
ele reparou em mim, finalmente desviando a atenção das
pastas nas quais permanecia tão focado. Arrastou-se para
trás em um rompante e o som da cadeira arranhando o
chão me fez encolher o tronco.
— Algum problema? — perguntou, ligeiramente
rouco. Estremeci ao simples som.
O que eu queria falar, mesmo?
Olhei para o papel em minhas mãos, um pouco
desnorteada, e tive um lampejo de ira, levantando-me de
uma vez da cadeira. Percorri a distância entre nós,
colocando-o sobre sua mesa com um pouco mais de
agressividade do que pretendia. Era impossível evitar.
Ele podia ser rude, podia me bombardear com perguntas,
podia até mesmo ficar me encarando durante a aula toda.
Nada disso importava. Mas me dar uma nota daquelas?
Era um motivo para lá de justo para comprar uma briga.
Professor Adônis franziu o cenho, olhando com
confusão do meu trabalho para mim.
— Sim...?
— Essa nota está errada. Senhor. — corrigi
rapidamente.
Se era possível, suas sobrancelhas grossas se
uniram um pouco mais. Ele tornou a espiar a atividade por
um momento antes de responder.
— Não está, não.
— Tem que estar — respondi. O meu ódio crescia
conforme sua expressão confusa se transmutava para uma
presunçosa.
Ah, se Avada Kedavra existisse...
— Por que você acha isso?
— Porque o trabalho valia cinquenta. E eu tirei
quinze! — falei enfaticamente. Eu devia, muito
provavelmente, estar agindo como uma maluca obcecada
pela faculdade.
E talvez eu fosse exatamente isso.
Notei, para meu desgosto, o canto de sua boca se
elevar um pouco. Era como se a vontade inoportuna de
sorrir estivesse surgindo e ele não pudesse fazer nada a
respeito. Como aquele homem podia ser tão irritante?
— Entendi.
Paralisei por alguns segundos, absorvendo a
resposta sucinta. Como assim “entendi”? Ele insinuou que
eu estava sendo mimada? Meu Deus, se ele soubesse que
corria risco de vida arruinando a minha média, jamais
faria aquela expressão odiosamente linda.
Calma aí... Linda? Inferno, Rebecca, tenha foco!
Com as bochechas quentes como bolinhos recém-
saídos do forno, apoiei as mãos sobre a mesa dele,
inclinando ligeiramente o tronco para frente. Chewie
cruzou os braços sobre o peito, evidenciando os bíceps.
Arqueou a sobrancelha, como se me desafiasse a ir em
frente. E foi exatamente o que fiz.
— Nunca, em toda a minha vida, aconteceu algo
semelhante. 40% do valor total? Não. De jeito nenhum.
Minha média pessoal sempre foi de 80% para cima. Isso é
uma afronta!
— Talvez você não tenha se esforçado tanto.
Porque essa atividade aqui — ele bateu o indicador sobre
a folha —, não receberia o valor total nem em mil anos.
— Você não entende! Não existe isso de não se
esforçar, para mim. Meu boletim sempre foi impecável.
Por que está fazendo isso comigo? — choraminguei,
começando a me dar conta do quanto era inútil discutir
com ele. O que estava pensando? Era o Carrasco, afinal.
— Porque o meu dever é te avaliar, princesinha.
Sou pago para isso, caso tenha se esquecido. E, dado o
fato de que leciono há três anos, receio talvez saber mais
que uma caloura. Estou certo em pensar dessa forma?
Separei os lábios, chocada com a resposta. Depois
de passar um tempo com ele e conhecê-lo um pouquinho,
tinha se tornado ainda mais doloroso lidar com os coices.
Logo depois do susto a raiva chegou. Só que tinha um
problema: eu era uma chorona. Isso era intrínseco a mim.
Não importava qual fosse o sentimento, se ele se tornasse
muito intenso, com certeza seria acompanhado de
lágrimas. Por isso, aproveitei enquanto ainda conseguia
mantê-las nos olhos para atirar aquilo que estava preso na
garganta há algum tempo.
— Você? — apontei o dedo em riste para ele,
desejando poder matá-lo com a força do pensamento. — É
um grosseiro! Estou cansada da sua arrogância
desnecessária. Se acha que é muito legal ficar bancando o
malcriado, eu acho patético. E talvez fosse mais fácil me
concentrar nos trabalhos se você não ficasse gritando
quase toda a noite e atrapalhando o meu sono. Isso sem
contar essa sua mania de falar rosnando o tempo todo, seu
Chewbacca estúpido! — concluí, um pouco ofegante.
Eu sei, não foi muito inteligente da minha parte.
Gritar com o professor nunca é exatamente a melhor ideia.
Mas o que se pode fazer? Às vezes alcançamos os nossos
limites, e eu, com toda certeza, tinha atingido o meu.
Aquela nota fora o estopim.
Ele ficou me encarando com uma expressão
chocada por algum tempo antes de perguntar.
— Chewbacca?!
Sentindo que estava prestes a chorar, caminhei até
a minha mesa o mais rápido possível, agarrando a mochila
pela alça.
— Quer saber? Não importa. Até mais, professor
— espero que você tenha dengue, completei por
pensamento e me virei para me retirar.
— Espera, donzela. Por favor — estaquei
instantaneamente ao ouvi-lo sendo educado. Girei nos
calcanhares, ficando de frente para ele outra vez. Chewie
enterrou os dedos longilíneos nos cabelos sedosos,
parecendo pensativo. — É assim tão importante para você
a nota de um trabalho?
— Meu Deus, que tipo de pergunta é essa?! Estou
a quilômetros de distância da minha família. Que, por
sinal, está desembolsando um dinheirão, só para me
manter aqui. Tudo isso porque a droga dessa faculdade é o
meu sonho da vida inteira. Então é óbvio que é
importante! Eu levo isso aqui a sério, se ainda não deu
para perceber.
— Tudo bem, fica calma — ele ergueu as mãos no
ar, como se estivesse tentando tranquilizar uma criancinha.
— Vou te dar outra chance. Não é algo que eu costumo
fazer, mas vejo que você está realmente interessada.
Arregalei tanto os olhos que, com certeza, devia
estar parecida com Arthur. Uma onda de alegria engoliu
toda a raiva de uma só vez e eu precisei me segurar para
não abraçá-lo.
— Uma nova chance! Ah, muito obrigada! Vou
refazê-lo hoje mesmo e...
— Não será o mesmo trabalho — ele me
interrompeu, enquanto estralava os dedos e logo depois os
pulsos. — Tampouco um só.
— O quê?! — Claro, estava fácil demais.
— Vamos fazer assim: como ele valia cinquenta
pontos, vou passar dez atividades diferentes, cada uma
com nota cinco. No final das aulas você precisa me
procurar para eu te passar os exercícios e também para
entregar os que já estiverem prontos.
— Mas...
— Ou isso, ou contente-se com este aqui, donzela
— concluiu, entregando-me o meu trabalho de valor
vergonhoso. Peguei-o com os dedos em pinça, os ombros
pesados de frustração.
Embora eu me sentisse grata por ter a
oportunidade de uma nota melhor, dez trabalhos na mesma
época em que as provas eram praticamente diárias
tornaria tudo mais difícil. Sem contar que os outros
professores também passavam diversos seminários,
apresentações, livros para ler... Enfim, não importava. A
questão era que ele podia facilitar se quisesse. Mas
obviamente não queria.
— Obrigada — limitei-me a dizer. — Quando
começamos?
— Na próxima aula.
Como eu desejo que você possa ver o potencial
O potencial de nós dois
É como um livro elegantemente encadernado, mas em uma
língua que você ainda não pode ler, ainda não

Death Cab for Cutie – I will possess your heart


— Jesus, Becca, onde você estava? — Arthur
segurou o meu braço gentilmente, tão logo me alcançou.
— Na sala de aula.
— O que você fazia lá até agora? — perguntou,
desconfiado, ao notar Adônis no fim do corredor, vindo
do mesmo lugar que eu.
— É uma longa história. — Suspirei, esperando-o
passar por nós para continuar. — Mas basicamente
Chewbacca me fazendo desejar ter um tijolo na sala de
aula só para poder jogar na cabeça dele. Se bem que
aquela barbona amorteceria o impacto.
Meu amigo gargalhou e, pela espontaneidade dele,
acabei rindo também. O que foi muito bom, pois aliviou
um pouco da nuvem de amargura na qual me encontrava.
Eu disse um pouco.
Encarei meu relógio de pulso, descobrindo
restarem apenas cinco minutinhos do intervalo. Droga,
estou com tanta fome, pensei com desânimo.
— Juro para você, se eu não tivesse prova daqui a
pouco, voltaria para casa agora mesmo.
— Duvido. Alguma vez na vida já matou aula?
— Nunca — respondi contrariada, constatando
que Arthur já me conhecia bem o suficiente. — Mas hoje
seria um bom momento para mudar isso.
— Foi assim tão ruim a conversa de vocês? —
Assenti com a cabeça. — Bom, sei como melhorar seu
estado de espírito. Hoje tem uma festa na Cabô Caqui. Eu
nem ia te chamar, porque você jamais aceitaria ir a uma
festa no meio da semana, mas talvez seja uma boa ideia —
falou, com seu tom moroso.
Pisquei os olhos algumas vezes. A única coisa que
consegui captar foi o nome da república.
— Cabô Caqui? — Ecoei, boquiaberta. — Qual o
problema dessas pessoas? É um tipo de regra escolher
nomes com duplo sentido para as repúblicas, ou o quê? —
perguntei e nos encaramos por alguns segundos antes de
explodirmos em risadas.
Só Arthur mesmo para me deixar
consideravelmente melhor em questão de minutos,
pensei, encarando os olhos esbugalhados do meu amigo e
o sorrisinho torto que jamais lhe escapava. Ainda
esperava uma resposta. Mordisquei o lábio, ponderando
as opções: poderia ficar trancada no quarto remoendo as
más notícias da última semana pelas próximas horas ou
então simplesmente sair da rotina e ver no que dava.
Precisava mesmo espairecer, tirar algumas coisas da
cabeça, incluindo Adônis. Ok, principalmente Adônis!
Eu não tinha nada a perder com isso.
— Tudo bem, acho que é exatamente do que
preciso — Eu mal podia acreditar nas minhas palavras.
— Meu Deus, quem é você? O que fez com a CDF
que mora comigo?
Bati em seu ombro com o meu, sem nem me dar
conta do sorriso de orelha a orelha que trazia no rosto. O
sinal ecoou pelos corredores, despertando-me para a
realidade.
— Nos vemos mais tarde — despedi-me, seguindo
para o bloco onde faria a prova.
A avaliação de Literatura Brasileira dissipou
completamente qualquer resquício da minha conversa com
Chewbacca. Diferente das demais pessoas, jamais fiquei
nervosa com a chegada de um exame. Nem mesmo no
vestibular. Como mantinha uma rotina de estudo saudável,
não precisava me sobrecarregar com maratonas
intermináveis de revisões nas vésperas. E era por isso que
me identificava tanto com a Hermione Granger. Talvez não
fosse a mais inteligente, como ela, mas ninguém podia
dizer que eu não era aplicada. Não existia a menor dúvida
de que se eu pusesse o Chapéu Seletor na cabeça, ele me
mandaria para a Corvinal sem pensar duas vezes.
Fui uma das primeiras a sair da sala, logo depois
de concluir a prova. Procurei na mochila meu exemplar de
A Fúria dos Reis (sempre levava um livro comigo, para
casos de emergência) e me sentei no pátio, em frente ao
prédio onde ficava a sala de Arthur. Ajeitei-me
confortavelmente no banco de cimento, prestes a afundar o
nariz pelos Sete Reinos, porém uma conversa próxima de
mim me chamou a atenção.
— Você só pode ser louca, Sophia. Logo ele?!
— Como assim “logo ele”? O Carrasco é um
gostoso!
Por alguma razão, meu coração acelerou. Remexi-
me no banco, de forma que pudesse espiar, pelo canto dos
olhos, as donas das vozes. Eram duas alunas do último
ano, eu lembrava vagamente delas da noite do trote.
— Mas, amiga, o cara parece o homem das
cavernas! — falou a mais baixa, cujos cabelos eram
pintados de azul turquesa.
— Eu sei! — A tal Sophia suspirou, com a mesma
expressão que uma pessoa viciada em paçoca faria ao
chegar a uma festa junina. — E é exatamente isso que o
torna irresistível, você não acha? Esse jeitão de homem
rústico... Ai, ai. Fico até imaginando o que não poderia
fazer comigo.
Arregalei os olhos. Eu passava metade dos dias
lamentando o fato de Chewbacca ser o meu professor e
vizinho enquanto ela os fantasiava... Céus, isso era
loucura!
Meu cérebro, no entanto, não concordava comigo,
pois, em uma fração de segundo, a imagem das mãos
grandes de Adônis me segurando pela cintura se formou
na minha imaginação, causando um suave arrepio que
percorreu os braços e nuca. Minhas bochechas queimaram
instantaneamente. Por Jon Snow, o que estava
acontecendo?
— Eu acho que você é doida. Ainda não acredito
que o convidou para a festa.
Sophia tombou a cabeça para trás, gargalhando
gostosamente. Ela ficava muito bonita fazendo isso, com
os enormes cabelos cacheados caindo pelos ombros e os
dentes perfeitos reluzindo.
— Ah, você tinha que ver a cara dele. Foi tão
engraçado!
— Posso imaginar... — A garota de cabelos
tingidos deu uma risadinha nervosa. — Não é sempre que
alguém chega e pergunta “Professor, que tal uma
passadinha na Cabô Caqui hoje à noite?”. Sério, Soph,
você tem parafusos faltando!
Elas voltaram a rir com entusiasmo, enquanto eu
lutava para tirar a expressão de surpresa do rosto. Mesmo
sem admitir, senti uma estranha pontada na boca do
estômago. Para mim, sempre existiu a certeza de que o
ódio por Adônis era unânime. Afinal de contas, em sala de
aula ele era um verdadeiro pesadelo. Especialmente
comigo. De fato, ele agia muito pior comigo do que com
os demais. Mas quem sabe existissem pessoas que fossem
o oposto? Pessoas que ele tratasse da maneira como me
tratou em seu apartamento? Quem sabe ela, inclusive,
fosse uma dessas pessoas?
Mordi o lado de dentro da bochecha, subitamente
mal humorada. Olhei para o livro esquecido em minhas
mãos e o fechei de uma vez, perdendo a vontade de ler.
Algo sobre ela ser linda, desinibida e a fim do
Chewbacca soou como um insulto. Eu não queria pensar
muito sobre o porquê de estar me sentindo daquela
maneira, mas não tinha o que ser feito quando o meu
sangue simplesmente borbulhava.
— Becca? — sobressaltei-me ao ouvir a voz de
Pábila. Olhei por cima do ombro e a encontrei de braços
dados com Arthur. Os dois caminhavam com tranquilidade
em minha direção. — Já saiu da aula?
No mesmo instante, desejei ter uma capa da
invisibilidade para me esconder. Eu jamais deixaria de
me arrepender por ter ligado bêbada para ela, fingindo
estar apaixonada. Desde então, as coisas tinham ficado um
pouco esquisitas entre nós. Mesmo comigo e Arthur
explicando ser uma brincadeira, ficou parecendo que era
apenas uma desculpa pós-rejeição.
A situação como um todo tinha servido como
motivação para a listinha a qual escrevi na minha agenda
pessoal, intitulada como COISAS PARA NUNCA MAIS
FAZER.
Isso mesmo, em caixa alta.
Nela, existiam apenas dois itens: ficar bêbada e
jogar Verdade ou Consequência.
— Estávamos em prova. Terminei a minha
rapidinho. E vocês, o que estão fazendo aqui fora? —
indaguei desconfiada, conferindo as horas no relógio só
para ter certeza de ser muito cedo.
— Não é nada disso que está pensando, espertinha
— brincou Arthur. —Tinha seminário e só faltava a
apresentação de um grupo. Fomos liberados mais cedo.
Aliás, foi bom te encontrar. Queria mesmo falar com você.
Consegui carona com uma menina da minha sala. Você e
eu vamos embora na frente para levar sua bicicleta, e elas
nos pegam lá, né, Pábila?
Ela balançou a cabeça, fazendo os cabelos loiros
cintilarem com a luz vinda das salas de aula.
— Mas e Nataly?
— Vai com o pessoal da sala dela. Já me mandou
uma mensagem avisando. — Ele estreitou os olhos,
estudando-me com atenção. — Você está legal?
— Estou. Por quê?
— Sei lá, sua cara está estranha. Meio pálida.
— Deve ser fome. Vou aproveitar para beliscar
aquele macarrão delicioso que você fez — desconversei,
finalmente me levantando. O que menos queria era que
soubessem da profusão de sensações engraçadas com as
quais eu mal podia lidar.
Jogamos conversa fora por algum tempo, sem que
eu conseguisse tirar os pensamentos de Adônis e da
conversa que ouvira a respeito dele. Mesmo depois,
enquanto empurrava minha Caloi, caminhando ao lado de
Arthur em direção aos blocos da UEM, Chewie insistia
em ocupar cada pedacinho da minha mente.
A ideia de que ele fora convidado a ir para uma
festa por uma aluna me tirava do sério, mesmo sendo
difícil de admitir para mim mesma. Porém, lutei para não
esquentar com isso, com o consolo de que as chances de
ele aceitar o convite eram minúsculas.
Ou, ao menos, é como eu gostaria que fossem.
Já é meia-noite e estou tão acabada
Estou pensando o quanto eu preciso de você
Mas você realmente quer outra pessoa

Sky Ferreira – You’re not the one


Beberiquei a cerveja quente do meu copo
descartável, franzindo o nariz quando o gosto amargo
tocou a língua. Como alguém podia pagar para beber
aquilo? Era amargo como o inferno. Poderia ser
tranquilamente usada como instrumento de tortura. Aliás,
era por isso que eu tomava o café sempre com leite, para
suavizar o amargor — o qual, nem de longe, era tão
gritante quanto o da bebida em minhas mãos.
Fiz a milésima varredura da noite pela Cabô
Caqui, a procura do rosto conhecido de Chewbacca.
Apesar de tentar me convencer de que ali seria o último
lugar onde poderia encontrá-lo (ele não fazia exatamente o
tipo sociável), a ansiedade corroía meus ossos. Só de
cogitar a hipótese, já sentia uma comichão nas entranhas.
— O que você vai fazer no recesso de Páscoa,
Becca? — Lily perguntou, buscando-me para a realidade.
Pisquei algumas vezes, situando-me novamente.
Ao meu redor, os rostos conhecidos de Nataly, Pábila,
Arthur e Pedro me encaravam com expectativa. Estávamos
todos apertados perto do bar improvisado, tendo em vista
que metade da UEM parecia estar naquela festa.
— Vou voltar para a minha cidade. — sorri.
Apenas dois dias me separavam de ser paparicada ao
extremo em Santa Cruz do Rio Pardo. Saber que poderia
finalmente matar a saudade dos meus avós me
reconfortava, afinal, a saudade era uma companhia fiel no
dia-a-dia. — E vocês?
— Eu também. Não vejo a hora! — falou ela, logo
antes de abrir um sorriso gigante, emoldurado pelos
lábios cheios que deixariam Kylie Jenner no chinelo.
— Eu vou ficar — Arthur murmurou, emburrado.
Não pude deixar de pensar que jamais o tinha presenciado
ao telefone, conversando com os pais. Ao contrário de
Lily, que ligava quase todos os dias para a irmã, por
exemplo. E até mesmo de mim, pois costumava falar com
os meus avós pelo menos uma vez na semana.
Não tive a oportunidade de ouvir os planos de
mais ninguém, tampouco de continuar refletindo sobre a
relação do meu amigo com a família. Meus olhos foram
atraídos como ímã para o cabelo azul turquesa pouco mais
à frente. Instantaneamente, meu coração deu uma forte
guinada dentro da caixa torácica e me repreendi por ser
tão idiota. Era a amiga da tal Sophia, a qual havia
convidado Adônis para a festa. Suspirei aliviada ao
constatar que ela vinha logo atrás da amiga, sozinha. Não
tive muito tempo para comemorar, no entanto, pois em
uma fração de segundo, Chewbacca apareceu no meu
campo de visão, deixando-me inteira gelada.
O quê?!, pensei atônita, sem conseguir acreditar
no que os meus olhos me mostravam. Fisguei o lábio
inferior com força, arrancando uma lasca sem nem ao
menos perceber.
Então, no momento seguinte, fui atingida em cheio
por desapontamento. Eu sabia que não existia uma razão
para isso, afinal não era como se nós dois fôssemos
grandes amigos, ou algo próximo disso. Na verdade,
nossa relação era a pior possível e isso só me deixava
com mais raiva da situação toda.
Onde eu estava com a cabeça? Seduzindo-me por
ideias que a) eram perigosas demais e b) não condiziam
minimamente com meus objetivos. Não condiziam com
quem eu era, em primeiro lugar. Jamais fui uma garotinha
apaixonada e isso não poderia mudar agora.
Mas que droga, eu disse apaixonada?
Não quis dizer isso, claro que não. Apenas me
expressei mal.
— Meu Deus, Rebecca, o que houve com os seus
lábios? — Arthur perguntou e notei seus olhos
ligeiramente mais abertos.
Instintivamente, levei a ponta dos dedos até a boca
e os tirei pintados de vermelho vivo. Eu definitivamente
precisava parar com aquele mau hábito.
— Droga, preciso ir ao banheiro — murmurei,
apenas para fugir de mais perguntas.
Bom, ao menos foi como tentei me convencer. No
fundo, sabia que queria apenas fugir da visão privilegiada
de Adônis conversando tão animado com Sophia.

Depois de alguns copos, até que o gosto da cevada


ficava interessante, para ser honesta. E, ao contrário do
me garantiram sobre a cerveja ser quase inofensiva por
possuir um baixo teor alcóolico, eu me sentia como se
estivesse eternamente no looping de uma montanha russa
— rodando sem parar, a cabeça aérea e os pensamentos
leves, fluidos... Aproximava-me perigosamente daquele
ponto crítico em que ria um pouco além do necessário e
fazia coisas estúpidas.
Isso não é bom, pensei, mas menos de um minuto
depois já estava ocupada em rir desenfreadamente de
Nataly imitando Arthur com perfeição. De olhos redondos
como pires e a coluna um pouquinho curvada, ela
caminhava lentamente de um lado para o outro,
arrancando gargalhadas de todos nós.
— Você não presta! — Pábila deu um tapinha no
braço de Lily. Ela fez cara de ofendida no mesmo instante,
exagerando no sotaque arrastado para responder.
— Jesus, Pábila! O que deu em você?
Quase cuspi a cerveja que tinha acabado de beber.
Aquilo era tão ele! Apertei os joelhos um no outro para
evitar uma catástrofe, pois segurava o xixi há tanto tempo.
A última vez em que fora ao banheiro, tinha levado meia
hora e, por isso, adiava ao máximo a próxima ida. Se eu
precisaria enfrentar aquele mar de gente outra vez, que
fosse quando estivesse no limite. Mas, pensando bem,
talvez fosse o momento certo. Eu tinha rido tanto que, por
um segundo, quase não fui capaz de conter a vontade.
Foi por pouco, meu subconsciente sussurrou
aliviado e concordei, decidindo não abusar mais da sorte.
— Estou indo ao banheiro, alguém mais quer ir?
Nataly, Pábila? — As duas negaram com a cabeça, apesar
de Pábila ter feito uma expressão engraçada. — Eu juro
que não vou te molestar! — disse, olhando para ela. — Só
não quero... hic... enfrentar esse longo caminho sozinha.
Pude ver em sua cara de assombro e nas
gargalhadas dos demais que eu tinha falado o que não
devia. Acenei com a mão como quem dizia “deixa pra lá”
e me afastei, perguntando-me quão arrependida ficaria no
dia seguinte por ter dado outra chance para o álcool.
Chegar ao meu destino foi uma verdadeira
aventura. Porém, isso não foi nada comparado à difícil
tarefa de tentar me equilibrar para não encostar, de forma
alguma, na privada cujo estado era deplorável. O
problema de ficar bêbada estava no fato de que me manter
equilibrada era semelhante a ganhar na loteria — bem
difícil. Meus joelhos tremiam como galhos de uma árvore
em uma tempestade, enquanto eu fazia o xixi mais
interminável da minha vida.
Ao sair do cubículo imundo, uma fila enorme já
tinha se formado na porta. A maioria me lançou um olhar
feio, de quem se encontrava apurado e não suportava mais
a angustiante espera. Eu sabia como eles se sentiam.
Como o banheiro ficava dentro da Cabô Caqui, era
preciso atravessar a sala para chegar ao quintal, onde a
festa realmente acontecia, e também onde os meus amigos
me esperavam. Contrastando com a varanda, no entanto, o
lado de dentro achava-se praticamente deserto, com
exceção de algumas poucas pessoas descansando nos
sofás, fumando os cigarros (sim, eu sei) e pensando na
vida.
Eu estava a um passo da porta quando senti alguém
pegar no meu bumbum. Foi tão rápido que poderia ter
julgado como um acidente, caso não estivesse no único
lugar da república onde isso era improvável. Foi por essa
razão que olhei por cima do ombro e me deparei com um
rapaz de expressivos olhos azuis sorrindo para mim.
— Você é muito bonita, sabia? Lembra a Zooey
Deschanel, mas com olhos verdes!
Pisquei os olhos, emudecida, tentando decidir se
ele realmente não percebeu o que tinha acabado de fazer,
ou simplesmente era um descarado fingindo que nada tinha
acontecido.
— Eu me chamo Hugo. Moro aqui. — Um
sorrisinho brotou nos lábios finos. — Qual o seu nome?
— Rebecca — respondi, dando um passo para trás
instintivamente e cruzando os braços sobre o peito.
— E você é caloura, mocinha? Nunca te vi antes.
— A UEM é muito grande — disse séria,
arrancando uma risada dele. Não era preciso ser um gênio
dos sinais corporais para entender o meu desconforto.
Mas Hugo parecia incapaz de enxergar qualquer coisa.
Talvez tivesse bebido demais.
— Bem observado.
— Bom, meus amigos estão me esperando lá fora.
Vou andando... — ameacei dar o primeiro passo, mas ele
me segurou pela cintura, puxando-me contra si.
Arquejei, estarrecida com a situação.
— Eles não vão sentir sua falta. Fica mais um
pouquinho aqui comigo, quero te conhecer melhor.
Com as minhas mãos, tirei as dele de mim. Eu
nunca havia passado por nada minimamente semelhante,
por isso não sabia ao certo como agir. Ainda mais com a
cerveja me deixando ligeiramente burra. Respirei fundo e
tentei ser enfática na resposta.
— Não estou interessada.
— Qual é, bonitinha! Não seja esnobe. Sou seu
anfitrião, mereço um pouquinho de atenção.
Pelo amor de Yoda, qual era a dificuldade dele
entender? Cansada de perder meu tempo com Hugo, rolei
os olhos nas órbitas, virando-me para seguir o meu
caminho.
Ele, por sua vez, não estava disposto a colaborar.
Novamente suas mãos foram parar em mim, forçando-me a
ficar de frente para ele. A força nos braços estava um
pouco maior.
— Ah, pelo amor de Deus, será que você é mesmo
tão inconveniente assim? — atirei, dando tapinhas em seu
peito, ao que ele apenas ria, divertido.
Argh, babaca idiota!
Foi então que uma voz conhecida penetrou meus
tímpanos, deixando-me desnorteada.
— Donzela? Até que enfim, te procurei em toda
parte. Ainda vai querer a carona? Estou indo embora
agora.
Parado atrás de Hugo estava um Chewbacca de
tirar o fôlego. Vestia uma camisa branca aberta nos
primeiros botões e, para a minha surpresa um chapéu
preto na cabeça, o qual contribuiu muito para o calafrio
que percorreu minha espinha. Como eu não tinha reparado
no chapéu quando o vi horas antes? Aquela visão era
desconcertante!
Encarei-o sem conseguir disfarçar a confusão em
cada centímetro do rosto. Adônis piscou para mim,
indicando o rapaz que me segurava com um breve acenar
de cabeça. Foi o suficiente para eu perceber sua intenção
— ele tentava me ajudar. Suspirei aliviada, aproveitando
o momento para me soltar pela segunda vez das garras
daquele bêbado sem noção.
— Que bom! Quero a minha cama
desesperadamente — admiti, ignorando o olhar perplexo
que Hugo lançava de mim para Chewie. Nem me importei
em dar tchau para ele. Aproximei-me do meu vizinho,
sentindo-me protegida por seu tamanho avantajado.
Esperei estarmos longe o suficiente para quebrar o
silêncio formado entre nós.
— Obrigada por isso — falei e ele assentiu.
— Disponha. — Observei-o esconder as mãos nos
bolsos. — Falei sério, de toda forma. Estou indo embora.
Quer vir comigo?
Meu coração parou brevemente.
— Eu...
— Não bebi, pode ficar tranquila. Estará segura.
Desviei a atenção para meu All Star,
envergonhada. Esse detalhe nem ao menos tinha passado
pela minha cabeça. Encontrava-me sem reação. Meus
sentimentos estavam em ebulição e eu não tinha a menor
ideia de como lidar com todos os pensamentos me
bombardeando sem parar.
Quando subi novamente o olhar, encontrei as íris
de Outono me queimando lentamente. Daquele jeito que
ele sabia fazer tão bem. Mordi o lábio machucado
sentindo uma pontada de dor e, impulsionada pelo
momento — e um pouquinho pelo álcool, admito —, ouvi-
me respondendo:
— Seria ótimo.
Segredos que eu tenho mantido em meu coração
São mais difíceis de esconder do que eu pensei
Talvez eu só queira ser seu
Eu quero ser seu, eu quero ser seu

Arctic Monkeys – I wanna be yours


Sentada confortavelmente no banco de
passageiro, tive certeza de que Adônis possuía algum tipo
de mania por limpeza. Nem mesmo vovô era assim,
apesar do xodó enorme pelo carro.
Diferente do apartamento dele, no entanto, com seu
perfume amadeirado; o automóvel tinha um aroma suave
de lavanda, o qual identifiquei vir de um frasquinho sobre
o painel. Não sabia dizer ao certo o porquê, mas sua
organização excessiva era irresistível para mim.
Balancei a cabeça para silenciá-la e coloquei o
cinto de segurança. Chewie se ocupava em passar
freneticamente as músicas do pen drive. Ele parecia
determinado a encontrar alguma faixa específica, não
importava quanto tempo permanecêssemos ali, no meio de
uma rua deserta, na calada da noite. A vida tinha suas
prioridades, certo?
Aproveitando o momento oportuno, enviei uma
mensagem para Arthur.

Consegui uma carona, estou indo para casa.

A resposta dele chegou poucos segundos depois.


Fiquei momentaneamente surpresa com a velocidade.

Rebecca, como assim? Com QUEM você está? E


por que saiu sem falar nada? Você é LOUCA????

Não precisa se preocupar, está tudo ok. Festas


são muito cansativas e barulhentas, acho que não nasci
pra isso.

Você é uma velha, hahaha.


Eu sei.

Mas quem está te levando?

Chewie deu partida exatamente quando eu ia


começar a digitar novamente e, por isso, apenas guardei o
celular no bolso. Não queria ficar tonta. Pelo menos não
mais do que já estava.
Seus dedos tamborilavam o volante suavemente,
seguindo o ritmo da melodia começando a se espalhar
pelo carro. Eu não me encontrava no meu melhor
momento, por isso demorei a reconhecer qual era a
canção. Mas sabia ser Beatles porque, bem, eles eram
inconfundíveis.
Quando a letra começou, Adônis me surpreendeu
ao acompanhá-la baixinho.
— Eu deveria ter imaginado, com uma garota
feito você, que eu adoraria tudo que você faz. E eu
adoro. Hey, hey, hey. E eu adoro...
Engoli em seco, com o coração batendo como uma
britadeira. Pelo canto dos olhos, tentei buscar em seu
rosto o menor indicativo possível que me respondesse o
porquê daquela música em especial, dentre o vasto
número que compunha a discografia da banda. No entanto,
ele permanecia focado no trajeto, parecendo impassível.
Isso não significa nada, Rebecca. Pare de ver sinais
onde eles simplesmente não existem!
— Então, oh, eu deveria ter percebido uma
porção de coisas antes... Isto só podia acontecer
comigo. Você não consegue ver? Você não consegue ver?
Expirei o ar dos pulmões, incapaz de evitar que
minhas mãos ficassem geladas feito picolés. Em um
impulso, inclinei o tronco para frente, desligando o rádio
com um pouco mais de violência do que pretendia. Eu
precisava parar com aquilo antes que enlouquecesse.
Adônis me confundia além da conta. Como era possível
naquela mesma noite eu ter desejado matá-lo bem
devagarinho e então ficar ofegante com a sua maldita voz
grave cantando uma música romântica? Inferno, ele
precisava se decidir!
Girei o rosto para o lado e o encontrei olhando
para mim com curiosidade.
— Desculpa. É que a minha cabeça está doendo
muito. — Bati com os indicadores nas têmporas, para dar
ênfase à mentira.
— Quer passar na farmácia?
— Não precisa, tenho remédio em casa.
Infelizmente isso acontece com certa frequência. — Essa
parte era verdade. — Mais do que eu gostaria. Se a minha
mochila estivesse aqui comigo, já teria resolvido o
problema.
— Sério? — perguntou, desviando a atenção do
trânsito para me olhar. Assenti com a cabeça e ele
continuou. — Já foi ver isso?
— Não. — Dei de ombros. — São só dores de
cabeça, nada muito dramático.
Ele assentiu, sorrindo, e deixou meu estômago
semelhante a um mar revolto.
— Você sabia que essas dores não muito
dramáticas são a forma do corpo nos avisar que algo não
está legal? Eu mesmo raramente tenho, donzela. Alguém
na sua família usa óculos?
— Sim... Na verdade, todos. Por quê?
— Talvez seja a visão. Ainda mais lendo tanto.
Negligenciar a saúde pode ser muito perigos...
— Ok — interrompi-o. — Você venceu, vou
aproveitar o recesso de Páscoa para marcar uma consulta,
tá bom?
— Muito bem, é assim que se fala — Chewie
piscou, causando uma nova comichão em mim.
Então me dei conta de que aquilo era uma
verdadeira tortura. Nossa relação, como um todo,
deixava-me perplexa. Como ele podia ser um ogro em
sala de aula, mas fora dela agir daquele jeito que me
deixava flutuando e sorrindo à toa? Pelas flechas de
Katniss Everdeen, a oscilação apenas tornava tudo mais
complicado! Já era difícil à beça digerir as mudanças
gritantes em meu interior, imagine então com aquela dupla
personalidade irritante!
E isso sem contar que ele tinha ido para a festa na
Cabô Caqui graças ao convite de Sophia. Quem era ela,
em primeiro lugar? Ela já tinha dormido na casa dele,
como eu? Ele já tinha preparado omeletes para ela? Ela,
por um acaso, tinha tomado café nas canecas de
dinossauros de Adônis? Aposto que não!
Meu Deus, como sou ridícula!
Mordisquei as bochechas, percebendo o quanto
aquilo me tirava do sério. Não só pelo fato de ela ser
linda, confiante e saber exatamente o que fazer diante das
possibilidades, mas principalmente pela maneira como
ele demonstrou estar entretido com sua companhia.
Meu sangue ferveu em uma velocidade
surpreendente e, antes de ter a oportunidade de pensar
melhor, perguntei com um pouco de raiva.
— Afinal, por que você estava nessa festa idiota?
Chewie me encarou chocado, dando seta para
entrar na rua onde morávamos. Demorou um pouco para
quebrar o silêncio desconfortável que se instaurou entre
nós.
— Não sei. Fui convidado e pensei “por que
não?”. A outra opção era ficar em casa com Castiel. Pelo
menos poderia me distrair um pouco. Mas você deveria
me agradecer, eu te ajudei!
Olhei para ele indignada.
— Eu sei, mas esse não é o ponto!
— E qual é?
Rebecca, pelo amor de Deus, cale a boca
AGORA!, meu subconsciente gritou, horrorizado. Consegui
recobrar o juízo a tempo, percebendo que quase tinha feito
uma besteira. Eu precisava ficar longe dele o mais rápido
possível ou acabaria falando algo do qual me
arrependeria irremediavelmente.
Por sorte, havíamos estacionado e Adônis
resolveu deixar o assunto morrer, o que era muito
delicado de sua parte. Soltei o cinto com urgência,
querendo escapar logo daquele carro. Porém, quando fui
tentar destravar a porta, descobri estar emperrada. Era só
o que faltava.
— Não consigo erguer o pino — murmurei
enquanto direcionava toda a força possível para os dedos,
mas sem obter êxito algum.
— Ah, isso. Sempre deixo para depois e acabo me
esquecendo. Vou abrir para você.
Não pude sequer raciocinar direito, pois ele
inclinou o corpo sobre o meu, apoiando um braço no meu
colo enquanto o outro foi direto à trava. Engoli em seco
com o pescoço dele tão próximo do meu rosto. Meu corpo
parecia ter se esquecido de como funcionar. Fiquei
petrificada. Não ousava me mexer um milímetro sequer.
Céus, como ele é cheiroso, pensei, notando o seu
pomo-de-adão subir e descer. Ele se mantinha
concentrado, alheio ao turbilhão de sensações que
causava em mim. Então, ao entortar um pouquinho mais a
cabeça para a direita, a aba do chapéu roçou suavemente
na minha testa, afastando a franjinha. Não houve um único
pelinho da minha nuca que não ficou arrepiado para contar
história.
O ar se tornou denso e minha cabeça pesou além
do normal. De repente, parecia haver mil agulhas
espetando meu corpo em lugares diferentes, porque eu não
conseguia ficar quieta. Comecei remexendo as pernas,
depois os braços, os dedos das mãos e estava quase
chegando ao quadril quando ele conseguiu.
— Prontinho.
— Graças a Deus! — praticamente gritei, pulando
para fora do carro mais rápido que o Flash.
Já do lado de fora, notei a sombra de um sorriso
em seu rosto e me perguntei se levava mesmo tanto tempo
para destravar a porta ou ele tinha demorado um pouco
mais do que deveria.
Quando há um fogo em seu coração
E um desejo interminável em seu coração
Que o deixa maior que o sol
Deixe crescer, deixe crescer
Quando há um fogo em seu coração
Não se sinta alarmado
Death Cab for Cutie – You’re a tourist

O meu bolso vibrou. Lembrei-me do meu celular


e, consequentemente, de Arthur. Ao pescar o aparelho,
descobri que o meu amigo tinha me mandando uma chuva
de mensagens.

Não adianta me ignorar, não vou desistir!

Essa pessoa misteriosa é um HOMEM?

Rebecca, você não está fazendo o que eu acho,


né????
Cadê aquele papo de “só vou namorar depois de
me formar”?

REBECCA, EU ESTOU PRESTES A CONTACTAR


UMA EQUIPE DE RESGATE!!! ME RESPONDE!

Meu Deus, eu não acredito que você está


MESMO fazendo AQUILO. Minha bonequinha foi
corrompida!

Foi impossível segurar o riso. Era por situações


assim que eu já amava Arthur. Decidi deixar para explicar
tudo quando nós dois estivéssemos pensando com clareza.
Por isso, limitei-me a digitar uma resposta só para
tranquiliza-lo.

Os planos ainda são os mesmos. Não aconteceu


nada disso que está imaginando. Você continua sendo o
pervertido dessa relação. Conversamos quando vocês
chegarem, bjs.

Meu vizinho tinha acendido um cigarro enquanto


estive distraída com as mensagens. Caminhamos até a
entrada do bloco G sem trocar palavra alguma. Os únicos
sons presentes vinham do farfalhar das folhas nas árvores,
dele soprando a fumaça dos pulmões e do meu coração
batendo desenfreadamente.
— Você me chamou de Chewbacca hoje! —
exclamou em determinado momento, com um tom
divertido.
Esfreguei o rosto com as mãos, rindo sem me
importar. Eu costumava ser uma pessoa calma. Era difícil
me tirar do sério, de modo geral. Ele, no entanto,
conseguia esse feitio com facilidade. Desde o nosso
primeiro encontro, para ser honesta. Era como se me
deixar descontrolada fosse uma habilidade especial de
Adônis.
— Parece que descobriu o apelido secreto —
admiti.
— Carrasco já não era o suficiente?
— Para os outros, talvez. Para mim sempre foi
Chewie.
— Sempre?
— Desde que te conheci nas escadas e você foi
tão amável comigo.
Ele jogou a cabeça para trás, em uma gargalhada
contagiosa. Eu adorava a forma como seus olhos se
estreitavam quando fazia isso.
— Você é impossível.
— Eu? — Arfei, atônita. — Você foi o maior
grosso da história, sem nem me conhecer!
— Não vamos remoer o passado. — Ele piscou,
com um sorriso torto no rosto. — O presente tem uma
gama de possibilidades, então por que nos apegar ao que
é imutável?
Apesar do tom suave e ligeiramente brincalhão,
senti uma pontada de verdade em suas palavras. Era como
se ele não se referisse especificamente ao dia em que nos
conhecemos. Adônis deu uma última tragada e soltou a
guimba no chão, pisando sobre ela com a ponta do
coturno. Como permaneci emudecida, ele considerou o
momento oportuno para voltar ao começo da conversa.
— Mas por que o Chewbacca?
— Ele é peludo e rosna o tempo todo, exatamente
como você — soltei, aproveitando a pouca intimidade que
já havíamos estabelecido. Ele separou os lábios,
arqueando as sobrancelhas grossas.
— Peludo, hein?
— Você não vai ficar chateado por isso, né? —
provoquei, rindo baixinho. — Sabe que são fisicamente
parecidos.
— Certo. — Assentiu com uma expressão travessa
no rosto. — Mas ele também é leal e destemido!
— E impaciente.
— Mesmo assim, todo mundo o adora.
— Isso é o que você está dizendo — sorri,
começando a subir os degraus com ele logo atrás de mim.
Sua proximidade mexia comigo, tal como dentro
do carro. A cada passo dado, sentia sua respiração
ricochetear contra a nuca e era preciso muito autocontrole
para não deixar transparecer a maneira como meu corpo
reagia. Era uma loucura! Meus membros se assemelhavam
a uma máquina desgovernada. Os joelhos tremiam, as
canelas perdiam a força, os pelos eriçavam todos de uma
vez. Eu jamais tinha experimentado nada minimamente
parecido para ter como base e, por isso, achava-me em
desvantagem.
Faltando apenas um lance da escada para
chegarmos ao último andar, minhas pernas ficaram tão
moles que embolei os pés e caí para trás. Depois disso,
foi tudo rápido demais para acompanhar. Em um segundo
estava no ar e, no seguinte, tinha braços ao meu redor e
um tronco muito sólido me suportando. Seu peito subia e
descia no mesmo compasso no qual as lufadas de ar
roçavam minha pele. As mãos frias me abraçavam com
firmeza, impedindo-me de me afastar novamente. Mas,
ainda que não estivessem ali, eu não teria arriscado um
único passo. Ele apoiou o queixo no meu ombro
suavemente, enfeitiçado pelo momento assim como eu.
Sem pensar muito, fechei os olhos, apreciando tê-lo tão
próximo de mim, apreciando a forma como me encaixava
nele tão bem. Até que senti uma coisa lá em baixo, perto
do bumbum, que não estava ali um segundo antes e...
PELO AMOR DE YODA, NÃO ERA O QUE PENSAVA,
ERA?
Como se tivesse lido meus pensamentos, Adônis
se mostrou consciente da pequena mudança que tinha
acabado de acontecer, soltando-me de uma só vez.
— T-tome cuidado — sussurrou com a voz falha,
pigarreando em seguida. — Se eu não estivesse aqui, teria
se machucado.
Incapaz de formular uma resposta, disparei pela
escada como um raio. Comecei a tatear os bolsos dos
meus shorts em busca das chaves antes mesmo de alcançar
o patamar, apenas para ocupar a mente e não pensar no
absurdo que acontecera há poucos segundos.
Nós ficamos abraçados.
No escuro.
No meio da escada.
Bastante tempo.
Droga, eu jamais conseguiria encará-lo
novamente! Mas talvez tivesse sorte e o meu cérebro
simplesmente apagasse esse evento das lembranças. Isso
me deixaria eternamente grata.
Como na noite do trote, errei o buraco da
fechadura vezes o suficiente para ele tirar o molho da
minha mão, gentilmente. Com a diferença de que dessa vez
não era tanto pelo álcool e sim pelo nervosismo.
— Me deixa te ajudar — disse, abrindo a porta
logo em seguida com uma facilidade invejável.
Ainda vou precisar me despedir dele, pensei
desanimada, com pavor de encarar os olhos
desconcertantes. Irritava-me um pouco agir como uma
garotinha assustada. Eu queria ser destemida como as
heroínas das minhas fantasias, mas lidar com tudo aquilo
era mil vezes pior do que empunhar espadas e batalhar em
mil guerras.
Inspirei profundamente, juntando toda a coragem
necessária para me virar de frente para Chewie. Demorei
a encontrar a voz, até então perdida em algum lugar dentro
de mim.
— Obrigada por... tudo. Por me dar outra
oportunidade de recuperar a nota. E me ajudar na
república. E pela carona. E também pela escada — atirei
as palavras sem nem ao menos respirar. Porém, ao parar
para pensar nas últimas, meu rosto ardeu intensamente. —
Quero dizer, por ter me segurado na escada e impedido
que eu quebrasse a costela, e não por te...
— Já entendi. — Sorriu, concordando com a
cabeça, e levou as mãos aos meus ombros, deslizando-as
pelos braços com suavidade, até que os dedos se
fechassem ao redor dos pulsos. — Acho que precisa
descansar. Foi uma longa noite.
— É, foi. Bem... Até mais, Chewie — murmurei,
desparecendo para dentro do apartamento sem dar a
oportunidade para uma resposta.
Eu tenho essa necessidade de você,
se formando no meu coração pulsante
Eu soube o significado na hora
Apenas ontem nós éramos apenas dois mundos a parte

Banks – Warm Water


Ao contrário do que eu gostaria, as memórias da
noite anterior não tinham me abandonado. Meu primeiro
pensamento logo ao abrir os olhos foi que, por Deus,
Adônis me fazia perder qualquer vestígio de sanidade. A
lembrança dos seus braços me segurando com firmeza
ainda me causavam arrepios intensos. Se eu me
concentrasse bem, quase podia senti-lo expirando contra a
nuca.
Mesmo depois de estar totalmente desperta,
permaneci na cama, abraçando o travesseiro com força e
repassando obsessivamente cada singelo momento na
companhia dele. Meu estômago congelava e o coração
acelerava conforme as imagens se formavam na minha
cabeça. Alguns meses antes, eu jamais teria acreditado se
alguém me contasse a que ponto chegaria. Tinha passado
de uma garota decidida a não se envolver com ninguém
para uma que ficava suspirando. O que Chewbacca tinha
feito comigo?
Droga, as coisas não podiam continuar assim.
Eram um desvio de foco, afastavam-me dos meus planos
principais. Mas, por outro lado, sua voz afinada cantando
Beatles ressoava nos meus tímpanos como se ele estivesse
do meu lado e eu esquecia no mesmo instante o motivo
pelo qual não podia me deixar levar. Era tudo tão novo,
tão inusitado. Normalmente as garotas da minha idade já
teriam nutrido pelo menos três tipos de amores platônicos
diferentes ao longo da vida. Mas eu não era assim. Era
como se tivesse nascido com defeito de fábrica. E,
embora parte de mim estivesse com receio justamente por
ser um terreno desconhecido, outra parte estava tentada a
ir em frente e descobrir mais e mais a respeito. Eu queria
experimentar o quanto pudesse daquelas intensas
sensações. O frio na barriga era delicioso e
perigosamente viciante.
Como se já não bastassem as questões internas me
atormentando, ainda tinha Arthur e Nataly. Eu achei que
uma boa noite de sono afastaria da cabeça deles a minha
carona misteriosa da noite anterior. Só que, para meu
desânimo, as horas em que passaram pensando no assunto
serviram apenas para aguçar a curiosidade. Logo quando
saí do quarto, encontrei-os na sala ainda em seus pijamas,
esperando pacientemente para me encurralar.
A princípio, fui ingênua o bastante para acreditar
que conseguiria omitir quem tinha me levado de volta para
casa. Porém, depois de ser bombardeada com uma
profusão de perguntas cabeludas, percebi ser melhor
narrar detalhe por detalhe da noite anterior, antes que a
imaginação fértil deles preenchesse as lacunas por mim.
Comecei do momento em que os vira pela última
vez, durante a imitação de Nataly; depois veio o
inconveniente momento com Hugo e a ajuda de Adônis.
Senti-me no direito de esconder a música no carro, assim
como a nossa proximidade na escada e o que aconteceu
enquanto estávamos abraçados. Eles provavelmente
entrariam em polvorosa e acabariam ampliando os
acontecimentos consideravelmente. Eu não me sentia
preparada para lidar com isso. Não quando nem ao menos
compreendia as mudanças em mim. Por isso, inventei uma
versão da história em que apenas nos despedíamos
brevemente e eu subia sozinha, deixando Chewie para
trás, ocupado com o seu cigarro de menta.
— Nunca mais faça isso, Becca! — gemeu Arthur
assim que terminei. — Não confie nas pessoas assim,
ainda mais sem avisar ninguém. O que nós falaríamos para
os seus avós se você fosse encontrada no meio de um
matagal daqui uma semana, hein?!
— Que horror, Arthur! — Joguei uma almofada na
cara dele, estarrecida. — Você está sendo drástico e
mórbido! Estamos falando do nosso professor, que por
sinal mora no apartamento da frente.
— Mas e se não fosse ele? E se fosse alguém com
intenções ruins? — insistiu.
— Daí eu não teria aceitado, né? Pare de me tratar
como se eu fosse uma criança! Posso ser um pouco
ingênua, mas não sou burra.
— Não fica brava, Becca — Nataly falou, com as
sobrancelhas espessas unidas. — Nós só ficamos
preocupados. Você desapareceu e mandou uma mensagem
sem explicar muito bem o que tinha acontecido. Da
próxima vez, tente avisar antes, pode ser? Somos seus
veteranos e queremos cuidar de você.
Minhas bochechas esquentaram de vergonha.
Vendo por aquele lado, eu realmente tinha errado. Se
tivesse feito aquilo com os meus avós, por exemplo,
provavelmente eles não teriam hesitado em chamar a
polícia. Suspirei pesadamente e os encarei, consternada.
— Desculpa. Fui uma péssima amiga, prometo
nunca mais sumir assim. Fiquei tão animada em poder vir
para casa que não pensei direito. Ainda mais depois
daquele babaca ter praticamente me agarrado.
— Eu conheço o Hugo, ele é levado mesmo. Ainda
mais quando está bêbado... — Lily girou os olhos nas
órbitas. — Mas a grande questão aqui não é essa. Quer
dizer então que Adônis te trouxe, hein?
Os dois se entreolharam ligeiramente e senti o
sangue esquentar de ciúmes. Como odiava aquela maldita
forma que tinham de se comunicar! Cruzes, era péssimo
sentir aquilo, mas eu não queria que eles fossem tão
íntimos como eram. No mesmo instante, algo iluminou
seus olhos e percebi que estávamos caminhando para uma
direção perigosa.
— Te acolheu por uma noite inteirinha, se ofereceu
para dar carona... — ela continuou, de maneira maliciosa.
— E por falar nisso, não era com ele que você
estava ontem no intervalo?
Era exatamente por isso que eu não contava todos
os detalhes para Nataly e Arthur. Imagine só se eles
soubessem que Chewie havia preparado um café da manhã
completo para mim? Além de ter me deixado dormir na
cama dele! E se eles sonhassem com o incidente da
escada... que Gandalf me livrasse disso! Aqueles dois
eram perversos, tinham mentes perversas e faziam
perversidades! Tudo bem, fui enfática o suficiente. Mas
eles, de fato, eram! Eu sabia que faziam aquilo somente
para me provocar. Malditos, e eu ainda os considerava
meus amigos.
— Vocês são ridículos. Os dois. E seja lá o que
estejam tentando insinuar, é igualmente ridículo! —
afirmei, tentando fazer pouco caso.
— Ihhh, ela ficou nervosa! Alguma coisa tem! —
O sorriso de Nataly dobrou de tamanho.
— Será que andou acontecendo alguma coisa que
não sabemos, Lily?
— Quem diria! A Becca, toda delicadinha, com
um homão daquele! Me conta: como ele é sem roupas? É
tão gostoso quanto aparenta?
— Quão longe vocês já foram, Becca?
Meu Deus!
Tampei o rosto com as mãos e desejei, com todas
as forças, desaparecer dali. Embora soubesse que eram
apenas brincadeiras para me atormentar, eu não conseguia
não me envolver, se é que fazia algum sentido. Queria ser
uma avestruz, só para poder enterrar a cabeça no chão e
me livrar daqueles comentários. Desejava que eles não
estivessem tão certos sobre os meus sentimentos, porque
ouvi-los brincando sobre aquelas coisas guardadas tão
fundo dentro de mim soava como a confirmação de tudo o
que eu ainda temia tanto. A confirmação de que se um dia
eu havia nutrido sentimentos ruins por Adônis, a realidade
já não era mais essa.
O problema estava em saber — ou simplesmente
aceitar — o que eu sentia agora.
Pois eu, eu só penso em você
Já não sei mais por que
Em ti eu consigo encontrar
Um caminho, um motivo, um lugar
Pra eu poder repousar meu amor
Los Hermanos – Fingi na hora rir

Saltei no lugar ao ouvir o sinal reverberando


pelas paredes da UEM. Com o coração acelerado, atirei
todos os materiais para dentro da mochila em um passe de
mágica, deixando apenas a agenda e uma caneta para trás.
Quanto menos tempo eu precisasse ficar ali sozinha com
Chewbacca, melhor. A vergonha pelo que tinha acontecido
na escadaria corria pelas minhas veias ininterruptamente.
Cada vez que eu me lembrava dos braços dele em volta de
mim, queria poder ter a chance de nunca mais voltar a
encontrá-lo novamente. Isso era uma besteira, né? Logo
eu, que sempre me admirei Katniss Everdeen, estava me
escondendo dos meus problemas?
Respirei fundo, levantando da cadeira sem muita
vontade. Gostando ou não, precisava encarar a situação.
Era minha nota que estava em jogo, no fim das contas. No
entanto, mesmo tendo essa certeza dentro de mim, meu
corpo não colaborava. Todos os membros passaram a ter
o dobro do peso, tornando difícil a simples tarefa de
caminhar até a mesa do meu professor. Parecendo um
velho robô enferrujado, arrastei-me com dificuldade.
Vamos lá, Rebecca, você consegue, meu subconsciente me
incentivou.
Sentado tranquilamente em sua mesa, Adônis
estava indiferente ao quanto me desconcertava. Mantinha-
se ocupado escrevendo qualquer coisa na pasta dos alunos
e só notou a minha presença quando finalmente parei de
frente para ele, pigarreando nervosamente.
Nossos olhares se encontraram e engoli em seco.
Será que ele também havia passado o dia retomando os
acontecimentos na cabeça, como eu fizera? Será que
aquilo mexera tanto com ele como comigo? Quero dizer,
era só me observar atentamente para perceber que algo me
perturbava. Pequenos detalhes denunciavam a confusão
dentro de mim, como os lábios em frangalhos de tanto
mastigá-los, arrancando sangue pelo menos cinco vezes ao
dia; o rosto ficando vermelho a cada meia- hora, que era a
frequência com a qual eu pensava em Chewie; minhas
mãos tremendo suavemente e o estômago revirando como
uma centrífuga.
— Está tudo bem? — ele perguntou, com uma
expressão preocupada.
— C-claro. Estou ótima. Muito bem, obrigada.
Não podia estar melhor. Maravilhosamente bem. Nossa, é
incrível o quanto estou me sentindo bem! — balbuciei,
sem conseguir parar de falar como uma matraca. Notando
que as suas sobrancelhas tinham se unido, complementei.
— Por quê?
— Não sei... Está meio verde.
— Verde? — Espiei o meu próprio braço,
assustada. — Como assim verde?!
Adônis não pareceu ouvir a pergunta. Continuou
me observando atentamente, tentando descobrir o que
tinha de errado comigo.
— Seu olhar...
— O que tem ele?
— Está vidrado. Aliás... — Estreitou os olhos. —
O que aconteceu com a sua boca?
— Eu... Eu...
— O que seus amigos andaram te dando, donzela?
— perguntou de repente, como se tivesse acabado de ter
um estalo. — Andou provando alguma coisa ilícita?
Meus lábios se separaram ligeiramente no tempo
em que eu usei para compreender sua pergunta. Deixei
minha agenda sobre a mesa, encarando-o perplexa. Coisa
ilícita? Tipo... drogas?
Por Daenerys Targaryen, pensei, isso está
piorando tudo.
— Espera. O quê? — Indaguei. — Você acha
que... Céus, não! Não usei nada. Nunca faria isso. Estou
perfeitamente normal. Só não dormi muito bem e ainda
não me recuperei totalmente da ressaca. Enfim, nada muito
preocupante.
Ele encolheu os olhos, suavizando a expressão no
mesmo instante.
— Eu te acordei de novo?
— Não. — Balancei a cabeça. Droga, por que ele
estava tão falante? Justamente quando o que eu mais
queria era pegar o maldito trabalho e sair correndo dali?
— Não foi por isso. Foi outra coisa, foi... — Suspirei,
com as bochechas em combustão. — outra coisa.
Então a sombra de um sorriso pincelou os seus
lábios e algo dentro de mim deu cambalhotas. Argh,
Chewbacca me tirava do sério! Ele adorava me provocar
daquele jeito, qual era o problema dele?
— Não importa, de qualquer forma — murmurei.
— Estou aqui por causa do trabalho extra.
— Ah, sim. — Ele sorriu, inclinando-se para a
pasta de couro e remexendo até encontrar uma folha única,
a qual me entregou. — Serão todos neste molde.
Desviei a atenção para a atividade e descobri ser
uma das interpretações de música com proposta textual.
Ele as adorava.
— Eu entrego quando?
— Na próxima aula, como combinamos.
Empertiguei-me no lugar, mirando os olhos de
Outono com atenção.
— Mas é feriado de Páscoa! Vou para a minha
cidade, ficar com os meus avós.
Com uma expressão impassível, Chewie deu de
ombros.
— E daí?
— Nenhuma chance de você adiar a data? — Ele
negou com a cabeça antes mesmo de eu terminar a
pergunta, por isso prossegui. — Por favorzinho, só dessa
vez! Vamos, não vai fazer mal para ninguém!
— Donzela... — Adônis me lançou um olhar
complacente. — É um recesso de quatro dias. Acho que
dá tempo de ficar com os seus avós e fazer o trabalho,
não? Aproveite os novos ares para se inspirar.
Mordi o lado de dentro da bochecha, assentindo
com a cabeça. Tudo bem, não era como se eu precisasse
fazer uma monografia durante a viagem, fora que eu
realmente teria tempo de sobra. E, além disso, ele tinha
respondido sem me dar uma patada, como normalmente
acontecia quando estávamos ali naquele ambiente.
— Certo — respondi, tateando a mesa para pegar
minha agenda. — Tudo bem, então. Feliz Páscoa!
— Não tão feliz, na verdade — falou em um
sussurro. — Sem ninguém com quem cruzar pelas
escadas... será bem chato. — Chewie piscou para mim e
um sorrisinho entortou seus lábios para a direita.
— Eu... — minha voz morreu no ar, quando me dei
conta do que estava implícito em suas palavras. Que tipo
de prazer sádico ele tinha em me deixar com o rosto
queimando de vergonha? Eu queria poder depilar todo
aquele pelo facial com cera quente só para ele ver o que
era bom!
Sem pensar muito bem, virei de costas em um
rompante, disparando para fora da sala como se tivesse
acabado de ver um fantasma.

Foi só na tarde seguinte que percebi o grande


equívoco cometido. Mais precisamente quando decidi
começar a arrumar a bagagem para viajar. Eu tinha o
hábito de anotar cada coisinha que resolvia levar na mala,
a fim de conferir se estavam todas lá, antes de voltar para
casa. Isso era estritamente necessário, pois eu costumava
esquecer meus pertences por onde quer que fosse.
Foi por isso que vasculhei a minha mochila em
busca da agenda e, ao abri-la, qual não foi minha surpresa
ao me deparar não com minha letra grandalhona e redonda
demais, mas sim com a caligrafia sóbria e ligeiramente
inclinada para a direita, de Adônis? Eu não reparei a
existência outra agenda sobre a mesa dele quando fui
perguntar sobre o trabalho extra. No entanto, mesmo se
tivesse visto, poderia ter me confundido, já que as duas
eram idênticas — capa de couro sintético preto, sem
nenhum detalhe para identificá-las. Aliás, talvez fosse
uma boa hora para providenciar isso.
Raspei o polegar pelas quinas da agenda, tentada a
abrir e ler linha por linha. Era muito provável que não
encontrasse nada além de anotações cotidianas, eu sabia,
mas o desejo de conhecer um pouco mais sobre Chewie
me instigava a ir em frente. Ao parar para pensar nele,
percebi que provavelmente ainda não percebera a troca,
caso contrário já teria me procurado. Afinal de contas,
não era preciso saber muito sobre ele para perceber o
quanto era reservado.
Foi ao pensar nisso que desisti da ideia de
bisbilhotar. Embora a curiosidade fosse enorme, o clima
entre nós parecia suavizar exponencialmente. Na noite
anterior ele conversara de maneira amigável comigo,
como costumava fazer somente fora da universidade.
Tratava-se de um passo e tanto. Eu não podia jogar esse
avanço fora de jeito nenhum.
Respirei fundo e me espreguicei, decidida a
devolver. Ao passar pela sala, encontrei Arthur
cochilando no sofá. Lily tinha viajado antes mesmo de eu
acordar. Eu ficava triste em saber que meu amigo ficaria
sozinho pelos próximos dias, já que Pedro também
voltaria para a cidade natal. Recordava-me da nossa
primeira conversa, quando perguntei se ele tinha saudades
de Assis Chateaubriand e ele negara categoricamente,
afirmando não existir nada lá para ele. Então me passou
pela cabeça que, apesar de nos conhecermos tão bem,
sabíamos muito pouco a respeito de nossas histórias.
Saí para o corredor com o friozinho na barriga que
sempre precedia os encontros com Chewie. Abracei a
agenda sobre o peito e, com a mão livre, toquei a
campainha antes que acabasse amarelando. Os segundos
se atropelaram uns nos outros e me vi apertando o botão
mais algumas vezes antes de chegar à conclusão óbvia —
ele não estava em casa. Tentei uma última vez e voltei
para o quarto.
Se ele não voltasse a tempo, só conseguiríamos
trocar as agendas na volta. Em poucas horas eu estaria
dentro de um táxi, seguindo para a rodoviária e, depois
disso, em uma viagem com destino a Ourinhos, onde os
meus avós estariam me esperando. Acho que não
comentei, mas não existia ônibus que fizesse a linha direta
de Maringá/Santa Cruz do Rio Pardo e, por isso, nos
próximos quatro anos, precisaria ser sempre daquela
maneira.
Atirei-me na cama, ponderando as possibilidades
(que não eram muitas). Eu poderia deixar a agenda de
Adônis com Arthur e pedir para ele entregá-la por mim,
mas tinha certeza que o meu amigo não aguentaria
devolver sem dar uma espiadinha antes. E, muito
provavelmente, faria o mesmo com a minha.
Talvez eu pudesse deixar um recadinho embaixo
da porta. Assim, se ele voltasse a tempo poderia me
procurar e, se não voltasse, já ficaria avisado. Pulei da
cama em um rompante. Com certeza Hermione Granger
lidaria dessa forma com seus problemas, pensei,
orgulhosa de mim mesma. Pesquei o caderno de dez
matérias dentro da mochila, de onde destaquei uma folha.
Sentei-me na cadeira e a escrivaninha balançou um pouco
quando me apoiei sobre ela. Levei a ponta do lápis aos
lábios, mordiscando-o. Uma carta para Chewbacca...
como eu faria aquilo?
Caro professor, comecei, mas logo desisti e
apaguei. Formal demais, meu subconsciente alertou.
Eu me sentia tão boba por travar com coisas
corriqueiras, que muito provavelmente realizaria com
tranquilidade se não se tratasse dele. Por que aquele
simples detalhe mudava tudo? Por que pensar naquele
rosto me deixava tão desnorteada?
Com Adônis na cabeça, meus dedos começaram a
trabalhar sem que eu sequer me desse conta.

Chewie,
Talvez você não tenha percebido ainda, mas sua
agenda ficou comigo. Acho que peguei por engano um
pouco antes de fugir da sala de aula ontem à noite.
Prometo não ler nada se você prometer o mesmo. Este é
como um daqueles juramentos de mindinho e, portanto,
inquebrável.
Não que tenha alguma coisa importante por lá,
mas nunca se sabe, né?
Pretendo levá-la comigo para a minha cidade, só
por garantia. Arthur costuma ficar realmente curioso
quando está entediado e receio que estes quatro dias que
passará sozinho possam surtir esse tipo de efeito. Então
é melhor não arriscar.
Devolvo assim que eu estiver de volta. Desculpe
pelo inconveniente.
A propósito, aproveitando que estamos falando
— metaforicamente, é claro — sobre inconvenientes,
quero me desculpar por uma coisa da qual não tive a
oportunidade. Existe algo sobre as bebidas alcoólicas
que deveria estar impresso nos rótulos: elas são
malignas. É sério. O álcool vai parar na sua cabeça e
enquanto você dá risada pensando ser divertido, ele está
te metendo nas maiores confusões. Eu não recomendaria
nem para o meu pior inimigo. Tendo isso em mente,
saiba que a memória de certa noite envolvendo vômitos
dignos de filmes de terror e surtos psicóticos no
banheiro foi sob efeito dele (há uma grande chance de
você ter chegado a esta conclusão sozinho). Mas a
grande questão aqui é: eu não me lembrava de nada!
Fui bombardeada há alguns dias com essas
imagens embaraçosas e queria me desculpar pelo que te
fiz passar. Na verdade, muito obrigada por me ajudar
mesmo depois de eu ter te tirado do sério.
Estou te devendo uma.
Mas, por favor, não honre a fama de carrasco
quando for cobrar o favor.
Dê um beijo no Castiel,
Rebecca. (Não donzela, nem princesinha).

Terminei de escrever com um sorriso largo no


rosto e, depois de espiar o relógio e descobrir que eu
tinha usado mais tempo do que poderia, corri para fora
com urgência. Arrisquei uma última tentativa de tocar a
campainha, porém ele claramente não estava lá.
Mordendo o lado de dentro da bochecha, dobrei o papel
em dois e o empurrei para dentro da porta, imaginando
qual seria a reação de Chewie ao lê-lo.
Você vai rir, sem perceber
Felicidade é só questão de ser
Quando chover, deixar molhar
Pra receber o sol quando voltar

Marcelo Jeneci – Felicidade


Estiquei as pernas na chaise do sofá, alcançando
o controle e apertando o botão play. Inspirei
profundamente, sentindo o cheirinho de pipoca sendo
feita. Foi impossível evitar o sorriso largo brotar no
rosto. Semanas já haviam se passado desde a mudança de
cidade, porém a minha sensação era de como se nunca
tivesse saído dali.
Tudo permanecia igual de um jeito que reduzia o
meu coração ao tamanho de um grão de mostarda. Estar na
companhia das pessoas a quem mais amava no mundo
aumentava o peso da distância e me fazia temer o dia da
despedida. Dessa vez eu sofreria bem mais, sabia disso,
pois o frescor da novidade já havia terminado. Aliás,
tinha o pressentimento de que conforme o tempo passasse,
ficaria mais e mais difícil voltar ao meu novo lar depois
de cada visita. Balancei a cabeça, afastando os
pensamentos. Não adiantava sofrer por antecedência. O
melhor a se fazer era aproveitar minha curta estadia. Eu
lidaria com a saudade depois.
Na televisão, Drew Barrymore, com os cabelos
loiros em corte Chanel, atendia ao telefone. Eu já tinha
perdido as contas de quantas vezes assistira ao filme
Pânico, mas aquela cena continuava sendo a minha
favorita. Prendi a respiração quando o assassino revelou
estar na mesma casa.
— Ainda não me disse como se chama — falou,
com tom de deboche.
— Por que quer saber o meu nome? — ela
perguntou, dando uma risadinha nervosa.
— Porque quero saber para quem estou olhando.
Dei um pulo no lugar quando meu avô apareceu na
sala sorrateiramente, com o balde de pipoca em uma mão
e a garrafa de refrigerante na outra.
— Posso me juntar a você?
Sorri para ele, batendo com a mão no lugar vago
ao meu lado, como um convite silencioso.
— Pode. Mas só porque trouxe comida, viu?
Vovô riu gostosamente, sentando-se a poucos
centímetros de mim. Espiou a televisão e, ao perceber
qual era o filme, balançou a cabeça em negativa com um
sorriso largo.
— Você nunca cansa de Pânico?
— Já fazia um tempão que não via! — defendi-me,
enterrando a mão na bacia e agarrando um punhado de
pipoca.
— Um tempão? Nós assistimos na noite em que
saiu o resultado do vestibular.
— Então! — Pisquei para ele e nós dois caímos na
gargalhada.
Na televisão, o namorado de Drew Barrymore
apareceu morto na varanda da casa dela, com as entranhas
para fora.
— Ótimo filme para se ver em família, este. —
Brincou vovô e, como resposta, recostei a cabeça em seu
ombro, aconchegando-me. Ele até podia fazer piadinhas,
mas isso não mudava a realidade. Era o meu maior
companheiro cinematográfico.
Vovó ainda não tinha voltado do trabalho, porém,
ainda que estivesse em casa, arrumaria uma desculpa para
se esquivar caso a convidássemos a nos fazer companhia.
Diferente de nós, ela odiava filmes sangrentos e
acreditava que eles “traziam uma energia negativa”, de
acordo com as próprias palavras. Sempre que dizia isso,
porém, vovô balançava a mão como quem dizia “isso é
besteira” e piscava para mim, com cumplicidade.
Permanecemos em silêncio enquanto a personagem
principal levava a primeira facada. Aninhei-me ainda
mais contra meu avô, deleitando o momento. Quando ela
por fim morreu, ele deixou um beijo no topo da minha
cabeça, antes de falar.
— A ótica ligou há poucos minutos. Assim que
acabar aqui, nós vamos lá buscar os seus óculos, tá bom?
Assenti, apanhando mais pipoca e ocupando a
minha boca em mastigar. Chewbacca estava certo, no fim
das contas. O seu palpite sobre as minhas dores de cabeça
terem ligação com a vista foi certeiro. Comentei com
vovó sobre elas logo quando cheguei, há dois dias, e ela
conseguiu um encaixe com o oftalmologista da família sem
dificuldades.
Eu já havia me consultado com o doutor Seizi, um
atarracado senhorzinho japonês, umas duas vezes.
“Exames de rotina”, dizia minha avó, cada vez que
marcava algum médico para mim, sem um motivo
aparente. No entanto, em nenhuma das ocasiões eu tinha
saído com uma receita ocular para correção de miopia.
Fisguei o lábio inferior, incapaz de evitar as
lembranças de meu vizinho maringaense, afinal, graças a
ele descobri precisar dos óculos.
Peguei-me imaginando o que ele estaria fazendo
naqueles quatro dias de recesso. Teria viajado ou
permanecia recluso no apartamento, na companhia de
Castiel? Desde a minha chegada a Santa Cruz do Rio
Pardo, só fui capaz de pensar nele obsessivamente. Eu
simplesmente não conseguia tirá-lo da cabeça. Os
detalhes mais corriqueiros empurravam meus pensamentos
para seus olhos ocre esverdeados, ou o sorriso torto.
Minha mente arrumava a menor desculpa para se
concentrar nele.
Separei os lábios em espanto quando desviei o
olhar para uma árvore a poucos metros de mim e consegui
reparar em cada folhinha chacoalhando com o vento.
Involuntariamente, levei a mão direita à armação de
acetato, deslizando-a alguns centímetros pelo nariz, para
baixo e depois para cima. Sem óculos, com óculos. Sem
óculos, com óculos. Sem óculos, com óculos.
Em nome de Obi-wan Kenobi, eu estava cega!,
pensei, sem me importar em parecer uma louca no meio da
rua. Estive cética desde quando doutor Seizi me informara
sobre os meus dois graus de miopia em cada olho e, por
isso, precisava providenciar os óculos com urgência. Na
minha cabeça, existia a certeza de enxergar perfeitamente
bem.
Ledo engano!
Ali, tendo a prova viva da vista antes e depois da
correção, eu percebia o quanto minha visão estava
desfocada. Sem os óculos, enxergava o mundo como o
espelho cheio de vapor, depois de um banho quentinho.
Vovó me encarou, com um sorriso divertido no
rosto. Meu avô e eu havíamos passado no salão de beleza
dela para buscá-la, a caminho da ótica.
— Agora acredita no oftalmologista? —
perguntou, lembrando-me de que eu havia verbalizado as
minhas duvidas quanto à necessidade das lentes.
Minhas bochechas queimaram de vergonha.
— Tudo bem. Acho que ter estudado medicina por
anos fez com que doutor Seizi soubesse um pouquinho a
mais que eu, né? — perguntei, fazendo meus avós rirem de
mim.
Ela afagou meu rosto carinhosamente, pouco antes
de entrarmos no carro.
— Você não muda nada — sussurrou baixinho,
entre risos.
Enquanto sacolejávamos no carro e eu lutava para
me acostumar com a nova supervisão, meu celular vibrou
e eu o pesquei no bolso dos jeans, deparando-me com
uma mensagem de Arthur.

Qual é a nova?
Excelente timing, o seu. Acabei de sair da ótica.
Estou usando óculos.

O quê?!! Minha bonequinha predileta ganhou


mais pontos na escala nerd? Isso era MESMO possível?

Ri em deleite, percebendo o quanto estava com


saudades do meu amigo-tartaruga com cheiro de incenso.

Você é um insuportável, alguém já disse?

Mais vezes do que imagina, haha.

Vou demorar a me acostumar com os quatro


olhos.

Mostra para mim! Aposto que continua linda.

Estiquei o braço em frente ao rosto, abrindo na


câmera frontal e tirando uma selfie. Mandei-a para o meu
amigo logo em seguida. Sua resposta chegou alguns
segundos depois.

Porra, você, sim, é uma insuportável. Quase me


faz duvidar da minha sexualidade agora.

Fique sabendo que vou contar isso ao Pedro.

Eu te mato!
Estou tirando print da conversa...

Rebecca!!!

É brincadeira, hahaha.

Sinto sua falta.

Meu peito se comprimiu. Tadinho, eu podia


imaginar quão solitários os seus dias corriam.

Eu também. Muita.
Hoje, aqui. Amanhã não se sabe
Vivo agora antes que o dia acabe
Neste instante, nunca é tarde
Mal começou e eu já estou com saudade

LS Jack – Amanhã não se sabe


Revirei-me na cama, acesa como uma lâmpada.
Tateei o lençol em busca do celular e, ao descobrir já
passar das duas, expirei desanimada. Não vou conseguir
dormir tão cedo, constatei. A grande coisa sobre a insônia
é que quanto mais se pensa sobre a necessidade de
dormir, mais ansioso se fica e mais tempo se leva para
adormecer.
Naquela noite, meus pensamentos encontravam-se
quase na velocidade da luz. Não conseguia tirar o foco de
Adônis por um segundo sequer. No entanto, quanto mais
refletia sobre os últimos acontecimentos e a forma como
ele fazia eu me sentir, menos me assustava a perspectiva
de estar apaixonada. Sim, porque era exatamente isso.
Agora eu entendia com clareza.
Claro que vovó tinha me ajudado a enxergar isso
com um pequeno empurrãozinho, logo depois do jantar,
quando me procurou para uma conversa. Ela sabia mais
sobre mim que eu mesma. Deve ter percebido logo no
primeiro dia a existência de alguma coisa ocupando minha
cabeça, mas se segurou para ver se eu abordaria o assunto
primeiro.
— Você está tão aérea, Becca. — Sua voz era
bondosa. — E, além disso, esse seu hábito sempre piora
quando está inquieta com alguma coisa. — Roçou
suavemente o polegar contra o meu lábio inferior em
frangalhos.
Desviei a atenção para os meus pés, com o
coração dando uma forte guinada somente ao pensar no
assunto.
— É por causa da... notícia?
Ergui o rosto de uma vez, em busca de seus olhos
castanhos. Demorei alguns segundos para compreender ao
que se referia. A gravidez da minha mãe, é claro. Como
pude esquecer?
— Não. — Pigarreei, desconcertada. — Na
verdade nem tive chance de pensar muito sobre isso.
Fiquei um pouco chocada no dia, mas estão acontecendo
tantas coisas... Acabei deixando passar.
Dei de ombros, como se o simples gesto
explicasse tudo se passando em minha cabeça.
— Quer conversar sobre isso? — perguntou,
dando tapinhas na minha coxa.
Encarei-a significativamente, carinho
transbordando em mim. Isso era uma das coisas as quais
eu mais amava nos meus avós — eles me davam espaço.
Quero dizer, a maioria das pessoas provavelmente
presumiria que ser criada por eles me deixaria mimada e
despreparada para a vida, no entanto era muito pelo
contrário. Eles jamais facilitaram muito as coisas para
mim, como a maioria dos avós. Porque, na verdade, eles
eram mais que isso. Eu os via como pais e sabia ser vista
como filha, afinal a diferença de idade entre nós não era
exatamente grande. Minha mãe me tivera muito cedo.
Apesar de muito carinhosos e protetores, eles também
entendiam o quanto era importante arriscar os meus
próprios passos sozinha. E por essa razão o diálogo entre
nós sempre funcionou bem. Jamais omiti ou menti para
eles, porque sabia que, antes de qualquer coisa, tentariam
entender o meu lado.
— Tem esse professor, que também é o meu
vizinho — ouvi-me dizendo. — todos o chamam de
Carrasco e não é sem motivo. Pelo menos não em sala de
aula. Bom, ele está me tirando do sério...
As palavras escapavam facilmente dos meus
lábios. Aproveitei a oportunidade para esvaziar todas as
dúvidas me inflando. Céus, eram tantas questões! Na
verdade, aquilo era exatamente o que eu precisava — ter
alguém com quem conversar a respeito. Guardar tantas
mudanças sem poder compartilhar com outra pessoa
estava me deixando paranoica. Além disso, vovó
compreendia como eu levava meu sonho a sério. Ela sabia
quão importante era não dar os mesmos passos errados da
minha mãe. Porém, ela também sabia que não adiantava
me enganar. Não era inteligente. E foi exatamente isso o
que me falou.
— A vida não é oito ou oitenta, Becca. Eu sempre
te falo isso, querida. Existe uma gama enorme de
tonalidades de cinza no caminho. Esse ano você completa
dezoito anos, já está na faculdade... não é mais uma
criança. Eu sei como se sente, compreendo o seu medo.
Mas não precisa se castigar por erros que não são seus.
Não precisa ser tão rígida consigo mesma, meu bem. Não
é justo. Você precisa viver, afinal a vida é uma só e passa
voando. — Seus dedos passearam pelos meus cabelos,
prendendo uma madeixa atrás da orelha. — Ir a algumas
festas, se apaixonar... nada disso é errado se você
encontrar o equilíbrio. Errado é se limitar por medo.
Vovó estava certa. Sempre estava. Era muito sábia.
Acendi o abajur ao lado da cama, sentando-me e
abraçando os joelhos. Conversar com ela foi bom para
abrir os olhos. Tudo bem, eu tinha um sonho e ele era
certo como o ar entrando em meus pulmões. Porém, não
precisava viver para ele. Ou, ao menos, não só para ele.
Se eu soubesse organizar todos os setores da minha vida,
ficaria tudo bem. Admitir meus sentimentos por Adônis
não me tornaria igual a minha mãe.
Além do mais, encarar a verdade de frente me
possibilitaria vivenciar todas as sensações novas e
deliciosas sem ficar sofrendo por isso. Eu estava disposta
a demonstrar para Chewie meus sentimentos e ver no que
daria. Esfreguei o rosto. De repente, meu peito encheu de
saudade. Sem pensar muito, pulei para fora da cama e
alcancei minha mala, vasculhando-a a procura da agenda
dele.
Sorri, sentindo-me uma garota travessa enquanto
abria em uma página aleatória. Eu adoraria encontrar
todos seus segredos descritos nas linhas sóbrias, porém
deparei-me apenas com anotações de compromissos,
entregas de trabalhos, provas, etc. Deveria saber que
aquele homem contido não sairia escrevendo sua vida,
assim, tão facilmente. Adônis não fazia o tipo que tinha
um diário.
Folheei as páginas, passeando os olhos pela
caligrafia tão dele. Rocei a ponta do dedo por uma
palavra qualquer, imaginando-o traçar aqueles mesmos
movimentos. Avancei mais algumas folhas e, então,
surpreendi-me ao encontrar algo fugindo do padrão.
Ah, se eu pudesse escapar
das ondas de saudade
e do salgado do mar.

Ah, fosse fácil velejar


em águas agitadas
e apenas te amar.

Ah, mas é preciso navegar


pelas terras longínquas
que fiquei de explorar.

Ah, como eu queria parar de sonhar


com aqueles tempos
que jamais vão voltar.

Ah, se eu pudesse esquecer


que já estive à mercê
de toda a solidão.

Mas agora abri mão


e eis que vou sentindo a brisa.

Hoje não vou aceitar


Ficar sozinho no cais.
Me leva daqui, me leva praí
Você me faz feliz demais.

Meu coração bombeou sangue mais depressa para


o corpo. Em questão de segundos, minhas mãos suaram
frio e o estômago revirou. Li os versos do que parecia ser
um poema pelo menos três vezes. Porém, quanto mais eu
lia, mais se assemelhava ao esboço de uma música. Uma
lamúria. Tinha mais a ver com ele. Enfim, não importava.
A questão realmente relevante era a de parecer conversar
comigo. Tal como na aula logo depois de eu ter dormido
em sua casa... Cada palavra me dizia alguma coisa. Com a
diferença de que, dessa vez, fora escrita por suas mãos
longilíneas, pensadas pela cabeça indecifrável. Arranquei
uma lasca dos lábios e nem ao menos senti. Com o nariz
praticamente grudado na folha, deitei na cama novamente
e absorvi a mensagem cravada com a caligrafia de Adônis
repetidamente, até adormecer.
Nem vi você chegar
Foi como ser feliz de novo
Nem vi você chegar
Foi como ser feliz

Cícero – Ensaio sobre ela


Voltar para Maringá depois de passar alguns dias
na companhia dos meus avós foi muito doloroso. Era mais
fácil me inserir na nova rotina quando existiam tantas
novidades me entretendo e tantos trabalhos me ocupando.
O problema era que, ao voltar para Santa Cruz do Rio
Pardo, eu havia lembrado tão bem da única vida
conhecida por tanto tempo e aquilo despedaçou o meu
coração. Embora eu tivesse a certeza de que viver aquela
experiência era o meu maior desejo — afinal, levava-me
em direção aos meus sonhos —, isso não amenizava a dor
aguda no peito. Parecia ter uma farpa o espetando e eu
ansiava por me livrar dela.
Agradeci aos céus pelo fato de a viagem ter sido
durante a noite. Além disso, tive a sorte de ninguém ter se
sentado do meu lado, pois, assim, pude chorar à vontade,
até o sono me embalar. Quando o ônibus estacionou na
rodoviária, por volta do meio-dia, eu já estava
consideravelmente melhor do que quando embarcara.
Digitei uma mensagem rápida para vovô, avisando
sobre minha chegada. Logo depois, tomei um táxi e me
escorei contra a janela, observando as ruas tão opostas de
onde eu tinha vindo, passando rápidas ao nosso redor.
Diferente da minha cidade natal, as corridas por ali eram
simplesmente um roubo. Por um trajeto durando míseros
minutos, eu desembolsara o equivalente às minhas
refeições pelo período de uma semana. No entanto, só a
perspectiva de chegar rápido ao meu apartamento já
compensava isso. Sentia-me exausta pela noite mal
dormida (por mais confortável que o ônibus fosse, jamais
seria a mesma coisa do que a nossa cama macia, não?) e
com um abismo dento do estômago.
Pulei para fora do carro e segui para o bloco G,
notando o fluxo de pessoas caminhando no estacionamento
maior que habitualmente. Talvez estivessem todos
chegando, assim como eu. Parei de frente para a escada e
expirei, arrependida por ter levado tanta bagagem para
Santa Cruz. Meus olhos foram involuntariamente para a
mala de rodinhas grandalhona e a roliça valise — isso
sem contar na mochila abarrotada arruinando a minha
coluna — apenas esperando para serem transportadas por
três lances de escadas. Ok, acho que da próxima vez será
mais inteligente levar a menor quantidade possível de
coisas, pensei desanimada. Fiz um rápido alongamento
dos braços e, em um ímpeto de coragem, encarei o
desafio.
Bastaram poucos degraus para minha postura de
durona escorrer pelo ralo, é claro. Meus dedos
começaram a ficar roxos e os braços moles, de tanto
carregar peso. Na metade do caminho, eu já tinha
arranhado as canelas vezes o suficiente para xingar em
voz alta e suava como uma garrafa de água recém tirada
da geladeira. Quando cheguei ao meu andar, fiz uma prece
de agradecimento por ter chegado (praticamente) ilesa.
Os dedos dormentes atrapalharam a função de
abrir a porta, mas a sensação libertadora de atirar toda
aquela porcaria no chão fez todo o doloroso percurso
valer a pena. Ocupava-me em massagear os pulsos quando
notei o papel próximo ao meu pé.
Sem pensar duas vezes, abaixei-me para alcançá-
lo, atraída pela forma tão cuidadosa com a qual fora
dobrado. Nem tive tempo de refrear meus dedos, pois,
quando percebi, o bilhetinho já se achava aberto. Eu
reconhecia aquela caligrafia ligeiramente inclinada para o
lado, como se estivesse em itálico.
Meu coração disparou de uma vez, diante da
expectativa. Encaminhei-me até a mesa, com os olhos
pregados nas palavras escritas por Chewie, para logo em
seguida arrastar uma cadeira e me sentar.

“Princesinha-donzela,
Você não me engana, ok? Sou levado a acreditar
que foi um plano muito bem arquitetado para parecer o
simples acaso. Mas estou de olho! Se você queria tanto
espionar minhas anotações, era só pedir com jeitinho
(igual quando veio contestar a nota, por exemplo).
É óbvio que eu jamais leria nada sem o seu
consentimento. Seria uma invasão de privacidade. Pode
ficar tranquila, afinal de contas, sou o Chewbacca, não
sou? Altamente confiável. Você, mais que ninguém,
deveria saber disso.
Sobre o tal evento traumático (essa é uma
palavra que você provavelmente diria), espero
tranquilizá-la repetindo algo que já falei antes: não
vamos remoer o passado.
E já que você tocou no assunto álcool, qual é
exatamente o seu lance com ele? Fiquei um pouco
preocupado com certa listinha intitulada como COISAS
PARA NUNCA MAIS FAZER. Não que eu tenha lido sua
agenda. Eu seria incapaz disso. Mas você sabe, existe a
chance de ela ter aberto acidentalmente e eu, sem a
intenção, passado os olhos sobre algo aqui ou ali.
Como, por exemplo, no adorável lembrete do dia
14/03: TRABALHO DAQUELE IDIOTA PARA
ENTREGAR!!!
Ou então o do dia seguinte: TENTAR TIRAR UMA
FOTO DO CHEWBACCA PARA COSTURAR NA BOCA
DE UM SAPO.
E talvez eu também tenha visto esse aqui, do dia
22/03: DONZELA É A VACA DA MÃE DELE!
Sobre estar me devendo uma: Castiel mandou
dizer que tem saudades. Que tal passar aqui para
devolver a minha agenda?
A.”

Ouvi minha gargalhada repercutir pela cozinha.


Minhas bochechas emanavam calor de vergonha, mas, por
outro lado, eu também tinha espionado um pouco da vida
dele, não era?
No entanto, a surpresa pela resposta que nem ao
menos esperava me deixou com um sorriso bobo no rosto.
Alisei o papel e reli pelo menos umas quatro vezes,
imaginando-o escrever aquilo para mim. “Castiel mandou
dizer que tem saudades”, por Freddy Krueger, ele me
convidou para uma visita! Meu estômago se parecia com
uma máquina de lavar louça.
Coloquei água para esquentar no fogão, decidida a
ir por partes. Minha vontade era simplesmente correr para
o apartamento dele, mas não podia ignorar minhas
necessidades fisiológicas. Separei um macarrão
instantâneo de tomate de dentro do armário da cozinha e
peguei as malas outras vez, arrastando-as para o quarto.
Só então me ocorreu que o apartamento se achava
muito vazio. Quero dizer, onde estava Arthur? Bati na
porta dele e, como não tive resposta, entrei. Encontrei o
cômodo vazio. Torcendo o rosto em uma careta, tomei o
celular na mão e digitei uma mensagem.

Acabei de chegar. Onde você está? Mudou de


ideia e voltou para casa?

Engoli o almoço com pressa, ouvindo a voz de


vovó ecoando pela mente. “Isso faz mal, Becca!”, ela
disse todas as vezes que me encontrou comendo como uma
louca, durante os quatro últimos dias. Em minha defesa, a
comida era realmente boa e eu não podia dizer ao meu
estômago para ir com calma, seria uma maldade sem
tamanho.
Esqueci-me de tirar os óculos para tomar banho e
só me dei conta de ainda estar com eles quando gotículas
de água se projetaram em minha visão. Depois disso, sofri
por tempo considerável escolhendo uma roupa adequada.
Uma pilha havia se formado sobre a cama, com peças
descartadas (coisa que jamais fizera antes). Acabei
escolhendo um vestido soltinho cinza, ele se parecia com
um camisetão. Meus olhos correram pela pequena
coleção de All Star e optei pelo branco. Tirei o frasco de
perfume de dentro da mala e espirrei contra o colo. Um
friozinho de ansiedade crescia dentro de mim.
Parei de frente para o espelho, com o coração
desgovernado. Ajeitei os óculos, empurrando-os para
cima com o indicador. Assentei a franjinha com calma e
usei os dedos para ajeitar o restante do cabelo. Inclinei o
tronco em direção à escrivaninha, pescando um batom
coral comprado na minha cidade natal. Nunca fui muito de
usar maquiagem fora de contextos que exigissem. Não que
eu não gostasse, pelo contrário, achava lindo. Só não tinha
muita oportunidade, dado o fato de minha vida se resumir
a estudar e ficar trancafiada em casa. Mas ali, prestes a
encontrar Adônis depois de alguns dias sem vê-lo, parecia
um pecado não dar uma cor a mais para o rosto.
Uma vez que eu simplesmente admiti para mim
mesma a forma como ele me balançava por dentro, tornou-
se mais fácil lidar com todos os sentimentos novos e
inesperados. Já não me assustava mais a ideia de nós dois
sozinhos. Eu, na verdade, sentia-me radiante pelo convite.
Não que fosse de fato um encontro, ou algo do tipo. De
toda forma, era uma chance a mais de ficar perto dele. E
se pudesse chamar sua atenção, era ponto para mim.
Talvez ainda não soubesse nada sobre estar apaixonada,
porém não era tarde para aprender.
Ao pisar fora de casa, meu celular vibrou
indicando uma nova mensagem. Era Arthur.

Estou no Pedro, ele chegou ontem, graças a


Deus. Nunca mais me deixem sozinho, por favor! Estou
morrendo de saudade, bonequinha. Logo mais volto! <3

Sorri, com um pouco de pena dele. Quando nos


encontrássemos novamente, perguntaria a razão para ter
preferido ficar em Maringá. Chegara a hora de conhecer
um pouco mais sobre meu amigo.
Respirei fundo, empertiguei-me e apertei a
campainha de Chewie. Que a força esteja comigo, que a
força esteja comigo, que a forç...
A porta foi aberta de uma vez, revelando-o do
outro lado. Seus olhos pareceram brilhar por um
momento.
— Estava mesmo pensando em você, donzela.
Fiquei com medo de o recado ter sido interceptado.
— A sua sorte foi que Arthur não estava em casa
— falei, fazendo-o rir.
Então ele me olhou com atenção e suas pálpebras
se estreitaram ligeiramente.
— Espera aí. — Um sorriso entortou seus lábios e
eu soube qual seria a pauta antes mesmo dele falar. —
Parece que estava certo sobre as dores de cabeça nada
dramáticas — meu vizinho deu ênfase nas últimas
palavras.
Revirei os olhos, fingindo pouco caso.
— Sim, você é o cara — brinquei e ele assentiu,
forjando uma expressão orgulhosa. — Descobri que tenho
miopia e só acreditei quando coloquei os óculos.
— Mudou muito?
— Hum... digamos que agora eu tenho visão raio
X.
Ele riu em deleite. O som aqueceu algo dentro de
mim.
— Ficou muito bom, a propósito.
— O quê? — perguntei distraída.
— Os óculos. Eles te deixaram com mais cara de
inteligente. Ficou linda.
O elogio me devolveu o mesmo sorriso idiota de
quando eu lera sua cartinha pela primeira vez. Ele deu um
passo ao lado, deixando-me entrar. Eu nem ao menos tinha
reparado que permanecíamos parados no corredor. Esse
era o efeito dele em mim — deixava-me flutuando e
apagava o resto do mundo.
Estar de novo em seu apartamento foi
estranhamente nostálgico. Inspirei, deliciando-me com o
meu cheiro predileto, aquele perfume amadeirado e forte
que combinava tanto com ele.
Quando ameacei parar na cozinha, suas mãos
tocaram minha cintura com suavidade, guiando-me pelo
corredor a caminho da sala. Arquejei em surpresa e, por
isso, ele explicou.
— Castiel e eu estávamos começando a assistir O
Iluminado.
— Não acredito! Eu adoro esse filme.
— Então parece que escolhi bem.
— Tá brincando? Melhor impossível. — Então fiz
a minha melhor imitação de Jack Nicholson, com direito a
uma expressão psicótica e tudo mais. — Here’s Johnny!
— Bastou nossos olhares cruzarem para que caíssemos na
gargalhada.
Mal tive tempo de me ajeitar no sofá de frente
para a televisão e Castiel pulou da janela, onde estava
aprumado, indo até mim. Ficou arrastando seu corpinho
roliço contra as minhas pernas vezes o suficiente para que
eu o segurasse — o que exigiu um pouco de força, pois o
gato era obeso. Levei-o até meu colo, afundando a mão em
seu pelo alaranjado em um cafuné.
— Ele gosta de mim! — murmurei, admirada.
— Ah, ele gosta — Adônis respondeu de um jeito
engraçado e, ao olhar para ele, encontrei-o com as íris em
brasa.
Não quero fechar meus olhos
Não quero pegar no sono
Porque eu sentiria a sua falta, baby
E eu não quero perder nada
Porque mesmo quando eu sonho com você
O sonho mais doce nunca vai ser suficiente
Aerosmith – I don’t want to miss a thing

Não sei exatamente como aconteceu, mas acabei


adormecendo em determinado momento. Ainda estava tão
cansada da viagem e mal tive tempo de me recompor antes
de encontrar Adônis. Afinal de contas, era domingo, no
dia seguinte eu voltaria para a realidade e, por isso,
queria aproveitar ao máximo o nosso tempo juntos.
De toda forma, as coisas não foram exatamente
como o planejado, porque em um segundo encontrava-me
absorta nas imagens passando na televisão à nossa frente
e, no seguinte, não me lembrava de mais nada.
Despertei de um sono calmo que parecia ter
durado uma eternidade. Eu sentia um suave carinho na
cabeça, perto da nuca, em movimentos de vai e vem. O
contato mandava ondas de arrepio para o corpo todo, era
delicioso. Abri os olhos e pisquei algumas vezes, tentando
me situar. Eu me achava com a cabeça recostada sobre o
peito de Adônis e nós estávamos praticamente deitados no
sofá.
Céus...
Estremeci ligeiramente. O prazer se alastrava
pelas minhas entranhas. Por Peeta Mellark, como aquilo
tinha acontecido? Na minha última memória, nós
permanecíamos apenas sentados um ao lado do outro,
assistindo inocentemente ao filme. Será que eu tinha
apagado do nada e despencado nele? Não era um
problema para Chewie, no entanto, pois ele fazia aquilo
com as mãos e era tão relaxante. Eu poderia simplesmente
fechar os olhos e voltar a dormir.
Castiel brincava com uma bolinha vermelha a
poucos centímetros do sofá. Conforme sua patinha a
acertava, um barulhinho metálico vinha de dentro do
brinquedo, deixando-o ensandecido. Sorri, sentindo-me
aconchegada naquele apartamento e desejando com todas
as forças que o momento durasse para sempre.
Meus olhos focaram na televisão e percebi que
não era mais O Iluminado passando ali, e sim um episódio
de Stranger Things. Eu idolatrava a série e já tinha
assistido a primeira temporada duas vezes, por isso não
foi difícil reconhecer. Fisguei o lábio inferior, ao tentar
adivinhar a quanto tempo dormia. Considerando que o
filme tinha duas horas e meia de duração, não era pouco.
A constatação me fez remexer no lugar e, ao menor
movimento, Adônis tirou a mão de mim. Lamentei por isso
silenciosamente. Se dependesse de mim, ele não tiraria as
palmas de mim nunca mais.
Bocejei da maneira mais convincente que pude,
fingindo ter acabado de acordar. Espreguiçando-me,
levantei-me do seu colo, embora estivesse muito
confortável e quentinho.
— Eu dormi? — perguntei o óbvio.
— Nos primeiros vinte minutos. — Ele sorriu
genuinamente. — Stephen King e Stanley Kubrick estão
muito decepcionados com você.
— Que tipo de fã eu sou?
— O tipo poser, é claro.
Meu queixo caiu. Encarei Adônis com sangue nos
olhos e ele sorriu maliciosamente.
— Você não disse isso!
— Eu disse, sim.
— Você está tão ferrado! — bradei, agarrando
uma almofada e atirando contra seu rosto.
Sua gargalhada espontânea foi como um
combustível. Alcancei outras duas almofadas e as joguei
contra ele de maneira impiedosa. Adônis segurou o meu
pulso quando estava prestes a alcançar mais uma
almofada, imobilizando-me.
— Você acha mesmo que vai entrar na minha casa,
dormir no começo do filme, jogar almofadas em mim e
ficar por isso? — perguntou, inclinando-se sobre mim
enquanto prendia o outro pulso.
Arregalei os olhos ao perceber qual seria o
próximo movimento.
— Adônis, não! — ameacei, quando ele conseguiu
segurar meus dois braços com uma só mão. Não era de se
surpreender, afinal seus dedos eram muito longos. Eu até
imaginava outras partes do corpo...
— Tarde demais, donzela. Você despertou a ira
wookiee!
Minhas gargalhadas saíram antes mesmo de seus
dedos alcançarem minhas costelas. Contorci-me
desesperadamente, lutando para me soltar. Contudo, isso
apenas servia como pretexto para as cócegas aumentarem
a intensidade.
— Chega... para... — pedi, ofegante.
— O quê? — ele provocou. — Não estou ouvindo.
Precisa pedir com jeitinho.
Seus dedos afundaram ainda mais na minha carne,
arrancando lágrimas dos meus olhos.
— Por... favor... Chewie! — arfei, com a barriga
doendo de tanto rir.
Ele me soltou e saiu de cima de mim logo em
seguida, um sorriso vitorioso estampava o rosto. Mesmo
um pouco escondido pela barba, o sorriso era lindo.
Fechei os olhos, com a respiração entrecortada. Minha
pele ainda formigava onde fora tocada e eu sentia uma
leve comichão nas bochechas.
— Você é terrível! — murmurei, quando
finalmente recuperei o fôlego.
— Engraçado... Eu ia dizer o mesmo. — Mostrei a
língua para ele, usando meus braços trêmulos para me
sentar novamente. — Isso me lembra, aliás, que você
ainda está com a minha agenda!
Ele fez uma careta acusatória, como se tivesse me
pego no flagrante de alguma situação muito embaraçosa.
Bati a mão na testa, com o rosto quente.
— Como pude me esquecer do principal? —
repreendi-me.
— Isso só comprova a minha teoria.
— Tudo bem. — Joguei as mãos para o ar, como
se me entregasse. — Você me pegou. Foi mesmo um plano
arquitetado. Queria ler suas anotações.
Chewie jogou a cabeça para trás, rindo. Foi
impossível não acompanhá-lo.
— Touché! — Ele piscou para mim. E então, ao
perceber que eu tinha me levantado, perguntou. — Onde
está indo?
— Buscar a agenda.
— Agora?
— É ali do outro lado.
— Eu sei, mas não preciso dela neste momento —
falou em um tom suplicante.
Sorri, sentindo-me lisonjeada. Buscar a tal agenda
no meu quarto não levaria mais de cinco minutos, porém
ele me queria ali, em sua companhia. A constatação
aqueceu meu coração.
— Tudo bem, eu fico.
— Escolha sensata, donzela. Muito sensata.
Sua satisfação foi traída pela voz. Ele sacudiu o
indicador no ar, como se tivesse acabado de recordar de
alguma coisa muito importante. Logo em seguida girou nos
calcanhares, deixando-me na sala por poucos segundos.
Quando o vi retornar com o violão, senti as mãos
suarem frio. O que ele vai fazer?, perguntei-me, incapaz
de desgrudar os olhos dos bíceps contraídos.
Lendo a dúvida no meu rosto, adiantou-se em
responder:
— Fiquei te devendo uma aula.
Não pude evitar o sorriso.
— Smoke on the Water? — perguntei, lembrando-
me da primeira vez em que estivera ali. Ele assentiu,
sentando-se ao meu lado.
— Animada?
— Muito — admiti. — Será que vou conseguir?
— Bom, como sou um excelente professor, pode
ser que dê conta. Mas não prometo nada.
Bati meu ombro no dele, enquanto ríamos como
crianças que comeram uma quantidade alarmante de
açúcar.
— Você está perdendo o amor à vida muito rápido,
Chewie. Tome cuidado.
— Calma, está mesmo me ameaçando? Já se
esqueceu da fúria wookiee?
— Ah, não. Não vou esquecer tão cedo, pode
apostar. — Pisquei para ele, risonha. — Então, você vai
virar um insuportável para me ensinar, ou podemos
continuar assim mesmo?
Adônis me estudou por alguns segundos com as
íris brilhando e uma expressão impagável no rosto. Eu
adoraria ser o Charles Xavier em momentos como aquele,
apenas para ler os pensamentos daquele homem
enigmático. Ele umedeceu os lábios e assentiu
brevemente, parecia estar deliciado com alguma piada
interna. Logo em seguida dobrou o tronco para frente,
colocando o violão no meu colo com cuidado.
— Você nem me perguntou se eu era canhota! —
protestei, observando-o dar a volta no sofá e parando logo
atrás de mim.
— Não preciso perguntar, eu te vejo todos os dias.
— Andou reparando em mim, professor?
— Mais do que imagina — respondeu, soprando
as palavras quentes contra a pele sensível da minha nuca.
Todos os pelos da espinha se levantaram de uma só vez.
Olhei por cima do ombro, desconcertada com a
proximidade entre nós.
— O que está fazendo?
— Te ensinando?
— Ah, sim... certo — resmunguei.
Seus dedos longos foram de encontro à minha mão
esquerda, fechando-a ao redor do braço do violão.
— Na verdade é bem fácil tocar essa música —
disse, apoiando o queixo no meu ombro, como fizera na
escadaria pouco antes do feriado de Páscoa. Eu não
participara de tantas aulas ao longo da vida para usar
como parâmetro, mas não precisava ser muito inteligente
para deduzir que em nenhum lugar do mundo os
professores ensinavam a tocar violão assim. Dane-se, por
mim estava ótimo, embora dificultasse um pouco me
manter atenta às instruções.
— Você coloca esses dois dedos na terceira e
quarta corda. — Soprou contra minha orelha, provocando
uma corrente elétrica nas minhas extremidades. — A
única coisa que precisa fazer é deslizar pelas casas... 0, 3,
5, 0 3, 6, 5. Desse jeito. — Sua mão guiou a minha pelo
braço do violão e não pude deixar de associar a quando
era muito nova e pedia para vovô dançar comigo, então
ele me equilibrava sobre seus pés e dançava sozinho. A
diferença gritante era que eu não ficava inteira arrepiada
com o meu avô, como fiquei com Adônis.
O riff característico da música percorreu a sala
contribuindo com o momento tão sensual. Eu juro, queria
tentar. Sempre adorei aprender coisas novas e queria
mostrar a ele o quanto era esperta e rápida. Mas Chewie
se aninhou ainda mais em mim, de modo que senti seu
peito subindo e descendo contra as minhas costas.
Paralisei diante da proximidade, temendo que um único
movimento o fizesse se afastar subitamente. Eu não queria
quebrar aquele momento por nada.
— Quer que eu mostre de novo? — perguntou com
a voz rouca. Parecia cheia de desejo. Foi o suficiente para
tornar o ar rarefeito. Minha respiração começou a ficar
mais rápida e eu não pude evitar fechar os olhos. Ele
agarrou minha mão outra vez, demonstrando os mesmos
movimentos de segundos atrás. Dessa vez, no entanto, não
ouvi nadinha. Estava aprisionada naquele instante.
Adoraria estendê-lo ao máximo.
Então, como se estivesse tentando me
desestabilizar, Adônis roçou a ponta do nariz na parte de
trás da minha orelha com suavidade. Sua barba raspou no
meu pescoço e a soma dos dois contatos foi demais para
aguentar. De repente, meu corpo reagiu de uma forma
alucinante que eu jamais experimentara antes. Todo o
calor se concentrou no meu ventre e senti o meio das
pernas ficando úmido. Sem perceber o que fazia, inclinei
um pouco mais o tronco para trás, forçando as costas
contra ele. Aquele novo mundo que me era apresentado
aos poucos me alucinava. Estava sedenta por mais e mais.
Céus, como eu o queria!
Sua respiração quente acariciava a minha pele
quando o ouvi gemer baixinho. Apesar de, para mim,
aquele som ter sido um combustível a mais para a
sensação lasciva me dominando, para ele pareceu servir
como uma âncora, puxando-o de volta para a realidade.
Adônis se desvencilhou, tal como fizera na escada. Torci
o rosto em uma careta de decepção, agradecendo por ele
não poder enxergá-la. Em situações como aquela, eu
percebia que ele se sentia tão ávido em ir em frente
quanto eu, mas algo o deixava com um pé atrás.
Era como se ansiasse por dar uma volta na enorme
montanha-russa que é o amor, mas seu medo de altura o
impedisse de tentar. Eu apenas queria dizer a ele que
estava tudo bem, porque também temia e seria tudo mais
fácil se pudéssemos dar as mãos e acalentar um ao outro
no percurso.
Pigarreando suavemente, ele se afastou do sofá.
Ao encará-lo, encontrei-o esfregando o rosto. Estava um
pouco pálido e inexpressivo.
— Que tal tentar sozinha agora? — perguntou por
fim, quando me pegou com os olhos fixos nele.
Quanto tempo antes de eu entrar?
Antes que inicie, antes que eu comece?
Quanto tempo antes de você decidir?
Antes que eu saiba qual é a sensação

Coldplay – Speed of sound


Apesar de chateada, decidi não me abalar. Eu
não tinha experiência quando se tratava de sentimentos.
Na verdade, não tinha experiência alguma com a vida, em
geral. Começava a minha, no fim das contas. Ainda não
sabia ao certo o que pensar, tampouco quais passos dar,
porém tinha uma certeza — ele despertara uma parte
minha da qual eu desconhecia a existência. Sempre
acreditei que a paixão não fosse para mim. Nunca me
passou pela cabeça que ficaria daquela maneira por
alguém. Em vista disso, não desistiria tão cedo do que
quer que estivesse acontecendo entre nós. Não quando ele
demonstrava estar igualmente abalado. Igualmente tentado.
Estávamos no mesmo barco. E, além do mais, era tão
envolvente. Eu não podia deixar de lado o que o meu
corpo pedia quase com desespero. Então, talvez, se eu
seguisse cautelosamente, conseguisse alcançar seu
coração da mesma maneira como ele alcançara o meu.
E, por isso, em vez de deixar o clima se dissipar,
fiz uma nova tentativa de reacendê-lo.
— Acho que não nasci mesmo para isso —
brinquei, com a voz um pouco trêmula. — Vou deixar para
quem sabe — disse, estendendo o violão para ele
desajeitadamente. — Toca alguma música para mim.
Ainda não tive oportunidade de conferir se você é bom ou
se é só balela.
Chewie sorriu, abandonando a rigidez adotada
desde que se afastara. Tomou o instrumento para si,
meneando a cabeça em um movimento quase
imperceptível. Permanecendo taciturno, sentou-se no outro
sofá e tamborilou os dedos contra a madeira lustrosa, com
o olhar vago de quem buscava alguma música no fundo da
memória.
Alguns segundos depois, observei-o se enrijecer
de excitação, aprumando-se e começando a arriscar
algumas notas.
— Essa aqui — ele disse, com as íris brilhando
novamente. —, é a preferida de Castiel.
Pisquei para ele, relaxando corpo contra as
almofadas macias. Quando de fato começou, precisei
prender a respiração, absorta com a intensidade do
momento. Seus dedos longos passeavam pelas cordas
metálicas com a facilidade que só se adquire com os anos.
Embora fosse difícil acompanhar suas mãos trabalharem,
era bonito de ver a maneira como se entregava à música.
A postura mudou completamente em uma fração de
segundo. Se no dia-a-dia Adônis fazia o possível para se
esconder por trás de uma casca grosseira e rudimentar, ali
ele se expunha por livre e espontânea vontade. De olhos
fechados, fazia os acordes reverberarem pelas paredes e,
aos poucos, eu me sentia flutuar.
Tudo o que ainda não podíamos lidar pairava pelo
ar em forma de melodia. Era tão nítido quanto meus
desenhos em aquarela e mais bonito do que eles jamais
poderiam ser. Era real.
As palavras não ditas. Os gestos contidos. O
sentimento transbordando.
O assobio de Chewie me pegou desprevenida.
Pude sentir todos os pelos eriçarem, um por um, ouvindo-
o acompanhar a melodia e compor um arranjo. A cada dia
eu conhecia um pouco mais daquele homem que, para a
maioria, era apenas um Carrasco, e isso aquecia o meu
coração. Imitando-o, desci as pálpebras e decidi apreciar
o que sucedia. Tudo parou: o relógio, meus pensamentos,
a chateação. O momento conseguia ser tão sensual quanto
nosso contato no sofá. Era como se ele conversasse
comigo com usando os dedos, como se aproveitasse as
entrelinhas.
No entanto, contrariando a minha ideia errônea de
que ficaria por isso, Adônis começou a entoar a canção
que eu, até então, ainda não havia reconhecido.
— Eu encontrei-a quando não quis mais
procurar o meu amor. E quanto levou foi para eu
merecer, antes um mês e eu já não sei...
Oh, Deus!
Era O Último Romance, de Los Hermanos. E,
embora eu já a amasse muito antes daquela tarde, soube
ali mesmo que jamais soaria da mesma maneira para mim.
A voz do Amarante nunca mais seria tão bonita quanto
fora um dia. Não, a partir daquela tarde, só existiria o
timbre de Adônis. Grave como o sopro de uma tempestade
e, ao mesmo tempo, suave como uma brisa de verão.
Inferno, meu professor tinha um lado negro que
deixaria Darth Vader com inveja! Aquilo que fazia comigo
era crueldade. Oferecia-me doses homeopáticas do
paraíso apenas para aumentar a urgência com a qual meu
corpo o cobiçava. Mas se ele achava que ficaria por isso,
estava tão enganado... Eu demorara para aceitar o que meu
coração clamava, mas, uma vez que tinha conseguido, iria
até o fim.
Eu não tinha medo de altura. Estava mais que
disposta a embarcar na montanha-russa.
Aprumei-me no sofá e me ouvi cantando junto dele
a estrofe seguinte. Eu não era exatamente afinada, mas
nossas vozes, de algum jeito, davam certo juntas. Ou
talvez eu apenas estivesse hipnotizada. Havia a chance.
— E até quem me vê lendo o jornal, na fila do
pão, sabe que eu te encontrei. E ninguém dirá que é
tarde demais, que é tão diferente assim. Do nosso amor a
gente é que sabe, pequena...
Mesmo de olhos fechados, senti o peso de seu
olhar. Ao abri-los, não deu em outra — deparei-me com
as ardentes íris de Outono e tive a certeza de que ele sabia
exatamente o que causava em mim porque se sentia da
mesma maneira.

Olhei por cima do ombro, deparando-me com


Chewie me queimando com os olhos. Encontrava-se
recostado contra o batente da porta, os braços cruzados
sobre o peitoral e Castiel sentado ao lado das pernas.
Com um último sorriso, acenei para eles como forma de
despedida, embora minha vontade de voltar para o meu
apartamento fosse inexistente. Meu vizinho deu uma
piscadela, abaixando-se para pegar o bichano e sumindo
para dentro de sua casa no segundo em que adentrei a
minha.
Expirei, atravessando a cozinha em direção ao
quarto. Nós nem ao menos havíamos notado as horas
passarem. Quando menos percebemos, já era noitinha.
Tudo fluía com naturalidade na companhia dele e eu
lamentei silenciosamente por nossa tarde ter chegado ao
fim. No dia seguinte, a realidade chegaria sólida como um
muro. Eu temia como seria em sala de aula, quanto mais
avançávamos em nossos sentimentos.
De toda forma, não tive tempo para pensar em
mais nada relacionado a Adônis. Fui arrastada dos
devaneios de uma só vez ao ouvir um choro alto e
desesperado vir do quarto de Arthur. Sem refletir no que
fazia, corri até lá e abri a porta de súbito, encontrando-o
deitado em posição fetal na cama, abraçando o travesseiro
com força demasiada. Eu não tinha a visão do rosto do
meu amigo de onde me encontrava, mas podia ouvir muito
bem a maneira como puxava o ar para os pulmões com
força, assim como era nítido os nós dos dedos
esbranquiçados. Meu coração apertou tanto que doeu,
enquanto eu me aproximava hesitante dele. Pedro...,
pensei, quando finalmente alcancei a cama, sentando-me
em sua frente.
Tão logo notou a minha presença, Arthur revelou o
rosto inchado e vermelho de tanto chorar. Estiquei as
pernas e me esparramei pela cama até também estar
deitada. Minha mão foi direto aos cabelos platinados do
meu amigo, afastando-os de sua testa. Só então me dei
conta do quanto já o amava. Presenciá-lo daquela maneira
machucava. Arthur estava sempre de bem com a vida.
Mesmo quando as coisas não caminhavam como queria,
tentava enxergar a situação com positividade. No entanto,
ali estava ele, em prantos. Algo muito sério devia ter
acontecido.
Ele aninhou o rosto no meu ombro, o braço direito
amarrando a minha cintura em um abraço casto. Retribuí o
gesto, permitindo-o colocar para fora aquilo que doía
tanto em sua alma, tal como ele fizera comigo na tarde em
que descobri sobre minha mãe. Não sei dizer por quanto
tempo permanecemos naquela posição, taciturnos. Mas, de
alguma forma, o acalento funcionou, pois conforme os
ponteiros do relógio faziam sua dança cíclica, o choro do
meu amigo abrandava, até cessar completamente.
Sua voz rouca invadiu meus tímpanos quando eu
menos esperava.
— Obrigado, Becca.
Apertei a força nos braços, embalada pelo cheiro
de incenso que vinha dele.
— É para isso que servem os amigos, não?
Ele concordou com a cabeça e uma risadinha
baixa escapou dos seus lábios.
Afastei-me ligeiramente, a fim conseguir enxergar
seu rosto.
— Foi o Pedro?
Arthur suspirou profundamente, limpando os olhos
com as costas das mãos.
— Sim e não.
— Quer conversar sobre isso? — perguntei e ele
me olhou significativamente antes de responder.
— Quero.
Fale comigo suavemente
Há algo nos seus olhos
Não abaixe sua cabeça na tristeza
E por favor, não chore

Guns ‘N Roses – Don’t cry


— Eu nasci em uma família muito conservadora
— a voz arrastada de Arthur flutuou pelo ar. Embora se
tratassem de poucas palavras, estavam recheadas de
significado. Afinal de contas, meu amigo era gay. Eu já
começava a entender a razão para qual ele não voltava
para casa, antes mesmo de começar a contar sua história.
Assenti com a cabeça, observando-o derramar o
vinho barato para dentro do copo. O líquido roxo
avermelhado foi direto para seus lábios finos, em um
longo gole. Arthur sentou-se no sofá, esticando as pernas
para o meu colo. Em seguida, estendeu a bebida para mim.
Depois de refletir um pouco a respeito, decidi que provar
um pouquinho não faria mal algum. Como vovó dissera,
tudo se tratava de equilíbrio. Eu não precisava ficar
bêbada para me divertir, mas, tampouco, deixar de beber.
Beberiquei o conteúdo do copo, surpreendendo-me com o
quanto era docinho e gostoso.
— Eles são evangélicos extremistas. Do tipo que
considera um pecado hediondo a mulher cortar o cabelo.
Agora imagine para outros assuntos... Enfim é
complicado. — Ele tamborilou as unhas contra a
superfície do sofá, com os olhos distantes. — A vida já
era difícil antes mesmo de descobrir que era gay. Coisas
simples para os meus amigos se tornavam uma tempestade
lá em casa. Eu não podia simplesmente ser como uma
criança normal e assistir aos desenhos, porque, é claro,
eles eram armas do diabo prontas para destruir a família
tradicional. Eu só podia consumir conteúdo cristão. Só
podia ler a Bíblia e ouvir música gospel. E, tudo bem,
você pode alegar não ser tão ruim assim. Mas, Becca,
precisei ir ao cinema escondido para assistir Harry Potter,
por exemplo. Tem ideia do que é isso? — perguntou e
engoli em seco, assustada apenas com a perspectiva. —
De toda forma, meus pais acabaram descobrindo que eu
era fã e você pode imaginar como minha vida ficou depois
disso. Meses e meses ouvindo sermões sobre o quanto
esses filmes eram inapropriados, por incentivar a magia
negra, porque claramente a J.K. Rowling era uma ocultista
usando as crianças para implementar o maligno... Meu
Deus. Eram absurdos atrás de absurdos.
Ele parou para umedecer a garganta com o vinho.
Eu, por minha vez, usei o intervalo para refletir sobre
isso. Meus avós sempre me deixaram ser do meu jeito,
jamais me impediram de algo. E, embora a minha vida
tenha sido difícil em vários aspectos, eu não podia nem
mensurar a sofrimento de Arthur.
— Por volta dos quinze percebi que não gostava
de meninas, mas sim de meninos. Tinha um amigo muito
próximo, o Guilherme e, de repente, me vi enxergando-o
de outra maneira. Só que eu não queria, de jeito nenhum,
aceitar aquilo. Já era uma questão naturalmente difícil,
agora imagine com o agravante que eu tinha em casa. E,
por isso, agi por algum tempo da pior maneira que se
pode agir, Becca.
Arqueei as sobrancelhas, sem conseguir esconder
a dúvida do rosto. Arthur percebeu, visto que se adiantou
em explicar.
— Ele também... também gostava de mim. Mas, ao
contrário do que pensei, a constatação não me trouxe
felicidade. Não, pelo contrário. Me deixou com muito
medo. Se eu ficasse com ele, seria como admitir não só
para mim, mas para o mundo, que eu era aquela
aberração. Porque era aquilo que os meus pais falavam
sobre os gays: aberrações. Vão para o inferno. Deus os
odeia. — Uma lágrima escorreu por sua bochecha. —
Então, movido pelo medo, fui o maior babaca de todos os
tempos. Becca, eu... fui homofóbico, preconceituoso,
agressivo. Usava todas as oportunidades para atacá-lo
com palavras, eu...
Sua fala foi interrompida com um soluço, enquanto
mais lágrimas escapavam dos olhos esbugalhados de
Arthur.
Crispei os lábios. Atacá-lo com palavras. Aquilo
era tão familiar para mim que me dava náuseas. Eu não
queria julgá-lo, porque jamais estive em sua pele para
saber o que passou, porém já estive do outro lado. E lá
também machucava muito.
— Ainda assim, meus pais começaram a
desconfiar que tivesse algo errado acontecendo comigo.
Eu mesmo ainda não conseguia lidar com aquilo, que
ironia. Eles me trocaram de colégio e eu fui proibido
permanentemente de sair de casa sem ser para a escola e a
igreja. Foi na reclusão que comecei a pesquisar mais
sobre o assunto e percebi como tinha sido idiota com
Guilherme. Por isso, aceitei de bom grado o castigo
imposto pelos meus pais. Eu merecia. Foram anos
representando ser o filho perfeito, apenas para evitar dor
de cabeça. Mas por dentro, Becca, eu me sentia em uma
prisão. Cumprindo uma pena interminável.
— Foi por isso que escolheu estudar longe de casa
— ouvi-me afirmando. Minha voz estava fraca.
— Sim, eu queria fugir deles. E consegui. A minha
vida só começou de verdade aqui em Maringá. A primeira
vez que beijei um homem foi aqui. Foi quando me aceitei
como sou e aprendi a lidar com isso. Eu só conheci a
felicidade na faculdade. Entende a gravidade disso?
Parei para absorver suas palavras por um
momento. Ainda no quarto ele havia comentado que o
motivo para as lágrimas estava um pouco associado ao
Pedro, ao menos em parte. Isso significava que...
— Eles descobriram que você é gay?
Contrariando o momento, Arthur sorriu, olhando-
me com admiração.
— Das bruxas da sua idade, você é a mais
inteligente que já conheci — parafraseou a icônica fala de
Remus Lupin para Hermione, em Harry Potter e o
Prisioneiro de Azkaban.
Cutuquei suas costelas com o indicador, sentindo
um calor gostoso se espalhar pelo meu corpo. Apesar de
amar os meus avós mais que tudo, eu conseguia
compreendê-lo de certa forma. Jamais me sentira tão em
casa quanto ali. E, para ser honesta, enxergava os meus
colegas de apartamento como uma segunda família, dada
pela vida.
— Pedro me pediu em namoro hoje! — Um
sorriso mordaz estampou sua feição. — Como é possível
o melhor dia da minha vida ser também o pior?
— O que aconteceu?
— Ele deu a notícia no facebook e me marcou! Na
hora nós nem lembramos da minha família. Mas eles
viram, Becca! Bem depressa, na verdade. Apesar de
suspeitarem a vida inteira, nunca tiveram uma prova
concreta, até hoje. Meu pai me telefonou e gritou comigo
por horas. Me chamou de bichinha e disse que ele e Deus
têm vergonha de mim. — Uma risadinha incrédula
penetrou os meus tímpanos. — O amor cristão é tão lindo!
Meu pai falou que me deserdou. Não preciso mais voltar
para casa. Falou com todas as letras, amiga. E agora estou
por conta própria. Preciso arrumar um emprego o quanto
antes porque não posso mais contar com a ajuda deles.
A minha incapacidade de encontrar uma resposta
só transpareceu o quanto me sentia chocada com aquilo
tudo. Céus, família dele preferiu virar as costas a aceitá-
lo da maneira como era!
Isso é ridículo!, pensei, com ódio dos pais dele.
Arthur era tão incrível e amoroso, como eles puderam agir
assim? Engoli em seco, lembrando-me de que a minha
mãe nem ao menos tinha um motivo, mesmo absurdo, para
também me renegar. Eu podia não ter carregado as
mesmas cruzes do meu amigo, mas entendia sua dor à
minha maneira.
— Arthur, nossa. Sinto muito. Isso é tão horrível,
eu nem ao menos sei o que dizer.
— Justo esse ano, que tem a merda do estágio
obrigatório! — Ele praticamente gritou. — Inferno,
Becca! A pior parte é que eu fui ingênuo o bastante para
acreditar que um dia eles teriam empatia. Se colocariam
no meu lugar. Que idiota!
Esfreguei os braços dele, em uma tentativa de
consolá-lo.
— Deve estar sendo uma barra, mas você não está
sozinho. Vou te ajudar a encontrar alguma coisa. Tenho
certeza que a Nataly também vai fazer o possível.
Ele sorriu, buscando-me para um abraço apertado.
— Obrigado por me ouvir, já ajudou bastante. Vou
tentar entrar em contato com a minha tia, também. Ela é
diferente deles, sempre foi brigada com a minha mãe.
Talvez ela possa... eu não sei... tentar falar com eles.
— Quando entrei aqui e te ouvi chorando, achei
que Pedro tivesse terminado com você. Céus, só eu sei o
quanto o odiei. Estava pronta para dar uma surra nele!
Meu amigo tombou a cabeça para trás,
gargalhando com prazer.
— Becca, eu já disse que te amo?
— Só umas cinco vezes por dia.
Arthur me beliscou, arrancando um gritinho de
mim. Então se empertigou, como se de repente tivesse se
dado conta de algo muito importante.
— Espera um pouco! Você me mandou mensagem
no almoço para avisar que tinha chegado. Onde estava até
tão tarde, mocinha?
— E-eu? — perguntei, dando-me conta de que não
havia inventado um álibi. Forcei a mente a trabalhar
depressa e, quando consegui pensar em algo, cruzei os
dedos atrás das costas, culpando-me pela mentira. — Fui
passear no shopping. Aproveitei para ver um filme no
cinema.
— Ah, é? — ele estreitou os olhos, desconfiado.
— Qual?
— Você sabe — fiz um gesto com a mão como
quem dizia “não esquenta com isso”.
— Não sei, não.
— Claro que sabe. Fui ver... aquele. Que está em
cartaz e tudo mais.
— Aquele qual? — Arthur foi mais enfático.
— Aquele, ué. Com uma história e... pessoas
atuando e... você sabe. — Notando que ele estava prestes
a responder, completei. — Enfim, não importa. Vou tomar
banho, estou toda suada — falei, deixando um beijo
estalado em sua bochecha antes de me levantar em um
rompante e fugir da sala.
Eu poderia passar minha vida nessa doce redenção
Eu poderia me perder neste momento para sempre

Aerosmith – I don’t want to miss a thing


Adônis estendeu a mão, entregando-me o segundo
trabalho extra que eu deveria fazer para recuperar a nota.
Suspirei desanimada ao pensar nos oito restantes. Talvez
até a formatura eu tenha conseguido entregar o último,
sorri com o pensamento, recendo um olhar curioso em
troca.
Apesar do avanço no domingo e das longas horas
passadas na companhia um do outro, nada havia mudado
em nossa relação professor-aluna. Não que eu esperasse o
contrário, é claro, mas não podia negar o quanto era
impactante a discrepância do seu comportamento dentro e
fora da universidade. Eu adoraria compreender porque
era tão rígido em sala de aula, devia haver uma razão.
Quem sabe eu perguntasse da próxima vez que acabasse
esbarrando com ele por aí. Eu mal podia esperar por
isso, afinal ele era bem mais interessante fora da UEM.
Dobrei a atividade e assenti para Adônis,
agradecendo silenciosamente. Estava prestes a me virar
quando ele quebrou o silêncio.
— Como amanhã é a revisão para a prova, pode
entregar na próxima semana.
Sua voz estava um pouco mais baixa que normal.
Mordi o lado de dentro da bochecha, pensando que, na
verdade, ele esteve um pouco diferente, sim. Não só
comigo, de toda a forma. Tinha feito menos perguntas e
quase nenhum comentário irônico. Parecia distante.
— Obrigada — respondi, deslizando a alça da
mochila pelo braço. — Até amanhã — completei, com um
sorrisinho torto, mas ele sequer reparou.
Dei de ombros e saí, fechando a porta atrás de
mim. Tateei os bolsos a procura do celular, mas antes que
pudesse pescá-lo dentro do bolso, a folha escapou da
minha mão. Ela planou no ar por poucos segundos e caiu
no chão aberta, a centímetros do meu pé esquerdo.
Quando me abaixei para alcançá-la, bati os olhos no título
da música e meu corpo paralisou de uma só vez.
Permaneci naquela posição engraçada, um pouco curvada
para frente como se fosse uma idosa muito cansada.
Que merda é essa?, foi meu primeiro pensamento.
No entanto, conforme meus olhos rolavam pelas palavras,
uma onda de indignação avançava em minha direção. Só
pode ser brincadeira... Até que a onda finalmente me
engoliu e eu submergi em um mar de ira.

Mina do Condomínio – Seu Jorge

Tô namorando aquela mina


Mas não sei se ela me namora
Mina maneira do condomínio
Lá do bairro onde eu moro

Seu cabelo me alucina


Sua boca me devora
Sua voz me ilumina
Seu olhar me apavora

Me perdi no seu sorriso


Nem preciso me encontrar
Não me mostre o paraíso
Que se eu for, não vou voltar
Pois eu vou
Eu vou
Não consegui terminar de ler. Por alguma razão
inexplicável, meu sangue borbulhou. Eu me sentia farta de
patinar sem sair do lugar. Ele estava tirando com a minha
cara, era isso mesmo? Eu era algum tipo de passatempo
sádico dele? Meus sentimentos eram uma piada?
Se ele não queria se envolver, como aparentava,
por que fazia aquele tipo de coisa? Por que me abraçou
por trás na hora de me ensinar a tocar violão, se depois
apenas se afastou? Por que cantou uma música tão linda
para mim, se depois fingiu que éramos apenas bons
amigos? Por que me provocava se, quando eu tentava ir
em frente, ele me deixava na vontade?
Céus, como era complicado estar apaixonada! Eu
jamais poderia imaginar antes que quebraria tanto a
cabeça.
Sem ter tempo de pensar muito nos meus atos, abri
a porta com um baque e entrei como um cão raivoso,
batendo-a atrás de mim. Estava enfurecida com ele.
Talvez mais do que deveria, no entanto ele sempre causou
reações intensas demais em mim. Não seria diferente
agora.
Percorri a distância até a mesa, sem me importar
com o olhar perplexo de Adônis.
— Qual é o seu problema, hein? — minha voz saiu
fraca, de tanta raiva. — Tenho cara de idiota para você
brincar comigo?
Ele arregalou os olhos, chocado.
— D-do que está falando?
Bati com a mão no tampo da mesa, deixando o
papel sobre ela. Suas íris foram de mim para o trabalho
algumas vezes antes de ele arrastar a cadeira suavemente
e se levantar, parando na minha frente.
Não ofereci oportunidade para que ele pudesse se
justificar. Quando percebi que ele falaria alguma coisa,
expirei o ar com força, avançando um passo. O meu dedo
indicador estava apontado para ele como uma antena.
— Você não tem o direito de fazer isso, sabia?
Quero dizer, você tem noção de como saí chateada da sua
casa domingo à noite?
— Chateada? — perguntou, unindo as
sobrancelhas em preocupação. —Por quê?
— Porque você bagunça a minha cabeça! Faz
parecer uma coisa, instiga a minha imaginação e depois
age como sem não fosse nada de mais. Por que escolheu
essa música? — Bati com o indicador na folha, parecendo
uma maluca descontrolada.
— Porqu... — ele começou, mas o cortei.
— Não, quer saber? Chega. Está me deixando
louca. Louca igual a você! Não consigo acompanhar essas
mudanças de comportamento, não consigo saber quando
será um estúpido ou aquela pessoa carinhosa que eu adoro
passar o meu tempo. Não dá, Chewie.
— Donzela, me escu...
— Droga — interrompi-o outra vez. — É injusto
que você faça eu me sentir dessa maneira, quando nem ao
menos sei como reagir! Eu tenho todas essas sensações
aqui dentro de mim e não tenho a mínima ideia do que
fazer com elas, Adônis! Eu... eu penso nas coisas que
gostaria de fazer com você, mas o problema é que eu não
sei de nada disso e você simplesmente não ajuda. Mas
poderia, se quisesse. — Passei as mãos pelo cabelo,
fazendo uma pausa dramática. — Eu nunca nem ao menos
beijei alguém, consegue entender a gravidade da situação?
Para mim, a ideia de ter a língua de uma pessoa dentro da
minha boca é mais assustadora do que cachorros de três
cabeças ou velociraptors! E mesmo assim eu estou
tentando lidar com isso, inferno! Eu posso ser a parte
frágil da relação, mas é você quem está correndo como
uma garotinha assustada! Céus, qual a dif...
Em um instante eu bramia cheia de raiva e, no
seguinte, a sala de aula se tornou excepcionalmente
silenciosa. Isso porque fui calada por Adônis. Calada com
os lábios dele, a propósito. Demorei algum tempo para
entender o que acontecia e, neste momento, realmente
acreditei que fosse ter um infarto. Meu coração martelava
com veemência dentro do meu peito, parecia prestes a
entrar em colapso. Suas mãos me seguravam pela nuca,
como se para evitar que eu acabasse fugindo dali. Sua
respiração morna vinha contra meu rosto em suaves
lufadas. Já a minha, achava-se curta e rápida. Eu
praticamente hiperventilava.
A fração de segundo que ele demorou a invadir a
minha boca me pareceu uma eternidade. Perdi o fôlego ao
sentir o seu sabor e me deixei levar por ele. Sua língua se
entrelaçou na minha, a princípio lenta e carinhosamente,
como se para não me assustar. Conforme eu correspondia,
no entanto, imitando seus gestos, o beijo se tornava mais
intenso e delicioso. Adônis me guiava, ávido de desejo.
Suas mãos longilíneas escorregaram pelas minhas
costas, parando no final do quadril. Ele sugou a minha
língua demoradamente enquanto me puxou contra o corpo
sólido como uma rocha, pressionando os quadris nos meus
e me mostrando seu volume propositalmente. Dessa vez,
porém, não me assustou nem um pouquinho. Saber que
apenas me beijar fazia o seu corpo corresponder daquela
maneira acendeu uma chama ardente dentro de mim e me
vi arquejando de maneira sonora.
Ele gemeu baixinho, mordendo o meu lábio
inferior e depois escorregando a própria boca pelo meu
queixo até chegar ao pescoço. Eu não queria que ele
tivesse interrompido o beijo ainda, mas mal tive tempo de
pensar em outra coisa qualquer. No momento em que
começou a passear a língua molhada na pele supersensível
do meu pescoço, eu só pude enterrar as unhas nos seus
braços, sentindo aquele formigamento de desejo no meio
das pernas. O mesmo que experimentara em sua casa. Era
o que ele fazia comigo.
Meu Deus, meu Deus, meu Deus... Isso é... ai,
Deus.
— Você... é... deliciosa... — murmurou entre um
beijo e outro, sem notar que o fazia.
Eu me sentia como se estivesse nas nuvens.
Parecia ser um daqueles sonhos dos quais não se quer
despertar nunca. Enfiei as mãos por baixo de sua camiseta
e passei os dedos pela pele nua, deleitando-me com os
músculos rígidos que bagunçaram a minha imaginação
tantas vezes. O simples gesto serviu como estopim para
Adônis. Ele voltou a cobrir meus lábios com os seus
enquanto nos girava, invertendo nossas posições. Suas
mãos foram parar nas minhas coxas e ele me ergueu sem a
menor dificuldade, até que eu estivesse sentada sobre sua
mesa. Então se acomodou entre as minhas pernas, de
forma que pude sentir seu desejo no mesmo ponto em que
o meu pulsava. Aquilo foi... nossa.
— Louco de vontade... não consigo mais...
deliciosa demais... — ele continuava a rosnar contra a
minha boca como se entoasse um cântico de devoção. Sua
língua se movia demonstrando a paixão violenta que, de
tanto ser reprimida, jorrava em uma vazão enorme.
Cruzei as pernas ao redor do seu quadril,
embriagada pelo seu perfume delicioso, por suas carícias
e pela volúpia correndo pelas minhas veias, alimentando
cada centímetro meu.
— Quero tanto você — deixei escapar, arrancando
outro gemido baixo e rouco dele. O som acarretou uma
nova onde de adrenalina, deixando-me cega. Eu estava
cega de vontade. Droga, quanto mais nos beijávamos,
maior se tornava a ânsia dentro de mim! Aquilo era
insano. Suas mãos deslizaram para dentro da minha
camiseta, subindo em direção aos seios. Não chegaram lá,
no entanto, pois o sino estridente indicando o começo do
segundo período nos arrastou bruscamente para a
realidade. Eu sequer me lembrava de onde estávamos.
Adônis voltou a segurar o meu rosto, enterrando os
dedos compridos pelos cabelos e me arrepiando inteira.
Com uma sucessão de beijinhos, ele se afastou de mim.
Mesmo escondidos pela barba, os lábios inchados
entregavam o que estivemos fazendo durante o intervalo.
Eu não queria nem ver o meu estado...
— Olha, muito bom o seu argumento, mas acho
que vamos precisar terminar essa discussão mais tarde —
sussurrou brincalhão, deixando um último beijo no
cantinho da minha boca.
Minha risada saiu baixinha, já que eu ainda não
havia recuperado o fôlego. Assenti, passando os dedos
nos cabelos a fim de assentá-los da melhor maneira
possível. Pulei da mesa e peguei minha mochila jogada no
chão, sem saber quando exatamente ela fora parar lá.
Girei os calcanhares e, quando já estava com a
mão na maçaneta da porta, olhei por cima do ombro,
encontrando-o com um olhar lúbrico.
— Até mais, professor — disse, piscando para ele
e arrancando um sorrisinho torto de seus lábios ainda
avermelhados.
Apenas quando o objetivo
É inalcançável
Eu começo a sentir
Como se estivesse me perdendo

Little Joy – Unattainable


Não consegui prestar atenção em nenhuma outra
aula pelo resto da noite. Tampouco em meus amigos e no
que diziam enquanto traçávamos o trajeto para casa. Não
consegui pensar em nada mais além de Adônis e em como
ele colocou o meu corpo em ebulição. Em nome de Yoda,
eu precisava de mais.
Contei todos os minutos, segundos e milésimos
para avançar pela porta do seu apartamento e ter o seu
corpo prensando o meu contra a parede, ter suas mãos
provocando arrepios na minha espinha e me deixando com
as pernas moles de vontade. Cada vez que recordava a
maneira como ele me ergueu tão facilmente com seus
braços fortes para me colocar sobre a mesa, um fio de
eletricidade percorria as minhas extremidades. Quando
fechava os olhos e repassava Adônis se encaixando entre
as minhas pernas para me mostrar como eu o tinha
deixado... por Deus, aquilo desgovernava o meu corpo.
Era uma confusão sem tamanho de emoções, mas o fato é
que eu gostava.
A minha única vontade era dar continuidade àquilo
que eu vinha ansiando dia após dia. Queria voltar a ouvi-
lo rosnar baixinho aquelas palavras desconexas que
exprimiam exatamente como eu me sentia. Queria ele.
Mais, mais e mais.
— Jesus, Becca! Dá pra me ouvir pelo menos uma
vez na noite? — perguntou Arthur, com uma pontada de
irritação.
— Sinto muito, eu estou... — minha voz morreu no
ar quando a imagem das mãos grandes de Adônis subindo
pela minha cintura invadiu a minha mente.
— Com a cabeça na lua. Pelo amor de Deus, terra
chamando! — Ele estalou os dedos e Nataly riu do meu
estado caótico.
— Deixa a menina em paz! Eu hein. Não é porque
você está triste que precisa descontar em todo mundo.
As palavras dela me despertaram para a realidade.
Que péssima amiga eu era! Arthur passava por um
momento tão difícil e eu sequer o ouvia. Mas, por ouro
lado, não é como se eu fosse culpada por minha noite ter
sido incrível justamente quando ele achava-se infeliz.
Aproximei-me um pouco mais dele, recostando a
cabeça em seu ombro da melhor maneira que pude, uma
vez que empurrava a Caloi ao meu lado.
— Desculpa, algumas coisas aconteceram e eu
simplesmente não consigo parar de pensar nelas. Sou a
pior amiga do mundo. Você tem todo o direito de jogar na
minha cara. — Concluí com um beijo estalado em sua
bochecha.
Meus colegas de apartamento trocaram olhares
significativos e eu lutei para ignorar a comichão de
ciúmes nas entranhas.
— Coisas, hein? — Nataly tomou frente da
conversa. — Que tipo de coisas?
Droga, eles me pegaram!
— Nada de mais — falei, em uma tentativa
fracassada de fugir do assunto, mas fui apenas ignorada.
— Pensando bem, você sumiu no intervalo, não é?
— Arthur perguntou, com uma expressão impagável se
acendendo no rosto. — Te procuramos em toda parte,
bonequinha. Por onde andou?
— Quem sabe fazendo essas coisas que não
consegue parar de pensar.
— Bom, julgando pelo sorriso bobo-alegre na sua
cara, devem ter sido boas coisas...
Argh, aqueles dois eram mesmo terríveis quando
se uniam!
— Tudo bem, vocês venceram! — praticamente
gritei. — Ok, eu confesso, estive com alguém. Aconteceu
o que vocês estão insinuando. Pronto.
— MEU DEUS, REBECCA. VOCÊ FOI PERDER
A VIRGINDADE JUSTO NA UEM?! — meu amigo
berrou.
— O quê?! — Estaquei no lugar. Qual é o
problema dele? — Não, porra! Qual o seu problema? —
externei o pensamento, sem me importar por estarmos em
frente ao nosso condomínio.
Olhei dele para Nataly e dela para ele, no mínimo
umas cinco vezes, até cairmos na gargalhada. Precisei me
dobrar para frente, de tanto que ri.
— Seu depravado. — Dei uma cotovelada em suas
costelas. Ele limpou uma lágrima que havia acabado de
escorrer antes de responder.
— Caramba, você me assustou!
— Sério, vocês acharam mesmo que eu faria sexo
pela primeira vez na vida dentro da UEM?
— Vocês não. Só o Arthur! — Lily se defendeu,
erguendo as mãos no ar e nos fazendo rir ainda mais.
Então, como a curiosa que era, aproveitou a oportunidade
para tentar extrair mais informações. — Mas então nossa
bonequinha andou namorando pelos corredores, é? — Na
verdade foi na sala de aula, pensei divertida, adorando
ter um segredo para guardar.
Dei de ombros, fingindo não ser nada demais.
Logo depois apertei o passo, passando na frente deles
quando alcançamos o estacionamento. Levei a bicicleta
até o suporte, acorrentando-a no bicicletário. Meus olhos
foram direto para a vaga de Adônis e eu senti uma pontada
de decepção ao encontrá-la vazia. Ele sempre chegava
antes de mim, era estranho que ainda não estivesse ali.
Voltei para perto dos meus amigos com o celular
na mão e uma mentira na ponta da língua.
— Vou dar um toque para os meus avós, subo
daqui a pouquinho — balancei meu telefone no ar, com
uma risadinha nervosa. Eu não queria que eles unissem os
pontos e acabassem percebendo a minha razão de
permanecer ali. Não ainda, pelo menos.
— Tudo bem, espertinha. Mas vou te esperar para
saber quem foi o sortudo — Arthur falou com seu tom
arrastado e sorriu para Nataly. — A Becca acha mesmo
que vai conseguir escapar, tadinha.
— Eu só estou curiosa para saber o que aconteceu
com a CDF que ia esperar terminar a faculdade... — ela
falou com malícia, torcendo uma trancinha nos dedos.
Eu mostrei a língua para eles, fingindo digitar
números no ecrã do celular em seguida. Meus amigos não
deixavam nada escapar, eu precisava ter cuidado com os
dois, ao menos por ora.
Levei o aparelho à orelha, andando de um lado
para o outro como se quisesse falar muito com a minha
família. Esperei tempo o suficiente para ter certeza de que
não voltariam. Sentei-me no chão, recostando as costas
contra as paredes de tijolinhos à vista e respirei fundo.
Meus dedos brincaram com o celular, embora
minha atenção estivesse toda voltada para a garagem de
Adônis. Cadê ele?, eu me perguntava sem parar, incapaz
de evitar a amargura me envenenando. Droga, ele mesmo
tinha dito que continuaríamos a nossa conversa. Então
onde estava? Alguma coisa teria acontecido justo naquela
noite?
Conforme a madrugada avançou de mansinho, a
certeza de que ele não chegaria tão cedo me atingiu em
cheio. Meu professor estava fugindo de mim outra vez.
Pelo amor de Dumbledore, como podia me beijar tão
intensamente e depois simplesmente desaparecer? Qual
era seu medo, afinal de contas? Será que ele não percebia
o quanto aquele comportamento me machucava?
Cansada de esperar, encarei o relógio uma última
vez, descobrindo que uma hora e meia já havia se passado
desde que me sentara ali. Bati com as mãos nas coxas
para limpar a poeira, ralhando comigo mesma por ser tão
idiota. Era tudo culpa minha, afinal. Ninguém mandou me
deixar levar daquela maneira. Olhei uma última vez para a
vaga e segui em frente.
Talvez algo na minha expressão tenha servido
como indicativo de que eu não queria conversar. Entrei
como um raio no apartamento, encontrando Arthur e
Nataly dividindo uma long neck, sentados no chão da
sala.
— Becca, até que enfim! — Arthur exclamou, mas,
tão logo seus olhos recaíram sobre mim, ele emudeceu,
compreendendo que algo não estava legal. Nataly lançou
um olhar preocupado em minha direção, como se me
perguntasse silenciosamente se eu precisava conversar.
Acenei com a mão, fazendo um gesto de “deixa
para lá”. Estava tão desanimada que nem ao menos
percebi que nós três havíamos acabado de nos comunicar
sem trocar uma única palavra.
Empurrei a porta do quarto com o ombro, jogando
a mochila sobre a cama e me abaixando no mesmo instante
para alcançar os materiais de desenho. Somente aquilo
seria capaz de me distrair. Eu queria tirar o foco de
Chewbacca ao menos por algumas horinhas. Porém,
contrariando a minha vontade, o desenho que meus dedos
começaram a traçar foi justamente sobre ele, sobre nós.
Depois de terminar, encarei a ilustração por
minutos a fio, passando o polegar suavemente pela
superfície ainda úmida do papel canson. Nossos corpos
unidos, os olhos fechados... Eu quase podia sentir sua
respiração chegando em lufadas contra o meu rosto.
Afastei a cadeira da escrivaninha de uma só vez ao
perceber que a irritação ainda estava lá, escondida em
algum lugar, só esperando o momento certo para surgir.
Caminhei até a janela, sendo recebida pelo céu
estrelado. Fazia uma noite tão bonita de lua cheia e eu
sequer tinha reparado até aquele momento. Somente uma
pessoa havia protagonizado os meus pensamentos nas
últimas horas. Cruzei os braços sobre a janela, apoiando o
queixo neles e fingindo para mim mesma que toda a minha
frustração nada tinha a ver com o fato de que daria tudo
para estar nos braços de Adônis novamente.
Ninguém além de mim pode me salvar
Mas já é tarde
Agora eu não consigo nem pensar
Pensar porque eu deveria tentar

Metallica – Fade to Black


Os sonhos eram sempre idênticos. Noite após
noite após noite. Não importa como fosse o dia, existia a
certeza de que, ao deitar a cabeça sobre o travesseiro,
encontraria as mesmas imagens esperando por mim de
braços abertos, tão fieis quanto cachorros eram aos seus
donos. Sem tréguas. Era certo como a morte.
Eu estava farto. Farto de noites mal dormidas,
farto de perambular entre a insônia e os pesadelos. Farto
de não poder deixar o passado no lugar dele porque
aqueles mesmos faróis ofuscavam a minha visão cada
maldita vez que pregava os olhos. Eu só queria seguir em
frente. Não, eu não queria, eu já tinha seguido em frente.
Mas o passado insistia em me perseguir, insistia em
mostrar que os danos seriam eternos, eu gostando ou não.
A vida era uma coisinha injusta e irritante. Uma
alameda cheia de subidas e descidas. Uma confusão. E eu
estava realmente cansado. Cansado do quanto um único
segundo podia mudar drasticamente todo o futuro. Uma
única decisão e os trilhos saíam dos eixos para sempre. É
como atirar um copo no chão — os vidros se estilhaçam e,
depois disso, não há o que fazer. Podemos até unir os
pedaços e colar pacientemente um no outro, no entanto as
rachaduras permanecerão lá como um lembrete eterno. Os
pesadelos eram as minhas rachaduras, recordando-me de
outros tempos, de outra vida.
O vento fresco entrando pela janela servia como
um bálsamo em meu rosto febril pelo álcool. Ao redor, o
mundo girava suavemente, tirando e devolvendo o foco
da minha visão. Cruzei os braços sobre a janela,
observando as árvores passarem enfileiradas lá fora,
como um vulto interminável. O carro flutuava sobre a
pista. Ou talvez fosse apenas eu que estivesse nas
alturas, como se fosse feito de gás hélio. Sentia-me
invencível naquela noite. Era sempre assim depois de
tocar. A atmosfera ao redor contribuía muito para isso.
Os shows despertavam o que existia de melhor
em mim. Aquela parte que permanecia hibernando na
maior parte do tempo e que dava um sentido à minha
existência. Meus membros ainda formigavam pela
adrenalina experimentada durante a madrugada. Eu era
viciado na euforia decorrente de estar em um palco, era
prazeroso ao extremo. Ainda que fosse nos piores bares
inimagináveis e na maioria das vezes eu me encontrasse
mais bêbado do que deveria.
— Em que está pensando? — Cecília perguntou,
buscando-me novamente para a realidade.
— Que provavelmente amanhã terei a maior
ressaca de todos os tempos.
Endireitei-me no banco e olhei para o lado,
encontrando-a com os olhos pesados e muito vermelhos.
Coloquei a mão sobre sua coxa, apertando-a com
suavidade.
— Eu poderia fazer isso o tempo todo. Realmente
poderia.
— Ainda não entendi porque escolheu cursar
Letras, se é assim tão apaixonado por música.
Sorri, movendo a mão para a parte interna de
sua perna, onde ela sentia cócegas.
— Ah, então você não sabe?
— Não — Cecília fez cara de desentendida, mas
a malícia estava estampada em sua feição. Movi meus
dedos por sua pele, como se tocassem teclas de um
piano. Ela se contorceu toda, dando tapinhas nas costas
da minha mão até que eu a soltasse e depois voltou a
segurar o volante.
— Nenhum palpite? — perguntei, entrando no
jogo.
Eu sabia o quanto ela adorava escutar aquela
história. Já estava cansada de saber a razão para eu ter
escolhido uma faculdade que nada tinha a ver comigo,
mas ainda assim não desperdiçava uma única
oportunidade de ouvir de novo. E eu não me queixava
em repetir. Contaria todas as noites se ela assim
quisesse.
— Não posso nem imaginar!
— Bom, talvez tenha sido culpa de uma garota
muito bonita. — Enrolei os dedos em uma mexa do seu
cabelo, sem desviar os olhos dela. — Na verdade, a
culpa foi dos pais dessa garota, que mudaram para outro
estado.
— E o que isso tem a ver com a paçoca?
— O que tem, Cecília, é que eu estava
apaixonado por ela. Mudaria para a China se fosse
preciso.
Ela se empertigou no lugar, ficando com a
postura perfeita. Seus dedos tamborilaram impacientes
no volante, como se mal pudesse se conter. Eu sabia
exatamente o que ela perguntaria em seguida.
— Está me dizendo que desistiu do seu sonho por
amor, é?
Tombei a cabeça para trás, gargalhando. Como
era possível que depois de tanto tempo continuássemos
naquele jogo?
— É exatamente o que estou dizendo.
— Isso é muito romântico! Ela é uma garota de
sorte.
— Acho que está enganada. — Sorri. — Já que
eu claramente sou o sortudo por aqui.
Cecília desviou a atenção da estrada para deixar
um beijo rápido nos meus lábios. Seu hálito tinha cheiro
de álcool, tal como o meu deveria ter, naquele momento.
Quando ela voltou a olhar para frente, retornei à minha
posição inicial — apoiado na janela para observar a
paisagem.
As araucárias passando, uma a uma,
ininterruptamente.
O vento tocando a minha pele, como uma
invisível mão gelada.
Os campos se estendendo para o horizonte, como
tapetes de veludo sob a luz pálida do luar.
Árvore, vento, grama.
Árvore, vento, grama.
Árvore, vento...
Adormeci sem perceber. Acordei quando minha
cabeça caiu para frente, como um saco de areia.
Esfreguei os olhos calmamente, estranhando o silêncio.
O nanosegundo seguinte pareceu durar horas,
quiçá dias. Tudo se resumiu a flashes em câmera lenta.
Eu me sentia como o expectador de um filme ao qual não
queria assistir.
Os faróis com luz alta ferindo minhas retinas.
A buzina estridente dominando o mundo. O meu
mundo, ao menos.
O grito de Cecília, quando ela despertou do
transe.
Suas mãos girando o volante para a direita de
uma vez.
Nós dois dentro de uma centrífuga enquanto eu
ouvia a minha própria voz preencher o carro,
demasiadamente atrasada:
— CUIDADOOOO! CUIDADOOOO!
Acordei gritando, como sempre acordava. Cada
membro do meu corpo vibrava, como se eu estivesse
levando pequenos choques. Apesar de ser uma noite
razoavelmente fresca, eu me encontrava encharcado de
suor. Arranquei a camiseta para me livrar da claustrofobia
que se instaurou ao meu redor. Semelhante a correr por um
imenso labirinto, sem chegar a lugar nenhum. Sentei-me na
cama e cruzei as mãos sobre os joelhos, inclinando o
tronco até a testa tocar nelas.
Percebendo o meu estado de espírito, Castiel
soltou um miado suave e pulou para os meus pés, deitando
sobre eles. E então as lágrimas vieram. Bastou que ele me
dissesse, mesmo silenciosamente, “eu estou aqui” para
elas jorrarem dos meus olhos. Já fazia um bom tempo,
para falar a verdade. Mas ultimamente os sentimentos
estavam tão confusos e intensos, era de se esperar que
isso eventualmente acontecesse.
Conforme os ponteiros se atropelavam no relógio,
elas me lavaram de dentro pra fora, aliviando o peso das
minhas costas e esvaziando os pensamentos. Limpando as
imagens. Devolvendo a sanidade aos poucos.
Mais uma noite sem dormir de maneira digna,
pensei comigo mesmo, segundos antes de a campainha
ressoar pelo apartamento. Empertiguei-me no mesmo
instante, alcançando a camiseta para secar o rosto.
Deve ser algum vizinho puto comigo. Até que
demorou bastante.
Viver a mercê dos pesadelos acarretara situações
desgastantes ao longo dos anos. Nunca fui o cara amado
pelos vizinhos, e receio que não seja difícil entender o
porquê. O som agudo penetrou meus tímpanos outra vez.
Respirei fundo, resignado a encarar o problema de frente.
— É alguém muito irritado, Castiel. Melhor irmos
lá atender — murmurei, abaixando-me para pegá-lo no
colo.
Enterrei a cabeça no pelo fofo enquanto permitia
que meus pés me levassem até a porta. Era minha forma
de agradecer pelo acalento. Ele sempre estava lá para
mim quando eu precisava.
Quem inventou o boato de que gatos não gostavam
dos seus donos era, provavelmente, um imbecil.
— Já estou indo! — berrei com irritação, quando
a campainha repercutiu novamente.
Destranquei a porta com impaciência. Ao abri-la,
todos os músculos enrijeceram. Rebecca me encarava
cheia de preocupação. Os lábios ligeiramente crispados.
Os cabelos bagunçados indicando que havia acabado de
acordar. Graças a mim, é claro.
Abri espaço para ela passar e soltei Castiel no
chão, deixando um último cafuné na pelagem acobreada.
Mal tive tempo de girar nos calcanhares e fui recebido
por um abraço caloroso. Ela recostou a cabeça contra o
meu peito e acomodou o corpo no meu. Surpreso, passei
os braços ao redor do pescoço dela, aprisionando-a ali
comigo.
Os sentimentos que eu tentava reprimir voltaram
todos de uma só vez. O desejo intenso se alastrando pelos
meus membros; a necessidade em tê-la por perto todos os
dias; a maneira como ela chacoalhava o meu mundo. Eu
queria, mas não podia me deixar levar. Já me achava no
meio do caminho, no entanto, e cada passo à frente
tornava ainda mais difícil dar meia-volta e recuar.
Minha garganta apertou quando retomei o momento
crucial em que perdi o controle na sala de aula. Na sala
de aula! Onde estava o meu bom-senso? Onde estava o
Adônis comedido e focado? Eu já não sabia. Agora só
existiam aqueles olhos de pistache e o conjunto de
características que compunham a personalidade
responsável por me abalar. Como a vergonha, por
exemplo, quando nosso contato se tornava mais íntimo. E,
ao mesmo tempo, a coragem de falar o que vinha à
cabeça. Ah, ela era corajosa. Confessara os sentimentos,
embora de maneira atrapalhada. Eu mesmo não fui capaz
disso.
Então rompi as barreiras. Coisa que não podia ter
feito, mas fizera. Foi impossível permanecer impassível
vendo a chama dentro dela arder tão intensamente. A
garota era espirituosa e isso me atraía demais. Mas, por
Deus, fui o primeiro homem a beijá-la! Não era certo. Eu
não podia fazer isso com ela, não podia. Foi exatamente
por essa razão que me demorei a voltar do trabalho.
Supunha que ela estaria me esperando. Apesar de me
sentir tentado a ir em frente, era egoísta demais da minha
parte, quando não tínhamos a possibilidade de um futuro.
A decisão já estava tomada.
Soltei-a com gentileza e tirei suas mãos de mim,
afastando-me em seguida.
— Desculpa te acordar.
— Por mim não tem problema. Mas acho que o
prédio inteiro ouviu dessa vez.
— Foi tão ruim? — perguntei, unindo as
sobrancelhas.
Ela encolheu os ombros e mordiscou os lábios,
deixando-os avermelhados.
— Normalmente você acorda depois do segundo
berro... mas hoje foi desesperador. Parecia ter alguma
coisa acontecendo.
— E tinha. Bom, aqui dentro, pelo menos. —
Sorri, batendo os indicadores levemente sobre as
têmporas. — Preciso dar um jeito antes que acabe sendo
linchado.
— É, talvez seja uma boa ideia.
Assenti com a cabeça e permiti que o silêncio se
instaurasse entre nós. Precisa ser agora, Adônis. Acabe
logo com isso, antes que seja ainda mais difícil. Estudei-
a pacientemente, enquanto arrastava uma cadeira e se
sentava de frente para mim. Apoiei as costas nos armários
da cozinha, subitamente desejando fumar um maço inteiro
de cigarros. O nó da garganta dobrou de tamanho.
— Donzela — chamei-a e no mesmo instante ela
se aprumou. — Quero aproveitar que está aqui e...
conversar com você.
Em uma fração de segundo, os olhos se estreitaram
e o nariz ganhou algumas ruguinhas. Essa era sua cara de
indignada. Sempre precedia uma resposta atrevida. Eu
adorava. Poderia provocá-la o dia todo só para ser
presenteado com tal expressão.
— Você quer falar sobre o que aconteceu hoje —
não foi uma pergunta.
— Sim, eu quero. — Concordei com a cabeça.
— Já entendi — ela abaixou os olhos, encarando
os próprios pés. Ao erguê-los novamente, eles brilhavam.
— Mas antes de você dizer o que acho que vai, deixe-me
falar primeiro.
— Tudo bem. É justo.
— Alguma coisa está acontecendo. — Ela fez um
movimento rápido com as mãos, indicando-nos. — Entre
nós dois. Com nós dois. Eu sei que você também está se
sentindo como eu, Chewie. É tão claro como a força, em
Star Wars. Quase é possível ouvir a tensão estalando pelo
ar. O jeito que você me toca ou a forma como me beijou...
— Ela suspirou, com um sorrisinho aparecendo nos
lábios. — Foi muito bom, foi... enlouquecedor.
— Hum... então o meu beijo foi enlouquecedor?
— perguntei, apenas para vê-la com as bochechas
coradas. — Eu desconfiava que era bom nisso, mas nem
tanto assim, para falar a verdade.
— Não que eu tivesse muitos parâmetros de
comparação, é claro.
Joguei a cabeça para trás, permitindo-me
gargalhar. Aquela garota conseguia transformar qualquer
momento com sua personalidade. Ela era fascinante. E
isso só dificultava tudo. Eu queria conhecê-la mais, queria
que pudéssemos continuar nos divertindo como fazíamos
com facilidade. As coisas fluíam tão bem.
Expirei, eliminando a distância entre nós. Ajoelhei
de frente para ela, apoiando os braços sobre as suas
coxas. Percebi seu corpo ficando mais tenso, comparado a
segundos atrás. A maneira como reagia a cada pequeno
contato me convidava a continuar tocado, continuar
abusando da sorte. Minha mente formava um milhão de
possibilidades e... nossa, era uma covardia.
— Você está certa. Estou envolvido. E com tanta
vontade quanto você, eu... — Engoli em seco. — Queria
que fosse tudo simples, mas não é. Nós não podemos
continuar com isso.
Levei a mão direita aos seus cabelos, prendendo
uma mecha atrás da orelha suavemente.
— Sou o seu professor. Perderia o meu emprego
na hora. E você... você também se prejudicaria. Sabe o
tipo de coisas que falariam a respeito.
Rebecca repousou a mão pequena e delicada na
minha, mantendo-a sobre sua orelha.
— Nós não precisamos anunciar em um alto-
falante que estamos juntos. Pelo amor de Deus, somos
vizinhos! Ninguém jamais sonharia com isso. Nós
podemos ser discretos.
Fechei os olhos por um momento, colocando a
cabeça no lugar novamente.
— O problema, donzela, é que tranquei o meu
coração. E ele está fechado há muito tempo. Eu já não sei
mais como abri-lo e nem posso.
Ela deu uma risadinha incrédula. Quando tornei a
abrir os olhos, encontrei-a me encarando como se eu
tivesse falado as últimas palavras em árabe.
— O meu nunca esteve aberto, Adônis. Eu nem
sabia que existia uma chave! Mas, de alguma forma, você
a encontrou e agora já era. Não há nada que se possa fazer
a respeito.
— Não faz assim — pedi, roçando o polegar em
suas maçãs. — Por favor.
— Por que não? Estou apenas sendo honesta.
— Eu sei. E queria ter te conhecido em outra
época... em outra vida. Agora é impossível. Existe um
caminho traçado e não há como desviar o foco dele. Eu
não posso. Nós não podemos. A decisão já estava tomada
muito antes de te conhecer.
— Não faz sentido — sussurrou, voltando a roer o
lábio inferior. Dessa vez, um filete de sangue escorreu por
ele.
Levei o indicador à fina gota vermelha, limpando-
a com facilidade.
— Precisa parar com isso. Está parecendo uma
vampira maluca.
— Talvez eu seja. — Ela deu de ombros e percebi
o quanto estava chateada.
Veja bem, eu também estava. Mas precisava fazer
o que era certo, mesmo se fosse exatamente o oposto do
que eu realmente desejava.
— Hei, olha para mim — pedi e ela me olhou
intensamente. — Eu te levo para casa. Está muito tarde
para uma donzela andar sozinha por aí, ainda mais um
caminho tão longo.
Rebecca deu um meio-sorriso, levantando-se de
uma vez. Ofereci o braço e ela encaixou o dela, sem
esconder o desânimo do rostinho delicado.
Saímos em silêncio e, ao parar em frente à porta
do seu apartamento, ela não hesitou em se desvencilhar de
mim.
— Obrigada pela carona. — Sorriu, mas os olhos
não acompanharam.
— Prometo te deixar dormir agora.
— Quero só ver. Boa noite — disse e se virou,
sumindo para dentro.
Mesmo minutos após ter se despedido, permaneci
encarando a porta, tentando me convencer que eu tinha
agido da melhor maneira, embora dentro de mim algo
gritasse que não.
Eu não sei onde ele está indo
Eu não sei onde ele esteve
Mas ele é inquieto à noite
Ele tem sonhos horríveis

Daughter – Run
Balancei as pernas no ar, tentando manter os
olhos nas páginas amareladas do livro. Era um sábado de
tempo fechado, com fortes ventanias responsáveis por
portas batendo e janelas tremendo. Suspirei, sem
conseguir realmente me concentrar na leitura. Do lado de
fora, as vozes dos meus colegas de apartamento
repercutiam pelas paredes, muito altas e agitadas,
roubando toda a minha atenção.
Fechei o livro, resignada. Eu não conseguiria ler
enquanto eles não saíssem de uma vez por todas. Uma
república qualquer faria um churrasco open bar naquela
tarde. Eles passaram a semana comentando
exaustivamente a respeito e, claro, convidando-me em
todas as oportunidades possíveis. Minha resposta era
sempre não, pois queria aproveitar o dia para passear
pela cidade em minha Caloi verde-água e distrair a
cabeça da única coisa em que conseguia pensar
ultimamente. É desnecessário dizer o que — ou melhor,
quem —, né?
Calcei os chinelos e me arrastei até o quarto de
Nataly, de onde vinha toda a balbúrdia. Meus olhos
fizeram uma varredura pelo cômodo que aparentava ter
roupas até o teto. Ela marchava de um lado para o outro,
enquanto Arthur ajeitava os cabelos tranquilamente,
estudando o próprio reflexo no espelho.
— Você não viu mesmo a minha bota nova?
Aquela preta que termina no tornozelo?
— Jesus, Lily, quantas vezes preciso dizer que
não? Se eu tivesse visto, falaria logo para você parar de
andar igual a uma barata tonta.
Nataly estreitou as pálpebras, lançando um olhar
assassino para Arthur. Estava linda, como sempre. Os
cabelos trançados se encontravam presos em um rabo de
cavalo no topo da cabeça e os lábios grossos pintados
com um vibrante batom pink. Girando os calcanhares na
minha direção, ela finalmente se deu conta da minha
presença.
— Que susto!
— Desculpa. — Encolhi os ombros. — A
propósito, acho que vi sua botinha embaixo do sofá por
esses dias, já olhou lá?
Ela teve um estalo e, sem mais nem menos, saiu
como um raio pela porta. Lá de fora, sua voz veio em um
berro estridente.
— Está aqui! Você é foda, Becca!
Arthur e eu trocamos um olhar divertido e sorri
para ele. Embora estivesse se arrumando para uma festa
da qual havia falado a semana inteira, seus olhos
entregavam a preocupação e melancolia que o
acompanhavam desde o fatídico telefonema dos pais.
— Não quer mesmo ir? Mesmo, mesmo?
— Hoje eu passo. Preciso ficar um pouco sozinha.
— Tá bom, mas não vai ficar estudando a tarde
inteira, viu? Você precisa se distrair um pouco.
Uni as sobrancelhas, fingindo indignação.
— Sério que seu conselho como amigo é esse?
— Hoje é sábado. Além disso, as provas já
terminaram. E aposto que você não tem nenhum trabalho
pendente, caso contrário teria infartado a uma hora dessas.
— Você é uma péssima influência, sabia, Arthur?
— Sim, Rebecca, eu sabia. — Ele entrou na
brincadeira. — Sou seu veterano. Essa é a minha função.

Destravei o cadeado da bicicleta. O vento forte


despenteava meu cabelo, empurrando-o todo para o rosto.
O céu tinha cor de chumbo, aparentando ser final de tarde
embora não passasse das três. Raspei a ponta do tênis no
chão, ponderando pela última vez se era uma boa ideia
sair de bicicleta quando um dilúvio estava a caminho. No
entanto, qual a minha outra opção? Eu não estava disposta
a passar a tarde presa no quarto, assistindo a filmes de
terror ou lendo as fantasias de sempre. Precisava
espairecer, fugir um pouco da rotina.
Por falta de alternativas, montei na Caloi e dei de
ombros. Não sou feita de açúcar, pensei. Apoiei o pé
direito no chão e busquei os fones de ouvido no bolso da
calça, passando-os por dentro da camiseta para que não
ficassem expostos. Encaixei-o nos tímpanos e, então, pus-
me a pedalar.
Meus dedos se fecharam ao redor dos guidões
emborrachados, enquanto meus pés trabalhavam em um
ritmo preguiçoso, porém constante. As rajadas de ar
chacoalhavam os galhos das árvores com rebeldia,
fazendo-os dançar de um lado para o outro. Inspirei o ar
fresco profundamente, preenchendo os pulmões. Já era
possível sentir o cheiro de chuva.
Segui pelas ruelas do meu bairro, encontrando
alguns barzinhos apinhados de estudantes, como grandes
aquários lotados. Senti alívio por não ter acompanhado
meus amigos na festa open bar. Eu não combinava tanto
assim com elas, para ser honesta. Além do mais, a tarde
estava bonita à sua maneira, com tons cinzentos e pálidos.
No fim das contas, ansiava apenas por calmaria após uma
semana tão cheia de acontecimentos.
Quando alcancei uma movimentada avenida, tive
um estalo e me lembrei do estádio maringaense. Várias
pessoas aproveitavam o tempo livre para se exercitar ao
seu arredor. Sempre tinha alguém correndo, pedalando ou
fazendo ioga por lá. Decidi que era onde eu queria estar e
inclinei o corpo um pouco para frente, pedalando em uma
cadência maior. A avenida se tornou um declive e eu
ganhei velocidade sem muito esforço. Deleitei-me com a
sensação da brisa gélida contra o rosto e do quanto me
sentia leve, como se planasse no ar. Eu adorava andar de
bicicleta e esse era um dos principais motivos. Ainda não
possuía habilitação — afinal, não completara a
maioridade —, mas tinha certeza de que me daria melhor
com motos, justamente pela sensação de liberdade quase
selvagem.
Fiz uma curva fechada para a direita, a fim de
atingir a calçada do estádio. Achava-se bem menos
movimentado do que o habitual. Espiei o céu enegrecido
sobre mim e constatei o porquê. Ainda assim, era
acolhedor o suficiente. Algumas crianças corriam atrás de
uma bola e, à minha frente, um casal passeava
tranquilamente com os cachorros.
Endireitei a postura, voltando ao ritmo calmo
inicial. Meus olhos se demoraram nos prédios elevando-
se nas redondezas e nos carros que passavam
eventualmente. Era bom mudar a rotina, só para variar.
Arthur tinha razão, eu precisava relaxar mais, ao menos
nos finais de semana, ou acabaria envelhecendo bem mais
rápido.
O meu celular mudou de música e, de repente,
ouvi a voz do Amarante, de Los Hermanos, começar a
cantar a música que Adônis tocara para mim em seu
apartamento. Era como eu suspeitava — jamais poderia
ouvi-la novamente sem associá-la à Chewie. O problema
era que eu estava tentando não pensar nele. Esse era o
propósito daquele passeio, certo?
Só que era tão difícil! Quanto mais os dias
corriam, menos eu conseguia refrear minha mente. Ela
estava viciada nele. Recordei o nosso beijo, com
saudades do que nem ao menos havia começado. O receio
dele ou a maneira como se fechava para as demais
pessoas... Não era preciso ser um gênio para entender que
tinham algo a ver com seu passado. Algo acontecera para
deixá-lo tão assustado, tão hesitante. Tal como eu. Quero
dizer, o motivo para sempre ter fugido do amor por toda a
minha vida foi o trauma causado pela minha mãe. As
feridas ainda estavam lá, é claro, no entanto eu estava
disposta a ignorá-las, ao menos por ora. Queria ver onde
os sentimentos me levariam. Isto é, se ele também
quisesse, se também estivesse disposto.
Eu tentava entender o lado dele, afinal não sabia
nada sobre a sua vida. Se ele mostrava estar tão
interessado em mim, deveria ser alguma coisa realmente
forte a que o mantinha firmado no chão, sem poder sair do
lugar. Adônis me dissera uma coisa que continuava
reverberando pelas paredes do meu crânio, copiosamente:
“Queria ter te conhecido em outra época... em outra vida.
Agora é impossível... Existe um caminho traçado e não há
como desviar o foco dele”. E isso, de alguma forma, era
tão familiar. Eu também tinha um caminho traçado e
motivos sólidos para percorrê-lo. Quais seriam os dele?
Chacoalhei a cabeça para afastar os pensamentos.
Eu prometi a mim mesma que, ao menos naquele sábado,
não ficaria remoendo o assunto. Faria o possível para
conseguir cumprir a promessa. Elevei o rosto,
direcionando o olhar ao horizonte e, no mesmo instante,
meus músculos endureceram, um por um.
Espera. Aquele ali é... oh, Deus!
Não tinha jeito. Quanto mais tentava, mais o
universo me mostrava quem mandava ali. Eu estava certa
de que o destino era aquele cara piadista, cujas sacadas
sarcásticas poucos entendiam. Isso porque, a poucos
metros de mim, o protagonista dos meus pensamentos se
exercitava com tranquilidade.
Quando um certo alguém
Desperta o sentimento
É melhor não resistir
E se entregar

Lulu Santos – Um certo alguém


Eis um fato sobre Maringá: tratava-se de uma
cidade repleta de academias ao ar livre. Em todos os
bairros era possível encontrar os equipamentos coloridos
em alguma praça qualquer. Normalmente quem mais as
frequentava eram os mais velhos e, por isso, todos
costumavam chamar de academia da terceira idade.
Inclusive, um pouco mais adiante, duas senhorinhas se
alongavam no espaldar púrpura. Meus olhos não se
demoraram nelas, no entanto. Não quando Adônis se
ocupava nas barras, vestindo apenas uma calça de
moletom.
Pressionei o freio e a bicicleta perdeu velocidade
até parar com um fraco solavanco. Sem nem ao menos
perceber, pulei para o chão, com os olhos vidrados nele.
Adônis elevou o corpo no ar, sustentando-se com os
braços. Que covardia, meu subconsciente sussurrou.
Observei-o rodopiar como um ginasta olímpico
incansável. Ele fazia parecer ser algo fácil. Prendi a
respiração, aprisionada ao momento. O suor percorria a
pele de Chewie, traçando caminhos convidativos aos
olhos. Minha visão desceu até encontrar o abdômen
definido e o V que eu tanto adorava.
Notando que ele havia parado de se movimentar,
procurei suas íris e as encontrei focadas em mim.
Arquejei, surpresa por ter sido pega no flagra. Recostei a
bicicleta contra um banco de madeira, os dedos apertando
o guidão mais forte que o necessário. Adônis saltou para o
chão, esfregando as mãos nas pernas, como que para
limpar o suor. Ele dobrou o tronco para frente, alcançando
a mochila na qual, até então, eu não havia reparado. Tirou
uma camiseta de dentro dela, vestindo-se em poucos
segundos. Lamentei silenciosamente por ter me privado
daquela visão maravilhosa.
Aproximei-me dele, tirando os fones do ouvido.
Adônis fez o mesmo, parando a poucos centímetros de
distância. O sorriso em seu rosto me deixou com as pernas
trêmulas.
— Para um fumante, você tem um fôlego muito
bom.
— Você ainda não viu nada. — Piscou, com uma
expressão impagável no rosto. Não pude evitar a risada,
embora meu rosto estivesse fervendo de vergonha.
Sentei-me no banco e, antes que pudesse me
conter, perguntei.
— O que estava fazendo? — Apontei para a barra
às suas costas.
— Se chama Street Workout — explicou,
sentando-se de frente para mim. —, ou treino de rua. É um
esporte relativamente novo... Usamos o peso do próprio
corpo para executar os movimentos. Trabalha bem a força
e o equilíbrio. É muito bom para a definição.
— É, eu percebi isso — murmurei. Como
resposta, Adônis jogou a cabeça para trás, em uma
gargalhada contagiante. — Então além de professor, é
músico, cozinheiro e atleta. O que mais tem escondido aí?
— Você vai precisar descobrir sozinha. — Seu
sorriso torto provocou uma comichão no meu estômago.
Deslizei o corpo pelo banco, ficando praticamente
deitada. Cruzei os braços sobre o encosto e apoiei o
queixo neles, incapaz de desviar os olhos do homem a
minha frente.
— Que surpresa te encontrar justo hoje —
comentei, com os pensamentos distantes.
— Justo hoje? Por quê?
Porque eu estava tentando evitar você, pensei.
Mas o que respondi foi:
— Hoje é um daqueles dias em que eu só queria
fugir por algumas horinhas.
— Achei que desenhasse para escapar da
realidade.
— Bom, sim. Mas... — ultimamente só consigo
desenhar você. — minha casa estava claustrofóbica.
— Entendo. Eu também me sinto um pouco preso
às vezes.
— Então vem e se exibe para as pessoas com a
sua barriga tanquinho?
O sorriso que Chewie abriu antes de uma risada
calorosa escapar por seus lábios fez meu coração
acelerar. Peguei-me sorrindo para ele feito uma boba.
— Eu criei um monstro! — brincou, escondendo
as mãos nos bolsos e cruzando os pés.
Raspei o dedo indicador na superfície áspera de
madeira. Momentos como aquele me deixavam um pouco
frustrada. Ele mesmo dissera que estava envolvido. Como
uma coisa que deveria ser simples se tornara tão
complicada?
Acima de nós, um clarão dominou o céu, como um
imenso flash. O som estrondoso veio logo em seguida,
enquanto um raio rasgava o horizonte, fazendo o mesmo
desenho que vasos sanguíneos. Eu sempre nutri um
fascínio por trovoadas. A maioria das pessoas tinha medo,
mas para mim existia algo quase poético no contraste
entre o som majestoso e as linhas tão finas e delicadas.
Distraída com as imagens que os meus olhos
registravam, ouvi a minha própria voz quebrar o silêncio
entre nós.
— Não acha engraçado nos esbarrarmos o tempo
todo? — suspirei. — Quero dizer, tirando o fato de
sermos vizinhos, que já é uma coincidência enorme,
parece que estamos sempre nos mesmos lugares.
Ele estava prestes a responder quando um
aguaceiro irrompeu subitamente. Era como se as
comportas do céu tivessem sido abertas de uma só vez.
Foi repentino e, em questão de segundos, passou de um
chuvisco para um temporal. Os pingos grossos feriam a
pele e nos encharcavam em uma velocidade
surpreendente. Fiquei em pé em um pulo, mas antes que
pudesse alcançar minha bicicleta, Chewie a pegou
primeiro, empurrando-a com facilidade.
Corremos pela calçada, ele na frente e eu atrás, até
alcançarmos a marquise de um café, onde nos abrigamos.
Minha roupa estava grudada na pele, fazendo-me
estremecer de frio. Espiei-o pelo canto dos olhos,
encontrando-o tão ensopado quanto eu. Adônis entortou a
cabeça ligeiramente para a direita, estudando-me com
atenção. Então suas íris desviaram para o lado de dentro
do estabelecimento antes dele falar.
— Essa chuva não vai parar tão cedo. Vamos
entrar um pouco?
Assenti com a cabeça, enquanto prendia meus
cabelos molhados em um rabo de cavalo. Então, tateei os
bolsos em busca do meu molho de chaves. Eu costumava
prender a corrente da bicicleta logo abaixo do guidão
quando a usava, para não precisar carregar uma mochila
comigo apenas com essa finalidade. Tomei a Caloi das
mãos de Adônis, saindo da proteção do toldo para
alcançar o suporte de ferro, onde a afivelei. O que restava
de secura em mim foi aniquilado em uma fração de
segundo.
Chewie permaneceu ao lado da porta me
esperando e, quando passei por ele, sua mão veio de
encontro às minhas costas. O toque foi suave e
despretensioso, mas, ainda assim, roubou a força das
minhas pernas. O interior do estabelecimento se achava
quentinho e aconchegante. Poucos segundos depois de
entrarmos, eu já havia parado de tremer. Caminhamos por
mesas ocupadas, circundando-as até encontrar uma vaga,
ao lado da parede pintada de azul pálido e decorada com
quadrinhos de tamanhos e formatos variados. Seus dedos
escorregaram até chegar à lombar e simplesmente se
soltarem da minha pele. Fiz uma careta de reprovação,
porém ela logo sumiu quando Chewie inclinou-se para
puxar uma cadeira.
Uma risadinha incrédula escapou dos meus
lábios. Dava para acreditar que aquele era o mesmo
homem que eu havia conhecido nas escadarias alguns
meses atrás? Aquele que rosnara para mim por estar em
seu caminho? Céus, que mudança significativa!
— O que foi? — perguntou, com uma expressão
curiosa.
— Se alguém me falasse um tempo atrás que o
Carrasco afastaria uma cadeira para mim, eu
provavelmente teria dito “conta outra”.
Olhei para ele e me surpreendi ao reparar no
sorriso amargurado em seu rosto. Mordi o lado de dentro
da bochecha, perguntando-me se por um acaso havia
tocado em algum ponto delicado.
— Desculpa, eu não quis d...
— Não, tudo bem — interrompeu. — Você tem
razões para isso, donzela. Sei que não sou a pessoa mais
fácil do mundo.
Abri a boca para responder quando uma mulher
muito alta parou ao nosso lado. Ela nos estudou por um
momento e me senti um pouco exposta por estar molhada
ali dentro. Além do mais, seu sorriso era um pouco
estranho, como quando estamos esperando alguém bater
uma foto, mas a demora faz com que o rosto fique
dormente e o sorriso amarelo.
— Desejam alguma coisa? — indagou, com
cordialidade até demais.
Adônis me fitou com os olhos de Outono antes de
perguntar.
— Que tal um café para esquentar o corpo?
Concordei com a cabeça, cruzando os braços
sobre a superfície da mesa. Estava prestes a fazer o meu
pedido quando sua voz repercutiu pelo ar primeiro.
— Um expresso duplo e um pingado, por favor —
solicitou para a atendente, que assentiu e abandonou a
nossa mesa em um piscar de olhos.
Arquejei, surpresa. Era exatamente o que eu
queria!
— Como você sabia?
— Sabia o quê?
— Que eu queria um pingado — expliquei.
— Você me disse uma vez que não conseguia
tomar café puro, só com leite. — Ele me encarou como se
tivesse falado algo tão trivial quanto “o sol é amarelo”.
Tentei buscar na memória a ocasião e, depois de
alguns segundos, consegui recordar. Fora na noite em que
joguei verdade ou desafio com os meus amigos e precisei
dormir em sua casa. Dentro de mim, uma onda de
excitação inundou tudo. Ele prestara atenção em um
detalhe tão aleatório sobre mim! Por John Lennon, era
muito excitante!
— Que sorrisinho de maluca é esse? — Seus
lábios se torceram para a direita.
— Não acredito que se lembra disso.
— É claro que lembro! Você colocou leite no café
que eu fiz com tanto carinho e dedicação. Tem ideia do
quanto me magoou?
Não consegui segurar a gargalhada alta que veio
depois disso. Alguns olhares curiosos se voltaram para
nós, porém não me importei.
— Meu Deus, você é ridículo!
Ele riu baixinho e encolheu os ombros como se
não se opusesse ao meu último comentário. De repente,
esqueci-me de que estava molhada e gelada. Isso porque,
dentro de mim, um fogo intenso se alastrou. Sempre
quando passávamos um tempo juntos e eu conhecia mais
daquele Adônis engraçado e dócil, que normalmente
ficava escondido por dentro da camada rude, sentia-me
sortuda. Quantos outros tinham o mesmo privilégio?
— Estou feliz por te conhecer — soltei
simplesmente e ele me encarou com atenção, as íris
brilhando. — Não apenas ter cruzado o seu caminho, mas
de saber mais sobre você a cada dia. Até um tempo atrás
eu não podia nem sonhar com esse seu lado brincalhão e
leve, eu...
Fui obrigada a fazer uma pausa quando a atendente
chegou com uma bandeja, trazendo nossos cafés. O aroma
subiu pelo ar em uma nuvem de fumaça, penetrando as
minhas narinas. Inspirei profundamente. Como amava
aquele cheirinho!
Tão logo ficamos sozinhos novamente, Adônis se
adiantou em responder, pendendo o corpo para frente.
— Ele não existiu por muito tempo, donzela. Eu já
nem lembrava mais que um dia fui assim.
Senti seus dedos gelados alcançarem as costas da
minha mão e enrijeci no mesmo momento.
Como sou tonta, uma coisinha tão pequena e eu
já fico toda boba...
Imitei-o, inclinando o tronco para ficar mais
próxima dele.
— Eu gosto bem mais desse Adônis.
— Eu também — respondeu sério.
— E o que aconteceu para...? — minha voz morreu
no ar. Não consegui colocar em palavras o que exatamente
gostaria de saber. Isso porque existiam várias perguntas
ali. O que aconteceu para esse lado ter deixado de
existir? O que aconteceu para você ter se tornado tão
rude? O que aconteceu para que sua essência voltasse à
tona?
Por sorte, ele entendeu onde eu queria chegar e
respondeu a última delas.
— Você aconteceu.
Eu estive esperando por você
E você esteve esperando por mim
Me diga que você vai ser sempre verdadeira
E você será a única para mim

The Civil Wars – Forget me not


Meu coração parou por alguns segundos e eu
soube que deveria estar vermelha como um morango bem
maduro. Sem desviar o olhar, Chewie bebericou o café,
recordando-me da existência do meu.
Dei um longo gole da bebida fumegante,
aproveitando para colocar a cabeça no lugar. Era perigoso
percorrer caminhos como aquele, em que os sentimentos
emergiam, porque tornava as coisas mais dolorosas. Por
isso, em vez de me deixar abalar por suas últimas
palavras, resolvi ignorá-las. Fingir que ele nunca dissera
aquilo. Afastei a mão, quebrando o contato, e a repousei
no meu colo. Mordi o lábio inferior, considerando o
momento oportuno para uma dúvida que vinha ocupando a
minha cabeça nos últimos dias.
— Chewie... — chamei, ganhando tempo para
escolher as melhores palavras.
— Hum?
— Não fique bravo comigo, mas não consigo
entender essa discrepância enorme entre você dentro e
fora da sala de aula. Por que é tão... hum... rígido?
Sua língua passeou pelos lábios. Instintivamente,
repeti o movimento sem nem ao menos dar conta. Ele
apoiou os cotovelos sobre a mesa e cruzou as mãos com
uma expressão desconfiada.
— Rígido? Achei que diria outra coisa.
— Você é muito nervoso e impaciente. —
Respondi, porém como ele continuou me olhando com a
mesma cara, completei. — Ok, eu confesso. Queria dizer
carrasco mesmo.
Adônis riu, assentindo.
— Imaginei. Mas, respondendo sua pergunta, acho
que devo isso à minha mãe.
— Sério?
— Dona Bárbara honra o nome que tem. Ela é
mesmo bárbara. — Cobri a boca com a mão para abafar a
risada que soltei sem querer. — Lá em casa quem
mandava era ela. Não só em mim, aliás, meu pai que o
diga. A mulher parece uma onça brava!
— Então está me dizendo que herdou a braveza
dela? — enfatizei a palavra apenas para provocá-lo.
— Calma. — Sorriu. — Me deixe continuar.
— Sou toda ouvidos — falei com o rosto
enterrado na porcelana da caneca.
— Bom, como estava dizendo, ela tinha punho
firme. Eu não podia sair da linha nem um pouquinho
sequer. Só que daí entra o agravante: minha mãe é
professora de história, donzela. E ela me deu aula a vida
toda. Agora imagine, se já era brava em casa, na escola
isso triplicava. Vocês me chamam de... carrasco em sala
de aula, entretanto é só porque não conheceram a
professora Bárbara.
— Não acredito! — soltei, sem esconder a
empolgação. — Agora tudo realmente faz sentido. Sua
mãe devia pegar bastante no seu pé, né?
— Pegar no pé? Por favor, ia muito além de pegar
no pé. — Ele abriu um sorriso arrebatador. — Mas, sim,
para resumir é isso. Acho que acabei aderindo ao método
dela. Depois que cresci, percebi que a maneira como nos
disciplinava era importante. Carrego todas as aulas de
história vivas na memória, uma por uma.
— Não acha que é um pouquinho demais? —
perguntei timidamente. — Quero dizer, entendo o seu
ponto, só que como estou do outro lado, tenho certeza que
a maioria nutre um misto de raiva e pânico por você.
— Mas, Rebecca, eu quero apenas que vocês
absorvam o conteúdo. — Seus dedos longos foram até
anel prateado usado como pingente em seu colar, girando-
o. Eu nunca tinha o visto sem ele. — Ocupar o posto de
professor-camarada não me interessa. Estar em uma
Universidade é um privilégio que a maioria desperdiça.
Se vocês saírem das minhas aulas com uma bagagem a
mais, a má fama terá valido a pena. É só isso que importa.
Fiz uma pequena pausa. Adônis era um homem
interessante. Já havia me falado uma vez que o curso de
Letras nunca foi sua prioridade e mesmo assim parecia
levar tão a sério.
— Eu sempre fui muito estudiosa, então sei que
não conta — comecei, sem ponderar se passava dos
limites com aquela conversa. — Mas, por outro lado,
também sempre fui muito observadora, Adônis. E nem
sempre o melhor método é a repressão. Não é preciso ser
amigão, também. O respeito habita em outros lugares.
— Acho que deve ter razão — falou baixinho,
concentrando-se em estalar os dedos das mãos, com a
mente longe dali.
Minha barriga roncou como um motor velho e, por
isso, tomei o cardápio para mim. Comecei a folheá-lo sem
saber ao certo o que queria. Meus olhos passeavam pelas
apetitosas fotografias, cheios de indecisão, quando ouvi
Chewie pigarrear. Subi o olhar e o encontrei com uma
cara de desaprovação.
— Estou com fome — justifiquei, como se isso
encerrasse o assunto. Porém, ele parecia não achar o
mesmo, pois em uma fração de segundo seus dedos
arrancaram a caderneta plastificada dos meus. — Hei! —
protestei, indignada. Afinal, fome era uma coisa muito
perigosa de se brincar.
Indiferente ao meu sofrimento, ele se curvou para
trás, espiando o lado de fora por cima do ombro.
Acompanhei seu olhar para descobrir que o temporal tinha
cessado. Restava apenas uma garoa fraca e chata.
— Parou de chover, vamos embora?
— Mas eu estou com fome! — repeti.
Ele não ouviu da primeira vez?
— Eu sei. Vamos embora logo para que eu possa
resolver isso.
O quê?
— Resolver... a minha fome? — Senti-me um
pouco estúpida pela maneira como a pergunta soou.
Chewie soltou uma risada baixa, erguendo a mão
direita a fim de chamar a atenção da garçonete, que veio
prontamente. Depois de pedir a conta, voltou-se para mim
outra vez.
— É o que pretendo.
— Vai cozinhar para mim?— Céus, as perguntas
se tornavam cada vez mais óbvias! Eu parecia ter perdido
o controle da língua.
— Só se você quiser.
— Calma, espera! — encarei o relógio,
descobrindo que já passava das seis. Pela máscara de
Vader, passamos a tarde inteira juntos!, surpreendi-me,
encarando-o novamente. E agora ele quer... — Você está
me convidando para jantar!
— Adoro a sua sagacidade... — Brincou, com sua
habitual ironia. Respondi revirando os olhos
dramaticamente.
— Não é isso, Chewbacca — dei ênfase ao
apelido. — Eu achei que não podíamos nos envolver.
— Estou apenas te convidando, como um amigo,
para comer amigavelmente na minha casa amigável.
Joguei a cabeça para trás, liberando a mais alta de
todas as risadas. Ganhamos mais olhares impacientes, aos
quais não dei a mínima.
— Certo, amigavelmente. Posso lidar com isso.

Eu adoraria ter ido para o meu apartamento.


Adoraria tomar um demorado banho e vestir roupas
limpas, secas e quentinhas. Adoraria andar de meias pelo
resto da noite. Era o meu desejo inicial e ele ardia dentro
de mim, eu juro. Afinal, minhas roupas ainda estavam
úmidas e eu não planejava pegar uma gripe. No entanto,
logo quando pisamos no terceiro andar do prédio onde
morávamos, percebi que meus amigos já estavam em casa.
Eu esperava que voltassem apenas de madrugada, mas
pela balbúrdia vinda lá de dentro, dava para perceber que
não apenas voltaram, como levaram outras pessoas para o
after party.
Revirei os olhos, bufando audivelmente. Eu sabia
que seria bombardeada no momento em que abrisse a
porta. Meus colegas de apartamento me pressionariam até
eu contar tudo o que havia para ser contado. Podia até
imaginar as perguntas: Rebecca, onde você estava? O que
fez durante a tarde inteira? O garoto misterioso também
foi? Por que está molhada? Becca, você acabou de
chegar, para onde vai?
Eu não queria precisar lidar com nada disso, pelo
menos não naquele momento. Por isso, quando Adônis me
convidou para entrar, encarando-me com aquela expressão
tão indecifrável, assenti silenciosamente e o segui para
dentro do seu refúgio. Castiel nos recebeu com miados
roucos e cheios de manha. Sorri ao assistir ao dono se
curvar para pegar o bichano no colo, enterrando o rosto
contra a pelagem fofa dele.
Então, de repente, girou nos calcanhares, ficando
de frente para mim.
— Vem aqui comigo, vou te dar uma toalha.
— Não precisa, eu estou bem. Praticamente seca.
Suas íris ocre esverdeadas percorreram o meu
corpo, deixando um rastro de calor por onde passaram.
Ele se demorou observando as duas bolinhas ainda
molhadas da camiseta, que permaneciam ali graças ao
sutiã. Por dentro quis morrer de vergonha, mas por fora
não dei o braço a torcer. Fingi não notar.
— Sei — falou divertido, retomando os passos em
direção ao quarto. E, para não ficar sozinha, percorri o
mesmo trajeto, seguindo-o.
Paramos em frente ao guarda-roupa, de onde
Chewie tirou uma toalha com estampa de dinossauros.
Meu sorriso foi de orelha a orelha. Não dava para
acreditar que o homem em minha frente era o mesmo que
aterrorizava a todos na faculdade. Quem poderia acreditar
que o Carrasco tinha canecas, lençóis e toalhas de
dinossauros?
— Eu nem mesmo tenho o que vestir!
Adônis fez uma pausa dramática, ignorando
completamente o meu comentário. Olhou para dentro do
armário e o seu queixo caiu.
— Meu Deus, o que é isso aqui? — disse,
pegando algo lá de dentro. — Seriam... roupas?! Nossa,
quem esperaria por algo assim?
Mordi o lado de dentro da bochecha, tentando,
com todas as minhas forças, permanecer impassível. Não
queria dar o gostinho da vitória. Porém, ao notar a
expressão travessa no rosto dele, desmanchei-me em
risadas.
— Você é a pessoa mais insuportável do mundo!
— Eu sei. — Piscou, colocando as peças sobre as
minhas mãos. — Vou adiantando a janta. Você tem alergia
ou não gosta de alguma coisa?
— Não e não.
Sem dizer mais palavra alguma, Chewie sorriu e
seguiu pra fora do quarto, deixando-me para trás. Era
estranho, mas apesar das poucas visitas, eu me sentia
estranhamente à vontade em seu apartamento. Mordisquei
o lábio inferior, seguindo para o banheiro.
Se ao menos você soubesse
Como poderia ser fácil me mostrar o que sente
Mais do que palavras
É tudo que você tem que fazer para tornar real

Extreme – More than words


Embora a minha vontade fosse permanecer
embaixo da água escaldante pelo resto da noite, fiz o
possível para não demorar muito. Ele também tinha
tomado chuva e, mesmo molhado e com frio, deixou-me
passar em sua frente. Lavei a cabeça em poucos minutos,
imaginando-o, a todo momento, dentro do box, sem roupa
alguma cobrindo aqueles músculos deliciosos...
Cruzes, a minha imaginação estava para lá de
fértil!
Sequei-me com a toalha de dinossauros, tentando
refrear a sensação engraçada subindo pelas entranhas. Era
uma droga não poder me deixar levar quando
simplesmente não possuía nenhum controle sobre minhas
emoções. Elas tinham os próprios planos e não estavam
dispostas a ceder para a razão. Só me restava aceitar.
Tomei a camiseta preta de gola V, escolhida pelo
meu vizinho. Ele era muito mais alto e, por isso, ela me
serviu como um vestido, terminando logo abaixo do
bumbum. O característico perfume amadeirado dele
invadia minhas narinas, fazendo-me revirar os olhos cada
vez que inspirava profundamente. Meu rosto queimou
quando alcancei a cueca boxer. Tentei agir com
naturalidade enquanto a arrastava pelas coxas, cobrindo a
minha nudez. Estudei meu reflexo no espelho por um
momento. Apesar de a cueca parecer um shortinho, ficava
coberta pelo algodão da camiseta-vestido. Encarei a calça
de moletom dobrada sobre a tampa da privada e sequer
precisei vesti-la para deduzir que ficaria imensa em mim.
Saí do banheiro em uma nuvem de fumaça,
deixando a calça no quarto antes de rumar para a cozinha,
onde encontrei os dois moradores. Castiel dormia
tranquilamente em uma cadeira, ao passo que Adônis
ocupava-se em descascar uma batata com agilidade.
Recostei-me no batente da porta, cruzando os
braços sobre o peito. Permiti-me memorizar a cena antes
de indicar minha presença ali, com uma suave tossida.
Chewie olhou em minha direção e pareceu esquecer o que
fazia. Os lábios se separaram ligeiramente enquanto as
íris me estudaram com paciência, tal como eu estivera
fazendo sem ele saber.
— A-algum problema com a calça? —
Desconcerto tomou seus traços.
— Ficaram enormes. — Não era completamente
verdade. Porém, algo na forma como seus olhos
queimavam me deixou satisfeita por nem ao menos cogitar
usá-la. — Algum problema em ficar sem elas? —
Perguntei, fingindo inocência. Essa era a primeira vez, no
entanto, em que havia malícia por trás das minhas
palavras.
— Não. E-eu... Você está... — A voz saiu rouca.
Ele precisou pigarrear para continuar. — Merda, donzela!
— Seus punhos fecharam e os nós esbranquiçaram, como
quando estava na barra se exercitando.
— O que eu fiz?
— Não banque a inocente! Sei muito bem o que
está tentando, sua diabinha! — disse com a voz sôfrega,
apontando o indicador para mim. Ele esfregou o rosto com
as mãos de dedos compridos, passando ao meu lado como
um raio.
— Onde você vai?
— Tomar banho! — a voz veio abafada lá de
dentro.
Mordi o lábio inferior, a fim de evitar a
gargalhada. Somente me ver tinha o deixado daquela
maneira? Mas eu já havia usado vestidos antes! Olhei
para baixo, encontrando o pano preto de sua camiseta
contornando o meu corpo. Talvez fosse a camiseta. Talvez
ele visse algo excitante em me presenciar vestindo suas
roupas. Aquilo era bom. Saber que me desejava, ver com
os meus próprios olhos o quanto Chewie perdia cada vez
mais a batalha. Bom, ao menos era em que eu queria
acreditar.
Percorri a distância até a pia e peguei a batata
abandonada, retomando de onde ele tinha parado. Eu era
péssima naquilo, mas queria ocupar a mente dos
pensamentos a todo vapor. Antes mesmo que notasse,
Adônis retornou silenciosamente. Percebi graças ao seu
cheiro, pois se achava mais intenso do que nunca. Ele
vestia apenas a calça rejeitada por mim e eu soube, no
mesmo instante, que aquilo tinha virado um jogo. Talvez
não consciente, mas ainda assim era. Arfei, surpresa com
o quanto nosso encontro amigável se tornava interessante.
Ele me estudou novamente, enquanto se
aproximava. Eu podia sentir o peso do seu olhar roçando
na minha pele, queimando-me aos poucos. Queria que
fossem os dedos, mas me contentava com aquilo.
Engolindo em seco, Chewie se aproximou, abrindo a mão
no ar. Coloquei a faca sobre ela, porém não saí de onde
estava.
— Você fez isso? — indagou, indicando a batata
toda mutilada. Eu pensei em responder com ironia, como
ele costumava fazer. O Castiel é que não foi, ele
provavelmente diria. Mas acabei apenas rindo. O estado
em que deixei o pobre tubérculo era mesmo lamentável.
— Não sou muito boa na cozinha.
— Não diga isso, donzela. Você é péssima! —
Sorriu torto. O ar rarefeito havia se dissipado. — Olha só
isso aqui! — Esticou a batatinha especialmente destruída
no ar.
Eu não me aguentei. Como poderia, afinal?
Minha gargalhada repercutiu pelas paredes do
apartamento, tão alta quanto o sino que indicava as trocas
de aulas na UEM.
— Desculpa, eu só queria ajudar! —
choraminguei.
— Já fez isso alguma vez na vida?
— Não. — Encolhi os ombros.
— Já fez qualquer coisa na cozinha, antes?
Balancei a cabeça em negativa, pestanejando de
maneira infantil. Ele expirou o ar em forma de risada
incrédula.
— Como você se alimenta?
— Arthur. Ele é o melhor cozinheiro que conheço.
— Ah, não mesmo!
— Como você pode afirmar?
— Não tem como ele ser o melhor, já que eu
obviamente ocupo esse lugar.
Bati meu ombro no dele, gostando de sentir nossas
peles colidindo. Por isso, permaneci ali, mais próxima do
que deveria.
— Convencido.
— Não se trata de ser convencido, mas sim de
saber das coisas. Depois da janta você terá mudado de
ideia.
— Quero só ver. — Pisquei.
— Você não vai apenas ver. Vai me ajudar!
Abri os lábios em assombro. Acho que foi notável,
pois um sorriso vitorioso estampou seu rosto.
— Vou começar te ensinando a descascar uma
batata. Porque isso — Tornou a erguê-la. —, está
vergonhoso.
— Para de ser chato, aposto que nem está tão
ruim.
Observei-o abandonar a faca sobre a tábua e
caminhar até a geladeira, abrindo-a com um solavanco e
pescando uma nova batata na gaveta de vegetais. Ele a
atirou para mim. Agarrei-a como se dependesse daquilo
para viver.
Enquanto Chewie vinha em minha direção, uma
ideia invadiu minha cabeça. Eu sequer tive tempo de
pensar direito, apenas vi meu corpo agindo por conta
própria. Ele estendeu a mão para que eu entregasse o
tubérculo, mas, em vez disso, escondi-o atrás das costas.
Com um sorriso travesso nos lábios, Adônis tentou
pegar de mim, parando em minha frente. Apesar de ele ser
muito maior, inclinei as costas para trás, como se
estivesse prestes a deitar na pia. Apoiando um dos braços
ao lado do meu corpo, ele copiou meu movimento,
avançando para tomar o que eu escondia.
Estávamos muito próximos, sua respiração morna
acariciava o meu rosto. Seus olhos permaneceram fixos na
minha boca, enquanto ele se aproximava perigosamente,
tão devagar que eu me perguntava se estava mesmo
acontecendo. Nossos narizes estavam a poucos
centímetros de distância. Minha garganta secou naquela
fração de segundo com duração infinita. Umedeci os
lábios e esse foi o estopim para Adônis cobrir minha boca
com a dele.
Porque isso é torturante
A eletricidade entre nós dois
E isso é perigoso
Porque eu quero você tanto

Daughter – Landfill
Arfei em espanto. Aquela era a última coisa que
eu esperava quando aceitei o convite para jantar. E foi
exatamente essa a razão para ser tão especial. Quando sua
língua encontrou a minha, trazendo o sabor mentolado,
soltei a batata sem nem pensar duas vezes, enterrando as
mãos nos cabelos macios de Adônis. Sua respiração ficou
pesada em um passe de mágicas. Ele me beijava como se
estivesse faminto e somente eu pudesse saciar sua fome.
Eu entendia porque era como me sentia.
Mordi seu lábio inferior, arrancando um suspiro
pesado dele. Seus braços se fecharam ao redor da minha
cintura, acabando com o resquício de distância que ainda
restava entre nossos corpos. O peito subia e descia
rapidamente contra o meu. Uma das mãos subiu pela
minha coxa, deixando apertões urgentes, até que chegou à
curva onde começava o bumbum. Ele repousou a mão ali,
enterrando os dedos. Sua necessidade de mim me
inflamava por dentro e logo senti o corpo pegando fogo. A
ânsia lasciva que somente Adônis podia despertar chegou
de uma vez, roubando um gemido rouco do fundo da
garganta.
Ele segurou o meu queixo com firmeza, beijando-
me de uma maneira tão intensa que era quase obscena.
Então, contrariando o que nossos corpos clamavam,
descolou nossas bocas e encostou a testa na minha, ainda
de olhos fechados.
— Meu Deus, não estou conseguindo me controlar.
— Mas não precisa.
— Eu não posso, eu... — Outro suspiro. — Não
posso, Rebecca. Não dá.
Meu coração ficou do tamanho de um grão de
mostarda. Em parte por causa das palavras, mas
principalmente por ele ter me chamado pelo nome. Eu
podia contar nos dedos da mão direita quantas vezes isso
já havia acontecido. Eram tão poucas...
— Adônis... — falei em tom de súplica — Eu
quero tanto você. Não pode me mostrar o quanto me
deseja e depois recuar.
— Estou tentando fazer o que é melhor para nós
dois — sussurrou baixinho e quase não entendi.
— Não. O que estávamos fazendo é justamente o
melhor para mim neste momento. — As palavras se
atropelaram para fora da minha boca. — Não me diga que
tudo isso é medo?
— Shhhh — ele me calou com um beijinho,
apertando a força no braço que permanecia na minha
cintura. — Não é medo. Eu já te expliquei o quanto
também quero isso. Mas não posso. Nós não temos futuro,
donzela.
Ótimo, o apelido voltou.
— Por que diz isso?
— É complicado...
— Tente me explicar. Acho que mereço entender.
Respirei fundo, preenchendo os pulmões com
frustração. E, com isso, juntei a coragem que só as
pessoas que já perderam a esperança conseguem.
— Isso tem alguma coisa a ver com os seus
pesadelos?
Adônis se desvencilhou de mim. O frio que me
envolveu no segundo seguinte foi doloroso. Minha
garganta deu um nó, sufocando-me aos poucos.
— Sim e não — falou por fim, fechando os dedos
ao redor do meu pulso. Ocupou o polegar em acariciar a
minha palma com gentileza. Seus olhos desviaram dos
meus, mirando para um lugar muito longe dali. — Sempre
fui apaixonado por música. Isso é um pouco culpa do meu
pai. Ele também é professor, como a minha mãe. Dá aulas
na UEL. Cresci ouvindo rock e herdei a paixão dele.
Eu me lembrava de algo assim. Ele mencionara no
passado que começou violão muito novo, graças ao pai.
As palavras ainda permaneciam vívidas na memória. “A
música é importante para mim. Desde muito antes de eu
aprender a tocar, aliás. Foi o meu pai quem me ensinou
a gostar, então eu a vejo como uma velha amiga, sabe?
Aquela que não importa quanto tempo passe, estará
sempre de braços abertos para me receber”.
— Passei horas e mais horas da minha vida no
quarto, treinando. Meus dedos se enchiam de bolhas e
calos, mas era uma dor instigante. Soube na primeira vez
que meus dedos passaram nas cordas de um violão que
queria trabalhar com aquilo pelo resto da vida. Foi uma
certeza. Mas não aconteceu como achei que seria. —
Coçou o nariz, torcendo o rosto em uma careta
amargurada. — Eventualmente acabei mudando de ideia.
Minha vida tomou um curso diferente e, por isso, resolvi
adiar meu sonho. Achei que tinha tudo sob o controle, mas
estava longe disso, donzela. Porque a vida é essa coisinha
mandona, que gosta das coisas à sua maneira. Então,
quando cursava a faculdade de Letras, aconteceu uma
coisa que mudou minha vida.
Ele me encarou e, pelos olhos de Outono, percebi
que ainda não era o momento em que eu descobriria mais
sobre os pesadelos. Mordi o lado de dentro e aceitei sua
decisão, apesar de me corroer de curiosidade. Fui criada
pelos meus avós com espaço e compreensão, por isso
jamais pressionava alguém a dizer aquilo que não queria.
Eu também já tinha sofrido na vida e sabia que, às vezes,
o que menos queremos é precisar lidar com as memórias.
Eu adoraria conhecê-lo mais e mais, descobrir o máximo
possível sobre o homem por quem me apaixonara. Porém,
seria tão melhor quando ele se sentisse confortável para
falar. Ao menos, essa tática sempre funcionou lá em casa.
Era por essa razão que eu jamais escondia algo dos meus
avós.
— Eu perdi muitas coisas importantes, donzela. Eu
me perdi. Depois disso, percebi que não podia mais me
deixar em segundo plano. E isso nos leva ao motivo de eu
não poder me envolver com você agora. Quando prestei o
concurso para lecionar na UEM, foi com uma única
finalidade: juntar dinheiro.
Arqueei as sobrancelhas, confusa. Afinal, ninguém
economizava sem ter uma grande motivação por trás.
Lendo a dúvida no meu rosto, ele continuou.
— O salário aqui é bem melhor e, por não
conhecer ninguém em Maringá, não gastaria com
futilidades.
— E por que você precisa desse dinheiro?
— Porque vou me mudar.
— De cidade?
— De país.
— O quê?! — indaguei, atônita. — Como assim?
Para onde você vai?
Seus polegares gelados alcançaram o meu rosto,
roçando carinhosamente as bochechas. Eu gostava quando
ele fazia aquilo. Fechei as pálpebras, apreciando o
contato, desejando com todas as minhas forças que as
coisas entre nós pudessem ser tão simples quanto aquela
carícia.
— Para a Irlanda. Dois grandes amigos estão
morando em Dublin e por isso vai ser mais barato dividir
uma moradia com eles, enquanto tento ingressar na
Waterford Institute of Technology, que fica em uma
cidade vizinha.
— Mas... precisa ser lá? — Eu sabia que a
pergunta era patética, mesmo assim não fui capaz de evitá-
la. — Quero dizer, existem boas faculdades de música
aqui também. O que essa tem de tão especial?
Ele deu um sorrisinho amargurado.
— Eu não sei. Sempre gostei da Irlanda. E, além
do mais, vou poder aperfeiçoar o inglês e conhecer a
Europa. Vou poder... fugir um pouco daqui. Preciso disso,
donzela, do contrário não conseguirei seguir em frente. —
Ele fez uma pausa, segurando o meu rosto com as duas
mãos. — Você não tem nenhum objetivo que queira
alcançar cegamente?
Expirei o ar dos pulmões. Abri os olhos,
deparando-me com as íris enigmáticas de Chewie. Sim, eu
tenho, pensei comigo, finalmente começando a
compreender algumas coisas.
Desde que tive maturidade o suficiente para tomar
decisões na minha vida, todas elas foram com um único
propósito — dar um passo adiante para, um dia, conseguir
trabalhar em uma grande editora. Para outras pessoas
podia ser apenas um sonho pretencioso, mas para mim ia
muito além disso. Era uma necessidade que estava
interligada aos traumas passados. Se pudesse provar para
mim mesma que conseguia, então mostraria para ela o
quanto suas tentativas de me destruir foram em vão. E
Adônis, assim como eu, também tinha suas motivações
enraizadas no passado.
Uma onda de tristeza me afogou. Pisquei os olhos
algumas vezes, perdida em pensamentos. Ele tinha razão,
a vida era mesmo uma coisinha mandona que só gostava
das coisas à sua maneira. Nos últimos anos, jamais
desviei o foco das minhas metas. Enquanto minhas colegas
de escola namoravam, saíam e começavam a descobrir a
vida adulta, eu me mantinha atenta ao futuro que almejava.
Chewie, no entanto, havia mudado isso. Despertara
sentimentos intensos em mim, fizera com que eu me
apaixonasse. E agora nós simplesmente não podíamos ir
adiante. Não tínhamos uma possibilidade de futuro, de
acordo com suas palavras.
— Quando? — foi a única coisa que escapou da
minha garganta seca.
— Em janeiro — Encolheu os ombros. — É por
isso que não podemos. Por mais que seja difícil me
afastar quando também estou louco de vontade, sei que se
nos envolvermos agora, será tudo mais complicado ainda
na hora de partir.
O baque doeu mais do que se eu tivesse batido
com a testa em um muro chapiscado. Meu coração se
comprimiu como se grandes mãos o esmagassem. Ele iria
embora em menos de um ano. Pelas barbas de Gandalf,
aquilo era uma crueldade. Sem ter o que falar, puxei uma
lasca de pele do meu lábio inferior com os dentes. Senti
um ardor que não era nada se comparado ao estado em
que eu tinha ficado.
— Quando vai parar com isso? — perguntou,
enquanto o polegar traçava o contorno da minha boca.
Então, quando menos esperava, Chewie repousou
os lábios sobre o meus. Aquilo doeu em mim, porque se
parecia com uma despedida. Um último beijo. Ao se
afastar, notei uma manchinha de sangue pintando sua boca.
Sangue que vinha de mim, aliás.
Como não encontrei minha voz em lugar algum,
permaneci emudecida. Assenti com a cabeça, preparada
para colocar minhas roupas úmidas novamente e rumar
para o meu apartamento. Porém, antes que arriscasse o
primeiro passo, Adônis me segurou gentilmente pelos
braços, preocupação tomando seus traços.
— Não precisa ir embora agora — falou, como se
tivesse lido meus pensamentos. — Vamos jantar primeiro.
Lembra? Comer amigavelmente na minha casa amigável.
Uma risadinha fraca escapou dos meus lábios
antes que eu pudesse fazer algo a respeito.
— Tudo bem — respondi e ele sorriu
genuinamente. Isso me deu ânimos para continuar. —
Quero mesmo ver se você é melhor que o Arthur. Eu
particularmente acho que não há a menor chance. —
Brinquei, sem saber onde tinha encontrado o bom-humor
novamente.
Toda vez que estou sozinha
Não consigo evitar pensar em você
Tudo o que eu quero, tudo o que preciso
Tudo que eu vejo, é apenas você e eu

Ariana Grande – Everyday


Abracei o próprio tronco, arrependida por não
ter escolhido uma blusa quentinha. O inverno se
aproximava a cada dia, embora alguns dias fossem
especialmente mais frios que os outros. Como era o caso
daquele, aliás. Mudei o peso do corpo de uma perna para
a outra, distraída com o fluxo de pessoas andando em
todas as direções. Apesar de não ser uma cidade tão
grande, era muito maior que a minha. E eu não conseguia
evitar me surpreender com o movimento frenético no
centro em uma tarde no meio da semana.
Escondi as mãos nos bolsos do cardigã e recostei
a cabeça contra a entrada da lan house, soltando um
pesado suspiro. Depois de ter passado o sábado na
companhia de Adônis e descoberto que em poucos meses
ele estaria fora do país, as coisas tinham ficado um pouco
nubladas para mim. Quero dizer, não que eu tivesse
chorado pelos cantos e comido sorvete em potes, como
nos filmes de romance. Porque eu, definitivamente, não
era assim. Mas, tudo bem, talvez tenha desenhado um
pouquinho mais do que o normal, confesso.
Eu disse um pouquinho!
Passei o domingo todo remoendo a nossa última
conversa e me perguntando se o problema estava em mim.
Entretanto, o dia nem ao menos havia acabado quando
descartei a ideia. Não tem absolutamente nada de errado
com você, Rebecca, ralhei comigo mesma, depois de uma
tarde inteira reclusa no quarto. E realmente acreditava
naquilo. Eu podia não ter nenhuma experiência com o
amor, mas possuía as minhas qualidades e ninguém me
faria duvidar delas. Nem mesmo Chewie. Além do mais,
estava certa de que Katniss Everdeen jamais se deixaria
abalar por algo tão pequeno.
Eu não sabia muito sobre o passado dele e não
compreendia seus motivos para tomar aquela importante
decisão. A vida era dele, de toda forma. Porém, quanto
mais pensava a respeito do que me dissera, menos
enxergava sentido em seu argumento. Mesmo decidido a
se mudar e provavelmente certo sobre ser mais doloroso
no final, eu queria tanto arriscar... Afinal, nós
precisávamos nos privar de experimentar coisas novas
apenas por um pequeno empecilho? Meu corpo pedia por
ele a cada minuto do meu cotidiano e estava difícil me
manter distante quando o que menos estávamos era longe.
Pelo amor de Deus, ele era o meu vizinho e me dava aulas
duas vezes na semana! Fora isso, ainda existiam os
intermináveis trabalhos extras. Era uma grande droga.
Torci o rosto em uma careta amarga ao recordar
do quanto fora mecânico e incômodo pegar a atividade
com ele na terça-feira. E, naquela noite, eu precisaria
fazer novamente.
Que a força esteja comigo!
Senti um toque no ombro esquerdo e quase
desfaleci. Olhei para trás, encontrando os olhos
esbugalhados de Arthur. Ele deu um sorrisinho torto,
erguendo as mãos para me mostrar a pilha de currículos
que havia imprimido. Nataly e eu tínhamos o ajudado a
organizar suas informações da melhor maneira possível.
Além disso, nos revezávamos para acompanhá-lo na
jornada de encontrar em emprego que não comprometesse
os estudos. Não estava sendo a tarefa mais fácil do
mundo, devo salientar. A maior parte das vagas era para
trabalhar como vendedor de shopping no turno da noite;
justamente quando estávamos em aula.
Conferi as horas no meu relógio de pulso.
— Temos meia-hora antes da entrevista, fica muito
longe daqui?
— Cinco quarteirões — respondeu, sem esconder
a nesga de desânimo do tom de voz. Estreitei os olhos,
estudando-o com atenção.
— O que foi? Você está com uma cara...
Arthur apenas deu de ombros.
— Seria tão mais fácil simplesmente deixar para
lá. Ninguém quer contratar uma pessoa sem experiência
em nada. O que é uma maldita ironia, porque para ter
experiência eu preciso da merda de um emprego! — Ele
respirou fundo, com as bochechas vermelhas de raiva. —
Fora que já é o quê? A décima entrevista em um intervalo
de três dias?
— Arthur... — comecei, enquanto atravessávamos
a avenida. — Você está um pouco frustrado e eu entendo.
A vida é esquisita, né? Parece que tudo dá errado de uma
só vez. Mas logo essa maré ruim passa. — Sorri. — Você
vai encontrar um emprego e não vai mais precisar
depender de ninguém. Vai poder viver a vida à sua
maneira sem se preocupar em se esconder das demais
pessoas. Fica calmo... Quando menos esperar, estará
sorrindo à toa.
Sempre fui uma ótima conselheira. A parte ruim é
que eu só conseguia pensar com clareza quando se tratava
de problemas das demais pessoas. Os meus pareciam
sempre enormes e irreparáveis e, na maior parte das
vezes, eu praticamente surtava até encontrar uma solução.
— Tomara, Becca.
Meu amigo passou o braço direito sobre os meus
ombros e o meu coração apertou um pouco. De fato, as
coisas não estavam muito fáceis para ele. Eu me sentia
impotente por assistir tudo de perto sem poder ajudar.
Bem, estava jogando com as cartas que tinha nas mãos,
acompanhando-o para as entrevistas e tentando colocá-lo
para cima na medida do possível. Mas, ainda assim,
parecia não ser o suficiente.
— Estou com medo, sabia?
— Da entrevista? — perguntei distraída.
— Da conversa que o Pedro quer ter comigo.
Ah, é, pensei, com um nó na garganta pelo meu
amigo.
Como se já não bastasse o fato de sua família ter
virado as costas para ele, ainda tinha isso. Pedro se sentia
muito culpado por tudo, afinal fora ele quem deu a notícia
no Facebook. Graças a ele, a vida do namorado tinha
virado de ponta cabeça. O que era ridículo, porque todo
mundo entendia que o grande problema na situação não
estava em nenhum dos dois, mas sim nos pais de Arthur,
preconceituosos o suficiente para deixar o filho a mercê
da própria sorte. Desde então, os dois se viam cada vez
menos. Meu amigo se queixava constantemente do quanto
tinham se distanciado, mesmo quando estavam juntos.
A vida era difícil de entender, de vez em quando.
Eu queria me compadecer por Pedro, mas só conseguia
ficar decepcionada. Nataly e Pábila dividiam a mesma
opinião. Poxa, eles deveriam passar por tudo isso juntos.
Arthur precisava dele mais do que nunca. E o que ele
fazia? Fugia. Argh, aquilo me irritava demasiadamente!
— E-ele adiantou a pauta? — balbuciei.
— Não. Mas não é difícil de imaginar, né?
Engoli em seco. Não, não é.
— Você acha que ele vai terminar?
Os lábios de Arthur tremeram levemente, como se
estivesse segurando o choro com todas as forças.
— Droga, eu acho! — lamentou-se, ainda com o
braço ao redor do meu corpo, enquanto virávamos à
esquerda. — Becca, eu não consigo acreditar! Estou
passando por tanta coisa, eu só queria... — Ele suspirou.
— Só queria que ele estivesse do meu lado. Eu não me
importaria de enfrentar os meus pais, ou quem quer que
fosse, por ele. Eu juro, é tão certo estarmos juntos. Mas de
que adianta? Só eu estou disposto a remar.
Como não encontrei uma resposta, enlacei-o pela
cintura, depositando um pouco de força nos braços como
se dissesse “estou aqui”. Seguimos em silêncio até chegar
à loja onde ele seria entrevistado. Na minha cabeça,
porém, uma frase ecoava como um alarme de incêndio:
“só eu estou disposto a remar”. Por alguma razão, ela
também descrevia bem a maneira como eu me sentia em
relação ao Adônis.
Mordisquei o lábio inferior, tomando uma decisão:
eu mostraria os meus motivos para estarmos juntos, da
mesma forma que ele me dera os seus para não nos
entregarmos aos nossos sentimentos. Ficar de braços
cruzados não combinava nada comigo. Eu precisava ter a
certeza de que usaria todas as minhas peças antes de
abandonar o jogo, para não me arrepender depois.
Eu simplesmente não sei o que fazer comigo mesmo
Eu não sei o que fazer comigo mesmo
Planejando tudo para dois
Fazendo tudo com você

The White Stripes – I just don’t know what to do with myself


Sentei-me na cama em um pulo, sobressaltada. A
campainha repercutia muito alta pelas paredes do
apartamento, sem cessar. Meu coração batucava com força
dentro do peito, chegando até a doer. Tateei o lençol em
busca do celular e meu queixo caiu quando espiei as horas
no visor e descobri ser cinco e meia da manhã! Pela
máscara de Vader, era cedo demais até para mim! Que
tipo de ser-humano faria aquele tipo de crueldade em
pleno sábado? Ainda mais quando estava friozinho e,
consequentemente, tão bom de dormir.
Bufei ao constatar que o barulho infernal não
pararia a menos que alguém fosse até lá, nem que fosse
para acertar uma panela naquela pessoa diabólica. E,
conhecendo bem o sono dos meus colegas de apartamento,
estava certa de que deveria ser eu. Eles nem deveriam ter
ouvido.
Arrastei-me pelos cômodos, odiando a pessoa do
outro lado com todas as minhas forças. Solte o botão da
campainha, pelo amor de Deus!
A raiva se esvaiu tão logo abri a porta. Do lado de
fora, Chewie me encarava com uma expressão dengosa.
Expirei, sem nem notar que sorria.
— Te acordei? — perguntou com ironia,
observando o meu estado: camisola de Stormtroopers,
cabelo desgrenhado e, provavelmente, olhos remelentos.
Embora eu soubesse que deveria estar morrendo
de vergonha, ainda me encontrava um pouco apática pelo
sono.
— Sim. E é bom ter um ótimo motivo para ter me
arrancado da cama, ou as consequências serão severas.
Ele riu, apoiando o braço esquerdo contra a porta
às minhas costas. Prendi a respiração com a nossa
proximidade.
— Não era você que gostava de acordar cedo? —
indagou divertido.
— Tem uma diferença enorme entre acordar cedo
e madrugar! — protestei.
— Não tem dessa, cedo é cedo. Você está de
corpo mole. — Piscou e eu derreti um pouquinho.
Conforme conseguia organizar meus pensamentos,
percebia a estranheza de sua visita. Ainda mais
considerando que durante a semana as coisas entre nós
estiveram tão esquisitas enquanto tentávamos fingir um
para o outro que os nossos sentimentos não entravam em
ebulição quando ficávamos próximos.
Talvez ele tenha lido a pergunta na minha
expressão confusa, pois aproximou o rosto um pouquinho
mais antes de prosseguir.
— Não estou conseguindo ficar longe de você,
donzela. Temos um problema aqui.
Meu coração deu uma guinada. Mordi o lábio
inferior, com medo da súbita mudança ser apenas fruto da
minha imaginação. Talvez eu acordasse agarrada ao
travesseiro.
— Não parece um problema para mim — admiti,
sentindo as bochechas queimarem.
Seu rosto chegou tão perto do meu que nossos
narizes quase roçaram um no outro.
— Será que consegue arrumar uma mochila com
roupas confortáveis até as seis? Que é daqui a... — Ele
desviou as íris para o relógio por uma fração de segundo
antes de voltar a me encarar. — vinte minutos?
Espera... o quê?!
— Tipo uma mala? — perguntei debilmente.
— Tipo uma mala — ecoou, com um sorriso torto.
— Vou te sequestrar.
— E vai me levar para onde?
— Se você soubesse, não seria um sequestro.
Oh, Deus...
Assenti com a cabeça, incapaz de encontrar a
minha voz. Ele me deixara perplexa com o convite.
Felizmente, o simples gesto foi o suficiente para Chewie
abrir o sorriso mais lindo de todos.
— Te espero no carro.
Com as pernas trêmulas, observei-o descer as
escadas. Eu sequer sabia por onde começar. Era difícil
pensar em arrumar uma mala quando não fazia ideia de
para onde iríamos.
Girei nos calcanhares, abrindo a porta. Quando me
deparei com Nataly e Arthur encolhidos logo na entrada,
pulei de susto. E então meu queixo caiu.
— V-vocês estavam... ouvindo?
Droga!
Os dois se entreolharam, culpa estampada nas
feições. Porém, bastaram segundos para que as expressões
se transmutassem para sorrisos vitoriosos, que diziam
com todas as letras “te pegamos no flagra!”.
Droga, droga, droga!
— Meu Deus! — O sorriso de Nataly parecia de
uma criança que tinha ganhado um caminhão inteirinho de
chocolate. — Meu Deus! — repetiu e, após olhar de mim
para Arthur, falou pela terceira vez. — Ai. Meu. Deus.
Rebecca!
Meu amigo, por sua vez, demorou mais do que o
habitual para esboçar a primeira reação. Tombou a cabeça
para trás, liberando uma gargalhada desafinada. Esfreguei
o rosto, sem saber o que fazer. Eu não queria que eles
descobrissem naquelas circunstâncias. Planejava contar
em breve, é claro, mas não às seis da manhã de um
sábado, quando nem ao menos havia acordado direito.
— Isso é uma pegadinha, né? — perguntou Arthur,
sem parar de rir. — Jesus, aquele era mesmo o Carrasco?
— Se eu não conhecesse a voz, jamais acreditaria.
Quem sonharia nele falando todo mansinho assim? Fora
que ele a chamou de... donzela?!
Ao ouvir as palavras dela, Arthur se empertigou,
aparentando recordar um detalhe muito importante.
— Becca! Foi com ele que você esteve aquela
noite na faculdade?
— Ai, meu Deus! — Nataly bateu palmas,
empolgadíssima. — Então é por isso que às vezes você
sumia no intervalo. Isso está ficando melhor a cada
segundo!
Permaneci emudecida desde que entrara no
apartamento. Quero dizer, nem ao menos tive tempo de
responder, pois os dois pareciam duas matracas. Mas,
mesmo que pudesse, o que diria? Eles tinham ouvido a
conversa, de qualquer jeito.
— Dentre todas as pessoas dessa UEM, quem
sonharia que justamente o professor Adônis ia mudar a
cabeça da nossa bonequinha, hein? — Arthur olhava para
lugar nenhum, como se fosse realmente muito difícil de
acreditar.
— Tudo bem, tudo bem. Eu admito. Estamos...
hum... saindo. Mais ou menos. É complicado, na verdade.
Prometo contar todos os detalhes na volta se vocês
prometerem que ninguém ficará sabendo. Por favorzinho?
— Fiz minha melhor cara de piedade.
Meu amigo foi o primeiro a reagir. Adiantou-se e
me envolveu em um abraço apertado.
— Bobinha, é claro que não vamos contar para
ninguém! Somos uma família, lembra?
Nataly veio logo em seguida, fechando o triângulo
enquanto assentia com a cabeça. Senti-me tão amada
durante aquele instante que esqueci completamente o fato
de só ter vinte minutos para arrumar a mala para um
destino desconhecido.
— Você precisa se apressar, Becca — ela quebrou
o silêncio carregado de cumplicidade. — Afinal, o seu
Carrasco está esperando para te sequestrar!
Desejei ser uma avestruz, só para poder enterrar a
cabeça no chão e escapar do olhar cheio de malícia que
os dois me lançaram, enquanto ríamos como crianças. Em
vez disso, concordei e aproveitei a oportunidade para
fugir dali, correndo para o meu quarto.
Apesar de ter tentado organizar as minhas coisas
para a viagem misteriosa o mais depressa possível, já
tinham se passado vinte minutos do horário combinado
quando corri pelo estacionamento, alcançando o carro do
meu professor.
Em parte por ter perdido um tempinho com os
meus amigos, mas, principalmente, porque foi difícil à
beça escolher o que levar. Enquanto separava algumas
mudas, ocorreu-me que ele não tinha falado por quanto
tempo ficaríamos fora. Talvez voltássemos no final da
noite, mas talvez voltássemos somente no dia seguinte.
Céus, eu sentia um friozinho na barriga de expectativa.
Pensar que ele tomara a iniciativa me deixava louca. Por
fim, depois de andar de um lado para o outro no quarto,
pedi a ajuda de Nataly e ela me deu um conselho o qual
julguei brilhante.
— É melhor levar demais do que de menos.
E era exatamente por isso que eu parecia carregar
um corpo humano dentro da mochila: tinha colocado tudo
o que imaginei necessário para o passeio. O que era
muita, muita coisa mesmo.
Dei três toquinhos com os nós dos dedos no vidro
do carro e Adônis pulou para fora no mesmo instante, os
olhos brilhando intensamente.
Pegou a minha mala, guardando-a no porta-malas.
Depois espiou o relógio, sem deixar escapar o atraso. No
entanto, Chewie quebrou o silêncio apenas quando o carro
já se locomovia pelas ruas muito arborizadas de Maringá.
Eu me ocupava em observar o caminho, na tentativa de
adivinhar para onde estava me levando. Por isso, ao ouvi-
lo, sobressaltei-me.
— Tsc, tsc... Por sua culpa, donzela, nosso café da
manhã será um pouco corrido. Quero pegar a estrada antes
das sete.
Não consegui entrar na brincadeira. Isso porque
“pegar a estrada” foram as únicas palavras registradas
pelo meu cérebro. Prendi a respiração, olhando-o com
expectativa. Até então não conseguira pensar direito sobre
o convite dele como um todo.
— Nós vamos viajar, então — comentei, apesar de
ser tão óbvio. Ele deu um sorrisinho travesso, piscando
em seguida. — E esse lugar... ele é longe?
— Pouco mais de quinhentos quilômetros. Umas
sete horas de viagem.
Minha boca ficou seca. Era quase o dobro de
distância do que para a minha cidade natal! A informação
veio como um baque. Por alguma razão, fiquei
atemorizada com a perspectiva. A insegurança durou
apenas segundos, de toda forma. Antes que pudesse sequer
absorver a informação direito, Adônis repousou a mão
direita na minha coxa. Lamentei que estivesse usando
jeans naquele dia em especial, porque adoraria ter sentido
o toque frio de seus dedos.
Quando busquei seu olhar, deparei-me com uma
expressão preocupada.
— Tudo bem para você?
— T-tudo! Claro. — Sorri. — É só... — minhas
palavras morreram no ar.
O que foi, Rebecca?, meu subconsciente
perguntou. Refleti por um instante a respeito. Eu já
deveria ter deduzido isso, não? Chewie tinha me falado
para arrumar uma mala. Além disso, eu mesma pensei que
poderíamos ficar mais de um dia fora. Então por que a
notícia me perturbara?
Ouvi-me respondendo de repente.
— É só que eu nunca viajei sem os meus avós.
Nunca fiz nada sem eles, na verdade. Acho que me
assustei um pouco, mas já passou.
— Hei. — Seus dedos apertaram suavemente a
minha perna. — Nós podemos mudar os planos. Mesmo
que eu tenha passado a tarde inteira de ontem pensando
nos detalhes, sou bom em improvisos. Só quero te roubar
para mim um pouquinho, não importa onde.
Minha gargalhada preencheu cada centímetro do
carro, ao mesmo tempo em que um calor gostoso me
dominava por dentro.
Ele quer me roubar... por Bilbo Bolseiro! Espero
que não devolva nunca mais.
— Planejou o meu “sequestro” a tarde inteira? —
fiz aspas no ar e não escondi o tom desconfiado. — Seu
mentiroso!
Ele parou o carro com facilidade em frente a uma
padaria cujo cheirinho de pão assando dava para sentir da
rua. A mão direita, que tinha saído da minha perna para a
manobra, voltara rapidamente para lá. Meu estômago
gelou.
— Minha moral está assim tão ruim com você,
donzela? — Fingiu um tom ofendido, fazendo-me rir ainda
mais. Concordei com a cabeça, apenas para provocá-lo.
— Não estou mentindo. Eu realmente fiz isso.
— Por quê?
— Porque queria que fosse perfeito.
Oh!
Como era possível uma simples frase ocasionar
um terremoto dentro de mim? Por um momento, esqueci-
me até mesmo de como se pronunciava as palavras.
Chewie abriu e fechou a boca umas três vezes.
Então passou a mão livre pela barba de lenhador, mirando
o horizonte como se tentasse reunir coragem para dizer
aquilo que queria. As íris de Outono se voltaram para
mim pouco depois. Encontravam-se ardentes.
— Confia em mim, Becca? Eu... — sua voz falhou
ao mesmo tempo em que um arrepio percorreu a minha
coluna. Era a primeira vez que ele me chamava pelo
apelido. Por alguma razão, o gesto me deixou com as
mãos suando frio. Adônis pigarreou antes de prosseguir.
— Eu prometo que valerá a pena. O lugar é lindo. E são
só dois dias... Voltamos na segunda de manhã.
Para mim vale a pena somente pelo fato de ter
você, pensei. Porém o que respondi, foi:
— Eu confio.
Eu, pelo menos, estou disposta
A ficar aqui até que você esteja disposto
Talvez você não esteja pronto
Para lidar com algo estável

Sara Jaffe – Summer begs


Joguei uma batata chips para dentro da boca, sem
conseguir dominar a sensação de leveza me dominando.
Eu estava tão feliz... Se em algum momento hesitei em
fazer aquela viagem, com toda a certeza qualquer
resquício do sentimento já havia se dissipado. Mesmo
com o bumbum amassado depois de horas sentada, uma
felicidade avassaladora preenchia os meus membros cada
vez que Chewie acompanhava as músicas de Beatles, que
tocavam desde Maringá. A voz dele era como uma rajada
de vento que arrepiava todos os pelos do meu corpo,
fazendo-me estremecer.
Aprumei-me no lugar, girando o tronco a fim de
ficar de frente para ele. Seu rosto estava totalmente
focado na estrada. Era engraçado presenciá-lo tão sério,
agora que já conhecia o Adônis brincalhão que tanto
adorava. Ajeitei o moletom dele sobre o meu tronco,
enterrando o rosto no tecido para sentir o aroma
amadeirado pelo qual nutria um vício secreto. Tudo bem,
talvez nem tão secreto assim. Conforme nos
aproximávamos de Curitiba, mais a temperatura
declinava. O que foi uma coisa muito boa, diga-se de
passagem. Uma vez que as minhas blusas achavam-se
apinhadas na mochila dentro do porta-malas, meu
professor oferecera o próprio moletom.
Como se tivesse lido meus pensamentos, ele
desviou os bonitos olhos para mim, em uma fração de
segundo.
— Ficou quieta... achei até que tivesse dormido.
— Estava aqui pensando. Preciso mandar uma
mensagem para os meus avós avisando sobre a viagem.
— Acha que está encrencada? — indagou,
presenteando-me com um sorriso.
— Nem um pouquinho. — Ri baixinho, pensando
melhor em sua suposição. — Eles não são avós
convencionais. Me oferecem bastante liberdade.
— Ah, é? — Concordei com a cabeça e ele
prosseguiu. — Você sempre fala deles. Devem ser bem
importantes.
— Foram eles quem me criaram. Minha mãe me
teve muito nova e... — Parei por um momento,
mordiscando o lábio inferior. — Você sabe, não ficou
exatamente feliz com isso.
Adônis me lançou outro olhar. Este estava repleto
de perguntas. Expirei o ar dos pulmões, decidindo que não
queria alterar a atmosfera gostosa da viagem. Poderíamos
conversar sobre isso em outras ocasiões. Seria um pecado
macular a lembrança daquele dia maravilhoso.
— Então, para todos os efeitos, eles são os meus
pais.
Ele pareceu entender que aquele assunto não era o
meu predileto, pois a pergunta que veio logo depois foi:
— E como foi ser criada por eles?
— Normal. A maioria das pessoas imagina que
cresci em uma cúpula de proteção. Eles são corujas, não
nego — nós dois rimos. —, mas sempre se esforçaram
muito. Nunca escondi nada deles. Não que houvesse nada
para ser escondido, mas você me entendeu.
— Humm, interessante. Você contou que ficou de
porre logo no primeiro dia de aula?
— É claro — dei de ombros. — Inclusive a parte
do vômito verde e tudo mais.
Adônis riu de maneira tão gostosa que me
contagiou.
— Contou que dormiu na casa do seu professor
porque foi expulsa pelos seus colegas de apartamento?
— Nessa parte a minha avó ficou um pouco
desconfiada sobre eu apenas ter dormido... mas contei.
Nossas risadas se sobrepuseram à música. Ele
esfregou os olhos com os dedos longilíneos. Minhas
bochechas se encontravam em brasas.
— Consigo entender a razão. — Brincou, lançando
uma piscadela cheia de malícia para mim. — Então eles
sabem sobre mim?
— Ah, como sabem! Contei sobre o professor
sádico que me deu a primeira nota vergonhosa da vida
inteira e que, além de tudo, não me deixa dormir à noite.
Neste ponto, ele gargalhava. A constatação de que
eu ocasionara aquilo roubou a força dos meus joelhos.
Céus, como amava aquele som!
— Aposto que me adoram.
— Tanto quanto eu.
Observei-o umedecer os lábios e fiquei sedenta.
Adoraria tê-los sobre os meus. Para distrair a vontade de
agarrá-lo com o carro em movimento, enfiei mais um
punhado de batatas boca adentro, ocupando-me em
mastigar. Isso evitaria meus pensamentos de percorrerem
caminhos perigosos.
— Considerando que você já sabe bastante sobre
a minha família, acho que deveria me contar mais sobre a
sua.
Assenti, com um sorriso bobo no rosto. O
interesse dele em mim muito me agradava. Empertiguei-
me, desviando o olhar para fora. As folhas das árvores
refletiam o Outono e, por isso, tinham as cores dos olhos
de Adônis.
— Vamos ver... Vovô é a pessoa mais honesta que
conheço. Ele parece o Ned Stark, sabe? É justo e tem um
coração enorme. Acho que é impossível tirar o meu avô
do sério. — Fiz uma pausa, sentindo o peso da saudade
recair sobre os ombros. — Vovó é mais velha que ele,
mas os dois são bem jovens. Por fora e por dentro. Ela
tem 55 e ele 53. Minha avó é dona de um salão de beleza
que é muito conhecido em Santa Cruz do Rio Pardo. Até
um tempo atrás o cabelo dela era todo moderno, estava
cada dia com uma cor diferente. Mas, principalmente,
roxo. Meu Deus, como ela ama essa cor!
— Agora não está mais?
— Não, ela diz que passou da idade de fazer essas
coisas. Mas, na minha opinião, acho que até o final do ano
deve voltar às origens.
Continuamos conversando despreocupadamente.
Um assunto puxava o outro com tamanha facilidade que
era impossível parar de falar. E, assim, o tempo escapou
pelos dedos como areia fina, fazendo com que horas de
viagem aparentassem ter a duração de minutos.

Era por volta das três quando chegamos a uma


cidade chamada Pontal do Paraná. Eu jamais tinha ouvido
falar daquele lugar e, para falar a verdade, não consegui
compreender a razão para Chewie tê-lo escolhido. No
entanto, logo descobri que era preciso estar ali para ter
acesso à Ilha do Mel, nosso destino primário.
Adônis tinha um conhecido na cidade, onde deixou
o carro. Então rumamos para o cais, uma vez que a única
maneira de chegar à ilha era por meio das barcas.
Enquanto o barquinho balançava de um lado para o outro,
descobri um apanhado de informações interessantes sobre
o local, graças ao pescador tagarela que se sentou ao
nosso lado. Dentre eles o fato de não existir um único
carro lá, e também que a prefeitura limitava o número de
visitantes para cinco mil pessoas.
Desembarcamos na praia das Encantadas. Inspirei
profundamente o ar fresco que só é encontrado na
natureza, olhando para Adônis com expectativa. Somente
ali, tão longe de Maringá, fui tomada pelo entusiasmo.
Céus, seríamos apenas nós dois sozinhos naquele lugar
maravilhoso. Tinha como ficar melhor?
Caminhamos por ruelas estreitas sem trocar
palavra alguma. Não se tratava de um silêncio
constrangedor, no entanto, mas sim confortável. Do tipo
que não é preciso falar nada para se sentir à vontade na
presença de alguém. Eu gostava. O som nos nossos
sapatos raspando na areia fina do chão se fundia ao sopro
constante do vento, formando uma melodia de cadência
suave e acolhedora.
Chewie segurou a minha cintura, indicando que
vivaríamos à esquerda. Cruzamos o cercado baixo e
desnivelado de madeira que delimitava um enorme
gramado. Só então me ocorreu que a grandalhona mala
azul carregada por ele abrigava uma barraca. Isso porque
nos encontrávamos em um camping. Eu jamais estivera
em um antes, mas não era preciso ser um gênio para
chegar à conclusão óbvia.
Arquejei em surpresa, ganhando sua atenção.
— Já acampou?
— Nunca. Meus avós são modernos, mas nem
tanto.
Ele riu genuinamente.
— Bom, vou precisar da sua ajuda para armar a
barraca. — Tão logo suas palavras pairaram pelo ar,
Chewie soltou uma risadinha, balançando a cabeça em
negativa. — Essa frase pegou tão mal.
— Se tinha um duplo sentido, juro por Darth Vader
que não entendi. — Dei de ombros. — Mas, espera.
Armar a barraca? Só tem uma?
Apesar de ter dado a impressão de espanto, por
dentro eu senti uma nova onda de excitação.
Oh, Deus, quais as chances de isso tudo ser um
sonho muito bom?
— Sim. É onde você vai ficar.
— Eu? — indaguei e ele concordou. — Mas e
você?
— Tenho um saco de dormir, donzela. Vou dormir
do lado de fora.
Mordisquei o lábio inferior, ligeiramente
desapontada.
O que você esperava, Rebecca? Que ele te
agarrasse na calada da noite?
Pensando bem, não seria má ideia!
Enrubesci, imaginando as infinitas possibilidades
desperdiçadas com sua escolha, porém decidi não me
queixar. O fato de estarmos ali já era muito além do que
eu esperara depois de descobrir que Chewie se mudaria
para a Irlanda em poucos meses. Para alguém que tentava
convencer o coração a desapaixonar, eu até que estava
com sorte.
— Você faz isso sempre? — perguntei, enquanto
caminhávamos em direção ao casebre laranja vibrante,
localizado ao fundo do terreno. Aninhado bem em frente à
porta, um imenso cachorro de pelagem cinzenta dormia a
sono solto.
— Fazia. Na época da faculdade eu e os meus dois
melhores amigos, os que estão em Dublin, aliás,
acampávamos com frequência.
— E por que parou?
— Falta de oportunidade. Tem gente que gosta de
acampar sozinho, mas para mim só vale a pena quando
tenho uma boa companhia.
Nossa vidas estão mudando de pista
Você me jogou pra fora da estrada
A espera terminou
Eu estou agora tomando o controle

The Strokes - Reptilia


Depois de acertar os detalhes com o dono do
camping e deixar metade do pagamento adiantado,
passamos um tempo considerável montando a barraca.
Preciso dizer de antemão que não se tratava da tarefa mais
fácil do mundo. Em determinado momento percebi que
ajudaria bem mais se simplesmente saísse do caminho e
parasse de ser um estorvo. Por isso, deixei Adônis
terminar de armar sozinho.
— Pegou tudo? — perguntou ele, buscando-me
para a realidade. Assenti com a cabeça, mostrando o
bloco de desenho em uma mão e o estojo na outra. Ele
sorriu, prendendo a alça da capa do violão nos ombros
largos.
Como já era final de tarde quando terminamos de
nos acomodar no lugar onde ficaríamos por todo o final de
semana, decidimos apenas caminhar um pouco pela ilha,
em busca de um lugar onde pudéssemos sentar e relaxar
depois de horas a fio trancafiados dentro do carro.
Não precisamos ir tão longe, de toda forma.
Talvez a época do ano fosse a grande culpada pela Ilha do
Mel achar-se praticamente vazia. Também, pudera, o
inverno estava logo ali. Praias não eram o destino mais
cobiçado em dias frios. No entanto, o fato de não ter
quase ninguém contribuía e muito para a atmosfera entre
nós dois. Era como se o mundo fosse inteiro nosso — e
talvez fosse mesmo.
Deparamo-nos com a praia deserta, começando a
receber as primeiras pinceladas de roxo vibrante, amarelo
queimado e vermelho intenso, indicando a chegada do por
do sol. À nossa direita, um rústico deque de madeira
traçava o caminho em meio a pedras enormes e
irregulares. Poucos metros à frente, ondas quebravam com
mansidão, trazendo o característico cheio de maresia aos
nossos narizes.
Sentei-me na areia fofa, cruzando as pernas.
Chewie imitou meus movimentos, abrindo a capa de couro
e retirando o violão lá de dentro. Encaixou-o no colo,
como se precisasse dele ali, porém não o tocou
imediatamente.
Tateou os bolsos até encontrar o maço de cigarros,
de onde tirou um e levou aos lábios, acendendo-o com
destreza. Não demorou mais que segundos para o aroma
mentolado pairar pelo ar.
— Obrigado por confiar em mim, donzela. —
Tragou profundamente, soprando a fumaça para fora dos
pulmões pouco depois.
— Já valeu a pena. — Admiti com honestidade.
Ele assentiu, calado. Levou o cigarro à boca outra
vez, deixando-o lá, meio caidinho. A maneira como ficou
preso em seus lábios era tão sexy que me deixava
desconcertada. Respirei fundo, desviando a atenção para
os dedos compridos e magros que começavam a passear
pelas cordas despretensiosamente enquanto afinava o
instrumento.
Abri meu bloco de desenho após pescar um lápis
6b no estojo. Desejei no meu íntimo que aquele fim de
tarde não terminasse nunca, porque era muito bom apenas
permanecer ali, em sua companhia. O grafite tocou na
superfície áspera do papel Canson exatamente no
momento em que os primeiros acordes repercutiram ao
nosso redor, envolvendo-nos. Fechei os olhos por um
momento. Meu coração parecia grande demais para caber
no peito.
Retomei o desenho, eternizando-nos na folha de
papel. Adônis e eu, sentados a 500 km de distância de
onde morávamos, com uma vista extraordinária somando
ainda mais à atmosfera. Ele segurando seu violão com um
cigarro na boca, como um verdadeiro rock star. Eu
desenhando despreocupadamente, como uma artista em
potencial. Sorri com o rumo tomado pelos meus
pensamentos.
No segundo seguinte, minha mente esvaziou em um
rompante. Isso porque a voz de trovão do meu professor
foi de encontro a mim, responsável por deixar meus dedos
das mãos e dos pés formigando. As coisas que ele
provocava no meu corpo eram insanas. Eu nem ao menos
sabia que existiam tantas sensações fascinantes como
aquelas desencadeadas por ele.
— Tão perto, não importa quão distante. Não
poderia ser muito mais vindo do coração. Sempre
confiando em quem nós somos, e nada mais importa.[1]
Eu não conhecia a música, mas gostei assim que
invadiu os meus tímpanos. Estava desconfiada que talvez
se devesse pelo fato de ser ele quem cantava. Não
importa, era linda.
— Nunca me abri desse jeito. As vidas são
nossas, nós vivemos do nosso jeito. Todas essas palavras
eu não apenas digo, e nada mais importa.
As horas avançavam, fazendo com que o sol se
escondesse cada vez mais no horizonte e a noite
avançasse lentamente como uma grande tenda negra. Não
sei dizer quantas músicas Chewie cantou, tampouco em
que momento exato eu constatei que havia parado. Quando
terminei o desenho e percebi o silêncio, procurei seu
olhar e o descobri voltado para mim, aquecendo-me
naquela noite gelada.
Notei, atônita, que o violão já se encontrava
guardado novamente em sua capa. Adônis tinha os braços
cruzados sobre o peito e as pernas esticadas na areia.
Sustentei o olhar, sentindo meu corpo incendiar de
supetão. Fui tomada por um impulso de coragem, sem nem
ao menos compreender de onde veio. Lembrei-me da
promessa feita ao longo da semana: eu queria refutar seus
argumentos para não estarmos juntos. E precisava ser ali,
naquela cúpula que havíamos criado ao nosso redor.
Que a força esteja comigo!
— Adônis... — chamei, arrastando-me com
sutileza para mais perto dele. Talvez tenha sido apenas
impressão minha, mas seus olhos brilharam. — Fiquei
pensando sobre tudo o que conversamos.
— O que exatamente, donzela? — perguntou em
um tom leve.
— Nós dois — limitei-me a dizer. Sulcos se
formaram em sua testa instantaneamente quando ele uniu
as sobrancelhas. Mordi o lado de dentro da bochecha,
procurando palavras para expressar exatamente como eu
me sentia. — Você me disse que não podemos nos
entregar aos sentimentos porque quando for a hora da
despedida será bem mais difícil. Eu entendo, mas não
concordo. Talvez no passado fizesse sentido, até porque
passei a vida toda me enganando, fingindo que nada disso
era para mim. Mas agora, Chewie, que experimentei essa
intensidade de sentimentos, parece tão errado não
mergulhar completamente de cabeça apenas por... medo.
Porque é isso. Mesmo você não admitindo, está com medo
de sofrer. E eu também estou. Droga, é claro que estou!
Nunca vivi nada minimamente parecido, estou sempre um
passo atrasada, sem saber o que vem pela frente. Mas
quer saber? Talvez seja exatamente isso o que torna tudo
tão excitante, sabia?
Respirei fundo, lutando para organizar os
pensamentos. Ele parecia uma estátua, encarando-me com
as íris enigmáticas. Esperando por mais.
Pigarreei, esfregando o rosto.
Você consegue, Becca. Vamos lá.
— É como não viver a vida ao máximo porque um
dia morreremos. Entende o quanto é problemático?!
Deixarmos de experimentar uma história que poderia ser
incrível, tentar reprimir esse desejo ardendo aqui dentro
só porque depois vamos sofrer na despedida. Não posso
aceitar essa desculpa, não mesmo. Afinal, não sei você,
mas independente de irmos em frente ou não, a despedida
será dolorosa para mim, Adônis. Já percorremos um
caminho muito longo para voltar atrás.
Engoli em seco, prestes a chorar. Inferno, por que
eu precisava ser tão sentimental?
— Se eu me privar de sentir com a intensidade que
mereço, vou me arrepender para sempre. Podemos não ter
todo tempo do mundo, mas ainda existe o agora. É o que
temos! — Ajoelhei-me na areia e avancei em direção a
ele. — Isso é melhor que nada. Eu não sei o que te
aconteceu no passado, mas não deixe o medo te manter
preso... — Passei uma perna ao redor da sua cintura,
sentando-me sobre ele. Por Voldemort, estou mesmo fora
de mim! — Por favor, vamos descobrir onde isso vai dar.
Calei-me e percorri a distância entre nós, até
alcançar sua boca. O conhecido sabor de menta estava lá,
como eu me lembrava. Adônis permaneceu enrijecido por
alguns segundos, parecendo surpreso com a minha
investida. Porém não demorou para seus braços se
fecharem na minha cintura e ele corresponder ao beijo. A
força do nosso abraço era tamanha que senti meus seios se
comprimirem contra o seu torso. Ele passou a movimentar
o quadril suavemente, mostrando-me seu desejo pulsante.
Suas mãos passeavam pela minha cintura, apertando-me
com urgência e ardor.
Mordi sua língua suavemente e fui presenteada
com aquele gemido baixo que ele deixava escapar quando
estava muito excitado. Arquejei, dominada pelo
sentimento lascivo. Por Deus, sempre que aquele som
penetrava os meus tímpanos, cada célula do corpo entrava
em combustão espontânea. Era como uma corrente elétrica
de voltagem altíssima estalando por onde passasse.
De repente, percebi que estar ali entre os seus
braços fortes era tudo o que eu mais queria no mundo.
Sentia-me satisfeita e completa. Adônis era o bálsamo
confortando todo o anseio avassalador dentro de mim. O
que mais importava?
Bem, você é minha?
Você é minha? Você é minha?
Você é minha amanhã?
Ou minha só por esta noite?

Arctic Monkeys – R U mine?


Aquele era oficialmente o nosso primeiro
encontro e o lugar não poderia ser mais bonito. O
restaurante à beira-mar rodeado por palmeiras enormes
ganhava um ar rústico e aconchegante com as paredes de
madeira. As luzes bruxuleantes vindas dos lustres de
cobre faziam um show à parte, enquanto nos deliciávamos
com toda sorte de frutos do mar, sentados em cadeiras de
palha.
Eu gostava de pensar em quantos outros lugares
maravilhosos como aquele estavam escondidos pelo
mundo, apenas esperando para serem descobertos. Se não
fosse por Adônis, eu jamais teria a oportunidade de estar
ali. Gostaria de também ter um refúgio secreto ao qual
pudesse apresentá-lo.
Espetei um camarão, raspando-o no molho branco
antes de levá-lo à boca. Não contive o gemido de deleite
que escapou dos meus lábios logo depois.
Adônis sorriu, satisfeito consigo mesmo.
— Você fica linda quando faz essa cara —
murmurou, como se os pensamentos tivessem saído em
voz alta.
— Qual cara?
— De prazer. Faz a imaginação alçar voo.
Arregalei os olhos, enrubescendo. Então ele
também pensava em nós dois daquele jeito. Ultimamente o
que eu mais fazia era fantasiá-lo me despindo aos poucos,
os dedos longos se enterrando na minha pele. Sempre
quando uma imagem dessas surgia em minha mente, o
coração disparava e as mãos gelavam. Mas, ainda assim,
era uma ideia deveras sedutora. Por Luke Skywalker,
como ficou quente aqui dentro!
Minha reação arrancou uma risada divertida de
Chewie. Ele se encontrava especialmente bonito naquela
noite, a propósito.
— O que foi?
Adônis me provocava, é claro. Adorava me deixar
envergonhada. Foi por essa razão que tentei surpreendê-lo
com minha resposta.
— É que... — soprei, tentando soar sensual. —
Me pergunto em que estava pensando.
— Hum... — Seu sorriso era travesso. — Vamos
ver... talvez em você, com essa mesma expressão,
comendo meu yakisoba que, francamente, é delicioso.
— O seu... yakisoba? — Não consegui esconder o
quanto fiquei atordoada. Céus, podia jurar que ele falaria
alguma coisa bem safada. Estreitei os olhos, caindo em
mim. — Você estava só brincando comigo! — Arquejei,
com o queixo caindo.
Sua gargalhada me envolveu, arrancando a
vergonha que me engoliu de uma só vez. Não acredito que
caí nessa, lamentei-me, sentindo o rosto febril.
— Eu? — Ele se fez de desentendido. — Claro
que não! Jamais faria isso. Aliás... em que você estava
pensando?
Mostrei a língua para ele, sem saber a razão pela
qual me apaixonara por aquele insuportável. Eu devia ser
masoquista. Por outro lado, quando parava para pensar na
discrepância de quando o conheci, sentia-me sortuda. Ele
era o meu refúgio secreto, no fim das contas, aquele que
eu descobrira aos poucos. Camada por camada. E, quanto
mais fundo penetrava, mais gostava do que descobria.

Saí do restaurante com uma carranca emburrada.


Adônis caminhava despreocupadamente ao lado, com as
mãos nos bolsos da calça. Não deixei passar o sorrisinho
torto em seus lábios.
Apesar dos meus protestos, ele não havia me
deixado pagar a conta. Nem mesmo metade! Ok, fora com
a melhor das intenções, é claro, mas eu não me sentia bem
sabendo que ele estava arcando com praticamente todos
os custos da viagem. Além do mais, sempre achei o
máximo aquelas mulheres modernas que pagavam a
própria conta. E ele nem tinha me dado a oportunidade de
me sentir assim. Aquele chato gostoso que não parava
sorrir! Argh! Aquilo só dificultava a tarefa de manter a
pose de brava.
Andamos alguns passos em silêncio, antes dele se
curvar para sussurrar contra o meu ouvido:
— Ainda está brava comigo?
Um arrepio percorreu minha espinha como um raio
caindo do céu. Parei no lugar, enrijecendo. Como não
encontrei as palavras, apenas meneei a cabeça,
concordando.
— Sério? — sua voz era como um sopro baixo,
mal dava para ouvir. No entanto, eu podia sentir bem até
demais o hálito quente contra minha pele já sensível.
Mordisquei o lábio inferior, sem reação. — Você me quer
longe, é isso?
Novamente, só fui capaz de responder por gestos.
Assenti outra vez, lutando para manter o que restava da
postura. Já não me lembrava, porém, do motivo para ter
ficado brava com ele. De olhos fechados, não pensava em
nada, somente em sua presença tão desconcertante e
deliciosa.
— Mas não parece... — disse, roçando levemente
os lábios contra o lóbulo da minha orelha. — Parece outra
coisa.
— Ah, é? — Consegui perguntar. — O quê?
As pontas dos seus dedos subiram pelos meus
braços e, embora fossem frios, deixaram um rastro de
calor. Prendi a respiração quando repousaram nos meus
cabelos, afastando-os da nuca.
Seus lábios úmidos deslizaram pelo pescoço. Foi
com tamanha leveza que mal pareciam, de fato, me tocar.
Ao mesmo tempo, a barba áspera arranhava minha pele,
provocando um leve ardor.
— Eu não sei... — sussurrou. — Só acho que
quando alguém fica nervoso, não reage assim. — Ele
raspou os dentes na nuca, arrancando um pesado suspiro
de mim. — Viu, só?
Eu não conseguia pensar com clareza. O cérebro
parara de funcionar.
— Adônis... — gemi.
Foi o suficiente para ele abandonar o autocontrole.
Abri os olhos quando Chewie se afastou de mim. Ele
olhou para os lados, a procura de alguma coisa e então se
empertigou ligeiramente. Segurando o meu pulso com
força, rumou em direção ao muro de uma casa ao final da
rua, onde as luzes fracas dos postes não conseguiam
alcançar e, por isso, encontrava-se muito mais escura que
o restante da rua estreita e vazia.
Suas mãos pararam na minha cintura como em um
passe de mágica e, logo em seguida, vi-me sendo
prensada contra a parede por seu corpo muito sólido.
Nossos lábios se chocaram de uma maneira um pouco
dolorosa, mas logo a língua de Adônis percorria a minha
boca, em um beijo faminto. Eu retribuía com igual
intensidade, inclinando o quadril ao máximo para senti-lo
mais e mais.
Suas mãos subiram pelas minhas coxas, desta vez
desnudas, entrando para baixo da saia.
— Você... me... deixa... fora de mim — segredou
contra minha boca, tal como fizera na primeira vez em que
nos beijamos.
Então, a poucos metros de distância, ouvimos o
ranger de um velho portão sendo aberto. Adônis ajeitou
minha saia, afastando-se em uma fração de segundo e
pigarreando. Rimos baixinho, cheios de cumplicidade.
Ele alcançou minha mão, entrelaçando nossos
dedos. Mordi o lado de dentro da bochecha, sorrindo
internamente. Percorremos o caminho até o acampamento
em poucos minutos. Minha respiração já havia
normalizado àquela altura.
Antes de atravessarmos a cerquinha irregular, no
entanto, ele parou de frente para mim, levando as mãos
aos dois lados do meu rosto. Algo em sua expressão
cautelosa me alertou de que eu não gostaria tanto do que
tinha para me falar.
— Donzela, eu... — Respirou fundo. — Eu não
consigo simplesmente me entregar. Não só porque vou
embora, mas pela minha história, por tudo que passei.
Você está certa, tenho medo. Estive muito tempo solitário,
te conhecer não estava nos meus planos.
— Nem nos meus.
— Eu sei. — Um sorriso fraco tomou seus lábios.
— Eu quero você demais, Becca, mas é tão complicado.
Ainda não estou preparado para tomar uma decisão que
vai nos fazer sofrer lá na frente. Já sofri demais e vejo que
você também. Se já está difícil agora para nós dois,
imagine depois?
Este é um bom ponto, pensei, sentindo o desânimo
avançar de fininho. Notando minha súbita mudança de
humor, ele se adiantou, colando o corpo no meu. As mãos
permaneceram em meu rosto, no entanto.
— Então porque estamos aqui, para começar?
Adônis fechou as pálpebras, com as sobrancelhas
espessas unidas.
— Porque eu sou um maldito egoísta que não
consegue ficar longe.
— Eu não quero ficar longe. Quero te descobrir
cada vez mais, quero que você continue deixando o meu
corpo desgovernado de uma maneira tão boa, e...
— Becca... — ele me interrompeu, com a voz
sôfrega. Era quase uma súplica. Então, quando meu
coração já se encontrava em frangalhos, voltou a me
beijar.
Permaneci de olhos abertos por alguns segundos,
os quais levei para me recuperar do susto. Retribuí ao
beijo, adorando seu sabor mentolado, adorando suas mãos
em mim, adorando tudo o que não podia ter. Adônis
afastou o rosto poucos centímetros, encarando-me com as
íris brilhando.
— Você me disse para aproveitarmos o agora.
— Disse — assenti, percebendo onde ele queria
chegar.
— Fica comigo esse final de semana. Vamos fingir
que tudo é fácil para nós e que temos todo o tempo do
mundo.
Umedeci os lábios, estudando-o com atenção.
Podia parecer loucura, mas de alguma maneira suas
palavras reacenderam uma chama de esperança dentro de
mim. Talvez pelo fato de que, por um instante, eu havia
apagado a possibilidade de qualquer coisa entre nós.
Enfim, não importava. Aquele era o nosso estranho jeito
de amar e por mim tudo bem. Mesmo dois míseros dias
eram melhores do que nada.
— Vamos deixar acontecer sem lembrar que tem
uma data para terminar. Porque, Becca, eu...
Roubei um beijinho dele, calando-o. Existia algo
melhor para aquele momento que nossos próprios atos? Se
não tínhamos muito tempo, ao menos que soubéssemos nos
aproveitar.
Suas mãos se fecharam ao redor da minha cintura
e, quando nos afastamos um do outro, Adônis abriu um
sorriso que me deixou sem fôlego.
— Entendi o recado.
— Que bom. Já estava pensando em desenhar —
brinquei, puxando-o para dentro do camping.
Atravessamos o gramado até parar em frente à sua
barraca grandalhona, onde ele me beijou profundamente.
Parecíamos dispostos a recuperar o atraso de todos os
dias perdidos. Se ali era o nosso refúgio da realidade,
parecia uma boa ideia ficar com os lábios dormentes.
— Acho que não vou mais precisar do saco de
dormir — sussurrou, encolhendo os ombros.
Não consegui evitar a risada.
— Você nunca precisou — respondi, observando-
o abrir o zíper do nosso abrigo e se sentar logo na
entrada.
No segundo seguinte, enlaçou os braços ao redor
dos meus joelhos, forçando-me a imitar a posição da praia
— sentada em seu colo. Caí sobre ele, jogando os braços
ao redor do seu pescoço quase que instantaneamente.
Adônis sorriu com malícia, levando-nos para dentro.
Ele tirou meus óculos, deixando-os em um
cantinho no chão. Seus dedos compridos se enterraram
nos meus cabelos quando os lábios voltaram a cobrir os
meus, apaixonados. Fiquei inteira arrepiada, como se mil
plumas percorressem meus membros. Subi minhas mãos
por seus braços fortes, sentindo a rigidez deles,
experimentando-o aos poucos. Percorri os ombros e desci
pelas costas, onde, dominada pelo momento, enterrei
minhas unhas, fazendo-o gemer daquela maneira deliciosa.
Ouvi-me gemendo junto.
Ele levou as duas mãos ao meu quadril,
pressionando-me para baixo — contra sua cintura. Senti-o
rígido, ali, tão próximo de onde o meu desejo emanava.
Soltei outro gemido que o fez abrir os olhos e me encarar
com luxúria.
Adônis se elevou alguns centímetros comigo no
colo, invertendo nossas posições. Seu braço serviu de
apoio até minhas costas chocarem contra o chão e ele se
deitou por cima de mim, apoiando-se nos cotovelos.
— Ah, Becca... O que você fez comigo? —
perguntou baixinho, olhando-me de cima. — Não tenho
mais nenhum controle sobre mim.
Passei os dedos pelos cabelos que caíam sobre
seu rosto. Minha mão desceu até seu lábio inferior. Tracei
o contorno com a ponta do indicador. Eu não conseguia —
tampouco queria — parar de tocá-lo. Nem por um
segundo sequer. Mesmo no escuro, conseguia ver com
clareza a maneira como seus olhos ardiam.
— Eu que devia perguntar isso. — Sorri. —
Prometi para mim mesma nunca me apaixonar por
ninguém.
Ele prendeu uma mexa atrás da minha orelha.
— E foi se apaixonar logo pelo Chewbacca,
donzela? — Nossas risadas preencheram a barraca. — Eu
tenho muitos motivos para estar assim, já você...
— Como assim? — indaguei, sem parar de sorrir.
— Bom, você é linda, inteligente, espirituosa,
manda muito bem nos desenhos... e é uma das minhas
melhores alunas.
— Para quem você deu um quinze, a propósito.
Adônis gargalhou. Seu peito subiu e desceu contra
o meu. Algo sobre estar aprisionada sob seu corpo
rudimentar fazia meu coração acelerar.
— Eu precisava fazer isso, caso contrário onde
arrumaria outra desculpa para te ver um pouquinho mais a
cada aula?
— Fala sério! — dei um tapa contra o seu ombro.
— Pare de blefar.
Ele fez cara de ofendido.
— Por que você sempre acha que estou mentindo?
— Porque você adora me deixar confusa e
envergonhada. É um tipo de prazer sádico.
— De fato, isso eu não posso negar — respondeu,
entre um beijinho e outro. Arquejei, acariciando suas
costas suavemente.
— Mas, voltando ao assunto, preciso discordar de
você.
— Sobre o quê? — perguntou, distraído em soprar
meus lábios.
— Você me disse que não tenho motivos para me
apaixonar. Eu tenho sim, tenho todos.
— Então me convença, donzela.
— Você também é lindo. — Pisquei para ele. —
Cozinha muito bem, gosta de dinossauros...
— Esse nem mesmo é um motivo justo! —
protestou, interrompendo-me.
— É sim. Eu decido as regras por aqui. —
Arqueei as sobrancelhas, desafiando-o, mas ele apenas
encolheu os ombros. — Continuando, você é engraçado,
gosta de filmes de terror, toca violão e me beija desse
jeito delicioso.
— Como? — perguntou, com um sorriso enorme
no rosto, que fazia seus olhos se estreitarem. Céus, como
eu adorava aquele sorriso! — Assim? — Raspou a boca
na minha.
— Não.
— E assim? — Deu uma mordidinha leve no lábio
inferior.
— Também não.
— Humm... Então deve ser assim — sussurrou,
antes de invadir minha boca com sua língua. Todos meus
membros amoleceram de uma só vez.
Segurei seu rosto com as duas mãos e fechei os
olhos, com medo de que, ao abri-los, voltasse para a
realidade onde não podíamos simplesmente estar juntos.
E no meio de tanta gente eu encontrei você
Entre tanta gente chata sem nenhuma graça, você veio
E eu que pensava que não ia me apaixonar
Nunca mais na vida

Marisa Monte – Não vá embora


Meu braço formigava de maneira irritante e, por
isso, abri os olhos. Levei menos de um segundo para
organizar a mente ao me deparar com Rebecca aninhada
em mim. As lembranças da noite anterior voltaram à tona,
fazendo-me sorrir. Enterrei o rosto em seus cabelos,
sorvendo o cheiro doce de shampoo. Aconcheguei-me
ainda mais em suas costas e passei o braço livre pela
cintura dela.
Estava duro e o seu bumbum tão próximo não
ajudava muito. Além disso, minha bexiga protestava, a
ponto de explodir, mas eu não sairia dali por nada. Não
podia, de toda forma. Meu corpo clamava pela garota. Eu
sabia o quanto estava ferrado por percorrer aquele
caminho sem volta, mas não tinha forças para me manter
longe. E como poderia? Merda, não dava. Joguei meu
juízo no lixo quando planejei a viagem, no entanto não me
arrependia minimamente. Pelo contrário, sentia-me grato
por ter deixado de pensar tanto e agido somente pelo
coração.
Rebecca era cheia de vida, era impossível não se
contagiar com a energia vinda dela. Isso para alguém
como eu, que havia esquecido como tudo podia ser leve,
significava muito. Graças a ela, um Adônis que eu não
recordava a existência emergia aos poucos. E esse Adônis
sorria até ficar com as bochechas doloridas e gargalhava
tão alto que as demais pessoas paravam para olhar. Ele
era feliz.
Droga, eu realmente estou fodido.
Minha mão subiu e desceu por seu braço delgado
quando percebi um detalhe tão importante, até então
despercebido — eu dormira a noite inteira. Não um sonho
inconstante, como já estava acostumado. Não, eu
definitivamente dormira como uma pedra. Consegui
descansar, como há muito não acontecia.
Separei os lábios, desconcertado. Já contava tanto
tempo que eu era perseguido pelos pesadelos... Em certa
altura, limitei-me a aceitar minha condição, acreditando
ser imutável. Acordava noite após noite aos berros,
suando frio e vazio. Depois do acidente, jamais tive uma
trégua sem a intervenção dos remédios. E mesmo eles não
eram capazes de me proporcionar muitas horas de
descanso. Isso sem contar as noites de insônia, temendo
reviver a única memória que eu gostaria de apagar para
sempre.
Quando dias sem dormir se transformam em meses
e, então, em anos, você passa a acreditar que está sendo
castigado. Eu me sentia assim. Tinha sobrevivido, afinal.
Talvez o Universo estivesse cobrando as decisões
erradas, talvez esse fosse o preço a se pagar. E, por isso,
eu apenas seguia consternado.
Ali, com Rebecca, no entanto, fui liberto. Por uma
noite, mas ainda assim, era como meu pai dizia: para
quem tem pouco, o menor presente é bem-vindo.
Perguntei-me o quanto ela tinha a ver com isso, talvez
tudo. Quando dormiu em meu apartamento pela primeira
vez, meses atrás, também fui presenteado com um sono
calmo e sem sonhos. Na época julguei ser o cansaço por
uma noite em branco, mas agora estava claro para mim a
única constante nas duas situações — Rebecca. Ela, de
alguma forma, acalentava-me.
Respirei fundo, admitindo que não aguentaria mais
um segundo sequer, precisava me aliviar. Sem pressa, tirei
o braço debaixo dela, cuidando para não acordá-la.
Espreguicei-me e, quando estava prestes a sair da
barraca, notei sua pasta de desenhos jogada próxima da
entrada. Ri baixinho quando sua agenda me veio em
mente. Foi uma surpresa deliciosa encontrar anotações a
meu respeito espalhadas pelas páginas brancas. Embora
se tratassem de “ofensas”, gostei de saber que ocupava
seus pensamentos de alguma forma, porque ela, com
certeza, protagonizava os meus.
Foi pensando nisso que, já do lado de fora, levava
seus desenhos comigo. Não faria mal descobrir um pouco
mais sobre aquela garota fascinante. Ela provavelmente
ficaria toda vermelha quando descobrisse, e esse era
apenas um motivo a mais para ir adiante. Comecei a
folheá-los enquanto caminhava ao banheiro comunitário
do camping. As cores pinceladas em aquarela exprimiam
sua leveza e alegria, era possível identificar um
pouquinho dela em cada um deles. Becca me disse, certa
vez, que nas ilustrações encontrava uma maneira de
escapar da realidade, mas, para mim, aquilo se parecia
mais com um diário, onde podia colocar para fora tudo o
que a afligia. Tal como eu fazia nas cordas do meu violão.
Éramos tão parecidos, a nossa maneira.
Adentrei o minúsculo banheiro, deixando a pasta
de desenhos sobre o reservatório de água da privada.
Estralei o pescoço e depois os pulsos, mas, antes que
pudesse me aliviar, ela escorregou e caiu aberta. Meus
olhos correram pelos traços confiantes de uma imagem
que eu ainda não tinha visto. De repente, todos os
músculos enrijeceram de uma só vez.
O quê?
Flexionei os joelhos, tomando-a do chão. Com o
dedo indicador, contornei as curvas e retas,
reconhecendo-me. A barba, o cabelo, tudo estava ali. Não
restavam dúvidas de que era eu. Umedeci os lábios,
satisfeito pela descoberta. Mas, então, reparei na data
rabiscada em uma das extremidades do papel e o coração
se reduziu a um grão de areia.
Era do finalzinho de janeiro... só que não fazia
sentido, as aulas só começaram em fevereiro. Estreitei os
olhos, com um lampejo de entendimento. Foi quando me
mudei!
Como se ganhando vida própria, meus dedos se
ocuparam em passar as páginas, procurando por mais.
Mesmo sem compreender o porquê, eu soube que
encontraria mais de mim por ali. E não me enganei. Achei
um punhado deles. Em alguns aparecia sozinho e, nos
outros, éramos nós dois — na praia, cozinhando juntos e,
inclusive, o nosso primeiro beijo.
Deixei a pasta sobre a pia e me sentei sobre o
vaso, esquecendo subitamente da bexiga apertada.
Fechando os olhos, inclinei o tronco para frente e escondi
o rosto com as mãos. Encontrava-me acorrentado por uma
profusão de emoções intensas e também confusas.
Depois de Cecília, acreditei que jamais
conseguiria me envolver com alguém. Eu até arrisquei sair
com meus amigos e retomar a maldita vida de antes, mas
tudo tinha mudado demais dentro de mim. Mesmo quando
ficava com uma garota em alguma festa qualquer, não
conseguia ir adiante e levá-la para casa. Eu tinha minhas
necessidades como as outras pessoas, é claro, mas mal
podia cogitar transar com alguém. Era como trair Cecília,
como ser um babaca sem sentimentos, era como jogar fora
tudo o que havíamos vivido.
O luto passou e eu aceitei que as coisas
simplesmente eram como eram. Ainda me sentia vazio e
deslocado, não conseguia trazer o velho Adônis de volta.
Pelo contrário, conforme os dias corriam, mais eu
descontava nas pessoas ao redor minhas frustrações. Por
que aquilo tinha acontecido comigo, para começar? Por
que eu não pude morrer no lugar dela? Inferno, por que ela
não me ouviu quando eu disse para dormirmos em um
hotel já que estávamos bêbados demais? Aos poucos e
sem perceber, construí um muro à minha volta, tijolo por
tijolo, separando-me das demais pessoas, impedindo-as
de se aproximarem. Até o verdadeiro Adônis deixar de
existir e eu me convencer de que, no acidente, não perdera
somente Cecília, mas também meu coração.
Só que, então, apareceu a garota de expressivos
olhos verdes no meu caminho, falando sobre Star Wars e
me desafiando em sala de aula. Ela me tirava do sério, a
princípio, porque era tão complicado compreender as
reações que me causava. Porém, ao mesmo tempo, eu
sentia vontade de descobrir mais. E o Universo parecia
gostar da ideia, pois ela surgia onde e quando eu menos
esperava, bagunçando a minha cabeça, mexendo comigo,
despertando-me da apatia. Ela balançava o meu mundo.
Droga, a quem estou tentando enganar?
Era ridículo continuar fingindo para mim mesmo
que poderíamos voltar atrás. Se algum dia isso realmente
foi possível, já havia sido há muito tempo. Agora,
contudo, mexíamos demais um com o outro. Eu estava
irreversivelmente apaixonado por Rebecca e, embora
soubesse que nossos caminhos encontrariam uma
bifurcação no futuro, não conseguia — e nem queria —
me afastar.
Você vai ficar comigo, meu amor?
Por mais um dia
Porque eu não quero estar sozinha
Quando estou neste estado

Daughter – Run
Fui desperta por uma melodia suave e
envolvente. Esfreguei os olhos para afastar o sono e, ao
abri-los, deparei-me com Adônis ao meu lado. Ele
dedilhava as cordas do violão, sentado a poucos
centímetros de mim, com as pernas cruzadas como as de
um índio. Ao me flagrar de olhos abertos, abriu um
sorriso manso que me aqueceu por dentro.
— Acorda amor, que já virou outro dia, e a gente
pode fazer tudo hoje... Não me deixe pra depois, sempre
tem um bom motivo pra nós dois. Os medos que a gente
tem em cada noite, a gente pode deixar lá... Não me
deixe pra depois, sempre tem um bom motivo pra nós
dois. — cantarolou bem humorado, piscando de maneira
irresistível ao final.
É desnecessário dizer que me derreti inteira, né?
De repente, aquela expressão “borboletas no
estômago” fez total sentido para mim. Fui tomada por uma
sensação tão deliciosa, que só pude sorrir de volta. A
faceta carinhosa de Adônis me surpreendia sempre mais.
Principalmente porque era impossível não comparar com
o Adônis de antes — o qual eu sabia permanecer lá, mas
presenciava cada vez menos.
— Boa escolha. Eu adoro Mallu Magalhães.
— Eu sei. — Ele deu de ombros. — Li na sua
agenda.
— Achei que jamais faria isso.
— Bom, não pude evitar. Foi um acidente.
Minha risada o fez rir também.
— Faz tempo que acordou?
— Donzela... você acha mesmo que eu ficaria
acordado sozinho sem ter o que fazer — perguntou,
deixando o violão de lado e deslizando o corpo até se
deitar. —, quando tenho você toda para mim?
— Meu Deus, você não facilita a tarefa de não
gostar de você, hein! — disparei, abraçando-o e
escondendo o meu rosto (provavelmente inchado de sono)
na curva do seu pescoço.
— Está tentando não gostar de mim, é?
— Ué, achei que estávamos fadados ao fim —
carreguei as palavras de drama, aproveitando que estava
com a cabeça fora do seu campo de visão para sorrir.
Sua mão gelada segurou o meu queixo, até que
nossos olhos voltaram a se encontrar.
— Humm, então é fácil assim? Essa é a sua
maneira de lidar com a situação?
Assenti, sem esconder a minha expressão travessa.
Adônis umedeceu os lábios, balançando a cabeça em
negativa. Um sorrisinho torto surgiu.
— Bom, só me resta dificultar ainda mais —
murmurou, deixando um beijinho em cada canto da minha
boca. Só isso foi o suficiente para meu coração palpitar
mais depressa.
— Vai precisar se esforçar muito!
— Não será um problema, donzela. — Ele
enterrou os dedos pelos meus cabelos, como se os
penteasse. O movimento causou um leve e gostoso
arrepio. — Agora, que tal se arrumar? Quero te levar para
conhecer o Farol e não pode ficar tão tarde, porque é uma
caminhada e tanto até lá.
— Precisamos mesmo? Aqui está tão bom.
— Também acho. — Sorriu. — Mas vir para a
Ilha do Mel e não passar lá é o mesmo que não vir,
entende? Valerá a pena, eu prometo.
— Ai, Chewie... Você só me dá trabalho — falei,
piscando para ele.
Sua gargalhada foi alta e contagiante.
— Olha quem fala! — Então, sentou-se e deixou
dois tapinhas na minha coxa. — Te espero lá fora. Não
demore!
Observei-o abandonar a barraca sem mover um
único músculo. Ainda me sentia nas nuvens pela maneira
como fui acordada. Adônis era tão carinhoso, e isso era
evidente mesmo nos menores gestos. Era uma coisa
natural para ele. Senti-me tão sortuda naquela manhã a
ponto de esquecer que, na verdade, era bem o oposto
disso. Nós éramos deveras azarados, afinal, no dia
seguinte nossa dolorosa realidade voltaria à tona.
Espreguicei-me, decidida a não sofrer por
antecedência. Em vez disso, fiz como ele me falou —
levantei depressa para que pudéssemos curtir o dia. Vesti
shorts confortáveis e calcei o par de All-Star. Porém,
quando saí para ir ao banheiro comunitário, decidi vestir
um moletom por cima da camiseta. A temperatura parecia
ter caído um pouco mais.
Encontrei-o próximo à cozinha do camping,
brincando com o cachorro cinzento que vimos dormindo
no dia anterior. Observei-os por alguns minutos antes de
ser descoberta por Adônis, que me lançou um olhar
divertido.
— Não conte ao Castiel! — pediu, com uma breve
piscadela. — Ele jamais me perdoaria. — Suas palavras
me arrancaram a mais alta das risadas, fazendo-me
constatar que mal o dia começara e eu já estava mais feliz
do que nunca.

Caminhávamos há cerca de meia hora. Como eu


desconhecia o trajeto, Adônis ia à frente, olhando por
cima do ombro de tempos em tempos, para verificar se
estava tudo bem comigo. Não que fosse realmente
necessário, já que conversávamos desenfreadamente
desde quando havíamos abandonado o acampamento.
Conforme nos aventurávamos pela estradinha
íngreme a qual levava ao Farol, nossas vozes se
embolavam cheias de entusiasmo. Falamos muito de nós
mesmos, contando desde as lembranças mais triviais às
mais significativas. Eu descrevi as maratonas de terror
feitas na companhia do meu avô, às vezes em que desci o
rio de boia com os colegas de escola, e até mesmo o meu
fascínio pelas personagens fortes encontradas nos livros
de fantasia. Expliquei para ele que almejava ser estudiosa
como Hermione Granger e corajosa como Katniss
Everdeen.
— Isso explica muita coisa — ele respondeu,
entre risadas.
Então Chewie me contou sobre quando fazia teatro
de sombras com os primos, usando bonecos de
dinossauros e recriando as cenas mais icônicas de
Jurassic Park. Eu sorria tanto a ponto de doer a
bochecha. Adônis narrou os inúmeros shows feitos com a
banda na época da faculdade e me disse que nada no
mundo o fazia se sentir igual quando estava no palco.
Notei a forma como seus olhos se obscureceram, mas não
o interrompi. Eu gostava de ouvi-lo. Era muito
interessante descobrir mais sobre sua vida que, até pouco
tempo atrás, era tão misteriosa para mim.
Ele me falava sobre como Castiel aparecera em
sua vida, quando, de repente, senti uma dor lancinante no
tornozelo esquerdo. Era semelhante a um caco de vidro
rasgando a pele em um movimento impiedoso.
— AIIII! — berrei, com lágrimas nos olhos. Em
uma fração de segundo, Adônis percorreu a distância entre
nós e me segurou pelos braços com firmeza. Estava
branco como uma folha de papel.
— O que aconteceu?
Permaneci gemendo, emudecida pelo latejar que
emanava pela perna. Pelo sabre de Yoda, como doía! Meu
rosto já estava encharcado pelas lágrimas àquela altura.
— Becca?! — perguntou novamente, com mais
urgência. — O que foi?
— M-meu tornozelo — titubeei, esticando-o para
frente. Estava com medo de olhar para baixo e encarar o
estrago. Pelo tamanho da dor, aparentava ser enorme.
Ele abaixou o tronco, arfando logo em seguida.
— É aqui que dói? — indagou, tocando sobre o
ponto da pele que queimava e pulsava simultaneamente.
Minha resposta foi um gritinho abafado. — Você foi
picada por uma aranha.
— Como sabe? — perguntei debilmente.
— Porque tem dois furos — murmurou, ainda
inclinado para baixo.
— O que está fazendo?
— Procurando a aranha... — sua resposta veio
distante. Porém, logo em seguida ele arquejou outra vez.
— Porra, olha o tamanho dela! Cuidado! — exclamou,
empurrando-me levemente com o antebraço.
Manquei alguns passos para trás, mas não quis
espiar o que me provocara tamanha agonia. Isso porque,
como Rony Weasley, eu morria de medo de aranhas.
Mesmo das mais pequenas, imagine então de uma que
surpreendera Adônis.
Seus dedos se fecharam ao redor do meu
antebraço, preocupação tomava sua feição. As
sobrancelhas se encontravam unidas, formando um vinco
profundo logo acima do nariz.
— Consegue andar? Precisamos voltar.
— Voltar? Para onde? — Tudo bem, eu não estava
no auge da inteligência, mas, em minha defesa, era difícil
pensar direito naquelas circunstâncias.
— Tem um postinho de saúde aqui na Ilha. Fica
perto do nosso acampamento.
Arrisquei jogar o peso para a perna machucada,
mas parei na metade do caminho. Machucava demais, não
havia a menor chance de eu conseguir. Talvez a minha
expressão desolada tenha sido o suficiente para Chewie
porque, antes que eu pudesse perceber, ele me ergueu com
os braços fortes, jogando-me sobre seu ombro.
Equilibrei-me nele, sentindo raiva por ser tão
azarada. Droga, dentre tantas ocasiões para ser mordida
por uma maldita aranha, precisava ser durante a nossa
viagem? Ele tinha programado tudo e eu sabia que a visita
ao Farol seria fantástica, somente pelo fato de estar em
sua companhia.
Não demorou muito para Adônis começar a ofegar.
Seu ritmo, apesar de constante, não era tão rápido quanto
eu gostaria. Minha visão ficara turva de dor e eu
simplesmente não conseguia parar de chorar.
Em determinado momento, ele me colocou no chão
cuidadosamente, pescando o cantil de água dentro da
mochila. Apesar de ser evidente o quanto estava com
sede, ofereceu para mim primeiro. O líquido fresco me
deixou momentaneamente aliviada. Durou muito pouco, no
entanto. Enquanto Adônis se saciava, comecei a salivar
além do normal e, de uma só vez, a ânsia subiu pela minha
garganta. Dobrei o tronco para frente em um rompante,
colocando minha bile para fora. Era a segunda vez que eu
vomitava na frente dele. Droga! Meus músculos
peristálticos continuavam se contraindo, porém não havia
mais nada para expelir, já que ainda não havíamos feito o
desjejum.
Fui tomada por um enjoo descomunal, como se já
não estivesse ferrada o bastante. Apoiei-me nele, suando
frio.
— Já estamos chegando. — Ele afastou minha
franjinha da testa. — Aguenta só mais um pouquinho.
Aquiesci e Chewie me ergueu outra vez, tornando
a me colocar em seu ombro.
— Se precisar vomitar, dê três tapinhas nas
minhas costas, tudo bem?
— Ok — limitei-me a responder, desejando com
todas as forças que chegássemos o quanto antes.
Mas, baby, nós dormimos de conchinha como ninguém
Então eu te ajudarei a ler esses livros
Se você suavizar minha aparência preocupada
E nós colocaremos nossa solidão na prateleira

Ingrid Michaelson – You and I


— Como era a aranha? — De olhos fechados,
ouvi a voz rouca do médico. Apesar de ele e Adônis
conversarem logo à frente, eu sentia como se estivessem
muito longe.
— Era uma armadeira, devia ter uns quinze
centímetros.
— Como essa aqui?
Abri os olhos em frestas. O médico indicava um
quadro bem grande na parede, com inúmeras imagens de
aranhas. Adônis o estudava atentamente. Poucos segundos
depois, ele concordou com um grunhido.
— Elas são bem agressivas mesmo. E nessa época
do ano estão por toda a parte — Ouvi um dos dois
respirar fundo. — Da próxima vez que algo assim
acontecer, é recomendado matar a aranha e levar para o
hospital também. Você sabe, para não haver confusão.
— C-certo.
— Rebecca, tudo bem aí? — perguntou o doutor,
com um tom um pouco mais alto.
— Já estive melhor — brinquei, arrancando
risadas dos dois.
— Vou preparar o soro antiloxoscélico para
aplicar em você. Ele tem anticorpos que vão se ligar às
toxinas do veneno, neutralizando-as. A boa notícia é que,
apesar de dolorosas, as armadeiras raramente apresentam
risco à saúde e logo, logo você estará nova outra vez. A
má notícia é que ainda vai doer por algumas horas. — Ele
fez uma expressão complacente. — Você precisará ficar o
resto do dia aqui, em observação.
Instintivamente, encarei Adônis com os olhos
arregalados. O médico deu uma risadinha baixa.
— Você também pode ficar, se quiser — disse,
dirigindo-se ao Adônis, que assentiu para mim quase
imperceptivelmente, dizendo silenciosamente que, sim,
ele ficaria. Uma onda de alívio tirou o peso dos meus
ombros.
Desde que chegara ao hospital, estivera submersa
em um mar de frustração. Eu sentia raiva do universo por
pregar tamanha peça em mim. Ainda não havia me
conformado com aquele empecilho justamente quando
Adônis tinha se livrado das amarras. Amanhã já
estaríamos novamente em Maringá e eu sabia que
seríamos despertos daquele sonho delicioso o qual
vivenciávamos.
Porém, toda a minha raiva se esvaiu logo que uma
enfermeira voltou com o remédio. Quando ela parou ao
meu lado esquerdo, pedindo-me para esticar o braço, senti
instantaneamente os dedos frios de Adônis avançarem
pela minha mão direita. Olhei-o significativamente, grata
por estar ali por mim. Ele sorriu, levando minha mão aos
lábios e deixando um beijinho terno.
A enfermeira precisou me espetar três vezes até
encontrar uma veia. Aquilo não era nenhuma novidade e,
para ser honesta, fora menos do que eu esperava. Durante
a vida toda, sofri cada vez que precisei tirar sangue ou
tomar medicação intravenosa. Era sempre um drama à
parte que me resultava vários hematomas. Minhas veias
simplesmente se escondiam!
Depois de pendurar a bolsa com o soro em um
suporte de metal e indicar um botãozinho para chamá-la
em casos de emergência, abandonou o quarto, deixando-
nos sozinhos.
— Eu disse que devíamos ter ficado na barraca!
— protestei, fazendo-o rir baixinho e balançar a cabeça
em negativa.
— Não me faça me sentir pior, donzela.
Que mancada, Rebecca!, ralhei comigo mesma.
Acariciei as costas de sua mão com o polegar, em
suaves movimentos circulares.
— Não foi culpa sua.
— Eu sei. Mas isso não muda o fato de que estou
puto. Não era para ser assim... — Explicou, cabisbaixo.
Mordi o lado de dentro da bochecha para não gargalhar.
Preciso salientar que foi muito difícil, no entanto, dado o
fato de que ele ficava irresistível com aquela expressão
de desânimo tão visível em seu rosto.
— Eu que o diga! — Protestei e nossas risadas se
fundiram, preenchendo todo o quarto.
— Pelo menos tem um ponto positivo nisso tudo.
— Ah, é? — perguntei, genuinamente surpresa. —
Qual?
Adônis abriu um sorriso divertido.
— Você vai virar a mulher-aranha!
Dessa vez não contive a gargalhada. Quase era
possível esquecer a dor com Adônis ali para me distrair.
Isso e também o fato de que o remédio amenizava um
pouco o sofrimento.
Dei um tapa em seu ombro.
— Bobo!
— Olha, donzela, só não vai arcar com a fúria
wookie porque já sofreu bastante hoje. Mas não se
acostume! — ele enunciou as últimas palavras com os
dedos em riste.
Minhas bochechas e a barriga doíam de tanto rir.
Eu sabia que ele estava fazendo todas aquelas piadas
apenas para me distrair e o adorava ainda mais por isso.
Levei alguns minutos para conseguir normalizar a
respiração. Então cometi o erro de olhar para a minha
perna esquerda pela primeira vez. Devo dizer que havia
um bom motivo para ter evitado espiar a picada até aquele
momento — eu era realmente fraca para machucados.
Qualquer tipo de ferida me tirava do sério, provocando
um desconforto intenso pelo corpo todo. Até mesmo nos
filmes. Era uma dor psicológica, é claro, mas não menos
angustiante por isso.
Tão logo meus olhos recaíram para o tornozelo
duas vezes maior que o normal, levei um susto
considerável. Porém, isso não foi nada comparado ao
terror que me assolou ao perceber as veias negras que
compunham desenhos orgânicos pela perna, como
enormes relâmpagos arroxeados. Que grande ironia!
Senti a cor ser drenada do rosto no mesmo instante.
Notando o meu estado perplexo, Adônis afagou minha
bochecha carinhosamente.
— Está doendo muito?
— Não tanto quanto na hora da picada, mas ainda
sinto algumas agulhadas esporádicas.
— Vai ficar tudo bem. O médico me garantiu que
não há o menor risco de... hum... necrosar.
Chewie me encarou profundamente por um
momento, depois cruzou os braços no colchão e repousou
a cabeça pouco abaixo do meu peito, fechando os olhos.
Prendi a respiração por alguns segundos, esquecendo-me
de que suas últimas palavras eram sobre minha ferida ter
ou não a chance de apodrecer.
Não adianta ficar com raiva de uma fatalidade,
pensei comigo, isso não muda nada.
Enterrei os dedos em seus cabelos cor de piche e
tentei ignorar a dor. Às vezes eu conseguia, mas,
eventualmente, sentia a perna toda queimar em espasmos
de dor intensos. Quando isso acontecia, eu deixava
escapar um gemidinho baixo e Adônis abria os olhos
ligeiramente, para verificar se estava tudo bem.
Conforme as horas corriam, o intervalo entre uma
fisgada e outra se fazia cada vez maior. Fechei os olhos,
sem deixar de mover os dedos, no entanto. Apesar do dia
conturbado, a tranquilidade avançava sobre mim como
uma manta aconchegante. E, assim, adormeci na maca do
hospital com Adônis deitado sobre a minha barriga sem
nem ao menos perceber.
Já era tarde da noite quando chegamos ao
camping. Depois de eu receber alta, paramos para comer
em uma lanchonete, dado o fato de que passamos o dia
todo em jejum. Estávamos famintos. Sei disso porque, no
tempo em que permanecemos lá, não trocamos palavra
alguma. Permanecemos concentrados apenas em mastigar,
mastigar e mastigar, até eliminar qualquer vestígio de
fome.
No caminho, aproveitamos para passar na
farmácia e comprar uma pomada anestésica receitada pelo
médico. Ele me dera instruções de passar pelos próximos
dias na região da picada, enquanto ela ainda estivesse
dolorida. Diferente do que eu imaginara, as veias roxas
não suavizaram com o soro. Pelo contrário, encontravam-
se muito aparentes em minha pele pálida. E, entre elas, era
possível ver dois furinhos vermelhos. Era estranho
imaginar que aquelas feridas insignificantes haviam
causado tanta dor.
Tomei um banho demorado, deixando a água
escaldante correr pelas minhas costas, aliviando a tensão.
Mesmo dormindo boa parte do dia, achava-me mais
exausta do que nunca. Enquanto me enxugava, não pude
deixar de pensar como teria sido o nosso dia se aquela
maldita aranha não tivesse estragado tudo. Balancei a
cabeça, afastando o pensamento. Não fazia diferença
pensar no que poderia ter acontecido.
Cruzei o gramado até a nossa barraca, acolhendo-
me do frio da noite. Adônis já tinha voltado do banho,
fazendo-me ponderar se tinha exagerado no tempo em que
ficara trancafiada no banheiro feminino.
— Estava quase indo lá ver se outra aranha tinha
te atacado — comentou, com um sorriso lindo.
— Isso seria muito azar. Até mesmo para mim.
Sua risada baixa preencheu nosso abrigo.
— Vem cá, me deixa cuidar de você — pediu,
abrindo os braços e lançando uma piscadela.
Um calor delicioso se espalhou pelo meu peito.
Assenti, deitando-me de costas para ele e me aninhando
em seu corpo quente. Arrumei a cabeça sobre o braço
esquerdo dele, usando-o como um travesseiro. Sua mão
livre enlaçou-me pela cintura, protetoramente. Adônis
deixou uma sucessão de beijinhos no meu pescoço, então
apoiou o queixo sobre o meu ombro, de forma que sua
respiração ricocheteava contra a parte de traz da minha
orelha, causando arrepios esporádicos.
Permaneci emudecida, com medo de estragar o
momento. Eu já me sentia melancólica antes da hora. No
dia seguinte viajaríamos novamente para Maringá, onde
nos tornávamos a Rebecca e o Adônis que não tinham um
futuro. Antes que eu fosse totalmente engolida pela nuvem
de amargura, sua voz veio baixinha ao meu encontro,
despertando-me para a realidade.
— Becca, por que você nunca... — Pigarreou,
ficando calado por alguns segundos, como se tentasse
buscar as palavras certas. Eu já sabia qual seria a pauta,
antes mesmo dele terminar a pergunta. — Por que nunca
quis se envolver com outra pessoa?
Expirei o ar dos pulmões e mordisquei o lábio
inferior, perguntando-me se conseguiria fazê-lo entender.
Talvez tenha demorado mais do que percebi, pois logo
Chewie tornou a quebrar o silêncio.
— Não precisa dizer, se não quiser. Eu só queria
ent...
— Tudo bem — interrompi-o. — Eu vou falar. Só
não sei como começar a te explicar.
— Quem sabe pelo começo? — Brincou,
arrancando-me uma risadinha.
— É, acho que essa é uma boa ideia. — Engoli em
seco, fechando os olhos.
O rosto dela me veio em mente quase no mesmo
instante. Embora muito tempo tivesse passado e eu
tentasse me convencer de que tinha conseguido superar
nossa história, minha mãe continuava tão presente dentro
de mim. Como um espinho venenoso fincado na pele por
tanto tempo que começara a fazer parte de mim. Mas eu
não o queria lá.
— Minha mãe tinha quinze anos quando ficou
grávida. Mas ela não era nenhuma Lorelai Gilmore,
disposta a fazer tudo pela filha.
— Espera, quem é essa?
— Você não conhece Gilmore Girls? — Ele
negou. — O seriado? — Tentei de novo. — Tal mãe, tal
filha? — Como Adônis não disse nada, completei. —
Deixa pra lá.
Sua risada me fez rir junto dele. Chewie apertou
ainda mais o abraço, dando-me uma nova injeção de
ânimos para continuar.
— Ninguém nunca soube quem era o meu pai, ela
jamais contou. Meu avô diz que ela falava sobre a
gestação como se eu fosse um parasita, matando-a aos
poucos. Eles achavam que era algum tipo de depressão
ocasionado pela gravidez indesejada e que passaria
quando eu nascesse. Mas parece que conforme a barriga
aumentava, menos ela aturava sua condição. Começou a
falar sobre abortar e eles precisavam ficar vigiando para
que ela não fizesse algum tipo de besteira. — Respirei
fundo, decidida a não chorar. Não, já estava farta de
derramar lágrimas por ela. — Ela sempre me odiou,
Adônis. Era óbvio que ela não queria estar grávida,
ninguém quer ser mãe na adolescência. Mas o que ela
nutria por mim era algo bem mais visceral, bem mais
doentio.
“Meus avós me criaram não só por minha mãe ser
muito nova, mas principalmente porque, por ela, eu
poderia morrer que não faria diferença. Bom, no começo
não. Porém, quanto mais o tempo passava, mais ela me
odiava. A minha vida era uma espécie de afronta com a
qual ela não podia lidar. Minha mãe aproveitava todos os
momentos em que ficávamos sozinhas para destilar seu
veneno. Ela me dizia o quanto me achava repugnante,
afirmava que eu destruíra sua vida e não se cansava de
dizer que tinha nojo de mim. Até a maneira como ela me
olhava deixava bem claro”.
— Meu Deus — ele sussurrou, chocado. — Ela é
uma doente!
— Não é. — Deixei escapar uma risadinha
mordaz. — Ninguém jamais acreditaria em nada disso se
a conhecesse primeiro. Ela é aquela mulher que, por onde
passa, deixa os homens perplexos. É simpática, cheia de
sorrisos fáceis e sabe exatamente o que falar e a hora
certa. É comigo o problema.
— E seus avós?
— Eles não souberam de nada disso por muito
tempo. É claro que notavam a indiferença dela e tudo
mais, afinal não eram cegos. Mas eles achavam que era só
isso. E eu não contava. Droga, eu não conseguia! Morria
de medo. Achava que se ela já era capaz de me ferir tanto
sem motivos, seria muito pior se a provocasse. — Um
soluço escapou pela minha garganta.
Adônis respondeu com vários beijinhos que
desciam pelo ombro, até chegarem ao cotovelo. Apesar da
angústia dentro de mim mais intensa do que um punhado
de picadas de aranhas, peguei-me sorrindo. Ele tinha esse
poder de despertar sensações no meu corpo, as mais
diversas. Mas, principalmente, trazia leveza para a minha
alma. O sorriso era sempre recorrente em sua companhia.
— Ela tentou com todas as armas me destruir, da
pior maneira que se pode destruir alguém: de dentro para
fora. Era sempre por meio de chantagens emocionais,
humilhações, ameaças... Eu poderia te contar tudo, mas
ficaríamos aqui a noite toda e não chegaríamos a lugar
algum. Enfim, não importa. Já passou. — Ignorei o nó
enorme que se formou em minha garganta e prossegui. —
Em determinado momento, os meus avós começaram a
desconfiar. Eles notaram que tinha algo errado comigo e
me pressionaram a contar. Eu tinha treze anos na época.
Vovô ficou ensandecido! Lembro até hoje das faíscas em
seus olhos. Os berros duraram horas e horas, até ela juntar
as malas e sumir.
“Minha mãe tinha um namorado virtual que
morava em outro estado. Uns dias depois da briga, ligou
para casa avisando que estava morando com ele. Depois
disso, trocou o número do celular e sumiu do mapa. Nunca
nos falou onde estava, nunca mais sequer entrou em
contato.”
O silêncio avançou pela barraca, dominando-nos.
Permaneci presa em meus pensamentos, revivendo o peso
daquela época. Havia tanto ódio dentro de mim. Passava
noites e noites em branco, chorando até as lágrimas
secarem. Eu só queria entender por que precisava ser
daquela maneira. Era tão injusto! Eu nutria um misto de
inveja e raiva das outras pessoas, com suas vidas normais
e felizes. O amor materno era uma mentira. Ao menos para
mim, é claro.
— Sinto muito, Becca. Deve ter sido uma barra e
tanto.
— Eu tive muita sorte. Meus avós são tão
maravilhosos. Nunca me deixaram duvidar, nem mesmo
por um segundo, que eu não era amada. Por isso não
sucumbi à tristeza. Em vez disso, fiquei determinada a
mostrar para ela que, apesar de ter tentado tanto me
convencer de que eu fracassaria, foi em vão. Não darei
esse gostinho. Vou percorrer os meus sonhos
incansavelmente, porque, como a minha avó sempre disse,
“os momentos ruins servem para intensificar os bons”. Um
dia vou olhar para trás e nada disso vai doer. Por isso
nunca me envolvi com ninguém. Achava que o amor era
uma coisa ruim. Tinha medo de cometer os mesmos erros,
eu não sei. Fiquei tão focada em ser diferente daquela
mulher que não pensei racionalmente.
Adônis se aconchegou ainda mais em mim,
apertando-me com os braços fortes. Seus lábios roçaram a
minha orelha quando ele começou a sussurrar de maneira
enfática.
— Você não é nada como ela! Eu não a conheci e
nem gostaria, mas sei disso, tão certo quanto posso
afirmar que estou louco por você! Tem ideia do quanto é
fascinante, donzela? — Eu o sentia soprar palavra por
palavra. Cada uma delas causava um novo arrepio que
vinha de dentro para fora. Meu coração batia com tamanha
ferocidade que chegava a doer. — Você é autêntica e
consegue transformar o dia de qualquer um com toda essa
sua energia pulsante. E, Becca, você é linda! Não só por
fora, mas principalmente por dentro. Nunca mais se deixe
abalar por essa mulher... Ela se odeia e reflete nos
demais. Sempre que pensar que tem alguma semelhança
com sua mãe, lembre-se disso, por favor. Você não é nada
como ela, donzela. Não é!
Antes que pudesse contê-las, as lágrimas
irromperam dos meus olhos. Não eram de tristeza, no
entanto. Oh, estavam muito longe disso! Girei o corpo,
ficando de frente para Adônis. Os sentimentos pareciam
não caber dentro de mim. Ele tinha o cenho franzido e os
olhos ardiam intensamente. Quando seus lábios cobriram
os meus, no entanto, não foram cheios de urgência, como
nas demais vezes. Não, nossas línguas se entrelaçavam
com uma calmaria repleta de significado, tal como as
folhas que se desprendem das árvores no Outono —
movimentando-se suavemente ao vento, indicando uma
nova estação, um novo começo.
Vamos fazer acontecer, menina
Você tem que mostrar ao mundo
Que algo bom pode funcionar
E pode funcionar para você
E você sabe que vai funcionar

Two Doors Cinema Club – Something good can work


Eu não tinha aulas de Produção Textual às
segundas-feiras. E foi justamente por isso que pulei de
surpresa quando senti grandes mãos se fecharem ao redor
do meu braço direito e me puxarem para dentro de uma
sala escura e vazia no intervalo. Não demorei em
adivinhar quem era. Mesmo no escuro, a silhueta de quase
dois metros era inconfundível. Fora isso, tinha também o
aroma. Ah, como Adônis era cheiroso!
Arfei em surpresa quando ele fechou a porta e me
pressionou contra ela, beijando-me como se não se
importasse com o fato de estarmos no meio da
universidade. Bom, eu não me importava. Mas não podia
esconder o fato de que me encontrava atordoada. Aquilo
era totalmente o oposto do que eu esperava.
Desde aquela manhã, quando entramos na barca e
assistimos a Ilha do Mel se distanciar aos poucos, fui
incapaz de afastar o desânimo. Dentro de mim, uma
mudança irrevogável acontecera nos dois dias isolados do
resto do mundo, e eu me perguntava se Adônis também se
sentia da mesma maneira. Depois das coisas que tínhamos
vivido juntos, depois de termos nos entregado um para o
outro, eu duvidava de que conseguiria persuadir o meu
coração de que o certo era conter as emoções. Era difícil
tentar me convencer a dar um passo atrás, quando tudo o
que meu corpo pedia era apenas para ir em frente. Os
sentimentos se tornavam mais e mais intensos conforme os
dias passavam e eu começava a considerar que Adônis
tinha razão — seria tão mais difícil nos afastar depois.
Porém, quando eu revivia as recordações de nossa
viagem, não conseguia me arrepender nem um pouquinho
sequer. Pelo contrário, sentia-me grata por ter vivido
coisas incríveis na companhia dele. Se tivéssemos
pensado racionalmente desde o princípio, teríamos nos
privado daquela experiência. E aquilo, sim, era
inconcebível.
Então nós finalmente chegamos a Maringá, onde a
realidade nos aguardava sentada em uma cadeira, como
pais que esperam os filhos voltarem de uma festa que
durou mais do que deveria. Eu não estava preparada para
lidar com o Adônis que me ignorava nos corredores e era
grosseiro em sala de aula. Eu gostava muito mais daquele
que me acordava com músicas românticas e me beijava de
um jeito que fazia o mundo inteiro parar de uma só vez.
No entanto, indo contra as minhas suposições, ali
estava ele, entrelaçando a língua na minha, deixando o seu
sabor impregnado em mim. Se por um lado Adônis tentava
se manter distante para não se envolver, por outro ele não
podia realmente fazer isso. As emoções estavam fora de
controle, tal como para mim. Eram mais forte que nós e,
por isso, talvez o certo fosse apenas ceder.
Ele mordeu o meu lábio inferior com um
pouquinho a mais de força, arrancando um gemido
abafado de mim. Afastei o rosto alguns centímetros,
acordando do transe.
— Você precisa se decidir, professor Adônis. —
Eu adorava chamá-lo daquela maneira quando estávamos
dentro da UEM. Tinha um fundinho de rebeldia. Era
delicioso que partilhássemos um segredo só nosso.
Ele deu uma risadinha baixa, encarando-me com
diversão.
— Eu já me decidi — sussurrou e, por Deus, não
houve um único pelo que não tenha se eriçado. Arregalei
os olhos, incapaz de esconder a surpresa.
— Se decidiu?!
—... Sobre nós dois. — Ele completou. — Você
tem razão, não dá para ignorar isso — disse, indicando-
nos com a mão. — Eu gostei demais de passar o final de
semana com você, donzela. Mas não consigo me contentar
só com isso. Minha vontade de você é insaciável.
Santo Gandalf!
— Eu pensei nas coisas que você me falou e... nas
coisas que passamos. Nada disso é muito fácil para mim,
Becca. Ainda me assusta a intensidade dos meus
sentimentos. Como eu disse, não estava nos meus planos
me relacionar com alguém. Mas se pudermos... se
pudermos ir devagar talvez não seja tão complicado. —
Ele sorriu, pegando minha mão direita e colocando sobre
o seu peito. — Não posso lutar contra ele, vou sair
perdendo. Nós dois vamos. Eu tentei de toda forma me
manter afastado, mas quer saber? Não aguento mais ficar
longe. Não posso. — Adônis apoiou as duas mãos na
porta às minhas costas, parando com o rosto a centímetros
do meu. — Quero você. Quero fazer coisas com você,
donzela. Droga, o que estou falando? — Ele riu,
balançando a cabeça em negativa. — Está vendo, só? Não
penso direito quando estamos juntos.
Não consegui encontrar nada para dizer. Isso
porque era impossível raciocinar direito quando a minha
cabeça achava-se em polvorosa. Em vez disso, considerei
que o melhor para o momento era demonstrar como eu me
sentia com todas aquelas revelações. Então, com um
sorriso no rosto que ia de orelha a orelha, fiquei na ponta
dos pés, alcançando sua boca. Joguei os braços ao redor
do seu pescoço e os seus logo vieram parar na minha
cintura. Seu sabor mentolado, dentre todos os gostos do
mundo, já era o meu favorito. Eu não sabia qual seria o
nosso futuro, mas por que me preocupar quando tinha
Adônis todinho para mim, no presente?
Chewie separou a boca da minha, encarando-me
significativamente. Levei uma mão aos seus cabelos,
afastando-os de seu rosto. Somente então me dei conta de
algo que ele tinha falado, em meio a declaração.
— Que tipo de coisas quer fazer comigo, Chewie?
Sua gargalhada soou mais alta do que deveria. Ele
fisgou os lábios, com a expressão deliciada que sempre
adotava quando eu era atrevida. Suas mãos subiram pelas
minhas pernas, elevando-me do chão. Instantaneamente,
cruzei as penas ao redor de sua cintura, a fim de me
firmar.
— Você deve saber — soprou contra a minha
boca.
— Não sei, não. Estou realmente curiosa.
— Hummm... — murmurou, com os lábios
descendo pela minha mandíbula e percorrendo o pescoço.
— Talvez eu precise mostrar então.
Ele deixou uma sucessão de mordidinhas que
seguiam em direção ao decote em V da minha camiseta.
Precisei morder o lado de dentro da bochecha para não
fazer barulho. No entanto, mesmo que eu tivesse soltado
qualquer som que fosse, ele teria passado despercebido,
graças ao sinal estridente indicando o começo de uma
nova aula.
Embora tenha sido difícil me desvencilhar de
Adônis quando o desejo inflamando dentro de mim era
justamente o contrário, eu não estava chateada quando
pisei para fora da sala, ainda ofegante. Na verdade, não
tinha como o meu sorriso ser maior.

— Agora, bonequinha, eu quero saber detalhe por


detalhe desse sequestro! — Arthur sorriu com malícia,
estendendo o vinho em minha direção.
Tomei da mão dele, levando aos lábios no segundo
seguinte. Pelo canto dos olhos, percebi que Lily sequer
piscava. Acho que ela teria uma síncope se não
descobrisse o que acontecera entre Adônis e eu durante o
final de semana. E, para ser honesta, eu também não via a
hora de contar.
Esperava ser bombardeada tão logo chegasse de
viagem, mas, para minha surpresa, encontrei o
apartamento vazio. Descobri, enquanto voltávamos da
faculdade, que Arthur fizera uma entrevista de emprego
para uma escola de reforço e que, de acordo com suas
próprias palavras, estava muito otimista e sentia que a
vaga seria sua. E era por isso que, apesar de Pedro ter
pedido um tempo na relação dos dois, meu amigo sorria
com leveza, daquela maneira que só ele sabia fazer.
— Onde vocês foram? — a voz estridente de
Nataly repercutiu pela sala. Notei a impaciência em sua
feição. Ela odiava esperar. Ainda mais uma fofoca.
Dei uma risadinha baixa.
— Ele me levou para a Ilha do Mel. Já ouviram
falar?
— Jesus, não acredito! — Arthur escondeu a boca
com as duas mãos. — Achei que tinham ido para qualquer
lugar perto daqui!
— Você conhece? — perguntou Lily.
— Fui para lá no final do ano, com um pessoal do
curso de História.
— Onde fica?
— Perto de Curitiba. — Foi a minha vez de
responder. Os dois me fitaram cheios de interesse e, por
algum motivo, adorei a sensação. — É um lugar muito
lindo! Sério, você ia adorar, Lily. E a única maneira de
chegar é indo de barca...
Narrei pacientemente cada momento da viagem.
Desde os mais incríveis, até os nem tão incríveis assim —
a aranha que o diga. Existia algo muito excitante em
compartilhar todos os detalhes com os meus amigos. Em
parte porque era uma desculpa perfeita para reviver os
dois melhores dias que eu tivera desde que comecei a
faculdade, mas também porque as reações deles eram
hilárias. Nataly soltava gritinhos de surpresa e quase
sempre se limitava a dizer:
— Ai, meu Deus!
Arthur, por outro lado, fazia toda sorte de
perguntas indiscretas, que quase sempre rendiam um
acesso de riso mútuo.
— Becca, você quer que eu acredite mesmo que
vocês dormiram de conchinha, sozinhos em uma barraca, e
não rolou nada? Tipo, nadinha?
— Eu juro!
— Argh, sua mentirosa! Fale pra mim, quão
grande ele é?
O céu já recebia os primeiros raios solares
quando entrei em meu quarto, pronta para dormir. Uma
noite podia render a beça com a ajuda de um pouco de
vinho. Depois de conversarmos sobre a minha relação
com Adônis, concentramos um tempo considerável
escolhendo as palavras menos educadas que pudessem
expressar o quanto achávamos Pedro desprezível.
Obviamente que nada daquilo era de fato verdade.
Apenas estávamos decepcionados com ele. Então o
assunto evoluiu para Nataly choramingando sobre como
odiava estar solteira e, quando percebemos, os pássaros
já cantavam do lado de fora da janela.
Deitei em minha cama e, apesar do cansaço
enorme pelo dia cheio que tivera, não me senti mal por
estar indo dormir tão tarde — ou, no caso, tão cedo.
Jamais estive tão leve na vida. Agarrei o travesseiro,
suspirando em deleite. Eu me sentia como se, pela
primeira vez em toda a minha existência, tivesse
encontrado um lugar no mundo. E a sensação era
maravilhosa.
Aproveitar uma oportunidade é abraçar a mudança
Eu conto minhas bênçãos sabendo que você vai me levar pra casa

Little Joy – Brand new start


Empurrei os óculos para cima com o dedo
indicador, sem parar de digitar o trabalho com a mão
livre, no entanto. O relógio no cantinho do monitor
indicava que me restava pouco tempo antes de começar a
aula e eu ainda nem havia começado a me arrumar. Isso
sem contar no buraco negro se formando em meu
estômago. Normalmente eu teria o trabalho pronto uma
semana antes da data de entrega. Isso se o professor
Germano, de Linguística I, tivesse passado o trabalho com
antecedência. Ele mandara um e-mail para a turma no
começo do dia avisando. Eu nem podia mensurar o quanto
estava irritada, mas já havia aprendido que na faculdade
às vezes as coisas não eram tão justas. Só me restava
correr contra o tempo.
— PUTA QUE PARIU! PUTA QUE PARIIU! — o
berro de Arthur me fez pular no lugar, ralando a coxa na
escrivaninha bamba. Xinguei baixinho, esfregando a
perna. — BECCA, LILY, CADÊ VOCÊS, PORRA?
Com o coração batendo desenfreadamente, girei a
cadeira em direção à porta, um pouco atordoada. Isso era
tão não Arthur! Antes que pudesse ter uma reação, porém,
a porta do meu quarto foi aberta em um rompante,
provocando um baque surdo.
— NÃO ESTÁ ME OUVINDO CHAMAR?
Encarei meu amigo com um pouco de choque. Ele
nunca tinha gritado comigo daquela maneira. E, para ser
honesta, ele estava bem agitado. Parecia ter tomado mais
café do que deveria. Seus olhos estavam mais
esbugalhados que o normal e o cabelo platinado achava-
se definitivamente desgrenhado.
— Estou, é só que...
— ENTÃO POR QUE NÃO RESPONDEU?
— Meu Deus, você quer parar de gritar? Não tem
ninguém surdo aqui! — ralhei com ele, irritada. Nataly
apareceu no quarto logo em seguida, curiosidade
estampava seu rosto.
Indiferente a minha bronca, ele prosseguiu os
berros, como se estivéssemos a quilômetros de distância
um do outro.
— EU CONSEGUI, BONECA! EU CONSEGUI!
— Conseguiu o quê, maluco? — Lily adiantou-se,
sentando-se na minha cama com um olhar divertido. Senti-
me um pouco melhor por constatar que não era a única
estranhando o comportamento dele.
— O EMPREGO, LILY! EU CONSEGUI O
EMPREGO! ELE É MEU!
— Não acredito! — exclamei, mas quase não deu
pra ouvir. Isso porque, em uma fração de segundo, Nataly
havia levantado e pulava pelo quarto abraçada a Arthur,
gritando tanto quanto ele, ou quem sabe mais. Eu apostava
que era mais.
Observei-os saltitarem como pipocas estourando
por um tempo considerável. Quando, enfim,
desvencilharam-se, abracei meu amigo com ternura.
— Ah, Arthur, que notícia ótima! Parabéns! —
deixei um beijo estalado em sua bochecha. — Agora, sem
gritar, por favor, me conte mais sobre o emprego.
Os dois riram genuinamente. Ele esfregou o rosto
com calma, como se parasse para pensar a respeito pela
primeira vez. Seu peito subia e descia em movimentos
rápidos, a respiração estava ruidosa. Lily, com sua
impaciência, deu um empurrãozinho nele.
— Anda, é para contar hoje, não semana que vem.
— Caramba, você é uma chata, Lily. Me deixe
curtir a euforia em paz. — Ela respondeu mostrando a
língua. — Bom, era a vaga da escola de reforço, eu disse
que estava otimista! Vou ser orientador de Português. O
salário não é maravilhoso, mas dá pagar minhas contas,
pelo menos. E a melhor parte é que conta como estágio
obrigatório!
— Seu sortudoooo! — ela cantarolou, voltando a
pular com ele.
Foi inevitável me lembrar de vovó falando sobre
como tudo na vida é um grande ciclo. Assim como a
felicidade não dura para sempre, a tristeza também não,
embora seja fácil esquecer isso. A dor tente a aparentar
não ter fim, mas isso não muda o fato de ela ser, sim,
finita. E depois de uma longa tempestade os raios de sol
brilham com o dobro de intensidade.
Nataly parou de repente, olhando de mim para ele
com uma expressão animada no rosto.
— Nós precisamos comemorar! Tipo, agorinha
mesmo!
— Tem um barzinho aqui perto que faz dobro de
chope às quartas-feiras! — Arthur não conseguiu esconder
a empolgação. — Vou me arrumar.
— Oi? — perguntei, conferindo as horas no
relógio de pulso. Eu tinha total consciência de que tinha
os olhos arregalados e os lábios ligeiramente separados,
mas eles pareciam indiferentes a isso. — Vocês querem
sair na hora da aula?
— Becca, é só hoje e... — ela começou, porém a
interrompi.
— Matar aula! Vocês querem matar aula, é isso
mesmo? — repeti, como um disco quebrado.
— Bonequinha — foi a vez de Arthur tentar. —,
essa é claramente uma emergência. Uma coisa muito boa
aconteceu na minha vida e não podemos deixar passar em
branco.
— E precisa ser na hora da faculdade? — Minha
voz se tornava mais alta a cada segundo. — Não podemos
comemorar depois, como sempre fazemos?
— Er, é só...
— Pelo amor de Deus, o que faço com vocês,
hein? — esbravejei, cruzando os braços sobre o peito. —
É óbvio que eu não vou matar aula. Parece até que não me
conhecem!
— Mas, Becca...
— Não tem “mais” nem “menos”! — Falei com o
dedo em riste, como uma mãe disciplinando os filhos
rebeldes. — Nós vamos para a aula e depois saímos para
comemorar. Estamos entendidos? — Os dois me
encararam surpresos. Algo na minha expressão deve ter
servido como ponto final, pois Arthur jogou as mãos para
o ar e grunhiu, irritado:
— Tá bom, tá bom! Ninguém vai matar aula,
senhora certinha. Eu hein.
Observei-os abandonar o quarto como
cachorrinhos acuados e mordisquei o lábio inferior para
segurar a risada. Estava orgulhosa de mim mesma por não
ter cedido. Quero dizer, por mais que os amasse e
estivesse muito feliz por Arthur ter encontrado um
emprego ideal, o qual traria sua liberdade, a faculdade
ainda era o meu foco. Eu não podia me esquecer disso em
hipótese alguma, ou as coisas eventualmente sairiam do
meu controle.

Demorei-me guardando os materiais na mochila,


sem evitar passear os olhos por Adônis. Estava todo de
preto e usava uma touca caidinha. Eu adorava seu estilo
despojado e fora do convencional. Engoli em seco quando
nossos olhares se cruzaram, tive certeza de que suas íris
arderam para mim. Notando que ainda não estávamos
sozinhos, ocupei-me em pegar o trabalho para entregá-lo.
Graças a C3PO esse já é o penúltimo!, pensei
comigo, recordando que ele me dissera em nossa viagem
que o trabalho fora apenas um meio de ficar mais próximo
de mim. Uma risadinha escapou pelos meus lábios e
precisei balançar a cabeça para afastar a lembrança. Se
ele soubesse como correu risco de vida, jamais teria feito
isso. Mas ainda bem que fez. Fora graças a uma das
atividades que havíamos nos beijado naquela mesma sala,
semanas atrás. Apertei os joelhos um no outro com a
recordação e, então, senti seus dedos gelados no meu
queixo, buscando-me para a realidade. Ele ergueu meu
rosto até encontrar o meu olhar.
— Estou realmente intrigado sobre o motivo para
você estar assim, toda vermelha.
— Me distraí com uma lembrança... — Sorri,
dando uma piscadela para ele. — Ali naquela mesa, a
propósito — concluí, apontando para ela.
Chewie se sentou na beirada da minha carteira,
balançando a perna direita no ar. Cruzou os braços no
peito, com a expressão aérea, como se ele se deleitasse
com a lembrança, tal como eu fizera há pouco.
— Essa é uma boa lembrança. — Riu baixinho,
pigarreando em seguida. — Mas nem de longe a minha
preferida.
— E qual é?
Adônis se inclinou em minha direção, sussurrando
contra o meu ouvido.
— Te conto hoje à noite, depois da aula. Acho que
essa é uma desculpa razoável para você ficar comigo
nessa noite, não? — Afastei a cabeça alguns centímetros,
apenas para me deparar com a expressão impagável em
seu rosto.
— Já está com saudades, professor Adônis?
— Ah, você nem imagina o quanto!
Levei a mão esquerda a uma mecha de cabelo,
torcendo-a no dedo médio.
— Não é que eu também não esteja, porque na
verdade estou, e muito. — Ele sorriu, umedecendo os
lábios. — Mas infelizmente precisará ser outro dia. Vou
sair com Arthur e Nataly essa noite.
— Meu Deus, acabei de ser rejeitado! — ele
colocou as mãos no coração, teatralmente. O som de
nossas risadas preencheu a sala de aula. — Becca... —
chamou, cheio de manha. — Não há nenhuma chance de eu
te roubar só para mim?
Balancei a cabeça em negativa.
— Hoje realmente não posso. Arthur conquistou o
primeiro emprego e, você sabe, está radiante. Vamos
comemorar. Mas você pode vir também! — sugeri.
Ele encolheu os ombros, escondendo as mãos no
bolso do jeans rasgado.
— Ou não, você decide. — completei. Adônis
abiu um sorriso torto antes de responder.
— Foi mal, só acho que seria melhor não darmos
tanta bandeira assim. Vai evitar dor de cabeça para nós
dois.
— Eu sei.
Conferi se a porta estava fechada e inclinei o
tronco para beijá-lo. Ele correspondeu, voltando a segurar
o meu queixo com uma das mãos. Por alguma razão eu
adorava quando ele fazia isso, achava tão excitante.
Desvencilhamo-nos apenas quando o sinal tocou
— esse parecia ter virado um hábito nosso. E, para ser
bem honesta, eu não me importaria se todos os meus
intervalos fossem assim. Algo sobre estar com ele ali
brincava com a minha imaginação e eu me via ofegando
diante de todas as possibilidades existentes.
Cruzes, Rebecca, você está impossível!, meu
subconsciente protestou e precisei concordar com ele. Eu
não tinha culpa, de toda forma, Adônis me tirava do sério.
Tomei a mochila, levantando-me sem pressa.
Captei a sombra de um sorriso em seu rosto, enquanto ele
coçava a barba de lenhador.
— O que foi? — perguntei, já com a mão no trinco
da porta.
— Conhecendo sua tendência a se meter em
problemas quando bebe, acho que provavelmente ainda
nos encontraremos essa noite.
— Bom, mal posso esperar por isso — brinquei,
saindo no segundo seguinte.
Minha cabeça está girando eu não sei o que fazer
Se eu sou tão feliz eu tenho tudo a perder

The Subways – I want to hear what you have got to say


— Fui ao bar e tomei tequila, comi bolacha de
limão, dei carona para um índio, dancei na boquinha da
garrafa e... hum... tirei a roupa! — Pábila falou,
empurrando a caneca de chope para mim enquanto todos
riam. Empertiguei-me no lugar antes de prenunciar como
se fosse um discurso muito importante e articulado.
— Fui ao bar e tomei tequila, comi bolacha de
limão, dei carona para um índio, dancei na boquinha da
garrafa, tirei a roupa e virei estrelinha.
— Essa está fácil. — Arthur deu de ombros, a fala
um pouco mais enrolada que o habitual. Então esticou a
mão e tomou a caneca que eu havia estendido para ele. —
Fui ao bar e tomei tequila, comi bolacha de limão, dancei
na boquinha da garrafa, e...
Bastou isso para que nossa mesa entrasse em
polvorosa. Era a terceira vez consecutiva que ele perdia a
partida. Sem nos importar com o fato de estarmos no meio
de outras tantas pessoas, começamos a bater com as mãos
na superfície de madeira com a qual a mesa era feita.
— Vira, vira, vira, vira! — cantávamos em
uníssono, assistindo ao nosso amigo tomar o que deveria
ser a décima caneca de chope da noite. Eu tinha até pena
dele no dia seguinte.
Conferi as horas no relógio de pulso e descobri
que já fazia muito tempo que havíamos chegado. Isso
devia explicar porque eu bocejava a cada cinco minutos.
Além de Nataly, Arthur e eu, também havia Pábila
e Leo, um rapaz do último ano de Direito com quem ela
saía há duas semanas. Ele não era dos mais falantes, mas
sua risada compensava isso. Era um desafio sem tamanho
não rir quando ele começava a fazer aqueles sons
estranhos, semelhantes aos de uma hiena com muita dor.
— Acho que daqui a pouco fechamos o bar, hein
— Lily comentou, estudando o ambiente ao nosso redor.
Imitei o seu gesto e me surpreendi. De fato, poucas mesas
haviam restado além da nossa. Era cabível, considerando
ser a madrugada de uma quarta-feira.
Meu celular vibrou e, tão logo espiei o visor,
deparei-me com uma mensagem de Adônis. Era a primeira
vez que ele me enviava uma. Depois de viajarmos juntos,
pareceu fazer sentido termos o número um do outro. No
entanto, dado o fato de sermos vizinhos, ainda não havia
surgido uma oportunidade para que precisássemos
recorrer ao telefone. Por isso não pude evitar o sorriso
diante da agradável surpresa.

Castiel mandou perguntar se já podemos te


roubar para nós. Ele está muito carente.

Hahaha dentro de meia hora devo estar em casa.


Será que ele consegue segurar as pontas até lá?

Ele disse que não pode prometer nada, mas vai


tentar.

— Por mim a gente já pede a conta — aproveitei a


deixa, ansiosa para me encontrar com Adônis.
— Acho que por nós também, né? — Pábila se
dirigiu ao Leo, que se limitou a assentir.
Como Arthur não se pronunciou (particularmente,
acho que estava se concentrando para não vomitar),
chamamos o garçom e dividimos o valor entre nós.
Quando enfim saímos para a rua, eu começava a ponderar
como iria para casa. Isso porque, embora tivéssemos ido
de carona com Leo, ele tinha bebido bastante durante a
noite.
Como se tivesse acabado de ler os meus
pensamentos, Pábila se pronunciou, externando
exatamente o que me afligia.
— Você está bem para dirigir?
— Opa, claro que sim. Nem bebi tanto! Olha só —
ele dobrou uma perna no ar, como se fizesse o número
quatro. Não entendi o que ele queria exemplificar com
aquilo, mas decidi não perguntar. Não me importava.
— Você bebeu pra caralho, nem vem! — Arthur
atirou, rindo um pouco mais.
— Eu dirijo melhor bêbado, fica tranquilo.
Mordisquei o lábio inferior sem saber como agir.
Por alguma razão, aquilo me incomodou em demasia. Não
era como se eu nunca tivesse pegado carona com uma
pessoa alcoolizada, porque já tinha sim (mas em minha
defesa, não me orgulhava nada). Só que ali era diferente.
Eu tinha visto a quantidade de bebida ingerida por ele. Eu
mesma tinha bebido além da conta e isso me preocupava.
Entretanto, como todos começavam a entrar no carro,
entendi que ninguém mais se importava da mesma maneira
que eu. Respirei fundo e dei de ombros. São só alguns
quarteirões, pensei comigo mesma, circundando o veículo
e entrando na extremidade direita do banco traseiro.
Arthur, que se sentou ao meu lado, recostou a cabeça no
meu ombro, sussurrando para mim.
— Me lembre de nunca mais beber?
— Não adianta, você não vai me ouvir.
— Não mesmo — ele respondeu, fazendo-nos rir.
Leo deu partida no carro e, para a minha surpresa,
realmente dirigiu com mais cuidado do que na ida. Eu
notava as casas passando devagar janela afora, como um
indicativo de que nos encontrávamos em uma velocidade
razoável.
— Meu pai me mata se eu aparecer com o menor
arranhão nesse carro — ele se justificou em determinado
momento, como se a falta de velocidade o envergonhasse.
Rolei os olhos nas órbitas, agradecendo
intimamente aos céus por haver um motivo, mesmo
estúpido, que o mantivesse mais atento ao trânsito.
Paramos com um suave solavanco no semáforo de um
cruzamento. Leo se inclinou para a direita, beijando
Pábila com tamanha intensidade que senti as bochechas
esquentarem. Apoiei a cabeça no vidro e olhei para fora,
tentando encontrar algum ponto familiar para descobrir se
já estávamos perto dos Blocos de Letras. Nataly
mantinha-se ocupada com o celular e Arthur, ainda
recostado contra mim, ressonava baixinho.
O farol abriu outra vez e, então, como que por uma
peça pregada pelo destino, fomos atingidos em cheio, no
meio do cruzamento. Os acontecimentos foram rápidos
demais para acompanhar. Ouvi Leo arfar com um pouco
de urgência e, depois disso, só tive tempo de girar o rosto
para a direita antes de assistir ao carro que atravessara o
sinal vermelho se chocar com violência contra nós.
Antes daquela noite, eu nunca tinha sofrido um
acidente de carro. Mas, por sorte, não me machuquei
muito. Arthur me empurrou com o peso do seu corpo
contra a porta à minha direita e, por isso, bati a lateral da
cabeça. Doeu um pouco na hora, mas existiam tantas
coisas acontecendo que eu sequer percebi. Leo e Nataly,
que se encontravam do lado da batida, foram as principais
vítimas. Ele também bateu a cabeça, mas, a começar pela
maneira como sangrava, dava para perceber que fora
realmente forte. Além do mais, estava desmaiado sobre o
volante. Minha colega de apartamento tinha quebrado o
braço. O choro dela fez meu coração apertar de
preocupação, porque sua dor fazia-se perceber nas
soluçadas ritmadas.
Não sei dizer quem chamou a polícia e a
ambulância. Na verdade, lembro-me muito pouco do que
veio logo após a batida. Somente quem já passou por um
evento traumático sabe o quanto as coisas se tornam
confusas. Meu cérebro parecia ter entrado em pane e
achava-se incapaz de absorver novas informações. Eu só
conseguia perambular de um lado para o outro, com
lágrimas nos olhos, querendo ser útil de alguma maneira.
Como Arthur, Pábila e eu não tínhamos ferimentos
graves, fomos liberados logo após fazer o B.O. Os
enfermeiros prestavam os primeiros socorros aos nossos
amigos enquanto discutíamos o que faríamos.
— Eu vou acompanhar o Leo — Pábila sussurrou,
com o olhar perdido. Vocês têm como ir embora?
— Liga para o... Chewbacca, Becca — pediu ele
e achei bonitinho que tivesse evitado falar Adônis na
frente dela, mesmo em um momento delicado como
aquele. — Eu queria ir com a Lily, pode ser?
— P-pode, mas...
— Eu explico para ela. Fica tranquila. — Notei as
lágrimas em seus olhos quando ele abriu os braços e não
hesitei em me aconchegar em seu corpo. Arthur tinha o
abraço mais tranquilizador do mundo. — Podia ter sido
pior... graças a Deus ninguém se machucou tanto. —
Sussurrou contra o meu ouvido, porém parecia que ele
dizia mais para confortar a si mesmo.
Quando finalmente nos afastamos, Pábila me
surpreendeu com um abraço. Nós nunca mais havíamos
ficado muito próximas depois de eu fingir que gostava
dela — o que era uma besteira sem tamanho, na minha
opinião. Mesmo se eu realmente estivesse a fim dela, não
era como se eu fosse agarrá-la contra a vontade, pelo
amor de Deus.
O fato é que estávamos tão vulneráveis que a
estranheza entre nós se dissipou instantaneamente. Parecia
pequeno demais em um momento tão delicado.
— Fica bem — murmurou, deixando um beijo na
minha bochecha.
— Você também.
Então, depois de se despedir com um aceno, ela
rumou para perto de Leo. A apreensão visível em cada
centímetro de seu rosto delicado.
Respirei fundo e alcancei a telefone celular,
discando o número de Adônis com os dedos trêmulos. Eu
o queria desesperadamente, estava tão assustada, tão
preocupada com Nataly e Leo. Somente ele seria capaz de
arrancar aquela angústia me esmagando por dentro, com
seu jeitinho brincalhão e cuidadoso.
Ou ao menos, foi o que imaginei. Porque, quando
ele atendeu ao telefone, a realidade foi bem diferente
disso.
Garota, você sabe que eu quero seu amor
Seu amor foi feito a mão para alguém como eu
Venha agora, eu te guio
Eu posso ser louco, não ligue pra isso

Ed Sheeran – Shape of you


Foram precisos apenas três toques para que
Chewie atendesse à chamada. Seu tom entregou um misto
de apreensão e curiosidade.
— Adônis, eu... — Contive um arquejo,
esfregando as têmporas para tentar clarear os
pensamentos. — Você pode me buscar, por favor? Nós
batemos o carro, e... — deixei a frase morrer no ar.
Talvez tenha sido a minha voz de quem havia
chorado muito, o fato é que consegui sentir o clima mudar
drasticamente, mesmo pelo telefone. Era como se uma
tensão de alta voltagem tivesse se instaurado entre nós. O
silêncio que veio na sequência me recordou do Adônis de
antes. Aquele que me fuzilava com o olhar e sempre
respondia de maneira curta e grossa. Ouvi-o expirar
profundamente antes de finalmente quebrar o silêncio.
Não pude deixar de notar a maneira urgente com a qual
começou a me bombardear com perguntas.
— Bateram o carro?! Como assim?— Ele bufou
do outro lado da linha, provocando um arrepio
desconfortável em mim. — O que aconteceu?
Arranquei uma lasca de pele do lábio inferior, um
pouco hesitante. O momento que demorei em responder
não passou despercebido por ele, no entanto.
— Me responde, Rebecca!
— Nós estávamos voltando do barzinho quando
um car...
— Calma, espera! O quê? — Adônis me
interrompeu, ficando mais e mais descontrolado a cada
segundo. — Voltando do bar? Oh, merda, me diz que
chamou um táxi, por favor... — murmurou baixinho, como
se lamentasse para si mesmo. — O motorista também
estava bebendo?
— S-sim — respondi, um pouco envergonhada.
Queria completar explicando que não tinha sido culpa de
Leo, mas não tive tempo. Adônis começou a grunhir o que
pareciam palavrões. Não dava para entender, de toda
forma, porque sua voz estava realmente muito baixa.
Mesmo assim, foi o suficiente para me deixar com um nó
enorme na garganta.
— Você está ferida? — perguntou, em meio a um
soluço. Então constatei, para o meu horror, que Adônis
chorava!
Por Rony Weasley, o que está acontecendo aqui?
— Eu b-bati a cabeça... — O nervosismo me fazia
balbuciar além da conta. — Mas não foi nada grave. Fui
liberada pelos enfermeir...
— Onde você está, Rebecca?
— Na Av. Juscelino Kubitschek. Vou te mandar a
localização pelo celular.
— Estou saindo daqui — anunciou simplesmente,
desligando em seguida.
Engoli em seco, completamente transtornada com a
maneira como Adônis reagiu. Na minha imaginação tinha
sido muito diferente. Nela, meu vizinho também ficava
preocupado, mas não com agressividade, tampouco
chorando.
Arthur, que se aproximara da ambulância em que
Nataly recebia os primeiros socorros, caminhava
novamente em minha direção, com uma expressão
intrigada. Ele segurou meus ombros com suavidade,
estudando-me com atenção.
— O que foi?
— Sei lá... Ele não se comportou do jeito que eu
esperava.
— Como assim? Ele não quis te buscar?
— Não é isso. É que... foi estranho.
— Deve ter sido o susto, bonequinha — Arthur
completou, afagando minha bochecha com as costas das
mãos. — Tomara que ele não demore, acho que já estão
terminando. Devemos ir ao hospital dentro de minutos e
eu não queria te deixar sozinha.
Abracei-o pela cintura, repousando a cabeça sobre
seu peito. Arthur era tão magro que seus ossos se faziam
proeminentes na pele. Sorvi o cheiro de incenso familiar e
me senti um pouco menos perturbada. Meu amigo podia
estar certo — havia mesmo uma chance de o susto ser o
responsável pela atitude inesperada.
Poucos minutos depois, o carro de Adônis surgiu,
em alta velocidade, parando de uma só vez a poucos
centímetros de onde nos encontrávamos. Arthur se
desvencilhou de mim, com as sobrancelhas unidas. Talvez
ele tenha começado a entender o meu ponto exatamente
naquele momento. Tinha algo muito estranho se passando
ali.
Chewie pulou para fora com pressa, levando uma
fração de segundo para percorrer o caminho até mim. Seus
braços fortes me apertaram contra seu corpo robusto,
esmagando-me momentaneamente. Os movimentos
ritmados do seu peito subindo e descendo me fizeram
perceber que ele ainda chorava. A constatação roubou o
ar dos meus pulmões. Tudo bem, eu entendia que a notícia
do acidente era realmente preocupante, mas eu estava
bem! Não era como Nataly que, por exemplo, quebrara o
braço.
— Porra, donzela, por que você fez isso? —
Perguntou, segurando o meu rosto com as duas mãos. Ele
levou os lábios aos meus, deixando beijos rápidos, porém
cheios de gravidade.
Então, quando afastou o rosto ligeiramente para
me fitar, seus olhos desviaram para um ponto atrás de mim
e ele me soltou em um rompante. Era para Arthur que ele
dirigia o olhar furioso, a propósito. Avançando com o
indicador apontado, Adônis começou a rosnar de maneira
ameaçadora para o meu amigo atônito.
— Inferno, vocês não têm responsabilidade?
Podia ter acontecido o pior! Entende isso? — Ele atirava
as palavras com ódio. Era como se meu amigo tivesse
sido a faísca necessária para atear o fogo dentro do nosso
professor.
— Adônis! — chamei, suplicando através do olhar
para que parasse.
Eu entendia que estávamos errados. O policial me
informara um pouco antes que Leo responderia por dirigir
bêbado, mesmo não sendo o responsável pelo acidente. E
esse era o ponto — nós já havíamos pagado por nossas
escolhas erradas. Não era justo que ele fizesse aquilo
quando o acidente ainda estava fresco nas memórias.
Ele entendeu o meu pedido, porque apenas
esfregou o rosto e trotou para o carro. Encarei Arthur
significativamente, encontrando-o de olhos arregalados.
Apertei sua mão com suavidade, como uma forma de
agradecer pela companhia. Meu amigo concordou com a
cabeça, afastando-se logo em seguida.
Respirei fundo e entrei no carro, fechando a porta
com um pouco mais de força que o necessário. Estava um
pouco ofendida, irritada... nem mesmo conseguia
reconhecer aqueles sentimentos confusos. Fui tão ingênua
assim em achar que Adônis me acalentaria? Que droga!
A primeira coisa que meus olhos captaram foi o
quanto suas mãos tremiam ao volante, apertando-o como
se ele pudesse desaparecer dali a qualquer momento. Era
impossível não perceber o clima pesado preenchendo o
espaço entre nós, tão presente quanto um terceiro
passageiro. Recostei a cabeça contra o vidro, ainda um
pouco trêmula pela longa noite que tivera. Ocupei-me em
mastigar a minha boca ao longo do percurso, ignorando o
silêncio incômodo. Dane-se. Se ele é um insensível, o
problema é todinho dele, pensei rabugenta, cruzando os
braços sobre o peito.
A tensão não se dissipou quando chegamos ao
nosso condomínio, tampouco enquanto subíamos as
escadas. A raiva passou e deu lugar à melancolia. Eu
ainda não me conformara com suas atitudes tão estranhas.
Era como se ele me culpasse pelo acidente, pelo amor de
Deus! Quão absurdo estava sendo tudo aquilo?
Parei em frente à porta, segurando o trinco um
pouco sem jeito e girando o tronco para trás, a fim de dar
uma última olhadela para meu vizinho tão difícil de
entender. Deparei-me com seus olhos fechados e as mãos
escondidas nos bolsos da calça jeans. Não tive chance de
agradecer pela carona (embora um táxi provavelmente
tivesse sido mais caloroso e empático), pois, tão logo
suas pálpebras levantaram, ele proferiu com a voz seca:
— Precisamos conversar.
Oh, droga, isso não deve ser bom.
— Hum... ok — resmunguei, destrancando meu
apartamento com a mesma velocidade de uma lesma.
Dei um passo ao lado e o observei entrar,
refletindo sobre o quanto ele se parecia com um urso
quando estava bravo. A situação era tão familiar, de um
jeito nada bom. Senti uma comichão na entranha
atravessando a passagem logo atrás dele.
Pode ser o que você quer
Ou o que eu tenho pra te dar
Uma vida inteira pra viver
Ou um só segundo pra lembrar

Banda do Mar – Pode ser


Minha cabeça se assemelhava a um rádio
dessintonizado, chiando sem parar e me impedindo de
refletir. Limitei-me a arrastar uma cadeira na cozinha e me
sentar — temia perder a força dos joelhos a qualquer
momento. Adônis, por sua vez, permaneceu em pé. Ficou
parado por poucos segundos e então, como se não
conseguisse controlar o próprio corpo, começou a andar
de um lado para o outro, parecendo perturbado. Notei,
aliviada, que suas lágrimas enfim haviam cessado.
— Droga, donzela, não consigo me conformar!
Você é tão inteligente. — Suas palavras eram cuspidas
com urgência. — Tem ideia do quanto se arriscou? Quase
jogou a vida fora por uma idiotice. Por que não chamou
um táxi, ou então, sei lá... por que não me ligou para te
buscar? Por que você voltou com eles?
Era como se um gato tivesse comido a minha
língua. Eu me sentia envergonhada, justamente porque
considerei não voltar com meus colegas. Mas como
poderia imaginar que tudo daria errado? Um segundo e a
realidade fora transmutada para um rumo muito diferente
do esperado.
— Nunca mais faça isso, por favor. Foi
irresponsável demais! — Esfregou o rosto com
impaciência. — O ser humano tem essa mania estúpida de
achar que é inatingível, até que simplesmente acontece
alguma merda e pronto, acabou. E depois não adianta
espernear, porque o passado não muda, você entende
isso? Não muda, Rebecca!
A intensidade de suas palavras me deixou
momentaneamente desamparada. Precisei piscar algumas
vezes para evitar o choro. Não era de tristeza, no entanto,
mas sim de frustração. Eu me sentia frustrada comigo
mesma por achar, equivocadamente, que Chewie seria
compreensivo.
Ledo engano!
— Ninguém quer passar por isso, Adônis! —
atirei, sem conseguir esconder a raiva. — Ou você acha
que eu peguei carona imaginando que bateríamos o carro?
Qual é, foi um acidente. Um acidente! — Minhas palavras
morreram no ar quando nossos olhares se encontraram.
Isso porque eu pude vislumbrar a maneira como as íris de
Outono brilhavam. Ele também parecia segurar o choro,
tal como eu. Céus, aquilo era desconcertante. — Por que
está fazendo isso comigo? — ouvi-me perguntar,
desamparada.
Adônis balançou a cabeça em negativa, suspirando
pesadamente. Dava para sentir a energia emanando dele
mesmo a centímetros de distância. Meu vizinho se parecia
com uma bomba relógio prestes e explodir outra vez,
como fizera com Arthur. Então, em um rompante, deu dois
passos, caindo de joelhos em minha frente. Suas mãos me
seguraram com firmeza, os dedos frios serviam como um
bálsamo contra o meu rosto quente.
— Você não percebe, né? — Os sulcos em sua
testa eram profundos. — Rebecca, por um segundo achei
q-que... eu pensei... Meu Deus, eu não aguentaria passar
por isso outra vez!
Abri a boca para perguntar “o que”, mas ele
aproximou o rosto um pouco mais. Sua respiração morna e
ritmada ricocheteava na minha pele. Nossos lábios quase
se tocavam. Enterrando os dedos compridos um pouco
mais em meus cabelos, ele prosseguiu.
— Estou louco por você! Eu gosto de você pra
caralho. É mais do que consigo compreender, é... loucura.
Não posso te perder, não posso. Droga, e ainda me
pergunta por que estou fazendo isso! Se você imaginasse o
quanto eu me sinto vivo ao seu lado, o quanto meu dia só
tem graça quando você está por perto. Está certa, Becca
— sussurrou contra a minha boca. — Não vamos
desperdiçar o nosso tempo. Eu preciso de você, preciso
demais.
Ele parou a frase, assim, de uma só vez, para me
beijar. A maneira intensa e desesperada com o qual sua
língua se entrelaçava na minha me dizia mais do que
qualquer palavra que pudesse sair de seus lábios. Sua
paixão era liberta em momentos como aquele e eu me
sentia em êxtase. Adônis era o meu nirvana. Com ele, eu
alcançava lugares inimagináveis e nem mesmo o céu era o
limite.
Abracei seu pescoço bem apertado, aprisionando-
o contra meu corpo, que inflamava. Chewie tinha esse
poder de levar as minhas sensações ao extremo — e era
delicioso. Suguei seu lábio inferior cheia de desejo e,
como resposta, seus braços se fecharam ao meu redor.
Senti seus dedos enterrarem na minha pele e gemi contra
sua boca. Então, meu coração perdeu uma batida quando
Adônis levantou, levando-me junto em seu colo. Arfei,
surpresa, cruzando as pernas ao redor de sua cintura para
me firmar. O movimento fez com que sua ereção se
apertasse contra mim, causando uma corrente elétrica que
percorreu cada centímetro de pele, eriçando todos os
pelos. Apenas algumas camadas de tecido me separavam
dele e a sensação era insana. Eu o desejava tanto, mas, ao
mesmo tempo, espasmos de ansiedade faziam os músculos
vibrarem sem o meu comando. Apesar de ter fantasiado
aquele momento quase obsessivamente nas últimas
semanas, estar diante dele me deixava apavorada. Era
uma verdadeira antítese de emoções.
Adônis percorreu o apartamento às cegas,
consumindo-me com seu beijo ardente. Mesmo sem jamais
ter pisado ali antes, a planta era a mesma do seu e, por
isso, chegamos ao corredor com facilidade, onde ele
parou brevemente, separando nossos lábios poucos
centímetros. Consegui ler a pergunta em sua expressão
séria e lasciva. “Onde é o seu quarto?”, ele me indagou
sem dizer palavra alguma.
— A primeira porta — sussurrei, voltando a roçar
a boca na dele. Eu não conseguia me manter longe nem
mesmo por poucos segundos. O que podia fazer se meu
corpo clamava desesperadamente por mais?
Caminhar pelo quarto não foi tão fácil quanto no
restante da casa. Trombamos com a escrivaninha e com a
quina do guarda-roupa no caminho e rimos juntos. Meus
dedos estavam gelados e o coração palpitava
desenfreadamente àquela altura. Eu não sabia dizer se era
por nervosismo ou por anseio. Havia grande chance de ser
os dois, para ser honesta.
Prendi a respiração quando Adônis se sentou na
cama, comigo em seu colo. Suas mãos passearam na
minha cintura, subindo pelo tronco até alcançarem o meu
rosto. Ele fisgou meu lábio inferior com um pouco de
força, deixando breves chupadas na pele dolorida, que
eram acompanhadas por gemidos baixinhos e delirantes.
— Quantas vezes imaginei isso... — sua voz rouca
penetrou meus tímpanos, ao passo em que ele mordiscava
meus lábios em pontos variados, deixando-os formigantes.
Minha cabeça parecia ter parado de funcionar, mas
o restante do corpo, por sua vez, nunca estivera tão vivo.
Era como se meus membros funcionassem sozinhos,
movidos por aquele combustível ardente que emanava de
nós dois, deixando tudo em combustão pelo caminho. Sem
pensar realmente no que fazia, vi meus dedos
desabotoarem a camisa xadrez de Adônis com um pouco
de pressa, revelando o peitoral definido que eu tanto
adorava. Deslizei o pano por seus braços, espalmando seu
abdômen masculino e instigante. Meus dedos desceram
pelo V que eu já vislumbrava tantas vezes antes, tracei o
contorno que levava para o cós da calça jeans, arrancando
um gemido gutural de Adônis.
Isso serviu como um estopim para ele, porque, no
segundo seguinte, suas mãos subiram pelas minhas pernas
trazendo o vestido com elas. Ele o arrastou pelo meu
corpo tão depressa que mal tive tempo de pensar. Limitei-
me a erguer os braços, para ajudá-lo a terminar de se
livrar da peça de roupa. Ele a atirou em qualquer lugar às
minhas costas, abraçando-me e voltando a me beijar com
ardor. O contato de nossas peles quentes fazia emanar uma
nova onda de avidez em mim.
Seus lábios passearam pelo contorno da minha
mandíbula, traçando-a até chegarem ao queixo e depois
avançarem pelo pescoço. Ouvi um clique suave e, logo em
seguida, meu sutiã se afrouxou, descobrindo os seios.
Tomei a iniciativa de tirá-lo. Puxei-o para fora do corpo
com lentidão, sentindo o olhar em brasa de Adônis que
praticamente tocava o meu corpo, tamanha era a
intensidade. A admiração quase devota com que me
engolia com as íris arrancou qualquer vestígio de
nervosismo de uma só vez. De repente, tive a certeza de
que não existia nenhum lugar que quisesse estar mais do
que ali. Todos os outros acontecimentos foram varridos
para fora da mente. Nada mais existia além de nós dois.
— Você é linda demais! — suspirou, apaixonado,
subindo as mãos pela minha cintura. — Estou louco por
você, minha donzela...
— Eu também, muito.
— Nervosa? — perguntou com um sorriso manso
que amoleceu meu corpo todo. Balancei a cabeça,
olhando-o significativamente.
— Não. Eu confio em você.
Adônis fechou os olhos com força, como se
estivesse quase impossível se segurar um pouquinho mais
que fosse. Bom, eu o entendia muito bem, porque me
sentia da mesma maneira. Ele voltou a me beijar, faminto,
e suas mãos se fecharam em meus seios, massageando-os
cheios de vontade, ora com movimentos suaves, ora com
uma firmeza que me fazia rebolar em seu colo,
contorcendo-me inteira.
— Meu Deus... como... desejei... você... —
rosnou, daquela maneira descontrolada que me deixava
sem fôlego. — Como... quis... você...
Sua boca percorreu o caminho até eles e, no
momento em que os alcançaram, precisei morder meu
lábio inferior a fim de expelir toda aquela energia
alucinante que, de uma só vez, se espalhou por meus
membros.
Adônis levantou os quadris, girou o corpo e
inverteu nossas posições, deitando-me na cama. Os dedos
compridos se enroscaram na minha calcinha com
delicadeza, quase como se pedisse permissão. Respondi
com um demorado arfar e ele a escorregou pelas minhas
pernas, deixando beijinhos pelo caminho. Primeiro nos
quadris, depois nas coxas, nas canelas e, por fim, nos
meus pés.
Ele ainda vestia suas calças quando avançou por
cima de mim, abrindo minhas pernas com as mãos
grandalhonas. Se a maneira como ele me olhava era um
indicativo de como se sentia no momento, então ele estava
pegando fogo. Estremeci ao observá-lo umedecer os
lábios, como se estivesse faminto por mim, beirando a
inanição.
Adônis lambeu o lado de dentro das minhas coxas,
provocando uma comichão que começava no baixo ventre
e se espalhava pelo corpo. Por Deus, o que está
acontecendo comigo?, pensei, suando frio ao mesmo
tempo em que queimava. Como era possível que tantas
sensações discrepantes e intensas me tomassem de uma só
vez? Como ele podia deter tanto controle sobre o meu
corpo, ainda que inconscientemente?
— Adônis... — gemi baixinho quando ele
começou a beijar o meu ponto de prazer e precisei fechar
os olhos. Era muito para absorver, afinal.
Enterrei as mãos em seus cabelos sedosos,
deixando-o brincar comigo. Eu já tinha ouvido falar sobre
a primeira vez de uma mulher ser traumática, mas para
mim — ao menos até aquele momento — estava indo
muito bem, obrigada. Chewie me tragava de um jeito doce
e carinhoso, sem pressa. Ele parecia se deliciar com cada
pequena reação do meu corpo, do qual eu não possuía o
mais remoto controle. Era como se Adônis partilhasse do
meu prazer.
Meus joelhos tremiam e os dedos formigavam
enquanto ele explorava todas as possibilidades com sua
boca. A aspereza de sua barba era um contraste perfeito
com a delicadeza úmida da língua. Meus gemidos se
espalhavam cada vez mais pelas paredes do quarto,
preenchendo-o por inteiro. Conforme ele mudava a
cadência ou a pressão dos movimentos, mais eu
aumentava a força com a qual segurava os seus cabelos.
— Donzela... — chamou, quando comecei a me
contorcer além do normal. — Olhe para mim, por favor.
Com muita dificuldade, abri as pálpebras e me
deparei com seu olhar concupiscente, entregue...
Perfurando-me com as íris de Outono, Adônis me afogou
em um mar de prazer que eu jamais sonhara experimentar.
Entortei a coluna para cima, desmanchando-me em
espasmos deliciosos. Era como se uma corrente elétrica
percorresse o meu corpo, em ciclos intermináveis que
começavam e terminavam no ventre. Minha respiração
estava curta e rápida, como se o ar ali dentro tivesse se
tornado rarefeito.
Rastejando para cima com os cotovelos, ele
segurou o meu queixo com uma mão e buscou minha boca
com a sua.
— Você é deliciosa — soprou contra a minha
boca, provocando um gostoso calafrio nas minhas
entranhas.
Levei alguns segundos para responder, os quais
usei para me recompor do terremoto de sensações
experimentado há pouco. Então, expirando o ar dos
pulmões, sorri com travessura.
— Então eram essas coisas que você queria fazer
comigo?
Ele tombou a cabeça para trás, gargalhando de
maneira contagiante.
— Você acabou de arruinar o clima, Rebecca! —
protestou teatralmente. O sorriso, no entanto, permanecia
em seus lábios.
— Tenho um ótimo timing para piadas.
Nós dois rimos juntos, até que nossos risos
morressem no ar. Lancei um olhar cheio de cumplicidade
para ele e ocupei meus dedos em buscarem o fecho de seu
jeans. Um pouco trêmula de nervosismo, desabotoei e
deslizei o zíper para baixo. Adônis fechou as pálpebras,
buscou uma das minhas mãos e a colocou dentro da calça,
sobre a cueca, repousando a sua por cima. Senti-lo tão
rígido me trouxe um ímpeto de excitação. Arranhei suas
costas com a mão livre, enterrando o rosto na curva onde
o pescoço encontrava o ombro, e sorvi seu perfume forte e
viril. Balançando o quadril quase imperceptivelmente
para frente e para trás, ele segredou em meu ouvido:
— Preciso de você. — Sua voz estava
desconcertantemente sexy. — Preciso te fazer inteira
minha.
— Eu já sou.
Minhas palavras despertaram algo nele. Isso
porque, de repente, Adônis elevou o tronco, sustentando-
se com os braços. Seus olhos brilhavam em demasia. Ele
depositou um beijinho na minha testa e tomou impulso
para levantar, mas parou na metade do caminho tão logo
minha voz pairou ao nosso redor.
— Onde está indo? — perguntei, de sobrancelhas
unidas.
— Para o meu apartamento.
— Agora?! Por quê?
— Porque não temos uma camisinha — ele
encolheu os ombros, inclinando-se para deixar um selinho
em meus lábios. Sua rigidez se apertou contra as minhas
pernas e eu suspirei.
— N-não precisa — minha voz falhou. Adônis
lançou um olhar perplexo para mim, como se eu tivesse
acabado de pedir para virarmos cambalhota. Adiantei-me
em corrigir. — Não precisa ir lá para isso. Vamos pegar
uma de Arthur.
Ele estreitou os olhos, absorvendo minhas
palavras. Então, para a minha surpresa, levantou-se de
uma só vez.
— Qual quarto? — perguntou, já a meio caminho
da porta.
— No final do corredor — respondi, rindo.
Em um segundo eu refletia se ele conseguiria
encontrar sozinho e, no seguinte, estava outra vez ali,
tirando o que restava de suas roupas, rastejando sobre o
meu corpo, buscando a minha boca, consumindo-me com
um desespero lascivo. Ouvi o barulho do plástico sendo
rasgado e, por alguma razão, o nervosismo voltou com
tudo. Eu me sentia como se abrigasse uma montanha russa
dentro do estômago, e ela fazia looping atrás de looping.
Fechei os olhos, esperando o momento crucial em que
deixaria de ser virgem. Por que está com tanto medo?,
meu subconsciente cobrou uma resposta que nunca chegou.
Em vez disso, a mão fria de Adônis afagou minha maçã do
rosto, buscando-me de volta para aquele momento.
— Você está legal?
Soltei um sorriso fraquinho, olhando-o com
ternura.
— Não poderia estar melhor — menti, mas foi por
uma boa causa. Meu professor me confortava, mesmo sem
saber.
Ele deu beijinhos nos dois cantos da minha boca,
carinhosamente.
— Quero que seja especial para você, Becca.
Quero te fazer sentir do mesmo jeito que você faz comigo.
Porra, como quero. — Ele me olhou com uma expressão
carente responsável pelo calor gostoso que se alastrou
dentro do peito, uma sensação de acalento sem igual. Se
aquilo era estar apaixonada, eu adorava. Parecia grande
demais para caber em mim.
— Já conseguiu — sussurrei. — Somos eu e você,
e isso já é... perfeito.
O gemido baixo que ele engoliu me deixou
sedenta. Eu não entendia como podia desejar algo que
jamais experimentara antes, mas o anseio corria pelas
minhas veias a todo vapor, vencendo a hesitação.
— Vou tentar ir com calma — disse, esfregando a
ponta do nariz no meu. —, mas acho que vai doer um
pouco.
Assenti, incapaz de encontrar palavras. Eu sabia
que ele seria cuidadoso comigo, afinal, sempre era. Ainda
assim, não podia ignorar o fato de que me encontrava
gelada de nervosismo. Mordisquei o lábio inferior,
fechando os olhos novamente. Chewie recostou o queixo
em meu ombro, sua respiração morna e inconstante
praticamente me acariciava. Meu coração bombeava
sangue em uma cadência alarmante para o resto do corpo
e eu senti como se todos os músculos tivessem
enfraquecido de uma só vez. Adônis se encaixou em
minhas pernas, colando nossos corpos.
— Meu Deus — gemeu contra o meu ouvido, com
a voz embargada, enquanto deslizava para dentro de mim
em um movimento forte de quadril.
Um guincho de protesto escapou da minha
garganta, diante da dor pungente que cresceu pelo meio
das minhas pernas. Apertei ainda mais os olhos, sentindo-
os úmidos. Um pouco assustada, um pouco indignada com
a dor intensa onde, até então, só houvera prazer, tentei
afastá-lo. Adônis, no entanto, parecia cego de prazer.
Voltando a se erguer nos braços, ele alcançou minha boca
com certa urgência, movimentando-se de novo e de novo
dentro de mim. Cravei as unhas em suas costas,
exprimindo a angústia que me tomou de uma só vez. Gemi
de dor, sentindo o cheiro salgado e metálico de sangue no
ar.
Então, como se tivesse acordado de um transe, ele
paralisou e afastou o rosto alguns centímetros. Todos os
seus músculos enrijeceram, revelando sua tensão. Abri
meus olhos e o encontrei com as íris alastrando
preocupação. Ele permaneceu assim, imóvel, com a
respiração entrecortada, como se lutasse para manter a
calma. Eu conseguia perceber o tamanho de sua
necessidade por mim em pequenos detalhes, como no
maxilar travado, no cenho franzido, ou na maneira como
seu peito subia e descia rapidamente. No entanto, sabia
que ele lutava para não me consumir com toda a urgência
que queria apenas por minha causa, e a constatação me
deixava cheia de vontade de suportar o desconforto,
apenas para presenciá-lo dominado pelo desejo como há
pouco.
Adônis suspirou pesadamente e procurou as
minhas mãos com as suas. Ele entrelaçou nossos dedos,
segurando-me contra a cama, como se me prendesse a ela.
Estremecendo levemente, voltou a se movimentar
devagarzinho, conhecendo o meu corpo. A dor foi
suavizando a cada nova investida, dando espaço para uma
sensação única e desconhecida. Tê-lo dentro de mim, tão
intimamente, era indescritível, excitante, sensual ao
extremo. Fechei os olhos, vivendo o momento. De repente,
o incômodo já não era assim tão significante, quase não
dava para notar diante de todo o resto. Eu lhe oferecia
tudo aquilo que sempre neguei para mim mesma — o
descontrole delicioso de pertencer a outrem. Depois de
uma vida com medo, sentia-me grata por ter me libertado
das amarras, justamente me entregando de corpo e alma. E
a antítese da situação só contribuía com a sensação de que
logo não comportaria a intensidade com que gostava dele,
a força com a qual precisava dele mais e mais.
Quando menos percebi, tímidos gemidos de prazer
escapavam dos meus lábios, formando um arranjo com
aqueles emitidos por Chewie. Deixei mordidinhas por seu
pescoço, explorando seu corpo com minhas mãos,
apalpando, apertando, arranhando.
— Becca... — Sua voz foi como um sopro. Eu
mais senti do que ouvi. — Minha donzela... olhe para
mim.
Obedeci, encarando-o com expectativa. A luz do
luar entrava pela janela, deixando sua pele pálida e
iridescente, além de destacar as gotículas de suor
brilhando em seu corpo, como as estrelas brilhavam lá
fora. Os olhos destacavam-se no escuro, por sua vez. Eles
praticamente flamejavam, fitando-me cheios de paixão e
desejo.
— Fica ainda mais linda quando estou em você —
falou com a mesma naturalidade que se comenta sobre o
clima. — Você é perfeita para mim. Perfeita demais.
Tenho medo de acordar de um sonho muito bom.
— Não vai — respondi com dificuldade. — Eu
estou aqui e não vou a lugar algum.
Seus dedos compridos foram até a minha testa
suada afastando a franjinha e oferecendo certo alívio. A
esta altura, não havia mais resquício algum de dor, apenas
prazer subindo em espirais pelo corpo como furacões
intermináveis que faziam tudo tremer por onde passavam.
Em um ímpeto de exaltação, remexi os quadris, pedindo
por mais. Arranquei um uivo pesado de Adônis, que me
tomou pelos braços e, de alguma forma, me vi sentada em
seu colo. Abracei-o pelo pescoço, sem conseguir manter a
boca longe da sua. Eu não podia. Não quando seu sabor
era tão bom, não quando sua língua se entrelaçava a minha
com tamanha paixão.
Segurando-me pelos quadris com as mãos
pesadas, ele me subia e descia em movimentos fortes e
ritmados. Eu me sentia um instrumento em suas mãos.
Adônis fazia música com nossos corpos unidos, entregues,
perfeitos um para o outro. De repente, percebi seus olhos
obscurecerem, pendendo mais para o avelã. Suas unhas se
enterravam em minha pele, causando pontinhos de dor em
um mar de prazer. As sobrancelhas grossas estavam
unidas e os sulcos em sua testa eram proeminentes. Ele até
poderia se passar por bravo, não fossem os lábios
separados daquele jeito delicioso. Senti meus músculos se
contraindo um a um e me agarrei ainda mais em seu tronco
muito sólido. Pela maneira como ele reagia, sabia que,
juntos, caminhávamos para o mesmo destino.
Partilhávamos das mesmas sensações.
O que senti depois foi como uma explosão. Veio
do ventre e se expandiu para o corpo todo, causando
formigamentos e tremedeiras nos lugares mais variados.
Senti uma energia pulsante, ao passo em que era tomada
pela exaustão.
— Porra! — Adônis convulsionou no segundo
seguinte, segurando meu rosto com as duas mãos e me
olhando tão profundamente que, pela primeira vez na
noite, senti-me de fato exposta. Era como se eu fosse um
livro aberto, ao qual ele pudesse ler e reler, apesar de já
conhecer cada palavra impressa.
Seu polegar contornou o meu lábio inferior
suavemente. Peguei-me estremecendo ao simples gesto.
Eu me achava tão sensível, até mesmo a brisa gélida
entrando pela fresta da janela era suficiente para me
arrepiar.
— Isso foi... — suas palavras morreram no ar. Eu
notava suas íris passeando de um lado para o outro pelo
meu rosto, como se memorizando cada centímetro. Minhas
bochechas queimaram, mas de um jeito bom. Saber o
quanto ele me achava bonita, o quanto me desejava, o
quanto ele perdia o controle comigo trazia um sentimento
esmagador. Meu coração estava com o dobro de tamanho.
— Maravilhoso — completei. — Esse é um
daqueles momentos tão perfeitos que dão até um pouco de
medo.
— Medo? — Ele arqueou as sobrancelhas.
— Medo de nada ser tão bom de novo.
Sua risada calorosa me aqueceu por dentro.
— Ah, Donzela, as próximas vezes realmente não
serão apenas tão boas quanto, serão melhores.
Ri junto dele, recostando a cabeça contra o seu
peito para ouvir os batimentos cardíacos ainda
acelerados. Sorvi seu perfume e fechei os olhos,
recebendo os braços fortes ao meu redor, protetores,
carinhosos e — talvez o mais importante — meus.
É tão singular
O jeito que me observa acordar
E meu cabelo não parece te assustar
Você, incrivelmente, não se importa

Anavitória – Singular
Despertei com um afago suave no ombro direito e
respirações que vinham em lufadas contra meu rosto.
Pisquei algumas vezes, até encontrar Adônis com aquela
expressão linda, meio safada, olhando carinhosamente
para mim. Do lado de fora da janela, os primeiros raios
de sol coloriam o céu pálido. As cortinas balançavam
com mansidão, empurradas por preguiçosas brisas
matinais. Forcei a memória para me lembrar de quando
exatamente caí no sono, mas me deparei somente com o
vazio. Jamais imaginei que sexo fosse tão cansativo a
ponto de derrubar uma pessoa. Aliás, eu sempre ficava um
pouco desconfiada quando, nos filmes, as pessoas
acordavam lindamente enroladas em lençóis brancos. E,
no entanto, aqui estou eu, o pensamento me roubou um
sorriso.
— Você não dormiu? — questionei, passeando o
indicador pelas linhas do seu abdômen.
— Só um pouquinho.
— Teve pesadelos de novo?
Chewie negou com a cabeça, seu bom-humor era
perceptível mesmo para alguém com a mente embaralhada
pelo sono, como eu. Quem te viu, quem te vê! Mordi o
lado de dentro da bochecha para segurar a risada.
— Eu não tenho pesadelos quando estou com você
— respondeu com uma tranquilidade inabalável.
— Não?
— Hum-hum.
— Como assim? — Sorri, incrédula.
— Não sei, apenas acontece... Deve ser a força
emanando de você, princesinha.
Ri baixinho, fazendo uma careta azeda para ele
logo em seguida.
— Ah, não. Eu odeio esse apelido!
— Odeia, é? — Lançou uma piscadela para mim e
eu sabia que estava me provocando. — E posso saber o
porquê?
— É uma afronta! — expliquei. — Aprendi a
gostar de “donzela”. Mas princesinha passa uma ideia de
fragilidade que me incomoda.
— Você está sendo preconceituosa, Becca! —
brincou, apertando o meu nariz de levinho. — Quer dizer
que princesas não podem ser fortes e valentes?
— Bom, em geral não são.
— Meu Deus, isso está vindo de uma suposta fã de
Star Wars? — perguntou, balançando a cabeça em
negativa. — A princesa Leia não é uma personagem forte
o suficiente para você?
Minha gargalhada repercutiu por todo o quarto, ao
passo em que meu rosto deve ter ficado na cor de um
tomate maduro.
— Nossa, você me pegou! — lamentei,
escondendo o rosto em seu pescoço. Senti o cheiro não de
perfume, mas sim o aroma terno de sua própria pele.
Inspirei profundamente, deleitando a sensação de acordar
em seus braços, depois da madrugada maravilhosa que
passamos juntos.
Então, minha mente vagueou para o que acontecera
antes. Quero dizer, apesar de ter me prendido às últimas
horas, a noite havia sido realmente extensa, repleta de
acontecimentos. A comemoração de Arthur, o acidente, o
comportamento inesperado de Adônis. Por Bilbo
Bolseiro!, meu subconsciente exclamou com a memória.
Senti o estômago embrulhar de uma só vez quando minha
mente foi invadida pelas imagens de horas atrás. Ele
dirigindo silencioso, chorando e depois gritando comigo
sobre eu ser irresponsável. Estava tão apavorado, agora
eu percebia isso muito bem. Na hora julguei
equivocadamente que me atribuía a culpa pelo acidente,
mas não podia ser o mais distante disso. As palavras que
ele cuspia com raiva eram para si mesmo.
Enrijeci no lugar ao fazer a conexão e finalmente
ligar todos os pontos. Então, várias lembranças de dias
aleatórios foram voltando aos poucos. Era isso! Os
pesadelos, e quando ele me disse para beber com
responsabilidade, muito tempo atrás. Não pude processar
mais informações, de toda forma, pois, como se tivesse
lido meus pensamentos, Adônis segurou meu queixo com
brandura e ergueu meu rosto, buscando meus olhos.
— Em que está pensando?
Sustei o olhar, ponderando como seria a melhor
maneira de abordar o assunto. Talvez não fosse o
momento ideal, eu sabia, mas não custava tentar. Fiquei de
barriga para baixo e me sustentei nos cotovelos para ter
uma melhor visão dele. A curiosidade em seu rosto
crescia a cada segundo.
— Essa noite, quando te liguei... — minha frase
morreu no ar. Tamborilei os dedos no colchão, buscando
as palavras certas. — Você... hum... surtou.
Ouvi o som característico dele se estalando e, ao
subir o olhar, notei atordoada que estava um pouco pálido.
Tão logo notou que eu o observava, murmurou:
— Fiquei preocupado com você.
— Não parecia ser só isso.
— Como assim? — Ele colocou uma mecha de
cabelo atrás da minha orelha, umedecendo os lábios.
— Não sei... Senti que aquela raiva não era
totalmente voltada para mim.
— Eu não estava com raiva, Becca. — Sorriu com
incredulidade. — Foi o calor do momento. Você me
conhece, não sou a pessoa mais fácil do mundo.
— Não, Chewie. Você tenta se convencer disso,
mas não é verdade. Eu teria acreditado se fosse antes, só
que agora eu te conheço. É sempre tão carinhoso comigo...
e ficou tão bravo.
— É claro que fiquei! — exclamou. — Vocês
fizeram merda, não vou passar mão na sua cabeça por
isso, donzela.
Soltei o ar dos pulmões, um pouco irritada. Neste
ponto, nada tinha mudado — ele permanecia enfático no
quanto repreendia os eventos da noite anterior. Eu sabia
que tinha a minha parcela de culpa, no entanto não deixava
de considerar cruel sua maneira incisiva de lidar com a
situação.
Disposta a evitar que acabássemos discutindo,
decidi mudar de tática. Cruzei os braços sobre o peito
dele, usando-o como um travesseiro gigante. O calor do
seu corpo era convidativo e, por isso, impossível de
resistir.
— Eu sei que você passou por alguma coisa muito
ruim... algo que te deixou com sequelas permanentes.
— Sequelas? — Estreitou os olhos, desconfiado.
— Sim. Como os seus pesadelos, ou o seu medo
de se entregar para alguém.
— Eu me entreguei para alguém! — Adônis rolou
os olhos nas órbitas. — Achei que depois de ontem
tivesse ficado bem claro — resmungou, como um velho
rabugento.
Dei um tapinha em seu peito, sem conseguir
segurar a risada. Ele arqueou as sobrancelhas de maneira
ameaçadora, o que apenas me fez rir ainda mais.
— Você entendeu o que eu quis dizer! — Mordi
sua orelha direita, tentando dissipar a expressão
emburrada. Funcionou, pois, em um segundo, os lábios se
torceram para o lado em um sorrisinho a contragosto.
— Ok, posso ter demorado um pouco para me
livrar das amarras — Ele deu de ombros, forjando pouco
caso.
— Enfim, você sempre bate nessa tecla do
passado ser imutável. E desde o começo sempre cuidou
de mim em todas as vezes que eu estive bêbada... —
Expirei o ar dos pulmões. — Antigamente eu me
perguntava o motivo de você ser tão rude e fechado com
os outros quando, na verdade, é a pessoa mais carinhosa e
cuidadosa do mundo. Mas depois eu entendi, Adônis.
Você é como eu, tentando fugir da dor que existe no
mundo! — Engoli em seco quando seus olhos brilharam
além do normal. — Olha, não precisa me responder se
não quiser... eu só queria entender, só queria te conhecer
melhor. O que de tão ruim aconteceu para você ficar
assim?
— Seu timing é realmente péssimo. Para tudo. —
Sorriu tristonho, os olhos permanecendo apagados. Seus
braços me apertaram em um abraço esmagador e precisei
me ajeitar em seu corpo para não sufocar.
— Não precisa me fa... — comecei, no entanto fui
interrompida por ele.
— Você merece saber, eu só... — Pigarreou. — É
difícil falar sobre isso depois de tanto tempo. Um pouco
estranho, não sei.
Permanecemos abraçados por um momento, que
ele deve ter usado tentando encontrar uma boa dose de
coragem. Seus dedos passeavam pelo meu braço como
ondas no mar — indo e voltando continuamente. Eu podia
supor quão difícil era abrir feridas do passado, afinal, não
contava tanto tempo desde que contara minha história a
ele. Por outro lado, depois de, pela primeira vez na vida,
me abrir para alguém, experimentei uma sensação única,
de aliviar o peso das costas. Como se, muito lentamente,
as feridas começassem a coagular para, quem sabe um
dia, cicatrizar.
Resgatando-me para a realidade, Adônis desferiu
um beijo em minha testa.
— Eu já sofri um acidente de carro e perdi alguém
muito... importante para mim. Perdi a minha namorada.
Minha primeira e única namorada. — sua voz falhou ao
mesmo tempo em que eu prendi minha respiração. O
baque foi tão grande que me vi sem reação por um
momento. — Nós éramos vizinhos de rua e meio que
crescemos juntos... Não sei dizer exatamente quando
deixou de ser amizade e passou a ser amor, mas eu
gostava bastante dela. Tanto que abandonei meu sonho por
ela.
Arregalei os olhos, sem esconder a confusão que
me assolou. Por Tyrion Lannister..., pensei aturdida. Era
muito para processar e ele mal tinha começado! Notando
o meu desamparo, ele prosseguiu. Apesar de soturno, seu
tom de voz era comedido, de alguém que já não se
martirizava mais com isso.
— Pouco tempo depois de começarmos a namorar,
seu pai foi transferido para trabalhar em outro estado.
Passamos alguns meses separados, mas eu sabia que não
daria certo daquele jeito, por isso chutei o balde e prestei
vestibular de Letras, uma desculpa para ficarmos perto um
do outro. E deu certo. Por quase dois anos eu vivi o meu
paraíso, Becca. Eu não curtia tanto assim o curso, mas
adorava a liberdade de morar sozinho, adorava as festas,
a farra, adorava ter Cecília por perto e adorava ainda
mais poder fazer shows com a minha banda. Eu pensava
ser invencível — Um sorrisinho fraco pincelou seus
lábios. —, e esse foi o maior de todos os enganos que já
cometi na vida.
“Praticamente todo final de semana minha banda
tocava em alguma festa qualquer, mas, às vezes, essas
festas eram em outras cidades. Cecília e eu costumávamos
viajar no carro dela, nós dois tínhamos habilitação e nos
revezávamos, mesmo se tivéssemos enchido a cara. Eu
nunca achei que um dia pudesse dar merda. Parecia que
tínhamos tudo sob controle. — Adônis suspirou
pesadamente, esfregando o rosto em seguida. — Na noite
do acidente, sugeri dormirmos em um hotel. Foi a
primeira vez, naqueles dois anos. Não porque tive algum
pressentimento, ou algo do tipo, mas porque eu sabia que
tinha bebido demais. Mal aguentava parar em pé, imagine
então guiar o carro por duas horas.
“Nós chegamos a brigar por isso, mas ela venceu.
Sempre vencia. — Outro sorriso apareceu em seu rosto,
seguido por uma careta amargurada. — Nós capotamos o
carro, Becca. Se você visse o estado em que ele ficou...
não dava para acreditar que tinham duas pessoas lá
dentro, muito menos que uma delas saiu viva. Cecília
morreu na hora, me disseram. Eu me quebrei todo e fiquei
em coma alguns dias, mas me safei. Tenho um pino na
perna direita de recordação, e a raiva. Por que fomos tão
burros? Imprudência não é uma coisa cool, Rebecca. E eu
aprendi da pior maneira possível. Foi por isso que... você
sabe... posso ter extrapolado um pouco hoje.
— Meu Deus... — murmurei, ainda atônita. Uma
tristeza avassaladora me tomara depois de vislumbrar um
pouco da história daquele homem tão solitário. — Nossa,
eu não podia imaginar! Sinto muito que tudo isso tenha
acontecido e sinto ainda mais por ter despertado esse
trauma. Eu fui uma idiota, eu sei. Até pensei em chamar
um táxi, mas fiquei com vergonha porque ninguém mais
pareceu se importar.
— Donzela — Ele fechou os dedos ao redor do
meu pulso direito. —, nunca, nunca mesmo, faça nada
pensando em seguir a onda. Amizades só valem a pena
quando não são más influências. E, no fim do dia, somos
nós quem carregamos o peso das nossas escolhas erradas.
Nós e mais ninguém.
Fugi de seu olhar, sentindo o rosto esquentar.
— Hei... não estou brigando com você. Estou
dando um conselho, o qual gostaria de ter dado ao Adônis
do passado.
— Você está certo. — Admiti e diminuí o tom de
voz para prosseguir. — Deve ter sido muito difícil.
— Hoje não dói mais, mas no começo foi quase
impossível. Achei, em muitos momentos, que não fosse
conseguir.
— Como ela era? — perguntei, genuinamente
curiosa. Não por algum tipo de ciúme estranho de pessoas
mortas, mas para conhecer mais sobre ele. Sobre o seu
primeiro amor, pelo qual ele abrira mão de si mesmo. Ela
devia ser, no mínimo, fascinante.
Notei a surpresa em sua feição e constatei que não
ele esperava esse rumo para a conversa. Adônis coçou o
nariz, olhando para muito longe dali, como se parasse
para pensar no assunto depois de um intervalo de tempo
realmente considerável. Similar a alguém que encontra um
álbum de fotos muito velho e o folheia, relembrando cada
momento, experimentando cada sensação, perambulando
entre a familiaridade e as redescobertas de lembranças
apagadas com o tempo.
— Hum, deixa eu ver... — resmungou de repente,
enquanto seus dedos se enterravam suavemente em meus
cabelos, em carícias suaves. — Cecília era bem
romântica. Ela lia bastante, amava o Nicholas Sparks.
Não gostava tanto de rock, mas ouvia por minha causa. —
Sorriu brevemente. — Ela sempre quis ser professora
porque adorava crianças e dizia que o sonho da vida dela
era morar em uma casa com um jardim bem grande e
muitos filhos para ocupá-lo. Nós passávamos a maior
parte do tempo brigando pelas coisas mais idiotas, como,
por exemplo, quando eu dizia que sertanejo universitário
era um lixo. — Sua risada foi calorosa. Peguei-me rindo
baixinho, junto dele. — Ela ficava realmente brava.
— Você acha mesmo um lixo? — questionei,
divertida.
— Não. Eu só gostava de contrariar... você sabe.
— É, eu sei.
— Hoje eu paro para pensar e sei que
eventualmente teríamos terminado se nada disso tivesse
acontecido. A gente tinha mais diferenças que
semelhanças. Eu fico triste porque realmente queria que
Cecília alcançasse seu sonho. Ela seria uma ótima
professora... — sua voz falhou e foi seguida por um
soluço. Sem pensar muito, usei as costas da mão para
secar as lágrimas escorrendo por sua bochecha e me
aconcheguei um pouco mais nele. Adônis afundou o rosto
nos meus cabelos, voltando a me esmagar com os braços.
Apesar das lágrimas e da viagem ao passado, eu
não me arrependia de ter abordado o assunto logo depois
de termos nos entregue verdadeiramente um para o outro.
Por alguma razão, senti-me mais conectada com Chewie
do que nunca. Ele conhecia meus segredos mais íntimos e
eu sabia da sua história. Então, de uma só vez, a
melancolia foi dissipada por algo muito maior. Meu
coração se encheu de amor e eu só consegui me sentir
grata por nossas vidas, de alguma maneira, terem se
cruzado. Todas as coincidências que outrora lamentei —
como o fato de sermos vizinhos e também dele ser o meu
professor — passaram a soar como um presente. Deixei
alguns beijinhos em sua clavícula, esfregando o nariz na
pele macia do seu pescoço.
— Obrigada por me contar.
Ele cobriu minha boca com a sua, em um beijo
doce. Então, quando se afastou para me encarar nos olhos
com as íris de Outono, sussurrou palavras que guardei em
meu coração para sempre:
— Obrigado por ter mudado a minha vida,
donzela.
Pra você guardei o amor
Que nunca soube dar
O amor que tive e vi sem me deixar
Sentir sem conseguir provar
Sem entregar
E repartir
Nando Reis – Pra você guardei o amor

A melodia do meu celular ressoou de maneira


estridente embaixo do travesseiro e, pela primeira vez,
odiei a voz do Renato Russo com todas as minhas forças.
Tateei o colchão e o silenciei o mais rápido que pude.
Apesar de lá fora o sol se encontrar em seu ponto mais
alto, eu queria ficar na cama o restante do dia com
Adônis, se possível. Estava tão delicioso ter seus braços
me apertando contra o seu corpo. E, além de tudo, sentia-
me realmente entorpecida. Não bastasse a noite repleta de
acontecimentos — incluindo o fato de eu ter perdido a
minha virgindade —, tínhamos repetido a dose logo
depois dele ter se aberto para mim!
Abafei um risinho, pensando a respeito. Eu
adorava conhecer essa nova faceta de Adônis, ao mesmo
tempo em que descobria um lado meu até então
inimaginável. Suas expressões safadas, assim como a
forma como me consumia... Céus, pensar que eu
acreditava que só aconteceria depois da faculdade...
Pelas flechas de Katniss Everdeen, como fui inocente!,
pensei divertida. E, de olhos fechados, foi mais fácil
retomar as imagens daquela manhã.
Eu tinha acabado de me sentar na cama, disposta a
levantar e passar um café para despertarmos. Mas, então,
senti sua respiração contra a nuca e, no mesmo instante,
meu corpo amoleceu, como se derretesse aos poucos. Ele
me enlaçou com um dos braços pela cintura, deixando
beijos atrás das orelhas, depois nos ombro e ao longo da
coluna. Mal acordara e já me encontrava ávida por ele.
Previa que seria muito mais difícil me manter longe dali
em diante. Agora que sabia o que estive perdendo, queria
recuperar o tempo desperdiçado e estava certa de que ele
também.
— Quero você... de novo... de novo... e de novo...
— soprou com sua voz grave contra a minha pele já febril.
— Está dolorida? — Na verdade, um pouco, pensei, mas
em vez disso respondi com um acenar negativo de cabeça.
Bastou isso para suas mãos me buscarem contra si.
Arrepiei-me inteira com a memória, no entanto ela
se dissipou em uma velocidade surpreendente, tão logo o
celular voltou a tocar. Droga, Renato Russo! Me deixe
dormir! Estava prestes a jogar meu telefone contra
parede, quando a voz sonolenta de Chewie me
sobressaltou.
— Você devia atender, donzela. Já é a quinta vez,
essa pessoa não vai desistir.
Ele abriu somente o olho esquerdo, como se
lutasse para permanecer acordado. Eu estava indignada
que alguém pudesse acordar tão bonito daquele jeito!
Bufei dramaticamente, tomando o aparelho nas mãos. No
mesmo instante, meu coração apertou de culpa. Era
Arthur.
— Becca, até quem enfim! — exclamou, do outro
lado da linha. — Onde você estava? Estou ligando há um
tempão.
— Eu estava... é... dormindo.
— Até tão tarde?! Como assim?
— Hum... foi uma longa noite — resmunguei,
cruzando os dedos pela omissão. Eu sabia que surgiria
outra oportunidade mais conveniente para abordar o
assunto, ou, ao menos, era a desculpa com a qual tentava
aliviar aquela sensação de ser uma péssima amiga.
— E como! — sua voz morreu no ar, pouco antes
dele pigarrear. Quando voltou a falar novamente, percebi
certa cautela em suas palavras. — Você e o Adônis estão
bem? Ele me assustou um pouco ontem.
Não podia estar melhor, metalizei, sentindo uma
nova pontada de culpa.
— A mim também — admiti. — Mas era só o seu
jeitinho único de dizer que tinha ficado preocupado. —
Expliquei e, no mesmo instante, Chewie abriu os dois
olhos, encarando-me com atenção.
Meu amigo riu em deleite.
— Que bom, isso é ótimo. Eu liguei, na verdade,
para pedir uma carona. E se vocês estivessem brigados,
eu precisaria recorrer ao Pedro. O que seria horrível,
convenhamos.
— Nossa, Arthur, eu achei que estava preocupado
com a minha felicidade!
— Só um pouquinho — brincou. — A vida tem
suas prioridades, você sabe.
— A Nataly já recebeu alta?
— Ela recebeu alta há vinte minutos, mas nossa
bonequinha estava apagada, né... — fingiu um tom
ofendido. — Nós estamos sem dinheiro para o táxi. Você
acha que pode falar com Adônis e me avisar se ele não se
importa?
— Espera só um pouquinho — pedi, afastando o
celular da orelha. Antes que eu pudesse sequer abrir a
boca, Adônis assentiu com a cabeça. Lancei um olhar
confuso em sua direção, começando a ponderar se ele
podia ler meus pensamentos.
— O áudio do seu celular é muito alto, donzela.
Muito mesmo.
— Você ouviu a conversa? — indaguei, com as
bochechas em brasa.
— Todinha. — Arqueou as sobrancelhas espessas,
fazendo-me rir.
Quando aproximei o telefone outra vez, pude ouvir
o arquejar estupefato do meu amigo.
— Jesus, Rebecca!
— O que foi?
— O Adônis está aí?
— Uhum — concordei, sem entender aonde ele
pretendia chegar. Eu não era a pessoa mais inteligente
logo depois de acordar, confesso.
— Espera, mas você não estava dormi...
REBECCA ELE POR ACASO DORMIU COM VOCÊ?
— C-claro que não! E-eu... — balbuciei, pensando
em uma desculpa. Mas então engasguei ao ouvir a
gargalhada de Chewie. Olhei para ele de maneira
ameaçadora, desejando ter uma pinça com a qual pudesse
arrancar pelinho por pelinho de sua barba. De toda forma,
foi inútil, pois ele estava distraído demais se divertindo
as minhas custas.
— Dormi! — respondeu sonoramente, e senti
como se houvesse um maçarico apontado para mim.
Arthur abafou um gritinho excitado. Eu já até
podia prever o bombardeio que seria quando eles
chegassem. Principalmente por parte de Lily. Meu Deus,
isso é um pesadelo!
Antes que eu pudesse reagir, os dedos compridos
de Adônis roubaram o aparelho de mim, para o meu
horror.
— Em qual hospital vocês estão? — perguntou
tranquilamente e constatei que de fato os falantes do meu
celular eram altos, pois pude ouvir perfeitamente Arthur
indicar o endereço.
— Tudo bem. Vamos nos vestir e já estamos indo
— Adônis respondeu, olhando-me cheio de malícia.
Os guinchos de Arthur foram responsáveis pelo nó
que senti na boca do estômago e só pararam quando
Chewie desligou o celular, deixando-o de lado para tentar
me abraçar. Antes conseguisse, porém, afastei o corpo
para trás. Eu ficara petrificada de vergonha.
— Por que você fez isso? — não escondi a
pontada de revolta.
— Você ficou brava? — perguntou, chocado.
— É claro que sim!
— Mas foi só uma brincadeira... — Encolheu os
ombros, fitando-me com os olhos redondos como pires.
— Não significa nada.
— Eu não achei graça, Chewie! — grunhi,
chateada. — Isso diz respeito a nossa vida particular.
Agora eles sabem que... que nós...
— E daí? — ele me interrompeu, com
tranquilidade. — Nós dois fizemos amor, o que tem de
mais nisso?
— É só que... — minha voz morreu no ar, enquanto
eu tentava entender a minha irritação. No entanto, só
consegui me apegar à maneira como ele tinha se referido a
nossa madrugada. Fazer... amor? — Argh, Chewie! Não é
justo fazer isso só para me deixar nervosa! — bufei
simplesmente, apenas para manter a pose quando, na
verdade, já tinha até esquecido a pauta principal.
— Donzela — chamou, com uma expressão
divertida no rosto. —, adoro te ver envergonhada, não
nego. Mas não fiz isso com esse propósito, eu juro.
— Ah, tá! — murmurei com ironia.
Ele inclinou a cabeça ligeiramente para a direita,
parecendo chateado com minha desconfiança. Então
agarrou a minha mão e levou sobre o peito.
— O que você me deu ontem... o que nós dois
vivemos... — Adônis balançou a cabeça, olhando-me no
fundo da alma. — Foi foda demais. E não é motivo de
vergonha para mim, Becca, porque tudo simplesmente
ficou leve. Eu nem lembrava mais como era a sensação de
me sentir vivo. Mas agora a perspectiva mudou, donzela.
É tão certo estar com você, as coisas finalmente se
encaixaram. Foi... natural contar. Não queria te chatear,
foi só uma brincadeira inocente. Eu estou tão feliz, agi por
impulso. É como se eu quisesse gritar pra todo mundo que
te tenho toda pra mim.
Oh, droga.
Respira, Becca!
Mantenha o foco, você precisa ficar brava com
ele e...
Dane-se! Quem aguenta ficar brava desse jeito?
— Você é um idiota! — Dei um tapinha nele,
finalmente baixando a guarda e permitindo que ele me
abraçasse bem forte. Era uma delícia estar aconchegada
em seus braços.
— O seu idiota — respondeu divertido, fazendo-
me rir a contragosto.
— Pensei que não daríamos bandeira para evitar
dor de cabeça.
— Eles moram com você. Vão precisar se
acostumar com a ideia, porque agora não vou mais te
deixar em paz. — brincou, mordendo o meu pescoço de
levinho.
— Tomara que não mesmo.
Meu vizinho se espreguiçou, evidenciando os
bíceps definidos. Precisei engolir em seco e desviar o
olhar, ou permaneceria o secando eternamente. Ele usou
os braços para se levantar na cama, até estar sentado.
Então buscou meu olhar com o seu, munido de uma
indecifrável expressão no rosto.
— Eu adoro você inteirinha. — Seu indicador
passeou no centímetro de pele entre os meus seios. Pelo
amor de Darth Vader! Se isso não é jogar baixo, eu não
sei o que é... — Cada detalhe, Becca. Desde a língua solta
ao jeito como fica vermelha quando está envergonhada. —
Sorriu, umedecendo os lábios em seguida.
— E depois diz que não foi de propósito — falei
baixinho, tentando fugir daquele ar rarefeito avançando
sobre nós dois.
— Não imaginei que fosse sentir vergonha. Você
sabe que não precisa, né?
Dei de ombros antes de responder, fugindo dos
seus olhos de Outono desconcertantes.
— Você não conhece esses dois. Eles são
terríveis.
— Só porque sabem o efeito que têm em você,
donzela. — Ele afagou meu rosto com sua mão fria e
deixou uma mordidinha no meu queixo. — Bom,
precisamos ir.
Assenti com a cabeça, taciturna. Adônis levantou
da cama, seu corpo nu parecendo um monumento.
Observei-o pelo canto dos olhos enquanto pescava as
próprias roupas espalhadas no chão, uma a uma, e as
vestia despreocupadamente. Somente quando ele
abandonou meu quarto para ir ao banheiro que consegui
sair da cama. Os lençóis caíram quando fiquei em pé e
abafei uma risadinha, pensando em como eu estava
pagando a língua na faculdade. O ano mal estava na
metade e eu já era uma pessoa totalmente diferente.
Tomei meus óculos na escrivaninha e parei de
frente ao espelho, ainda nua, permitindo que meus olhos
percorressem a imagem refletida. O cabelo estava
desalinhado, como em todas as manhãs; o rosto um pouco
inchado, de quem havia acabado de acordar; os olhos
pequenos. Tudo continuava igual, mas, ainda assim,
existia algo de diferente ali. Levei as mãos aos seios,
sentindo-os. Desci pela cintura e parei logo depois de
contornar os quadris, com uma estranha euforia crescendo
pelas entranhas. Balancei a cabeça, afastando o
pensamento e, com um sorriso inoportuno no rosto,
caminhei até o guarda-roupa, escolhendo um vestido para
usar que fosse tão leve quanto eu me sentia naquele
momento. Adônis tinha razão, afinal. Era muito certo
estarmos juntos, porque todas as outras preocupações se
apagavam.
Eu terminava de amarrar o cabelo em um rabo no
topo da cabeça quando ouvi sua risada debochada. Girei
nos calcanhares no mesmo instante, flagrando-o com o
presente que Nataly trouxe da Disney para mim — o
Chewbacca.
— Pode me explicar isso, donzela? — Piscou para
mim e eu soube, no mesmo momento, que aquela, sim, era
uma brincadeira para me envergonhar. Rolei os olhos nas
órbitas, fingindo não me importar. A verdade era que eu
me segurava para não rir junto dele.
— Ganhei de presente.
— O Chewbacca, hein? Uma coincidência e tanto
encontrar esse brinquedo, não acha?
— Não sei do que está falando — fiz pouco caso.
— Por que seria uma coincidência?
— Porque você tem um Chewbacca em tamanho
real que é todo seu.
As últimas palavras me arrancaram da falsa
apatia. Gargalhando tão alto quanto era possível, tomei o
boneco da mão dele e bati meu ombro no dele de levinho.
— Então admite que esse apelido caiu como uma
luva?
— O que eu admito, donzela, é que estou louco
por você. E se pudesse não sairia desse quarto tão cedo
— falou, com um olhar lascivo. Então me segurou pelo
pulso e puxou contra o próprio corpo, fechando os braços
ao redor da minha cintura. — Não consigo parar de querer
você, estamos com um problema aqui.
— Nossas definições de problema são beeem
diferentes. — Sorri de orelha a orelha, buscando a boca
dele com a minha.
Me deixe sim, mas só se for
Pra ir ali e pra voltar
Me deixe sim, meu grão de amor
Mas nunca deixe de me amar

Tribalistas – Grão de amor


Adônis tamborilava os dedos compridos no
volante enquanto esperávamos o semáforo abrir. Apesar
de não ter me machucado no acidente da noite passada, o
trauma permanecia bem vívido na memória. Em parte
porque eu havia ganhado um galo na têmpora direita, mas
principalmente porque cada vez que atravessávamos um
cruzamento, meu coração acelerava drasticamente. Eu
mordiscava a bochecha por dentro e fechava os olhos,
tentando convencer meu subconsciente de que não
estávamos verdadeiramente em perigo. Devo salientar
que essa era uma tarefa muito difícil, no entanto. Ele
parecia convicto de que bateríamos a qualquer momento.
— Domingo já é dia das mães... — Chewie me
despertou dos devaneios com sua voz grave. — O ano
está voando.
— Infelizmente, sim — respondi, fingindo não
notar o olhar prolongado que ele lançou em minha
direção. — Eu estava me referindo à última parte, mas a
afirmação também cabe no começo.
Uma risadinha baixa escapou dos seus lábios.
— Imaginei que essa não fosse sua data favorita.
— De fato, passa bem longe. — Sorri.
Fomos tomados por um silêncio cheio de
significado. Adônis deu seta para a esquerda e virou logo
em seguida, antes de quebrá-lo.
— Vou para Londrina visitar a minha família nesse
final de semana... Volto só na segunda.
Desviando a atenção do trânsito, ele me estudou
com as íris que, naquela tarde, encontravam-se mais
esverdeadas que nunca. Percebi a preocupação implícita
naquele gesto. Dei de ombros, como se dissesse para ele
que tudo bem.
— Ainda não combinei nada com os meus avós —
O que é muito estranho, refleti por um momento. —, mas
devo viajar para minha cidade também.
Ele repousou a mão direita na minha coxa,
apertando-a.
— Não queria te abandonar justo em uma data tão
significativa, mas dona Bárbara vai ficar ressentida se eu
não for para casa.
— Meu Deus, não me diga que você pensou,
mesmo por um momento, em ficar aqui e deixar sua mãe
de lado.
— Talvez. — Ele abriu um sorriso doce e notei,
para meu deleite, que pareceu um pouco envergonhado.
— Que filho horrível você é, Chewie! —
provoquei, olhando-o com malícia.
— Não é esse o ponto, donzela.
— Então me explique qual é.
— É sério que você não percebe?
— Percebo o quê? — insisti e ele sorriu,
divertido.
— Eu não iria sequer considerar a possibilidade
se não gostasse e me preocupasse tanto com você. —
Encolheu os ombros e me olhou cheio de carência logo em
seguida.
— Ah — limitei-me a dizer, mas, por dentro, meus
pensamentos entraram em polvorosa. Eu tinha a sensação
de que Chewie sequer percebia o que fazia comigo. Ele
parecia não ter ideia do quanto pequenas palavras ou
simples gestos me deixavam atordoada ao extremo. Para
ele, era natural ser tão carinhoso e, por Deus, aquilo era
uma covardia.
Paramos o carro em frente ao hospital e precisei
piscar os olhos algumas vezes, a fim de recobrar o juízo.
Tinha até mesmo esquecido de onde estávamos e o que
fazíamos ali. Minha cabeça ainda trabalhava a toda
velocidade, tentando absorver a profusão de
acontecimentos das últimas vinte e quatro horas — o que
era uma tarefa bem difícil, dado o fato de que eles não
paravam.
Avistei meus amigos sem dificuldade e me estiquei
para fora da janela, acenando. Arthur estava mais
descabelado que o normal e Nataly tinha o braço
engessado. Pulei para fora do carro, percorrendo a
distância até eles. Abracei Lily sem pensar duas vezes,
tomando o cuidado de não encostar no braço machucado.
Então, fui surpreendida por Arthur, que fechou um
triângulo, entre nós duas. Permanecemos daquela maneira
por algum tempo, até que tive um estalo e me afastei
alguns centímetros para encará-la.
— Você está bem?
— Na medida do possível.
— E Leo? — indaguei, olhando de um para o
outro.
— Recebeu alta antes da Lily — explicou Arthur.
— Só precisou levar alguns pontos. Nada grave.
— Ou seja — exclamou ela, com sua voz
estridente. — eu fui a azarada.
Olhei para o seu gesso e, apesar de tudo, sorri ao
imaginar todas as possibilidades para aquela superfície
tão branquinha. Além do mais, agora, depois de conhecer
o passado de Adônis, eu entendia o quanto tivemos sorte.
Podia ter sido pior em vários níveis.
— Pelo contrário, Lily — falei, fitando-a com
ternura. Arthur concordou com a cabeça, apertando seu
ombro.
— Foi só um braço quebrado, amiga. É chato, mas
vai sarar. Talvez, hoje mesmo, estivéssemos em um
cemitério — completou.
Estremeci com as palavras e olhei por cima do
ombro, surpreendendo-me ao me deparar com Chewie
fora do carro, recostado contra ele. Seus braços estavam
cruzados sobre o peito e os olhos fixos em nós. Ele
assentiu quase imperceptivelmente e, por um momento, fui
assolada por uma tristeza tão intensa ao tentar imaginar
como deve ter sido para ele lidar com uma perda tão
grande.
Fechei as pálpebras por um segundo que abrigou
uma eternidade, imaginando-o mais jovem, recebendo uma
notícia que mudaria sua vida para sempre. Por mais
insano que pudesse parecer, foi como se eu tivesse
conseguido experimentar — mesmo que um pouco — dos
sentimentos. A raiva, a dor, a confusão e o medo. E então,
as coisas começaram a fazer sentido. Eu compreendi o
Adônis de antes. Aquele que bramia cheio de raiva para
pessoas desconhecidas, que não tinha paciência para nada
e, sobretudo, aquele que respondia com agressividade
quando alguém tentava se aproximar e atravessar os muros
tão ameaçadores que ele construíra ao redor de si mesmo.
E, com isso, percebi também que o meu sentimento por ele
já não era o mesmo de antes. O simples gostar dava
espaço a algo mais forte, mais intenso e mais puro, que,
em nossa situação complicada, era um sentimento deveras
perigoso e, por isso, proibido.

O percurso até nosso condomínio foi estranho e


silencioso. Nataly e Arthur não conheciam Adônis como
eu conhecia, então permaneceram acuados. Eu não os
julgava, afinal também não me sentia à vontade perto do
nosso professor quando a única faceta que ele me
mostrava era a de Carrasco. Eu sabia que eventualmente
meus amigos presenciariam as características dele que eu
mais amava, mas, naquele dia, não podia ser o mais
distante disso. Desde quando ligara o carro, Adônis
permaneceu soturno e distante, como se estivesse preso
em seu próprio mundo. Eu podia entender bem o porquê.
A situação como um todo era muito dolorosa para ele.
Tentando evitar o clima desconfortável, liguei o
som e o carro logo foi preenchido pela leveza deliciosa
que só Beatles poderia proporcionar. Senti vontade de
repousar a mão em sua perna, como forma de dizer que eu
estava ali. No entanto, fiquei com medo de que isso fosse
piorar as coisas. Sua expressão era séria e um pouco
sôfrega, muito diferente de quando Arthur havia nos
ligado, pouco antes, e ele fizera uma piada.
Quando estacionamos, percebi um alívio mútuo.
Eu sabia que, se pudéssemos, nós quatro teríamos soltado
suspiros pesados. Adônis me segurou delicadamente pelo
pulso, em um pedido silencioso para deixarmos meus
amigos passarem na frente. Esperamos poucos minutos
antes de seguirmos logo atrás. Porém, mesmo desejando
ter um momento a sós comigo, foram necessários alguns
degraus para Chewie quebrar o silêncio.
— Ainda vou te ver hoje?
Encarei-o sem esconder a dúvida no meu rosto.
— Já está indo embora? — ele assentiu com a
cabeça, no mesmo momento em que alcançávamos o
patamar.
— Acho que precisam conversar um pouco, ainda
não tiveram chance.
— É... tem razão — respondi, deparando-me com
Nataly e Arthur parados em frente ao nosso apartamento,
apesar da porta estar aberta atrás deles. Estreitei os olhos,
percebendo a razão para terem nos esperado.
Esses curiosos!
Nataly se empertigou e, pestanejando além do
normal, dirigiu-se a ele:
— Muito obrigada pela carona, professor Adônis.
Então esse é o álibi de vocês para me espiarem?,
pensei, com uma onda de frustração por terem arruinado a
minha despedida.
— Era o mínimo que eu podia fazer.
— Não quer entrar? — foi a vez de Arthur
colaborar com o plano maligno.
— Tenho que preparar minhas próximas aulas... —
Adônis enterrou os dedos longilíneos nos cabelos de
piche. — Se precisarem de mim, não hesitem em me
procurar. Melhoras, Nataly!
Então, contrariando minhas suposições, ele me
puxou com gentileza contra si e me beijou, sem se
importar minimamente com a companhia. Arquejei de
surpresa contra seus lábios, sentindo que os dois faziam o
mesmo. Antes que eu pudesse aprofundar o beijo, porém,
ele se afastou alguns centímetros, fitando-me no fundo dos
olhos.
— Você não me respondeu — sussurrou, para que
apenas eu ouvisse. — Ainda vou te ver hoje?
— É o que você quer? — perguntei apenas para
ouvi-lo confirmar, uma vez que a pergunta deixava bem
óbvia sua intenção.
— Nem de longe — soprou contra o meu ouvido.
— O que eu queria mesmo era te arrastar para dentro de
casa neste momento.
— Essa é uma ideia irresistível — lamentei. —
Depois da aula eu passo aqui.
— Castiel e eu vamos adorar.
Com um último acenar para os meus amigos,
Chewie sumiu para dentro do apartamento. Mas, tão logo
girei nos calcanhares e percebi a expressão que me
lançavam, desejei ter entrado com ele. Arthur tinha os
lábios separados em um círculo perfeito, ao passo em que
Nataly sequer piscava. Minhas bochechas ferveram, mas
fingi que não era nada demais e apenas apertei o passo,
passando entre os dois. Eu tinha acabado de pisar na sala
quando a voz dela me fez saltar de susto.
— BECCA, NEM PENSE EM ESCAPAR!
Encolhi os ombros, como um ladrão que é pego no
flagra. Resignada, busquei seu olhar.
— Não acredito que enquanto eu fiquei
desamparada e com dor no hospital, você estava dando! E
ainda por cima não ia contar para nós! Que tipo de amiga
você é?
Apesar de ter cuspido as palavras com
agressividade, bastaram segundos nos encarando para que
nós três explodíssemos em gargalhadas. Quando menos
percebi, lágrimas escorriam pelas minhas bochechas e eu
me dobrava para amenizar a dor abdominal causada pelas
risadas. Sequei o rosto com as costas das mãos, levando
algum tempo até normalizar a respiração.
— Meu Deus, que jeito mais horrível de se referir
a isso! — protestei, acarretando uma nova onda de
risadas. — E, não, eu não ia esconder de vocês! Só achei
que teríamos uma oportunidade melhor para conversar.
— Essa oportunidade chegou, bonequinha! —
Arthur falou, com seu tom devagar. Depois me beijou na
bochecha e agarrou a minha mão, arrastando-me para o
quarto de Nataly. — Pode nos contar todos os detalhes
enquanto arrumamos as malas de Lily.
— Como assim arrumar as malas? Para onde você
vai? — perguntei a ela.
— Vou voltar para a minha cidade. Minha mãe
praticamente surtou quando soube... Viajo hoje de
madrugada.
— E a faculdade? Você vai reprovar por faltas!
— Não vou, não. Peguei dois meses de atestado.
— Mas... você vai perder o conteúdo de dois
meses?! — Não escondi o atordoamento.
— Claro que não. — Ela sorriu. — Já conversei
com as meninas da minha sala, vão me passar tudinho.
Amanhã vou mandar um e-mail para os professores
também... vou aproveitar enquanto estiver lá para adiantar
os trabalhos e tudo mais.
— Sei — Arthur a cutucou nas costelas. — Aposto
que essa é a última coisa que vai fazer.
Ela apenas piscou para ele, com um sorriso
travesso nos lábios carnudos que dizia “esse é um segredo
nosso”. Ri baixinho, observando nosso amigo tomar uma
das malas rosa-vibrante de Lily, abrindo-a sobre a cama.
— Nós dois precisamos arrumar a mala? —
perguntei, recebendo olhares acusatórios de ambos.
— Nossa, Becca! — ela fez um beicinho, com uma
expressão chateada.
— Não é isso, boba. Estava pensando em fazer
uma pintura no seu gesso para você levar de recordação.
Assim está muito sem graça.
— Não acredito! — um sorriso de orelha a orelha
surgiu no rosto dela. — Sério?
— Uhum — concordei, caminhando em direção à
porta. — Pode ser, Arthur?
— Bonequinha, desde que você me dê detalhes
sobre o tamanho do badalo do professor Adônis, para
mim tanto faz o que você vai fazer!
Eu estava prestes a perguntar o que era badalo,
mas os gritinhos exasperados e as palminhas de Nataly
foram mais que o suficiente para tirar a minha dúvida.
— Você é podre, sabia? — Baguncei seu cabelo e
ele deu um tapinha na minha bunda. — Vou pegar meus
materiais, já volto.
— Não demore — ela pediu, no momento em que
eu abri a porta do quarto. — Preciso saber como o
Carrasco é na cama!
Às vezes eu acho que não sou assim tão forte
Mas há uma força que me motiva
Cansada do meu pequeno coração, feito de aço
Cansada das feridas que nunca se cicatrizam

Marina and the Diamonds – Forget

Alisei o embrulho do presente pela décima vez,


traçando, com o dedo indicador, os corações brancos de
tamanhos variados que o estampavam. Já contavam
horas que eu tentava reunir coragem para percorrer o
caminho breve até o quarto dela. O que seria algo tão
remotamente fácil para qualquer outra pessoa, exigia
uma força sobre-humana de mim. Engoli em seco,
decidindo ser o momento exato. Então, em passos
arrastados, caminhei ao meu destino com os mesmos
ânimos de alguém que caminhava em direção à forca. As
mãos tremiam mais e mais e os joelhos perdiam a força à
medida que eu me aproximava do iminente destino.
Eu não conseguia compreender a razão para
continuar nutrindo esperança por uma causa perdida,
talvez fosse apenas uma masoquista idiota, humilhando-
me em busca de um pouquinho de amor. Não me
importava, podia ser apenas um gesto, um sorriso,
qualquer coisa que provasse a humanidade dela. Eu só
queria acreditar que um dia as coisas poderiam ser
diferentes.
Bati na porta e, como não obtive uma resposta,
entrei mesmo assim. Encontrei-a sentada em sua cama,
tão serena, olhando para algum lugar muito longe dali.
Encontrava-se alheia ao mundo ao seu redor. Gaguejei
para conseguir chamá-la e, quando ganhei sua atenção,
hesitei instantaneamente com a ideia estúpida. O olhar
dela conseguia falar — e muito.
A minha única vontade foi dar-lhe as costas e
esquecer tudo aquilo. Porque, dentro de mim, eu já
sabia que me arrependeria, e mesmo assim persistia,
mendigando algo que deveria vir naturalmente. Eu
ainda não entendia que o amor jamais precisa ser
solicitado — ele simplesmente aparece nos pequenos
atos. No entanto, eu economizara a mesada dos dois
últimos meses para comprar a tela e as tintas a óleo.
Isso sem contar nas longas horas trabalhando na
pintura. Por essa razão, forcei minhas pernas a
prosseguirem. A escolha já havia sido feita há muito
tempo. Era tarde demais para voltar atrás.
Minha mãe o tomou de minhas mãos, rasgando o
embrulho com desinteresse. Não havia nada em sua face,
ela estava vazia, tal como o olhar que me dirigia.
— O que é isso? — perguntou baixinho, assim
que seus olhos castanhos recaíram para o quadro.
Àquela altura, minhas palmas suavam frio.
Limpei-as na camiseta, fitando-a de olhos arregalados.
Na minha imaginação, aquele momento teria começado
bem diferente. Talvez esse fosse o sinal. “Vá embora”,
meu cérebro repetia, mas meu coração era burro demais
para levar em conta.
— Você não ouviu?
— S-seu presente... presente de dia das mães —
balbuciei, encarando meus próprios pés. — Fui eu
mesma que pintei.
Comecei a me preparar para a repulsa habitual,
mas o que recebi em troca foi indiferença — e aquela
era a pior coisa que uma pessoa podia fazer com outrem.
Sobretudo uma mãe com sua filha.
Ela se esticou para trás e abriu a primeira
gaveta do criado-mudo, de onde tirou um alicate de
unhas. Antes que eu sequer assimilasse o que acontecia,
o enterrou na pintura, destruindo-a com um único corte
que atravessava a tela toda.
— Eu não sou sua mãe, Rebecca. Por que não
entende isso?
Um sorriso amargurado pincelou meus lábios,
enquanto usava os ombros para secar as lágrimas. Eu
soube, desde quando recebi a notícia de que não poderia
voltar para Santa Cruz do Rio Pardo no feriado, que
aquele seria um péssimo dia das mães. Quero dizer,
sempre era. Por várias razões óbvias e dolorosas demais.
A única força que eu tinha nesses dias vinha da minha
família. Meus avós amenizavam toda a escuridão dentro
de mim, eu precisava deles para a ferida não incomodar
tanto.
Porém, vovô ligara no final da semana me
avisando que ela estava lá. Dava para notar no
desconforto em sua voz o quanto a situação também o
machucava. Ele me explicou que ela e o marido chegaram
sem avisar, como se tentasse justificar a razão para eu não
poder voltar para a minha própria casa. E eu não
conseguia ficar com raiva, tampouco minimamente brava
com nada disso. O que mais meus avós poderiam fazer,
afinal? Além do mais, mesmo que me deixasse doente de
ódio o fato da minha mãe arruinar o meu feriado outra vez,
eu não queria que os dois ficassem brigados com a filha
apenas por minha causa. Não era justo. Então, mesmo
perdendo a minha única chance de felicidade para aquele
final de semana, conformei-me. Aceitei que seria
doloroso e não tentei fugir disso.
Apesar de Arthur também ter ficado em Maringá
— afinal sua situação não era melhor que a minha —,
jamais me senti tão sozinha. Eu não o culpava pelo
isolamento, pois também estava trancada no quarto desde
que acordara. Não havia encontrado melhor maneira de
lidar com a situação e temia acabar descontando em que
não tinha culpa de nada.
Percorri a distância até a janela, apoiando-me
sobre ela para observar o movimento do estacionamento.
Mesmo sem querer, meu pensamento vagueou para Adônis
e sua família. Perguntei-me como estava sendo o domingo
dele. Certamente melhor que o meu — não que fosse
preciso muito para isso, é claro. De repente, desejei que
tivesse ficado ali comigo. Seria tão mais fácil ter seus
braços para me acalentar, os olhos de Outono voltados
para mim, atentos, deslumbrados. Eu adorava a maneira
como ele fazia com que eu me sentisse incrível, ímpar.
Com o indicador, tracei espirais no parapeito, fechando os
olhos e sentindo a brisa gélida roçar na pele. Se eu já
sentia falta de sua companhia em míseros dois dias, não
queria nem imaginar no futuro...
Balancei a cabeça, expulsando o pensamento de
uma só vez. Havia algo sobre estar triste que me deixava
um pouco irritada — parecia existir um ímã na melancolia
que atraía memórias semelhantes, afundando-me cada vez
mais, tal como se um dementador estivesse ali, ao meu
lado. Eu queria dar a volta por cima e mostrar para a
tristeza quem mandava ali, mas o problema é que, naquele
momento, encontrava-me um pouco sem forças. Nem
mesmo desenhar me parecia atrativo, dado o fato de que
lembrava demais um passado do qual eu adoraria me
desapegar.
Meu celular vibrou, despertando-me para a
realidade. Mordisquei o lábio inferior e inclinei o tronco
para alcançá-lo sobre a cama, deparando-me com uma
mensagem daquele que era o protagonista dos meus
pensamentos.

Como você está?

Sorri sem me dar conta e me apressei em digitar a


resposta.

Desidratada de tanto chorar.


Tentei me manter firme, Chewie, mas é mais forte
que eu...

Me sinto patética por continuar sofrendo depois


de tanto tempo. Ela nem ao menos se importa se eu estou
ou não viva. Sou tão ridícula!

Fiquei um pouco envergonhada pelo desabafo tão


espontâneo. O que eu menos queria era aborrecê-lo com
os meus problemas quando ele deveria estar aproveitando
a família e a leveza implícita nisso. Mas simplesmente
saiu. Lutara tanto ao longo da tarde contra sentimentos
inevitáveis que eles simplesmente escaparam na menor
oportunidade. Estavam ali, entalados, assemelhand0-se a
uma bexiga que abriga ar além de sua capacidade. A
mensagem de Adônis fora o rastilho necessário para que
tudo viesse à tona. E eu sentia que precisava colocar para
fora, ou acabaria enlouquecendo.

Becca, tudo bem não estar bem! Todo mundo tem


altos e baixos, ninguém fica feliz o tempo todo. Só não
se esqueça de que você não é nada como ela! Eu juro.

Agora, por favor, seus olhos são muito bonitos


para perder tempo chorando. Ainda mais por quem não
merece.

Como você faz isso, Chewie?

O quê?

Consegue arrancar um sorriso de mim quando


essa é a última coisa que eu esperava fazer?
Bom... deve ser porque me viciei no seu sorriso e
não aguento a abstinência.

Então meu sorriso é uma droga, hein? Captei a


mensagem.

Hahaha não era exatamente essa mensagem que


eu queria passar, donzela.

E qual era?

Que eu poderia passar a vida arrumando todos


os motivos do mundo para te ver sorrir, porque cada vez
que isso acontece, tenho certeza do quanto é certo estar
com você.
Meu coração parou por alguns segundos enquanto
eu lia e relia a última mensagem. Céus, dizer que senti um
friozinho na barriga seria mentira, porque foi mais como
uma intensa geada dentro de mim — tudo congelou de uma
só vez.
Essa era uma daquelas ocasiões em que palavras
acabariam estragando tudo. O certo seria responder
através de gestos, olhares, ações. Se eu pudesse, o teria
envolvido em um abraço apertado e encarado seus olhos
de Outono lá no fundo, mostrando-o o sorriso enorme que
se achava em meu rosto naquele instante. Seria a minha
maneira de dizer, ainda que silenciosamente, o quanto me
sentia completa e feliz em sua companhia. O quanto eu
começara a, de fato, viver e apreciar a minha vida. O
quanto ele me ensinava despretensiosamente, cada vez que
me elevava às estrelas com seu jeito carinhoso de ser.
Por isso, estiquei o braço em frente ao rosto,
tirando uma foto com a câmera frontal — em parte por não
ter encontrado palavras que pudessem expressar um terço
da emoção que me tomou, em parte porque era daquela
maneira que as coisas funcionavam entre nós. Nela, meu
sorriso era radiante e genuíno. Ainda estava absorvendo o
fato de que, em poucos minutos, Chewie conseguira
arrancar a densa nuvem de amargura que pairou sobre
minha cabeça por horas a fio. Enviei a foto e me joguei na
cama, caindo de barriga para cima.

Porra... Você é linda demais!

Obrigado pelo sorriso, acho que posso aguentar


mais 5 minutos até a próxima abstinência...

Minha gargalhada foi escandalosa. Fiz uma concha


com o corpo, sendo acolhida por uma abundante sensação
de bem-estar.
O tempo escapou pelos dedos como areia fina
enquanto jogávamos conversa fora. E, aos poucos, a dor
tão pesada deu espaço a uma alegria que era forte o
suficiente para desviar minha atenção do passado
imutável. Algo com um brilho intenso e capaz de aniquilar
toda a escuridão.

Já era noite quando nos despedimos. Encontrava-


me leve como uma pluma quando levantei da cama, com a
cabeça dolorida e a orelha febril depois de tantas horas na
mesma posição. Ainda assim, não me importava. O prazer
de ter Adônis tão perto quando, na verdade, estava longe,
compensava muito.
Espreguicei-me ainda sentada, refletindo sobre
aquele dia e o quanto tudo estava tão errado. Caminhei
para o banheiro com os pijamas e a toalha embaixo do
braço sem consegui parar de pensar no fato de que a
minha vida poderia ter tomado um curso completamente
diferente se minha mãe tivesse sido mesmo uma mãe.
Talvez eu tivesse me tornado alguém como Nataly —
elétrica, falante, animada —, ou então como a garota que
convidara Adônis para a festa na república Cabô Caqui
— confiante, destemida, ousada. Afinal, quem sabe
quantas coisas não haviam mudado em mim por conta
dela?
Por outro lado, cada pequeno aspecto do meu
passado tinha me levado a ser quem eu era — a menina
que adorava se perder em páginas amareladas de
fantasias, ou em sangrentos filmes de terror; que adorava
desenhar, mas escolhera o curso de letras; que se
apaixonara pelo professor e vizinho quando prometera a
si mesma não se entregar ao amor. Não me leve a mal, não
é que eu me queixasse da vida que tinha. Longe disso!
Mas, às vezes, desejava que minha história pudesse ter
sido outra, sentia saudade de viver algo que nunca
experimentei. Isso ao menos fazia sentido?
Foi movida por esses pensamentos confusos que
me sentei em frente à escrivaninha depois do banho,
fazendo-a balançar um pouco. Isso e também o fato de me
sentir tão invencível naquele momento — o que era
totalmente culpa de Adônis. Ele pegava a minha
autoestima, colocava-a em um foguete e a lançava para o
espaço. E isso era muito, muito bom.
Abri o notebook, excitada com a ideia que
invadira minha cabeça durante o tempo considerável em
que deixei a água escaldante do chuveiro me envolver e
relaxar. A coragem corria pelas minhas veias em
abundância, mas, além disso, existia muito a falar. Durante
os anos em que dividi um teto com a minha mãe, nos quais
sofri agressões verbais e constante descaso em cada gesto
dela dirigido a mim, jamais consegui confrontá-la. Jamais
consegui dizer o quanto ela me fazia mal, o quanto ela era
como um veneno que, aos poucos, envenena a minha alma,
aniquilando tudo pelo caminho. Tudo sempre partiu dela,
como uma via de mão única e eu apenas aceitei. E essa
era uma verdade que me doía muito — por que precisei
ser tão fraca?
Demorei um pouco para encontrar o Facebook
dela e me impedi de vasculhar sua vida. Não me
interessava em nada, no fim das contas. Aquilo para mim
soava mais como uma prestação de contas, não como uma
tentativa de reaproximação. Estava tão cega com o
propósito que, na hora, não parei para pensar nas
possíveis consequências. Como disse, naquele momento
eu me sentia invicta. Naquele momento eu era a Rebecca
que sempre almejei ser e nenhum tipo de medo tiraria
aquilo de mim.
Chega de permanecer nas sombras, pensei
comigo, você já tomou muito da minha vida.
Endireitei-me na cadeira, encarando a foto de
minha mãe e imaginando a situação como se não houvesse
uma distância enorme nos separando. Não, eu me sentia
como se seus hostis olhos castanhos estivessem voltados
para mim naquele exato segundo. Traguei uma boa porção
de ar, que serviu como uma injeção de coragem — a dose
que eu precisava para tomar a importante decisão.

Por muito tempo detestei ser tão emotiva.


Odiei a intensidade dos meus sentimentos. Odiei
quão fortes e tangíveis eles eram. Odiei estar à mercê de
coisas das quais não possuía controle. Mas então eis
que me pergunto — do que temos controle, afinal?
Tantas vezes desejei ser apática, apenas para que
a dor não incomodasse com tamanha violência e que a
sensação de vazio não existisse. Eu achava que “sentir”
era a maior fragilidade que uma pessoa poderia ter. Que
isso me tornava suscetível e, por isso, um alvo fácil.
Acreditava ser merecedora de tudo o que passei.
Merecedora de uma punição interminável e cruel.
Certa vez, no auge dos meus onze anos, você me
pegou lendo um livro e decidiu que aquilo a irritava,
como tudo que estava vinculado a mim, é claro. Mas,
nesse dia, você foi além e maculou o único lugar seguro
que eu tinha, até então. Eu lia Harry Potter e as
Relíquias da Morte. Não estava no seu caminho, mas
mesmo assim, precisava arcar com o peso de minha
existência ser um fardo tão grande para você. Quando
atirou aquele livro em meu rosto — o que acabou
rasgando a capa no meio, a propósito — eu chorei por
horas, tentando entender o porquê. As perguntas
implícitas não estavam relacionadas apenas ao
incidente recente, como a nossa relação de maneira
geral. Por que você me odiava tanto? Por que você
precisava me ferir o tempo todo? Por que eu não tive a
sorte que tanta gente tem e joga fora? Até hoje não
encontrei as respostas, mas a ironia é que, naquela
mesma tarde, quando consegui me acalmar e finalmente
retomei a leitura, deparei-me com a frase que foi um
divisor de águas para mim, aquela que mudaria a minha
vida irreversivelmente: “Tenha pena dos vivos e, acima
de tudo, daqueles que vivem sem amor”.
Então eu percebi. O problema não estava comigo.
Nunca esteve. São justamente os sentimentos que nos
conferem humanidade e eu não preciso me envergonhar.
Ficar triste, chorar, gargalhar, amar... nada disso é
sinônimo de fraqueza. Pois eles são o que nos trazem um
pouquinho de nobreza.
Ainda tenho o exemplar danificado do livro. Em
primeiro lugar, para nunca me esquecer de como a vida
pode ser cruel e impiedosa. Mas, principalmente,
guardo-o como um lembrete de que até mesmo dos
momentos mais obscuros, pode surgir um lampejo de
felicidade e, em um único instante, a perspectiva de uma
vida muda completamente.
Eu adoraria poder cuspir ódio para cima de você
e acalentar a minha alma dolorida. Adoraria te dizer
todas as coisas entaladas. Adoraria que tudo fosse
diferente, não porque minha vida não seja maravilhosa,
mas só para não ter tido a infelicidade ter o passado
entrelaçado ao seu. Mas a deboche disso tudo é que eu
não consigo te odiar como você me odeia. Dentro de
mim, a única coisa que existe é a tristeza e como ela
consome tudo o que encontra pelo caminho.
Eu posso ter sido privada de muitas coisas, mas
estou certa de que você foi a grande perdedora nessa
relação. Perdeu principalmente o amor que carrego
dentro de mim — o qual tentei ignorar por tanto tempo.
Esse amor pulsante e visceral que, com toda a minha
intensidade em sentir, poderia mover montanhas. Esse
amor que um dia julguei ser uma fraqueza, mas que,
hoje vejo, é a minha força.
Espero, do fundo do meu coração, que essa
criança que você carrega em seu ventre tenha mais sorte
que eu.
Rebecca.
Todas as luzes guiarão o caminho
Se você me ouvir agora
Todos os medos vão desaparecer
Se você me ouvir agora

Alok – Hear me now


Foi somente depois de ter enviado o e-mail para
minha mãe que percebi o quanto estava sendo egoísta por
ficar sozinha a tarde toda quando Arthur também passava
por uma situação difícil, assim como eu. Quero dizer, o
dia das mães sempre foi horrível para mim e, por isso, eu
sabia o que esperar dessa data ano após ano. Diria até
estar acostumada. Fazia parte do combo-de-lembranças-
arruinadas-por-minha-mãe. Mas não ele. Aquele era o
primeiro feriado significativo depois de ter brigado com a
família. E, mesmo as coisas não sendo tão maravilhosas
antes, de acordo com ele, era inegável o quanto agora
seriam ainda piores. Não se tratava mais de um mau
relacionamento familiar, mas sim de pessoas que
preferiram abandonar o próprio filho a aceitar as
diferenças. Mesmo de fora, eu entendia o quanto aquele
telefonema do seu pai fora um divisor de águas. Não
importa quantos anos passassem, aquele dia sempre
voltaria à tona para Arthur. Seria um eterno lembrete de
como a vida podia ser amarga.
Abandonei meu aposento, um pouco brava comigo
mesma por ter desperdiçado um dia que poderia ter sido
incrível. Bem, domingo ainda não acabou..., pensei
comigo, dando três toquinhos com os nós dos dedos na
porta fechada do seu quarto. Queria ajudá-lo a se erguer,
tal como Adônis fizera comigo com suas mensagens.
Arthur demorou além do normal para responder,
por isso precisei bater mais algumas vezes até sua
resposta vir fraca lá de dentro. Mordi a parte interna da
bochecha, entrando devagar em seu refúgio. Meu amigo
tinha uma energia tão boa que acabava refletindo em suas
coisas, era impossível não sorrir ao me deparar com
qualquer coisa que lembrasse ele. Mas não aquela noite.
Meus olhos fizeram uma varredura pelo cômodo e o achei,
pela primeira vez desde quando me mudara para aquele
apartamento, deprimente. Os antiquados móveis de imbuia
me pareceram muito escuros; as paredes beges, sem sal;
os pôsteres colados na parede, claustrofóbicos. Enquanto
atravessava o quarto em direção à cama, onde Arthur
encontrava-se aninhado, até mesmo o cheiro de incenso
tão característico me embrulhou o estômago.
Com um edredom cobrindo o corpo esguio, ele lia
um xerox sob a luz do abajur cuja base era uma garrafa de
Jack Daniels. Só ergueu os olhos quando me sentei na
beirada da cama, afundando o colchão com meu peso.
Quando ele o fez, no entanto, senti uma pontada nas
entranhas, pois estavam injetados e com enormes bolsas
logo abaixo. Não era preciso ser um gênio para perceber
que ele havia chorado a tarde inteira. Naquele instante,
meu único desejo foi colocar um sorriso em seu rosto.
— Ia perguntar como você está, mas acho que já
sei — sussurrei, tirando a franja platinada de seus olhos.
Seu cabelo era um dos aspectos que eu mais adorava nele,
porque refletiam muito da sua personalidade descontraída
e única. De uma maneira talvez inconsciente, ele dizia
para o mundo o quanto não se importava com a opinião
alheia.
Arthur abriu um meio sorriso, o qual não foi
acompanhado pelos olhos. Então, ainda taciturno, arrastou
o quadril um pouco para a direita, abrindo espaço para
mim. Enfiei-me embaixo da coberta, recostando a cabeça
sobre o seu ombro. Permanecemos em silêncio, sozinhos
em nossos pensamentos. Mas, embora não estivéssemos
fazendo muita coisa juntos, só a companhia já ajudou a
dissipar, lentamente, o ar pesado preenchendo o quarto do
meu amigo.
Não sei dizer quanto tempo passou, mas foi
bastante, isso posso afirmar com certeza. Sei porque,
quando sua voz arrastada invadiu meus tímpanos, dei um
pulinho no lugar — que passou despercebido—,
sobressaltada.
— Tem dias que eu odeio a minha vida. Eu só
queria... não ser assim.
— Assim como? Gay? — indaguei, apesar de já
saber a resposta. Ele assentiu com a cabeça, de cenho
franzido.
— É tão irônico se chamar opção sexual. Como se
eu realmente pudesse escolher! — Bufou, irritado. —
Sério, entre levar uma vida normal ou sofrer preconceito
não só da sociedade, como da própria família, ninguém
seria louco ficar com a segunda opção, né?
— Se você pudesse ser diferente, seria? — Olhei
bem fundo em seus olhos.
— Você não, em meu lugar?
Respirei fundo, refletindo sobre o rumo da
conversa por um momento, enquanto tentava buscar as
melhores palavras para exprimir como eu me sentia por
dentro.
— Eu não tenho a menor ideia de como deve ser
viver com o peso da sociedade sobre você, Arthur. Posso
tentar entender, mas como nunca passei por isso, jamais
saberei com certeza. — Cocei o nariz, encarando meus
próprios pés. Era mais fácil falar dessa maneira. —
Então, com toda a minha ignorância, eu preferiria ser
livre. Mesmo se essa liberdade pudesse me machucar às
vezes e ser realmente difícil, ainda valeria a pena, porque
no fim das contas, seria a minha única maneira de
experimentar a felicidade. — Parei, piscando os olhos
algumas vezes. — Isso fez algum sentido?
Ouvi um soluço e, ao erguer o rosto, encontrei-o
com lágrimas pululando dos olhos. Meu coração ficou do
tamanho de uma ervilha. Em pouco tempo de convivência,
Arthur tinha deixado de ser apenas o meu amigo, para
virar um irmão, minha família. E, quando alguém da sua
família está sofrendo, é impossível não sofrer junto.
— Eu te amo — ouvi-me dizendo e me surpreendi
com a honestidade contida nas palavras. Arthur procurou
meus olhos, encarando-me com atenção. — Não estou
falando da boca para fora, eu realmente te amo. Você é o
meu melhor amigo, Arthur. E eu te amo porque você é
desse seu jeito único, entende? Não me importa se às
vezes é lerdo demais, nem se os seus banhos são
responsáveis por mais da metade da conta de água. — Ele
riu, abrindo um sorriso tímido, porém genuíno. — Não me
importa se você é o maior pervertido da história da UEM
e muito menos se é gay. Porque, Arthur, esse é você!
Qualquer detalhe diferente e já não estaríamos mais
falando da mesma pessoa.
“Sinto muito os seus pais serem esses monstros,
mas eles estão enganados. Deus não é assim. Ele não tem
vergonha de quem você é, tampouco quer te ver sofrendo
a vida toda. Ele diz ‘amai ao próximo como ama a ti
mesmo’. Amar, entende? Amor é a chave de tudo, não o
ódio. — Deixei um estalado beijo em sua bochecha. —
Não chore mais por quem não merece. — Sorri ao
parafrasear algo dito por Adônis aquela tarde. — Você
ainda vai ser muito feliz. Daqui há alguns anos, nós vamos
olhar para trás e tudo isso não passará de algumas
lembranças ruins de um passado muito distante.”
— Obrigado, bonequinha. Eu também amo você. E
já sou muito feliz. Graças a você e Lily.
— Eu também sou muito feliz. — admiti,
empertigando-me ao pensar na nossa colega de
apartamento. — E preciso contar uma coisa... Logo que
Nataly chegou de viagem, e durante muito tempo, na
verdade, eu morri de ciúmes de vocês dois. Apesar de
serem amigos há mais tempo, eu sentia uma conexão muito
forte com você... Era difícil ver a proximidade entre você
e Nataly. Mas agora o apartamento está tão vazio sem ela
que eu só consigo pensar no quanto nossa amiga
maluquinha faz falta.
Arthur riu, balançando a cabeça em negativa.
— Jesus, você sentia ciúmes dela?! — Mal tive
tempo de responder e ele prosseguiu. — Que ironia. —
riu novamente, puxando-me para um abraço apertado.
Retribuí, um pouco confusa com sua resposta. Não
precisei externar minha duvida, no entanto, pois logo ele
explicou, tal como se tivesse ouvido o meu pensamento.
— Nataly morre de ciúmes de nós!
— Ah, para. Que mentira!
— Ela bate exatamente na tecla de que você e eu
temos uma conexão única e que ela é visível para
qualquer um.
Joguei a cabeça para trás, gargalhando em deleite.
Tão logo ouvi a risada do meu amigo fundindo-se a minha,
ri ainda mais, adorando aquele som que ele emitia. Como
se uma coisa puxasse a outra, logo estávamos os dois com
lágrimas nos olhos, mas, dessa vez, nenhuma era de
tristeza. O que era uma coisa muito, muito boa mesmo,
como você deve imaginar.
— Vamos jantar na lanchonete vegana que você me
fala sempre? — perguntei sem fôlego, quando enfim
consegui parar de rir. Minha respiração estava
entrecortada e a barriga doía de tanto se contrair. —
Como é o nome mesmo?
— Vaca Louca — respondeu, encolhendo os
ombros. — Não tenho dinheiro, Becca. Nem para o táxi,
nem para gastar lá.
— Eu não te perguntei isso, seu chato. Estou te
convidando. Aliás, quem disse que vamos de táxi?
— De pó de flu é que não vamos, né... — Brincou
e, como resposta, bati com meu ombro no seu.
— Não, porque você é claramente um trouxa. —
Mostrei a língua. — Mas existe uma invenção humana
incrível, chamada bicicleta. E, por acaso, tenho uma.
Os olhos do meu amigo brilharam intensamente ao
assimilar minhas palavras. Ele abriu um sorriso de orelha
a orelha e não foi preciso mais palavra alguma para eu
entender — aquela noite de domingo estava só começando
para nós dois.
Ela demonstrou tanto prazer em estar em minha companhia
Eu experimentei uma sensação que até então não conhecia
De se querer bem, de se querer quem se tem

Jota Quest – Ela me faz tão bem


Curvei-me para frente, focada no desenho sobre
minha carteira mais do que deveria, tendo em vista o fato
de me encontrar em uma aula. Não me agradava muito
ignorar deliberadamente a professora Patrícia, mas eu não
tinha culpa se a aula dela era tão enfadonha a ponto de dar
sono. As opções eram escassas, no fim das contas —
ocupar-me com alguma coisa a fim de me manter
acordada, ou roncar na frente de todos. E, bem, mesmo
sendo uma pessoa que levava a sério os estudos, eu ficava
com a primeira opção sem a mais remota sombra de
dúvida.
Mas não era de todo culpa dela. Conforme nos
aproximávamos do final do semestre, mais atolados de
trabalhos e provas nos tornávamos. Eu me sentia exausta
e, pela primeira vez na vida, desejando que as férias
chegassem o mais depressa possível. Minha cabeça
precisava de um descanso, só para variar.
Ajeitei-me no lugar, esfregando as mãos para
descongelar os dedos. Se tinha uma coisa que eu
definitivamente não gostava no frio era a falta de
sensibilidade nos dedos. Para alguém que gostava de
desenhar, assim como eu, esse pequeno detalhe
atrapalhava em demasia, e isso era um saco. Fiz o formato
de uma concha com as mãos, levando-as à boca e
bafejando em uma tentativa de aquecê-las.
Junho tinha chegado sem eu sequer notar e, com
ele, o Inverno. Assustava-me um pouco que o tempo
estivesse correndo tão depressa, pois eu sabia me
aproximar de algo que ainda não estava preparada para
lidar. E precisava, porque Adônis viajaria para outro
país, quer estivesse eu pronta ou não.
Eu evitava ao máximo pensar a respeito do nosso
inevitável destino. Não só por me deixar com um nó
esmagador na garganta, como se eu tivesse me entalado
com um cubo de gelo grande e incômodo, mas,
principalmente, porque era difícil acreditar que estávamos
mesmo fadados ao fim.
Se, por um lado, o acidente de carro foi um evento
traumático para todos os envolvidos, por outro ele
representava um marco na minha relação com Chewie e
isso me deixava um pouco dividida. Quero dizer, estava
mal por Nataly ter quebrado o braço e tudo mais, só que
também me sentia grata porque, de um acontecimento
ruim, algo bom nascera entre meu professor e eu.
Após o feriado de dia das mães, seu apartamento
virara praticamente meu segundo lar. Eu precisava me
policiar bastante para não ficar lá permanentemente,
porque essa era uma ideia muito tentadora, afinal. Quanto
mais tempo passávamos juntos, mais nos queríamos.
Minha vontade por ele nunca saciava e estava certa de que
a dele também não. Bastava estarmos sozinhos para
Adônis me lançar a expressão lasciva que aprendi a
adorar. Em meio a maratonas de filmes de terror e
madrugadas inteiras ao som de seu violão, também
descobria minha sexualidade. Logo eu, que sempre
considerei o sexo um assunto superestimado, passei a
enxergá-lo com outros olhos. Meu professor aflorava um
lado meu até então inexistente. Aos poucos, aprendi a me
amar de maneiras inéditas, diante da maneira quase
devota com a qual ele me consumia, cheio de paixão.
Depois de conhecer a faceta carinhosa de Adônis,
ele passou a me mostrar as outras. Cada noite era uma
surpresa diferente e, céus, aquele homem era insaciável!
Era como se ele tivesse transferido toda a energia que
gastava sendo um carrasco para mim. Eu simplesmente
contava os segundos para a próxima aula. Não que fosse a
única a descobrir coisas novas, a propósito. Juntos,
testávamos nossos limites, conhecíamos nossos corpos e
constatávamos o quanto eles eram perfeitos um para o
outro.
Certa noite, enquanto eu terminava de revisar a
matéria da prova que teria no dia seguinte, Adônis
apareceu na sala sem camisa, queimando-me com um
olhar penetrante. Endireitei-me no sofá, reconhecendo sua
expressão. Tentei protestar, explicando o quanto precisava
estudar, mas, antes de sequer terminar a frase, vi-me no
banheiro, suas mãos longilíneas arrancando as minhas
roupas com pressa, os lábios famintos na minha pele.
— Você fica sexy demais de óculos, donzela.
Ainda mais assim, toda séria... — rosnou, empurrando-me
com o próprio corpo para dentro do box e me beijando
como se me devorasse.
Suas mãos me seguraram pelas pernas, pouco
depois de ele ter ligado o chuveiro sobre nós. Fui
pressionada contra a parede fria e soltei um guincho de
protesto, porém o contraste com a água escaldante era
interessante e, mais ainda, o controle que ele tinha sobre o
meu corpo naquela posição. Apesar das lentes dos óculos
respingadas de água, dificultando minha visão, não ousei
tirá-lo, pois estava muito ciente do efeito deles em
Chewie. Segurei-me nos suportes para shampoo, fitando-o
nos olhos.
— Vou ficar de exame por sua causa!
— Não tem problema, eu te dou aulas particulares
— respondeu, deslizando os lábios pelo meu pescoço e,
ao mesmo tempo, traçando com a barba um caminho
deliciosamente dolorido.
— Adoro a maneira como você me toca — admiti
em um sussurro.
— E eu adoro como o seu corpo reage a mim.
Ele soltou minha coxa direita, fazendo-me
escorregar até o pé tocar o chão. Então seus dedos
avançaram para o meio de minhas pernas, alcançando meu
ponto de desejo. Arquejei e fechei as pálpebras. Seus
movimentos começaram tímidos, despretensiosos, mas
então, quando menos esperei, ele estimulava com avidez
meu sexo excitado.
— Adoro você inteira, donzela... suas curvas...
seus sons... sua expressão de prazer... — sussurrava entre
um beijo e outro, porém eu quase não conseguia
compreender. Não dava. Não quando meu corpo era uma
orquestra e Adônis, o maestro. Ele sabia exatamente o que
fazer comigo, conhecia-me tão bem quanto as cordas de
seu violão. Era como se meus gemidos de êxtase fossem
uma melodia a qual ele ansiasse ouvir desesperadamente.
— Adoro o quanto você é linda... por dentro e por
fora... Adoro sua inteligência... seu atrevimento...
— E eu... adoro... ador... hummm... — tentei entrar
no jogo, mas não pude. Não tinha forças. As ondas de
prazer me cobriam, inundando-me.
Deixei ele fizer música comigo, até que
simplesmente me desmanchei em seus braços. Correntes
de choque emanavam de todas as direções enquanto eu
lutava para colocar os pensamentos no lugar. Então
Adônis saiu do box e voltou com uma camisinha, ainda
munido de sua expressão lúbrica, animalesca, deliciosa.
Naquela noite, depois dos mais intensos orgasmos,
fui tomada pela exaustão. Chewie me enrolou em uma
toalha e me levou no colo até o quarto, deitando-me
cuidadosamente sobre a cama e me cobrindo com o
edredom de dinossauros para me proteger do frio. Meus
dedos estavam enrugados como uvas-passas e meus olhos
pesados de sono. Ainda assim, lembro-me muito bem do
que aconteceu depois disso.
Sem desviar os olhos dos meus, deslizou uma
cueca pelas pernas e, logo em seguida, uma calça de
moletom. Pegou algo de dentro do guarda-roupa pouco
antes de rastejar sobre mim usando os cotovelos, até
nossos narizes ficarem a milímetros de distância. Percebi
suas íris de Outono se movendo para lá e para cá,
absorvendo cada detalhe do meu rosto. Minhas bochechas
esquentaram de uma só vez, sorri timidamente para
disfarçar.
— O que foi, minha donzela?
— Seus olhos... — soprei contra seu rosto,
entorpecida. — São muito enigmáticos. Sempre quis saber
as coisas que você pensava quando me encarava por
muito tempo.
— Nunca adivinhou?
— Não. — Encolhi os ombros, passeando os
dedos em movimentos circulares por suas costas.
— E pensar que agora pouco elogiei sua
inteligência... — Brincou, fisgando o lábio inferior.
— Sai pra lá, seu Chewbacca! — mostrei a língua
enquanto desferia alguns soquinhos de mentira contra seu
ombro.
— De jeito nenhum — falou contra a minha boca,
antes de me beijar ternamente. Enquanto nossas línguas se
entrelaçavam, ele procurou minha mão e soltou algo
gelado dentro dela.
Encerrei o beijo no mesmo instante, olhando-o
cheia de curiosidade.
— É um presente — explicou.
Ergui a mão no ar e me deparei com um molho de
chaves, presa a um chaveiro em forma de Millenium
Falcon. Sorri por ele ser tão atencioso aos meus gostos,
mas não entendi muito bem o propósito daquilo.
Que presente mais estranho... pensei comigo,
analisando as chaves. Uma delas era pequena e estreita,
bem parecida com a do meu apartamento, a propósito. A
outra, grandalhona e roliça, lembrava aquelas chaves
genéricas que vêm em guarda-roupas e criados-mudos, e...
Ah, não!
— O quê?! — arfei, arregalando os olhos. Eu tinha
certeza de estar igualzinha a Arthur. — Isso... esse... Meu
Deus, Chewie!
— Não vai testar? É a primeira gaveta do criado-
mudo.
Assenti, o coração semelhante à bateria de uma
escola de samba. Usei os braços para me sentar e o
encarei com expectativa. Adônis, por sua vez, encontrava-
se tranquilo e diria até... divertido com a situação.
Pulei para fora da cama, ajoelhei-me ao lado do
móvel e o abri com as mãos trêmulas. Eu queria dizer
para o meu cérebro ficar calmo e curtir o momento, só que
não tinha muito controle sobre ele. O que era um
problema, pois ele deixava o restante do corpo
desgovernado.
Respira, Becca, meu subconsciente me encorajou,
e tentei fazer exatamente isso. Inspira, expira. Inspira,
expira. Inspira, expira. Apertei os dedos ao redor do
puxador e arrastei a gaveta para fora, revelando seu
interior abarrotado. Meus olhos fizeram uma varredura
pelos itens variados — escova de dente, escova para
cabelos, pantufas, uma camisola de cetim, alguns itens de
higiene pessoal e até mesmo um livro!
Como estava sem palavras, apenas busquei seus
olhos, sem esconder minha perplexidade. Chewie sorriu,
encolhendo os ombros como se dissesse “não é nada
demais”. Mas era, e eu sentia isso!
— Comprei essas coisas para você. Essa gaveta
agora é sua — explicou com uma tranquilidade invejável.
— Porque quero você sempre por perto.
— Mas eu moro do outro lado do corredor! —
falei debilmente.
Adônis rolou os olhos nas órbitas antes de me
agarrar com seus braços fortes. Caímos juntos na cama,
rindo.
— Você entendeu, donzela. Não quero você do
outro lado do corredor... quero aqui, comigo.
E, de fato, eu tinha entendido. Muitas coisas, aliás.
Adônis tinha se aberto de maneira definitiva,
deixando-me entrar em seu mundo, permitindo-me fazer
parte de sua vida, sem temer pelo futuro. Não existiam
mais amarras entre nós. Seu coração estava exposto para
mim e era tão lindo.
Pisquei mais vezes do que deveria e foi um erro.
Em um segundo tinha tudo sob controle e, no seguinte,
lágrimas jorravam dos meus olhos. Não era por causa do
presente em si, no entanto. Não, aquelas lágrimas estavam
ligadas à constatação que veio tão certeira quanto um raio
que rasga o céu em uma tempestade — eu o amava.
Tudo o que eu sempre quis
Tudo de que sempre precisei
Está aqui nos meus braços

Depeche Mode – Enjoy the silence


Mesmo depois de o sinal de troca de aulas
repercutir de maneira irritante pelas paredes da UEM,
permaneci indiferente ao que acontecia ao meu redor. Não
tinha prestado atenção em uma única palavra da aula de
professora Patrícia e, francamente, não me importava.
Abri o estojo e procurei minha caneta nanquim dentro dele
para finalizar o desenho. Era preferível ter ficado em casa
a apenas servindo como volume, eu sabia, mas estava em
um daqueles dias nos quais nada realmente tem muita
relevância. Lá no fundinho do meu coração, quase existia
um sentimento de culpa por ter ficado alheia às aulas. Veja
bem, eu disse quase! Era como se minha cabeça fosse um
computador cuja memória estivesse no limite e, por isso,
não havia espaço para nenhum outro arquivo.
Só me dei conta de em qual aula estávamos
quando ouvi um pigarrear impaciente, seguido pela voz de
trovão tão íntima para mim.
— Donzela, pode deixar isso para depois, por
favor? — perguntou Adônis e, ao subir os olhos,
encontrei-o em frente a minha mesa, com as mãos nos
bolsos e as sobrancelhas arqueadas.
Mordi o lado de dentro da bochecha para evitar
sorrir e deixá-lo bravo, mas devo salientar que foi uma
tarefa consideravelmente complicada. Isso porque era
muito satisfatório presenciar a mudança acontecendo aos
poucos no Carrasco. E eu não era a única a notar, aliás.
Nas últimas semanas, parecia não existir outro
assunto entre os alunos de Letras. Fosse caminhando entre
os corredores apinhados de estudantes, ou espremida em
algum banco do refeitório durante o intervalo, existia a
certeza de que, eventualmente, alguém acabaria
mencionando algum comportamento completamente-não-
Adônis que serviria de estopim para o ambiente entrar em
polvorosa.
— Dá para acreditar? Meu celular tocou durante
uma explicação e ele não me expulsou! Só me mandou
desligar.
— Eu sei! É bizarro. Antes de ontem cheguei
atrasado e ele não descontou um décimo. Tipo, oi? Quem
é você e o que fez com o Carrasco?
— E eu que trombei com ele no estacionamento?
Achei que o cara fosse ficar puto, mas não ficou. Fez
cara de puto, mas apenas me pediu pra tomar cuidado.
Na hora só consegui pensar “ que porra...?”.
Na maioria das vezes eu encarava meus próprios
pés para ninguém me pegar sorrindo como uma boba. Era
inevitável, pois achava muito excitante o nosso
relacionamento secreto e, principalmente, a maneira como
ele se manifestava em seu comportamento.
Arthur era quem mais me perturbava. Ele parecia
decidido a compensar a falta de Lily e, por isso, não dava
uma trégua. Desde o momento em que acordávamos até
quando chegávamos à faculdade, onde evitávamos o
assunto por motivos óbvios, eu era obrigada a ouvir todo
tipo de besteira cabeluda, como, por exemplo, naquele
mesmo dia, horas antes, enquanto almoçávamos um
nhoque maravilhoso feito por ele:
— Eu sempre soube que era falta de sexo! Sério,
Becca, você salvou a vida de todo mundo. Merece ser
reverenciada!
— Cala a boca, Arthur!
— Tudo o que ele precisava era uma boa foda...
— Arthur!
É desnecessário dizer que ele só queria me irritar,
não?
Nada disso funcionava, no entanto. Eu estava bem
humorada demais para me importar com a sabatina sobre
a minha vida sexual com Adônis. Se fosse antes,
provavelmente surtaria. Mas parece que Chewie não era o
único em metamorfose.
De toda forma, não era como se ele tivesse virado
outro, porque, não, não tinha. A essência era a mesma de
antes, e grande parte das exigências também — ainda
precisávamos nos manter atentos às aulas e ele
permanecia tendo punho firme para corrigir as provas e os
trabalhos. Além do mais, o meu tratamento era exatamente
o mesmo dos demais alunos, o que era muito
compreensível, dado o fato de que não queríamos ser
pegos. A grande diferença era que ele já não distribuía
patadas aos quatro ventos, tampouco gritava com alguém.
E isso mudava tudo.
Ouvi um novo pigarrear, dessa vez mais
impaciente, que me fez ficar gelada na cabeça aos pés.
Céus, estava realmente difícil me focar! Empertiguei-me
no lugar e busquei as íris de Outono, as quais brilharam
além do normal. Encolhi os ombros como se me
desculpasse silenciosamente, porém não foi o bastante
para ele.
— Donzela... — Ele respirou fundo. — Você quer
explicar a matéria em meu lugar?
Fiquei mortificada e, por isso, limitei-me em
balançar a cabeça em negativa.
— Então pode, por favor, ficar atenta?
Concordei com a cabeça, mas como ele
permaneceu imóvel em frente à mesa, senti a necessidade
de completar.
— Sinto muito.
— Sinto muito, senhor. — Ah, claro. Isso,
definitivamente, não mudou em nada, meu subconsciente
murmurou de maneira rabugenta.
Para fechar aquela noite com chave de ouro, fiz
uma coisa que, em um dia normal, teria me deixado de
cabelos em pé.
— Sinto muito, senhor. Não sei onde estava com a
cabeça, senhor. Não vai se repetir, senhor. Vou ficar
atenta, senhor. Eu prometo, senhor. Podemos continuar a
aula, por favor, senhor?
Eu juro, a sala ficou tão quieta que teríamos
ouvido uma agulha cair no chão. Era como se todos
tivessem prendido a respiração, temendo a reação dele.
Minhas palavras flutuaram carregadas de ironia pelo que
pareceu uma eternidade. Arregalei os olhos tanto que tive
a sensação de que, a qualquer momento, pulariam para
fora do meu rosto. Fiquei petrificada. Na minha mente, o
único pensamento ecoando era: estou tão ferrada, tão
ferrada, mas tão ferrada!
Então o pior aconteceu. Uma risada tímida surgiu,
quebrando o silêncio desconfortável. Depois outra, e
outra e mais outra até a sala toda gargalhar em uníssono.
Realmente ferrada! Irrevogavelmente ferrada!
Continuei o encarando fixamente, tentando prever
em sua expressão corporal qual seria o meu castigo. Dada
a forma como suas pálpebras estavam estreitas e os
músculos rígidos, seria algo muito, muito ruim mesmo.
Seus olhos davam a impressão de estarem em brasa, pois
brilhavam intensamente, perfurando-me.
Levou algum tempo até a classe voltar a ficar
silenciosa. Eu estava começando a ficar em pânico com
aquela espera. Jamais o tinha visto fazer algo parecido.
Ouvi algumas pessoas tossindo, como se estivessem
começando a ficar desconcertadas, tal como eu.
Quando pensei ter visto a sombra de um sorriso
em seu rosto, Adônis avançou dois passos e apoiou o pé
direito na estrutura da minha carteira. Meu corpo se
esqueceu de como respirar. Senti algumas gotículas de
suor sobre o lábio superior, apesar do frio.
Ele balançou a cabeça e se inclinou para frente,
aproximando o rosto do meu ouvido e falando baixinho.
— Quero conversar com você depois da aula, tudo
bem?
Nossa, estou ferradíssima!
Se tem uma coisa que estou é ferrada!
Minha boca ficou muito seca e a língua se parecia
com uma lixa bem grossa. Limitei-me a murmurar um
“sim, senhor”, evitando o peso do olhar dos demais
alunos. Não precisava ser um adivinha para constatar que
as pessoas ao meu redor, as quais tinham conseguido
ouvir suas palavras, espalhariam bem rápido o quanto eu
estava encrencada. Eu já até podia sentir as orelhas
quentes.
Passei o restante da aula imaginando os cinquenta
trabalhos que ele provavelmente me passaria e lamentei
ser tão linguaruda. Resignada, só me restou prestar
atenção na aula, lamentando não ter ficado em minha casa
naquela noite. Eu só esperava que ele não levasse para o
lado pessoal...
Pulei no lugar quando, em um piscar de olhos, o
sinal reverberou estridente. Comecei a juntar meus
materiais sem muita pressa, querendo atrasar ao máximo a
iminente conversa. Minha velocidade era diretamente
proporcional à quantidade de alunos ali dentro — quando
menos sobravam, mais devagar eu empurrava as coisas
mochila adentro. Observei com desânimo meu último
colega de classe abandonar a sala. Adônis, que caminhava
logo atrás dele, lançou o tronco para fora, olhando
discretamente os dois lados do corredor pouco antes de
fechar a porta. Abaixei a cabeça para apanhar um lápis
que deixara cair no chão e, neste curto intervalo de tempo,
jurei ter ouvido o som característico de uma porta sendo
trancada. De sobrancelhas unidas, empertiguei-me, para
encontrar seus olhos.
Meu professor estava novamente com as mãos nos
bolsos do jeans, estudando-me com uma expressão
impassível enquanto percorria o curto espaço entre nós
em passos sossegados. Jogando a mochila nos ombros,
afastei a cadeira com os pés e me levantei, à espera do
meu castigo.
— Olha, eu... eu sinto muito. Nunca quis te
desrespeitar, nem tirar sua autoridade. Eu só... argh, não
sei. Me sinto meio patética quando sou obrigada a te
chamar de senhor.
Adônis me surpreendeu com uma risada baixa.
Mas isso não foi nada comparado a como fiquei quando
ele escorregou a alça da mochila pelo meu braço, tirando-
a de mim e deixando-a no chão. Não consegui perguntar o
que estava acontecendo, pois ele se aproximou ainda
mais, até nossos corpos ficarem praticamente colados um
no outro.
— Por quê?
— Por que o quê? — ecoei, concentrada em sua
proximidade.
— Se sente patética com um detalhe tão bobo?
— Porque você nem é tão mais velho assim! —
exclamei. Só que, então, ao ouvir minhas palavras,
percebi que nunca tínhamos chegado naquele assunto. O
que era um absurdo, na verdade. — Quero dizer, eu acho.
Como ainda não sei a sua idade depois de todo esse
tempo?!
Seus dedos compridos me seguraram pelo rosto
delicadamente, aprisionando-me àquele momento.
Arquejei de maneira involuntária, sem entender
exatamente o rumo da conversa, a qual deveria ser para
me corrigir.
— Vamos ver... Deve ser porque você nunca
perguntou? — Sorriu torto, roçando o lábio no meu de um
lado para o outro. Minhas pernas ficaram com a mesma
consistência do pudim que Nataly fazia às vezes e que
nunca, nunca mesmo, acertava o ponto. — Achei que não
se importasse.
— N-não me importo. — Suspirei contra sua boca,
distraída com as mãos que se fecharam nos meus seios. —
Só fiquei curiosa.
— Tenho vinte e cinco.
Sua resposta morreu no ar porque ele logo me
beijou com ardor. Nunca imaginei o quanto uma sala de
aula pudesse ser afrodisíaca, mas, vai por mim, quando se
está nos braços do seu professor gostoso, não existe lugar
mais excitante que este. Não refleti muito a respeito da
loucura de estarmos nos agarrando dentro da sala de aula
no meio do intervalo. Era muito difícil manter a lucidez
com Adônis tomando meu lábio inferior com os dentes e o
sugando daquela maneira tão obscena que simplesmente
me deixava de joelhos bambos. No entanto, quando suas
mãos se fecharam na barra da minha blusa e se ocuparam
em arrancá-la de mim, consegui colocar a cabeça no lugar
— mesmo por uma fração de segundo.
Afastei a cabeça alguns centímetros, a respiração
entrecortada. Apesar disso, suas mãos se mantiveram
atarefadas. Ele desabotoava a própria camisa quase com
desespero.
— Eu perdi alguma coisa ou estamos nos despindo
no meio da Universidade?
— Tecnicamente não no meio. Mas sim, estamos
nos despindo. — Abriu um sorriso largo que me arrancou
o fôlego de uma só vez. — Não temos muito tempo, a
propósito.
— Muito tempo...? Adônis! — falei simplesmente,
boquiaberta com o que se passava bem diante dos meus
olhos.
— O que foi? — Seu tom de voz estava cheio de
uma inocência que eu sabia ser falsa. Ele tombou a cabeça
ligeiramente para a direita, arqueando as sobrancelhas
como se não conseguisse entender a razão para o meu
atordoamento. Então, dada a minha falta de reação, voltou
a avançar sobre meu corpo. Puxou meus cabelos para o
lado e em pouco tempo seus lábios úmidos passeavam
pelo pescoço.
Céus, era como se eu tivesse uma cachoeira no
meio das pernas. Eu juro, tentava com todas as minhas
forças ser racional, mas a cada segundo passado lá dentro,
a tarefa se tornava mais e mais difícil. A vontade de
ignorar a vozinha alertando sobre a insanidade do que
estávamos fazendo diminuía o volume, dando espaço à
vontade de me entregar, sem me importar com as
consequências.
— Nós não podemos... — minhas palavras saíram
como um sussurro fraco, não convenceram nem a mim
mesma.
Chewie me segurou pela cintura, virando-me de
costas para ele. Suas mãos escorregaram pelos braços e
se fecharam ao redor dos pulsos. Com o próprio corpo,
ele me empurrou para frente até que eu estivesse com os
cotovelos apoiados na superfície da carteira. Arfei em
surpresa. Pensei que fosse enfartar. Meu coração, já
acelerado, parecia prestes a escapar pela garganta.
Perguntei-me se ele também podia ouvir as batidas
frenéticas como eu as ouvia.
— Parece que você quer isso tanto quanto eu... ou
estou enganado? — soprou contra minha orelha esquerda.
Ele deixou algumas mordidinhas no meu ombro e eu me
esqueci até mesmo de como se fazia para falar.
Por Draco Malfoy...
— Temos aula daqui a pouco!
— Eu sei. Mas não perguntei isso.
Eu queria pensar em uma justificativa perfeita,
mas só conseguia focar nos seus lábios descendo pelas
minhas costas, enquanto uma das mãos avançava para
dentro da calça.
— Podemos ser pegos.
— A porta está trancada. Me diz que você não
quer e eu paro.
— Eu... — engoli em seco, deliciada com os
movimentos circulares no meio das pernas.
Joguei o quadril para trás involuntariamente,
pressionando o bumbum contra o seu volume rijo. O
simples gesto foi responsável por um gemido baixo e
rouco dele, diria até mesmo um pouco sôfrego. Anotei
mentalmente o quanto adorava aquele som.
— Chewie... — chamei baixinho, ainda incapaz de
ceder. Bastou ele abrir o botão da minha calça, porém,
para eu atirar o meu juízo no lixo. Dane-se, pensei,
enquanto ele deslizava o tecido pelas minhas coxas.
Fechei os olhos, com um sorriso inoportuno nos lábios.
Um pouco pela situação maluca, um pouco porque eu
adorava a sensação de me sentir desejada intensamente
por ele.
— A essa altura do campeonato, pensei que você
já soubesse o quanto eu fico louco com esse seu jeitinho
atrevido, donzela. Ninguém mandou me provocar —
sussurrou baixinho, segurando-me com força nos quadris.
Todos os pelinhos do meu corpo arrepiaram de uma só
vez quando senti sua rigidez entre as minhas pernas e
precisei fisgar o lábio com força para evitar que um
gemido alto escapasse.
Entregar-me para Adônis naquela noite, apesar de
ter durado pouco — até porque, tínhamos um tempo
escasso —, foi muito diferente das demais vezes, de uma
maneira única. Era como se ele não pudesse se segurar
perto de mim, como se estar no mesmo cômodo que eu
fosse uma tentação sem tamanho. Como se cada vez que o
ponteiro do relógio marcasse um segundo a mais, menor
fosse a chance de responder por seus atos. E isso me
deixava lisonjeada e ávida de desejo, ao mesmo tempo.
Eu mal podia acreditar que tinha passado da
Rebecca decidida a não se apaixonar para a Rebecca que
fazia amor com o namorado em um local público. Mas
podia afirmar que jamais veria aquela sala — sobretudo
aquele lugar onde estava apoiada — da mesma forma.
Assim como nos demais aspectos da minha vida, Adônis
ficava cada vez mais impregnado em mim e eu começava
a me perguntar se algum dia poderia mesmo tirá-lo da
minha alma e simplesmente seguir em frente.
Alguém me disse tempos atrás
Que há uma calmaria antes da tempestade
Eu sei
Já vem chegando há algum tempo

Creedence Clearwater Revival – Have you ever seen the rain


Espreguicei-me, aproveitando para esticar as
pernas no sofá aconchegante. Castiel me lançou um olhar
indignado, como se me culpasse por ter interrompido o
sono dele em meu colo. Eu me surpreendia com o quanto
aquele gatinho era expressivo, até parecia humano.
Enterrei a mão nos pelos acobreados, afagando-o
carinhosamente. Já havia perdido a noção de quanto
tempo havia se passado desde quando me sentara ali para
revisar o conteúdo da prova de Língua Inglesa, mas sabia
ser bastante, pois sentia o bumbum amassado, além de um
sono descomunal avançando de fininho.
Estiquei as costas para trás, a fim de conseguir
espiar Adônis na cozinha. Ele se encontrava inclinado
sobre a mesa, ocupado com uma pilha assustadora de
provas para corrigir. Os cabelos estavam bagunçados de
um jeito charmoso, caindo sobre o rosto dele — que
ficava simplesmente irresistível quando estava tão
concentrado.
Agora eu conseguia entender o dia em que ele
simplesmente me atacou enquanto eu estudava. Existia
algo nas pessoas quando elas estavam sérias e
concentradas que mexia com a imaginação. Era uma
tentação.
Ele estava sentado de frente para a sala, de modo
que eu tinha visão completa do seu rosto. O cenho
franzido, os lábios ligeiramente separados, os ossos
proeminentes da clavícula que, apesar do frio, estava
desnuda. Suspirei, arranhando a unha no sofá sem sequer
me dar conta. Às vezes eu não acreditava na sorte que
tinha, ele era tão bonito...
Meu rosto esquentou quando seus olhos subiram,
em um rompante, pegando-me no flagra. Senti como se
existisse um secador de cabelos apontado nas bochechas.
Talvez ele não tivesse percebido o quanto fiquei
desconcertada por estar o secando deliberadamente por
longos minutos, porque apenas me lançou uma piscadela,
com um sorriso doce nos lábios.
De repente, não senti mais vontade alguma de
retomar os estudos (já era a minha segunda revisão, afinal
de contas). Agarrei o corpo roliço de Castiel, ignorando
seu miado agudo de protesto, o qual dizia com todas as
letras “sua traidora!”. Coloquei-o no chão com
delicadeza, abandonando a sala sem pensar duas vezes.
Quando meu pé descalço tocou o azulejo frio da
cozinha, um arrepio desceu pela espinha, como se alguém
tivesse soltado um cubo de gelo nas minhas costas.
Estremeci-me inteira, arrastando uma cadeira para me
sentar ao lado de Chewie, que me observava com uma
expressão divertida.
— Não consegue ficar longe de mim, hein? —
Brincou, esticando-se para me beijar na boca.
— Foi culpa do Castiel. Ele me expulsou da sala.
— Gato esperto — disse, olhando de soslaio para
o bichano.
Rolei os olhos nas órbitas. Ele riu de maneira
contagiante e, por isso, peguei-me rindo junto. Encarei-o
com um carinho enorme, dobrando o tronco para frente,
então afastei o cabelo do seu rosto. Meus olhos recaíram
para a bagunça de papéis ocupando toda a superfície da
mesa. De um jeito muito estranho, ele conseguia manter
certa organização mesmo no caos.
— Falta muito? — indaguei, distraída.
— Depende... você vai dormir aqui?
— Possivelmente.
— Então já estou quase terminando. — Encolheu
os ombros, com um sorriso lindo, o que me arrancou outra
risada.
Ficamos em silêncio por algum momento. Aquele
tipo de silêncio acolhedor e confortável. Rocei o dedo na
quina da mesa, estudando-o atenciosamente. Eu achava tão
intrigante que, apesar de não ser exatamente sua paixão,
ele levasse a profissão a sério. E, por isso, acabei
externando o pensamento em voz alta.
— Por que você decidiu seguir carreira de
professor se nunca foi a sua verdadeira opção?
Chewie me encarou significativamente, parecendo
surpreso com a pergunta. Seus lábios se contraíram em
uma linha, enquanto ele parecia pensar a respeito. Não
deixei de perceber a maneira como sua mão buscou
instintivamente o colar pendurado ao pescoço, aquele cujo
pingente era um anel prateado. Então me ocorreu que,
talvez, não se tratasse de um anel qualquer.
— Não sei, parecia a coisa certa a fazer. Eu
sempre fui bem pé no chão. Sabia que seria mais fácil
alcançar meus objetivos se estivesse financeiramente
estável — concluiu, dando de ombros.
— Foi bem maduro da sua parte. — Sorri. — Eu
admiro que você leve a sério sua profissão. —
Empertiguei-me no lugar, olhando-o com malícia antes de
completar. — Bom, mais ou menos, né?
Ele separou os lábios, fingindo estar chocado.
— Mais ou menos, donzela?
— Sabe como é, nem todos os professores
concordariam com a sua conduta em ambiente de trabalho.
— Está mesmo me julgando por ter feito amor com
você em sala de aula?
— Isso é exatamente o que estou fazendo! —
Brinquei e, em troca, recebi um beijo manso e cheio de
carícias. Ele deixou uma mordidinha no lábio inferior
antes de se afastar novamente.
— Sua hipócrita! Você é a minha aluna, possui sua
parcela de culpa por ter me enfeitiçado.
— Meu Deus, como você é brega! Enfeitiçado?
Isso é tão cantada de tiozão, Adônis. Eu esperava mais de
você.
Sua gargalhada foi genuína. Seus olhos se
encheram de pés de galinha, ao passo em que meu coração
se encheu de amor. Observei-o com um enorme sorriso,
até que se recuperasse para responder.
— Rebecca... — Olhou-me com atenção, forjando
uma expressão entregue. — Não sou o Charmander, mas
você me deixa pegando fogo!
— Não! — praticamente berrei, enquanto ríamos
como loucos. — Nossa, está piorando cada vez mais.
— Ok, posso fazer melhor.
— Estou esperando. — Cruzei os braços,
arqueando as sobrancelhas em desafio.
— Não sou o Yoshi, mas daria a minha vida por
você! — sussurrou de maneira sexy, com uma expressão
de carência que me deixou toda boba. Droga, não tinha
como brincar quando ele conseguia me deixar apaixonada
sem o menor esforço.
— Desista, Chewie. Se você dependesse de
cantadas, ainda estaria solteiro.
— Poxa, eu me esforcei... — disse, arrastando a
cadeira para trás em um movimento ligeiro. Logo me vi
em seus braços e senti um friozinho na barriga que se
espalhou por todo o corpo. — Vou precisar jogar com
outras cartas, então.
Nós não fomos muito longe. Adônis me soltou
sobre o sofá onde eu estivera durante a noite toda,
deitando-se sobre mim. Apesar de esmagada pelo seu
peso, eu adorava a sensação. Ri baixinho, passeando os
olhos pelos menores detalhes do seu rosto que eu tanto
adorava — as translúcidas íris com cor de Outono, o nariz
comprido e reto, os lábios bem delineados que me davam
uma vontade insaciável de beijá-lo até não aguentar mais.
Talvez essa não seja uma má ideia, meu subconsciente
sussurrou para mim e precisei concordar.
— Você nunca me contou muito da sua vida —
comentei, raspando as unhas de levinho em seu pescoço,
com movimentos de vai-e-vem. — Como foi depois de...
hum... depois de tudo?
Ele deixou beijinhos nos cantos da minha boca. Eu
simplesmente adorava quando fazia aquilo. Apoiando-se
nos cotovelos, afastou o rosto para conseguir me fitar nos
olhos.
— Depois do acidente? — perguntou e fiz que sim
com a cabeça, adiantando-me em explicar.
— Quero dizer, como exatamente veio parar aqui?
— Eu continuei a faculdade. Meus pais não
queriam, eles me pediram para trancar pelo menos por um
ano e, bem, tentar colocar a cabeça no lugar. Mas, sei lá,
achei que fosse surtar se ficasse em Londrina com eles
por tanto tempo, porque lá tudo lembrava a Cecília.
Passei só as férias de verão e voltei para Santa Catarina.
Eu me foquei nos estudos completamente, só para não
pensar tanto no que tinha acontecido e acabar ficando na
merda. Funcionou.
Ele enterrou os dedos nos meus cabelos,
massageando minha cabeça com mansidão. Todos os pelos
da nuca eriçaram.
— Quando menos percebi, estava formado. Voltei
a morar com os meus pais e fiquei perdido. A gente pensa
que vai sair da faculdade com a carteira assinada no
emprego mais foda, mas a realidade é bem diferente. —
Riu baixinho. — É bem diferente mesmo. Minha mãe fez a
minha cabeça e, por isso, comecei a pós. O salário de um
professor com pós é muito maior e me pareceu uma boa
ideia. Nessa época meu melhor amigo, Domênico, tinha
acabado de se mudar para Dublin e eu decidi que queria o
mesmo. Você sabe, recomeçar e tudo mais. Acabei
conseguindo algumas aulas em uma faculdade particular,
não muito tempo depois, o que foi muito bom, porque eu
não aguentava mais ficar na casa dos meus pais.
— Que horror! — exclamei.
— Espera, não é nesse sentido! Eu amo a minha
família para caramba, mas depois que se experimenta a
liberdade, voltar para a casa é como uma prisão, donzela.
Você vai passar por isso também.
Assenti com a cabeça, dobrando minha perna
direita sobre o bumbum dele, como se para impedi-lo de
sair dali. Não que ele estivesse tentando, a propósito. Mas
sabe como são casais apaixonados, não?
— E depois?
— Dois anos se passaram muito rápido... — Ele
sorriu, parecendo se desculpar por não ter muito mais a
contar. — E aqui estou eu. O resto você já sabe.
— Só isso?
— Sinto muito, donzela, mas eu tenho sangue
hobbit. Aventuras não combinam muito comigo.
— Você é alto demais para ser um hobbit! —
atirei, fazendo-o rir.
— Tem razão. — Lançou-me uma piscadela,
levantando as mãos no ar como se desse a batalha por
perdida.
— E quando exatamente você começou a fazer
aquele esporte que te deixou com o corpo assim?
— Assim como? — indagou, fingindo não
entender. Eu via na sua expressão que ele queria apenas
me ouvir dizer e, por isso, atendi sua vontade.
— Gostoso. Com esses gominhos aqui... — Passei
os dedos por eles, contornando-os. — E esse V que me
faz querer decretar essa a melhor letra do alfabeto.
— Você está se tornando uma bela de uma safada,
hein? — Ele abriu um sorriso largo ao mesmo tempo em
que eu dava um tapinha em seu peito. — Respondendo sua
pergunta, foi na época da faculdade. Eu e meus amigos de
banda conversamos muito depois do acidente e decidimos
encerrar O Tadeu. Mas eu precisava demais estar
envolvido com atividades, então aceitei o convite de um
conhecido e daí uma coisa levou a outra...
Suas palavras ainda pairavam no ar quando ele
espiou as horas no relógio de pulso. Notei as
sobrancelhas grossas arquearem por uma fração de
segundo antes dele se inclinar para deixar uma mordida na
minha clavícula. Abafei um gemido, contorcendo-me
inteira. Aquela era, definitivamente, uma de minhas zonas
erógenas. Eu arrepiava com o menor toque, imagine então
sua boca passeando por ali. Quando achei que as coisas
estavam prestes a esquentar, no entanto, Adônis se
levantou. Lancei um olhar indagativo para ele.
— Já é tarde... Estou indo tomar banho, vem
comigo? — Sua boca entortou para a direita, sem
esconder a proposta safada por trás do convite. Imitei
seus gestos, levantando-me em seguida.
— Esse é o tipo de coisa que você não precisa
nem perguntar — respondi, arrancando uma gargalhada
deliciosa dele. Seus olhos brilharam. — Preciso só
conferir meu e-mail antes. Estou esperando uma colega
mandar a parte dela do trabalho que estamos fazendo em
grupo. Posso usar seu computador?
Suas mãos se fecharam ao redor da minha cintura,
buscando-me contra seu corpo.
— Só se você prometer estar lá em, no máximo,
dez minutos.
— Uhum — soprei contra sua boca. — Talvez até
em cinco.
— Então pode. — respondeu ele, deixando outra
mordidinha alucinante na minha clavícula antes de
abandonar a sala.
Pelo anel de Frodo Bolseiro, arfei, esfregando o
rosto com as duas mãos para recobrar o juízo. Pensar com
clareza era quase impossível com Adônis por perto. Em
passos preguiçosos, tracei o caminho até o quarto no final
do corredor, o qual ele usava como uma espécie de
escritório. Na maioria das vezes, era lá onde Adônis
preparava suas aulas e corrigia suas provas e trabalhos. A
porta rangeu bem alto ao ser aberta, chamando atenção de
Castiel, que veio me fazer companhia.
Apesar de ter estado ali poucas vezes, eu gostava
da atmosfera daquele cômodo, sentia como se fosse
acolhida por ele. Imaginava Chewie concentrado por
horas a fio ali, lendo infinitas redações e, dessa forma,
conhecendo um pouquinho mais de seus alunos. Rocei a
ponta dos dedos na estreita prateleira em formato de
escada, a qual se encontrava abarrotada de livros —
alguns técnicos, alguns de ficção. Meu coração apertou um
pouco ao reparar em alguns exemplares de Nicholas
Sparks espalhados entre tantos outros, como se para
passarem despercebidos. Perguntei-me, com um estranho
nó na garganta, se ele os lera ou simplesmente guardava
pelo significado contido em cada um. Não me permiti
pensar muito mais a respeito, de toda forma. Não
importava. Ele tinha o direito de levar as memórias da
primeira namorada consigo para onde quer que fosse,
assim como eu teria quando a hora da despedida chegasse.
Suspirei, tocando o encosto da cadeira de pernas
palito posicionada em frente à ampla escrivaninha feita
com cavaletes. Seria estranho deixar de visitar aquele
apartamento já tão familiar e mais estranho ainda
presenciar outras pessoas morando ali. Seria doloroso
não encontrar Adônis e Castiel todas as madrugadas.
Seria quase impossível suportar a saudade, eu sabia
disso. E tinha medo de simplesmente não ser madura o
suficiente para lidar com aquela situação no futuro,
porque, embora lutasse para enfiar na cabeça que o
destino estava decidido, meu coração não conseguia
compreender muito bem a ideia.
Balancei a cabeça, querendo afastar as
preocupações. Era burrice sofrer com antecedência. Se o
sofrimento seria inevitável, que pelo menos fosse uma
única vez, não aos picadinhos.
Puxei a cadeira e me sentei, um pouco rígida.
Empurrando os óculos para cima com o dedo indicador,
agarrei o mouse, torcendo para Luciana ter mandado sua
parte do trabalho — a única faltando para que
pudéssemos concluí-lo. Digitei apressadamente meu
login e senha, ansiosa para terminar o mais rápido
possível com aquilo e finalmente poder me unir ao meu
Chewbacca. No entanto, como eu já antevia lá no fundo do
meu coraçãozinho, encontrei a caixa de entrada vazia.
Retorci o rosto em uma careta insatisfeita. Argh, que
droga!, pensei, irritada.
Eu odiava tanto, tanto, tanto alunos que não se
comprometiam com as responsabilidades. Minha nossa, se
ela soubesse disso jamais teria pedido para participar do
grupo porque, honestamente, minha vontade era de falar
umas poucas e boas para aquela irresponsável. Revirei os
olhos, cansada de aceitar passivamente sua negligência
com algo que envolvia a nota de mais quatro pessoas.
Aprumando-me no assento, decidi enviar uma mensagem
pelo Facebook a fim de cobrar (pelo que parecia ser a
vigésima vez) a parte dela.
Achava-me tão imersa pensando no quanto nunca
mais queria fazer equipe com Luciana em toda a minha
vida acadêmica que demorei alguns segundos para
perceber a notificação de mensagem não lida. Abri
despretensiosamente o inbox, notando com certa
curiosidade a falta de nome e foto do remetente, o qual
estava identificado apenas como Usuário do Facebook.
Isso significava vir de alguém que havia me bloqueado
depois de entrar em contato comigo.
Cliquei sobre a bolinha e uma caixa de texto pulou
no canto inferior direito da tela. Pisquei algumas vezes e
estreitei os olhos ao me deparar com a mensagem extensa.
Foquei a visão, só para constatar que não estava ficando
louca. Então senti uma guinada muito forte no coração.
Por um segundo, acreditei que estivesse morrendo.
Era ela, minha mãe.
Ela tinha respondido.
Depois de quase dois meses, quando eu já
acreditava que ela tinha apenas decidido me ignorar.
Oh, Deus. Oh, Deus. Oh, Deus..., o pensamento se
repetiu em looping na minha cabeça, enquanto eu reunia
coragem para encarar aquilo de frente. Minhas mãos
tremiam como as de uma pessoa nua bem no meio do Polo
Norte. Meu estômago assemelhava-se a uma centrífuga, eu
sentia como se a janta fosse jogada de um lado para o
outro lá dentro, só esperando para jorrar pela minha boca.
Ok, fica calma. É só uma mensagem, Rebecca.
Ela não pode te fazer mal, mentalizei com firmeza, sem
nunca desconfiar como eu estava terrivelmente enganada
quanto a isso.
As coisas não são fáceis
Então, basta você acreditar em mim agora
Não aprenda as coisas na marra
Apenas me deixe te mostrar como

Alok – Hear me now


Não me dei conta de que agarrava os braços da
cadeira com tamanha força enquanto lia a mensagem da
minha mãe. Na verdade, eu me encontrava alheia a todas
as manifestações acontecendo no meu corpo naquele
momento. Não percebi o tremor ininterrupto nas minhas
pernas, tampouco a maneira como minha respiração
estava curta e rápida. Também não me lembrei de que
tinha prometido para Adônis estar no banho com ele em
poucos minutos. Eu tinha esquecido o mundo ao meu
redor, só tinha olhos para aquelas palavras. Como sempre,
ela tinha todo o controle sobre mim. Eu era uma idiota e
tinha total consciência disso. Mas simplesmente não
conseguia evitar.

Não sei exatamente a razão para ter me


procurado depois de tanto tempo e, francamente, não me
importo nem um pouco. Eu sequer pretendia me
incomodar em responder, mas não consigo simplesmente
aceitar que você cuspa seu discurso de “ah, como sou
coitadinha e injustiçada” sem que haja uma
consequência. E é só por isso, Rebecca, que estou me
dando ao trabalho de te escrever. Chegou a minha vez de
atirar as palavras.
Eu tinha quatorze anos quando seu pai apareceu
na minha vida. Apesar de nova, eu chamava muita
atenção com o meu corpo. Estava acostumada com
homens virando a cabeça para me olhar aonde quer que
fosse. Tinha tantas curvas quanto uma mulher feita e,
claro, ele percebeu isso bem rápido.
Seu pai costumava ser o tipo de homem com
quem todas as mulheres sonham estar. Tinha a beleza de
um ator, com os olhos verdes espertos e o sorriso fácil.
Eu deveria ter imaginado que seria problema, mas não
era tão inteligente quanto julgava, afinal. Quando
menos percebi, me apaixonei. Ele me tinha nas mãos e
sabia disso.
Se parece com tantas outras histórias que
ouvimos por aí, não?
Só que não era como as outras, era pior.
Ele era um amigo de longa data dos meus pais
que tinha acabado de voltar para Santa Cruz do Rio
Pardo. Além de ser casado, era, pelo menos, vinte anos
mais velho. Seu pai se aproveitou da minha ingenuidade,
Rebecca. Por muitos meses. Eu o amei
desesperadamente e acreditei em cada uma de suas
promessas. Acreditei quando disse que largaria a esposa
para ficar comigo e que fugiríamos para algum lugar
melhor. Acreditei que ele também me amava e, por isso,
me entreguei por inteira.
Até que veio a notícia de que eu estava grávida e
tudo mudou drasticamente. Eu estava tão cega que, em
um primeiro momento, me senti a garota mais sortuda do
mundo. Finalmente ele teria o motivo que faltava para
me dar a vida que eu sonhava ter. Mas foi bem diferente
disso. O que ganhei foram ameaças. Ele prometeu me
matar se alguém suspeitasse de nós dois. Eu estava
proibida de “abrir o bico”. E foi então que percebi o
quanto você era maligna.
Sempre tive grandes planos para a minha vida.
Todos apostavam as fichas em mim. Eu era exatamente
como você — jovem, estudiosa e cheia de energia. Mas
toda a esperança de um futuro grandioso foi arrancada
de mim de maneira dolorosa e cruel. Você me destruiu,
mudou tudo para sempre. Eu nunca pedi nada disso.
Nunca te quis.
Quando digo que você não é minha filha,
Rebecca, não é da boca para fora. Você não é NADA
minha, além de um parasita que esteve no meu ventre
por nove longos meses. Mãe é aquela que oferece
proteção, afeto, carinho e eu jamais seria capaz de te
oferecer algo assim. Porque você está certa, eu TE
ODEIO. Vai muito além disso. Eu sinto NOJO de você.
Repulsa. Desejei sua morte obsessivamente e jamais
conseguirei perdoar meus pais por não respeitarem a
minha decisão de cortar o mal pela raiz. Nunca quis que
você existisse. Cada vez que você chorava na minha
frente, eu me sentia um pouco mais vitoriosa. Porque,
para mim, isso é o que você merece por ter destruído
todas as minhas chances.
Despertei da realidade ao sentir os braços fortes e
seguros de Adônis se fecharem ao meu redor. Enterrei o
rosto em seu peito nu, chorando com a mesma intensidade
que faria se alguém tivesse cravado uma adaga em meu
coração repetidas vezes e continuasse me golpeando.
Mais do que nunca, eu tinha raiva de mim mesma por ter
provocado aquilo. Por que você foi atrás dela? Qual o
seu maldito problema?, meu subconsciente perguntava
copiosamente, castigando-me ainda mais. A questão é que
eu não conhecia a resposta. A única coisa que sabia —
bem até demais — era o quanto uma rejeição doía na
alma.
— O que aconteceu? — perguntou ele, com a voz
urgente, mas simplesmente não tive forças para responder.
Parecia tão distante a nossa conversa sobre o
passado dele, assim como o convite para o banho. De
repente, eu era aquela garotinha assustada, sendo
arrastada para os cantos para que minha mãe pudesse
demonstrar seu ódio. Voltei a ser a Rebecca acuada, a
qual se escondia nos livros para fugir da realidade. Voltei
a experimentar a pontada lancinante no peito e o nó na
garganta que crescia a cada segundo, sufocando-me.
Fechei as mãos em punhos, sentindo o ardor das minhas
unhas cravando nas palmas. Eu só queria que aquilo
passasse. Eu queria ser forte o suficiente para abandonar
o passado, queria não me afetar tanto. Eu só queria fugir
da dor. Meu Deus, como eu queria!
Percebendo quão no fundo do poço eu me
encontrava, Adônis agiu da melhor maneira que poderia
naquela situação — apenas permaneceu ali, onde estava,
com os braços ao meu redor, como se me protegessem de
toda a maldade do mundo. Embalada em seu perfume
amadeirado misturado ao cheiro de sabonete que subia da
sua pele ainda quentinha do banho, permiti que as
lágrimas jorrassem. Uma a uma, elas lavaram a minha
alma. Uma a uma, elas me ajudaram a ficar calma quando
o mundo parecia ter ruído em frente aos meus olhos.
Conforme o pranto cessava, uma cefaleia intensa
avançava de fininho. Quando menos percebi, espremia as
pálpebras de tanta dor. Era como se alguém estivesse
martelando o meu crânio impiedosamente com uma pedra
muito afiada. Céus, eu estava em frangalhos. Só queria
estalar os dedos e sumir. Desse jeito, em um piscar de
olhos.
Aninhei-me um pouco mais nele, completamente
perdida. A tristeza tem esse poder, afinal. Ela te dá uma
surra, te venda e te joga em um lugar irreconhecível, longe
de tudo e de todos. Somente você e a solidão. Mas não
uma solidão física. Não, essa é bem pior. É uma solidão
da alma. Aquela que se sente mesmo cercado de pessoas.
Aquela que corrói aos poucos até que você se torne um
morto-vivo.
— O que aconteceu? — Adônis perguntou outra
vez e sua voz veio como uma faísca de luz em meio ao
breu em que eu me achava.
Ainda incapaz de encontrar a minha voz em
qualquer lugar que fosse, apenas indiquei o monitor com a
cabeça. A janela permanecia aberta, como um lembrete
terrível de tudo que eu adoraria jamais recordar.
Chewie afrouxou um pouco o abraço, a fim de
aproximar o tronco do computador. Observei suas íris
translúcidas irem da direita para a esquerda sem parar.
Mordisquei o lábio inferior, arrancando uma ou duas
lascas de pele enquanto media suas reações a partir das
expressões que o seu rosto assumia. Quanto mais ele lia,
mais seu cenho de franzia, destacando os sulcos profundos
na testa. Era possível enxergar o Adônis de antes, cheio
de raiva, surgindo aos poucos. Seus lábios estavam tão
crispados que eu mal os enxergava, porque tinham virado
uma linha reta muito rígida. Quando terminou de ler,
soltou-me em um rompante, levantando-se com rispidez.
Subi os olhos, cheia de expectativa. Deparei-me com seu
rosto pálido e chocado. As narinas estavam dilatadas
enquanto ele balançava a cabeça em negativa sem parar.
Então, sem mais nem menos, saiu em disparada do quarto,
deixando-me sozinha.
Como se os dois estivessem revezando o turno
para me dar amor, Castiel pulou no meu colo tão logo seu
dono abandonou o cômodo. Enterrei os dedos em seus
pelos macios e o acariciei como forma de agradecimento
pelo apoio. Juntos, ouvimos os passos pesados de Adônis
andando pela casa, portas sendo abertas e fechadas com
força, gavetas deslizando nos trilhos. Perguntei-me o que
poderia estar acontecendo e ponderei se deveria ir atrás
dele. Não cheguei a formular muitas teorias na cabeça,
porém, pois logo ele estava de volta. Completamente
vestido, ele trazia o violão e um cachecol e estava
acelerado, eu diria até inquieto.
— O que está fazendo? — consegui perguntar.
Minha voz saiu desafinada e fraca.
— Me preparando para fugir com você.
— Fugir?
— É. — Ele encolheu os ombros. — Vamos sair
um pouco de casa e tentar esquecer esse monte de merda.
— Não estou a fim.
— Vamos lá, donzela. Não faz bem nenhum ficar
remoendo essas coisas. Coloque uma blusa bem quente,
porque está frio para caramba.
— Você não me ouviu? Eu não quero! — respondi,
um pouco mais agressiva do que deveria.
Ele me encarou cheio de ternura, limitando-se a
sorrir. Foi o suficiente para me desarmar.
— Por favor... é uma emergência. Não vou te
deixar chorar a noite inteira, nem que eu precise te jogar
nos ombros e te levar a força.
Quando menos percebi, tinha um sorriso tímido
pincelando meus lábios. Às vezes, quando estamos feridos
e cheios de raiva, a única coisa que realmente precisamos
é de alguém para cuidar de nós e nos mostrar outro ângulo
para encarar a realidade. Como quando somos crianças e
ralamos nossos joelhos. Do chão, nós choramos e
lamentamos o ocorrido, tristes pelo machucado. Mas
então, as mãos de um adulto cuidam de nossas feridas e
nos levantam outra vez, propondo que, depois de cada
tombo, a única opção existente é a de seguir em frente.
Expirei o ar dos pulmões e assenti, pensando que,
no fim das contas, poderia ser de grande ajuda tirar o foco
do passado e voltar toda a atenção para o presente.
— Tudo bem — respondi. — Você venceu.
— Que bom. — Ele sorriu genuinamente. —
Porque eu estava prestes a te erguer no colo. Mais um
segundo e estaria encrencada.
Depois de tomar um remédio para dor de cabeça e
me preparar para encarar o frio intenso de uma madrugada
de junho, nos encontrávamos no estacionamento do
condomínio. Dentro da minha cabeça, eu listava todos os
motivos pelos quais não considerava uma boa ideia o
simples fato de ter deixado o apartamento de Adônis para
trás. O primeiro e mais óbvio de todos era que eu
simplesmente não me sentia disposta para coisa alguma. A
não ser que essa coisa em questão fosse chorar em
posição fetal, é claro. Mas, além disso, eu teria uma prova
no dia seguinte e precisaria passar a tarde fazendo a parte
do trabalho que Luciana não havia entregado. Uma noite
mal dormida não era exatamente a escolha mais sensata a
se tomar diante de todos estes outros fatos.
Apesar disso, não ousei externar meus
pensamentos. Não fazia sentido quando Adônis parecia
tão determinado a me colocar para cima. Eu tinha
descrença de que um passeio de carro fosse me tirar da
fossa, mas já valia a pena só o fato de ele tentar. Eu teria
topado qualquer coisa com ele, em parte como maneira de
agradecer por se importar comigo, mas principalmente
pela companhia.
Tão logo entramos no carro, escondendo-nos do
frio cortante, ele inclinou o tronco em minha direção,
deixando um beijo suave na minha boca. Então, com um
sorrisinho travesso, alcançou o cachecol que havia trazido
consigo e estendeu em frente ao meu rosto. Observei a lã
cinzenta se aproximando até dominar a minha visão e só
então constatei que estava sendo vendada!
— Hei! — protestei, mas ele cobriu meus lábios
com os seus outra vez.
Sua mão subiu pela minha coxa enquanto eu
correspondia ao beijo e comecei a me perguntar o que
exatamente Chewie pretendia. Quando ameacei tirar o
pano dos meus olhos, porém, seus dedos gelados me
impediram, segurando-me pelos pulsos. Pelo amor de
Yoda..., pensei, arquejando em surpresa. A situação como
um todo ficava mais inesperada a cada segundo.
— Confia em mim? — perguntou baixinho, muito
próximo do meu ouvido. Todos os meus pelos eriçaram,
num misto de confusão e excitação. Mesmo que eu não
estivesse com o melhor estado de espírito, ele tinha
conseguido implantar uma sementinha de curiosidade
dentro de mim, a qual germinava em uma velocidade
surpreendente.
— Você sabe que sim.
— Então não tire a venda, tudo bem?
Assenti, obedecendo-o. Suas mãos soltaram meus
braços e ele se afastou. Lamentei um pouco, era bom
sentir sua presença sem saber quais seriam seus próximos
movimentos. O elemento surpresa podia ser um aspecto
bem interessante.
Ouvi a chave girando na ignição e logo depois
veio o ronco característico do motor sendo ligado. Senti
um friozinho na barriga. Conforme o carro se locomovia
devagar, eu conseguia perceber as luzes ondulantes vindas
da rua. Tentei prestar atenção no caminho, mas era muito
difícil manter senso de direção naquelas circunstâncias.
Por isso, poucos minutos depois, ao sentir o automóvel
parar, eu não fazia a mais remota ideia de onde
poderíamos estar.
— Eu fiquei bem mal depois do acidente. De
verdade. — Sua voz penetrou meus tímpanos de surpresa.
Dei um pulinho no lugar, torcendo para ele não ter
percebido. — Não queria mais comer, tomar banho, ou,
sei lá... Eu não fazia mais nada. Só dormia o dia inteiro e
descontava minhas frustrações em todo mundo. Enfim, foi
muito difícil. Até o meu pai perturbar a minha paz, numa
madrugada qualquer. — Chewie riu e pude perceber um
pouco de saudade em sua risada. — Ele entrou no meu
quarto me mandando colocar uma roupa, porque era “hora
do show”. É óbvio que eu não queria ir para lugar nenhum
e fiquei muito puto com o que quer que ele estivesse
tentando, mas aceitei só para ele parar de fazer barulho.
"Nós entramos no carro e ele me vendou, mesmo
sob meus protestos. Então dirigiu por algumas quadras
para eu não saber mais onde estávamos. Exatamente como
estou fazendo com você agora. Daí ele me pediu para
guiar o caminho, daquele jeito, sem ver nada. Se eu
falasse para ele virar a esquerda, ele simplesmente
obedecia. Eu podia orientá-lo por minutos ou horas, a
única regra era que precisávamos parar em algum lugar.
Era eu quem deveria indicar quando. Achei a ideia
ridícula, é claro. Só que não contestei. Queria acabar com
aquilo e voltar para casa o mais depressa possível.”
— E depois? — ouvi-me perguntando, para a
minha surpresa. Encontrava-me mais envolvida com a
história do que imaginava.
Adônis passou o braço em meus ombros, puxando-
me desajeitadamente para mais perto. Ele deixou um beijo
na minha testa antes de dar sequência.
— Nós paramos no Lago Igapó, que é um dos
principais pontos turísticos de Londrina. Desci do carro
me perguntando qual a chance de termos chegado lá, e não
parado em algum lugar qualquer. Nesse ponto, eu já nem
lembrava mais da tristeza. Ele tinha conseguido me
distrair. Só que então veio a tacada principal. Meu pai
tirou nossos violões do porta-malas e me perguntou onde
estávamos. — Adônis apoiou o queixo no topo da minha
cabeça e desejei com ardor estar sem a venda, para que
pudesse presenciar suas expressões durante a narrativa.
— Eu fiquei perplexo porque era óbvio, e respondi, meio
sem jeito, que estávamos no Lago Igapó. Mas ele não
aceitou a resposta. Repetiu a pergunta mais duas vezes.
Continuei falando a mesma coisa, até que ele parou, me
olhou atordoado e atirou: “Caramba, que tipo de droga
você usou, Jimmy? Vai me dizer que não se lembra de
nada?”
— Jimmy?! — Ecoei. — Como assim? E lembrar
o quê? — As perguntas pulavam da minha boca. Naquele
momento, minha língua não possuía freios.
Adônis riu em deleite. O som foi tão caloroso que
me aqueceu inteira, como se eu abrigasse um aquecedor
dentro de mim. De repente, não quis estar em nenhum
lugar se não ali.
— Se você está assim, imagine como não fiquei na
hora. É sério, pensei que o meu pai tinha enlouquecido. E
ele continuou! “Porra, Jimmy, pegue logo sua guitarra. O
show começa em cinco minutos e não precisamos de mais
esse escândalo. Você ainda vai arruinar a nossa banda!”
— Houve uma pausa, a qual ele usou para respirar fundo.
— Demorei um pouco para entender que ele estava
fazendo de conta. Assumiu um personagem, inventou toda
uma situação, só para me tirar da fossa. E, Becca,
funcionou.
“Madrugada após madrugada, juntávamos nossos
instrumentos e partíamos para mais uma aventura. Eu não
tinha tempo de remoer o passado, porque estávamos
ocupados demais para isso. É claro que éramos apenas
dois alucinados tocando na calada da noite para uma
plateia invisível, mas se você me perguntar, eu juro que
não estivemos apenas em Londrina. Ah, não, nós tocamos
pelos lugares mais fodas do mundo.”
Foi muito para aguentar. Sem pensar duas vezes,
afastei o cachecol dos olhos, a fim de encará-lo.
Encontrei-o com um sorriso tão brilhante e lindo que
quase quis chorar. Por alguma razão, aquilo tocou muito
fundo em mim. Deve ser porque minha figura paterna
nunca esteve presente e ouvir aquela demonstração de
amor tão grande amoleceu meu coração. No entanto, ia
além disso. Ele estava disposto a compartilhar comigo um
dos momentos mais íntimos com o pai e aquilo, mais do
que qualquer palavra, mostrou-me o tamanho de seu
sentimento. Adônis jamais esteve tão exposto.
Permanecemos nos encarando por um instante, calados.
Qualquer palavra que fosse dita arruinaria a atmosfera
que dominou o carro.
Ele foi o primeiro a se manifestar. Roçou o nariz
no meu de levinho, enquanto deslizava o tecido para cima
dos meus olhos novamente.
— Você fez uma promessa, donzela. — Concordei,
sorrindo. — Agora, me diga, para onde nós vamos?
— Siga reto, por favor. — Instruí, ouvindo-o dar a
partida em seguida.
Você é a razão de me sentir tão forte
A razão pela qual eu estou aguentando

Vance Joy – Mess is mine


Meus dedos tremeram de expectativa quando o
carro freou, parando com um breve solavanco. Pode
parecer bobo, mas eu me sentia um pouco nervosa pelo
que nos aguardava. Não era como se estivéssemos prestes
a fazer algo majestoso, eu sabia, só que o meu coração
não concordava comigo. Ele acreditava que era, sim, uma
noite e tanto. Talvez eu devesse ouvi-lo mais vezes.
O trajeto por si só já havia sido uma experiência
para lá de singular. Quero dizer, existia algo de excitante
sobre precisar dar as coordenadas sem fazer a menor
ideia de para onde estávamos indo. Era como se a
intuição se encarregasse disso por nós.
— Preparada? — Adônis perguntou, repousando a
mão pouco acima da minha perna. Balancei a cabeça em
afirmativa, o movimento foi quase imperceptível, no
entanto. — Não tire a venda ainda — pediu e logo em
seguida ouvi o barulho de sua porta.
Prendi a respiração, tateando o cinto de segurança
até conseguir soltá-lo. Foi o tempo exato para Adônis
contornar o carro e abrir a porta. Uma rajada de vento
invadiu o interior, fazendo-me estremecer. No entanto,
bastou que seus dedos escorregassem pelo meu braço,
mesmo com algumas camadas de tecido os separando,
para que uma corrente de calor emanasse pelo meu corpo.
Ele os fechou ao redor do meu pulso, como costumava
fazer sempre. E, se sua mão já era naturalmente fria,
naquela noite era parecia ser feita de gelo.
Com a ajuda dele, pulei para fora, sendo recebida
pelo frio cortante. Meu rosto e mãos arderam no mesmo
instante. Contive o impulso de fechar os braços ao redor
do meu tronco a fim de me proteger. Inspirei
profundamente, sentindo o ar gélido invadir o corpo,
dissipando o calor aconchegante que eu experimentara no
carro até aquele momento.
Joguei o peso do corpo de uma perna para a outra,
permanecendo parada no mesmo lugar, atenta aos sons.
Seus passos no cascalho me indicavam que ele contornava
o veículo outra vez. Logo depois, o barulho do porta-
malas seguido por um som abafado que parecia ser de
Adônis tomando o violão. Ele ativou o alarme e voltou a
afundar os pés no seixo, aproximando-se novamente de
mim. Antes que eu percebesse, suas mãos estavam na
minha cintura, firmes. Chewie me posicionou para a
esquerda e deduzi que deveria seguir naquela direção. Um
calafrio desceu pela espinha, enquanto eu arriscava
passos tímidos, sendo conduzida por ele.
O ruído contínuo do vento misturava-se às batidas
alucinadas do meu coração e a respiração calma e pesada
de Adônis, tão próximo de mim. Ao nosso redor, aves
noturnas gorjeavam, cigarras zumbiam e sapos coaxavam,
compondo, juntos, uma melodia calma e acolhedora. Que
lugar é esse?, perguntei-me, notando a ausência de sons
de carros que, mesmo tão tarde da noite, era comum no
bairro onde morávamos.
— Aqui estamos — sussurrou contra a minha
orelha esquerda e, com isso, roubou toda a força das
minhas pernas. No segundo seguinte, senti o cachecol
afrouxar até simplesmente escorregar pelo meu rosto.
Pisquei até conseguir acostumar a visão outra vez,
depois de um tempo considerável sem enxergar nada.
Meus olhos foram imediatamente ao letreiro luminoso —
o qual possuía duas letras piscando ininterruptamente,
como se estivessem prestes a queimar — indicando que
ali era nada mais nada menos que a antiga instalação da
Universidade Católica da Maringá. Ah, sim, eu disse
antiga. Soube disso na hora porque, certa vez,
caminhando com Arthur no centro enquanto distribuíamos
os seus intermináveis currículos, passamos em frente ao
campus novo e ele me explicou sobre a mudança que
ocorrera no ano anterior. No entanto, mesmo se eu não
fizesse a mais remota ideia dessa informação, não teria
sido difícil chegar à conclusão sozinha. Apesar de todas
as luzes acesas no pátio da ampla propriedade, pequenos
sinais de abandono se faziam presentes. Tais como a
grama precisando ser aparada com urgência; a falta de
seguranças inspecionando o local; ou a pintura gasta, tanto
no prédio quanto no portão alto e imponente que nos
separava lá de dentro.
Consegui entender perfeitamente o que Adônis me
disse dentro do carro, sobre ter ficado atordoado quando
ele e o pai chegaram ao Lago Igapó. As chances de
pararmos no meio do nada eram mesmo gigantes, mas,
ironicamente, estávamos em algum lugar significativo. E
isso, por si só, já era incrível o suficiente para desviar a
atenção dos fantasmas tentando dominar minha mente.
— Caramba! — limitei-me a dizer.
— Eu sei... — suspirou ele, como se deleitasse
todas as possibilidades existentes. — Vamos ter que pular.
— O quê? N-não, isso é loucura!
— Uhum — Adônis concordou, com um sorrisinho
travesso. — E é por isso que precisamos fazer.
Girei nos calcanhares, ficando de frente para ele.
— Podemos ficar aqui mesmo.
— Não podemos, não. — Ele me observou com
atenção. — Calma aí, está amarelando? Não era você que
queria ser uma mulher forte e tudo mais? Katniss deve
estar tão desapontada neste momento...
— Nossa, você está jogando muito baixo! —
protestei, arrancando uma gargalhada dele.
— Não posso negar. Mas, em minha defesa e
parafraseando o que uma pessoa especial me disse um
tempo atrás, acho besteira desperdiçarmos uma
oportunidade dessas apenas por medo. — Ele piscou para
mim ao terminar. Foi a minha vez de rir alto.
Estudei o portão, ponderando a ideia de invadir
aquela propriedade. Céus, aquilo era mesmo uma loucura!
Mas, ainda assim, era tentador ao extremo, ainda mais
levando em consideração a minha companhia. Tomada
pelo nervosismo, mordisquei o lábio inferior e descobri
que ele estava severamente machucado. Graças a ela,
meu subconsciente me recordou. E isso serviu como uma
espécie de estopim para que eu tomasse a decisão de
simplesmente agir por impulso, sem pensar muito a
respeito. O que fosse preciso para afastar a vaca da minha
mãe para bem longe dos meus pensamentos. E isso
contava invadir uma propriedade privada, por mais insano
e perigoso que pudesse parecer. Se o segredo da vida era
manter o equilíbrio, como minha avó tinha me ensinado,
então tudo bem um pouquinho de loucura de vez em
quando, certo?
Lancei uma última olhadela para Adônis, sentindo-
me audaciosa ao tomar impulso e me agarrar nas barras
metálicas. Ouvi-o arfar em surpresa às minhas costas e
não pude deixar de rir, enquanto escalava da melhor
maneira que podia — embora, devo salientar, eu fosse
muito, muito descoordenada mesmo.
— Sempre me surpreendendo, hein?
— Não podemos cair na mesmice. Foi o que li em
uma revista.
— Acho que estamos indo muito bem nisso —
brincou ele.
A descida foi mais complicada que a subida, ainda
mais com as pernas tremendo tanto quanto os galhos de
uma árvore durante uma tempestade impiedosa. Mas,
orgulhosa que era, não dei o braço a torcer. Ainda mais
para Adônis, que sentia um prazer sádico em me ver
envergonhada.
Soltei-me do portão apenas a poucos centímetros
do chão, com medo de cair e acabar quebrando algum
membro. Isso era o que menos precisava na minha vida. E,
levando em conta que eu deveria ter algum tipo de ímã
para confusão, era melhor prevenir.
Observei Chewie escalar as grades com tamanha
facilidade, movimentando o corpo de uma maneira que era
impossível desviar o olhar. Cada vez que os músculos se
contraíam e deixavam a roupa mais justa e esticada, eu
soltava um suspiro. Além do mais, apesar do violão nas
costas, ele levou a metade do tempo usado por mim para
invadir a universidade. Também pudera, depois de vê-lo
se exercitando nas barras, eu entendi que aquilo ali era
fichinha.
— Onde estamos? — indagou de repente e, de
maneira involuntária, viramo-nos de frente para a
construção outra vez.
Eu sabia que sua pergunta não era no sentido
literal e, por isso, ocupei-me em contemplar o edifício
abandonado. Estacando ao meu lado, ele fez o mesmo.
Como se estivesse nos encarando de volta, o prédio
amarelo-pastel se estendia pela propriedade, suntuoso.
Possuía uma fachada semicircular projetada para frente,
sustentada por cinco grandes colunas de estilo grego,
cujas superfícies eram cobertas por frisos verticais
pintados em branco.
Os segundos se acumularam enquanto eu tentava
pensar em algum cenário que fosse incrível o suficiente
para sediar o que parecia ser desfecho perfeito para
aquela noite. Raspei a ponta do all star no cascalho,
avaliando todas as possibilidades. O silêncio se tornava
cada vez mais incômodo, no entanto, e isso tirava a minha
concentração. Lancei um olhar de súplica para Chewie,
que apenas ergueu as mãos no ar, como se pedisse
desculpas por não poder me ajudar. Esfregando as mãos
uma na outra, eu brigava com o meu cérebro.
Por Gandalf, é só dizer qualquer lugar!, meu
subconsciente rosnou, cheio de impaciência.
Fechei os olhos brevemente, sendo tomada pela
memória de Adônis cantarolando Beatles para mim, na
primeira vez que me deu carona. A lembrança me deixou
semelhante a um balão de gás hélio — tão leve que
parecia prestes a sair do chão, flutuando noite adentro.
Percebi o quanto essas pequenas coisas eram, na verdade,
grandiosas. E, apesar de o tempo passar cada vez mais
depressa, arrastando-nos em direção ao fim, eu teria muito
para levar comigo. Fui inundada por uma onda de saudade
precoce, desejando ardentemente aproveitar ao máximo
cada situação que tivesse a oportunidade de vivenciar
com ele. Com isso, algo dentro de mim mudou com
relação ao que fazíamos. Se antes já tinha sido incrível a
simples ideia de ele se preocupar comigo, agora eu tinha
finalmente entendido o propósito da coisa toda. Então,
como se um botão dentro de mim tivesse sido ativado,
ouvi-me quebrando o silêncio:
— Estamos em uma lanchonete americana dos
anos sessenta. Aquelas com piso quadriculado preto e
branco, mesinhas redondas e sofás de couro vermelho
espalhados por toda a parte. Ali no canto tem uma
jukebox, tocando Beatles há horas. — Apontei para a
direita, ainda de olhos fechados. — E ali fica o balcão —
Indiquei a esquerda com a cabeça. —, com um toldo
listrado em cima e uma porção de banquetas em volta
dele. Mas a melhor parte, com toda certeza, é aquela mesa
em forma de carro no final da pista de dança, igual em
Pulp Fiction.
— Mesa em forma de carro?! — A voz grave de
Adônis penetrou meus tímpanos, entregando sua
proximidade perigosa. Ele riu baixinho, enlaçando-me por
trás com firmeza. — Meu Deus, sua imaginação é de dar
inveja.
— Ué, se não for para ser assim eu nem brinco! —
abri os olhos, sorrindo para ele.
Sem soltar os braços da minha cintura, ele
começou a andar, obrigando-me a avançar em direção à
área coberta do prédio. Meu coração bombeava sangue
freneticamente para o corpo, diante da expectativa. Era
insano que ele pudesse estar tão tranquilo quando o que
fazíamos era claramente errado. E, além do mais, não
tinha como negar que a atmosfera seria um pouco
assustadora em outras circunstâncias. Aquele ali era o
cenário ideal para um filme de terror, do tipo com
chacinas e muito sangue. Estremeci brevemente com o
pensamento.
— Você não está com medo? — deixei escapar.
— Eu deveria?
Perguntou, pouco antes de me soltar. Ele deslizou
a capa do violão pelo braço, recostando-o contra a parede
da entrada. Suas mãos tatearam os bolsos do jeans a
procura do maço de cigarros e tão logo o encontrou, não
demorou em acender um. O cheiro de menta invadiu
minhas narinas no mesmo instante.
— Bom, sim! Eu sou menor de idade, você é o
único que pode se encrencar por aqui.
— Encrencar? Estamos apenas curtindo uma
matinê! A menos que seja crime te tirar para dançar,
porque isso é exatamente o que pretendo fazer. — Piscou
para mim, desviando a atenção para o celular logo em
seguida.
— Ah, é? — indaguei, encarnando a personagem.
— Quem disse que vou aceitar o convite?
Adônis se encontrava tão entretido com o telefone
que sequer me respondeu. Em vez disso, soprou uma
fumaça corpulenta para fora dos pulmões e deu outro trago
demorado. Seu silêncio despertou a minha curiosidade e,
por isso, pé ante pé, aproximei-me devagarinho dele,
avançando pelas costas. Estiquei meu corpo todo,
tentando enxergar por cima de seu ombro (o que era muito
difícil, considerando seus quase dois metros de altura) no
exato segundo em que ele conseguiu concluir o que fazia
— encontrar uma música específica, tal como no dia da
carona.
Ele me surpreendeu ao girar nos calcanhares e
parar de frente para mim, contornando minha cintura com
o braço que segurava o celular e colando nossos corpos.
Sua boca veio à procura da minha, em um beijo mentolado
cheio de paixão que me deixou com a sensação de que
minhas pernas derretiam aos poucos.
— Quem disse que era um convite, em primeiro
lugar? — soprou dentro da minha boca. Então, dando o
último trago no cigarro, atirou a guimba para longe de
onde estávamos, fechou o abraço e apertou o play.
Joguei os braços ao redor do seu pescoço, indo de
um lado para o outro no ritmo animado da melodia que
acabara de começar. Era incrível o poder que ele tinha de
tecer um mundo à parte, onde só existíamos nós. E, nesse
mundo, era preciso muito pouco para ser feliz. Em um
segundo eu me preocupava com o nosso barulho e, no
seguinte, era girada de um lado para o outro, como se
realmente estivesse em um baile. Às vezes, meus pés
embolavam e eu me segurava em seus bíceps para não
cair como uma fruta madura no chão. Mas nem mesmo a
minha total falta de desenvoltura para dançar foi capaz de
arrancar o sorriso bobo do rosto dele, tampouco o meu.
— Oh, eu preciso do seu amor, querida. Acho que
você sabe que isso é verdade. Espero que você precise do
meu amor, do jeito que eu preciso de você — Adônis
cantarolou, acompanhando a letra.
E, mesmo que Eight days a week fosse uma das
minhas músicas favoritas dos Beatles, contive o impulso
de cantar junto. Parecia quase um pecado interromper sua
voz de trovão, ainda mais quando ela entoava palavras tão
lindas. Ademais, apesar do frio intenso que fazia naquela
noite, eu juro, todo o meu corpo suou com seu sopro
quente contra a minha orelha. Era insano o que Adônis
podia fazer comigo com tão pouco. Eu torcia para que
com ele fosse da mesma maneira.
— Me abrace, me ame. Me abrace, me ame. Eu
não tenho nada além de amor, querida, oito dias da
semana.
Ele me lançou para trás, puxando-me para cima
logo em seguida. Apesar de inofensivo, o movimento
arrancou um gritinho apavorado do fundo da minha
garganta, responsável pelas nossas risadas acaloradas.
Levada pelo calor do momento, flexionei os joelhos,
deslizando os pés nas pedrinhas irregulares do chão para
a direita e para a esquerda, em uma imitação fajuta do
estilo de dança da época. Gargalhando em deleite, Adônis
me imitou, arrematando os passos com um movimento
ondulante nos ombros.
— Eu amo você todos os dias garota, sempre na
minha mente. Uma coisa que eu posso dizer garota, eu
amo você o tempo todo.
Se ainda existia qualquer resquício de tristeza em
meu coração, foi completamente dissipado enquanto eu
requebrava o meu quadril de um lado para o outro,
embalada pela música que parecia dominar a noite,
embora viesse de um inocente celular. Horas atrás,
quando Chewie me disse que estávamos prestes a sair de
casa, eu me achava no fundo do poço. Sair era a minha
última vontade depois das duras palavras da mulher que
me deu à luz. Mas, ali, nos braços dele, as lembranças do
e-mail pareciam vir de um sonho bem distante. Eram
imagens desconexas e apagadas, tão fracas que não
representavam ameaça alguma para aquela felicidade que
irradiava do meu coração e envolvia o copo inteiro, assim
como o vento gelado roçando na pele.
A música chegou ao fim e, ironicamente, deu lugar
a uma cuja melodia suave e melódica quase implorava
para dançarmos agarradinhos. Como se tivesse lido meus
pensamentos, Adônis agarrou a minha mão direita e me
puxou contra si, fazendo nossos troncos colidirem de uma
maneira deliciosa. Seus dedos escorregaram pela minha
cintura até pararem sobre o bumbum, onde permaneceram.
Dominei um sorriso, seu lado maroto era simplesmente
irresistível.
Recostando a cabeça sobre seu peito, pude ver o
céu que, naquela noite, encontrava-se tão lindo quanto em
uma pintura feita por mãos muito talentosas, como que
para contribuir com todo o frisson. Estava negro como
piche, de maneira que as estrelas se destacavam além do
normal, parecendo pequenos diamantes espalhados por
todo o horizonte. Suspirei, aconchegando-me ainda mais
nele. Foi quando suas mãos subiram pelas minhas costas
novamente, parando na lombar, onde me apertaram com
um pouco de urgência. Notei uma mudança quase
imperceptível na atmosfera, do tipo que só consegue
perceber quando se tem bastante intimidade com
determinada pessoa. Talvez fosse impressão minha, mas
ele parecia até mesmo ter tensionado um pouco os
músculos.
Afastei o rosto alguns centímetros, buscando as
íris de Outono. Se um dia elas foram tão ilegíveis para
mim, agora ficavam cada vez mais límpidas e fáceis de
interpretar. Ele sustentou o olhar por poucos segundos,
antes de avançar em minha boca e invadi-la com a língua,
que se entrelaçou a minha cheia de urgência. Senti seu
sabor delicioso pelo qual me viciara e correspondi com
igual ardor, ou ao menos tentei, porque conforme os
segundos passavam, ele parecia ficar mais e mais exigente
e logo me vi sem fôlego.
— Rebecca... minha donzela... — rosnou daquele
jeito que me fazia delirar. Senti ondas de choque subindo
pelas pernas, ao simples som de sua voz rouca e entregue.
Então, antes que eu pudesse sequer entender o que
acontecia, ele resvalou o nariz na cartilagem sensível da
minha orelha, a respiração morna acariciando minha pele
suavemente. Quando voltou a falar, foi tão baixinho que eu
mais senti do que ouvi.
— Eu te amo tanto... você é o que eu tenho de mais
bonito.
Meu Deus!
Meu Deus!
MEU. DEUS!
O tempo parou de súbito.
Meu coração falhou uma batida, os dedos
congelaram de uma só vez, as pernas fraquejaram.
Eu esqueci até mesmo de como se respirava.
Era a primeira vez que ele falava aquelas palavras
e, pelo cajado de Gandalf, tinha como ser mais perfeito?
Adônis atravessara a barreira que eu mesma não
tive coragem de ultrapassar, embora já tivesse percebido
que há muito tempo eu deixara de estar “apenas”
apaixonada.
Minha garganta secou, como se eu estivesse há
dias no deserto, ansiando por um gole de água. Não sei
explicar como me senti naquele momento. Foram
sensações intensas demais, eu parecia ter sido atingida
por um raio implacável, responsável por levar embora
qualquer resquício de lucidez.
Num ímpeto de loucura, desses que só o amor
pode proporcionar, agarrei seu rosto com as duas mãos,
mirando o fundo de sua alma, através dos olhos ocre
esverdeados. Ele me ofereceu um sorriso bobo, como se
pudesse entender perfeitamente o que se passava na minha
cabeça.
— Repete, por favor.
— Eu te amo, donzela.
— Outra vez! — pedi, parecendo uma lunática.
— Eu te amo. Te amo para caralho!
— Ai, meu Deus, Chewie! — grasnei, sentindo as
lágrimas brotarem pelos olhos.
Eu sei, eu sei, você deve estar pensando: que tipo
de pessoa chora em uma situação assim?
Bem, aparentemente eu, é claro.
Mas que culpa eu tinha, afinal? Adônis despertava
o melhor de mim, e não havia nada de errado em me
mostrar para ele da maneira como realmente era. Foi um
misto de felicidade com amor que parecia muito grande
para caber no peito.
E, pela maneira como ele me encarava, com os
olhos queimando intensamente e o sorriso mais lindo no
rosto, eu sabia que não se importava com as minhas
reações nada convencionais. Dane-se, nós funcionávamos
muito bem juntos.
— Eu te amo, professor. — Sorri, enquanto ele
limpava as lágrimas das minhas bochechas com os
polegares. — Amo muito.
— Me chame de professor outra vez e seremos
obrigados a fazer algo realmente ilegal aqui... — Brincou,
sorrindo com malícia.
Joguei a cabeça para trás, explodindo em
gargalhadas tão altas que ecoaram por todo o terreno.
Tornei a apoiar a cabeça em seu peito, tragando o perfume
amadeirado enquanto íamos de um lado para o outro,
como ondas quebrando na areia. Pelas horas seguintes,
permanecemos daquela forma — agarradinhos, dançando
sob as estrelas ao som de Beatles, em uma lanchonete dos
anos sessenta que para sempre existiria em nossos
corações.
Entre uma música e outra, Adônis me disse que o
tamanho da aureola ao redor da Lua dependia da
intensidade do sentimento entre as pessoas que a
observavam. Talvez ele tenha inventado essa história, mas
não me importo.
Aquela foi a maior aureola que já vi em toda a
minha vida.
Temos que nos segurar no que nós temos
Porque não faz diferença
Se conseguiremos ou não
Nós temos um ao outro e isto é muita coisa

Bon Jovi – Livin’ on a prayer


Lembro-me de, ao longo da minha infância,
presenciar inúmeras vezes vovó se queixando com vovô
sobre como o tempo voava e afirmando que, quando eles
menos percebessem, eu estaria na faculdade, começando a
minha vida.
— Falta um mês para o Natal! Dá para acreditar?
— ela perguntava repentinamente, as mãos na cintura e o
olhar distante, como se vislumbrasse memórias de um
passado tão longínquo bem ali, em sua frente.
Vovô sempre ficava genuinamente surpreso. Ele
parava o que quer que estivesse fazendo e a encarava com
uma expressão concentrada enquanto, muito
provavelmente, organizava a mente para averiguar se a
informação era ou não verdadeira. Depois disso, eles
gastavam horas e mais horas conversando a respeito de
todas as coisas incríveis que já haviam feito juntos e
como os tempos passados eram melhores por ene motivos
diferentes. Era certeza que, depois disso, vovó puxaria o
gancho para alguma fofoca sobre um conhecido qualquer e
a breve crise existencial terminaria tão de repente quanto
começara.
O fato é que eu jamais entendi muito bem a
surpresa deles porque, para mim, a percepção do tempo
era totalmente oposta — os dias se arrastavam de uma
maneira detestavelmente lenta. Feriados como Páscoa e
Dia das Crianças (os meus favoritos) demoravam séculos
para chegar, isso sem contar o meu aniversário. Para uma
criança inquieta como eu, o intervalo entre um aniversário
e outro aparentava ter muito mais de um ano. Era
angustiante.
Porém, ali estava eu, sentada em minha cama com
o notebook no colo, no auge de Agosto, com o clima
amenizando tão suavemente que quase não se notava a
transição de um rigoroso inverno para uma primavera
agradável. Ao olhar para trás e espiar o passado, minha
infância parecia estar a um piscar de olhos. E, pela
primeira vez na vida, fiz das palavras de vovó as minhas.
Dá para acreditar?, tinha se tornado um pensamento
recorrente quando eu percebia quão rápido o ano estava
passando. Quero dizer, eu sequer tinha percebido o
primeiro semestre acabar e agora já estava organizando
minha rotina de estudo para as primeiras provas do
segundo, que começariam dali a duas semanas! Se as
coisas continuassem naquele ritmo, de uma hora para a
outra eu estaria me formando. E isso era realmente
assustador.
Nataly voltou para Maringá pouco antes das férias
de Julho, o que foi uma surpresa e tanto, pois Arthur e eu a
esperávamos apenas quando as aulas retornassem. Na
tarde de um domingo particularmente frio, ela entrou
radiante na sala, arrastando as malas com o braço novinho
em folha — exceto, talvez, por uma cicatriz vertical pouco
acima do cotovelo. Nós dois nos entreolhamos perplexos
e, é claro, Arthur não aguentou e precisou perguntar por
que ela tinha retornado antes.
— Fiquem dois meses trancados com suas famílias
e vocês vão querer voltar rapidinho! — explicou ela,
bastante enfática.
— Lily, eu não preciso nem de uma semana para
isso — ele respondeu, encolhendo os ombros. Nós três
rimos em uníssono.
Tê-la novamente em casa foi, ao mesmo tempo,
incrível e estranho. Incrível porque éramos como uma
família e ela obviamente fazia falta com seu jeito tão
Nataly de ser. Mas, por outro lado, dois meses abrigaram
tantos acontecimentos que me davam a sensação de
contarem anos desde que ela partiu para a cidade natal. E,
por isso, fiquei um pouco enferrujada nos primeiros dias,
até que simplesmente voltássemos a ser como sempre.
Foi mais ou menos nessa época que liguei para
minha avó, revelando o meu desejo de não voltar para
Santa Cruz do Rio Pardo nas férias. Não preciso nem
dizer o tamanho da surpresa dela, né? Meu coração se
apertava de culpa, afinal, aquelas duas semanas seriam
justamente o primeiro grande intervalo tempo livre desde
que começara a faculdade. Dado o fato de que eu não
tinha voltado para casa no feriado de dia das mães, fazia
um bom tempo desde quando os visitara pela última vez.
Eles contavam com aquela visita, dava para sentir a
saudade na voz dela. Não era que eu também não sentisse,
porque sentia muita, aliás. Só que eu tinha apenas alguns
meses com Adônis antes de sua partida e queria
aproveitar ao máximo. Depois disso, teria todos os
feriados inimagináveis para passar ao lado deles.
Expliquei tudo isso para ela, salientando o quanto era
importante para mim e o quanto eu precisava disso. Mas,
no fim das contas, se meus avós quisessem mesmo que eu
voltasse, respeitaria a vontade deles, afinal, a decisão
final pertencia a eles, obviamente.
— Você sabe que nós apoiamos suas vontades,
querida. Mas eu só quero ter certeza de que essa escolha
não é porque sua mãe esteve aqui conosco... — Sua voz
entregou a preocupação. — Becca, você é a nossa
prioridade, sempre foi e sempre será. Só pedimos para
ficar aí no feriado por causa... — Ela suspirou
pesadamente. — Foi pelo seu próprio bem.
Mordisquei o lado de dentro da bochecha. Vovó
achava que eu tinha ficado chateada com um evento do
qual eles não tiveram a menor parcela de culpa! Eu mal
podia acreditar que ela se importasse com isso... Marcela
era filha deles e, no fim das contas, não havia nada que eu
pudesse fazer a respeito além de aceitar que, às vezes, as
situações fogem do nosso controle. Então, uma intensa
onda de amor tomou conta de mim e, se era possível, amei
a minha família ainda mais.
Com isso, senti-me um pouquinho pior com o meu
desejo. Afinal, meus avós também eram afetados pela
minha mãe e, além do mais, não faziam ideia da gravidade
do problema — já que eu nunca tive coragem de contar
sobre a troca de e-mails reveladores que tive com ela.
— Vovó — chamei e parei por um momento,
tentando encontrar as palavras apropriadas. — Eu nunca
ficaria aqui em Maringá para... hum... revidar? Vocês me
conhecem tão bem para pensar algo assim...
— Jamais acharíamos isso, meu bem. Seu avô e eu
só estamos preocupados que você tenha ficado chateada
com a situação.
— Não estou! Eu juro. Amo vocês mais que tudo e
estou morrendo de saudade. Não quero que pensem, nem
por um momento, que estou os trocando. É sério. — Sorri
e tive a impressão que ela fazia o mesmo do outro lado da
linha. — É só que... eu... o t-tempo está acabando —
balbuciei até minhas palavras morrerem no ar. Foi
necessário muito autocontrole para não acabar soluçando.
Não, isso é o que menos preciso, pensei
categoricamente.
E foi então que vovó me surpreendeu mais uma
vez, sendo a mãe perfeita que era para mim.
— Estou muito orgulhosa de você, Becca — Sua
voz era branda. Percebi de imediato que as dúvidas dela
finalmente tinham se dissipado. — Saiu daqui tão
assustada, fugindo dos problemas para se proteger... mas
agora veja só você! A cada dia que passa se aproxima
mais e mais da mulher excepcional que te criamos para
ser.
Meus olhos marejaram tanto que, por um momento,
acreditei que fosse mesmo chorar. Mas, em vez disso,
agradeci infinitamente por ela ser tão incrível comigo e
me dar a liberdade que eu tanto amava. Falamos um pouco
mais antes de ela se despedir e passar para vovô, com
quem conversei ao longo de quase uma hora. Ele me
contou sobre um filme de terror que vira na televisão, mas
não me falou qual era, alegando fazer questão de que eu
visse com ele pela primeira vez. Eu ri em deleite, pois
vovô era o melhor parceiro cinematográfico que uma
pessoa poderia ter na vida.
Quando estávamos prestes a desligar, meu avô me
garantiu que eles não estavam tristes comigo e me fez
prometer que eu aproveitaria bastante as férias para que
valessem a pena. Com um sorriso no rosto, dei a minha
palavra de que faria o possível para que elas se tornassem
inesquecíveis.
E, com isso, passei minhas primeiras férias da
faculdade em Maringá, na companhia de pessoas que eu
tanto amava — Arthur, Nataly e, principalmente, Adônis.
Preciso salientar, inclusive, que foi ridiculamente fácil
honrar minha promessa feita a vovô na companhia dos
três. Não que tivéssemos feito coisas extraordinárias,
como você deve estar imaginando. Não, às vezes a beleza
da vida se esconde justamente na simplicidade de ter
quem nos quer bem por perto.
Manhã após manhã, eu acordava aconchegada nos
braços de Chewie, com afagos deliciosos nos cabelos que
me despertavam lentamente e com Castiel nos pés, como
um filho que não consegue dormir sozinho no próprio
quarto. E eu amava. Não existia maneira mais acolhedora
de começar o dia, na minha concepção. Enrolávamo-nos
na cama por um tempo, aproveitando a companhia um do
outro em conversas intermináveis sobre tudo. Essa era
uma das coisas que mais gostava em nós dois — o assunto
jamais morria. Sempre havia coisas para dizer, histórias
para contar, filmes para debater. Eu sabia, mesmo sem
entender como, que nem mesmo anos convivendo com ele
seriam capazes de extinguir todo o assunto existente entre
nós. Essa certeza aquecia o meu coração além da conta.
Migrávamos, então, para o meu apartamento, onde
preparávamos o desjejum juntos. Adônis sempre se
encarregava das comidas e eu, do café. Somente após tudo
estar pronto e já sobre a mesa que acordávamos meus
amigos. Não de qualquer jeito, diga-se de passagem. Não,
era sempre a base de paneladas, palmas e, de vez em
quando, com Adônis dedilhando o violão animadamente.
É desnecessário dizer que eles acordavam com sangue nos
olhos, né? O mau humor durava pouco, de toda forma.
Para ser específica, bastava eles vislumbrarem a mesa
posta.
— Só vou te perdoar pela comida, Adônis! Você
não, Becca, porque eu odeio café — disse Nataly certa
vez, e a cozinha explodiu em risadas.
Era só depois do café da manhã que Adônis e eu
nos curtíamos. E ele parecia decidido a passar o máximo
de tempo comigo, pois não nos desgrudávamos nem
mesmo por poucos minutos. Logo nos primeiros dias das
férias, ele me convenceu a criarmos uma rotina de
exercícios, alegando que eu era sedentária demais. Suas
palavras vieram como tapas na cara. Encarei-o de queixo
caído.
— Eu não sou sedentária! — afirmei.
— Claro que é.
— Mas eu ando de bicicleta e tudo!
— Cinco minutos por dia, que é o tempo daqui até
a UEM! — disse ele, arqueando as sobrancelhas como se
me desafiasse a discordar.
Droga, eu odiava que ele estivesse certo!
Concordei só para deixá-lo contente. No fundo,
achava besteira desperdiçarmos tantas possibilidades
aparentemente melhores. Mas a ironia de tudo é que eu
passei a amar esses nossos momentos. Comprei uma corda
de PVC verde-água e, enquanto Adônis fazia toda sorte de
exercícios mirabolantes nas barras, eu pulava até que
minhas pernas ficassem dormentes.
Às vezes apenas corríamos juntos, porém, e
contornávamos a extensa área do estádio, misturando-nos
a tantas outras pessoas ativas. Era difícil à beça
acompanhá-lo, em parte porque estava bem mais
condicionado fisicamente, mas principalmente porque
suas pernas davam duas das minhas. Ele se esforçava ao
máximo para não correr tão depressa e eu, para não ficar
tão atrás.
Como saíamos muito cedo de casa, na volta
eventualmente cruzávamos com Arthur no caminho, saindo
para trabalhar. Ele sorria, todo empolgado, e falava com
sua voz arrastada e calma:
— Vejo vocês depois!
Ah, é, esqueci-me de contar, praticamente todas as
noites fazíamos algo juntos. Isso mesmo, os quatro! Aos
poucos, meus amigos passaram a conhecer a pessoa
incrível que Chewie era. Eles, inclusive, adotaram o
apelido e, assim como eu, pararam de chamá-lo de
Carrasco.
Quase sempre era em nosso apartamento, mas, de
vez em quando, conseguíamos convencer Adônis a ceder o
seu. Era bem difícil, no entanto. Ele continuava sendo o
mesmo homem recluso de sempre e, além de tudo, não
conseguia relaxar com a casa bagunçada. O que me
deixava louca (no bom sentido), porque, pelos óculos de
Harry Potter, se tinha algo que o tornava ainda mais sexy,
com certeza era o seu TOC com limpeza. Cada dia era
algo novo, como assistir a filmes de terror sob os
protestos incessantes de Nataly; jogar cartas depois de
levarem séculos para me ensinar; ou simplesmente
conversarmos sobre trivialidades por horas a fio. E este
era o nosso favorito, diga-se de passagem.
Dessa maneira, as férias começaram e terminaram
tão rapidamente que eu mal vi. Com elas, Agosto, apesar
de ser conhecido como um mês interminável, caminhava
em direção ao fim em uma velocidade surpreendente.
Bocejei sonoramente, despertando dos devaneios.
O notebook estava esquecido em minhas pernas,
esquentando-as a ponto de incomodar. Espreguicei-me,
decidindo que não queria perder mais segundo algum do
meu dia sem fazer nada. Dei-me conta de que já fazia
semanas desde a última vez que eu desenhara e, enquanto
ainda era cedo para começar os estudos das provas que se
aproximavam, talvez eu pudesse ocupar melhor o meu
tempo livre, em vez de simplesmente jogá-lo fora.
Levantei, fechando o computador com um estalido
e o deixando sobre a cama. Abaixei-me para pegar os
materiais de desenho em baixo dela. Estavam
empoeirados e com algumas teias de formando em volta.
Senti um pouco de peso na consciência por deixar de lado
algo que eu gostava tanto, como os desenhos.
Destaquei uma folha de papel Canson, alinhando-a
sobre a superfície da minha escrivaninha bamba. Espalhei
as tintas aquarela e os pincéis, assim como lápis e outros
materiais que eu costumava usar. No entanto, estava muito
incomodada com o silêncio quase clínico, de modo que
precisei tomar o notebook outra vez. Eu já tinha me
habituado com quão triste o apartamento ficava enquanto
Arthur estava no trabalho, mas naquela tarde em questão
Nataly não estava, pois tinha saído com alguns colegas de
sua classe. De forma que era só eu e um vazio um tanto
desconfortável — sobretudo para alguém já acostumado a
estar sempre acompanhado.
Abri a pasta de Pearl Jam e comecei a escolher
músicas para uma playlist. Não sei dizer quanto tempo
passei ali, mas fiquei tão distraída que, quando a melodia
estridente do meu celular reverberou pelas paredes do
quarto, meu coração quase foi parar na boca. Então, antes
mesmo de me levantar da cama, experimentei algo
diferente de tudo o que já sentira na vida — meus
músculos ficaram moles e a angústia era tamanha que se
assemelhava a uma faca afiada espetando minhas
entranhas. Foi uma sensação tão intensa e genuína que eu
apenas soube, mesmo sem entender como, quem estava do
outro lado da linha.
Por isso, quando finalmente alcancei o telefone e
vi a chamada via Facebook indicando Marcela Moraes,
minha mãe, não foi nenhuma surpresa para mim. Apenas
respirei fundo, repetindo meu mantra por pensamentos.
Que a força esteja comigo, que a força esteja comigo,
que a força esteja comigo... E, tomada por uma coragem
que eu não entendia de onde surgira, apertei o botão verde
com os dedos trêmulos.
Problemas à minha esquerda, problemas à minha direita
Eu estive enfrentando problemas quase toda a minha vida
Meu doce amor, você vai me tirar dessa?

Cage the elephant – Trouble


— NOJENTA! — Sequer tinha conseguido levar
o telefone à orelha quando ouvi os berros do outro lado da
linha. No mesmo instante, meus joelhos enfraqueceram e
meu corpo todo ficou gelado, tal como se eu estivesse
desnuda em pleno inverno. — EU ODEIO VOCÊ, SUA
IMUNDA. EU ODEIO!
Fiquei paralisada. Tudo aquilo era tão familiar,
mas, ao mesmo tempo, inédito. Quero dizer, apesar de sua
voz mordaz nunca ter, de fato, se apagado da minha
memória, já fazia tanto tempo que eu não a ouvia que o
simples som me deixava estupefata. Trazia à tona um
passado que, na maioria do tempo, eu fingia não existir. O
último e-mail dela já tinha sido doloroso na medida certa,
mas nada comparado ao simples fato de ouvi-la atirar
xingamentos sem que eu tivesse a menor noção do porquê.
Ah, não, aquilo ali tinha um toque cruel de realidade que
nenhum outro tipo de mídia jamais poderia superar.
— FALA COMIGO, CADELA!
Mas eu não o fiz. E, apesar de um pouco chocada
com a situação como um todo, a razão de eu não
responder foi puramente orgulho. Foi só para mostrar a
ela o quanto eu não precisava fazer o que ela mandava,
ainda mais me tratando daquela maneira. Quase como um
protesto involuntário, eu me recusava a lhe dar o poder de
me afundar em um buraco de dor novamente. Algo dentro
de mim mudara depois do nosso último contato e,
estranhamente, eu não me sentia mais tão fraca e indefesa.
Talvez porque eu vislumbrei quão doente ela era.
— O gato comeu sua língua, foi? — perguntou,
sem gritar dessa vez. Ótimo, pensei, já migramos para o
tom hostil. Ela riu com amargura. Um calafrio desceu pela
minha espinha. — Engraçado, você estava bem corajosa
nas mensagens! Cadê sua coragem agora? Hein?
Fisguei o lábio apenas para me impedir falar.
Ainda não, meu subconsciente aconselhou e obedeci.
Conhecia-a muito bem, no fim das contas, para saber que
logo voltaria a berrar novamente.
Não levou mais do que alguns segundos para
minhas suposições se confirmarem.
— MALDITA! DESGRAÇADA! VOCÊ SÓ SABE
ARRUINAR A MINHA VIDA! POR QUE TINHA QUE
ENTRAR EM CONTATO COMIGO? POR QUE VOCÊ
NÃO ME ESQUECE?
— O que você quer, Marcela? — Surpreendi-me
ao chamá-la pelo nome. Era a primeira vez que eu me
dirigia a ela assim. Mas, também pudera, depois de ser
apontada como parasita, mãe era a última palavra que eu
gostaria de me referir a ela.
— QUE VOCÊ MORRA! DEMÔNIA! — Voilà!
— SUA... SUA...
Então, o inesperado aconteceu. Um soluço sentido
e desesperado veio do outro lado da linha, seguido pelo
choro. Não um choro normal, porém. Marcela dava fortes
fungadas em busca de ar, gemendo copiosamente em uma
eterna lamúria. Juro que quase chegou a partir meu
coração — isso se ela não estivesse me chamando de
“demônia” há poucos minutos, é claro.
Sem saber exatamente o que fazer, apenas esperei,
ouvindo-a guinchar como um animal ferido.
O que foi um erro muito grande.
Eu devia ter aproveitado a deixa para encerrar a
ligação, enquanto ela ainda não tinha ferrado com o meu
psicológico. Porque, conhecendo Marcela, era óbvio que
isso aconteceria em algum momento, era só uma questão
de tempo.
Além do mais, eu deveria ter percebido o perigo
daquela situação inusitada. O sinal de que as coisas não
estavam nada normais e que isso acabaria se voltando
contra mim. Afinal de contas, ela nunca chorava, mas
estava fazendo exatamente isso agora. Ao longo de toda a
minha vida, nunca a vi derramar uma única lágrima
sequer. Então, por Deus, como não fui capaz de antever o
que me aguardava?
Pegando-me desprevenida, aquela que deveria me
amar incondicionalmente arriscou sua tacada mais certeira
e cruel de todas.
— ELA SE FOI! ELA MORREU! VOCÊ TIROU
MEU BEBÊ DE MIM — berrou.
— Ela...? — comecei a perguntar, mas minha voz
morreu no ar.
Ela não pode estar falando... Não, isso é demais
até para ela, foi o que pensei, na tentativa de me consolar.
Mas talvez nada fosse demais para ela. Talvez Marcela
tivesse mesmo tanta frieza dentro de si a esse ponto.
— VOCÊ ARRANCOU A ÚNICA COISA QUE
ME IMPORTAVA. TIROU MINHA ÚNICA CHANCE DE
SER MÃE. EU TE ODEIO, SUA ABERRAÇÃO!
ABERRAÇÃO!
Tirei o celular da orelha, desligando-o de uma só
vez.
Meu coração pulsava com violência, de forma que
eu tinha a sensação de que suas batidas ressoavam por
todo o quarto, tal como se estivessem em alto-falantes.
Movida por uma força que cresceu como uma
chama em mim, pulei na cama, agarrando o notebook
como se dependesse disso para viver. Minhas mãos
tremendo como britadeiras dificultavam a missão de
bloquear o perfil daquela mulher tão baixa. Eu nunca mais
queria abrir uma possibilidade para ela entrar em contato
comigo. Nunca mais queria lembrar que tive o desprazer
de ser gerada em sua barriga.
Droga, engole esse choro, sua idiota!, ralhei
comigo mesma. E, de repente, todas as lembranças da
minha infância ficaram fracas demais, insignificantes
demais perto da covardia que ela acabara de fazer
comigo.
Suas últimas palavras ecoavam na minha mente
como sinos. “Sua aberração, sua aberração, sua
aberração...”. Meu estômago embrulhou de uma só vez e
precisei correr até o banheiro para vomitar. Ajoelhei-me
em frente à privada e cruzei os braços sobre o assento,
permitindo-me colocar todo o conteúdo dele para fora.
Ela perdera o bebê.
E achava que a culpa era... minha!
Minha nossa, quão absurdo era isso?
Meus músculos peristálticos se contraíram, um a
um. Lancei o tronco para frente outra vez, despejando o
restante do que havia dentro de mim. Limpei a boca com
as costas da mão, sentindo-me vazia. A vontade de chorar
sumia conforme eu refletia a respeito de nossa conversa.
Se é que isso podia ser chamado de conversa. Quero
dizer, como ela podia ser capaz de jogar aquela culpa em
mim? Como, em sua cabeça perturbada, eu podia ter
qualquer tipo de autoridade sobre sua gravidez?
Esperei um momento para me certificar que não
havia nada mais para ser expelido do meu corpo e, em
modo automático, levantei-me. Tirei minhas roupas sem
perceber que o fazia. Eu precisava me lavar. Precisava
tirar aquela sensação de me sentir suja e culpada, porque,
por Deus, não fazia sentido.
Por favor, não caminhe por essa direção,
Rebecca.
Não a deixe entrar em sua mente.
Abri o chuveiro e agarrei a esponja vegetal,
despejando um pouco mais de sabonete líquido que o
necessário. O cheiro de morango penetrou minhas narinas
e gostei da sensação de frescor e limpeza que ele trazia.
Por isso, esfreguei meu corpo com ardor, como se
esfregasse o passado para fora de mim. Comecei pelos
braços, subindo e descendo a bucha até que a pele ficasse
sensível e avermelhada. Depois disso migrei para os
ombros, barriga e pernas. Todos eram esfregados até que
a sujeira saísse. Era obviamente simbólico e eu diria até
um pouco... descontrolado. Mas eu precisava daquilo.
Precisava ou acabaria sucumbindo.
Quando saí do banheiro enrolada em minha toalha,
algum tempo depois, estava com a sensação de ter tirado
quilos das costas. O mal estar ainda percorria cada
centímetro de mim, mas decidi ignorá-lo. Durante meu
banho de purificação, tomei a decisão de não ficar triste.
Eu não daria esse gostinho a ela.
Entrei no quarto como um raio, sem fazer ideia de
que horas eram. Vesti uma camiseta de ficar em casa,
amarrei meu cabelo no topo da cabeça e, antes de me
sentar em frente à escrivaninha, escolhi uma nova playlist
para me servir de companhia. A mais alegre que consegui
encontrar, porque, minha nossa, eu lutaria com todas as
minhas garras para não ficar como na noite em que ela
respondeu minha mensagem. Não mesmo!

Quando o sol bater


Na janela do teu quarto
Lembra e vê
Que o caminho é um só.

A voz grave e conhecida de Renato Russo me


arrancou um sorriso, tão logo pairou ao meu redor.
Agarrei o lápis na mão com força e, tentando anestesiar
meus pensamentos, deixei que meus dedos transferissem
para o papel tudo o que eu abrigava em meu coração.

Por que esperar se podemos começar tudo de


novo
Agora mesmo
A humanidade é desumana
Mas ainda temos chance
O sol nasce pra todos
Só não sabe quem não quer.

Quando menos percebi, reconheci Adônis surgindo


no desenho. Não era uma surpresa, pois ele havia se
tornado a âncora que me mantinha firme. No entanto,
mesmo que qualquer outra pessoa surgisse ali, somente o
fato de roubar a atenção dos meus pensamentos para algo
que não fosse aquele maldito telefonema, já era fantástico.
Sozinha em meu quarto, eu não me permiti cair. Mostrei
para mim mesma o quanto eu podia ser forte, bastava
acreditar nisso.
As horas voaram como folhas ao vento. Eu só
percebi que havia matado aula quando terminei o desenho,
muito tempo depois. Arfei em surpresa, refletindo que
aquela era a primeira vez na vida que eu fazia algo
parecido. Mas, estranhamente, não me senti culpada como
sempre imaginei que seria. Eu precisava daquele tempo
para mim, precisava colocar os pensamentos no lugar.
Além do mais, a voz de vovó veio lá do fundo da
memória, dizendo que tudo na vida era equilíbrio. Com
isso, convenci-me de que até Hermione Granger já havia
feito coisas questionáveis como aluna e tudo bem. Porque,
no fim das contas, eu não precisava me castigar para ser
diferente de Marcela. Tinha entendido o que Chewie me
dissera na Ilha do Mel — eu não era nada como ela.
Afastei a cadeira com os pés, observando o
desenho pela última vez. Um meio sorriso pincelou meus
lábios e uma sensação de dever cumprido se alastrou
dentro de mim. Era por isso que eu amava desenhar,
servia como uma verdadeira terapia.
Em passos arrastados, percorri o trajeto até a
cozinha. Não estava com a menor fome, mas me sentia
fraca e sabia que seria melhor comer alguma coisa, para o
meu próprio bem. Abri a geladeira à procura de alguma
coisa fácil que eu pudesse preparar (afinal, era uma
negação na cozinha) e fui assolada por uma sensação
nostálgica ao vislumbrar um saquinho de mercado cheio
de batatas. Adônis estava em cada pedacinho das minhas
memórias recentes. O meu primeiro ano da faculdade
ficaria para sempre marcado por ele.
Tomei duas grandalhonas nas mãos, dirigindo-me a
pia em seguida. Não pode ser tão difícil fazer um purê
sozinha, pensei comigo, procurando o descascador nas
gavetas a fim de evitar estragá-las com minhas incríveis
habilidades gastronômicas — ou a falta delas. Então,
levando mais tempo do que qualquer outra pessoa,
consegui executar o trabalho e, quando menos percebi,
levava-as ao fogo, tomada por uma onda de deleite.
Olhando para as chamas azuladas saindo
ininterruptamente da boca do fogão, suspirei pesadamente.
Percebi que precisava me ocupar enquanto as batatas
cozinhavam, porque, como dizia vovó: “cabeça vazia é
oficina do diabo”. Eu não podia baixar a guarda. Eram
justamente nesses momentos em que a tristeza se
esgueirava silenciosamente, atacando com seus golpes
impiedosos.
Esfreguei o rosto, os pensamentos vagando de
meus avós para Marcela. Eu jamais escondi algo deles e,
no entanto, omitia acontecimentos de meses relacionados
a ela. Acontecimentos importantíssimos, diga-se de
passagem. Um gosto amargo tomou minha boca e eu
soube, no mesmo instante, o que deveria fazer.
Praticamente corri em direção ao quarto, procurando o
celular que ficara abandonado ao longo do dia, remetendo
ao que existia de pior. Digitei o número de vovô, sentindo
uma comichão no estômago.
Eu estava uma confusão de sentimentos. A verdade
é que ainda não tinha conseguido absorver o impacto do
que sucedera aquela tarde. Lá no fundinho do meu
coração, existia uma sementinha maligna começando a
brotar e eu refletia a minha parcela de culpa naquilo tudo.
Talvez merecesse estar vivendo aquele pesadelo, afinal,
por que fui mexer com quem estava quieto?
— Becca, querida, está tudo bem? — a voz gentil
de vovô me fez estremecer. De repente, desejei não ter
ligado. Eu não fazia a mais remota ideia de como
começar.
— Vovô, eu... eu... — gemi, deixando minha fala
se dissipar no ar.
Ele teve a delicadeza de esperar um momento
antes de perguntar:
— O que aconteceu?
Notei, com amargura, a preocupação surgindo em
suas palavras.
Já é tarde demais para mudar de ideia, Rebecca.
Vamos lá!, meu subconsciente me incentivou. Mordisquei
o lado de dentro da bochecha, tomando coragem para uma
conversa que, definitivamente, não estava preparada.
— Preciso contar uma coisa. Várias, na verdade
— admiti, ouvindo sua respiração pesada do outro lado
da linha. — O dia das mães foi terrível. Não por que
vocês não puderam me receber — adiantei-me em
explicar. —, fiquei triste porque... bem, você sabe. As
lembranças estavam vívidas e não tinha mais ninguém por
perto para me distrair. Então eu fiz uma besteira, vovô. E
não estou sabendo lidar com as consequências...
Surpreendi-me ao constatar a facilidade com a
qual as palavras jorraram para fora de minha boca, tal
como um filete contínuo de água escorrendo de um balde
furado. Foi somente ali que me dei conta de quanto
precisava daquilo, de quanto era necessário desabafar.
Conforme ouvia minha própria voz narrando
detalhadamente os e-mails e a ligação, sentia como me
libertasse do veneno correndo em minhas veias.
Exatamente como no banho, falar com vovô foi purificante
para minha alma.
Ele, por sua vez, reagia com uma perplexidade
crescente. Às vezes, deixava escapar um “meu Deus” aqui
ou ali e, quando cheguei aos acontecimentos daquele dia,
sussurrou palavrões cheios de raiva. No fundo da ligação,
pude ouvir minha avó o bombardeando com perguntas
sobre que estava acontecendo. Vovô não respondeu
nenhuma, porém. Eu quase podia visualizá-lo em minha
cabeça, com o cenho franzido e a mão esticada em direção
a ela, como se, silenciosamente, a pedisse para ficar
quieta.
Por um lado, sentia-me péssima que ele
descobrisse sobre o passado de sua própria filha naquelas
circunstâncias, mas, por outro, entendia que era melhor
uma verdade doída a uma mentira confortante. Pelo menos
era o em que eu acreditava.
— Rebecca, quero que me escute com atenção,
tudo bem? — Pediu com um pouco de urgência, tão logo
terminei a sabatina. — Marcela estava com complicações
na gestação desde quando nos visitou, em Maio. Esse foi
o motivo dela ter vindo, meu amor! Não pense, de jeito
nenhum, que isso é culpa sua. Você a conhece, sabe como
ela é. Você sabe que... que ela faz de tudo... — Sua voz
vacilou e ele fez uma pausa.
Mesmo pelo telefone, consegui perceber que, por
uma fração de segundo, vovô quase chorou. E, com isso,
constatei que a única razão para ele não ter feito foi o fato
de estar conversando comigo.
— Marcela só quer te machucar, querida. Ela vive
para isso. — Vovô pigarreou. — Sua mãe nos ligou agora
pouco dando a notícia. Nós ficamos arrasados porque
ninguém merece a dor de perder um filho, nem mesmo ela.
Mas... — Novamente sua voz vacilou. — Eu não podia
imaginar que ela teve a coragem de... Pelo amor de Deus!
“Sua avó e eu estávamos discutindo agora mesmo
se deveríamos ou não te contar. Estávamos com medo de
como isso podia ser impactante para você. Infelizmente
você precisou lidar com muito mais, hein? Eu ainda nem
sei como digerir tudo. Quero dizer, nunca soubemos quem
era o seu pai e... droga! — Ouvi-o bufar com impaciência.
Conhecendo meu avô, eu sabia que a primeira coisa que
faria depois de falar comigo seria ligar para ela. Desde
muito nova, ele sempre tomou meu partido. — Becca,
nada disso é culpa sua. As decisões da sua mãe só cabem
a ela e você sabe que faríamos qualquer coisa por você,
não é?”
— Eu sei, vovô — respondi, pouco mais alto que
um sussurro. — Sinto muito aborrecê-lo com isso...
— Não, querida — ele me cortou. — O que me
aborrece é você ter guardado consigo coisas que são
pesadas demais para carregar sozinha.
Um calafrio percorreu minhas costas com o seu
tom de voz. Era claramente de uma reprimenda. E, se
existia algo que eu odiava, era decepcionar as pessoas
que mais amava no mundo.
— Nunca mais, em hipótese alguma, esconda nada
de nós, entendeu? — Suspirou com pesar. — Nós te
damos liberdade, te apoiamos, deixamos você tomar suas
decisões sozinha... A única coisa que pedimos em troca é
o diálogo.
Minha garganta arranhou. Por um momento, perdi
minha voz.
Céus, fui tão idiota! Estava tão envergonhada que
chegava a doer.
Cocei minha nuca, buscando uma coragem que
jamais veio.
— Ouviu?
— S-sim. Me desculpa. Achei que estava fazendo
o certo, mas não vai mais se repetir.
— Preciso que você me dê sua palavra, Rebecca,
de que não vai mais procurar sua mãe.
— Ela não é minha mãe — afirmei sem emoção.
— E, sim, eu prometo.
Problemas à minha esquerda, problemas à minha direita
Eu estive enfrentando problemas quase toda a minha vida
Meu doce amor, você vai me tirar dessa?

Cage the elephant – Trouble


Tamborilei os dedos no volante com
impaciência. Tão logo o semáforo abriu para mim, pisei
no acelerador, ansiando chegar em casa o quanto antes.
Desde quando encontrara o costumeiro lugar de Rebecca
vago na sala de aula — a primeira carteira da fileira do
meio —, soube que alguma coisa tinha dado errado.
Afinal, foram suas duas primeiras faltas na minha matéria
no ano inteiro. Ela esteve presente até mesmo em vésperas
de feriado, em que a maioria dos alunos simplesmente não
comparecia. E, para ela, que costumava ser disciplinada
de maneira quase obsessiva, aquilo era alarmante.
Passei o primeiro período inteiro preocupado e,
acima de tudo, estranhando aquele vazio de não tê-la por
perto. Não que eu tivesse qualquer tipo de interação
diferente dos demais alunos com Rebecca. Mas, só o fato
de poder espiá-la o tempo todo, imaginando toda a sorte
de coisas que gostaria de fazer quando estivéssemos a
sós, era o suficiente para que sua falta fosse muito notável
para mim.
Quando o intervalo chegou, disquei seu número
apressadamente. Estava ocupado. Depois de três
tentativas fracassadas, desisti, resignado. Saí à procura de
Nataly e Arthur e os encontrei sentados nos bancos de
cimento em frente ao bloco de Letras. Quando perguntei se
tinha acontecido alguma coisa para Rebecca ter faltado,
constatei, pelas expressões surpresas que fizeram, que
eles sabiam tanto quanto eu.
— Achamos que ela estivesse com você! —
exclamou Arthur e percebi o desconcerto em seu rosto. —
Isso é muito estranho. Becca não gosta de faltar nunca.
— Não mesmo — Nataly enfatizou. — Ela já até
brigou com a gente por isso.
— Eu sei... — É por isso que estou aqui, afinal,
pensei irritado. Expirei o ar dos pulmões, segurando-me
para não ser rude, no entanto. Esse era um defeito que eu
precisava aprender a lidar. — Tentei ligar, mas deu
ocupado.
— Será que não é bom irmos atrás dela? Pode ser
algo sério — Nataly sugeriu, olhando de Arthur para mim
sem parar.
— Acho que não. — Ele encolheu os ombros. —
Talvez ela tenha ficado lá justamente porque precisava de
um tempo sozinha.
Estreitei os olhos absorvendo as palavras e, ainda
que relutante, precisei concordar com ele.
— É... você está certo. Ela provavelmente teria
ligado para um de nós se fosse alguma emergência —
admiti, encolhendo os ombros. — Bem, se souberem de
alguma coisa, me avisem, ok?
Os dois assentiram, com olhares complacentes.
O restante da noite passou de maneira odiosamente
lenta, mas, por sorte, a apresentação do seminário do
segundo ano terminou muito antes do sinal da saída
reverberar, permitindo-me voltar para casa — o meu
maior desejo desde o instante em que notei a ausência de
Rebecca.
Estacionei o carro, esfregando o rosto. Ao pensar
em nós dois, senti uma pontada na boca do estômago. Eu
sabia que estava irreversivelmente fodido sempre quando
parava para refletir no quanto precisava dela por perto, no
quanto sua companhia era um elemento fundamental para a
minha felicidade. Se passar poucas horas longe daquela
garota já era um inferno, eu podia até antever como seria a
hora da despedida... Nós seríamos fortes o suficiente para
enfrentar o que nos aguardava? Eu temia que não.
Pulei para fora e, em passos apressados,
atravessei a entrada do prédio G. Eu morreria por um
pouco de nicotina correndo pelas minhas veias, mas havia
coisas mais importantes naquele momento. Subi as
escadas, sorrindo ao encontrar um punhado de memórias
pelo caminho. A cada novo degrau, uma lembrança
distinta cruzava comigo, e era delicioso poder revivê-las,
mesmo brevemente.
Ao alcançar a porta de seu apartamento, estaquei
no lugar. Quero dizer, eu realmente entendia sua
necessidade de espaço e respeitava, mas, por outro lado,
já tinha passado por momentos em que podia jurar querer
ficar sozinho quando, na verdade, o que mais ansiava era
calor humano para me acalentar. Além disso, não fazia
bem algum remoer coisas ruins e, sobretudo, imutáveis.
Ainda mais por tanto tempo. Então, se eu precisasse ser
um pouco inconveniente, tudo bem. Esse era o preço a se
pagar para vê-la com aquele sorriso lindo no rosto, o qual
a deixava com o nariz um pouco enrugado e me fazia
querer agarrá-la para nunca mais soltar. Droga, Rebecca
me deixava alucinado. No melhor sentido que essa
palavra pode abrigar.
Sem pensar vezes o suficiente para acabar
mudando de ideia, toquei a campainha. Dado o fato de que
ela demorou em dar um sinal de vida, fiquei atento aos
sons vindos lá de dentro. Tentei pela segunda vez e,
novamente, só tive o silêncio. Cadê você, donzela?,
perguntei-me, a preocupação subindo em espirais pelas
entranhas. Franzindo o cenho, apertei o botão novamente.
Paciência não era exatamente meu nome do meio.
— SÓ UM MINUTO! — sua voz veio abafada e,
poucos minutos depois, ela abriu a porta, enrolada em
uma toalha azul, com motivos da Corvinal. Dominei um
sorriso. Adorava aquele fascínio que ela tinha por seus
livros e adorava ainda mais que quase todas as suas
coisas fossem relacionadas a isso. Surpreendia-me o
quanto nos descobríamos, a cada dia, mais e mais
parecidos, a nossas maneiras.
Seus cabelos molhados pingavam nos ombros,
escorrendo em direção aos seios e traçando um caminho
para dentro do decote o qual eu adoraria percorrer com a
minha língua. Porra, Adônis, mantenha o foco!
Repreendi-me por não conseguir conter meus pensamentos
nem mesmo em uma situação séria. Mas o que eu podia
fazer se ela aparecia daquele jeito? Era para matar
qualquer um de tesão.
Involuntariamente, minhas mãos foram parar em
sua cintura, puxando-a para mim. Um sorriso surgiu em
sua boca, quando segurei seu rosto. Notei que os olhos
não acompanharam, porém. Roçando os lábios nos dela
suavemente, perguntei sem me afastar:
— Então é assim que você costuma atender a
campainha?
— Só quando você não está por perto — Ela
brincou e me senti aliviado por isso. Tão aliviado que
demorei em perceber a provocação.
— Ah, é? — Pisquei, empurrando-a com meu
corpo para dentro. — Vou me lembrar disso, donzela.
Talvez eu esqueça acidentalmente minha camiseta em
casa, da próxima vez que sair para treinar...
— Nãoooo! — Exclamou teatralmente e logo
estávamos os dois rindo.
Entrelaçando os dedos nos meus, ela me guiou
para a sala. Não pude deixar de sentir um cheiro diferente
quando atravessamos cozinha. Encarei Rebecca com
curiosidade, arqueando as sobrancelhas. Ela pareceu ter
lido meus pensamentos, pois respondeu a pergunta mesmo
sem eu jamais tê-la verbalizado.
— Tentei fazer purê de batatas hoje. Um. Simples.
Purê. De. Batatas. Achei que era capaz de preparar uma
receita aparentemente tão fácil...
— Nossa, por que sinto que o final dessa história
não é feliz? — indaguei, rindo.
— Porque você sabe, como eu já deveria saber há
muito tempo, que sou um desastre na cozinha. De alguma
maneira que até agora não entendi como, consegui
derrubar a panela e estava até agora tirando purê dos
lugares mais inimagináveis. Incluindo eu.
— Depois de ver como você descascou uma batata
lá no meu apartamento, nada mais me surpreende, donzela.
— Sorri com malícia e ela mostrou a língua.
Apesar de ela querer parecer bem — e até se
esforçar para isso —, eu sabia que algo, de fato, tinha
acontecido. Isso porque seus lábios estavam péssimos.
Principalmente o inferior, com pequenos hematomas
arroxeados espalhados por ele. Eu podia até imaginar
quem tinha a deixado daquela maneira. Usei o polegar
direito para contorná-lo com delicadeza.
— Parece que a Becca vampira está de volta.
— Não consegui me controlar.
— Por quê? O que houve?
Rebecca se limitou a dar de ombros, como se isso
respondesse perfeitamente bem minha pergunta.
— Senti sua falta hoje — admiti. — Fiquei
preocupado... você nunca faltou em uma aula minha.
— Não foi por querer. Quando percebi, já era
tarde demais. — Ela torceu os lábios em uma careta que
dizia “sinto muito”, desvencilhando-se de mim e, em
seguida, sumindo para dentro do quarto.
Joguei-me contra o sofá, para esperá-la se vestir.
Não que essa fosse a minha vontade naquele momento.
Porque nem de longe era. Minha vontade tinha mais a ver
com apoiá-la no encosto do assento e, ali mesmo, arrancar
sua toalha o mais rápido que pudesse. Droga, Adônis!,
revirei os olhos, irritado comigo mesmo. O fato é que
presenciá-la só de toalha tinha despertado um lado meu
que dificultava a concentração... Enterrei as mãos no
cabelo, tentando manter o foco. Rebecca precisava de
mim. Aquele não era o momento, embora meu corpo não
conseguisse entender isso.
Ela apareceu usando um vestido preto que se
destacava em sua pele lívida. Escovava o cabelo
distraidamente, os olhos mirando algum lugar muito
distante dali. Eram pequenos sinais como esse que
entregavam como ela verdadeiramente estava, embora não
quisesse admitir nem para si mesma. Conferi as horas em
meu relógio de pulso e me empertiguei.
— Seus amigos estão para chegar. Vamos para o
meu apartamento?
Suas íris de pistache encontraram as minhas e
percebi instantaneamente que pensava em se esquivar.
Chateava-me um pouco que ela estivesse tentando se
manter distante, porque tudo o que eu mais queria era
ajudá-la. Ao longo da noite, temi que ela estivesse tão
deprimida quanto ficou quando sua mãe entrou em contato
e, pior ainda, temi que tivesse passado horas chorando
por alguém que definitivamente não merecia suas
lágrimas. Mas aquele comportamento era inédito para
mim, eu não sabia exatamente como agir. Estava em
dúvida se deveria atender sua vontade explícita de
permanecer sozinha ou se essa era a sua maneira de pedir,
silenciosamente, justamente o oposto. Decidi pela segunda
alternativa, simplesmente por ser egoísta demais para sair
de perto dela. Não dava, eu a queria o tempo todo.
Calado, percorri a distância entre nós dois,
envolvendo-a em um abraço apertado. Meus polegares
passearam para dentro do vestido e se ocuparam em
massagear o começo de suas costas. Apoiei o queixo em
seus cabelos molhados, que cheiravam a shampoo. Ela
demorou um pouco para corresponder ao afago, como se
estivesse relutante. Então, sem mais nem menos, enlaçou
minha cintura, escondendo as mãos nos bolsos de trás da
minha calça.
Era um momento que dispensava palavras e, por
isso, permanecemos em silêncio. Eu teria ficado a noite
toda assim, se pudesse, no entanto sabia que a qualquer
segundo seus amigos estariam ali e eu ainda não estava
pronto para dividi-la com eles. Precisava arrancar alguma
informação dela primeiro. Precisava garantir que ela
ficasse leve novamente, porque Rebecca definitivamente
não combinava com aquela expressão desolada e confusa.
— Sabe que pode se abrir comigo, não? —
perguntei e ela meneou a cabeça, concordando. — Não
precisa, se não quiser. Mas acho que deveria tentar.
— Por quê?
— Porque não é bom manter a mágoa dentro de
nós, donzela. Do mesmo jeito que, se um espinho fura a
nossa pele, não podemos ignorá-lo ou ele eventualmente
inflamará. Precisamos arrancá-lo para a ferida cicatrizar
— Com um meio sorriso, ela assentiu.
— Esse é um bom ponto.
Segurei seu rosto com as duas mãos, buscando
seus olhos cristalinos. Então, quando tive certeza de que
podia mirar dentro de sua alma, beijei-a como gostaria de
ter feito desde que pisara ali.
— Me deixa cuidar de você — sussurrei em seu
ouvido, sentindo-a estremecer contra o meu corpo. Por
Deus, eu era viciado na forma como ela reagia aos meus
menores toques. Amava como sua respiração acelerava
quando eu me aproximava demais, amava deixar seus
pelos eriçados sussurrando em seu ouvido, amava os sons
que escapam de sua boca quando eu percorria suas curvas
com minhas mãos, apalpando-a, experimentando-a... Eu a
amava e os motivos apenas cresciam. Coloquei uma mexa
de cabelo atrás de sua orelha, erguendo seu queixo para
que me olhasse. — Castiel ainda não te viu hoje, aposto
que está com saudade.
— Ah, agora, sim, estou convencida! — Um
sorriso tímido surgiu em seu rosto, iluminando-o.
Castiel de fato parecia com saudade de Rebecca.
No momento em que pisamos em casa, ele correu para as
pernas dela, como um pequeno pedaço de metal sendo
atraído por um ímã. Depois de se esfregar o suficiente
para que conseguisse ganhar colo, não saiu mais de cima
dela. Permaneceu lá, amassando pãozinho e ronronando
até encontrar uma posição agradável e dormir a sono
solto.
Certa vez ouvi dizer que os gatos têm o poder de
absorver as energias negativas de nós, humanos, e, aos
poucos, transformá-las em coisas boas. Aliás, esse seria o
motivo para dormirem tantas horas — precisavam repor
as forças, afinal. Nunca duvidei disso uma vez que, noite
após noite, ao acordar de um pesadelo aos berros, Castiel
estava ali para mim. Ele miava até eu pegá-lo e só saía de
perto de mim depois de eu me acalmar. Desde que
apareceu em minha vida, ele foi o melhor amigo que eu
poderia ter. Não só nos momentos de alegria, mas,
principalmente nos de desespero.
No entanto, naquela noite, tive a certeza dos seus
“poderes curativos”. Conforme os minutos viravam horas,
o estado de espírito de Rebecca se transmutava e, aos
poucos, ela voltava a ser a garota incrível por quem me
apaixonei.
— É abuso demais eu pedir para você preparar
alguma coisa para mim? — perguntou ela logo que
chegamos, pestanejando além do normal.
Ri em deleite, dando de ombros.
— Bom, tudo na vida tem um preço, você sabe.
— E o que vai me custar?
— Negociamos mais tarde — respondi, apenas
para vê-la toda vermelha. Não importa quanto tempo
passássemos juntos, Rebecca sempre corava com as
minhas brincadeiras. E, para mim, esse era um motivo
muito bom para continuar fazendo. Era uma delícia
presenciá-la toda sem jeito. — Você não comeu nada a
noite toda?
— Nem deu tempo, na verdade. Eu precisei limpar
a bagunça do purê e tomar um banho, daí você já chegou.
O que foi muito bom, porque sua comida é deliciosa.
— Minha... comida. Entendi. — Assenti, mantendo
a expressão séria. Em uma fração de segundo seu rosto
ficou inteiro vermelho, tal como costumava ficar depois
de corrermos em volta do estádio. Sua risada pairou ao
nosso redor e isso me aqueceu por dentro. Rebecca me
trazia vida, isso era inegável.
— Seu safado!
— Só para você. — Lancei uma piscadela e, como
resposta, ela me mandou um beijinho no ar. — Enfim,
você quer comer o quê?
— Alguma coisa leve. Eu... hum... vomitei um
monte hoje. Não estou sentindo fome, mas preciso forrar o
estômago.
— Sopa, então? — indaguei.
— Sopa está ótimo.
Assenti, tomando do suporte fixado na porta o
presente que ela havia me dado há alguns dias. Tratava-se
de um imenso avental cuja estampa era nada menos que o
dorso do Darth Vader. Nunca fui de usar aventais, mas
aquele tinha obviamente um valor sentimental para mim
— além de ser foda, é claro. Eu poderia até mesmo usá-lo
para dar aula, embora não fosse fazer isso por motivos
óbvios. Passei-o pelo meu pescoço e amarrei as pontas,
sentindo-me como um verdadeiro Sith. Rebecca riu
genuinamente, como em todas as vezes em que me
presenciou usando.
Então, durante o tempo em que me ocupei
cozinhando, fiz o possível para mantê-la conversando
animada comigo. Embora isso não me ajudasse a avançar
no porquê de ela ter faltado na aula, já era o suficiente
para distraí-la e, no final, eu sabia que acabaria se
abrindo quando estivesse preparada. Só o fato de ela não
estar mais com o olhar desolado em sua feição já me
deixava aliviado e feliz. Aquela garota tinha me resgatado
quando eu mais precisava de ajuda. Ela tinha mudado
minha vida sem ao menos perceber, eu só queria fazer o
mesmo por ela.
Levante, vá embora, saia de perto desses mentirosos
Porque eles não têm sua alma ou sua chama
Pegue minha mão, entrelace seus dedos entre os meus
E nós sairemos deste lugar escuro pela última vez

Snow Patrol – Open your eyes


Foi somente depois de jantarmos que Rebecca
conseguiu se abrir comigo. Não precisei perguntar nada,
ela simplesmente pigarreou e começou a narrar os
acontecimentos do dia. Falou sobre a ligação de sua mãe,
sobre sua conversa com o avô e tudo o que havia tentado
fazer depois para se manter firme. Ela não vacilou em
momento algum, no entanto. Seu tom de voz era comedido.
Ela parecia anestesiada, distante. Entendi no mesmo
momento o quanto lutava, com unhas e dentes, para não se
deixar abalar. E, se tinha como, amei-a ainda mais.
Um dos aspectos que eu mais gostava em Rebecca
era sua força de vontade, a maneira como ela se dedicava
para alcançar seus objetivos — que consistiam
basicamente em ser o mais discrepante possível de sua
mãe. Não que fosse preciso muito esforço para isso, se
toda a forma.
Enfim, eu também já tinha sofrido e sabia
exatamente como era estar no lado de lá. Mas se tinha
conseguido me reerguer, certamente foi com a ajuda das
pessoas ao meu redor. Meu pai, aquele homem incrível
que me ensinou tanto da vida; minha mãe, com seu punho
firme que eu herdei; além dos meus amigos, que nunca me
deixaram fraquejar. Já ela, não. Ela encontrava força em
si mesma, como se batesse o pé e dissesse para a vida que
não ia aceitar que as coisas fossem de jeito nenhum se não
do dela. É claro que também precisava de ajuda, mas o
ponto é que ela conseguia dar conta do trabalho mesmo
sozinha. E isso era admirável.
Mas mesmo as pessoas mais fortes têm seus dias
ruins — e aquele obviamente era um. Apesar de o brilho
nos seus olhos suavizar conforme os ponteiros no relógio
avançavam, eu ainda conseguia enxergar a mágoa neles.
Estavam escondidas (muito bem, aliás), mas ainda
estavam lá.
Foi por isso que, depois de ouvi-la pacientemente,
resolvi que era a minha hora de falar. E falaria todas as
coisas que ela precisava ouvir naquele momento. Tirei
Castiel de seu colo — que não gostou nem um pouco —, e
a tomei em meus braços. Rebecca arfou em surpresa e
depois riu, abraçando-me pelo pescoço. Percorri o breve
trajeto até o quarto, onde a soltei levemente sobre a cama,
rastejando sobre ela em seguida e parando pouco antes de
alcançar os seios. Cruzei os braços sobre sua barriga,
apoiando o rosto neles. Busquei seus olhos, encontrando-
os fixos em mim.
— Você precisa ouvir o seu avô. Sabe disso, né?
— Eu sei.
— Não pode mais procurar essa mulher.
— Não vou — murmurou.
— Imagino que deve ser foda passar por tudo isso,
donzela, e não quero diminuir o seu sofrimento, só que
você precisa enfrentar o passado. Precisa mesmo. —
Pigarreei, parando por um momento para pensar melhor
nas palavras. — Sua mãe sempre vai fazer parte da sua
história. Assim como Cecília sempre vai fazer parte da
minha. Cada vez que eu olhar para trás, o acidente de
carro estará lá. A morte dela estará lá. Não tem como
mudar isso, entende?
“E também não deixa de doer nunca mais —
admiti, com um sorriso amargurado. — A maior mentira
que nos contam é que, com o tempo, a ferida para de
incomodar. Porque não para, Becca. Ela diminui a
intensidade, mas continua lá. O que precisamos é nos
acostumar com ela e aceitá-la como parte de quem somos.
Quanto antes você se conformar com isso, melhor. Merdas
acontecem com todo mundo, o tempo todo. A vida não é
justa, você sabe disso. Todos sofrem, isso faz parte do que
é viver. Você mesma me disse uma vez que os momentos
ruins servem para intensificar os bons, lembra?”
— L-lembro — balbuciou, com os olhos brilhando
intensamente atrás das lentes dos óculos.
Deixei um beijo no meio dos seus seios, sentindo
o tecido áspero do tecido em meus lábios.
— Deixe o passado para trás. Tranque-o e jogue a
chave fora! Viver é nada mais, nada menos do que
levantar a cada tropeço e seguir em frente da melhor
maneira que podemos. — Inclinei o tronco, mantendo-me
apoiado nos cotovelos. Precisava ter a total visão de seu
rosto. — Esqueça que essa pessoa desprezível é a sua
mãe. Apague ela da sua memória, porque você não
precisa nem nunca precisou do amor dela. Seus avôs te
amam muito e fizeram um ótimo trabalho. Olhe para você!
“Mas, além deles, tem muitas outras pessoas que
te amam e vão continuar aparecendo outras pelo caminho.
Porque, Becca, você é incrível. Nada do que ela disser
vai mudar isso. Então... se eu realmente puder te dar um
conselho como alguém que já quebrou a cara e quer muito
o seu bem, pare de pensar nela cada vez que for tomar
uma decisão. Pare de se cobrar tanto e viva a sua vida. A
única coisa que você precisa querer de uma pessoa que te
fez tão mal é distância. Deixe-a no seu passado e só assim
será verdadeiramente feliz.”
Uma lágrima corpulenta escorreu de seu olho
esquerdo, traçando um caminho brilhante em sua maçã.
Limpei-a com meu polegar pouco antes de procurar sua
boca para um beijo. Minha língua procurou pela sua ávida
de desejo. Não existia momento algum em que meu corpo
se cansasse do dela. Nós éramos como duas peças de
Lego que só se encaixavam entre si.
Ao afastar o rosto alguns centímetros, ela sorria.
Pela primeira vez na noite, um sorriso radiante e intenso.
— Eu mal podia sonhar com o quanto você é
incrível... Quando descobri que era o meu novo vizinho,
pensei “meu deus, sou tãooo azarada!” — Ela riu
baixinho. — Mas, nossa, na verdade eu tenho muita sorte.
— Quem tem sorte sou eu, donzela — respondi,
esticando o tronco para alcançar um marcador permanente
sobre o criado-mudo mais próximo de mim. — Tenho
sorte porque cada pedacinho de você é perfeito para mim.
Sem dizer palavra alguma, ela me observou com
curiosidade enquanto eu destampava a canetinha. Usei os
braços para elevar o corpo até que estivesse sentado,
então segurei seu pé direito e, conforme falava com ela,
escrevia no dorso dele as mesmas palavras que dizia.
— Adoro sua coragem de falar o que vem na
cabeça, adoro que você não abaixe a cabeça para as
pessoas, adoro que você seja tão persistente e até um
pouco... teimosa.
— Assim vou me apaixonar de novo, Chewie. —
Piscou, com uma expressão travessa no rosto. — Não está
facilitando as coisas para mim.
— Bom, eu te prometi na Ilha do Mel que ia me
esforçar o máximo para isso, lembra?
Rebecca agarrou um travesseiro e o jogou contra o
meu tronco. Nossas risadas preencheram o quarto.
Aproveitei o momento para subir um pouco o seu vestido,
deixando as coxas desnudas. Ela arfou e percebi seus
músculos tensionando um a um quando comecei a escrever
na parte interna delas.
— Adoro sua franjinha que te deixa com cara de
mais nova, adoro o quanto tenho vontade de sugar seus
lábios toda vez que estão assim, adoro te observar quando
está concentrada com alguma coisa, principalmente
estudando.
Levantei-me da cama e a puxei pelas pernas, até
que elas estivessem ao meu redor. Não me importei em
esconder que estava excitado, queria ela bem consciente
disso. Bem consciente do quanto me deixava faminto e de
que somente ela podia saciar a minha fome.
Então, inclinando-me sobre ela, subi o tecido
preto de seu vestido, deixando-a somente de roupa de
baixo. Notei seus braços arrepiados e sorri de prazer. Foi
a vez de escrever na barriga. A cada letra desenhada,
Rebecca contorcia levemente os quadris e era preciso o
dobro de autocontrole para não arruinar nosso jogo.
— Adoro sua curiosidade, adoro o quanto você é
desastrada, adoro te ver usando minhas camisetas porque
te deixa ainda mais gostosa.
Minha mão deslizou para cima, parando sobre
seus seios.
— Eu adoro... — comecei, mas minha frase
morreu no ar quando ela mordeu o lábio inferior de
maneira provocativa. — A-adoro... — Sua mão avançou
para dentro da minha calça e, instantaneamente, esqueci o
que falava.
— Adora o quê?
Fechei os olhos brevemente, sentindo seus dedos
se fecharem ao meu redor. Ela gemeu baixinho, acendendo
algo dentro de mim que era impossível de ignorar. Dane-
se, não dá mais, pensei, tirando a minha camiseta com
facilidade.
— Adoro te ver sem roupas — foi a vez dela falar.
Tinha uma expressão travessa no rosto. — Adoro o quanto
você fica sem controle quando está com tesão. Adoro os
sons que solta quando eu faço isso... — Ela aumentou a
pressão com a qual me tocava, arrancando um gemido
gutural de mim. — Adoro te ter em mim...
Porra!
Cego de vontade, invadi sua calcinha com os
dedos, ávido por ouvir seus gemidos doces. Alcancei o
meio de suas pernas e, no mesmo instante em que os
deslizei para dentro dela, seus quadris se contorceram.
— Adô... Adônis...
— Adoro como geme meu nome — sussurrei,
deliciado com a maneira como suas pernas tremiam
levemente e os olhos se apertavam com força.
Segurando-me com força pelos cabelos, ela me
puxou para um beijo cheio de urgência. Gemi em sua
boca, louco de vontade de consumi-la até esgotar todas as
suas forças. E isso era exatamente o que eu faria.
Medindo cada reação, dedilhei seu corpo como se
fosse um instrumento em cujo som eu era viciado. A
música que fazíamos juntos era a que eu mais gostava no
mundo todo. Aos poucos, Rebecca se contorceu mais e
mais, preenchendo o quarto com seus sons deliciosos. Até
que, de repente, convulsionou inteira e, desmanchando-se
em espasmos, exclamou meu nome. Gemi junto dela,
constatando que não conseguiria me segurar por nem mais
um único segundo que fosse. Eu precisava fazer amor com
Rebecca, precisava senti-la, precisava ouvi-la gritando o
meu nome mais vezes.
Esperei suas pálpebras se erguerem, relevando as
íris verdes que ardiam intensamente. Com um sorriso no
rosto e incapaz de falar uma palavra sequer, tirei o que me
restava de roupa o mais rápido que pude, sem quebrar o
contato visual, no entanto.
— O que voc...? — começou, mas a interrompi.
— Shhhh.
Segurando suas pernas, encaixei meus ombros nas
dobras de seus joelhos e deslizei para dentro dela,
sentindo-a quente e úmida ao meu redor. Soltamos um
gemido que saiu em uníssono.
— Quero te levar ao ápice comigo, minha donzela.
Uma vez... duas... até não aguentarmos mais. — Sussurrei
em seu ouvido e não estava brincando. — Porque eu
adoro o quanto nossos corpos são incríveis juntos.
Eu cometi erros, mas acredito que tudo valeu a pena
Porque no final, a estrada é longa
Mas apenas porque te faz forte
Está cheia de altos, voltas e reviravoltas
Às vezes você tem de aprender a esquecer
Marina and the Diamonds – Forget

Abri os olhos, incomodada com um feixe de luz


entrando pela fresta da cortina e parando de maneira
deveras irritante sobre o meu rosto. Piscando algumas
vezes, deixei que minha mente despertasse ao seu tempo.
Lá fora, os pássaros cantavam alegremente, sugerindo que
ainda era bem cedinho — a minha parte favorita do dia.
Estiquei o braço e pesquei o celular de cima do criado-
mudo, não passava das sete. A constatação me deixou
animada. Eu adorava todas as possibilidades existentes
para uma nova manhã.
Espiei por cima do ombro e descobri que Adônis
ainda dormia. Era a primeira vez que eu acordava antes
dele e isso me arrancou um sorriso. Em parte porque eu
sabia que ele estava cansado depois da noite... agitada
que tivemos, se é que você me entende. Mas,
principalmente, porque sentia um calor gostoso ao
presenciá-lo dormindo com tamanha tranquilidade. Ainda
mais por saber que ele passara tantos anos tendo sonos
inconstantes e, nem de longe, reparadores.
Por mais tentador que fosse enterrar os dedos em
seus cabelos macios até suas íris de Outono se revelarem
para mim, decidi que ele merecia descansar o quanto seu
corpo pedisse. Já eu, não conseguiria voltar a dormir nem
mesmo se tentasse e, por isso, fiz o possível para me
desvencilhar de seus braços fortes sem despertá-lo. O que
não foi bem sucedido com Castiel, que se espreguiçou
graciosamente e me fitou com seus enormes e
desconfiados olhos de safira. Encolhi os ombros, como se
me desculpasse por arruinar seu soninho, no entanto
recebi apenas um miado rouco e duro como resposta.
Já em pé e do lado da cama, gastei alguns minutos
observando Chewie. Um pouco assustador da minha parte,
eu sei, mas o que podia fazer se ele simplesmente ficava
lindo até mesmo dormindo? Quero dizer, eu, por exemplo,
ficava um fiasco e tinha total consciência disso, ainda
mais considerando o fato de que babava durante o sono.
Mas ele não. Estava tão sereno que minha vontade era de
me abrigar novamente em seus braços e ficar ali apenas
aproveitando seu perfume amadeirado e seu calor
aconchegante enquanto as horas passavam.
Não foi o que fiz, no entanto. Em vez disso, rumei
para o meu apartamento e, considerando a hora, qual não
foi minha surpresa ao me deparar com aquele delicioso
cheirinho de café me esperando antes mesmo de eu abrir a
porta? Encontrei Arthur em frente a pia, ocupado em
passar o café fumegante. Tinha os cabelos despenteados e
os olhos castanhos um pouco inchados de sono. Estava
genuinamente intrigada por ele ter caído da cama tão
cedo, justamente no mesmo dia que eu, quando, em um dia
normal, ele provavelmente acordaria dali a, no mínimo,
uma hora e meia. E só porque precisava trabalhar, caso
contrário meio dia seria cedo para ele. Meu amigo era um
dorminhoco assumido.
Ele não olhou em minha direção, sequer me
recepcionou. Estranhei seu comportamento e, ao me
aproximar um pouco, descobri que estava com os fones de
ouvido. Mesmo a alguns centímetros de distância, o som
era audível para mim. Eu não conseguia entender como
Arthur ainda não tinha ficado surdo, ouvindo música
naquela altura.
Fisguei os lábios e, devagarzinho para não acabar
chamando sua atenção, esgueirei-me pela cozinha,
percorrendo a distância entre nós. Abracei-o por trás,
fazendo-o dar um pulinho sobressaltado no lugar. No
mesmo instante, Arthur arrancou os fones, lançando-me
um olhar irritado.
— Jesus, Becca! Está querendo me matar ou o
quê?
— Matar está fora de questão — Deixei um beijo
estalado em sua bochecha. — Não esperava te achar
acordado tão cedo.
— Minha chefe ligou avisando que a escola não
vai abrir hoje — explicou com sua voz arrastada. —
Estamos de luto.
— Nossa, quem morreu?
— Não faço a menor ideia. — Deu de ombros,
fazendo-me rir.
— Lily ainda está dormindo? — indaguei, apenas
para puxar assunto.
— Uhum. Nós ficamos acordados até tarde... —
sua voz morreu no ar. Então, piscando os enormes olhos
algumas vezes, ele pareceu se lembrar de algo muito
importante, pois se empertigou no lugar, encarando-me
com expectativa. — Você sumiu ontem, bonequinha!
— Devia ter avisado vocês, mas é que não foi de
propósito, eu só... bem, só precisava de um tempo para
colocar a cabeça no lugar. — Encolhi os ombros. — Foi
mal.
— É, todo mundo tem os dias que só quer
escapar... — falou baixinho, como se tivesse externado o
pensamento sem ao menos se dar conta.
Arthur tampou a garrafa térmica tão devagar que
tive vontade de tomá-la de suas mãos e fechar eu mesma.
Em passos tranquilos, levou-a até a nossa mesa de
carretel, junto de duas xícaras de porcelana que não
combinavam entre si, para só depois me olhar com
atenção.
— O que aconteceu? — perguntou, sério. Sério até
demais, eu diria. — E nem adianta dizer que não foi nada,
porque você nunca faltou antes e, além disso, sua boca
está horrível e eu sei que você só faz isso quando está
mal!
— Caramba, por que todo mundo sabe disso? — A
pergunta simplesmente escapou. Porém, pela expressão
impaciente que ele fez, cheguei à conclusão de que não foi
exatamente no melhor momento. Suspirei fundo, encarando
meus próprios pés para fugir de seu olhar. — Minha mãe
— falei simplesmente.
Meu amigo arrastou uma cadeira, sentando-se à
mesa. Em seguida, encarou-me com um olhar que,
silenciosamente, fazia o convite para eu imitá-lo. Assenti,
pegando uma caixa de leite na geladeira antes de me juntar
a ele. Tomei a garrafa térmica e nos servi em questão de
segundos.
— Eu nunca te contei sobre ela, né? — perguntei,
apesar de saber que não. Foi a minha maneira de começar
o assunto. Estava na hora de me abrir para ele, pois, no
fim das contas, eu já sabia sobre sua história de vida há
muito tempo.
Com o rosto escondido por trás da caneca, ele
balançou a cabeça em negativa. Eu o conhecia bem o
suficiente para perceber a atmosfera entre nós mudando.
Senti a expectativa emanando dele para mim, de maneira
crescente. Sorri internamente, por algum motivo
lisonjeada pelo seu interesse na minha vida. Sentia-me um
pouco culpada por Nataly não estar ali também.
Veja bem, eu disse um pouco.
Embora eu a amasse muito, nem de longe tínhamos
uma ligação tão forte quanto a que eu sentia por Arthur —
e sabia que ele também sentia por mim. Eu não acreditava
em outras vidas, mas se elas existissem, provavelmente já
teríamos nos esbarrado antes. Tenho certeza disso.
— Que bom que já está sentado... porque a
história é grande! — Comentei e rimos baixinho.
Mordisquei a parte interna da bochecha, reunindo a última
dose de coragem necessária, antes de começar a contar o
passado como se me despedisse dele.
Eu não estava magoada com o acontecimento de
ontem. Apesar de ter ficado um pouco pensativa e reclusa,
foi apenas refletindo sobre a minha vida até ali. As
minhas escolhas, minhas memórias... enfim. Não foi em
nada parecido com o dia em que Marcela me contou sobre
a nossa história, por exemplo, que fiquei no fundo do
posso.
O fato de ela jogar em mim uma culpa que não me
pertencia nunca foi uma novidade. Mas, no caso da filha
que ela carregava no ventre, só me mostrou o tamanho de
seu desequilíbrio. E, então, comecei a enxergar o outro
lado da moeda com clareza e pensar que talvez eu tivesse
muita sorte na situação toda. Era melhor que ela nunca
houvesse nutrido nenhum tipo de interesse por mim, de
certa forma. Eu tinha sido feliz, afinal. Mesmo com uma
porção de eventos traumáticos, era como Adônis tinha me
falado — meus avós fizeram um excelente trabalho. A
felicidade se sobressaía.
Eu realmente precisava virar a página e estava
concentrada demais nisso para me permitir abalar. Decidi
que aquela fora a gota da água. Dei todas as chances que
poderia dar para nós duas, arrisquei todas as tentativas de
aproximação, por várias vezes ofereci meu amor pedindo
somente um pouco de empatia em troca. Agora, no entanto,
eu só queria distância. E me sentia grata por ter finalmente
acordado de uma ilusão criada em minha cabeça de que
tudo um dia poderia mudar.
Aquele era o desfecho da minha história com ela.
Eu não percebi o momento exato em que Arthur
agarrou minha mão com tamanha força. Só sei que,
enquanto colocava para fora tudo o que mantive guardado
em mim por tanto tempo, meus dedos começaram
formigando, como se implorassem por um pouco de
circulação sanguínea. Mesmo assim, não me movi um
único centímetro. Não tinha como, eu me sentia tão
acolhida por ele, mesmo que ainda não tivesse falado uma
única palavra que fosse. Bastava a maneira atenciosa
como olhava para mim, ou então o polegar subindo e
descendo com leveza pelo meu pulso. O amor morava nas
sutilezas, afinal.
— Adônis me disse que preciso ouvir o meu avô e
deixá-la no passado. Acho que eles têm razão — concluí,
parando para tragar um pouco de ar. Eu parecia ter me
esquecido de respirar durante a sabatina.
Meus olhos ardiam intensamente, como se
estivessem prestes a transbordar. Eu não queria isso. Ao
procurar as íris do meu amigo, encontrei-as da mesma
maneira. Brilhavam intensamente como se ele lutasse para
conter a água ali.
Sem dizer palavra alguma, ele se levantou — no
seu característico ritmo moroso, é claro —, dando a volta
na mesa para me abraçar. Seus braços me contornaram
pelo pescoço, como se me desse um mata leão, ao passo
em que repousou o queixo no meu ombro direito.
Perdi a noção de tempo enquanto sentia sua
respiração morna vir em lufadas contra a minha nuca.
Diferente do que acontecia com Adônis, no entanto, elas
não me deixaram arrepiada, nem nada, no mínimo,
parecido. Estranhamente, foi confortante um pouco de
calor humano, sobretudo de uma pessoa tão especial para
mim.
Fechei as pálpebras, permitindo-me receber o seu
carinho. Era bom ter alguém com quem me abrir
inteiramente. Alguém que me entendia e sabia me
confortar sem o menor esforço. Céus, como era bom saber
que não estava sozinha naquele mar revolto que era a
vida.
Arthur me pegou de surpresa ao afundar o rosto na
curva entre o meu pescoço e o ombro, deixando um beijo
estalado ali. Então, afastou-se de mim, deixando um vazio
onde estivera. Como percebi que ele não voltaria a se
sentar ali, levantei-me em seguida e, juntos, fomos para a
sala.
Ele se jogou contra o sofá maior, buscando uma
almofada que colocou no colo. Depois deu três batidinhas
com a mão sobre ela.
— Vem cá! — chamou, sorrindo largamente.
Sem pensar duas vezes, atirei-me em seu colo,
como uma criança manhosa. Era bom ser confortada e
esse era um aspecto meu que também tinha mudado na
faculdade. Se antes eu considerava fraqueza precisar de
ajuda, agora eu me sentia grata por ter tantos braços
amigos abertos para mim.
— Não acho que Adônis nem o seu avô estejam
errados. — Começou, e tinha o olhar distante, de quem
pensava com calma nas palavras. — Só que também não
acho certo você simplesmente esquecer tudo o que ela te
fez sem colocar um ponto final antes. Não é justo só você
sair prejudicada.
— O que quer dizer?
— Eu não contei para ninguém antes, mas acho que
é o momento certo para isso... Pode te ajudar. — De cima,
ele me fitou brevemente nos olhos. — Lembra que eu
entrei em contato com a minha tia logo quando meus
pais... hum... me deixaram na mão?
— Uhum — murmurei, curiosidade me dominando
em uma velocidade surpreendente.
— Bom, ela ficou puta. Eu sabia que ficaria,
porque ela nunca concordou com a minha mãe em várias
coisas, principalmente em relação a mim. Minha tia
também é a minha madrinha — explicou, com um sorriso
tímido. — Enfim, ela tentou de toda forma fazer meus pais
mudarem de ideia. Primeiro de um jeito civilizado e,
como eles não cederam, começou a baixar o nível até
chegar às ameaças. Eles não voltaram atrás mesmo assim.
“Eu pedi para ela deixar para lá, porque isso
estava mexendo muito comigo, Becca. Você deve entender
mais que ninguém o quanto dói a rejeição da própria
família. — Sua voz vacilou e ele precisou pigarrear para
continuar. — Além do mais não é como se estivesse
fazendo falta o apoio deles, né? Eu estou trabalhando,
consigo arcar com minhas despesas. E, além de tudo,
minha tia, sendo a pessoa incrível que é, começou a
enviar uma mesada que uso para pagar minha parte do
aluguel. Isso aliviou bastante as coisas.”
— Jura? — não me contive. Fiquei tão feliz com a
descoberta que a pergunta simplesmente pulou para fora.
— Arthur, que coisa maravilhosa! Que bom que sua tia
não é nada como eles.
— Pois é, ainda bem que ela se importa tanto
comigo. Nem todos têm a mesma sorte. — Falou com
amargura. — Mas esse ainda não é o ponto que eu queria
chegar. — Coçou a ponta do nariz, parando por um breve
momento. — Por mim teria ficado por isso, exatamente
como você quer fazer agora. Mas minha tia bateu o pé
insistiu que não podíamos deixar barato. Ela me disse que
não era justo eles me fazerem mal sem serem punidos por
isso, porque, segundo ela, toda ação tem uma reação. E a
deles também precisa ter.
Uau!, foi a única coisa que consegui pensar.
Desejei com todas as forças conhecer sua tia. Ela era
incrível simplesmente por amar tanto o meu amigo e isso
já era um motivo e tanto. Eu me sentia grata por ele não
estar totalmente desamparado.
— Um pouco antes de a Nataly voltar para casa,
minha tia me ligou para perguntar se eu queria entrar com
uma ação judicial contra os meus pais. Primeiro eu fiquei
perplexo, porque nunca me passou pela cabeça essa
possibilidade. Fiquei com medo, sei lá. Essas besteiras
que nosso cérebro nos faz passar quando é preciso tomar
uma decisão importante. — Ele deu uma risadinha
nervosa e foi impossível não rir dele. — Mas daí ela me
explicou que tinha entrado em contato com um advogado
com fama de imbatível, lá da cidade dela. Chama Felipe
Antunes, ou algo assim. Ela explicou toda a situação e
perguntou se existia algo que pudéssemos fazer a respeito.
Então ele disse que eu podia processar meus pais por
abandono afetivo, porque, de acordo com a lei, tenho o
direito de ser sustentado até terminar a faculdade e poder,
de fato, me estabilizar.
— Meu Deus, Arthur! — exclamei, tentando
organizar toda aquela profusão de informações na minha
cabeça que, de repente, pareceu pequena demais para
tantos pensamentos.
Como eu não sabia de nada daquilo? Céus! Tantas
coisas importantes acontecendo com o meu amigo e eu não
fazia a menor ideia.
— Eu sei — suspirou.
— E qual foi a sua decisão?
— Não me julgue, mas eu... aceitei — falou ele,
pouco mais alto que um sussurro. Então, suas próximas
palavras saíram atropeladas umas nas outras. — Pensei
bastante no começo, porque, bem ou mal, eles me criaram
por todos esses anos e me deram qualidade de vida. Só
que, por outro lado, não se pode jogar um ser humano fora
desse jeito, sabe? Eu não fiz nada de errado para precisar
ser punido. Eles, sim, fizeram!
Ele concluiu me encarando com os olhos ainda
mais esbugalhados que o normal. Fui tomada por uma
onda de compaixão. Quero dizer, eu bem sabia como era
terrível viver com o peso de uma culpa de outra pessoa.
Pagar pelos erros que não nos pertenciam. Sabia como era
querer conseguir odiar alguém e, ao mesmo tempo, ficar
mal por isso.
— Eu jamais te julgaria, Arthur! — falei
genuinamente, usando os braços para elevar o tronco até
conseguir abraçá-lo. — Só você pode decidir o que é
certo ou errado na sua vida. A única coisa que mudou
entre nós dois é que eu te admiro ainda mais por ser tão
corajoso!
Como resposta, ele cutucou minhas costelas e me
contorci para me esquivar de seus dedos magros, em meio
a risos.
— Pense bem nessa possibilidade, Becca. Sei que
não é uma decisão fácil, mas, independente da sua
escolha, eu estarei do seu lado.
— É, eu sei que sim.
Nossa conversa se estendeu por horas, até Nataly
irromper na sala, com uma expressão vaga de quem havia
acabado de acordar e não fazia a menor ideia do que
acontecia ao redor. Arthur e eu trocamos um olhar longo e
repleto de cumplicidade. Eu soube, no mesmo instante,
que tudo o que conversamos ao longo da manhã seria algo
apenas entre nós, um segredinho nosso. E, por alguma
razão, a sensação me agradou — e muito.
Não se esqueça de mim, meu amor
Eu só quero segurar sua mão
Pendurar em cada palavra que você diz
Vamos escrever uma canção para nós
E cantar até que estejamos velhos e grisalhos

The Civil Wars – Forget me not


Minha conversa com Arthur ecoou em minha
mente ao longo de semanas. Assim como ele, a
possibilidade de processar minha progenitora jamais
passara pela minha mente e, por isso, cada vez que eu
refletia sobre o assunto, sentia um misto de euforia e
medo. Não que eu quisesse me vingar, nem nada parecido.
Porque realmente não tinha nada a ver com isso. Eu decidi
levar em conta o conselho de meu avô e Adônis — seguir
em frente. Deixar o passado no único lugar onde ele
deveria ficar. Mas, para isso, era necessário um ponto
final. E eu sentia, dentro de mim, que esse era um ponto
final mais que pertinente à minha história com Marcela.
Concordava com o meu melhor amigo quando ele
afirmava que nós dois não podíamos ser os únicos a
saírem prejudicados. Porque no fundo, era isso.
Exatamente isso. Não era justo que ela tivesse feito tantas
coisas ruins para mim e ficasse por isso mesmo. Eu não
podia arcar com suas escolhas erradas. E a faria ver isso,
empurrando-as novamente em sua direção.
Apesar de ruminar a ideia por tanto tempo,
somente no dia vinte e dois de setembro, meu aniversário,
consegui admitir para mim mesma o quanto essa decisão
era importante para que eu pudesse me libertar. Ao
completar meus dezoito anos, senti uma onda paralisante
de urgência. Lembrei-me de quantas vezes desejei
ardentemente ser adulta apenas para ficar longe de
Marcela. Parecia tão distante da minha realidade na época
e, no entanto, chegou sem que eu sequer notasse. E agora
que tinha a vida toda pela frente, à minha maneira, não
admitiria que ela fizesse parte da minha história. Não,
essa nova história era eu quem escrevia. Eu decidia o que
acontecia e mais ninguém. Como quando me mudei para
Maringá, senti-me verdadeiramente a protagonista.
Existe algo inexplicável sobre atingir a
maioridade — sentimos o peso do mundo recair sobre os
ombros. Ao menos foi assim para mim. E, de repente,
entendi o que todos queriam dizer sobre a vida ser uma só
para a desperdiçarmos. Ela é longa o bastante para
cometermos tantos erros quanto forem precisos e também
para nos importarmos com as coisas erradas antes de
conseguirmos distinguir as certas; no entanto, a vida é
também em um piscar de olhos e, quando menos se
percebe, já passou. Então, quanto antes ficamos de bem
com nós mesmos, menos precisamos quebrar a cara. Acho
que ninguém quer persistir no sofrimento quando a
felicidade está logo adiante, certo?
Foi por isso que, antes que meus avós tivessem a
oportunidade de me ligar para dar as felicitações, tomei a
iniciativa de telefonar eu mesma. Desci para o
estacionamento, a fim de não ser interrompida por
ninguém e, andando de um lado para o outro, disquei o
telefone já decorado de vovô. Sabia que a chances de ele
entender as minhas motivações seriam bem maiores,
porque, no fim das contas, se existia alguém no mundo
com quem eu me parecia, certamente era o meu avô. Céus,
nós podíamos não ser fisicamente parecidos, mas éramos
iguaizinhos em todo o resto.
— Becca? — perguntou, surpreso. — Eu é quem
ia fazer isso, sua danada!
— Sinto muito. Mas você sabe que nunca me
importei muito com essas coisas — admiti, sorrindo ao
ouvir sua risada ecoar satisfeita do outro lado da linha.
— Sua sorte é que sua avó não está aqui. Sabe
como ela é, ficaria chateada.
— Prometo que finjo surpresa quando ela me ligar
mais tarde.
— Então tá bom. — Mesmo sem vê-lo, tive a
certeza de que sorria largamente. — A que devo a honra?
— Bom... — minha voz ficou presa no fundo da
garganta.
Engoli em seco ao perceber o quanto devia ter me
preparado melhor para aquela conversa. Afinal de contas,
não era como pedir para passaras férias em Maringá, ou
como contar que eu estava namorando o meu professor.
Tratava-se de uma decisão muito importante e, acima de
tudo, impactante — não só a mim, mas a todos os
envolvidos. Eles, inclusive. Porque eu sabia o quanto era
difícil para os meus avós ficarem em linha de campo, sem
saber exatamente o que fazer em relação à Marcela.
Apesar de tudo, eu sabia que eles a amavam. Estavam
severamente decepcionados, é claro, mas não se pode
deixar de amar alguém, ainda mais quando esse alguém é
parte de você.
— Rebecca...? — chamou ele, despertando-me
para a realidade outra vez.
Essa é a hora, meu subconsciente sussurrou para
mim.
Respirei fundo e contei até três com tranquilidade.
E então, antes que pudesse mudar de ideia, ouvi-
me dizendo:
— Quero entrar com uma ação judicial contra a
minha... c-contra Marcela.
Ouvi-o pigarrear e então tossir por alguns
segundos. Meu coração apertou tanto que doeu, mas era
tarde para voltar atrás.
— Perdão? — perguntou, sem esconder o choque.
— Ação... judicial? Mas, Becca... — suas palavras
flutuaram pelo ar por segundos a fio. Ele parecia um
pouco decepcionado comigo.
— Eu não quero parecer ingrata, vovô. Porque,
meu Deus, você e vovó são tudo para mim e eu tenho
muita sorte por serem tão incríveis. São os melhores pais
que uma pessoa poderia ter. São os meus verdadeiros
pais! — As palavras praticamente se embolavam, tamanha
era a velocidade com a qual escapavam dos meus lábios.
Mal me lembrei de respirar. — Eu não mudaria nada,
mesmo que pudesse. Só que... O que Marcela fez comigo
não perdeu a gravidade. Nem mesmo todo o amor de
vocês foi capaz de amenizar isso. Ela deixou marcas
eternas e para sempre vou carregar comigo.
— Eu sei, querida. Sei como você se sente
frustrada, sei como a indiferença dela te afetou. Isso não
machuca somente você, acredite em mim. O que não
entendo é por que agora? O que vai mudar, nessa altura do
campeonato?
— Tudo, vovô. Vai mudar tudo! — exclamei,
irritada, chamando atenção de um rapaz que acabara de
estacionar a moto a centímetros de mim. Ele me estudou
com curiosidade por alguns segundos, antes de dar de
ombros e seguir para dentro do bloco. — Todo mundo me
diz para seguir em frente e é exatamente o que estou
fazendo. A minha vida inteira eu permiti que ela pisasse
em mim, porque a amava demais para reagir. Fui
humilhada em todas as oportunidades possíveis porque
ela nunca teve pena de mim. Agora estou pronta para
deixar tudo isso para trás. Eu me conformei que Marcela
nunca vai ser uma mãe para mim, vovô, me conformei. E
não faz mais diferença, mas ela precisa pagar. Precisa!
Ele expirou o ar dos pulmões de maneira audível.
Eu conseguia sentir sua impaciência avançando de fininho,
porém não deixei que isso me afetasse. Já imaginava que
talvez minha vontade não fosse ser tão bem recebida, no
entanto não desistiria assim tão fácil. Eles podiam não
concordar, mas ao menos precisavam se esforçar para
entender. E, no fim das contas, ele sabia como eu era
orgulhosa. Como eu não abria mão tão fácil das coisas
que queria.
— Precisa pagar?! Becca, não estou te
reconhecendo. Isso não se parece em nada com você...
Onde está a minha menina que...
— Aceita tudo calada? — Interrompi-o. — Vovô,
me desculpa. Todos esses anos suportei quietinha, mas
não é justo. Não se trata de ela nunca ter me criado ou de
nunca ter me dado amor. Quero dizer, é isso também, mas
principalmente as maldades, as agressões verbais, ou
todas as vezes que ela tentou me convencer que eu era um
pedaço de merda e devia sofrer!
Parei onde estava, dobrando o corpo para frente e
me apoiando com um braço no joelho enquanto tentava
organizar os pensamentos, que estavam a mil por hora.
Por um segundo, pensei que fosse chorar. Umedeci os
lábios, fechando os olhos. Não era a primeira discussão
que tínhamos, obviamente, porém não deixava de ser
incômoda. Tal como se eu tivesse uma pedrinha no sapato
e, a cada pisada, ela se afundasse mais em minha carne.
— Você vai defender essa mulher logo agora? —
perguntei simplesmente. Ouvi-o arfar do outro lado, como
se estivesse caminhando há muitos quilômetros e se
sentisse exausto, mas ainda existissem muitos outros pela
frente.
— Você está sendo injusta, Rebecca. — Sua voz
entregou o desapontamento. — Sabe que se eu precisasse
escolher cem vezes, cento e uma ficaria ao seu lado, meu
amor. E não te condeno por ter rancor. Mas... eu não sei...
você acha mesmo que isso resolve alguma coisa?
— Acho — falei baixinho. — Eu não posso cobrar
amor dela. Não posso e você está certo. Nesse sentido
não faz diferença alguma. Mas ela tem responsabilidades
comigo perante a lei, e isso eu posso cobrar, vovô. Meu
amigo me disse que podemos entrar com ação de
abandono afetivo e, dependendo do caso, até danos
morais. — Mordisquei uma unha, deixando-o absorver as
palavras. — Não quero me vingar, se é o que você está
pensando. Mas você sempre me ensinou que toda semente
que plantamos germina um dia. Chegou a hora de Marcela
colher os frutos.
— Tem certeza, meu bem? Essa é uma decisão
muito importante.
— Estou pensando nisso desde que ela me ligou,
vovô. Nunca tive tanta certeza de alguma coisa. Vou
entender e respeitar se vocês não quiserem participar
disso. Só que vocês me conhecem, sabem que quando
decido uma coisa não volto atrás. Nem que eu precise
esperar alguns anos até ter a minha estabilidade
financeira, vou processá-la.
— Certo. — Ele estalou a língua. — Está certo.
Vou conversar com a sua avó para ver o que ela acha
disso e depois te ligo.
— Obrigada, vovô — respondi e, mesmo depois
de ele ter desligado, permaneci estática no lugar,
anestesiada.
Quando vovó me telefonou, naquela noite, para me
desejar um feliz aniversário, percebi pelo seu tom de voz
que ela já sabia da minha conversa com vovô. Apesar de
sentir uma comichão nas entranhas, convenci-me de que
era o certo a fazer e, na maioria das vezes, o certo não é
sinônimo de fácil. No entanto, apesar de ter ficado um
pouco esquisita comigo, ela não tocou no assunto durante
a hora em que conversamos. Foi justamente o contrário —
ela fazia o possível e o impossível para não dar margem
ao assunto. A atitude de vovó me fez pensar que talvez
eles não fossem se sentir confortáveis para me ajudar, o
que, infelizmente, atrasaria os meus planos em muitos
anos, além de dificultar em dobro. Mesmo assim, não
pude culpá-los. Era realmente uma decisão muito
importante, a qual cabia somente a mim e mais ninguém.
Decidi não mais aborrecê-los com isso e, então, jamais
voltei a tocar no assunto nas ligações subsequentes. Em
vez disso, ocupei-me em usar meu tempo livre para
pesquisar a respeito das minhas opções, apenas para me
livrar da sensação odiosa de ter as mãos atadas.
No entanto, contrariando as minhas suposições
equivocadas, semanas após o meu aniversário, vovô me
telefonou em uma remota tarde de quinta-feira semana
para dar a notícia de que tinham contratado um advogado
e que ele estava bem otimista sobre eu ganhar o processo.
Primeiro fui atingida por um baque intenso. Minhas mãos
tremeram, meu coração acelerou e eu tive a sensação de
que desmaiaria a qualquer momento, tamanha foi a minha
emoção.
A notícia serviu como a injeção de ânimos que eu
vinha precisando. Senti-me como se fosse uma lâmpada
acesa de repente depois de muito tempo apagada. Um
calor descomunal subiu pelos meus membros e eu tive
vontade de gritar para o mundo inteiro ouvir o quanto eu
estava feliz e o quanto estava grata pela família
maravilhosa que eu tinha.
Não conseguir me atentar a maior parte das
instruções dadas pelo meu avô, mas, também pudera,
minha cabeça tinha virado uma orquestra sinfônica. Os
pensamentos davam cambalhotas de um lado para o outro,
como crianças repletas de energia.
— Nós te amamos demais — falou vovô com a
voz embargada, pouco antes de encerrar a chamada. Isso
eu ouvi muito bem. — Temos muito orgulho da mulher que
está se tornando, minha querida. Se você quer ir em frente
nisso, então estamos do seu lado. Sempre te apoiaremos,
Becca. Nunca se esqueça disso.

— AI, MEU DEUS! — berrei, irada. — AI. MEU.


DEUS!
Adônis pareceu chocado. Fitou-me com os olhos
arregalados e, por um momento, quase consegui esquecer
a ira que se alastrou pelo meu corpo. Eu disse quase!
Bastou meus olhos focarem na parte inferior do seu rosto,
no entanto, para meu sangue ferver novamente.
— CHEWIE, O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ?
— Eu... — começou, porém o interrompi.
— Como pôde fazer isso comigo? —
choraminguei, usando toda a minha força para não voar
em seu pescoço e fazê-lo pagar pelo crime hediondo de
ter tirado a barba.
Tirado. A. Droga. Da. Barba!
Logo depois da ligação de vovô, saí em disparada
ao apartamento de Adônis para contar as novidades.
Estava tão empolgada que acabaria explodindo se não
contasse para alguém. No entanto, toda a felicidade se
dissipou em um passe de mágica.
Então recordei que, na noite anterior, depois da
aula, ele havia me dito que tinha uma surpresa para mim.
Uma surpresa! Sério, quem, em sã consciência, chamaria
isso de surpresa?
Eu não queria aceitar que havia passado horas da
minha preciosa madrugada imaginando a enorme profusão
de coisas que se encaixavam em “surpresa”, quando, na
verdade, ele tinha deixado o meu pobre coração em
frangalhos ao tirar a barba. Pelo anel de Bilbo Bolseiro,
quanto mais eu me acostumava com a ideia, mais as
minhas mãos tremiam de raiva. Não dava para acreditar
que, àquela altura do campeonato, Adônis tivesse me
traído de maneira tão fria.
Como confiar naquele homem depois disso?
— Você não gostou? — indagou, com uma
expressão cautelosa.
Eu simplesmente não conseguia me conformar.
Parecia outra pessoa de frente para mim.
— Se eu não gostei? SE EU NÃO GOSTEI? —
arquejei, sem fôlego. — Você tem sorte de eu não ter um
sabre de luz, Chewie, porque eu juro, faria picadinho de
você. E não estou brincando!
Minhas palavras o fizeram gargalhar em deleite e
eu só o odiei ainda mais. Droga, droga, droga! Por que
alguém faria isso? Céus, eu queria chorar. Enterrando as
mãos no cabelo para tentar me acalmar, ouvi-o perguntar
com um tom de deboche:
— Então eu fiquei feio?
— É claro que você não ficou feio! Não existe
essa possibilidade. — Encarei-o indignada. De fato, não
tinha como. Seu maxilar bem delineado era masculino e
me deixava ávida para contorná-lo com mordidinhas.
Além do mais, sem todo o pelo na frente, sua boca ficava
ainda mais deliciosa e carnuda. Uma verdadeira tentação.
— Mas é que antes você era um homão da porra. Agora
você é só um homão. Entende a gravidade da situação?
Ele passou os dedos longos pelas bochechas,
como se experimentasse a sensação de não ter nada ali
além de sua pele macia.
— Eu achei que fosse você fosse gostar, donzela.
— Por que você acharia um absurdo desses? —
perguntei, sem esconder o quanto estava exasperada.
— Não sei... você me chama de Chewbacca
porque eu sou peludo.
— Era no sentido carinhoso!
— Sim, mas achei que gostaria de me ver assim...
para saber como eu sou — murmurou, fingindo estar
emburrado. No entanto eu sabia que, na verdade, ele
estava divertido com a minha reação.
— Você podia ter me mostrado uma foto, sabia?
— E perder de te ver assim toda irritadinha? —
Ele sorriu torto, aprisionando-me em seus braços. — Não
se preocupe, vai crescer rápido.
— Rápido pode ser bem relativo. — Encarei-o
desconfiada. — Rápido quanto?
— Uns três meses e ela já estará cheia de novo.
— T-três meses?! — balbuciei de raiva. — Três
meses é muito devagar! Ai, Adônis... — fiz beicinho,
tentando afetá-lo. Mas, em vez disso, ele apenas riu
baixinho.
Então, embora eu estivesse o lançando meu melhor
olhar ameaçador, Adônis roçou suavemente seu rosto no
meu. Estava tão macio quanto um pêssego bem aveludado.
Suspirei fundo, resignada. Isso foi o suficiente para me
desarmar. Não era tão ruim, afinal.
Antes que eu me dessa conta, mordi a curvinha de
sua mandíbula, arrancando um gemido baixo dele.
— Parece que mudou de ideia bem rápido, hein?
— Não é justo! Você fica um pecado quando está
de barba. — E olha que barbudos nunca me chamaram
atenção..., segurei-me para não dizer.
— Então está comigo só por causa dos meus pelos
faciais, donzela?
— Obviamente! — brinquei e nossas risadas se
fundiram.
Ele invadiu minha boca com sua língua, beijando-
me de um jeito que beirava o obsceno. Meus joelhos
ficaram com consistência de geleia de mocotó muito
rápido e, quando Adônis começou a sugar meu lábio
inferior, pensei que minhas pernas fossem ceder a
qualquer momento.
Passei os braços ao redor do seu pescoço,
mantendo-o aprisionado. Suas mãos desceram pelas
minhas costas, parando em minha cintura, antes de ele
afastar o rosto poucos centímetros, apenas para me
encarar nos olhos.
— Não sei você, mas eu imagino tantas
possibilidades... — sussurrou baixinho, com uma
impagável expressão de indecente no rosto que me
arrancou um suspiro.
— Que tipo de possibilidades?
— Algo envolvendo beijos. Muitos deles.
— Na boca? — perguntei, com uma falsa
inocência. A verdade é que eu adorava quando ele era
safado comigo.
— Ah, não! Definitivamente não na boca. — Wow!
Ficou quente aqui ou é só impressão minha? — Na
verdade, de todos os lugares do seu corpo, a boca é o
único que não me passou pela cabeça.
— Hum... parece uma boa ideia — brinquei,
piscando para ele. — Mas ficaria melhor se, em vez de
falar, você me mostrasse.
Tão logo minhas palavras pairaram pelo ar, o
rosto de Adônis se iluminou com o sorriso largo e lindo
que ele abriu. Antes que eu pudesse sequer dizer
chewbacca, ele já estava sem camisa e deslizava a minha
para fora do meu corpo com uma facilidade invejável.
Eu te conheci no escuro
Você me acendeu
Você me fez sentir como se
Eu fosse o suficiente

James Arthur - Say You Won't Let Go


— CUIDADO!
Acordei repentinamente, apavorada com o berro.
Meu coração martelava com veemência dentro de mim,
como se protestasse pelo susto enorme.
Os braços de Adônis estavam fechados redor da
minha cintura com uma força muito além do necessário.
Não pude deixar de notar a maneira como seus dedos
longilíneos tremiam nas pontas. “De novo não...”,
lamentei por pensamentos. Do pé da cama, Castiel
permanecia atento ao dono, como se apenas esperasse o
momento certo para exercer seu trabalho de consolá-lo.
— CUIDADOOO! — repetiu, esmagando-me em
outro abraço desesperado.
Girei o corpo, ficando de frente para ele. Nem
mesmo isso foi capaz de despertá-lo. Estava
completamente imerso no passado, preso em instante que
há muito o atormentava. Músculos de todo o seu corpo
tencionavam para, logo em seguida, relaxarem. Era
angustiante presenciá-lo daquela maneira.
Sem pensar duas vezes, afundei as mãos em seus
cabelos. Com carícias suaves e contínuas, mostrei para o
seu subconsciente que não estava na fatídica cena do
acidente, mas, sim, comigo. E que ali era seguro. Tudo
estava bem. Então, como se minha boca funcionasse
sozinha, ouvi-me cantando baixinho, perto de seu ouvido:
— Há lugares dos quais vou lembrar em toda
minha vida, embora alguns tenham mudado. Alguns para
sempre, não para melhor. Alguns se foram e outros
permanecem... — apesar de não tão afinada, minha voz se
espalhou pelo quarto, varrendo qualquer vestígio do
pesadelo para longe. — Todos esses lugares tiveram seus
momentos. Com amores e amigos que eu ainda posso me
lembrar. Alguns estão mortos e alguns ainda vivem. Em
minha vida, eu amei todos eles...
Senti que Adônis acordava ao notar seus músculos
relaxando um a um. Aos poucos, seu aperto foi suavizando
até que ele abrisse os olhos devagarzinho, piscando
algumas vezes. A confusão era aparente em seu olhar
perdido.
— Mas de todos esses amigos e amores, não tem
nenhum que se compare a você. E essas memórias
perdem o sentido quando eu penso no amor como algo
novo. — Continuei apenas para que seus pensamentos não
voltassem para as lembranças do acidente. Enquanto a
música preenchia cada centímetro do cômodo, ele abriu
um sorriso lindo, apertando a parte interna da minha coxa
de maneira suave. E, dada a maneira como seus olhos
brilhavam intensamente, julguei que estava gostando da
minha performance, apesar de eu não ser uma exímia
cantora. Talvez essa fosse a magia dos Beatles, no fim das
contas. — Embora eu saiba que nunca vou perder afeto
pelas pessoas e coisas que vieram antes, eu sei que, com
frequência, vou parar e pensar nelas. Em minha vida, te
amarei mais...
— Em minha vida, te amarei mais... — ecoou ele,
e sua voz soou bem melhor que a minha. Mesmo um pouco
rouca, pois havia acabado de acordar, o timbre grave
como uma tempestade era o suficiente para que todos os
pelos da minha nuca arrepiassem. — Como é possível que
exista uma música perfeita dos Beatles para cada
momento da vida? — suspirou, queimando-me com seu
olhar profundo. Um calafrio desceu pela nuca, indo parar
na pontinha dos dedos dos pés.
— Acho que esse é um daqueles mistérios da vida
que jamais descobriremos. Tipo se o Acre realmente
existe e para onde vão as pessoas que desaparecem no
Triângulo das Bermudas... Coisas assim.
Ele deixou escapar uma risada baixa e contagiante
que serviu como uma onda de alívio para mim. Mas
aquela não era a primeira vez na semana que eu acordava
abruptamente no meio da madrugada com seus berros
angustiados, e eu pressentia que tampouco seria a última.
Novembro chegara trazendo consigo o calor
infernal característico de Maringá. O tempo era abafado e,
ainda que um ventilador de tamanho razoável estivesse
apontado em direção à cama, a sensação era a mesma de
se, no lugar dele, fosse um secador gigante soprando ar
quente para nós dois.
No entanto, não foi somente o verão a chegar com
o penúltimo mês do ano, mas também (e principalmente)
uma data significativa demais para Adônis. Afinal de
contas, foi em uma madrugada de Novembro que sua vida
mudara irreversivelmente, há cinco anos. Embora a data
em questão ainda não tivesse chegado, eu conseguia
perceber um punhado de mudanças sutis acontecendo em
Adônis conforme avançávamos para o fatídico dia.
A mais perceptível delas era, sem sombra de
dúvidas, a volta repentina de seus pesadelos. Desde
quando havíamos decidido dar uma chance para nós dois,
ele afirmava constantemente o quanto a minha companhia
o fazia dormir bem, durante a noite toda. Eu me mantinha
cética sobre, de fato, ser a grande razão por trás dessa
mudança, mas não podia negar que nunca mais o
testemunhara acordar gritando “cuidado”. Isso até aquele
mês, é claro.
Então as coisas voltaram a ser novamente como
antes. Bom, um pouco pior que antes. Não quando
dormíamos juntos, pois eu o acordava e fazia o possível
para acalmá-lo. O problema, na verdade, estava em
quando eu não ficava lá. Porque, sem ter alguém para
chamá-lo, Adônis permanecia berrando e berrando, de
uma maneira angustiante, até eventualmente despertar. E
isso podia variar muito. Alguns dias ele gritava muitas
vezes, em outras, nem tanto.
O problema disso — além de os vizinhos não
ficarem muito felizes —, era que seu humor piorava
exponencialmente. Chewie já não era conhecido pela sua
paciência, eu sei, mas, sem dormir direito, o pouco dela
que ele tinha se extinguia. Não sobrava nem vestígios.
Com isso, características que renderam o apelido
de Carrasco na faculdade começaram a retornar. Até
mesmo coisas que já não o incomodavam mais há muito
tempo, como celulares tocando, por exemplo, voltaram a
irritá-lo profundamente. E era sempre muito imprevisível.
Ele podia passar uma aula inteira tranquilo e, em um
rompante, estourar com o detalhe mais corriqueiro.
Parecia uma bomba relógio prestes a explodir.
É desnecessário dizer que ele tinha voltado a ser a
pauta central nos corredores do bloco de Letras, não?
A parte boa era que, apesar de irritadiço, ele não
voltara a ser aquele ogro grosseiro que era no começo.
Não porque não tivesse o impulso, diga-se de passagem.
Mas sim por se esforçar muito. Dava para perceber o
quanto lutava para não perder o controle porque, sempre
quando alguém o tirava do sério, Chewie parava no lugar
e respirava fundo pelo menos três vezes antes de ter
alguma reação, que consistia basicamente em pedir,
educadamente, para o aluno se retirar. Isso me deixava
orgulhosa. Ninguém é perfeito e isso é fato, mas todos
podemos sempre melhorar e, apesar das dificuldades, ele
pelo menos estava tentando.
Eu usava todas as cartas que tinha na manga para
animá-lo. Ele já havia feito isso por mim mais de uma
vez, aquele era meu momento de retribuir. Só que ele não
estava muito acessível. Mesmo que ficássemos horas a fio
juntos, Adônis se mantinha taciturno na maior parte do
tempo. Além do mais, eventualmente o encontrava
pensativo, encarando o horizonte. Eu sempre mirava para
a mesma direção, procurando o que chamava sua atenção,
mas sabia que, na verdade, o que ele via estava muito
longe dali.
— Desculpa te acordar outra vez — murmurou
simplesmente, buscando-me de meus devaneios.
— Você sabe que não me importo.
— Hoje foi foda. Nem parecia sonho. Consegui
sentir tudo, eu... — Adônis respirou fundo, esfregando o
rosto com calma. — Acho que não vou mais conseguir
dormir.
— Não precisamos dormir — falei, descendo o
indicador por seu peitoral firme. Ele sorriu torto,
buscando-me contra o seu corpo.
— Obrigado. Por tudo.
— Tudo o quê? — perguntei, distraída em
contornar o cós de sua bermuda. Sua risada divertida me
chamou atenção, no entanto. Subi o olhar e encontrei as
íris de Outono mais translúcidas que nunca.
— Nossa, daria para fazer uma lista.
— Então comece, por favor — arqueei as
sobrancelhas, como se estivesse impaciente.
— Por cuidar tão bem de mim. Por cantar Beatles
quando estou tendo um pesadelo igual um garotinho
assustado...
— O meu garotinho assustado — brinquei.
— Com certeza, sim. — Ele falou com um pouco
de ironia e me lançou uma piscadela. — Por ter tanta
paciência comigo nesse momento delicado... enfim, por
ser você.
— Não tem porque agradecer nada disso. Só estou
fazendo o mesmo que fez por mim, Chewie.
Ele assentiu de maneira quase imperceptível,
fitando-me significativamente. Com as costas da mão
direita, acariciou minha bochecha de maneira tão suave
que fazia cosquinha. Meus olhos fizeram uma varredura
pelo seu rosto, memorizando-o. Guardando-o eternamente
dentro de mim. Eu amava todo o conjunto, desde as
qualidades aos defeitos. Amava o quanto, apesar de
diferentes, éramos tão iguais. Amava a sensação de
encontrar o meu lugar no mundo cada vez que ficava em
seus braços.
Embalada pelo momento, percorri a distância
entre nossos rostos. Ele roçou a boca na minha
suavemente antes de ceder ao beijo. Sua respiração quente
ricocheteava contra a pele úmida e sensível dos meus
lábios, deixando-me sedenta. Ao mesmo tempo, sua barba
resvalou em meu pescoço e meu corpo todo incendiou.
Adônis tinha razão, a barba não tinha demorado tanto para
crescer. Já estava praticamente como antes, bem cheia e
no estilo lenhador, porém um pouco mais rente ao rosto.
Eu gostava do novo estilo. Deixava-o com a aparência
mais jovem e leve, ao passo em que a barba maior o
conferia uma expressão naturalmente rígida, como se ele
estivesse sempre bravo.
Chewie me beijou profundamente, suas mãos
pesadas passeando com mansidão pelo meu corpo. Não
era com a urgência costumeira, a qual acabava nos
levando ao desfecho em que ficávamos sem roupas, se é
que me entende. Não, era um beijo apaixonado, calmo e
ritmado, tal como dançar valsa.
Ele encerrou o beijo com um suspiro pesado e,
ainda próximo o bastante para que nossos lábios se
tocassem, sussurrou:
— O que vai ser de mim sem você?
Engoli em seco. Vinha repetindo a mesma pergunta
na cabeça mais de uma vez por dia. Eu não tinha uma
resposta e tentava não pensar muito nisso. Francamente?
Estava morrendo de medo.
Como era possível que uma pessoa que havia
entrado na minha vida naquele ano tivesse se tornado
fundamental para mim? Eu não sabia. A única coisa que
sabia com toda a certeza era que, quando chegasse o
grande momento da despedida, seria como arrancar uma
parte minha de maneira impiedosa. Já quase podia sentir a
dor pungente vindo ao meu encontro, quando o que eu
mais queria era correr para longe dela.
Incapaz de encontrar a minha voz, apenas recostei
a cabeça em seu peito. Seus dedos compridos foram parar
nas minhas costas, subindo e descendo até que eu
conseguisse tirar aqueles pensamentos perigosos da
cabeça. Os olhos ficaram pesados e a respiração
tranquila. Então, quando menos percebi, adormeci nos
braços que eu desejaria ter para sempre ao meu redor.
Eu sei, tudo pode acontecer
Eu sei, nosso amor não vai morrer

Papas da Lingua – Eu sei


Abri os olhos lentamente, sendo recebida pelo
barulhinho aconchegante da chuva batendo contra a janela.
Permaneci imóvel, deixando o meu corpo despertar em
seu ritmo natural. O quarto era invadido por uma contínua
brisa fresca entrando por uma fresta mínima que eu
deixara aberta na noite anterior. Ela avançava direto para
a minha perna, acariciando-a com seu toque frio. Era bom.
Dava vontade de ficar ali o resto do dia, sem me importar
com nada mais. Só procrastinando.
Minha cabeça se parecia com um velho
computador sendo ligado — começava a funcionar bem
devagarzinho, assimilando as informações e resgatando as
memórias recentes. Estiquei os braços para as laterais e
só então me dei conta do quanto a cama estava vazia. E
não deveria, dado o fato de que eu me encontrava no
apartamento de Adônis. Ele nunca levantava sem mim,
isso era muito, muito estranho mesmo.
Pisquei algumas vezes, recordando de algo lá no
fundo da memória.
Espera. Hoje não é... oh, Deus!
Então, enrijecendo inteira, peguei o celular da
escrivaninha, só para confirmar o dia. O baque foi tão
grande que, por alguns segundos, fiquei paralisada.
Uma semana já havia se passado desde que eu o
havia acordado cantarolando Beatles. Nesse intervalo de
tempo, suas olheiras haviam dobrado de tamanho. Em
algumas noites ele fez a tentativa de tomar remédio para
dormir, mas acabava sendo pior. Em vez de acordar uma
única vez na noite com os pesadelos, ele tinha sonos
inconstantes e acordava o tempo todo. O que era ruim
para nós dois.
Nesses últimos dias, eu praticamente tinha me
mudado para a casa dele. Não havia uma única noite em
que não dormisse lá. Em parte porque queria estar ali para
quando precisasse, em parte porque usava essa desculpa
para ter seu corpo quente grudado ao meu. Mas, para
todos os efeitos, eu jurava de pé junto que era somente a
primeira opção.
Esfreguei o rosto, tomando coragem para levantar.
Talvez fosse só coisa da minha cabeça, mas seu
apartamento parecia triste e terrivelmente vazio naquele
dia. Eu atribuía a sensação ao silêncio desconcertante. Lá
nunca era silencioso. Sempre tinha um som reverberando
pelas paredes — ora nossas risadas alegres, ora alguma
música dedilhada com tanta paixão por Adônis, entre
outra infinidade de sons que podíamos fazer juntos, é
claro. O fato é que aquela era a primeira vez que seu lar
estava tão quieto.
Não precisei ir longe para encontrar Castiel e
Adônis. Ambos estavam na sala. O gato, dormindo a sono
solto no sofá de dois lugares, escondido entre algumas
almofadas; o dono, por sua vez, tinha os braços cruzados
sobre o parapeito da janela, com uma caneca fumegante
presa em uma das mãos de maneira desajeitada. Seu olhar
estava perdido entre as gotas que escorriam pelo vidro
suado, deixando rastros orgânicos. Ele estava tão imerso
nos próprios pensamentos que sequer me notou.
Como não queria alardear a minha chegada e
interromper o seu momento introspectivo, recostei-me
contra o batente da porta da sala, cruzando os braços para
observá-lo. Eu não sabia muito bem o que fazer para
desviar sua atenção das coisas que haviam acontecido
naquela data. Quero dizer, de todas as vezes que precisei
de alguém para me segurar, Adônis parecia saber
exatamente como agir. Sem esforço algum. Ele era
naturalmente carinhoso, então qualquer coisa que fizesse
soava como a mais incrível do mundo. Tinha o agravante
de eu estar apaixonada também, não vou negar. O ponto é
que eu tinha medo de tentar animá-lo e acabar fazendo
justamente o oposto. Por isso, tudo o que fiz foi ficar onde
estava. Até que, em determinado momento, ele se virou e
nossos olhares se encontraram, então surpresa estampou
seu rosto inteiro.
— Estava aí há muito tempo? — perguntou, vindo
em minha direção.
— Defina muito tempo — brinquei e ele sorriu. O
sorriso não acompanhou os olhos, no entanto.
— Isso pode ser considerado crime em alguns
lugares do mundo, sabia? Agora acho que vou precisar te
prender.
Não consegui conter o riso. Era bom saber que,
apesar de triste, ele ainda estivesse fazendo suas
brincadeiras. Adônis parou de frente para mim e segurou
meu rosto com as duas mãos. Percebi que suas íris,
naquela manhã, pendiam para o avelã. Tentei enxergar
algo além delas, mas tudo o que vi foi o cansaço. Não só
físico, mas principalmente psicológico.
— Como você está?
Ele se limitou a dar de ombros, desviando o olhar
para os próprios pés.
— Vazio. — falou em um sussurro.
Aproveitei a deixa e passei os braços ao redor
dele, eliminando o que restava de distância entre nós dois.
Adônis retribuiu o abraço, enlaçando-me pelo pescoço.
— Já faz muito tempo, mas é como se tivesse sido,
sei lá, semana passada. Só consigo pensar em Cecília.
Que ela morreu e deixou tantos planos para trás. Me sinto
culpado por estar tão... feliz. — Eu nunca tinha o
presenciado falando tão depressa. As palavras se
atropelavam, como se o estivessem sufocando e, por isso,
ele quisesse se livrar delas. — Mas não faz sentido. Eu
sei que não. Todo mundo merece uma segunda chance.
Fora que não fiz nada de errado. Eu não estava dirigindo,
até pedi para gente dormir em um hotel. Também podia ter
morrido aquela noite, eu...
Um soluço alto escapou de sua garganta. A força
em seus braços aumentou e ele enterrou o rosto na curva
do meu pescoço, que logo ficou molhada com suas
lágrimas. Seu choro era baixinho e cheio de sofrimento.
Permaneci ali, servindo como ombro amigo para que ele
afogasse as mágoas. Eu era da opinião que a melhor
maneira de acabar com a dor era colocando-a para fora.
E, no fim das contas, era exatamente disso que ele
precisava.
Deixei uma sucessão de beijinhos em seu ombro
esquerdo, apenas para lembrá-lo da minha companhia, ao
passo em que meus dedos subiam e desciam pelas suas
costas, acariciando-o como forma de conforto. O choro de
Adônis suavizou lentamente, até por fim cessar.
Ele se afastou alguns centímetros.
— Sei que vou soar como um idiota, mas acho
que... que eu... — Respirou fundo, esfregando o rosto com
uma das mãos. — Preciso ficar sozinho, donzela. Colocar
a cabeça no lugar e tudo mais. Vou sair para me exercitar
e tentar me distrair um pouco.
— Posso te ajudar com isso — falei, olhando-o
significativamente. — Você sabe, se distrair. Podemos ver
algum filme, ou então só sair para fazer alguma coisa
juntos. Não precisa se afastar de mim.
Adônis balançou a cabeça em negativa,
encolhendo os ombros.
— Sinto muito, mas hoje preciso mesmo de um
tempo para mim.
Assenti, um pouco frustrada. Não é que eu não
compreendesse o seu desejo, porque entendia muito bem.
Só que nem ao menos tive a oportunidade de tentar. Ele
sempre cuidava tão bem de mim, mesmo quando eu
tentava me isolar de todos. Tudo o que eu queria era
mostrar que podia fazer o mesmo.
Como se tivesse lido meus pensamentos, Chewie
se adiantou em explicar:
— Meus pais me ligaram. Não são nem oito da
manhã e eu já recebi uma mensagem da mãe dela e até dos
meus amigos que estão fora do país. Só que esse é um dia
que eu não gostaria de ser lembrado! Mesmo que a
intenção de todo mundo seja boa. Eu gostaria que fosse
como outro dia qualquer, que o passado ficasse realmente
no maldito lugar dele. — Suspirou fundo, segurando os
meus braços e deslizando as mãos até que elas chegassem
aos pulsos. — Não tem nada a ver com você, com a gente.
É só...
— Tudo bem — interrompi-o. — Eu entendo, de
verdade. Vou para a minha casa, mas estou com o celular,
caso você mude de ideia.
— Obrigado — Adônis deixou um beijinho em
cada canto da minha boca, daquele jeito que eu adorava.
— Vejo você depois da aula?
Depois da aula?, pensei atônita, Mas ainda é
manhã!
— Só à noite? — a pergunta escapou e pairou ao
nosso redor.
As sobrancelhas de Adônis entortaram para baixo,
como se, silenciosamente, ele dissesse “sinto muito”.
Respirei fundo, tentando me colocar no lugar dele.
Não era pedir demais, afinal de contas, e eu sabia disso.
Por isso, apesar de não ser exatamente o que eu queria,
tudo o que fiz foi concordar e me despedir, respeitando
sua vontade.
Aproveitei meu tempo livre para fazer o que sabia
de melhor — estudar, é claro. As provas finais estavam
logo ali e, embora eu já tivesse passado na maioria das
matérias no terceiro bimestre, jamais deixaria a minha
média diminuir por conta disso. Ter meu boletim
impecável era uma das coisas que mais me davam prazer
na vida, sem brincadeiras.
Ao longo de horas, mantive o nariz enfiado nos
livros, parando apenas para necessidades fisiológicas.
Então, por volta das três da tarde, tive um estalo e me
lembrei de quando Adônis me vendou e nós acabamos
parando no antigo campus da Universidade Católica. Eu
estava no fundo do poço por causa de Marcela e, mesmo
que sair fosse o último item na minha lista de desejos, ele
persistiu até me convencer. O que foi muito bom, a
propósito, já que transformou uma noite horrível em uma
das melhores lembranças da minha vida inteira.
Empertiguei-me na cama, sendo atingida em cheio
por uma ideia. Incomodava-me continuar inerte justamente
hoje, que Adônis precisava tanto de mim. Ele havia me
pedido um tempo e eu, com certeza, concederia. Não
apareceria em seu caminho antes do horário combinado.
Mas, e se depois da faculdade eu o tivesse esperando com
uma surpresa? Uma carta na mão que ele não contasse?
Parecia bom para mim.
Animação subiu pelas minhas pernas enquanto, em
uma fração de segundo, eu já estava em frente ao guarda-
roupa, escolhendo algo para usar. Vesti as primeiras peças
que encontrei pela frente, calcei o par de All Star preto e
tomei minha carteira antes de correr para o
estacionamento, sentindo-me como a versão feminina do
Flash — coisa que, obviamente, eu não era.
Lá embaixo, destravei minha Caloi do bicicletário,
animada ao me lembrar de quando, um tempo atrás, ele
havia comentado o quanto adoraria ter uma pintura minha
na parede de sua sala. E, bem, talvez esse dia tivesse
finalmente chegado.
Quando Adônis voltou da faculdade naquela noite,
o apartamento todo cheirava a tinta. Eu já tinha terminado
de pintar a parede há alguns minutos e me concentrava em
colocar a lasanha no forno, já que cozinhar estava fora de
questão para mim — a não ser que eu quisesse arruinar
tudo, é claro. O que não era o caso.
Castiel não estava exatamente em seu melhor
humor, o que era compreensível. Para um bichinho, o
cheiro forte era mil vezes pior do que para nós, humanos.
No entanto, como era por uma boa causa, minha única
alternativa foi deixá-lo fechado no quarto de Adônis, com
a janela aberta para que pudesse ventilar no cômodo e
isso não irritasse o seu narizinho sensível. E isso,
obviamente, só o fez ficar ainda mais emburrado comigo.
Eu usava o avental de Darth Vader que dera para
ele no exato momento em que atravessou a porta, com um
olhar confuso no rosto.
— Donzela?! — perguntou, fazendo uma varredura
pelo ambiente com uma expressão desconfiada. — Esse
cheiro é daqui de casa? O que está fazendo? Eu procurei
você por toda parte na faculdade. Está tudo bem?
Espera... você matou aula outra vez!
— Calma, respira. Sei que está meio difícil aqui
dentro, mas faça um esforço. — Sorri, percorrendo a
distância entre nós para cumprimentá-lo com um beijo. —
Matei. Sou uma aluna horrível — brinquei, fazendo-o
revirar os olhos para mim. — Eu tinha só as duas
primeiras aulas hoje, que seriam apenas revisão para a
prova.
— É sério que estou ouvindo isso da sua boca? —
perguntou, rindo com incredulidade. — Becca, revisões
são muito importantes.
— Eu sei, mas o que eu tinha para fazer aqui era
mais. — falei, olhando-o com atenção. E, somente então
reparei que tinha uma coisa faltando nele. A constatação
foi responsável por uma guinada intensa no coração.
Adônis estava sem o colar cujo pingente era um
anel prateado que eu desconfiava ser a aliança de namoro
com Cecília. Pigarreei, desconcertada e, notando meu
comportamento estranho, ele olhou para seu próprio peito,
procurando o que estava roubando minha atenção.
— V-você está legal? Como foi seu dia? —
balbuciei. — Fiquei preocupada.
— Eu estou... hum... tentando. — ele deixou os
braços caírem ao lado do corpo. — Essa jamais será uma
ocasião fácil. Quando enxergamos a morte tão de perto,
ela nos marca para sempre. Mas, não sei, apesar de tudo
esse foi o ano mais fácil de lidar com as lembranças. —
Assenti, sem encontrar palavras adequadas para o
momento. Adônis deve ter percebido, pois logo se
adiantou em completar. — Mas não vamos mais falar
sobre isso. Estou curioso para saber o que te fez matar
aula sem nem ao menos se sentir culpada, e... Espera —
exclamou, quando seus olhos finalmente recaíram sobre o
fogão — O que tem no forno?
Foi impossível segurar a risada ao ver sua
expressão chocada no rosto.
— Uma lasanha, mas não fui eu quem fiz —
expliquei, notando o alívio imediato tomar sua feição. —
Caramba, você nem mesmo tentou disfarçar.
— Donzela, eu estava correndo risco de vida.
Tinha coisas mais importantes com que me preocupar.
Forjei uma expressão ofendida, enquanto usava o
pano de prato como chicote contra ele. Então, sem que eu
conseguisse acompanhar direito seus passos, Adônis
enrolou o tecido na mão e me puxou contra ele, até que
nossos corpos estivessem colados. Era bom ver que ele,
de fato, estava lidando bem com a situação como um todo.
No fim das contas, o tempo que ele passou sozinho fez
muito bem a ele.
— Vai me contar o que está tramando ou não? —
sussurrou.
— Não. — Respondi. — Eu vou mostrar.
Desvencilhei-me de seus braços, parando atrás
dele e, na ponta dos pés, cobri seus olhos com as minhas
mãos. Empurrando Adônis com meu próprio corpo, guiei-
o até a sala, fazendo-o parar exatamente de frente para a
parede maior. A expectativa subia em expirais pelas
entranhas, por isso não me demorei em liberar sua visão,
louca para descobrir qual seria sua reação.
Adônis arfou surpreso e suas íris passearam
cuidadosamente por todos os detalhes. Fiz como ele,
permitindo-me admirar o trabalho que, apesar de ter feito
um pouco às pressas, ter ficado tão incrível. A ilustração
ocupava da extremidade direita até, mais ou menos, o
centro da parede. Adônis estava com a mão em meu rosto
enquanto me beijava com paixão. E, embora essa fosse a
primeira vez que eu pintava sem ser no papel, consegui
reproduzir bem o efeito aquarela que tanto amava,
trazendo uma explosão de cor e vida para sua sala.
Na extremidade esquerda, escrevi, em letras
cursivas, versos de uma música da banda Melim, chamada
Dois Corações, a qual parecia ter sido escrita para nós
dois, pois exprimia muito do que éramos:

Vi que era amor


Quando te achei em mim
E me perdi em você

Somos verso e poesia


Outono e ventania
Praia e carioca

Somos pão e padaria


Piano e melodia
Filme e pipoca

De dois corações um só se fez


Um que vale mais que dois ou três

Quando finalmente pareceu absorver tudo, Adônis


se virou em minha direção e me encarou com lágrimas nos
olhos. Eu soube, antes mesmo de ele avançar em minha
direção sedento pela minha boca, que a surpresa tinha
valido a pena. Matar aula e ficar de mal com Castiel
também tinha valido a pena. Soube, pela maneira como
ele sussurrou meu nome copiosamente enquanto arrancava
o avental de mim, que tinha conseguido mostrar para ele o
quanto o amava e o quanto faria tudo para vê-lo sorrir.
Exatamente como ele sempre fazia comigo. E soube,
acima de tudo que, não importava como fosse o destino. O
mundo jamais voltaria a ser o mesmo para nenhum de nós.
O nosso, ao menos.
Espere um momento
Eu não quero me mover
E o verão implora
Ele implora para que nós provemos
Que nós podemos durar
Apenas mais uma estação
Sarah Jaffe – Summer begs

Dezembro chegou.
Foi assim, sem avisos.
Chegou, lembrando-me de que meu tempo com
Rebecca era limitado e, por isso, aproximava-se do fim. A
partir de agora, seria uma angustiante contagem regressiva
para o iminente.
Eu estava uma pilha de nervos. Tantas coisas
passavam pela minha cabeça que era difícil acompanhar.
A principal delas era, sem sombra de dúvidas, medo. Oh,
definitivamente estava com medo! Eu me mudaria para um
novo país e isso era apavorante. Por mais que meus
amigos estivessem lá, a minha vida estava aqui. Rebecca
estava aqui. O que seria de mim? De nós?
Esfreguei o rosto, tentando pensar com clareza. Os
últimos dias não estavam sendo fáceis. Depois que as
aulas terminaram e eu cumpri com todos os meus
compromissos acadêmicos, comecei a difícil tarefa de
vender meus pertences um a um, desfazendo-me de tudo
que conquistei com suor. Foi quando finalmente me dei
conta de que a minha vida estava prestes a sofrer uma
transformação enorme, que reverberaria ao longo de anos.
Nada jamais voltaria a ser como antes. Tal como o
acidente de carro, que me tirou bruscamente de um trilho
para colocar em outro. Com a diferença de que, desta vez,
era por escolha própria. Mas, ainda assim, assustador. A
verdade é que nunca estamos preparados para sair da zona
de conforto, ainda mais quando as pessoas que você mais
ama habitam nela.
Conforme assistia à minha casa esvaziando e
minhas conquistas se dissipando pelo ar como grãos de
areia ao vento, o peso do que estava por vir começou a
recair sobre os ombros. A gota d’água foi entregar o carro
nas mãos do novo proprietário e perceber que, no novo
país, eu teria que recomeçar do zero.
É óbvio, meu subconsciente falou, zombeteiro, é
para isso que está indo, não?
E de fato era.
Sonhei com o dia da partida quase de maneira
obsessiva e lutei com todas as forças que pude para
chegar ali. Agarrei-me aquele objetivo a fim de evitar
enlouquecer. Foi ele que me sustentou por tanto tempo. Em
cada dia ruim, em cada noite assolada por um pesadelo,
eu me confortava com a esperança de que, no futuro,
deixaria tudo para trás. Seria um novo Adônis. Começaria
do zero. Então por que meu coração apertava agora que
estava na véspera de alcançar tudo que almejei com tanto
afinco?
Eu não era idiota, nem nada. Sabia que tinha tudo a
ver com Rebecca. Tudo a ver com o fato de que me
apaixonar nunca esteve nos planos. Mas ia muito além
disso. Não estava apenas apaixonado. Não, cada
pedacinho de mim amava incondicionalmente aquela
garota. Ela havia se tornado parte de mim. A peça
essencial sem a qual não existia a mais remota chance de
ser feliz. Então como seria quando eu tivesse que me
desfazer dessa peça? Como eu seria feliz novamente? Que
merda eu achava que estava fazendo?
Quando minha casa ficou tão vazia a ponto de não
ser mais possível viver lá, concluí a mudança e entreguei
as chaves na imobiliária, deslocando-me temporariamente
para o apartamento de Rebecca. Como Nataly voltara para
a cidade logo que as aulas chegaram ao fim, ficamos
apenas Becca, Arthur, Castiel e eu.
Noite após noite, sentávamos na sala e
conversávamos até as primeiras luzes do dia invadirem a
sala. Os assuntos perambulavam entre debates sérios e
cheios de engajamento — eram minoria —, para os mais
fúteis possíveis, como, por exemplo, em uma batalha entre
um Espinossauro e um T-Rex, quem teria mais chance de
vencer?
Acho que não é preciso dizer que estes eram os
meus favoritos, né?
E, embora nossos horários tenham ficado
bagunçados, eu não poderia me sentir melhor nos meus
últimos dias em Maringá. Aquele tempo que passamos
juntos foi muito necessário para mim. Em parte porque já
tinha me esquecido da leveza de se estar entre amigos,
podendo ser eu mesmo, rindo por tudo e por nada até os
olhos marejarem — coisa que se tornou tão rara depois do
acidente. Era bom perder o fôlego em meio a gargalhadas,
as quais eu nem ao menos lembrava o motivo para terem
começado. Mas, principalmente, porque desviavam a
minha atenção dos problemas e os voltaram para coisas
boas. Foi a força necessária para me manter firme em
minha decisão quando, por dentro, estava repleto de
incertezas.
Castiel, por sua vez, estava estressado naquela
casa que não reconhecia e, por isso, tudo o que fazia era
se esgueirar pelos cantos, sem entender o que estava
acontecendo. Eu nem queria imaginar como seria a viagem
de mais de dez horas trancado na gaiolinha e dentro do
compartimento de carga, sozinho, assustado. Eu me sentia
a pior pessoa do mundo quando pensava nisso. Então
apenas não pensava. Era mais fácil assim.
É por uma boa causa, repetia como mantra,
tentando convencer a mim mesmo. Porém já não tinha
tanta certeza.
Faltando pouco menos de uma semana para eu
viajar para Londrina e poder passar alguns dias com os
meus pais a fim de me despedir, Rebecca perdeu o
controle. Eu imaginava que algo assim pudesse acontecer,
porque também estava no meu limite. Um passo falso e eu
atravessaria a tênue linha que me separava do desespero.
O principal motivo de ainda não ter esmorecido era ela.
Não podia vacilar quando Becca precisava tanto de mim.
Tinha começado a arrumar minhas malas quando
ela irrompeu o quarto, cambaleante. Os olhos estavam
redondos como burquinhas e o desespero era visível em
cada centímetro de seu rosto delicado. Fazia uma tarde
muito quente de uma semana particularmente abafada e ela
vestia apenas uma camiseta minha. Por Deus, como eu
sentiria falta de vê-la nas minhas roupas!
— Você não pode ir, Chewie. Não pode! —
choramingou, cheia de urgência, mas as palavras saíram
um pouco enroladas. Vi, no mesmo instante, seus olhos
encherem de lágrimas e soube que era só questão de
tempo.
Eu não sabia o eu dizer. Simplesmente não
existiam palavras que pudessem confortá-la, tampouco a
mim mesmo. Estávamos em um beco sem saída.
Parei o que estava fazendo e me voltei para ela,
encolhendo os ombros. Rebecca arriscou dois ou três
passos, mas, quando os pés se embolaram, ela parou no
meio do caminho. Só então me ocorreu o óbvio.
— Está bêbada?! — a pergunta soou mais como
uma afirmação. Que ela resolveu ignorar, de toda forma.
— Não me deixe sozinha, por favor! Eu não sei
mais viver sem você, é o que tenho de mais bonito,
Adônis. Eu nunca imaginei o quanto a vida podia ser
maravilhosa, nunca imaginei esse mar de sensações que
abrigava dentro de mim, nunca sonhei que uma pessoa
pudesse despertar tanta coisa em outra. — Sua voz, que
já estava fraca e sem forças, vacilou perigosamente. — Eu
preciso de você comigo, olhe só para nós dois. Isso aqui
só acontece uma vez na vida. Nós fomos premiados! Não
jogue fora a coisa mais incrível que já aconteceu em
nossas vidas, ainda temos muito pela frente...
Ela parou subitamente, vencida pela vontade de
chorar.
— Becca... — chamei, sentindo-me quebrado.
Porém, contrariando minha ideia de que fosse se
acalmar, ela ficou ainda mais agitada. Com lágrimas
pululando dos olhos, aumentou o tom de voz até estar
quase aos berros.
— Você não precisa ficar em Maringá. —
Soluçou, limpando o rosto com as costas das mãos. —
Não precisa nem mesmo ficar aqui no Paraná, tem ótimas
faculdades de música no Brasil. Nós damos um jeito. Eu
procuro um emprego e vou te visitar todo final de semana,
eu...
— Rebecca... não faz assim. — Percorri a
distância entre nós, parando a poucos centímetros de
distância. Fechei os dedos ao redor dos seus pulsos,
acariciando sua pele com os polegares. Estávamos tão
próximos que eu podia sentir o cheiro de vinho em seu
hálito. — Só está dificultando tudo para nós dois. Eu te
avisei desde o começo, você quis ir adiante sabendo que
precisaríamos nos separar.
— Mas tudo mudou! Tudo mudou, Chewie. Eu não
podia imaginar quão longe chegaríamos.
— Eu sei. Eu sei que sim. Você acha que á fácil
para mim? Acha que também não estou sofrendo?
Rebecca respirou fundo, fisgando o lábio inferior,
como sempre fazia em momentos delicados.
— Não precisamos sofrer! Os planos mudam a
todo momento. Novas prioridades aparecem... Droga, por
que precisa ir embora? Por que não pode ceder e parar de
pensar só em você?
— Nossa! — exclamei, chocado. Eu sabia que ela
jamais falaria algo parecido se não estivesse tão
assustada, tão perdida. Mas isso não diminuiu o tamanho
do absurdo contido em suas palavras. — Muito bom, isso
mesmo! Vamos jogar coisas na cara um do outro, porque
com certeza vai tornar tudo tão mais fácil, né? — Cuspi,
carregado de ironia.
Por segundos que se pareceram com uma
eternidade, sustentamos o olhar. Ela foi a primeira a
reagir, desvencilhando-se de mim como se eu tivesse
desferido um tapa em seu rosto.
— Donzela, escuta... nunca escondi de você que
não queria me envolver no começo, porque eu sabia que
seria difícil. E estava certo! Está sendo foda, bem mais do
que imaginei! Você não é a única sofrendo aqui, acredite
em mim. — Suspirei, cansado. — Não é justo me pedir
para abrir mão do maior sonho da minha vida.
— Já fez isso uma vez... — murmurou baixinho.
— E me arrependo muito! Não há um dia que eu
não lamente por isso! Talvez tudo tivesse sido diferente e
Cecília estivesse viva agora. — Falei, segurando-a no
rosto gentilmente para ter certeza de que me olharia nos
olhos. Encarei-a significativamente, decidindo mudar de
estratégia. Aproximando-me ainda mais, sussurrei
baixinho. — Você abriria mão dos seus planos por mim?
Viria para Irlanda comigo?
Surpresa estampou sua feição.
— I-ir para a Irlanda? — Ecoou, balbuciando. —
Eu... eu não posso. É diferente.
— Diferente? Lá também tem editoras, sabia?
— Meus avós estão aqui. E eu ainda não sou
independente financeiramente. Não posso mudar de país
assim...
— Acabou de me dizer que arrumaria um emprego
se eu ficasse. Por que não pode fazer o mesmo nessa
situação?
— Eu não conheceria ninguém lá, Chewie. Só
você.
Assenti, chegando ao ponto em que queria.
— E não seria o suficiente?
— Hum? — Ela me encarou com surpresa. —
Sim, mas...
— Você não pode, não é? Não pode porque, no seu
sonho, não é assim que as coisas acontecem. Dentro do
seu coração, o que você sempre quis foi se formar aqui,
trabalhar em uma grande editora aqui, alcançar seus
objetivos aqui. E, por mais que me ame, não pode fazer
isso consigo mesma, porque não sabe como será o dia de
amanhã. Estou certo?
Ela permaneceu taciturna, mas sua expressão
entregou que ela tinha entendido perfeitamente bem o meu
ponto.
— Estou certo? — insisti. Como resposta, tive um
tímido menear de cabeça. — Eu também não posso fazer
isso comigo mesmo, Becca. Preciso me colocar em
primeiro lugar, mereço isso. Jamais amei alguém como
amo você — arqueei as sobrancelhas para me fazer
entender. —, mas agora eu tenho que aprender a me amar
tão intensamente. Eu era muito novo quando minha vida
mudou para sempre. Segui em frente do jeito que dava, só
que eu preciso de bem mais que isso. Não me contento em
me arrastar para frente fingindo que está tudo legal aqui
dentro. Preciso me redescobrir, preciso provar para mim
mesmo que eu posso chegar lá, assim como você também
quer desesperadamente provar para si mesma, donzela!
Uma lágrima corpulenta escorreu pela sua
bochecha pouco antes de ela se lançar em meu corpo,
abraçando-me com força. Aquela foi a sua maneira de
pedir desculpas por ter perdido o controle. Eu não a
condenava porque, no fim das contas, sentia o mesmo.
Enterrei o rosto em seus cabelos, sorvendo seu cheiro, do
qual eu sentiria muita falta. Fechei os olhos e me permiti
ficar ali, aproveitando que ainda a tinha para mim, embora
a contagem regressiva continuasse rodando.
Por favor, não chore, meu amor
Adeus
Eu quero ficar, mas agora é hora
Então por favor, não chore, meu amor
Por favor, não fique desse jeito
Porque você sabe que é difícil quando me olha dessa maneira
Cigarettes After Sex – Please don’t cry

Aquela seria a nossa última noite juntos.


Meu corpo se parecia com uma máquina
desgovernada, uma vez que uma confusão de emoções
intensas se alastrava por ele.
O coração tinha o tamanho de uma ervilha, ao
passo em que o nó da garganta era tão grande quanto uma
ameixa. As mãos tremiam como folhas ao vento e meus
membros suavam frio diante da expectativa do iminente.
Dizer que eu me sentia preparada seria uma
mentira lavada. Pelo martelo de Thor, eu estava
apavorada! Não conseguia sequer acreditar que tudo
chegaria mesmo ao fim. Recusava-me a aceitar que, a
partir de amanhã, Adônis não faria mais parte da minha
vida. Era doloroso demais amar tanto alguém e precisar
vê-la partir.
Não significava que eu não o entendesse, porque,
sim, entendia. Mesmo com a dor pungente me
imobilizando, eu sabia que nossos caminhos haviam sido
feitos para se separaram em determinado momento, afinal,
estavam traçados muito tempo antes de nos conhecermos.
Nós dois estivemos em frangalhos um dia e, embora
tivéssemos ajudado na cura um do outro, ainda havia
muito a fazer. Precisávamos perseguir nossos sonhos e
mostrar para nós mesmos que a felicidade só dependia de
nossas mãos. Só assim seríamos verdadeiramente felizes.
Eu entendia isso. O difícil era explicar para o meu
coração.
Além do mais, desde o começo ele sempre foi
muito honesto comigo e me alertou o quanto seria difícil.
E de fato estava sendo. Mas eu não me arrependia em
nada. Se pudesse, faria tudo de novo, de novo, e de novo.
Só para ter a chance de conhecê-lo e, com isso, descobrir
tanto sobre mim mesma. Como o fato de que podia amar.
Eu nunca estive quebrada como sempre imaginei. E aquele
tipo de amor, diferente do que sempre achei, não era
perigoso ou ruim. Ah, não, ele era lindo e poderoso o
suficiente para mudar nossas vidas para sempre. Eu
jamais seria a mesma Rebecca que chegou em Maringá
cheia de duvidas e medos. Assim como Adônis jamais
seria o Carrasco que gritava com os alunos e afastava
todos com seu mau humor. Por mais que doesse estar
diante da despedida, eu tentava manter o meu coração em
paz. Porque, no fim das contas, sempre carregaria comigo
o quanto fomos perfeitos um para o outro naquele ano que
passara tão depressa. Para sempre me lembraria de
Adônis com uma saudade cheia de carinho, e pensaria
que, onde quer que ele estivesse, eu torceria por sua
felicidade.
Mordi o lado de dentro da bochecha, tentando
segurar o choro.
Ainda não, Rebecca.
Seja forte.
Resignada, cruzei os braços sobre a janela,
sentindo o vento ricochetear contra o meu rosto e soprar o
meu cabelo para todas as direções. Do lado de fora,
árvores e casas se fundiam em um borrão contínuo,
enquanto o carro avançava para o destino secreto que
Adônis planejara. Eu estava feliz que, em meio ao furacão
de sentimentos que estivéssemos passando, ele ainda
tivesse conseguido pensar em algo especial. Se
dependêssemos de mim, provavelmente estaríamos
chorando abraçados no sofá do meu apartamento,
afogando as mágoas com a ajuda de um bom vinho.
Como se tivesse ouvido meus pensamentos,
Chewie repousou a mão sobre a minha perna, pouco
acima do joelho. Gostei do calor que emanou dela e, por
isso, fechei os olhos. Não adiantava sofrer agora. Eu
precisava me ater aos detalhes e guardá-los dentro de
mim. Eles precisavam estar vivos na memória para eu
saber que, mesmo por um tempo limitado, tudo valeu a
pena.
Ainda de olhos fechados, pude ouvir o barulho dos
pneus esmagando alguns cascalhos. Apesar de ser uma
abafada noite de verão, eu sentia frio. Cruzei os braços ao
redor do tronco, tentando dissipar aquela sensação gelada
de dentro dos meus ossos, mas foi em vão. Eu sabia que
mesmo se usasse todos os casacos do mundo, ainda assim
não conseguiria me esquentar. Não dava.
Então, quando menos imaginei, freamos com um
solavanco um pouco ríspido. Só então me permiti subir as
pálpebras, vencida pela curiosidade. Estávamos parados
de frente para um portal de tijolos com um pequeno (e
inútil) telhado na superfície. Ele dava para uma alameda
de paralelepípedos ladeada por cercas-vivas cujo fim não
era visível dali. Enquanto o segurança saía da pequena
salinha acoplada ao portal e percorria a distância até a
janela de Adônis, não pude deixar de notar a plaquinha de
madeira pendurada por grossas correntes, com o nome
Estância Quatro Estações talhado nela.
Estávamos em um... hotel fazenda?
Adônis informou que tínhamos uma reserva e, em
troca, recebeu um punhado de instruções. Eu não prestei
muita atenção ao que diziam, no entanto. A ansiedade
crescia como as labaredas de uma fogueira dentro de mim,
dominando-me. Apesar de um pouco melancólica com o
fato de aquilo ali ser o nosso fim, era impossível ignorar a
excitação crescente. Ele era sempre tão incrível... eu já
podia esperar uma noite maravilhosa, mesmo sem fazer a
mais remota ideia de seus planos. Confiava nele
cegamente, afinal.
Seguimos pela alameda e minha suspeita só se
confirmou ao passo em que avançávamos. Quando enfim
chegamos ao nosso destino e Adônis estacionou, pulei
para fora do carro sem pensar duas vezes. Encontrava-me
extasiada com a vista incrível que nos recepcionava. O
show de luzes púrpura vibrante, laranja queimado e rosa
pálido do crepúsculo começavam a abandonar o céu, o
qual se tornava cada vez mais anil. A lua já ocupara seu
posto, embora ainda não tivesse, de fato, anoitecido.
Achava-se na fase minguante, tão fininha que quase não se
fazia visível, mas, ainda assim, era belíssima.
Projetando-se para todas as direções que meus
olhos alcançavam, um amplo jardim verdejante, tão
uniforme que mais se parecia com um tapete fofo. Atrás de
mim, vários casebres de tijolinhos à vista se espalhavam
entre as inúmeras palmeiras imperiais que davam a
impressão de tocar o céu com suas folhas grandalhonas.
Arrisquei alguns passos à minha esquerda, sendo atraída
pela tirolesa sobre o lago que, graças à brisa mansa,
ondulava preguiçosamente, refletindo as luzes da noite.
Ao lado dele, toras de maneira formavam um cercado ao
redor de meia dúzia de cavalos, que pastavam
tranquilamente, alheios a nossa presença.
— Tem muito mais para lá — Adônis sussurrou
próximo ao meu ouvido e o corpo todo amoleceu. Olhei
para onde ele apontava e me deparei com um punhado de
estradinhas que sumiam entre as árvores, sabe-se lá para
onde. — Vamos ter tempo de ver isso amanhã. Hoje te
quero só para mim.
Assenti, sem encontrar a minha voz em lugar
algum. Ele não deixou passar, no entanto. Quando menos
percebi, seus braços me seguraram por trás, aprisionando-
me contra ele. Adônis deixou uma sucessão de beijos no
meu pescoço, interligados a fungadas deliciosas que
roubavam toda a força dos joelhos.
Droga, eu definitivamente não estava nada
preparada aquela maldita despedida!
Por mais que tudo fosse lindo, eu preferiria que
estivéssemos em seu sofá, debatendo sobre dinossauros
enquanto Castiel provavelmente estaria correndo atrás de
sua bolinha barulhenta. Podia não ser tão único, mas ao
menos não seria nossa última noite. E isso mudava tudo.
Uma lágrima escorreu pela bochecha, sem a minha
permissão. Respirei fundo e usei de todas as forças para
não me deixar levar pela vontade de chorar como uma
criancinha. Não ainda, pelo menos. Haveria muito tempo
para isso no futuro.
— Precisamos montar a barraca antes que anoiteça
— sua voz de trovão dissipou meus pensamentos.
— Nós vamos acampar! — exclamei,
genuinamente surpresa e, mesmo de costas para ele, soube
que sorria. Embora minha última vontade fosse a de
sorrir, peguei-me fazendo o mesmo. Não tinha como
existir um desfecho mais perfeito para nós dois.
Girei em seus braços, ficando de frente para ele.
Apesar de calmo, seus olhos entregavam como se sentia.
E era exatamente igual a mim — uma confusão. Estávamos
na montanha-russa, afinal. Aquela que, no começo, Adônis
teve tanto medo de enfrentar. Avançávamos em direção ao
ponto mais alto do looping, quando o mundo todo fica de
ponta cabeça e é preciso dar a mão para quem quer que
esteja ao seu lado, apenas para mostrar que você também
está ali e, atemorizado ou não, passará isso junto com ela.
Em um silêncio tão pesado quanto chumbo,
descarregamos nossas coisas do carro (que não eram
tantas, para ser honesta), para então armarmos a barraca o
mais rápido que pudemos. Apesar de a minha ajuda não
ser fundamental, permaneci ao lado dele fingindo que era,
apenas para aproveitar sua companhia. Se pudesse, eu
juro, me grudaria nele e não soltaria nunca mais.
Quando concluímos o nosso trabalho, já era noite.
Havia poucas estrelas salpicadas pelo horizonte e o céu
estava negro como os cabelos de Adônis. As folhas das
palmeiras eram balançadas de um lado para o outro pelo
vento e o tempo ameaçava uma chuva que nunca chegou.
Observei-o tomar o violão na mão e se sentar na
grama. Seus dedos se ocuparam em afiná-lo, ao passo em
que eu me deitava ao seu lado e o céu preenchia
completamente o meu campo de visão.
Adônis parou brevemente o que fazia, a fim de
levar um cigarro à boca, prendendo-o nos lábios. Usando
uma mão para criar um casulo protetor contra o vento, ele
acendeu o cigarro, tragando-o profundamente. O cheiro
mentolado penetrou minhas narinas e percebi que sentiria
saudades até disso. Cruzei os braços embaixo da cabeça,
fazendo-os de travesseiro. Aguardei com expectativa que
ele começasse.
Depois de mais dois tragos demorados e de
estralar os dedos e os pulsos, suas mãos voltaram para o
instrumento, começando a magia. Em um segundo tudo era
silencioso e, no seguinte, a melodia lenta e melódica
flutuava ao nosso redor, como uma cúpula nos separando
do restante do mundo.
— Eu vou cantar uma última vez pra você, então
nós teremos mesmo que ir. Você foi a única coisa certa
em tudo que eu fiz — Sua voz era como um sopro que
vinha da alma. Usando os braços trêmulos como apoio,
elevei o tronco até estar sentada e ficar de frente para ele.
Eu precisava olhar seus olhos lá no fundo. — E eu mal
posso olhar pra você. Mas cada vez que eu olho, sei que
nós chegaremos a qualquer lugar longe daqui...
“Anime-se, anime-se, como se você tivesse
escolha. Mesmo se você não puder ouvir minha voz,
estarei bem ao seu lado, querida. Mais devagar, mais
devagar, nós não temos tempo para isso. Tudo o que eu
quero é achar um jeito mais fácil de sair de nossas
pequenas cabeças. Tenha força, minha querida. Nós
estamos destinados a ter medo, mesmo que seja só por
alguns dias, compensando toda essa confusão...”
A letra me acertou em cheio, tal como um ônibus
em alta velocidade, e o impacto foi difícil de suportar. De
repente, todas as lágrimas que lutei tanto para manter
dentro de mim jorraram para fora, como se uma comporta
tivesse sido aberta de uma só vez. Eu me sentia como se
alguém tivesse arrancado meu coração e o colocado
dentro de um moedor de carne, porque ele estava
destroçado. Com a visão embaçada, foi difícil perceber
que seus olhos brilhavam intensamente, como se ele
também estivesse no limite.
Ele se levantou em um rompante, com dois vincos
profundos entre as sobrancelhas. Eu jamais saberia dizer
há quanto tempo a música havia cessado. Não importava.
Sumindo do meu campo de visão, ouvi a porta do carro
sendo aberta e constatei que guardava o violão. Não o
ouvi voltar, no entanto. Encontrava-me aprisionada
naquele momento angustiante e, por isso, tive um
sobressalto quando seus braços me ergueram do chão com
facilidade. Segurei-o pelo pescoço, em um abraço bem
apertado. De joelhos, Adônis percorreu a curta distância
até a barraca comigo no colo e, antes que eu sequer me
desse conta, estávamos os dois do lado de dentro.
Adônis girou nossos corpos para que eu ficasse
sentada sobre ele. Permaneci com os braços em seu
pescoço, com medo de que, se o soltasse, poderia perdê-
lo a qualquer momento. Segurando-me pelo queixo com
uma mão, ele invadiu a minha boca com a mesma avidez
da primeira vez em que nos beijamos. Como se já
estivesse com uma saudade antecipada e avassaladora.
Sua língua se entrelaçou a minha com certo desespero,
nossos gemidos baixinhos fundindo-se.
— Becca... minha donzela... — rosnou dentro da
minha boca, de olhos fechados. Como se me beijar fosse a
coisa que ele mais gostasse de fazer na vida. Como se ele
idolatrasse o meu corpo e, principalmente, a maneira
como eu me encaixava perfeitamente bem nele.
Elevando os quadris, ele me mostrou o tamanho de
sua rigidez, fazendo-me arquejar contra seus lábios.
Arranhei suas costas por dentro da camiseta, ao passo em
que suas mãos ágeis me despiam o mais rápido possível.
Fiz o mesmo com ele, arrancando peça por peça como se
estivéssemos em contagem regressiva para o fim. E, bem,
de fato estávamos.
— Amando você... inteiro seu... — prosseguiu seu
cântico rouco, sem nem ao menos perceber.
Seus lábios passearam pelo meu colo até
alcançarem meus seios, onde se demoraram algum tempo,
fazendo-me delirar. Entre mordidinhas com as pontas dos
dentes e suaves chupadas, ele me deixou com o meio das
pernas escorrendo desejo e o corpo todo arrepiado. Sua
barba arranhava a minha pele sôfrega e o simples gesto
me transportava para um mundo à parte, onde não havia a
dor da despedida, somente nós dois e o nosso sentimento
esmagador.
Comigo em seu colo, Adônis se esticou até
alcançar uma camisinha dentro da mochila, a qual estava
esquecida a alguns centímetros de nós. O observei rasgar
o pacotinho metálico e rapidamente deslizar o látex pelo
seu corpo, envolvendo-o. Tinha os olhos fixos no que
fazia e, por isso, fui surpreendida quando ele se ajoelhou
abruptamente, fazendo-me cair para trás com as pernas
ainda entrelaçadas nele.
— Essa noite você vai enxergar as estrelas sem
estar lá fora, meu amor — sussurrou no meu ouvido ao
mesmo tempo em que deslizava com um movimento forte
para dentro de mim. E, céus, foi como se o meu corpo
tivesse sido atingido por uma sucessão de choquinhos que
se espalhavam em todas as direções, fazendo-me tremer
inteira. — Cacete, como vou sentir falta disso! —
exclamou contra a pele febril do meu pescoço.
— Eu também vou — falei com dificuldade,
perdendo o fôlego à medida em que ele me amava
tamanha força. — De você inteirinho.
Gotículas de suor rolavam pelos nossos corpos e a
barraca parecia mais abafada a cada segundo. Adônis se
inclinou para frente, apoiando-se nos dois braços
enquanto me devorava com seu desejo insaciável.
Entreguei-me de corpo e alma, deixando que, através de
gestos, disséssemos tudo o que jamais poderíamos em
palavras.
— Olhe para mim, donzela — pediu e sua voz
sozinha seria capaz de me levar ao ápice. Estava tão cheia
de desejo que beirava o descontrole. Eu adorava. —
Quero que você chegue lá comigo... e quero te olhar nos
olhos quando isso acontecer.
Oh, Deus...
Aquilo foi demais para mim.
Meu corpo entrou em transe e, por um momento,
fiquei fora do ar. Era apenas aquele prazer intenso
nascendo no meu ventre e se espalhando de maneira
voraz, arrebatando tudo pelo caminho.
— Não... me... esqueça... — pediu, em meio a
gemidos e o som de nossas peles colidindo. — Não...
esqueça... — disse outra vez, e mais outra, até que
simplesmente não consegui mais ouvir. A única coisa
dominando a minha mente era aquele instante e o quanto
parecia bom demais para suportar.
Meus músculos convulsionaram um por um, ao
mesmo tempo em que Adônis tremia e pulsava dentro de
mim, soltando um gemido gutural que mais se pareceu com
um rugido. Ele me queimou com seus olhos em brasa e eu
soube que jamais me esqueceria de sua expressão
completamente entregue.
Elevei um pouco o tronco, sedenta por seus lábios.
Desta vez, nos permiti a calma. Passeei com a língua em
sua boca, deleitando seu sabor mentolado que eu tanto
amava. Nossas respirações entrecortadas se fundiam,
servindo como música de fundo.
— Eu te amo! Te amo tanto!
— Eu amo você — falei, ao mesmo tempo em que
uma gota quente caía no meu queixo.
Então constatei, surpresa, que ele chorava. Como
se aquele momento tivesse sido muito para aguentar. Tal
como a música lá fora havia sido para mim. Fisguei o
lábio inferior, limpando suas lágrimas com os polegares,
apesar de as minhas correrem livremente pelas bochechas.
Ele deitou em mim, usando a minha barriga como
travesseiro. No mesmo instante, meus dedos foram à
procura de seus cabelos macios.
Meus pensamentos vagaram para longe dali,
imaginando como seria o ano seguinte. Por mais que eu
fosse ter as férias inteirinhas para me acostumar à ideia de
que Adônis não faria mais parte da minha vida, seria
muito difícil voltar a Maringá, onde tudo tinha um pouco
dele. A UEM jamais seria a mesma sem ele para me puxar
de surpresa para dentro de uma sala de aula vazia, ou
então me mandar indiretas através de atividades, e até
mesmo suas manias irritantes fariam falta. Além do mais,
o vazio que ele deixaria no condomínio onde morávamos
seria devastador. Era impossível imaginar outra pessoa
morando de frente para mim, porque eu tinha seu
apartamento como uma extensão da minha casa. Céus, eu
não podia conceber minha vida dali para frente. Eu, que
sempre fui de fazer tantos planos para criar a falsa
sensação de ter tudo sob controle, não tinha a mais remota
ideia de como seria dali para frente. Se só pensar já
machucava tanto, eu não queria nem ver quando finalmente
chegasse a hora de tentar retomar a vida.
Foi tomada por essa angustia esmagadora que me
ouvi sussurrando, como se minha boca tivesse vida
própria:
— Não vou conseguir — admiti. — Não vai dar,
Chewie.
Ele ergueu o rosto, encarando-me de sobrancelhas
unidas.
— Como assim? Não vai conseguir o quê?
— Achei que era forte o suficiente, mas não sou.
— Sorri com amargura. — Você vai para outro lugar, vai
recomeçar. Mas eu não. Aqui tudo vai me lembrar de você
para sempre. É demais para mim. Não estou preparada
para te tirar da minha vida, eu...
— Shhhh — ele me calou pressionando o dedo
indicador sobre meus lábios e me surpreendeu ao sorrir
genuinamente. — Você não vai conseguir? Donzela... olhe
só para você!
Arregalei os olhos, sem entender muito bem o que
Adônis tinha tentado me dizer. Se enxergou a minha
confusão, porém, ele ignorou. Em vez disso, inclinou o
corpo em direção à mochila outra vez, pegando-a. Ele
abriu o zíper menor que ficava na frente e, lá de dentro,
tirou um embrulho prateado que cabia na palma de sua
mão. Observei tudo sem dizer palavra alguma. Estava
intrigada com o que quer que tivesse lá dentro.
— Eu ia deixar isso para amanhã, mas acho... acho
que esse é um momento oportuno. — Pigarreou, passando
as mãos no cabelo. — Vai ser muito difícil para mim
também, Becca. Eu vivo para esse sonho há três anos, mas
nem de longe será como almejei, pelo simples fato de não
ter você lá comigo. Nada jamais será tão bom sem uma
parte fundamental de mim. — Seus olhos brilharam. — Eu
sei que ficar aqui vai ser uma barra, você tem razão,
temos muitas memórias juntos. Mas também sei, tão certo
como meu coração é seu, que vai conseguir passar por
isso. Você é muito mais forte do que imagina. Aguentou
coisa bem pior e usou como motivação para percorrer
seus objetivos. Nunca perdeu a alegria, nunca parou de ter
esse jeitinho Rebecca de ver o mundo. E isso, donzela, é...
admirável.
Adônis colocou o pacotinho na minha mão e
fechou meus dedos sobre ele com as suas. Depois disso,
colocou-a ao seu coração.
— Nada é permanente. Estamos nos separando
agora, mas não temos como saber o que o futuro nos
reserva. Você sabe que a vida tem esse jeito engraçado de
agir, né? Nós dois achávamos que não encontraríamos o
amor e olha só aonde viemos parar. — disse, soltando
minha mão em seguida.
Não pude dominar o sorriso enorme que surgiu em
meu rosto. Por alguma razão, suas palavras trouxeram
alegria para o meu coração dolorido. Porque, no fim das
contas, ele tinha razão. Nenhum de nós poderia imaginar o
rumo que aquele ano tomaria. Nenhum de nós planejou se
apaixonar. O mundo dá voltas e nós nunca sabemos para
qual direção.
Desviei a atenção para o pequeno embrulho em
minhas mãos. Adônis era sempre cheio de surpresas e
essa era uma das coisas que eu mais adorava nele.
Mordisquei o lábio inferior, abrindo o pacote sem muito
alarde e o inclinando, para que o conteúdo escorregasse
sobre os meus dedos. Levei-o para mais perto dos olhos,
a fim de estudá-lo.
Tratava-se de uma pulseirinha com quatro tiras de
couro trançado marrom e dois pingentes de ouro
envelhecido. O primeiro, um delicado e pequenino
símbolo do infinito, o qual me dizia tanto sem que Adônis
precisasse falar nada. O segundo, para a minha surpresa,
era um Tordo, o símbolo característico de Jogos Vorazes
e, principalmente, de Katniss Everdeen. No entanto,
apesar de eu amar a saga, fiquei um pouco decepcionada.
Esperava algo mais simbólico vindo dele. Algo que
dissesse mais sobre nós dois e que me recordasse dele
para sempre.
— É linda! Obrigada. — Fitei seus olhos com
intensidade.
Ele sorriu com um pouco de deboche, como se
soubesse exatamente o que eu estivera pensando há
poucos segundos.
— Não é para adorno, donzela — sussurrou, ainda
sorrindo. Então, pegou-a de minha mão e a colocou no
meu pulso direito, fechando os dedos sobre ela, em
seguida. — Essa pulseira é para você se lembrar. Lembrar
das pessoas que te amam muito e torcem pelo seu bem dia
após dia. Que a vida nem sempre é justa, mas os
momentos ruins servem para intensificar os bons. Que
tudo bem não estar bem às vezes. Mas só às vezes. E que
você pode se surpreender com as pessoas. Principalmente
se julgá-las de maneira precipitada. — Ele riu baixinho e
me lançou uma piscadela. Mostrei a língua para ele como
resposta.
“É para você se lembrar, principalmente, do
quanto é forte e capaz. Do quanto é incrível e destemida.
Do quanto sua coragem pode te levar para qualquer lugar
que quiser. Becca, é para você nunca desistir de percorrer
os seus sonhos, nem os que virão depois desses. E para
nunca, em hipótese alguma, deixar de acreditar em você
mesma. Porque eu acredito, meu amor. Nem a maior
distância do mundo pode mudar isso.”
Meu coração inflou dentro de mim de um tanto que
eu pensei que fosse explodir. Meu Deus, como ele podia
ser sempre tão incrível? Sempre tão romântico e perfeito
para mim? Isso dificultava demais as coisas. Abracei-o
com lágrimas nos olhos, sentindo-me agradecida por, pelo
menos, ter tido a chance de estar ao lado dele por todos
aqueles meses. Agradecida pela vida, de alguma forma,
ter nos unido.
Seus braços subiram pelas minhas costas,
apertando-me ainda mais contra ele. E, mesmo que ele
ainda estivesse ali, senti saudades. Do seu cheiro
amadeirado, da sua barba raspando na minha pele, dos
seus dedos compridos demais. Senti saudades de suas
piadinhas para me deixar envergonhada, saudades de
quando ele me enlouquecia quando nossos corpos viravam
um só.
— Eu nunca vou deixar de te amar, Chewie —
admiti, para ele e para mim mesma.
— Nem eu — falou em minha orelha. — Você
abriu o meu coração e agora é a única dona da chave.
Se lembra quando a gente
Chegou um dia a acreditar
Que tudo era pra sempre
Sem saber que o pra sempre sempre acaba
Mas nada vai conseguir mudar o que ficou
Quando penso em alguém, só penso em você
E aí, então, estamos bem

Cássia Eller – Por enquanto

Dublin, 13 de fevereiro de 2017.

Donzela,
Imagino que quando essa carta chegar, suas
aulas já tenham começado.
A tecnologia evoluiu há muito tempo em se
tratando de meios de comunicação, eu sei, mas acho que
dessa maneira combina muito mais com nós dois, não?
Ok, receio que esteja indo contra nosso trato de não
mantermos contato. Receio também que isso dificulte
muito aquela coisa toda de recomeçar do zero e tudo
mais. Seguir em frente... enfim. Você tem todo o direito
de não responder, se não quiser. Eu apenas não consegui
ser tão forte assim.
Você está bem? Como foram suas férias?
Espero que nenhum vizinho mal humorado tenha
se mudado para o apartamento da frente e roubado o
meu posto. Isso me deixaria bem chateado. Também
espero que o professor substituto seja um senhor de
sessenta anos prestes a se aposentar e que ele cuspa
bastante enquanto explica a matéria. Estou sendo um
pouco egoísta, mas me reservo o direito.
Como estão Arthur e Nataly? Ainda tentando te
levar para o mau caminho?
Por aqui as coisas estão uma loucura... A
primeira delas é que Castiel me odeia. Acho que ele
sente sua falta. E não o culpo, porque, porra, passo o
dia todo querendo te mostrar todas as coisas incríveis
que tem por aqui. Já me peguei, pelo menos três vezes, te
chamando como se você estivesse do meu lado.
Estou tentando me adaptar. Quando dizem que
aqui é muito frio, bem, não estão mentindo. Fora isso,
morar com outros dois homens me faz querer assassinar
alguém pelo menos 3x ao dia. Você sabe como odeio
bagunça, né?
Do sempre seu,
Adônis.
Maringá, 3 de abril de 2017.

Chewie,
Que surpresa maravilhosa receber sua carta!
Gritei por pelo menos meia hora quando vi o remetente e
gritaria muito mais se não fosse o síndico me
interfonando. Eu estava prestes a cortar os pulsos
quando ela chegou, então muito obrigada por salvar a
minha vida. (Talvez isso responda se estou bem, haha).
Brincadeiras à parte, as férias foram
deprimentes por um lado (creio que os motivos sejam
óbvios), mas maravilhosas por outro. Convidei Arthur
para viajar para Santa Cruz comigo e ele ficou radiante,
afinal, foi a primeira vez que viajou nas férias desde
quando começou a faculdade. Meus avós o amaram
(principalmente vovó, que fez questão de pintar o cabelo
dele de azul) e exigiram que ele voltasse nas próximas
férias.
Se isso te deixa aliviado, nossas novas vizinhas
são uns amores. Uma é estudante de química e a outra
de comunicação e multimeios. Nataly obviamente fez
amizade com as duas no dia da mudança, por isso às
vezes fazemos algo todos juntos. Ah, sim, respondendo a
sua pergunta sobre o mau caminho: meus amigos acham
que estou corrompida o suficiente e, de acordo com
Arthur, “o trabalho deles acabou por aqui”.
Sinto te decepcionar, mas nosso novo professor
de Produção Textual não é um senhor de sessenta anos
com problema salivar. Ele é, na verdade, um quarentão
muito sexy, é uma pena que já seja casado. Com um
homem, a propósito.
Mande um beijo para o Castiel e diga para ele
que eu o entendo, porque também te odeio. Também
estou com muita saudade. Às vezes é quase insuportável
e eu sinto raiva por precisar ser tão difícil. Algumas
noites choro até pegar no sono e acordo morrendo de
dor de cabeça. Eu saio do meu apartamento achando
que vamos nos cruzar nas escadarias e passo pela sua
vaga achando que o seu carro estará lá. Tomara que
eventualmente pare de doer tanto e as coisas fiquem
mais fáceis.
Espero que não tenha matado seus amigos. E
espero que fique frio o suficiente para você nunca mais
mostrar esse tanquinho para ninguém.
Com amor,
Becca.

Dublin, 21 de julho de 2017.

Donzela,
Queria dizer que nada de muito empolgante
aconteceu desde sua carta, exceto talvez por EU TER
SIDO ACEITO NA WATERFORD INSTITUTE OF
TECHNOLOGY!!!
Porra, acho que essa é a primeira vez que me
sinto verdadeiramente feliz desde que vim morar aqui.
Nem posso acreditar que vou estudar em uma
universidade tão foda, sério, acho que não caiu a ficha
de que finalmente vou viver o meu sonho. Pena que você
não esteja aqui para que as coisas fiquem, de fato,
perfeitas.
Vejamos o que mais tenho para contar...
Ainda não matei ninguém! E isso é uma coisa
muito, muito boa, considerando que os impulsos
homicidas estejam se tornando cada vez maiores. Meus
pesadelos agora têm a ver com pilhas de louça criando
mofo e roupas sujas espalhadas pela casa toda. Acordo
no meio da madrugada imaginando uma toalha molhada
sobre o sofá e, nossa, é assustador! Espero não acabar
enfartando.
Acho que você vai ficar feliz em saber que,
embora aqui seja verão agora, está muito longe de ser o
tipo de calor para ficar sem camiseta. Ou seja, a chance
de eu exibir meu corpo para as gringas é bem remota,
pode ficar sossegada.
Castiel está começando a me perdoar e agora
podemos sofrer juntos a falta que você nos faz. O que
melhora as coisas consideravelmente. É mais fácil ter
um ombro amigo, mesmo que esse ombro em questão seja
peludo e felino, hahaha.
E, já que toquei no assunto, não tem um único
dia que eu não pense em você no mínimo umas cinquenta
vezes. Sei que parece piegas, mas juro pelo meu avental
do Darth Vader que é verdade. Volto para Brasil em
Dezembro, minha mãe está fazendo terror psicológico
para eu passar o natal com eles e eu queria muito te
visitar. Na verdade, não só visitar, mas aproveitar todo o
tempo possível com você. Sei que isso não ajuda em
nada o nosso plano inicial de seguir em frente (e talvez
seja até um pouco perigoso), mas, eu juro, eu não
consigo e nem quero seguir em frente. Quero você. Só
você e, para sempre, você. Pense a respeito, sim?
De um homem desesperado,
Adônis.

Maringá, 17 de outubro de 2017.


Chewie,
Pelo amor de Yoda, estou tão feliz por você!!!
Parabéns, parabéns, parabéns! Você merece toda a
felicidade do mundo. Desejo de coração que essa nova
fase da sua vida seja incrível. Meu Deus, são tantas
coisas que eu quero saber, como, por exemplo — como é
o seu campus? E as aulas? Os professores? As matérias?
Já fez novos amigos? Você vai precisar me contar
TODOS os detalhes quando estiver aqui!
Porque, sim, é claro que minha resposta só
poderia ser essa. Obviamente peguei meu juízo e joguei
no lixo (afinal as chances de sofrermos ainda mais
depois disso são grandes), mas não me arrependo
minimamente. Estamos com o mesmo problema de não
conseguir e nem querer seguir em frente. Também não
paro de pensar em você, nem no Castiel. Acho que não
tem como, porque vocês fazem parte de mim, no fim das
contas.
Ah, por falar nisso, que dia você chega?
Podemos ir para estreia de Star Wars, os últimos Jedi, o
que você acha? Estou tão empolgada!
Um adendo sobre você não mostrar o tanquinho
para irlandesas ruivas e possivelmente lindas — isso
não me deixa apenas sossegada, me deixa quase tão feliz
quanto você ter sido aceito na universidade dos seus
sonhos. Parafraseando um ex-vizinho gostoso que tive,
estou sendo egoísta, mas me reservo o direito, hahaha.
Por aqui as coisas não sofreram grandes
mudanças. Continuo estudando muito e desenhando na
medida do possível. Arthur finalmente superou o idiota
do Pedro e voltou a ser o pervertido de sempre. Aliás,
ele veio me perguntar se eu sabia algo sobre o sumiço de
suas camisinhas e eu obviamente quis morrer um pouco
nesse dia, mas já superei isso.
De uma garota ansiosa,
Becca.

Waterford, 30 de janeiro de 2018.


Donzela,
Eu amei te ver. Porra, como amei! Foi como me
sentir vivo outra vez. Adorei passar o mês inteirinho com
você, adorei principalmente te amar com toda a
intensidade que você merece. Acho que dezembro foi o
único mês de 2017 em que eu realmente fui feliz. Droga,
o que faço com o meu coração? Por ele eu jamais teria
voltado para cá. Dessa vez a despedida foi ainda mais
difícil do que na primeira. Estou na merda, de verdade,
hahaha. Meus amigos de banda me pegam chorando nos
momentos mais delicados e eu simplesmente não tenho o
que fazer além de aceitar que, sem você, eu jamais
voltarei a ser completo.
Ah, sim, eu disse colegas de banda. Eu e meus
amigos conhecemos um americano e um irlandês em um
pub que foram loucos o suficiente para topar fazer
música com a gente. Estamos apenas nos divertindo, sem
compromisso, mas é ótimo retomar os velhos tempos ao
mesmo tempo em que as coisas são novas e inesperadas.
Como, por exemplo, o fato de não sermos mais uma
banda que faz cover.
Aliás, essa música fui eu que escrevi e estamos
muito empolgados com ela:

“The Tyrannosaurs — Collision

Eu ainda me lembro daquela noite


Quando percebi que as coisas nunca mais seriam
iguais
Você estava parada na minha porta usando
apenas uma camiseta
Seus olhos arregalados me fitavam com
expectativa
Como se pedissem permissão para entrar na
minha vida

Ohhhh, e eu soube, em uma fração de segundo


Que nós não seríamos apenas dois estranhos
colidindo um contra o outro
Você era tão destemida, querendo seguir adiante
E penetrar cada vez mais fundo no meu coração
Até que estivesse cravada em minha alma
Mas eu só conseguia me perguntar
Como pude abrir a porta? Por que deixei você
entrar?

Ohhh, e eu soube, em uma fração de segundo


Que nós não seríamos apenas dois estranhos
colidindo um contra o outro

Ohhhh, agora já não há mais volta


Ohhhh, agora já não há mais volta

Você está em mim


E eu não tenho mais medo
Porque finalmente entendi

Que não somos mais dois estranhos colidindo um


contra o outro
Não precisamos colidir um contra o outro
A única coisa que precisamos é dar as mãos
Porque a estrada ainda é longa

E tudo bem não conseguir tirar você da cabeça


Não preciso tirar você da cabeça
Porque, em você, encontrei a salvação”

Estou muito empolgado para saber a sua


opinião.
De alguém apaixonado,
Adônis.

Maringá, 9 de março de 2018.

Chewie,
PELO AMOR DE ALVO DUMBLEDORE, QUE
COISA MAIS LINDA!!!!
Nossa, é desnecessário dizer que chorei por
horas, né? Mal posso esperar para ouvir, sei que vai
ficar ainda mais perfeita na sua voz. A propósito, eu
AMEI o nome da banda. Mil vezes melhor que O Tadeu,
hahaha.
Sério, são detalhes assim que tornam impossível
não te amar. Você é muito amável, sabia? O que não
facilita muito as coisas para o meu lado, mas tudo bem.
Entendo perfeitamente o seu sofrimento, por aqui
as coisas ficaram bem difíceis de novo. Tudo me lembra
você e eu tenho vontade de pegar o primeiro avião e ir
aí te visitar. Mas, bem, as coisas não são tão fáceis
assim, infelizmente.
2018 mal começou e eu já o odeio com todas as
minhas forças! Nataly se mudou logo no começo do ano.
Ela conseguiu um intercâmbio para o Canadá pelo
Ciência sem Fronteiras e volta só no ano que vem.
Estou com um pouco de inveja? Estou. Sou uma péssima
amiga? Talvez.
Como se não bastasse isso, Arthur se mudou essa
semana para São Paulo. Eu não estava esperando que
ele fosse embora tão cedo, quero dizer, a formatura dele
foi ainda no começo do mês. Então, sim, fui abandonada
pelas três pessoas que mais amo no mundo depois dos
meus avós. E sou a rainha do drama, pelo jeito, hahah.
A parte boa disso é que provavelmente esse é o
momento da minha vida em que me torno uma mulher
bem independente e foda. Tomara!
De alguém carente,
Becca.

Waterford, 2 de agosto de 2018.

Donzela,
Nem sei por onde começar... Minha vida está
tomando um curso inesperado, tem tantas coisas
incríveis acontecendo e eu lamento que
coincidentemente seja em um momento tão difícil para
você. Eu daria tudo para estar ao seu lado, encontrando
todos os motivos possíveis para colocar um sorriso em
seu rosto. Mas sei que você é incrível e forte o suficiente
para conseguir passar por cima disso, então vou ficar
na torcida para que as coisas se ajeitem e você fique
bem.
Sinto muito só estar respondendo agora, sinto
mesmo. Sua carta chegou há dois meses, durante as
minhas férias de verão, mas eu não estava em casa.
Acabei de voltar. E, na verdade, ainda estou vestindo as
roupas da viagem. O que nos leva ao começo da carta,
inclusive, sobre as coisas que estão acontecendo
comigo. Com a minha banda, na verdade.
No começo do ano, pouco depois de te escrever,
começamos a tocar em pubs ocasionalmente. Apenas
para relembrar os velhos tempos e, você sabe,
experimentar a sensação pela qual nós cinco somos
viciados — a de estar em um palco. Arriscamos tocar as
músicas de nossa autoria e, estranhamente, está dando
certo! Quero dizer, viajamos estes dois meses por toda a
Europa tocando nos bares mais variados e as pessoas
sabiam cantar nossas músicas! E, fora isso (que já é
foda para cacete) no Spotify, que tem só a Collision por
enquanto, já passamos de 10 mil seguidores!
Isso é 1/5 da população de Waterford. Ainda não
caiu a ficha, de verdade! E eu queria poder viver tudo
isso intensamente como meus amigos de banda, mas não
consigo. Nada chega perto do que sonhei um dia, porque
não tem como ser realmente feliz sem você aqui, Becca.
Você não sai da minha cabeça nem por um segundo e eu
acho que vou enlouquecer se não te encontrar outra vez.
Você gostaria de me ver?
Se você quiser, eu volto para o Brasil em
dezembro só para te ver. Só para você. Me diz que sim,
por favor! Vamos fingir que tudo é fácil para nós e que
temos todo o tempo do mundo.
Eu te amo muito e isso nunca vai mudar.
Adônis.

Maringá, 5 de outubro de 2018.


Chewie,
Ainda não acredito que o meu ex-namorado está
ficando famoso! (E, ainda por cima, com uma música
que é sobre mim). Céus, se a sua ficha ainda não caiu,
imagine a minha? Sou uma musa inspiradora e tanto,
hein? Hahah
Eu nem tenho palavras para expressar o quanto
fico feliz por você. Está realizando seus sonhos, afinal.
Isso é incrível. Hoje mesmo dei uma olhada no Spotify e
vocês já estão com quase 400 mil seguidores — que é
exatamente a população de Maringá. E agora me
ocorreu que a cidade onde você está morando é
minúscula! Só espero que não se esqueça de mim quando
suas fãs começarem a jogar as calcinhas no palco, bem
ao estilo Wando. :P
Bom, sobre a última parte da sua carta...
Conheço essa frase — vamos fingir que tudo é fácil para
nós e temos todo o tempo do mundo — de algum lugar,
eu receio, hahaha. Você sabe que meu coração sempre
dirá sim, mesmo quando minha lógica implora para que
seja um não. É ele quem tem a palavra final, só me resta
aceitar isso. Além do mais, nós nunca fomos muito bons
em pontos finais, não é? Nossa história, em vez disso,
tem um punhado de ponto e vírgulas.
Então, respondendo sua pergunta, vou adorar te
ver. Mais que isso, vou contar os dias. Porque, Chewie, a
recíproca é verdadeira: não tem como ser realmente feliz
sem você aqui.
Ps¹.: Agora eu moro no bloco C, apartamento 28.
Ps².: Meus colegas de apartamento não são
exatamente legais.
Ps³.: Eu adoraria acampar, hahaha.
Becca.

São Paulo, 27 de fevereiro de 2019.

Chewie,
Essa carta é apenas para te atualizar do meu
novo endereço.
Pois é, isso foi bem inesperado, eu sei, haha.
Nataly resolveu estender o intercâmbio por mais seis
meses e eu simplesmente não aguentaria ficar mais
nenhum dia em Maringá, com todas aquelas lembranças
de vocês três me seguindo por onde quer que eu fosse.
Por isso transferi o meu curso para cá e agora moro de
novo com Arthur.
No fim das contas, voltei ao meu estado de
origem e isso é uma ironia. Mas confesso que jamais
imaginei o quanto me apaixonaria por São Paulo. É uma
cidade maravilhosa (metaforicamente, é claro, porque
sinto falta de todas aquelas árvores de Maringá.
Acredite: elas são muito úteis). Jamais experimentei
essa energia pulsante de que tudo pode acontecer a
qualquer momento e, nossa, tem tudo a ver comigo.
Parece que finalmente me encontrei.
Aliás, tenho ótimas notícias (finalmente). A
primeira e mais significativa é que EU CONSEGUI UM
ESTÁGIO NA EDITORA DRAKON!!! Uhuuuuu! Essa é
APENAS a editora que publicou Harry Potter e Jogos
Vorazes aqui no Brasil. Entre outra infinidade de livros
incríveis, é claro. Estou empolgadíssima e tremendo de
medo. Ainda não comecei, então não posso te dar
detalhes mais consistentes, mas o fato é que me pego
sorrindo a toa em vários momentos do dia quando para
pensar que as coisas estão acontecendo. Acho que agora
sei um pouco como você está se sentindo com sua banda.
A sensação é maravilhosa!
A segunda é que a sentença do processo contra
Marcela saiu! Ela foi condenada a me indenizar com
nada menos que 50 mil reais.
Cinquenta. Mil. Reais!
Por Peeta Mellark, eu ficaria contente com
míseros 50 reais, apenas pelo que representaria. Mas
assim também está ótimo, hahah. Quero dizer, eu nunca
poderei fazê-la sentir um terço do que eu senti em todos
aqueles anos, mas ao menos ela vai sentir no bolso. A
justiça foi feita e isso é maravilhoso. Agora eu posso,
enfim, ficar em paz. Obviamente esse valor será
parcelado, e ainda tem a porcentagem do advogado para
descontar, mas a parte boa é que eu terei uma mesada
pelos próximos anos.
Sua visita parece distante depois de tantos
acontecimentos, mas, ainda assim, viva na memória.
Amei ver você novamente, amei o seu cheiro na minha
pele, amei que, por algumas semanas, fomos apenas nós
novamente. E é tudo muito fácil quando somos apenas
nós.
Sinto muito sua falta.
Becca.

São Paulo, 16 de julho de 2019.

Chewie,
Trabalhar em uma editora não é nada parecido
com o que sonhei. Na vida real, é bem mais estressante,
menos glamouroso e diria até um pouco frustrante. Tem
tantos talentos não descobertos escondidos por aí, que
com certeza mudariam a vida de muitas pessoas, mas me
falta poder para fazer qualquer coisa a respeito. Estou
um pouco desapontada por ter levado tanto tempo para
alcançar meu sonho e então descobrir que era “só isso”.
Talvez seja a hora de percorrer novos objetivos? Eu não
sei.
Mas se tiver que trabalhar nesse emprego para
sempre, talvez eu fique muito, muito infeliz mesmo. Ele
não é para mim.
Bom, tirando isso, minhas emoções estão uma
bagunça.
Isso é um pouco culpa sua.
Na verdade, é totalmente culpa sua. Estou apenas
sendo legal, haha.
Vi que vocês assinaram contrato com uma
gravadora incrível e só consigo ficar feliz que sua vida
esteja no rumo que você sempre sonhou. Isso explica o
porquê de eu nunca mais ter notícias suas. Deve estar
muito ocupado. Só que o problema disso é que seu
silêncio está mexendo comigo além da conta. Chego em
casa dia após dia procurando uma carta sua, buscando
um pouco mais de você, sem saber quando ou se vou
encontrar. Estou desnorteada. Não faço a menor ideia de
para qual direção correr.
Andei refletindo muito sobre essa loucura que
somos nós. E então me ocorreu que, meu Deus, até
quando vou continuar me enganando com pequenas
migalhas do amor que já tive um dia? Você não está
mais aqui, nem nunca mais estará. Sua vida está
prosseguindo e, a cada passo que você dá adiante,
também é um passo a mais para longe de mim. Céus,
como isso machuca! Machuca muito saber que, embora
o meu sentimento por você continue exatamente o mesmo
— se não maior — as coisas jamais voltarão a ser como
antes. Nós nunca mais voltaremos a ser aquelas duas
pessoas que só funcionam juntas. Estou feliz por você, é
claro, mas ao mesmo tempo algo morre dentro de mim.
Arthur me diz que eu preciso seguir em frente.
Preciso superar o passado e tentar achar a minha
felicidade. Acho que concordo com ele. Nossa história
foi linda e intensa, mas isso aqui é uma ilusão, estamos
sendo inocentes por achar que vai dar em alguma coisa.
Isso aqui é um erro, Adônis.
Então, acho que você deveria saber, estou saindo
com um colega do trabalho há algumas semanas.
O amor e o carinho que sinto por você jamais
mudarão. Você foi o meu primeiro amor e, mais do que
isso, virou parte de mim. Não posso mudar isso e nem
vou. Mas eu não sei se é justo comigo mesma esperar
por alguém que não vai voltar, entende? Talvez já tenha
passado da hora de virar essa página. Não porque quero
deixar você para trás, mas porque preciso disso, ou
jamais serei feliz outra vez. E, por mais que seja difícil e
doloroso, tenho que tentar.
Espero que esteja bem,
Becca.

Waterford, 4 de novembro de 2019.

Rebecca,
Uau! Eu estou... sem palavras.
Surpreso? Com certeza.
Feliz? Deveria estar, eu sei. Seria tão nobre e
maduro da minha parte, não?
Só que não podia ser mais distante disso, porque,
nesse momento, estou com vontade de quebrar coisas.
Muitas delas.
Porque estou com tanta raiva? Porque sou um
idiota, é claro.
Que bom que você conseguiu nos superar. Espero
um dia também conseguir.
E, Becca, desejo verdadeiramente que seja muito
feliz.
Adônis.

São Paulo, 10 de janeiro de 2020.

Chewie,
Quem dera eu tivesse superado! Mas, dado o fato
de que terminei o namoro com um cara incrível
simplesmente porque ele não era você, acho que estou
bem longe disso, hahaha. Fico me perguntando se algum
dia vou conseguir estar com uma pessoa sem
instantaneamente me lembrar de você, ou se o único
caminho que resta para mim é adotar vários gatinhos
(peça desculpas ao Castiel) para tentar preencher o
vazio que ficou aqui dentro desde que você partiu.
Arrisco dizer que será a segunda opção.
A razão dessa carta é que eu comecei a escrever
no final do ano passado, para tentar colocar para fora
todo esse turbilhão de sentimentos que abrigo dentro de
mim. E foi tão bom! As palavras jorravam para fora sem
o menor esforço. Eu podia estar com o pior dos humores,
era só sentar para escrever que meu dia voltava a se
iluminar e as cores ficavam mais vibrantes.
Enfim, o fato é que eu nunca tive pretensão
nenhuma com isso. Nunca quis nada além de tirar o peso
dos meus ombros. Ocupar a mente para não acabar
surtando. Só que isso foi até Arthur ler escondido (sim,
ele continua sendo uma peste). Ele insistiu tanto que eu
estava desperdiçando um dom e que deveria publicar na
internet, que acabou me vencendo pelo cansaço.
Daí ele me mostrou esse site, o Wattpad, que é
uma espécie de plataforma para autores amadores
disponibilizarem suas obras gratuitamente. Então os
leitores podem ler, comentar e votar naquelas obras que
mais gostarem.
Eu fiquei bem cética e, para falar a verdade,
nunca acreditei que 1 única pessoa fosse ler. Então
imagine qual não foi a minha surpresa quando, em
apenas dois meses, o livro já tenha passado da marca
dos 5 milhões de leituras? É inacreditável! Mal posso
conceber que isso esteja mesmo acontecendo.
Talvez você esteja se perguntando por que diabos
eu te contaria tudo isso nessa altura do campeonato. E,
bem, é porque meu livro, A Linguagem do Amor, é sobre
nós dois. Não era a minha intenção falar sobre você. A
intenção era justamente NÃO falar. Escrever foi minha
tentativa de te tirar da cabeça, mas, você sabe, em se
tratando de sentimentos, nunca detive muito controle
sobre eles. Ainda não o terminei, mas estou muito
empolgada que as pessoas estejam gostando da minha
escrita e, sobretudo, da nossa história.
Me dá a certeza de que se eu pudesse voltar no
tempo para quando te conheci, teria vivido tudo
novamente, mesmo sabendo de quão angustiante seria a
sua ausência. Pelo simples fato de que fomos perfeitos
juntos. E, poucas vezes na vida, se experimenta algo
parecido.
Rebecca.

São Paulo, 5 de junho de 2020.

Chewie,
Eu te conheci no auge dos meus dezessete anos,
dá para acreditar?
Sei que se estivesse do seu lado, você
provavelmente reviraria os olhos para mim e diria que
adora a minha sagacidade. Não te culpo, eu sou mesmo
rainha de fazer comentários óbvios. Mas é que agora,
perto de completar vinte e dois, eu finalmente me dei
conta de como já faz tempo! Me surpreendi não só com
os anos que passaram, mas principalmente no quanto as
coisas mudaram de lá para cá, sabe? Céus, quase parece
outra vida. Tudo mudou, nossas realidades mudaram.
Quem poderia imaginar nos rumos que seguiríamos? Eu
jamais poderia fazer ideia. A única coisa que não mudou
nesse intervalo foi o meu amor por você. Mas, sendo
honesta comigo mesma, receio que isso nunca vai deixar
de ser assim. E tudo bem. Você é a minha faceta mais
bonita.
Acho tão engraçado que, por tanto tempo, me
privei do amor com medo de sofrer e fui me apaixonar
logo pelo meu professor complicado, que estava de
viagem marcada para fora do país. Quero dizer, dentro
todas as coisas fáceis, olha só onde fui parar! Talvez
você seja meu carma, Hahahah
Não sei se você vai ler essa carta, tampouco sei
se chegou a receber a última. Gosto de me convencer
que não, e esse é o único motivo para nunca mais ter
respondido. Mas, se por acaso estiver com essa em
mãos, talvez no meio de um voo para o próximo destino
da turnê da sua banda, ocupado demais para dar um
sinal de vida, saiba que esse é um adeus. É aqui que
nossos caminhos finalmente encontram a bifurcação e
você deixa de fazer parte da minha vida. Ou é nisso que
quero acreditar. O fato é que na próxima semana me
mudo desse endereço e não pretendo mais entrar em
contato com você. Isso dói em mim, mas o caminho certo
nem sempre é o fácil. Está me machucando demais adiar
esse adeus que, na verdade, já aconteceu em alguns
anos, em um hotel fazenda, com você me dizendo as
palavras mais lindas que alguém já me disse um dia.
Então, apenas para não encerrarmos com um
clima pesado que não combina em nada com nós dois,
que tal eu te contar as novidades?
A Linguagem do Amor alcançou 8 milhões de
leituras online! O que acabou chamando atenção de uma
das maiores editoras do país e, por isso, serei lançada
na Bienal de São Paulo, dia 28 de agosto às 20h. Onde
quer que você esteja nesse dia, espero que se lembre de
mim e saiba que finalmente me encontrei. Finalmente
achei algo que faça com que eu me sinta viva, como há
muito não me sentia. É o primeiro raio de felicidade
depois de uma longa tempestade.
Torço muito pela sua felicidade (e a de Castiel
também). Espero que encontre alguém incrível, que te dê
mais motivos para sorrir do que para chorar. Espero que
viaje o mundo e conheça os mais diferentes lugares e
que, em cada um deles, as pessoas o reconheçam pela
sua música e contem o quanto você os ajudou a sair de
um momento ruim.
Obrigada por me ensinar a amar.
De alguém que para sempre te desejará o bem,
Princesinha-donzela.
Estou na miséria
Não há ninguém
Que possa me confortar
Por que você não me responde?
Seu silêncio está me matando lentamente

Maroon 5 - Misery
— Você pode assinar esses dois, por favor?
Minha melhor amiga não pôde vir junto e eu queria muito
surpreendê-la. Ela ama esse livro! — subi o olhar e
encontrei uma garota que deveria estar na casa dos quinze.
Ela tinha expressivos olhos castanhos e um sorriso
nervoso estampava o rosto.
No mesmo instante, meu coração apertou
consideravelmente.
— Como é o seu nome? — perguntei, mordiscando
o lábio inferior.
— Rebeca, mas com um c só! — exclamou,
animadíssima.
— Que legal! — deixei escapar e, apenas para
confirmar a resposta, olhei de soslaio para o meu editor
que negou com um acenar de cabeça, indicando a fila que
se estendia atrás dela. De fato, era enorme. E, levando em
conta que eu só tinha mais uma hora para autografar os
livros de todas aquelas pessoas, era compreensível o
porquê de ele não hesitar em sua resposta. — Eu adoraria,
mas infelizmente não posso, me desculpa. Temos um
cronograma e se abrirmos essa exceção para uma pessoa,
vamos precisar abrir para todo mundo. E ainda tem muita
gente para assinar... — encolhi os ombros.
Ela não era a primeira a pedir e eu sabia que não
seria a última. E eu, manteiga derretida como era, ficava
chateada de não poder atender todos os pedidos. Mas
também não seria justo com todas as pessoas que haviam
conseguido as senhas.
Por sorte, Rebeca levou na esportiva e estendeu
seu livro com um sorriso enorme no rosto, no qual assinei
bem grandão, “Rebeca, espero que esse livro seja para
sempre um lembrete do quanto a vida pode nos
surpreender. Um beijo da sua xará, Becca!”.
— Aqui está — entreguei o livro em suas mãos e
ela logo veio ao meu lado, para que o fotógrafo batesse
uma foto nossa. Minhas bochechas doeram quando eu
sorri, mas, estranhamente, essa foi uma dor deliciosa que
adoraria continuar sentindo.
Era incrível saber que todas aquelas pessoas
estavam ali por mim, unicamente porque apreciavam o
meu trabalho a ponto de se importarem comigo. Ainda não
havia caído a ficha de que aquilo estava mesmo
acontecendo. Não só eu estar na minha própria sessão de
autógrafos, mas, principalmente de que pessoas me
pediam para assinar um livro a mais e eu precisava negar.
Quero dizer, nem nos meus sonhos mais incríveis e
impossíveis algo tão maravilhoso assim acontecia!
Assisti a Rebeca se afastar depois de nos
despedirmos e aproveitei o momento para pegar outra
caixa de marcadores embaixo da mesa. Fiquei tão
distraída pensando no quanto a noite estava sendo incrível
que, quando me levantei novamente, pulei no lugar ao me
deparar com o homem parado logo em minha frente. Pelo
olho de Sauron!, pensei atônita, piscando algumas vezes
apenas para confirmar se estava mesmo vendo aquilo ou a
minha mente estava com sérios, sérios problemas. Se
aquele cara não era o Thor, eu não sabia quem era! Ele
tinha, o que, dois metros de altura? Talvez mais. O fato é
que seus cabelos loiros compridos eram desconcertantes,
isso sem contar em todos aqueles músculos... Foi então
que desviei os olhos ligeiramente para a esquerda e
reparei em sua namorada, que vinha logo atrás dele,
abraçada ao meu livro como se o usasse de escudo. Ela
também não ficava muito atrás, para ser honesta. Os
cabelos castanhos caíam em cascatas pelos ombros e os
olhos avelãs me fitavam com expectativa. Não sei
exatamente a razão — talvez tenha sido culpa do seu
namorado imenso, ou apenas suas características físicas
muito semelhantes —, mas foi impossível não associá-la à
Bela, de A Bela e a Fera. E a constatação me arrancou um
sorriso.
— Becca, estou tão feliz em conhecer você! —
exclamou ela, arriscando um passo à frente, com um
sorriso no rosto. — Te acompanho desde o Wattpad... li
seu livro em um único dia e, pelos deuses, eu amei!
— Sério?! — perguntei, com um sorriso idiota no
rosto.
Não adiantava, eu continuava delirando cada vez
que alguém me dizia coisas do tipo. Era simplesmente
insano pensar que algo escrito por mim tivesse ganhado a
atenção de uma pessoa a ponto de ela não conseguir
abandonar a leitura.
— É sério!
— Nossa... eu queria conseguir exprimir o quanto
isso me deixa feliz, mas acho que dá para notar na minha
cara, né? — brinquei, fazendo-os rir.
Meu editor pigarreou com um pouco de
impaciência, lembrando-me da realidade. E, nela, eu não
tinha tempo para jogar conversa fora, embora fosse algo
realmente convidativo. Por isso, tudo o que fiz foi pegar o
livro das mãos dela, colocando-o sobre a mesa e abrindo
na folha de rosto.
— Eu assino no nome dos dois?
— Isso! — foi ele quem respondeu, olhando para
ela. Meus pensamentos foram parar inevitavelmente em
Adônis. Senti uma pontada na boca do estômago, odiando-
me por, mesmo depois de tanto tempo, não ter conseguido
superar o passado. — Nora e Átila, por favor.
— Certo.
Inclinei-me para frente e escrevi a dedicatória em
poucos segundos, devolvendo-o a Nora, que me
surpreendeu ao contornar a mesa para me abraçar.
Retribuí o gesto, ao mesmo tempo em que ele parou à
minha esquerda, para que o fotógrafo tirasse uma foto de
nós três.
E, mesmo depois de eles terem abandonado a
mesa, permaneci com o mesmo sorriso bobo no rosto,
afetada pelo carinho de Nora comigo. O que foi muito
bom, porque assim não foquei no fato de que, mesmo sem
querer, a presença deles acendeu uma parte minha muito
perigosa. Aquela que, normalmente, fazia-me chorar
ouvindo Beatles, ou cada vez que alguém falava sobre
dinossauros perto de mim — entre outras situações do
tipo.
Fazia pouco mais de duas horas que eu estava ali
e, apesar do cansaço físico e mental depois de tanto
conversar e interagir com meus leitores, a felicidade era
esmagadora e compensava todo o resto. Era justamente
por isso que eu me recusava a deixar o melhor dia da
minha vida ser apagado pela memória de Adônis. Eu não
me permitiria sentir saudades, tampouco tristeza. Não, eu
precisava ser grata por todas as coisas incríveis
acontecendo em minha vida.
Naquela manhã, quando Arthur e Nataly me
acordaram com o café na cama e um buquê lindo de Lírios
do Vale — cujo significado, segundo eles, era “volta da
felicidade” —, fiz uma promessa de que, não importa o
quanto doesse, eu lutaria para permanecer firme. Lutaria
pela volta da minha felicidade. E, no fim das contas, não
foi muito difícil, principalmente levando em consideração
a quantidade de carinho e amor que recebi de tantas
pessoas diferentes.
Além do mais, tinham também meus avós que,
assim como meus melhores amigos, não saíram do stand
da editora desde o começo da minha sessão de autógrafos.
Mesmo sem cadeiras para sentar, os quatro pareciam tão
felizes quanto eu e, cada vez que os procurava com o
olhar, encontrava-os conversando animadamente, sempre
com um grupo de pessoas diferente. Eu quase podia
imaginar vovô dizendo para cada um deles:
— Becca é a minha neta, sabia? Ela é como uma
filha para mim!
Isso deixava meu coração transbordando de amor.
Ter os quatro ali era maravilhoso e eu me sentia muito
realizada, ainda mais por ter o apoio das pessoas que
mais amava. No entanto, por mais errado que parecesse
admitir isso, ainda faltava algo. Agora eu entendia muito
bem o que Adônis me disse pouco antes de ir embora para
a Irlanda, sobre seu sonho jamais ser como sempre
almejou, porque não estaríamos mais juntos. Era
exatamente assim que eu me sentia. Como se possuísse
uma ferida dentro de mim a qual nunca cicatrizasse e que,
graças a isso, eu não pudesse viver as outras coisas sem
que sua presença estivesse tão incisiva em minha vida.
Tudo o que eu mais queria era arrancá-la, para poder me
lembrar de como era viver sem algo incomodando
constantemente. Droga, eu só queria conseguir esquecer.
Ou, ao menos, tentava me convencer disso.
Balancei a cabeça para afastar os pensamentos
turbulentos e, em seguida, abaixei para alcançar minha
garrafinha de água embaixo da mesa. A fila permanecia
enorme e eu simplesmente não podia me dar ao luxo de
continuar divagando, ainda mais quando tantas pessoas
tinham saído de suas casas para me prestigiar. Ainda
escondida atrás da mesa, percebi que já havia alguém
aguardando para me ver e, por isso, apressei-me. Dei um
longo gole e senti a água fresca descer pela garganta,
aliviando a sede. Ao levantar, encontrei um livro já aberto
na folha de rosto, apenas a minha espera. Expirei o ar dos
pulmões e, ainda ocupada em fechar a garrafinha,
perguntei distraída:
— Assino no nome de quem?
— Chewie.
Foi rápido demais e, ao mesmo tempo, pareceu
acontecer em câmera lenta. Uma dessas antíteses sem
explicação da vida. Enrijeci-me, engolindo em seco. Em
nem ao menos havia tido a chance de olhar para cima
ainda. Agora, no entanto, não seria mais preciso. Eram
muitos detalhes que, somados, dissipavam qualquer
sombra de dúvida. Em primeiro lugar, sua voz. Eu a
reconheceria mesmo em mil anos. Depois tinha o perfume
que, embora tivesse se apagado de minha memória,
reacendeu tão logo ele penetrou minhas narinas. Inspirei
profundamente, sendo invadida ao mesmo tempo pela
fragrância e pelas memórias. Mas, ainda que não houvesse
nada disso, daria para suspeitar de algo pela comoção que
se fez ao meu redor. Havia um murmúrio ocupando o
stand inteirinho, como se todos ali dentro sussurrassem
uns para os outros que o reconheciam da banda
Tyrannosaurs — ou, quem sabe, do meu livro.
Com o coração a mil por hora e morrendo de
medo do iminente, subi o olhar. Se eu ainda estava
respirando, provavelmente parei naquele exato momento.
Adônis estava ali, encarando-me com os olhos de
Outono em brasa. Sua expressão era dura, diria até brava.
As grossas sobrancelhas encontravam-se unidas,
formando vincos profundos na testa. Ele usava um chapéu
preto e a barba estilo lenhador permanecia intacta, como
eu adorava.
Notei, no entanto, que apesar da postura firme, seu
corpo entregava, de maneira sutil, o desespero que ele
tanto tentava esconder. Isso porque seus dedos tremiam
levemente, e ele não parava de bater a ponta do coturno
no chão. Mas o principal certamente era a maneira como
sua respiração estava entrecortada, tal como se ele tivesse
acabado de correr uma maratona inteira antes de estar ali.
Chocada, a única coisa que consegui verbalizar
foi:
— O que está fazendo?
— Te dando uma resposta — explicou, apoiando-
se com as duas mãos na mesa de autógrafo.
— Uma... resposta?
E então, a explosão começou. Céus, eu nem ao
menos tive tempo para me preocupar com a quantidade
alarmante de pessoas nos assistindo porque as palavras
que ele falava com tamanha intensidade e urgência
roubaram todo o meu foco.
— Sim, donzela. Viajei mais de 10 horas para te
responder! Só para dizer que te conhecer foi a coisa mais
incrível que já me aconteceu. E que, por isso, não preciso
e nem quero encontrar ninguém mais. Porque é
insignificante outra pessoa me dar motivos para sorrir
quando você deu um sentido para a minha vida. E,
donzela, viajar pelo mundo não é um sonho. Não quando
se acorda noite após noite sozinho e confuso em um quarto
de hotel, relembrando a única vez em que foi
verdadeiramente feliz na vida inteira e sentindo que um
pedaço seu morre a cada dia em que se distancia mais e
mais dessa pontinho de luz em anos de escuridão. Viajar
pelo mundo é igual acampar, só vale a pena com uma boa
companhia! — Adônis se inclinou ainda mais para frente,
ficando a pouquíssimos centímetros de distância. Então,
diminuindo consideravelmente o tom de sua voz, falou
olhando no fundo de meus olhos. — Você disse que torce
pela minha felicidade, mas, porra, Rebecca, será que você
realmente não vê? A única maneira de eu ser feliz é com
você ao meu lado!
Aquele foi o estopim para que eu jogasse o meu
juízo no lixo. Ou, ao menos, o que restava dele. Sem me
importar com nada mais além do que meu coração pedia,
levantei-me em um rompente, ignorando o resto do mundo
e focando apenas no que importava — nós dois. E, eu
juro, a vida voltou a ser boa outra vez.
Eu sabia que todas as questões envolvendo Adônis
e eu ainda estavam em aberto. Sabia que ele me devia
explicações e sabia que eu provavelmente tinha arruinado
o cronograma de autógrafos e que talvez fosse receber
uma bronca do meu editor. Mas nada disso fazia
diferença.
Naquele momento, com Adônis me beijando de um
jeito dolorosamente doce, as coisas não poderiam ser
mais simples para mim.
Nós viemos tão longe minha querida
Veja como nós crescemos
E eu quero ficar com você
Até ficarmos grisalhos e velhos
Apenas diga que você não vai embora

James Arthur - Say You Won't Let Go


A primeira coisa que Adônis e eu fizemos depois
do lançamento foi dirigirmos para o hotel onde ele estava
hospedado e... bom, você deve imaginar, né?
Não, não arrancamos as roupas um do outro ainda
no corredor enquanto nos beijávamos com ardor até ficar
sem fôlego, para depois nos amar com toda a saudade e
desejo reprimidos depois de tanto tempo.
Bem que eu gostaria. Na verdade, teria adorado
que fosse isso, mas, não. Foi outra coisa. E estávamos
vestidos, a propósito.
Nós conversamos.
Tínhamos muito para ser dito, no fim das contas.
Quatro anos separados foi realmente muito tempo e,
embora tenhamos nos visto nos primeiros anos, foram nos
dois últimos que todas as mudanças significativas
aconteceram. Quero dizer, já não éramos mais aluna e
professor, vizinha e vizinho. Não, agora éramos escritora
e rock star e eu achava que, de todas, essa era a minha
combinação predileta. Porque era real.
Mas, ainda assim, tinham muitos pingos nos I’s
para serem colocados. Eu o amava tanto quanto antes —
ou até mais, para ser honesta. Porém, isso não mudava o
fato de que nós dois estávamos machucados. Então, antes
que pudéssemos simplesmente nos entregar, era preciso
esclarecer as coisas.
Adônis abriu a porta e revelou um quarto de hotel
talvez maior que o apartamento onde eu morava. Com
duas paredes feitas em panos de vidro, nós tínhamos uma
vista privilegiada de um mar de prédios, cujas luzes
acesas se pareciam com pisca-piscas de natal, brilhando
intensamente na noite. Era lindo.
Entrei um pouco sem jeito, tal como se tivéssemos
voltado no tempo e eu fosse aquela garota assustada,
conhecendo seu apartamento pela primeira vez. Minhas
pernas estavam trêmulas e as mãos, geladas. Passando por
meia-dúzia de poltronas quadradas de couro posicionadas
ao redor de uma mesinha de centro rasteira, vislumbrei,
pelo canto dos olhos, a enorme cama de casal com dossel
e engoli em seco, imaginando quantas coisas poderíamos
fazer ali. Adônis pigarreou, com as mãos nos bolsos e um
sorrisinho torto, enquanto me acompanhava em passos
tranquilos.
Desconcertada, segui para uma chaise posicionada
estrategicamente de frente para uma das paredes inteiras
de vidro. Sentei-me nela, agradecendo mentalmente por
isso. Meus joelhos fracos agradeciam.
— Quer beber alguma coisa?
— Álcool — falei rápido demais e ele inclinou a
cabeça ligeiramente para a esquerda, olhando-me com
curiosidade. — Você sabe, aquela coisinha mágica que
vai parar na corrente sanguínea e nos transporta para um
lugar mágico onde o nervosismo não existe.
Ele jogou a cabeça para trás, rindo em deleite.
— Está nervosa? — seu tom era divertido. —
Comigo?
— Não com você. É a situação como um todo... —
encolhi os ombros e ele riu novamente.
— Qual álcool especificamente? Tenho cerveja,
vin...
— Cerveja está ótimo para mim — atirei.
Adônis assentiu, abaixando-se em frente ao
frigobar, de onde tirou duas long necks. Ele ainda não
tinha tirado o chapéu e eu o amava por isso, porque ficava
simplesmente gostoso quando o usava.
Observei-o percorrer o curto trajeto até a chaise.
Ele me entregou uma cerveja e ficou com a outra para ele,
antes de se abaixar de frente para mim e apoiar os
cotovelos nos meus joelhos. Os olhos de Outono
brilhavam intensamente.
— Se faz alguma diferença, eu também estou.
— Está o quê? — perguntei, distraída.
— Nervoso.
— Ah, sim. Definitivamente ajuda muito. Embora
eu não ache que seja verdade.
— Continuo sem moral, hein? — brincou, fazendo-
me rir baixinho.
— Certas coisas não mudam — Adônis sorriu,
levando a garrafa aos lábios e dando um demorado gole.
Arregalei os olhos e não pude evitar a pergunta que veio
em seguida. — Voltou a beber?
Ele respondeu com um suave menear de cabeça.
— Bom, eu não estou planejando dirigir — piscou
para mim e um sorriso involuntário surgiu no meu rosto.
— Já era tempo de superar alguns traumas e parar de me
privar.
— Fico muito feliz por você. Conseguiu virar a
página.
— Foi para isso que me mudei para a Irlanda,
não? — notei um pouquinho de ironia em suas palavras e,
de alguma forma, aquilo me agradou. Gostei de saber que
o Adônis de sempre ainda estava ali. O conjunto todo que
eu tanto amava.
— Foi para isso que se mudou — ecoei, sorrindo.
— Só tem uma coisa ruim em você ter voltado a beber.
— Ah, é? Qual?
— Quem vai cuidar de mim quando eu passar da
conta?
Sua risada genuína foi responsável por uma
intensa onda de calor que subiu pelo meu tronco. As
linhas de expressão que se formaram ao redor dos olhos
estavam um pouco mais visíveis do que eu me lembrava.
— Podemos cuidar um do outro, eu acho.
— É, podemos... — minhas palavras morreram no
ar e, incomodada com o silêncio, desviei a atenção para
os meus pés e me ocupei em beber duas ou três goladas de
cerveja. Queria que ela me ajudasse o quanto antes a
relaxar. Se dependesse de mim, tudo continuaria mecânico
e esquisito pelo resto da madrugada.
Eu queria me resolver com ele, juro. Era o que eu
mais queria desde sempre. No entanto, ainda existiam
muitas dúvidas. Nosso histórico já continha tantas
despedidas que eu simplesmente não suportaria mais
nenhuma. Cada vez que eu precisava me afastar de Adônis
e seguir com a minha vida, um novo pedacinho de mim
morria. Eu o amava demais para continuar vê-lo partindo.
Amava-o demais para acompanhá-lo de longe, sabendo o
quanto funcionávamos juntos, mas sem poder viver isso.
Era triste demais me refugiar em lembranças que, a cada
dia, tornavam-se mais e mais distantes. E, fora isso, eu
estava um pouco revoltada por ele ter ignorado minhas
últimas cartas quando, claramente, havia recebido e lido.
Presenciar o meu sofrimento sem fazer nada para impedir
não se parecia com algo que ele faria. E isso estava me
incomodando tanto quanto uma unha encravada quando
usamos um sapato apertado demais.
Percebendo a minha ligeira recaída, Chewie levou
os dedos compridos e frios ao meu queixo, erguendo o
meu rosto até que nossos olhares se encontrassem. Seu
toque continuava exatamente como eu recordava. Suas íris
intensas me despiram, penetrando-me até alcançarem a
alma. E eu deixei que ele olhasse. Às vezes, essa é a
melhor maneira de se falar quando não consegue
verbalizar palavra alguma.
— O que foi? Você parece triste.
— Como poderia não estar? — ouvi-me dizendo e
ele fez uma expressão surpresa. Sutilezas nunca foram
exatamente a minha praia. Sempre preferi ir direto ao
ponto. — Você me deixou sem resposta por nove meses,
Chewie. Nove. Meses. Daí, quando eu acho que
finalmente estou conseguindo voltar a minha vida nos
trilhos, você aparece e bagunça completamente os meus
sentimentos. Traz à tona tudo o que eu passei os últimos
meses lutando contra. É injusto. Como posso seguir em
frente dessa forma?
— Você quer seguir em frente? — não pude deixar
de notar a pontada de chateação em sua voz. — Mesmo?
Expirei o ar dos pulmões e o encarei
significativamente. Seu rosto estava rígido como pedra,
mas, ainda assim, a preocupação era visível em cada
pequeno centímetro. E isso me desarmou. Eu queria que
ele percebesse o absurdo de sua pergunta. Como ele podia
realmente achar que se eu quisesse seguir em frente
estaria ali, em seu quarto de hotel, toda nervosa e
esquisita?
Homens..., pensei, revirando os olhos
internamente.
— É claro que não, seu idiota! — respondi. — Eu
não tenho como te esquecer, Chewie. Entreguei o meu
coração para você, lembra?
— E eu para você. — Sorriu, parecendo aliviado.
Antes que eu pudesse fazer algo a respeito, ele havia
levantado, inclinando-se em minha frente. Com os braços
apoiados na chaise, um de cada lado meu, Chewie cobriu
meus lábios com os seus.
Ouvi um barulho seco e soube, mesmo se olhos
fechados, que o seu chapéu tinha caído no chão.
Permanecemos assim por alguns segundos,
experimentando a sensação. Era tão familiar e, ao mesmo
tempo, inédita. Seu perfume amadeirado e marcante ainda
era o mesmo, por isso inspirei profundamente, como se
deixasse Adônis se espalhar em mim, inflando-me. Era
assim que me sentia, afinal. Eu tinha medo de que aquilo
fosse um sonho, porque seria muito doloroso acordar.
Levei as mãos ao seu rosto, segurando-o para ter
certeza de que não sairia de perto de mim. Então, invadi
sua boca, louca para sentir o seu sabor. Louca para me
sentir viva, como só acontecia quando estávamos juntos.
Era uma loucura, mas o que eu podia fazer se era
verdade? Nós nos completávamos. Éramos como C3PO e
R2-D2 — funcionávamos muito bem juntos. Nossas
línguas se entrelaçaram em uma dança intensa e, ao
mesmo tempo, calma. Como se nos redescobríssemos
enquanto relembrávamos as coisas que já sabíamos.
Ali, sentindo sua respiração terna contra a minha
face, perdi a noção de onde estava, de que dia era e,
principalmente, de que estivemos tanto tempo separados.
Naquele beijo, parecíamos ter burlado as leis do
tempo/espaço e criado um buraco de minhoca, que nos
transportava direto para o passado. Era como se, ontem
mesmo, ele tivesse me dado a pulseira com o Tordo, a
qual eu nunca mais ousei tirar do pulso direito. Se os
sentimentos já estavam intensos antes, agora eram
esmagadores. Consumiam-me com voracidade. E isso não
podia me deixar mais satisfeita. Perdi-me nele e, assim,
encontrei-me novamente.
Quando Adônis se afastou alguns centímetros,
meus lábios, apesar de inchados, ainda formigavam de
desejo. Tínhamos muito para recuperar. Céus, como
tínhamos!
— Eu precisava muito te beijar. Agora, sim,
podemos conversar — falou com bom-humor, oferecendo-
me o seu sorriso mais descarado.
Em meio a risadas, passei as pernas para o outro
lado da chaise, ficando de frente para a vista de tirar o
fôlego. Deslizei o bumbum para a direita, oferecendo
espaço para ele. Adônis sorriu e se sentou ao meu lado,
porém não para frente, como eu. Em vez disso, ficou com
uma perna de cada lado, daquele jeito descontraído que
combinava tão bem com ele. Cruzando os braços sobre o
peito, ele me lançou um olhar ansioso.
— Bom, já sabemos que você não quer seguir em
frente. E também que eu sou um idiota. — Encolheu os
ombros e lançou uma piscadela. Rimos em uníssono. —
Estou pronto para o restante.
— Por que não respondeu as minhas cartas? Por
que me deixou sofrendo por tanto tempo se as recebeu? —
as palavras pulavam para fora da minha boca sem que eu
detivesse o menor controle sobre elas. — Eu ficava me
perguntando se elas não tinham chegado ou você só não
respondeu porque já tinha conseguido me esquecer...
Droga, Chewie! Tem noção de tudo que me fez passar?
Era angustiante não ter como entrar em contato. As coisas
poderiam ter sido bem mais fáceis. Sei que você ficou
magoado quando eu me envol...
— Magoado?! — ele me interrompeu. —
Magoado? — repetiu e a palavra estalou em sua língua.
— Não, Rebecca, eu não fiquei magoado. Eu fiquei puto!
Realmente puto. E, depois disso, fiquei na merda. Meu
mundo ruiu quando li sua carta. Quis viajar no mesmo
instante para cá só para socar a cara do babaca que
colocou as mãos em você e... e... merda, não quero nem
pensar nas outras coisas que ele também deve ter
colocado.
— Chewie, eu...
— Não, me escuta, por favor! — pediu, e sua voz
saiu trêmula. — Por favor! Isso aqui está entalado há
tempo demais e eu sinto que posso explodir a qualquer
momento se não colocar para fora. — Ele me olhou com
intensidade e apenas concordei com a cabeça, deixando-o
prosseguir. — Você nunca me prometeu nada, eu sei. Na
verdade nosso trato era que ficássemos no passado um do
outro. Só que você nunca chegou a ficar no passado.
Jamais deixou de estar no meu presente, donzela. Era a
protagonista dos meus pensamentos da hora em que eu
acordava até quando deitava para dormir. E a única coisa
que me confortava era saber que eu não estava sozinho
nesse barco. Nós estávamos passando por isso juntos e,
de alguma forma, isso me enchia de esperanças.
“Eu tirava força de cada carta sua, tirava força da
certeza de que isso que temos ainda continuava muito vivo
dentro de nós. E então chegou... chegou a notícia e eu só
consegui ficar com raiva. — Sua escolha de palavras me
fez arregalar os olhos. Percebendo a minha reação, ele se
adiantou em explicar — Não de você, nunca de você.
Mas... da vida, entende? Por que para conseguir algo
incrível, que era a minha banda, eu precisava abrir mão
da coisa mais foda que já aconteceu comigo?”
Adônis parou abruptamente, esfregando o rosto
com impaciência. Aproveitei o momento para falar.
— Eu também estava passando por tudo isso! Você
estava demorando cada vez mais para me responder e eu
só conseguia pensar no rumo que sua vida estava levando
e no quanto isso me afastava cada vez mais de você,
Chewie! Acha que eu queria ter estado com outra pessoa?
Acha que eu consegui te superar? — Lancei as mãos no ar,
para mostrar o tamanho de minha indignação. — Foi um
ato de desespero! Eu estava na merda desde o dia em que
você saiu da minha vida e tudo só piorava. Eu... só queria
tentar tirar o vazio de dentro de mim. Tentar te esquecer,
colocando outro em seu lugar. É horrível, eu sei. Mas
ficava imaginando que, em cada show de cada cidade que
você fazia, provavelmente teria uma profusão de meninas
loucas para tirarem a roupa para você, e...
— E o quê? Eu ficaria com elas? Transaria com
elas? Tentaria te esquecer colocando outra em seu lugar?
— Ele falou com um pouco de rispidez. — Não, Becca!
Eu te falei uma vez, muito tempo atrás, que meu coração
estava trancado e não tinha mais como abrir. Acontece que
você conseguiu entrar, você fez isso. Entrou e ocupou
cada maldito pedacinho dele. Agora ele não pertence a
mais ninguém que não você, porra!
— Está me dizendo que nesses quatro anos não
esteve com ninguém? — perguntei, tentando mensurar o
tamanho do absurdo.
Adônis reagiu com uma risadinha incrédula e um
balançar de cabeça.
— É claro que eu estive, sua idiota! — falou com
leveza, parafraseando o que eu havia dito ainda há pouco
— Com você! Duas vezes.
— Só comigo? — as lágrimas foram parar nos
meus olhos em uma velocidade surpreendente.
— Só com você. Porque eu sou seu, de mais
ninguém — ele se aproximou de mim, envolvendo-me com
os braços e apoiando o queixo no meu ombro esquerdo.
Recostei a cabeça na sua, olhando, lá embaixo, carros
passando de um lado para o outro em uma frequência cada
vez menor.
— Por que parou de me responder? Por que fez
isso comigo?
— Não fiz. Você sabe que não sou assim.
— Então me explica.
Ele respirou fundo e se afastou alguns centímetros.
Suas mãos vieram parar nos meus ombros, girando-me
para que eu ficasse de frente. Passei a perna esquerda
para o outro lado, imitando-o.
— Eu fiquei muito mal, Becca. Muito mesmo. —
Explicou, estralando os pulsos com tranquilidade. — Tão
mal que meus amigos ficaram preocupados comigo e, por
isso, interceptaram as cartas. Esconderam de mim com
medo de eu acabar voltando a ficar na merda.
— O quê?! — perguntei, chocada.
— É, eu sei — ele deu de ombros. — Eu nunca
desconfiei de nada, porque, você sabe, achei que
estivesse ocupada demais seguindo em frente — falou
com tanto sarcasmo que deixei uma risada escapar. —
Pensei em escrever para você, mas eles insistiram que eu
seria um babaca se fizesse isso. E, bem, acreditei neles.
Você estava feliz, na minha imaginação. Estava com
alguém que poderia oferecer coisas que eu não. Então usei
isso como deixa para também tentar te esquecer.
— Que grandes filhos da puta! — falei, cheia de
indignação.
— Não fique com raiva deles, donzela.
Principalmente de Domênico e Igor. Eles só queriam me
poupar. Estiveram comigo quando enfrentei toda a barra
do acidente e achavam que eu merecia parar de sofrer um
pouco.
Estalei a língua nos dentes, pensando a respeito.
— Eles devem achar que sou uma vaca sem
coração, né? — uma risadinha nervosa escapou de meus
lábios.
— Não, eles não acham. Eles sabem o quanto amo
você e sabem que você foi a responsável por eu estar vivo
de novo. Eles, na verdade, morrem de vontade de te
conhecer.
— E eu vou conhecê-los?
— Isso depende mais de você — Ele sorriu torto.
— Mas você sabia da estreia do meu livro... e
tudo o que eu falei na última carta... como descobriu sobre
elas?
Adônis fisgou o lábio inferior e meus olhos foram
parar lá instantaneamente.
— Meu pai me ligou um dia perguntando se eu
sabia que você tinha escrito um livro e virado fenômeno
na internet. Eu joguei seu nome no Google e vi todas as
coisas incríveis que estavam acontecendo e descobri, para
minha total surpresa, que estava no livro! — Ele sorriu em
provocação e meu rosto queimou inteiro. — E isso não fez
o menor sentido. Se você tinha me deixado no passado
como eu achava, não teria feito isso. Então eu pressionei
meus amigos até descobrir que havia, sim, cartas suas.
Quase cometi um assassinato naquele dia, mas consegui
colocar as mãos nelas.
— Daí veio atrás de mim — concluí, tomando o
último gole da minha cerveja esquecida. Estava quente,
mas não me importei.
— Uhum.
Esfreguei o rosto com as duas mãos, tentando
organizar a bagunça que era a minha cabeça naquele
momento. Tinha tanta coisa para absorver... eu ainda
estava me recuperando de sua chegada e agora ainda
precisava lidar com todas aquelas descobertas.
Quando voltei a encará-lo, não pude evitar a única
pergunta que dominava todo o meu ser, célula por célula.
— E o que será de nós?
— Como assim?
— Por que agora é diferente das outras vezes? Por
que agora temos a possibilidade de um futuro?
— Porque terminei a minha faculdade, fiz o que
precisava fazer para ser todo seu. E você também
alcançou seus objetivos, encontrou seu lugar no mundo,
não foi? Estamos prontos, agora, Becca. Prontos como
nunca estivemos.
Aquilo soou como um absurdo para mim.
— Prontos? Adônis, olha só para você. Acha
mesmo que vamos conseguir com essa sua nova vid...
— Eu largo tudo!
—... A distância é enorme. Não vou conseguir
levar isso com doses homeopáticas, é muito doloros...
— Você me ouviu? Eu largo tudo!
— Preciso de você inteiro, e... — Minha mão
ficou parada no ar, apontando para ele. Empertiguei-me,
encarando-o com perplexidade. — Calma. O que foi que
disse?
— Eu largo tudo, Rebecca. Agora mesmo. Nada
me importa mais que nós dois juntos.
— Você enlouqueceu — sussurrei. — Está louco.
— Estou — falou baixinho, aproximando-se
perigosamente de mim. — Por você.
— E o seu sonho? Você lutou a vida todo por isso.
— Meu único sonho é você, donzela. Demorei
demais para perceber o quanto estava sendo burro.
— Adônis, você não pod...
— Shhhhh — falou, antes de me beijar com calma,
deliciando-me com o meu sabor.
Minhas mãos foram automaticamente para dentro
da sua camisa jeans, apenas para confirmar se tudo estava
como na minha memória. E, bem, estava.
Deixei-me levar, sentindo correntes elétricas
avançarem de fininho pelos meus membros, deixando-me
arrepiada e, ao mesmo tempo, em chamas. Então, tive um
lampejo de lucidez novamente, que foi o suficiente para
que eu interrompesse o beijo.
— Não pode desistir de tudo o que conquistou.
Não é certo.
— Precisamos falar sobre isso agora? — gemeu
contra a minha boca. — Estou latejando de vontade de
você, Becca. Olha isso aqui... — ele buscou a minha mão
e a colocou sobre sua rigidez. Fechei os olhos
momentaneamente, sendo seduzida pela ideia.
Pelo cajado de Gandalf, Rebecca, concentre-se!
Vocês terão muito tempo para isso!
Foi obrigada a concordar com meu subconsciente
e manter o foco mais um pouco. Tirei a mão dele,
recebendo outro gemido como resposta — mas, dessa vez,
era um de protesto.
— Precisamos. Só vou me entregar depois de ter
certeza de que, dessa vez, é para sempre — falei
categoricamente, afastando-me um pouco mais, de modo
que pudesse ter a visão completa do seu rosto.
— Tudo bem. — Um sorriso gentil estampou seu
rosto. — Para quem esperou tanto tempo, o que são alguns
minutinhos a mais?
Rimos juntos e eu adorei a sonoridade de nossas
risadas. Estavam leves, felizes.
— Não quero que desista de algo que você ama
tanto por mim, Chewie. É sério. Não vou conseguir
dormir sabendo que você fez uma escolha tão permanente
e jogou fora uma chance única na vida.
— E eu não vou conseguir dormir, acordar ou
sequer viver sabendo que você está do outro lado do
mundo, sozinha. E que, a qualquer momento, alguém pode
conseguir te roubar de mim.
— Isso nunca vai acontecer — sorri. — Não
mesmo.
— Não me importo, Becca. De verdade. Que outra
chance temos de ficar juntos? — sua voz entregava a
urgência por trás das palavras. — A música é importante
e o sucesso da banda foi uma das coisas mais incríveis
que já me aconteceram, mas posso recomeçar. Eu apanhei
muito, mas entendi que só sou completo com você. Outras
portas se abrirão, e...
— Não, Chewie. Não vou aceitar. Depois de tudo
o que passamos, acho que já deveríamos saber que
medidas extremas não nos levarão a lugar algum, né?
— O que você sugere então, Rebecca? — ele
perguntou, parecendo perdido.
— Equilíbrio.

Seis meses mais tarde...

— Eu ainda me lembro daquela noite, quando


percebi que as coisas nunca mais seriam iguais. Você
estava parada na minha porta usando apenas uma
camiseta... — a voz de Adônis veio abafada do palco,
arrepiando-me inteirinha.
Ao fundo, pude ouvir um mar de gritos histéricos,
como sempre acontecia quando eles começavam a tocar
Collision. Não consegui evitar o sorriso bobo que
dominou o meu rosto. A sorte era que, exceto por mim, o
camarim estava vazio. Prendi a respiração, deixando a
música me envolver daquela maneira surreal. Não
importava quantas vezes eu os ouvisse tocar, a sensação
nunca mudava. Os riffs das guitarras eram elétricos e as
batidas frenéticas da bateria pareciam conversar com as
do meu coração. O que eu mais amava, no entanto, era o
solo de baixo, que fazia o meu corpo todo vibrar no
mesmo ritmo.
Era indescritível experimentar tudo aquilo. Os
shows pareciam um mundo à parte onde todos sentiam as
músicas correrem pelas veias. A energia era pulsante.
Normalmente eu ficava atrás do palco, escondidinha,
vivendo aquilo tudo com intensidade e, principalmente,
babando em Adônis. Vai por mim, se ele já era um pecado
antes, agora, com uma guitarra na mão e suor fazendo sua
camisa grudar no corpo, chegava a ser revoltante.
— Ohhhh, e eu soube, em uma fração de
segundo, que nós não seríamos apenas dois estranhos
colidindo um contra o outro... — Milhares de vozes se
uniram a dele, cantando em uníssono.
Peguei-me cantarolando baixinho, incapaz de me
manter emocionalmente alheia. Quero dizer, não tinha
como! Aquela canção era sobre mim, sobre nós. Não dava
para ignorar uma das coisas mais fascinantes que já
haviam me acontecido. Não dava para evitar a adrenalina
que sempre se espalhava pelo meu corpo, deixando-me
mole como geleia de mocotó.
Meus olhos recaíram para o notebook esquecido
em meu colo e, no mesmo instante, minha garganta ficou
muito seca. Fiquei tão distraída com o show que, por um
momento, me esqueci do meu trabalho. A razão principal
de eu estar ali sozinha, aliás, e não curtindo a minha
branda predileta, como adoraria. Pesquei uma bolinha de
queijo da mesa a alguns centímetros de mim e a lancei
boca adentro. Ainda mastigando, ajeitei-me no sofá e
estiquei as pernas, arrumando o computador no meu colo
de um jeito mais confortável e, então, voltei a escrever.
Assim como aconteceu na internet, a Linguagem do
Amor explodiu em formato físico. O livro foi um sucesso
de vendas, ficando por semanas a fio no topo dos mais
vendidos. Entre sessões de autógrafos intermináveis,
entrevistas para as mais diversas mídias e várias
mensagens de carinho dos meus leitores, eu vivia um
sonho que jamais pensei ter. Depois de passar a vida com
a cara enfiada nos livros, desejando trabalhar em uma
editora para poder fazer parte desse mundo de alguma
forma, como eu poderia sonhar que acabaria me tornando
uma escritora? Como poderia sonhar que meu livro
mudaria a vida de pessoas assim como tantos outros
haviam mudado a minha? Era maravilhoso! A certeza de
que isso era o que eu queria para o resto da minha vida só
crescia a cada dia, conforme novas descobertas e
experiências surgiam, surpreendendo-me.
O sucesso do meu livro foi tanto que a minha
editora me convidou a escrever outros. Com a diferença
de que, agora, eu teria prazos a cumprir, metas diárias a
bater, números a alcançar. A pressão era absurda, mas,
ironicamente, deliciosa. Eu adorava mostrar para mim
mesma, diariamente, o quanto era capaz de superar os
meus limites.
Porém, a melhor parte da minha profissão estava
no fato de que eu não precisava criar raízes em lugar
algum. E era justamente por causa desse pequeno detalhe
que Adônis e eu tínhamos conseguido nos acertar.
Quando ele se mostrou disposto a largar o maior
sonho de sua vida e tudo o que tinha conquistado apenas
para ficar ao meu lado, tudo mudou entre nós dois. Isso
porque, a única maneira de fazer as coisas darem certo
entre nós seria se um dos dois cedesse. Então, de repente,
um milhão de possibilidades se abriu para uma relação
que parecia fadada ao fracasso. Saber que Adônis poderia
pagar um preço tão alto por mim me deu um choque de
realidade — ele era o amor da minha vida. Amava-me a
ponto de abdicar coisas valiosíssimas para ele.
Eu passei a entender que cada uma de nossas
escolhas nos levou a chegar àquele momento fundamental
em que estávamos preparados para começar uma vida
juntos. Adônis acertou quando afirmou que, como nunca, a
hora tinha chegado. Porque eu jamais teria começado a
escrever se não fosse para tirar a angústia de não tê-lo por
perto. Da mesma forma que, se ele não tivesse se mudado
de país e percorrido seus objetivos, para sempre existiria
o peso das dúvidas sobre nós dois. Existiria uma porção
de “e se...?”, e o problema era que todos os caminhos que
viriam depois poderiam ser muito perigosos. Agora tudo
tinha mudado, porém. Não estávamos mais pela metade
como anos atrás. Não precisávamos nos completar para
aliviar todas as mágoas que carregávamos dentro de nós
mesmos. Éramos inteiros e, por isso, somávamos a
existência um do outro.
Todas essas constatações foram a força-motriz que
me impulsionou a, eu mesma, abrir mão de algumas coisas
que já não faziam mais sentido algum para mim. Como,
por exemplo, a necessidade de continuar morando no
Brasil. Eu não podia dar a desculpa de ser por causa dos
meus avós, pois morava longe deles há muitos anos. Além
disso, tinha terminado a faculdade e meu emprego era o
mais flexível possível, afinal, dava para escrever de
qualquer lugar do mundo, não é? Quando eu tivesse
compromissos relacionados a lançamentos dos futuros
livros, era só viajar de volta para lá. E essa também já
seria a desculpa perfeita para que eu fizesse uma visita às
pessoas que deixaria para trás — vovó e vovô, Arthur e
Nataly.
Foi por isso que, pouco mais de um mês depois de
Adônis ter ido atrás de mim, arrumei minhas malas e me
mudei para Waterford, onde alugamos um apartamento
pequeno e aconchegante para começarmos a nova
temporada de nossas histórias — aquela em que
passaríamos a ser um só. Morar em um país tão diferente
do Brasil foi complicado no começo, como eu já
esperava, mas só o fato de tê-lo para mim, além de
Castiel, é claro, fazia tudo valer a pena. Nosso
apartamento, no entanto, era o lugar em que menos
ficávamos. Isso porque os Tyrannosaurs viajavam muito
em suas turnês — e eu os acompanhava em cada uma
delas. Então nosso lar passou a ser em aeroportos, aviões,
quartos de hotel e backstages. E, francamente, não podia
ser melhor para mim. Nunca fui muito convencional,
tampouco ele.
Fui arrancada bruscamente dos devaneios pela voz
de Adônis conversando com a plateia e, principalmente,
pelas coisas que ele dizia. Aprumei-me no lugar, atenta às
palavras, as quais eram um pouco difíceis de entender
diante de toda a gritaria feita pelos fãs.
—... Isqueiros ou então os celulares... Esse
momento é muito importante... Depois de tudo o que
passamos... Estará aqui... Preciso da ajuda de todos
vocês, tudo bem? — houve uma pausa seguida pela
plateia ovacionando com euforia.
Antes que eu pudesse sequer pensar a respeito, um
roadie irrompeu o camarim. Parecia ter pressa e, dada a
maneira como mudava o peso do corpo de uma perna para
a outra a cada dois segundos, constatei que estava
ansioso.
— Senhorita Moraes, preciso que me acompanhe,
por favor.
— Eu... hum? Por quê? — perguntei, alarmada.
Quero dizer, eu tinha importância zero ali dentro. Não
conseguia imaginar qualquer situação em que minha
presença fosse relevante.
Minha resposta o deixou ainda mais ansioso.
Olhando por cima do ombro em direção à porta, ele se
adiantou até parar ao lado do sofá e então, para a minha
surpresa, fechou os dedos ao redor do meu braço direito
com firmeza.
— Vamos, preciso te levar logo.
— Me levar para onde? — protestei, já em pé.
Mas sua resposta nunca veio. Em vez disso, andamos a
passos rápidos pelos corredores que davam acesso ao
palco.
Àquela altura, meu coração trabalhava depressa o
suficiente para se parecer com a bateria de uma escola de
samba. Sem saber muito bem o porquê, eu tremia da
cabeça aos dedinhos do pé. Apesar de não entender o que
era, já tinha percebido que algo estava acontecendo. Algo
relevante o suficiente para que o roadie estivesse tão
sério e determinado, enquanto me arrastava sem diminuir
o ritmo.
O som se tornava mais alto a cada passo, um
murmúrio de milhares de vozes fundidas. Fora isso, nada.
A banda não estava tocando. Fui tomada por desespero
quando percebi que estava sendo levada ao palanque. Não
para ficar escondida assistindo ao show, como já fizera
tantas outras vezes, mas sim para participar dele. A
constatação foi como um raio paralisante. Em uma fração
de segundos, minhas pernas ficaram pesadas como
chumbo.
— Hei, o que está fazendo? Não podemos
atrapalhar o sh... — minha voz simplesmente morreu
quando vislumbrei o que me esperava lá.
O chão de linóleo fora inteiro coberto por fartos
arranjos de girassóis, que davam a impressão de, juntos,
formarem um vasto e fofo tapete amarelo vibrante. Todos
da banda olhavam para mim com atenção, enquanto eu era
levada desajeitadamente pelo roadie, que não tentava
esconder o tamanho do seu alívio.
Nem ao menos percebi quando exatamente
comecei a chorar, mas antes mesmo de alcançar a metade
do palco, meu rosto já estava encharcado. A plateia entrou
em polvorosa e percebi, estupefata, que todos tinham as
mãos erguidas para o alto, segurando os isqueiros e
celulares de que eu havia ouvido Adônis falar. Era a coisa
mais maravilhosa que eu já havia tido a oportunidade de
presenciar! Parecia-se com um milhão de estrelas
brilhando intensamente em um céu vivo feito apenas para
mim.
Foi quando meus olhos encontraram Adônis. Ele
estava de costas para os fãs e sem sua guitarra. As íris de
Outono ardiam intensamente ao passo em que, nos lábios,
um sorriso contagiante se assemelhando ao de alguém que
acabara de ganhar na Mega-Sena. Ele aparentava ser a
segunda pessoa mais feliz do mundo, porque, bem, eu
certamente era a primeira.
Notando o meu estado caótico, ele se adiantou em
minha direção, estendendo a mão direita, na qual me
agarrei como se dependesse disso para viver. Suas mãos
vieram parar na minha cintura, sugerindo que ele queria
dançar comigo. Um pouco sem pensar, envolvi seu
pescoço com os meus braços, provocando uma nova
explosão de gritos e aplausos.
E então, enquanto eu ainda tentava assimilar tudo o
que já tinha acontecido até ali, uma música começou,
superando todos os outros sons e dominando o meu
mundo. Eu estava tão perplexa que demorei a perceber
não se tratar de uma música deles, mas, sim, de Beatles.
Ainda abraçado a mim, Adônis soltou uma das
mãos de mim e tomou o microfone do suporte. No segundo
seguinte, sua voz pairava majestosa por toda a arena. Eu
não conseguia ver mais nada. Embora estivesse com os
olhos abertos, meu cérebro entrara em pane. Por isso,
restou-me apenas vivenciar o momento. E, diga-se de
passagem, foi a melhor decisão que eu poderia ter
tomado.
— Eu dou a ela todo meu amor, é só o que eu
faço. E se você visse o meu amor, se apaixonaria por ela
também. Eu a amo.
Oh, Deus! Oh, Deus! Oh, Deus!, era o único
pensamento ecoando copiosamente pelas paredes do meu
crânio. Aquilo tudo era mesmo real? Estava mesmo
acontecendo?
— Brilham as estrela, escurece o céu... Eu sei
que este meu amor nunca morrerá. E eu a amo.
A única coisa que me dava certeza de não ser um
sonho era o fato de que minha mente jamais seria capaz de
inventar tudo aquilo. Adônis sempre conseguia me
surpreender. As melhores lembranças da minha vida
tinham todas a ver com ele. Céus, eu me perguntava se
merecia tanto.
Sua voz deu lugar à de Domênico, que começou a
cantar a segunda parte da música. Então, sem conseguir
encontrar o meu fôlego em lugar algum, assisti a ele se
ajoelhar em minha frente enquanto tateava o blazer, até
que sua mão surgiu de dentro de um bolso segurando uma
pequena caixinha preta de veludo e, nesse momento, eu
parei de chorar como uma pessoa normal para chorar
como uma completa maluca. Meus ombros balançavam
com violência, os olhos pareciam torneiras abertas e,
além disso, eu tinha total consciência de que meu rosto
deveria estar vermelho como um tomate bem maduro.
Também pudera, aquele era o mais lindo dos pedidos,
havia como reagir de forma diferente?
Eu não era a única com as emoções à flor da pele,
no entanto. Os olhos de Chewie, brilhando muito além do
normal, eram a confirmação de que ele também estava
prestes a se desmanchar em lágrimas. Por segundos que
abrigaram uma eternidade, ele me encarou, como se me
despisse com as íris, camada por camada, até chegar à
alma. Somente quando alcançou o mais íntimo do eu ser
que ele se deu por satisfeito e, empertigando-se no lugar,
silabou duas palavras que, apesar da música e de todo o
barulho vindo da plateia, consegui entender perfeitamente.
— Casa comigo?
Eu juro, não só o meu coração parou, como
também o mundo inteirinho. Foi como uma falha na
Matrix. Só existia Chewie e eu e esse momento que, pelo
resto de minha vida, levaria dentro do meu coração.
Não sei exatamente como consegui encontrar a
minha voz quando o meu corpo estava tão anestesiado por
todos os acontecimentos incríveis. Mas o fato é que
aconteceu e, para mim, apenas a minha voz existia. Eu a
ouvi tão alta como se estivesse com um megafone em
frente aos lábios.
— Caso! — falei pela primeira vez, mas não
pareceu o suficiente. Por isso continuei. — Caso, caso,
caso e caso!
Chewie se levantou em um rompante, com um
sorriso bobo tão lindo que eu poderia passar o resto da
noite apenas admirando. Percebi que ele finalmente tinha
cedido às lagrimas, que traçavam brilhantes caminhos
orgânicos em seu rosto. Como eu achava que aquela seria
a hora em que ele colocaria o anel em mim, surpreendi-me
quando suas mãos frias seguraram o meu rosto e ele
procurou minha boca com tanta urgência. Foi durante o
nosso beijo que o mundo voltou a funcionar. Percebi,
estupefata, a explosão de gritos e aplausos que nos
rodeava.
Usando a manga do blazer para secar as lágrimas,
ele se desvencilhou de mim e tomou minha mão esquerda.
Nem ao menos me dei conta de que aquela não era a mão
certa. Estávamos cegos pela emoção. Adônis deslizou o
anel pelo meu dedo anelar e, antes que pudéssemos fazer
qualquer outra coisa, os outros meninos da banda estavam
pulando ao nosso redor, gritando e fazendo bagunça.
Gargalhei em deleite, ao mesmo tempo em que continuava
chorando incessantemente. Pelos dragões de Daenerys
Targaryen, se eu não morresse do coração naquela noite,
jamais morreria, sabia disso.
Como o show precisava continuar, Domênico,
Igor, Gael e Ethan nos soltaram, voltando às suas posições
iniciais e tomando seus instrumentos. Adônis aproveitou a
deixa para me acompanhar até o fundo do palco, mas eu
sabia que tínhamos apenas poucos segundos. Por isso, tão
logo alcançamos uma área onde ninguém mais podia nos
ver, pulei em seu pescoço, abraçando-o com toda a força
que abrigava dentro de mim. Procurei sua boca e o beijei
com a mesma euforia da primeira vez, quando apenas nos
conhecíamos. Não importa quanto tempo tivesse passado,
as coisas não mudavam entre nós. Continuávamos sendo
aquele casal apaixonado que sempre se esbarrava na
escadaria do prédio. Embora muitas coisas tivessem se
alterado drasticamente, a principal delas não — nossa
essência.
Suas mãos me seguraram pela cintura e ele me
tirou do chão. Balancei os pés no ar, sentindo-me nas
nuvens. Adônis riu baixinho, lançando-me um olhar que
dizia, com todas as letras, o quanto ele não queria se
afastar de mim naquele momento, mas precisava. Eu sabia
disso porque era exatamente como me sentia.
— Preciso voltar... — justificou, encolhendo os
ombros.
— Tudo bem. Vamos ter muito tempo para
aproveitar.
— Só a vida inteira. — sussurrou contra os meus
lábios e sorri contra os dele. — Eu te amo, minha donzela.
— Eu te amo, meu Chewbacca.

Dois anos mais tarde...

Apoiei os cotovelos no vidro temperado que


delimitava a varanda, contemplando a vista fantástica que
se estendia para onde quer que meus olhos mirassem.
Levei a caneca aos lábios, bebericando o cappuccino
fumegante ao passo em que soltava um suspiro audível.
Uma lufada de vento soprou meus cabelos para fora do
rosto, de uma maneira deliciosa, que só aumentou meu
desejo de estar em qualquer lugar, que não ali na sacada.
Afinal de contas, Paris, pelo que eu podia ver, era tudo o
que eu havia ouvido falar e um pouco mais. A Torre Eiffel
se projetava ao noroeste, roubando todo o meu fôlego e
atenção. Era impossível me concentrar no notebook
esquecido sobre a mesinha redonda de vime quando eu
tinha uma vista privilegiada daquele que era considerada
o cartão postal daquela cidade maravilhosa.
Fisguei o lábio inferior, maravilhada. Fazia um dia
tão bonito de primavera, com o céu azul de azul vibrante,
cujas nuvens se pareciam com flocos de algodão
amontoados, e as árvores florescendo em uma infinita
profusão de cores. Aceitei o fato de que não conseguiria
voltar a escrever. Não naquelas condições. Eu estava
eufórica para conhecer cada pequeno detalhe de Paris e
não sossegaria até que isso acontecesse. Aquela era a
minha primeira vez ali, na vida inteira. Adônis estava
louco para me mostrar os lugares que já havia visitado em
sua primeira passagem por ali, na qual eu infelizmente não
estive presente, pois precisei viajar ao Brasil para a turnê
de lançamento do meu último livro.
Tomei outro gole considerável da minha bebida,
enrolando uma mexa de cabelo no dedo indicador. De
pensar que, na próxima semana estaríamos em Nova York,
meu estômago já revirava em excitação. Nossa rotina era
simplesmente uma loucura! Os períodos em que
permanecíamos na calmaria de nosso lar, em Waterford,
tornaram-se muito raros, levando em consideração o
sucesso estrondoso dos Tyrannosaurs e o fato de que as
turnês eram cada vez maiores. Eu simplesmente adorava.
Não poderia imaginar nada diferente para nós dois. Nossa
casa acabava sendo o mundo, em toda a sua imensidão.
Cada semana em um quarto de hotel novo, com muitas
vistas diferentes e um milhão de possibilidades para nós
dois. Nem sempre dava para acompanhá-lo, no entanto,
pois eventualmente era preciso retornar ao Brasil para o
lançamento de um novo livro, ou simplesmente para
participar de bienais e eventos literários. Então podíamos
ficar semanas a fio separados um do outro. E, se por um
lado eu detestava ficar longe dele, por outro, era inegável
que retornar ao lar fazia tudo valer a pena porque, você
sabe, era quando matávamos a saudade. Céus, se Adônis
já era insaciável em ocasiões comuns, imagine então
depois de tanto tempo sem me ver!
Era justamente por causa de nossa vida nada
convencional que ainda não planejávamos ter filhos. Isso
e também por sermos novos. Haveria muito tempo pela
frente. Sentíamos que, antes de dar um passo tão
importante, precisávamos nos curtir bastante, aproveitar
ao máximo aquela fase de nossas vidas e compensar todo
o tempo que permanecemos separados um do outro.
Afinal, depois que tivéssemos um bebê, nada jamais
voltaria a ser igual, inclusive aquelas viagens constantes.
Não que o assunto não tivesse surgido, a propósito. Vez ou
outra, Adônis deixava escapar o quanto o empolgava a
ideia de termos nossa família crescendo.
— Castiel precisa de um irmão. E olha que ele já
está velhinho, hein! — dizia Adônis, como se esse fosse o
argumento mais indiscutível do mundo.
Depois disso, passávamos talvez horas
conversando sobre o possível sexo, como imaginávamos
que ele ou ela seria, assim como nomes e mais um milhão
de pautas que apareciam pelo caminho.
Um sorriso pincelou meus lábios, ao pensar nisso.
Se fechasse os olhos, podia visualizar perfeitamente ele
ensinando nosso filho a tocar desde pequenininho,
enquanto eu faria toda sorte de brincadeiras com tintas,
quanto mais sujeira fizesse, melhor. Acho que nos
daríamos muito bem nisso, quando a hora chegasse. Ele
seria um ótimo pai, eu podia sentir. Era só tomar pela
maneira devota como cuidava de mim, sempre carinhoso e
paciente. Aquele Adônis sem pavio e cheio de rancor que
conheci um dia havia se dissipado permanentemente.
Assim como a Rebecca que se privava de tudo, com medo
da vida. Em vez disso, tornávamo-nos, se era possível,
cada vez mais parecidos. Todo dia uma versão melhor que
no dia anterior. Em meio ao caos da vida, nossa evolução
era sempre assim, em parceria. Como as coisas deveriam
ser.
Estava tão distraída em meus pensamentos que mal
percebi sua chegada. Por isso, quando suas mãos frias me
seguraram pela cintura repentinamente, pulei no lugar.
— Para ter se assustado assim, só podia estar
pensando em safadeza. — sussurrou, abraçando-me por
trás. Arquejei ao perceber sua rigidez contra o meu
bumbum.
— Eu não, já você... — falei entre risadas e ele
me acompanhou, rindo em deleite.
— Eu adoraria dizer que é porque você está
deliciosa escorada na sacada desse jeito, mas, na
verdade, é porque acabei de acordar.
— Nossa, Adônis, você podia ter me deixado
acreditando que sou muito difícil de resistir! — protestei
de maneira teatral e ele me apertou ainda mais contra o
seu corpo, apoiando o queijo no meu ombro.
— Você é muito difícil de resistir — suas mãos
desceram, pelos meus quadris, parando sobre as coxas. —
E sabe disso.
Umedeci os lábios, sentindo todos os meus pelos
eriçarem.
— Sabe o que seria uma boa ideia? — minha voz
saiu rouca de desejo. — Fazer amor com a Torre Eiffel de
pano de fundo. É sério, não deve existir nada mais
romântico que isso.
Sua gargalhada foi contagiante. Usando as mãos,
ele me girou até que eu estivesse de frente para ele, e
então me beijou daquela maneira deliciosa, a qual me
deixava de joelhos moles e fracos.
— Adoraria atender o seu desejo agora mesmo,
mas temos pouco tempo para a quantidade de coisas que
queremos visitar.
— Ahhhh, Chewie... — choraminguei, fazendo
beicinho.
— A culpa é sua! Por que me deixou dormir até
tão tarde? — indagou, com um sorriso manso.
— Porque você parecia exausto.
— Eu estava — concordou. — Mas dormir na
cidade luz parece um desperdício, não?
— Nada é um desperdício com você! — Arranhei
as unhas em seu peito, antes de deixar um beijinho em sua
boca. — Mesmo que você esteja inconsciente.
— Isso foi um pouco mórbido, mas vou aceitar,
por ora — brincou, arrancando outra risada calorosa
minha. — Agora que tal se vestir enquanto eu tomo um
banho? Fiquei sabendo que tem um lugar aqui perto com
um brunch... hum... como é a expressão mesmo?
— Obsceno de tão bom?
— Exatamente! Obsceno de tão bom.
— Ok, você me convenceu! — falei,
desvencilhando-me dele para tomar o notebook sobre a
mesinha. — Acho até que vou usar minha boina para me
sentir como uma verdadeira parisiense.
Ele sorriu de um jeito tão lindo que eu precisei
sorrir junto.
— Talvez isso atrase um pouco o nosso passeio.
Sabe que fica sexy demais de boina, não sabe?
— Quem sabe assim você mude de ideia sobre a
coisa da sacada e tudo mais... — disse, pestanejando com
falsa inocência.
Adônis jogou a cabeça para trás, rindo.
— Você não desiste, né?
— Só depois de conseguir os meus objetivos. —
Pisquei com malícia, pouco antes de ele sumir para
dentro.
Entrei logo depois dele, deixando meu notebook
sobre a cama. Meus olhos foram parar no criado-mudo ao
lado dela, onde um porta-retratos nosso jazia, conferindo
um pouco de pessoalidade ao quarto de hotel. Incapaz de
resistir, tomei a foto nas mãos, passeando os olhos pelos
detalhes com carinho. Era do nosso casamento, uma
pequena cerimônia que fizemos na Ilha do Mel, apenas
com meus avós, seus pais, os meninos da banda, Arthur e
Nataly. Nela, eu tinha os braços abertos como o Cristo
Redentor e olhava para a direita com se prestasse atenção
a algo que diziam. Adônis estava ao meu lado, usando
suspensórios e uma gravata borboleta; uma das mãos
segurava Castiel, que estava com uma expressão
emburradíssima e, com a outra, ele fingia se proteger do
chuvisco fino que nos envolvia. Nós dois tínhamos
sorrisos enormes no rosto, como se fôssemos os reis do
mundo. Pouco depois de aquela foto ser tirada, a chuva
irrompeu do céu de uma só vez, e todos tiveram que
correr pra dentro do hotel, onde fizemos a recepção. Eu
fazia questão de levar aquela fotografia em todas as
viagens, apenas como um lembrete diário do quanto
éramos, acima de tudo, sortudos.
Justamente eu, que sempre acreditei fugir do amor,
fui salva diversas vezes graças a ele. Pelos meus avós, em
primeiro lugar, que fizeram tudo por mim e sempre
estiveram ao meu lado. Sem eles eu não teria a menor
chance de chegar tão longe. Pelos meus melhor amigos, os
quais me ensinaram que a vida precisa ser vivida com
leveza e estiveram ao meu lado a cada tropeço. Mas,
principalmente, por Adônis.
Quando olho para trás e vejo a ironia de nossos
caminhos terem se cruzado de maneira tão incisiva,
percebo que o destino já tinha planos sólidos para nós
dois. Não havia nada que pudéssemos fazer. Somente isso
explicaria como pessoas aparentemente tão distintas entre
si pudessem ser, na verdade, tão iguais. Éramos duas
pessoas cheias de cicatrizes e medos. Não queríamos nos
apaixonar, porém, entre tantos encontros e desencontros,
acabamos encontrando um no outro a razão de ser.
Achávamos estar fadados ao fim, sem nunca considerar
que o destino poderia nos presentear com um novo
capítulo. E, no entanto, ali estávamos, apenas começando
nossa vida, sempre um ao lado do outro, em todas as
conquistas e, principalmente, nos contratempos. Esse, na
minha concepção, era o “felizes para sempre” da vida
real.
Uma das minhas frases favoritas de Harry Potter
sempre foi aquela de Dumbledore, que já havia me tirado
das trevas tantas vezes. “Tenha pena dos vivos e, acima
de tudo, daqueles que vivem sem amor”. Agora, mais do
que nunca, eu a entendia como jamais fui capaz.
Porque, fosse por letras de músicas com duplos
sentido, por indecifráveis olhares com a cor do Outono,
por cartas e mais cartas que carregavam nossos corações,
ou ilustrações que diziam muito mais que palavras... não
importava a maneira como ela se manifestasse; de todas
as linguagens existentes, a minha preferida sempre seria a
do amor.
Agradecimentos

A Linguagem do Amor surgiu, assim como tantas


outras ótimas ideias, em uma das infinitas conversas com
a minha irmã gêmea, Ruby Lace. A princípio, era para ser
um conto de poucas páginas, um desafio que fizemos a nós
mesmas de escrever em um curto intervalo de tempo.
Porém, contrariando meu desejo inicial, Adônis e
Rebecca me conquistaram e o romance deles tomou uma
proporção bem maior do que o esperado. E ainda bem que
ouvi o meu coração! Esse foi um livro que amei demais
escrever e para sempre nutrirei um carinho especial por
ele. No entanto, se cheguei até aqui, foi graças ao apoio
de pessoas maravilhosas que fazem parte disso tanto
quanto eu.
Em primeiro lugar, um enorme OBRIGADA, em
letras garrafais, aos meus leitores queridos. Vocês são a
razão de eu poder fazer da escrita o meu ofício. Não faria
sentido algum continuar contando histórias sem vocês
aqui. Muito, muito, muito obrigada mesmo!
Ao meu marido, Charles, agradeço infinitamente
por sempre acreditar tanto nos meus personagens e ser, de
longe, a pessoa que mais me incentiva no mundo
inteirinho. Meu amor, sou muito feliz por ter você na
minha vida e mais ainda por poder comemorar cada
pequena conquista ao seu lado. Te amo demais!
Ruby, amiga linda, nem tenho palavras para
descrever a sorte grande que foi te encontrar nesse
mundão. Obrigada pelas conversas, por continuarmos
escrevendo juntas mesmo com projetos independentes,
pelas palavras de incentivo quando mais preciso e por
não ligar para os meus surtos e loucuras. Muito obrigada
pela amizade e pelos sonhos compartilhados, você me
inspira diariamente e também me ensina muito. Não vejo a
hora de te abraçar bem forte na Bienal!
Jéssica Miguel, você foi a minha primeira
parceira, sabia? Por isso, quando se ofereceu para ser
leitora beta de ALDA, fiquei feliz porque já nutria um
carinho especial por você. Mas o que eu mal podia sonhar
era que você se tornaria uma grande amiga! Jé, sem
brincadeira, é coisa de louco essa afinidade que temos.
Parece mesmo de outra vida. Agradeço por ser tão foda e
ler a minha mente muito antes de eu pensar em falar algo
para você. E agradeço, principalmente, por toda a ajuda e
suporte que me ofereceu ao longo desses cinco meses.
Adônis e Rebecca devem muito a você!
Gilvana Rocha, bendita foi a hora em que entrei
em contato pelo Skoob, hein? Você virou uma parceira
com lugarzinho reservado no meu coração! Muito
obrigada por aceitar ser minha leitora beta, por acreditar
no potencial de #ChewBecca desde o começo e por me
ajudar tanto com a divulgação. Você não sabe disso, mas
várias vezes eu estava uma pilha de incertezas ao te
enviar os capítulos e era sempre um alívio quando você
me contava o que tinha achado.
Minha revisora linda, Luísa Pinheiro, agradeço
por cuidar com tanto carinho desse livro! Amava
encontrar alguma notinha sua no meio da revisão
interagindo com a história.
Jheny Barroca, obrigada por amar Adônis e
Rebecca tanto! Obrigada por sempre me surpreender com
esse carinho enorme pela história e a vontade de me
ajudar a fazer acontecer. Você colocou sorrisos no meu
rosto muitas vezes.
Loletes queridas, como amo passar horas
conversando com vocês! Melhor grupo no whatsapp não
há. Porra de pipoca! Hahah
Aos blogs parceiros Books da Amanda, Castelo de
Leitura, Doce Luar, Pausa Para um Capítulo e Vinheta
Literária, um muito obrigada para lá de especial. Desejo
todo o sucesso do mundo para cada uma!
Por fim e não menos importante, muito obrigada à
minha família e amigos, por oferecerem uma rede de
segurança, sem a qual eu jamais conseguiria chegar a
lugar algum. Amo vocês com todo o meu coração!
Todos vocês foram peças fundamentáveis nesse
quebra-cabeça e eu sou imensamente grata por fazerem
parte do meu sonho.
Playlist

https://open.spotify.com/user/lolasalgado_/playlist/2

Aerosmith – I don’t wanna miss a thing


Alok – Hear me Now
Anavitória – Singular
Ana Carolina – Quem de nós dois
Arctic Monkeys – I wanna be yours
Arctic Monkeys – R U mine?
Ariana Grande – Everyday
Banda do Mar – Pode ser
Banks – Warm water
Bon Jovi – Livin’ on a prayer
Cassia Eller – Por enquanto
Cage the elephant – Trouble
Cícero – Ensaio sobre ela
Cigarettes After Sex – Apocalypse
Cigarettes After Sex – Dreaming of you
Cigarettes After Sex – Please don’t cry
Coldplay – Speed of sound
Creedence Clearwater Revival – Have you ever
seen the rain
Daughter – Landfill
Daughter – Run
Death Cab For Cutie – I will possess your heart
Death Cab For Cutie – You’re a tourist
Depeche Mode – Enjoy the silence
Engenheiros do Hawaii – Refrão de Bolero
(versão acústica)
Ed Sheeran – Shape of you
Extreme – More than words
Franz Ferdinand – Take me out
Guns N’ Roses – Don’t cry
Heartless Bastards – Only for you
Ingrid Michaelson – You and I
Ira! E Pitty – Eu quero sempre mais
Jace Everett – Bad Things
James Arthur – Say you Won't Let Go
Jota Quest – Ela me faz tão bem
Legião Urbana – Quando o sol bater na janela do
seu quarto
Legião Urbana – Quase sem querer
Lenny Kravitz – Again
Little Joy – Brand new start
Little Joy – Unattainable
Los Hermanos – Fingi na hora rir
Los Hermanos – O último romance
Lulu Santos – Um certo alguém
LS Jack – Amanhã não se sabe
Mallu Magalhães – Don’t you leave me
Mallu Magalhães – Highly sensitive
Mallu Magalhães – Velha e louca
Marcelo Jeneci – Felicidade
Marina and the Diamonds – Forget
Marisa Monte – Não vá embora
Maroon 5 – Misery
Melim – Dois Corações
Metallica – Fade to Black
Metallica – Nothing else matters
Nando Reis – All star
Nando Reis – Pra você guardei o amor
Papas da Língua – Eu sei
Passion Pit – Carried Away
Pitty – Equalize
Ruth – Everyday
Sarah Jaffe – Summer Begs
Seu Jorge – Mina do condomínio
Sia – Alive
Snowmine – Let me in
Snow Patrol – Open your eyes
Snow Patrol – Run
Sky Ferreira – You’re not the one
The Beatles – And I love her
The Beatles – Eight days a week
The Beatles – From me to you
The Beatles – I should have known better
The Beatles – In My Life
The Civil Wars – Forget me not
The Strokes – Reptilia
The Subways – I want to hear what you have got to
say
The White Stripes – I don’t know what to do with
myself
Tribalistas – Grão de amor
Two door cinema club – What you know
Two doors cinema club – Something good can
work
Vance Joy – Mess is mine
Yael Naim – New Soul
Sobre a Autora

Lola Salgado é o pseudônimo de uma escritora


paranaense que acredita fervorosamente que o sushi foi
talvez a melhor invenção da humanidade. Gosta dos dias
mais frescos, de café amargo e de histórias que mexem
com os seus sentimentos. Está em relacionamento sério
com os livros desde que se considera por gente, e escreve
porque alguém certa vez lhe disse que era assim que se
fazia magia. Desde então, levou isso como lema de vida.
Lola é escorpiana, nascida em novembro de 93.
Seu livro de estreia, O Advogado, conquistou 1,2 milhões
de leituras no Wattpad e ocupou o 8º lugar na Lista de E-
books Independentes Mais Vendidos da Amazon no ano de
2016. A continuação, O Acusado, ganhou o prêmio
internacional Wattys, no Wattpad, concorrendo com outras
100 mil obras participantes.
Você pode acompanhar o trabalho dela pelo
Facebook
(https://www.facebook.com/autoralolasalgado/),
Instagram (https://www.instagram.com/lolasalgado_/) ou
Wattpad (https://www.wattpad.com/user/LolaSalgado).

Não se esqueça de deixar uma avaliação, ela é


muito importante para mim!

[1]
Metallica – Nothing Else Matters

Você também pode gostar