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19º CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA

9 a 12 de julho de 2019
UFSC – Florianópolis (SC)
GT 01 – Teoria Sociológica

INJUSTIÇA SOCIAL E INJUSTIÇA COGNITIVA: TRÊS


ABORDAGENS TEÓRICAS

Enrico Paternostro Bueno da Silva

Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia no IFCH-Unicamp;


membro do grupo de pesquisa Teoria Crítica e Sociologia, sediado no mesmo
instituto; professor na Faculdade Salesiana Dom Bosco de Piracicaba (SP).

Campinas, SP
2019
Injustiça Social e Injustiça Cognitiva: três abordagens teóricas
Enrico Paternostro Bueno da Silva

Resumo
A comunicação se insere no debate fomentado por autoras como Amy Allen e
Nancy Fraser, cujos trabalhos recentes indicam possibilidades de interlocução
entre a Teoria Crítica (de matriz frankfurtiana) e os estudos pós-coloniais. Seu
objeto principal é o conceito de injustiça cognitiva, crescentemente mobilizado para
os debates sobre justiça social em perspectiva pós-colonial. Partindo da assertiva
de Boaventura de Sousa Santos, segundo a qual "não há justiça social global sem
justiça cognitiva global", o trabalho tem como objetivo diferenciar conotações
possíveis à expressão, tendo em vista as matrizes filosóficas que mobilizam, as
explicações sociais em que se respaldam e os horizontes normativos para o qual
apontam. São identificados três registros principais na utilização da expressão, aqui
denominados como "concepção tradicional", "concepção anti-ocidentalista" e
"concepção crítico-descolonial". Investigando as premissas e análises subjacentes
a cada uma, a conclusão do trabalho aponta para a maior pertinência do terceiro
registro, no que se refere à pretensão teórica inicialmente indicada.
Palavras-chave: Teoria Crítica; Colonialidade; Eurocentrismo; Justiça Social.

A presente comunicação se insere em uma pretensão teórica abrangente,


que almeja construir pontes de interlocução entre a Teoria Crítica e o pós-
colonialismo, tendo como objeto central suas concepções de justiça social. Para
tal, busca-se identificar quais elementos conceituais, correntes internas, autores e
perspectivas dos dois campos podem ser articulados, visto que algumas de suas
premissas teóricas e epistemológicas por vezes aparecem como conflitantes ou
irreconciliáveis. Se Boaventura de Sousa Santos estiver correto ao afirmar que “a
justiça social global não é possível sem uma justiça cognitiva global” (SANTOS,
2006, p. 134), é imperativo que se aprofunde este último conceito, constituindo
assim o recorte deste trabalho. Após recuperar as possíveis confluências e atritos
irredutíveis, o texto se dedica a apresentar três concepções para a (in)justiça
cognitiva.

I. Descolonizar a Teoria Crítica


O projeto de uma “descolonização da Teoria Crítica” ganhou relevo na última
década sob algumas motivações que podem ser (não exaustivamente) apontadas
sumariamente. Primeiramente, com a difusão do chamado Pós-Colonialismo –
termo polissêmico, disputado e por vezes rejeitado por autores costumeiramente
etiquetados como pertencentes ao campo –, tem-se fomentado crescentemente,
desde a década de 1980, uma série de inadagações a respeito do eurocentrismo
subjacente às teorias sociais de maior circulação mundial: as explicações sociais
de nível macro propostas tanto pela sociologia clássica quanto por autores
contemporâneos (Anthony Giddens, Ulrich Beck, Jürgen Habermas dentre outros)
têm sido desafiadas por intelectuais da periferia mundial, que acusam a limitação
espacial e os reducionismos ideológicos de pretensos universalismos.
Além disso, a disputa teórica entre Axel Honneth e Nancy Fraser acerca do
reconhecimento e da justiça social – que se tornou o debate paradigmático da
chamada “terceira geração” da Teoria Crítica – estimulou a autora estadunidense
a se debruçar cada vez mais sobre os problemas da dominação e opressão na
periferia global, recorrendo, a partir do anos de 2010, a certa bibliografia que discute
os vínculos entre a divisão internacional do trabalho e a perpetuação da ideologia
racial desenvolvida na aurora da modernidade.1
Deve-se considerar, ademais e sobretudo, a proposta recente da filósofa
política Amy Allen para um projeto de “Descolonização da Teoria Crítica”, expresso
em sua robusta obra de 2016 The End of Progress: decolonizing the normative
foundations of Critical Theory. Na obra, a autora visa identificar no seio da própria
Teoria Crítica pistas que sinalizam para uma autocrítica descolonizante, sobretudo
por meio da revisão dos fundamentos normativos de alguns dos mais proeminentes
trabalhos realizados a partir de Frankfurt.
A estratégia argumentativa de Allen tem como ponto de partida a distinção
entre duas concepções de “progresso histórico”, de modo a averiguar a prevalência
de cada uma nos trabalhos de autores como Jürgen Habermas, Axel Honneth e
Rainer Forst. A primeira consistiria na ideia de progresso enquanto “imperativo
político-moral”; a segunda, no progresso enquanto “fato histórico”. Nas palavras da
autora:

“Essas duas concepções estão relacionadas a dois argumentos


distintos, resultantes da reivindicação de que a teoria crítica
necessita de alguma ideia de progresso para ser verdadeiramente

1 Quanto a essa guinada recente de Fraser, ver: FRASER 2015; 2016..


crítica. A primeira concepção é prospectiva, orientada para o futuro.
Para ela, o progresso é um imperativo político-moral, um objetivo
normativo o qual se pretende alcançar, que pode ser apreendido
sob a ideia de bem, ou pelo menos de uma sociedade mais justa.
A segunda concepção é retrospectiva, orientada para o passado.
Para ela, o progresso é um julgamento sobre o processo de
desenvolvimento ou aprendizado que nos trouxe até ‘nós’, um
julgamento que enxerga ‘nossa’ concepção de razão, ‘nossas’
instituições moral-políticas, ‘nossas’ práticas sociais, ‘nossas’
formas de vida como resultantes de um processo de
desenvolvimento sociocultural ou aprendizado histórico. Eu
chamarei a concepção prospectiva de ‘progresso enquanto
imperativo’ e a concepção retrospectiva de ‘progresso enquanto
fato’.” (ALLEN, 2016, p. 11-12.)

Allen concebe que o principal obstáculo à descolonização da Teoria Crítica


reside, precisamente, na forma como os fundamentos normativos foram
construídos por muitos de seus expoentes. Não bastaria, portanto, “estender” o
arcabouço analítico para abrigar as contribuições de Frantz Fanon ou Aimé Césaire
à crítica do colonialismo. Seria necessário discutir de que maneiras os
silenciamentos sobre a racialização e a barbárie colonial decorrem das concepções
de progresso histórico que subjazem à construção da normatividade. O que a
conduz ao dilema da imanência na Teoria Crítica, isto é, à questão acerca de como
teorizar normativamente sobre a transfiguração social sem recorrer à
transcendência. Para a autora, os modelos de Habermas e Honneth oferecem
respostas similares ao problema: os princípios já presentes na vida social moderna,
e sobre os quais se assenta a orientação normativa do esclarecimento, são
entendidos como resultantes de um processo de evolução social ou aprendizado
sociocultural. Ou seja, Allen entende que a saída encontrada por ambos vincula as
duas concepções de progresso: a orientação normativa prospectiva resulta de um
progresso histórico factual retrospectivo que pode ser reconstruído pela teoria
social; ou ainda, o horizonte normativo futuro é assentado sobre o movimento
histórico passado. Aqui se encontra o ponto fulcral que explica o subtítulo da obra:
a fundamentação da normatividade, mobilizando o progresso como fato histórico, é
erigida sobre a modernidade europeia, a história do esclarecimento narrada de
modo autocentrado. Caberia descolonizar essa fundamentação.
O caminho proposto por ela, contudo, não consiste no abandono da crítica
imanente, da dialética ou da orientação à emancipação, muito menos na rejeição
pura e simples dos trabalhos realizados a partir do Instituto de Pesquisa Social ou
de autores identificados com essa tradição. Para ela, há proposições já
desenvolvidas no seio do próprio campo capazes de tornar o programa da Teoria
Crítica menos vulnerável às objeções provenientes dos estudos pós-coloniais. Sua
proposta, anunciada desde as primeiras páginas da obra e desenvolvida com maior
precisão no penúltimo capítulo, é voltar o olhar para a primeira geração de teóricos
críticos, nos quais se poderia encontrar uma objeção bem fundamentada à ideia de
progresso histórico enquanto fato.
Para essa empreitada, o trabalho de Theodor Adorno lhe parece
notavelmente contributivo, especialmente se tomado em interlocução com a obra
de Michel Foucault. Pois, ao contrário de autores como Habermas e Honneth,
Adorno expressaria um ceticismo quanto à ideia retrospectiva de progresso
histórico – ainda que não rejeite uma concepção prospectiva, o progresso como
imperativo político-moral. A leitura que a autora faz da Dialética do Esclarecimento
(ADORNO; HOKHEIMER, 1991). difere, nesse particular, daquela realizada por
Axel Honneth e descrita no terceiro capítulo. Para ela, a dialética do esclarecimento
na modernidade europeia deve ser interpretada como crítica de um processo
histórico contingente, que compreende a emergência da ciência moderna, do
capitalismo, da moralidade burguesa, da indústria cultural e do antissemitismo. “O
conceito de esclarecimento”, reconhece Allen, “é emaranhado a relações de poder
e, nesse sentido, carrega em seu interior a semente ou o gérmen de sua própria
regressão.” (ALLEN, 2016, p. 172). Entretanto, continua seu argumento, a forma
particular pela qual essa relação se deu na história ocidental, com seus potenciais
de reificação desencadeando a barbárie de pleno direito, é contingencial. Ao
contrário do que entende Honneth, em suma, a autora não enxerga naquela obra
os traços de uma filosofia negativa da história.2
A autora ressalta, ainda, que embora tenham (por caminhos diferentes)
incorrido na rejeição de uma interpretação corrente da filosofia hegeliana da história
– de que o progresso histórico poderia ser entendido como ampliação contínua da
liberdade pela realização do Espírito –, ambos aderiram à proposição de Hegel
segundo a qual a filosofia é sempre historicamente situada, uma reflexão crítica do
presente momento que faz uso de ferramentas conceituais que são, elas mesmas,

2 Segundo Allen, a História da Loucura de Foucault, ainda que pautada por outras premissas
histórico-filosóficas, expressaria semelhante ceticismo quanto ao progresso histórico retrospectivo
produtos históricos. Com isso, teriam dado passos relevantes para distanciar suas
teorias daquele que aparece como alvo mais vulnerável da filosofia hegeliana à
crítica pós-colonial, a saber, a ideia expressa na Filosofia da História (HEGEL,
1995) de que o movimento histórico se desloca do Oriente para o Ocidente,
encontrando as formas mais acabadas e maduras na Europa Ocidental,
especialmente na civilização germânica. Desse esboço evolucionista encontrar-se-
iam ausentes, por suposta desimportância, tanto a África quanto as Américas.
Enrique Dussel, um dos críticos ao eurocentrismo de Hegel, entende que também
Habermas se mostra herdeiro dessa postura epistêmica segundo a qual “a Europa
cristã moderna nada tem a aprender dos outros mundos, das outras culturas”
(DUSSEL, 1993, p. 21).
Segue-se, então, o questionamento central de The End of Progress: se não
for sobre uma concepção retrospectiva de progresso histórico (enquanto
aprendizado sociocultural ou evolução social) – ou seja, se não se adere à narrativa
histórica que encontra na modernidade ocidental a forma mais avançada de
racionalidade, de vida social e de organização institucional – qual pode ser um solo
seguro para uma fundamentação pós-metafísica da normatividade na Teoria
Crítica? Reivindicando fidelidade aos princípios teóricos originários de Frankfurt,
Allen propõe uma postura de herança crítica do legado normativo do iluminismo, a
qual problematizaria simultaneamente seus traços imperialistas e autoritários.
Concebe, desse modo, que: “mesmo se, como defendem Habermas e Honneth,
tomarmos os ideais de liberdade e igual respeito como centrais à ‘nossa’ herança
do Esclarecimento, então o que temos a aprender com Adorno e Foucault é como
podemos reafirmar esses ideais através de sua transformação radical a partir de
dentro” (ALLEN, 2016, p. 204).
Para argumentar em favor de sua proposta, sugere inicialmente três
possíveis abordagens genealógicas da história moderna, que implicam em três
modos de se relacionar com os princípios normativos constitutivos da modernidade:
a genealogia pode ser reivindicativa (concebendo uma progressão histórica),
subversiva (regressão histórica) ou problematizadora. O empenho argumentativo
que segue é de reconstruir, a partir dos trabalhos de Adorno e Foucault, uma
alternativa calcada nessa terceira abordagem, entendendo que esses dois filósofos
estão a serviço de “um abrangente projeto de crítica imanente que visa não uma
negação abstrata da herança normativa da modernidade mas antes sua realização
completa” (ALLEN, 2016, p. 164-165).
A caracterização dessa “genealogia problematizadora” – que concebe, a um
só tempo e dialeticamente, os elementos “progressivos” e “regressivos” do
esclarecimento europeu sem tomar a modernidade eurocentrada como forma social
moralmente superior – é construída através de um contraponto à “reatualização” da
filosofia hegeliana operada por Honneth. Entendendo que a proposta de
reconstrução normativa (HONNETH, 2015) acaba por aderir a uma postura
reivindicatória do “nosso” ponto de vista ocidental, Allen propõe ir além de uma
concepção de genealogia compreendida como provedora de “um ponto de vista
metacrítico que nos permite ver como nossos ideais normativos não se aplicam na
prática” (ALLEN, 2016, p. 206) – concepção que atribui a Honneth. Procura oferecer
uma alternativa capaz de pôr em xeque a violência colonial e a dominação
geopolítica, reproduzida pelo discurso da superioridade europeia, conforme
expressa em seu argumento:

“A genealogia não é simplesmente subversiva e seu papel na teoria


crítica não deve ser confinado ao momento metacrítico que nos diz
como nossos ideais normativos não se aplicam na prática. Uma
concepção mais producente de genealogia a entende como
visando não à subversão ou à reivindicação de nossos
compromissos normativos, mas antes à sua problematização.
Nesse entendimento, a reconstrução da normatividade imanente de
formas de vida historicamente sedimentadas e a desconstrução das
imposições de poder por essas mesmas normas – inclusive as
imposições de poder imperialista – devem estar de mãos dadas.”
(ALLEN, 2016, p. 206. Grifos meus)

O que Allen propõe, em suma, não é nem a rejeição absoluta da herança


normativa do esclarecimento europeu – uma negação total do projeto da
modernidade –, nem uma adesão a esse projeto que se restrinja a investigar os
limites e contradições que impedem sua concretização. A proposta da genealogia
problematizadora envolve, como bem sintetizou Georg Steinmetz, “revelar a
contingência histórica de nosso próprio ponto de vista e mostrar como esse ponto
de vista está conectado ao poder, ao mesmo tempo em que toma esse ponto de
vista como nosso ponto de partida normativo” (STEINMETZ, 2017, p. 9). Dito de
outro modo: trata-se de, de saída, assumir o inevitável comprometimento da crítica
com os princípios normativos da modernidade – dentre os quais podemos
mencionar “liberdade social”, “autolegislação”, “direito à justificação”, “paridade
participativa” –, posto que desses princípios dependem “nossa” forma moderna de
vida, “nosso” senso de justiça e “nossa” constituição enquanto agentes morais. Ao
mesmo tempo, porém, trata-se de reconhecer a violência inerente aos processos
autoritários e contraditórios pelos quais se tem buscado institucionalizá-los e
universalizá-los, deslegitimando e oprimindo outras formas de vida social,
organização política, etc. Trata-se, enfim, de aderir a uma postura fundamental de
humildade epistêmica em relação ao estatuto e à autoridade dos valores modernos
e às formas de vida, práticas sociais e instituições que justificam.

II. Três Concepções de Injustiça Cognitiva


Amy Allen não foi a primeira autora a dirigir objeções “pós-colonais” à Teoria
Crítica. Nota-se inquietação similar em autores como Enrique Dussel (1993; 2000),
Boaventura de Sousa Santos (2006) e, no contexto brasileiro, José Maurício
Domingues (2011). Entretanto, o trabalho da autora se destaca por tentar buscar
algumas respostas recorrendo a premissas teóricas e recursos epistemológicos do
próprio campo, demonstrando possibilidades de sua superação dialética. O foco de
seu trabalho, entretanto, detêm-se no plano da fundamentação da normatividade,
não almejando discutir as suposições eurocêntricas igualmente atuantes no plano
dos diagnósticos de época que emergiram no contexto.
Quanto a isso, indagações e provocações de alto relevo têm sido feitas por
Raewyn Connell, que vislumbra a necessidade de uma revolução abrangente da
Teoria Social, capaz de romper com certos conteúdos ideológicos derivados de
uma divisão internacional do conhecimento, cujo lastro geopolítico carrega
implicações decisivas sobre o trabalho teórico. Diz Connell, nesse excerto bastante
incisivo: “teoria é o que o centro faz”. E segue seu argumento:

“A construção de conceitos nas ciências sociais sempre envolve


uma reificação da experiência social. Dizer isso não é uma crítica
em si; algum tipo de reificação é necessário para se ir além da
situação imediata e concreta, para podermos falar sobre outras
situações. Mas colocar isso dessa maneira imediatamente provoca
a seguinte questão: que experiência social está sendo reificada, e
mais especificamente, experiência social de quem? Os textos de
teoria social envolvem principalmente uma reificação da
experiência social do Norte. Às vezes, isso é bem direto, como
quando somos informados de que vivemos numa sociedade de
redes, ou numa sociedade de risco, ou na pós-modernidade – todas
caracterizadas por experiências sociais que a maioria da população
do mundo não vive. Nas formas mais sofisticadas e poderosas de
teoria, contudo, a reificação da experiência social da metrópole
ocorre num nível mais abstrato.” (CONNELL, 2011, p. 10).

Connell, no mesmo sentido que uma ampla gama de autores desse vasto
campo teórico, tem indicado a necessidade de se repensar os substratos teóricos
das Ciências Sociais de modo a escapar de tais tendências da “reificação da
experiência social do norte”. Alguns autores (SANTOS, 2006; MENESES, 2009;
MANIGLIO, 2017) têm teorizado essa questão enquanto modalidade de injustiça
social – na medida em que rompe com um pressuposto de equidade universal e
pode implicar no impedimento à autorrealização e autodeterminação de sujeitos –,
denominando-a de injustiça cognitiva.
Pela abrangência dos significantes nela contidos, a expressão tem abrigado
uma variedade de compreensões e sido teorizada em vários registros teóricos. No
intuito de evitar confusões conceituais, e buscando uma noção que não se submeta
a certo radicalismo anti-academicista e anti-intelectual que não condiz com a Teoria
Crítica e sua compreensão dialética, é mister discutir os contributos e limites das
concepções mais promenientes para o termo, em especial as três que seguem.
A primeira, a que se pode chamar de “concepção tradicional”, entende a
justiça cognitiva como universalização do conhecimento moderno consolidado.
Trata-se de um entendimento incondizente com as posições teóricas derivadas
tanto da Escola de Frankfurt quanto das diferentes vertentes dos estudos pós-
coloniais. Em resumo, essa concepção propõe que uma sociedade justa requer
acesso universal às realizações científicas e principais narrativas históricas da
humanidade (europeia), sem colocar sob suspeita as contradições epistemológicas
da teoria tradicional prevalecente, o papel da ciência vigente na reprodução social,
as assimetrias de poder que subjazem às forças das diferentes narrativas e a
desigual divisão internacional do conhecimento – concebida como elemento
necessário à manutenção da divisão internacional do trabalho (em sentido mais
amplo), sem a qual o padrão mundial de poder vigente não se sustenta sob suas
atuais condições.
Fetichizando mensurações avaliativas sob critérios arbitrários padronizados
e forçosamente universalizados, essa crítica da injustiça cognitiva não dá conta de
uma injustiça estruturante anterior, a saber, referente aos caminhos pelos quais o
modus operandi da teoria tradicional instituída alcançou seu estatuto de síntese de
toda racionalidade humana e se impôs sobre o mundo. Em suma, concebe a
“modernidade” (considerando sua epistemologia, seus princípios políicos, suas
narrativas ideológicas, etc.) como univocamente emancipadora, sendo que a
questão central seria apenas levar seu conhecimento “universal” ao máximo de
indivíduos e povos possível. Sob essa compreensão, embora a luta pela
democratização e universalização do ensino carregue suas inegáveis
potencialidades de ampliação democrática e redução de desigualdades, não se
revelam caminhos capazes de apontar para a superação estrutural dos problemas
identificados pelos estudiosos da “dependência acadêmica” (ALATAS, 2003;
BEIGEL, 2014), da “colonialidade do saber” (QUIJANO, 2005) e mesmo do
“capitalismo mundial” (WALLERSTEIN, 2004).
A segunda concepção, antitética à anterior, pode ser denominada “anti-
ocidentalista”. Ela decorre de uma concepção univocamente negativa da
modernidade e da teoria tradicional que a caracteriza, não raro incorrendo em
manifestações próprias de um antimodernismo romântico, com a busca de raízes
originais (e essenciais) dos conhecimentos locais, a ambição de uma “ciência
própria” e a suposição de que todo e qualquer legado epistemológico, teórico,
político ou ético da “civilização ocidental” incorre em colonialismo e violência
epistêmica (devendo, portanto, ser combatido).
Assim, a construção da justiça cognitiva passaria por aquilo que Sousa
Santos (2006) denomina “ecologia de saberes”, ou que Walter Mignolo (2004; 2008)
aclama como “desobediência epistêmica”. Nesse registro, conforme define Maria
Paula Meneses (2009, p. 235), “o conceito de justiça cognitiva assenta exatamente
na busca de um tratamento igualitário de todas as formas de saberes e daqueles
que o possuem e trabalham, abrindo o campo acadêmico à diversidade epistêmica
no mundo”. Indubitavelmente, essa concepção possui o valioso potencial para a
problematização da modernidade e suas ideologias, sobretudo ao criticar o
solipsismo da ideia moderna de sujeito e da suposição da europeidade autopoiética
(Dussel, 1993), que ignoram a gênese entrecruzada da modernidade (Costa, 2006)
e subestimam a possibilidade atual de se “aprender com o Sul”. Entretanto, dela
derivam algumas tendências intransigentes que não permitem admitir as
especificidades ético-políticas e os alcances epistemológicos inéditos do
conhecimento moderno – mesmo que este seja concebido em sua história
intercontinental, como propõem diversos autores do campo. Recusando de saída
os princípios normativos modernos, a radicalização dessa concepção incorre no
risco de se perder de vista a “dimensão emancipadora” inerente a ela. Além disso,
independentemente da intenção de seus defensores, não se deixa de endossar
posições relativistas, diferencialistas e anti-acadêmicas, com potencial para o
fortalecimento de movimentos obscurantistas. Em suma, perde-se de vista que a
epistemologia e os princípios normativos da modernidade carregam em si
potenciais de ampliação da autodeterminação e do autodesenvolvimento, ainda
que contraditoriamente.
Por fim, a terceira concepção pode ser alcunhada como “crítica-descolonial”.
Aqui, a injustiça cognitiva significa uma forma de crítica da colonialidade do saber
(QUIJANO, 1991) que evita as tendências problemáticas apresentadas no item
anterior. Ela se centra na estruturação injusta dos processos de produção do
conhecimento, nos mecanismos produtores e reprodutores da divisão internacional
do conhecimento e nas mediações entre esta e a perpetuação do padrão mundial
de poder vigente. Quanto ao plano institucional, essa concepção coloca em voga
as hierarquias de poder que se concatenam às diferentes forças das narrativas
históricas em disputa, escancara os procedimentos jurídicos e políticos pelos quais
se mantêm os fenômenos de “inclusão diferenciada” e “fuga de cérebros”
(MANIGLIO, 2017), desvela os processos sociais que sustentam a dependência
acadêmica e discute estratégias subalternas para dirimir o problema, inclusive
inserindo-as no debate sobre políticas educacionais. No plano teórico-
epistemológico, visa uma superação imanente dos pilares filosóficos do
conhecimento moderno, tais quais: o dualismo sujeito-objeto, o pensamento
idêntico, a neutralidade axiológica, o evolucionismo histórico-filosófico, a ideologia
eurocêntrica, o silenciamento da racialização e da geopolítica e as diversas formas
de “produção da inexistência” da alteridade.
A injustiça cognitiva, nesse último sentido, consistiria no impedimento
sistemático de que os sujeitos subalternos possam falar e serem ouvidos (cf.
SPIVAK, 2014), seja nos espaços públicos de debate informal ou na produção
institucionalizada do conhecimento; mas também na estruturação do campo
científico de modo a inibir que sua condição de subalternização seja trazida como
enraizamento analítico e ancoramento normativo da teoria social. Diferindo-se das
tendências anteriores, aqui o “ponto de vista do subalterno” não é defendido
enquanto discurso essencialista ou subjetivista, que subentende como necessária
à crítica uma equalização entre o “lugar social de fala” e o “lugar epistêmico da
teoria” (cf. GROSFOGUEL, 2010) , mas enquanto referencial epistemológico da
teoria social, em um fazer teórico que mira as estruturas e processos institucionais
basilares da dominação e opressão. Em suma, a injustiça cognitiva consiste em um
conjunto de práticas sociais, ideologias, procedimentos científicos e estruturas
sociais que propiciam produção e reprodução do conhecimento (em sua
configuração institucional, distribuição geopolítica e conteúdos teóricos) de modo a
produzir e reproduzir a subalternização.
A defesa dessa última perspectiva se alinha à proposição de Allen de uma
“genealogia problematizadora” para a Teoria Crítica, em que se abandona leituras
progressivas sobre o desenrolar histórico em larga escala e toma a Dialética do
Esclarecimento como processo contingente. Coloca, então “a ‘nossa’ herança do
Esclarecimento radicalmente em questão, interrogando seu entrelaçamento à
colonialidade do poder”; visa, assim, uma “maneira de assumir essa herança
descolonizando-a, e, assim, agir em solidariedade com o sofrimento do colonizado”
(ALLEN, 2016, p. 209).
No mesmo sentido dessa autora, defende-se aqui esse caminho enquanto
saída mais propícia para um projeto de descolonização da Teoria Crítica, opondo-
se a posições que se identificam com formas de genealogia reivindicatória e
subversiva. Trata-se de um projeto que visa não uma suposta contraposição
externa à ciência e aos princípios normativos da modernidade – tampouco seu
endosso acrítico –, mas uma superação das premissas eurocêntricas presentes na
crítica imanente da sociedade moderna, já proposta desde a Escola de Frankfurt.

III. Conclusões
Esta comunicação foi formulada com três intuitos principais: o primeiro foi
apresentar e defender, ainda que introdutoriamente e sem longo desenvolvimento
argumentativo, a necessidade e plausibilidade da Teoria Crítica encarar de modo
mais sério as objeções pós-coloniais que se têm dirigido sobre ela; o segundo foi
introduzir a obra de Amy Allen como empreendimento mais consistente realizado
nesse sentido, ainda que se limite à discussão da fundamentação normativa e
pouco discuta as mediações sócio-analíticas dos diagnósticos de época; o terceiro
foi compreender criticamente as diversas concepções de “injustiça cognitiva” que
têm emergido desse debate, cujo objetivo costuma ser a denúncia da “divisão
internacional do conhecimento” e suas consequências teóricas e epistemológicas.
Ainda que nenhum dos propósitos tenha sido tratado com a robustez
argumentativa necessária, tendo em vista as limitações de tempo e espaço que
uma comunicação de Congresso impõe, é por ora satisfatório o levantamento dessa
ordem de indagações, acompanhado do apontamento de algumas teses que
podem fomentar seu desenvolvimento ulterior. Há um vasto leque de investigações
que podem ser suscitadas a partir da formulação de Amy Allen, assim como outras
apresentadas ao longo deste texto.

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