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9 a 12 de julho de 2019
UFSC – Florianópolis (SC)
GT 01 – Teoria Sociológica
Campinas, SP
2019
Injustiça Social e Injustiça Cognitiva: três abordagens teóricas
Enrico Paternostro Bueno da Silva
Resumo
A comunicação se insere no debate fomentado por autoras como Amy Allen e
Nancy Fraser, cujos trabalhos recentes indicam possibilidades de interlocução
entre a Teoria Crítica (de matriz frankfurtiana) e os estudos pós-coloniais. Seu
objeto principal é o conceito de injustiça cognitiva, crescentemente mobilizado para
os debates sobre justiça social em perspectiva pós-colonial. Partindo da assertiva
de Boaventura de Sousa Santos, segundo a qual "não há justiça social global sem
justiça cognitiva global", o trabalho tem como objetivo diferenciar conotações
possíveis à expressão, tendo em vista as matrizes filosóficas que mobilizam, as
explicações sociais em que se respaldam e os horizontes normativos para o qual
apontam. São identificados três registros principais na utilização da expressão, aqui
denominados como "concepção tradicional", "concepção anti-ocidentalista" e
"concepção crítico-descolonial". Investigando as premissas e análises subjacentes
a cada uma, a conclusão do trabalho aponta para a maior pertinência do terceiro
registro, no que se refere à pretensão teórica inicialmente indicada.
Palavras-chave: Teoria Crítica; Colonialidade; Eurocentrismo; Justiça Social.
2 Segundo Allen, a História da Loucura de Foucault, ainda que pautada por outras premissas
histórico-filosóficas, expressaria semelhante ceticismo quanto ao progresso histórico retrospectivo
produtos históricos. Com isso, teriam dado passos relevantes para distanciar suas
teorias daquele que aparece como alvo mais vulnerável da filosofia hegeliana à
crítica pós-colonial, a saber, a ideia expressa na Filosofia da História (HEGEL,
1995) de que o movimento histórico se desloca do Oriente para o Ocidente,
encontrando as formas mais acabadas e maduras na Europa Ocidental,
especialmente na civilização germânica. Desse esboço evolucionista encontrar-se-
iam ausentes, por suposta desimportância, tanto a África quanto as Américas.
Enrique Dussel, um dos críticos ao eurocentrismo de Hegel, entende que também
Habermas se mostra herdeiro dessa postura epistêmica segundo a qual “a Europa
cristã moderna nada tem a aprender dos outros mundos, das outras culturas”
(DUSSEL, 1993, p. 21).
Segue-se, então, o questionamento central de The End of Progress: se não
for sobre uma concepção retrospectiva de progresso histórico (enquanto
aprendizado sociocultural ou evolução social) – ou seja, se não se adere à narrativa
histórica que encontra na modernidade ocidental a forma mais avançada de
racionalidade, de vida social e de organização institucional – qual pode ser um solo
seguro para uma fundamentação pós-metafísica da normatividade na Teoria
Crítica? Reivindicando fidelidade aos princípios teóricos originários de Frankfurt,
Allen propõe uma postura de herança crítica do legado normativo do iluminismo, a
qual problematizaria simultaneamente seus traços imperialistas e autoritários.
Concebe, desse modo, que: “mesmo se, como defendem Habermas e Honneth,
tomarmos os ideais de liberdade e igual respeito como centrais à ‘nossa’ herança
do Esclarecimento, então o que temos a aprender com Adorno e Foucault é como
podemos reafirmar esses ideais através de sua transformação radical a partir de
dentro” (ALLEN, 2016, p. 204).
Para argumentar em favor de sua proposta, sugere inicialmente três
possíveis abordagens genealógicas da história moderna, que implicam em três
modos de se relacionar com os princípios normativos constitutivos da modernidade:
a genealogia pode ser reivindicativa (concebendo uma progressão histórica),
subversiva (regressão histórica) ou problematizadora. O empenho argumentativo
que segue é de reconstruir, a partir dos trabalhos de Adorno e Foucault, uma
alternativa calcada nessa terceira abordagem, entendendo que esses dois filósofos
estão a serviço de “um abrangente projeto de crítica imanente que visa não uma
negação abstrata da herança normativa da modernidade mas antes sua realização
completa” (ALLEN, 2016, p. 164-165).
A caracterização dessa “genealogia problematizadora” – que concebe, a um
só tempo e dialeticamente, os elementos “progressivos” e “regressivos” do
esclarecimento europeu sem tomar a modernidade eurocentrada como forma social
moralmente superior – é construída através de um contraponto à “reatualização” da
filosofia hegeliana operada por Honneth. Entendendo que a proposta de
reconstrução normativa (HONNETH, 2015) acaba por aderir a uma postura
reivindicatória do “nosso” ponto de vista ocidental, Allen propõe ir além de uma
concepção de genealogia compreendida como provedora de “um ponto de vista
metacrítico que nos permite ver como nossos ideais normativos não se aplicam na
prática” (ALLEN, 2016, p. 206) – concepção que atribui a Honneth. Procura oferecer
uma alternativa capaz de pôr em xeque a violência colonial e a dominação
geopolítica, reproduzida pelo discurso da superioridade europeia, conforme
expressa em seu argumento:
Connell, no mesmo sentido que uma ampla gama de autores desse vasto
campo teórico, tem indicado a necessidade de se repensar os substratos teóricos
das Ciências Sociais de modo a escapar de tais tendências da “reificação da
experiência social do norte”. Alguns autores (SANTOS, 2006; MENESES, 2009;
MANIGLIO, 2017) têm teorizado essa questão enquanto modalidade de injustiça
social – na medida em que rompe com um pressuposto de equidade universal e
pode implicar no impedimento à autorrealização e autodeterminação de sujeitos –,
denominando-a de injustiça cognitiva.
Pela abrangência dos significantes nela contidos, a expressão tem abrigado
uma variedade de compreensões e sido teorizada em vários registros teóricos. No
intuito de evitar confusões conceituais, e buscando uma noção que não se submeta
a certo radicalismo anti-academicista e anti-intelectual que não condiz com a Teoria
Crítica e sua compreensão dialética, é mister discutir os contributos e limites das
concepções mais promenientes para o termo, em especial as três que seguem.
A primeira, a que se pode chamar de “concepção tradicional”, entende a
justiça cognitiva como universalização do conhecimento moderno consolidado.
Trata-se de um entendimento incondizente com as posições teóricas derivadas
tanto da Escola de Frankfurt quanto das diferentes vertentes dos estudos pós-
coloniais. Em resumo, essa concepção propõe que uma sociedade justa requer
acesso universal às realizações científicas e principais narrativas históricas da
humanidade (europeia), sem colocar sob suspeita as contradições epistemológicas
da teoria tradicional prevalecente, o papel da ciência vigente na reprodução social,
as assimetrias de poder que subjazem às forças das diferentes narrativas e a
desigual divisão internacional do conhecimento – concebida como elemento
necessário à manutenção da divisão internacional do trabalho (em sentido mais
amplo), sem a qual o padrão mundial de poder vigente não se sustenta sob suas
atuais condições.
Fetichizando mensurações avaliativas sob critérios arbitrários padronizados
e forçosamente universalizados, essa crítica da injustiça cognitiva não dá conta de
uma injustiça estruturante anterior, a saber, referente aos caminhos pelos quais o
modus operandi da teoria tradicional instituída alcançou seu estatuto de síntese de
toda racionalidade humana e se impôs sobre o mundo. Em suma, concebe a
“modernidade” (considerando sua epistemologia, seus princípios políicos, suas
narrativas ideológicas, etc.) como univocamente emancipadora, sendo que a
questão central seria apenas levar seu conhecimento “universal” ao máximo de
indivíduos e povos possível. Sob essa compreensão, embora a luta pela
democratização e universalização do ensino carregue suas inegáveis
potencialidades de ampliação democrática e redução de desigualdades, não se
revelam caminhos capazes de apontar para a superação estrutural dos problemas
identificados pelos estudiosos da “dependência acadêmica” (ALATAS, 2003;
BEIGEL, 2014), da “colonialidade do saber” (QUIJANO, 2005) e mesmo do
“capitalismo mundial” (WALLERSTEIN, 2004).
A segunda concepção, antitética à anterior, pode ser denominada “anti-
ocidentalista”. Ela decorre de uma concepção univocamente negativa da
modernidade e da teoria tradicional que a caracteriza, não raro incorrendo em
manifestações próprias de um antimodernismo romântico, com a busca de raízes
originais (e essenciais) dos conhecimentos locais, a ambição de uma “ciência
própria” e a suposição de que todo e qualquer legado epistemológico, teórico,
político ou ético da “civilização ocidental” incorre em colonialismo e violência
epistêmica (devendo, portanto, ser combatido).
Assim, a construção da justiça cognitiva passaria por aquilo que Sousa
Santos (2006) denomina “ecologia de saberes”, ou que Walter Mignolo (2004; 2008)
aclama como “desobediência epistêmica”. Nesse registro, conforme define Maria
Paula Meneses (2009, p. 235), “o conceito de justiça cognitiva assenta exatamente
na busca de um tratamento igualitário de todas as formas de saberes e daqueles
que o possuem e trabalham, abrindo o campo acadêmico à diversidade epistêmica
no mundo”. Indubitavelmente, essa concepção possui o valioso potencial para a
problematização da modernidade e suas ideologias, sobretudo ao criticar o
solipsismo da ideia moderna de sujeito e da suposição da europeidade autopoiética
(Dussel, 1993), que ignoram a gênese entrecruzada da modernidade (Costa, 2006)
e subestimam a possibilidade atual de se “aprender com o Sul”. Entretanto, dela
derivam algumas tendências intransigentes que não permitem admitir as
especificidades ético-políticas e os alcances epistemológicos inéditos do
conhecimento moderno – mesmo que este seja concebido em sua história
intercontinental, como propõem diversos autores do campo. Recusando de saída
os princípios normativos modernos, a radicalização dessa concepção incorre no
risco de se perder de vista a “dimensão emancipadora” inerente a ela. Além disso,
independentemente da intenção de seus defensores, não se deixa de endossar
posições relativistas, diferencialistas e anti-acadêmicas, com potencial para o
fortalecimento de movimentos obscurantistas. Em suma, perde-se de vista que a
epistemologia e os princípios normativos da modernidade carregam em si
potenciais de ampliação da autodeterminação e do autodesenvolvimento, ainda
que contraditoriamente.
Por fim, a terceira concepção pode ser alcunhada como “crítica-descolonial”.
Aqui, a injustiça cognitiva significa uma forma de crítica da colonialidade do saber
(QUIJANO, 1991) que evita as tendências problemáticas apresentadas no item
anterior. Ela se centra na estruturação injusta dos processos de produção do
conhecimento, nos mecanismos produtores e reprodutores da divisão internacional
do conhecimento e nas mediações entre esta e a perpetuação do padrão mundial
de poder vigente. Quanto ao plano institucional, essa concepção coloca em voga
as hierarquias de poder que se concatenam às diferentes forças das narrativas
históricas em disputa, escancara os procedimentos jurídicos e políticos pelos quais
se mantêm os fenômenos de “inclusão diferenciada” e “fuga de cérebros”
(MANIGLIO, 2017), desvela os processos sociais que sustentam a dependência
acadêmica e discute estratégias subalternas para dirimir o problema, inclusive
inserindo-as no debate sobre políticas educacionais. No plano teórico-
epistemológico, visa uma superação imanente dos pilares filosóficos do
conhecimento moderno, tais quais: o dualismo sujeito-objeto, o pensamento
idêntico, a neutralidade axiológica, o evolucionismo histórico-filosófico, a ideologia
eurocêntrica, o silenciamento da racialização e da geopolítica e as diversas formas
de “produção da inexistência” da alteridade.
A injustiça cognitiva, nesse último sentido, consistiria no impedimento
sistemático de que os sujeitos subalternos possam falar e serem ouvidos (cf.
SPIVAK, 2014), seja nos espaços públicos de debate informal ou na produção
institucionalizada do conhecimento; mas também na estruturação do campo
científico de modo a inibir que sua condição de subalternização seja trazida como
enraizamento analítico e ancoramento normativo da teoria social. Diferindo-se das
tendências anteriores, aqui o “ponto de vista do subalterno” não é defendido
enquanto discurso essencialista ou subjetivista, que subentende como necessária
à crítica uma equalização entre o “lugar social de fala” e o “lugar epistêmico da
teoria” (cf. GROSFOGUEL, 2010) , mas enquanto referencial epistemológico da
teoria social, em um fazer teórico que mira as estruturas e processos institucionais
basilares da dominação e opressão. Em suma, a injustiça cognitiva consiste em um
conjunto de práticas sociais, ideologias, procedimentos científicos e estruturas
sociais que propiciam produção e reprodução do conhecimento (em sua
configuração institucional, distribuição geopolítica e conteúdos teóricos) de modo a
produzir e reproduzir a subalternização.
A defesa dessa última perspectiva se alinha à proposição de Allen de uma
“genealogia problematizadora” para a Teoria Crítica, em que se abandona leituras
progressivas sobre o desenrolar histórico em larga escala e toma a Dialética do
Esclarecimento como processo contingente. Coloca, então “a ‘nossa’ herança do
Esclarecimento radicalmente em questão, interrogando seu entrelaçamento à
colonialidade do poder”; visa, assim, uma “maneira de assumir essa herança
descolonizando-a, e, assim, agir em solidariedade com o sofrimento do colonizado”
(ALLEN, 2016, p. 209).
No mesmo sentido dessa autora, defende-se aqui esse caminho enquanto
saída mais propícia para um projeto de descolonização da Teoria Crítica, opondo-
se a posições que se identificam com formas de genealogia reivindicatória e
subversiva. Trata-se de um projeto que visa não uma suposta contraposição
externa à ciência e aos princípios normativos da modernidade – tampouco seu
endosso acrítico –, mas uma superação das premissas eurocêntricas presentes na
crítica imanente da sociedade moderna, já proposta desde a Escola de Frankfurt.
III. Conclusões
Esta comunicação foi formulada com três intuitos principais: o primeiro foi
apresentar e defender, ainda que introdutoriamente e sem longo desenvolvimento
argumentativo, a necessidade e plausibilidade da Teoria Crítica encarar de modo
mais sério as objeções pós-coloniais que se têm dirigido sobre ela; o segundo foi
introduzir a obra de Amy Allen como empreendimento mais consistente realizado
nesse sentido, ainda que se limite à discussão da fundamentação normativa e
pouco discuta as mediações sócio-analíticas dos diagnósticos de época; o terceiro
foi compreender criticamente as diversas concepções de “injustiça cognitiva” que
têm emergido desse debate, cujo objetivo costuma ser a denúncia da “divisão
internacional do conhecimento” e suas consequências teóricas e epistemológicas.
Ainda que nenhum dos propósitos tenha sido tratado com a robustez
argumentativa necessária, tendo em vista as limitações de tempo e espaço que
uma comunicação de Congresso impõe, é por ora satisfatório o levantamento dessa
ordem de indagações, acompanhado do apontamento de algumas teses que
podem fomentar seu desenvolvimento ulterior. Há um vasto leque de investigações
que podem ser suscitadas a partir da formulação de Amy Allen, assim como outras
apresentadas ao longo deste texto.
BIBLIOGRAFIA