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Tradução do Francês
IMPRIMATUR
+ Georgius,
Epps.
Fl. Camathias,
Libr. Cens.
Vai para dois mil anos que apareceu na Judéia um personagem verdadeiramente
incomparável. Com a sua doutrina, eclipsou a todos os sábios; com os seus prodígios, a
todos os taumaturgos; com as suas profecias, a todos os profetas; com o seu heroísmo, a
todos os santos; com o seu poder, a todos os potentados deste mundo.
O drama da sua vida lançou nas sombras as tragédias mais comovedoras. O seu
berço foi rodeado de maravilhas; depois desaparece o menino subitamente a todos os
olhares. Trinta anos mais tarde, sai dum pequeno burgo perdido entre montanhas e tal
brilho projeta, que, durante três anos, um povo inteiro não se ocupou mais que dele.
Quiseram proclamá-lo rei; mas, os maiorais da nação, invejosos da sua glória,
condenaram-no à morte e infligiram-lhe o ignominioso suplício da cruz. Três dias depois,
sai glorioso do sepulcro, e sobe aos Céus donde tinha vindo. Dai, apesar das oposições
mais formidáveis, fez do mundo inteiro o seu reino e curvou ao seu jugo os povos e os
reis.
Este personagem, a quem não dão pelo joelho nem todos os heróis juntos, cujos
nomes nos conservou a historia, é aquele a quem nós chamamos - Nosso Senhor Jesus
Cristo; e cuja vida eu, após tantos outros, empreendo contar.
Esta vida, entre todas memorável, no-la transmitiram em pormenor quatro homens
inspirados por Deus: os evangelistas S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. João. A Igreja
recebeu este livro de revelações divinas como um dom quase tão precioso como a
Eucaristia; pois por meio deste livro via ela reviver aos seus olhos aquele mesmo Deus,
que ela adorava oculto sob os véus sacramentais. Desse livro quis ter cada fiel um
exemplar para o trazer sobre o peito e o gravar no coração. Durante as perseguições,
prefeririam os cristãos antes mil vezes a morte do que entregar aos pagãos este livro
bendito. Quanto aos mártires, aprendiam no Evangelho a morrer como Cristo, depois de
terem, como Ele, vivido.
No século quarto, uma vez de posse da liberdade, deu-se a Igreja a estudar com
verdadeira paixão as ações e palavras de Jesus. Doutores Santos, como os Ambrósios, os
Agostinhos, os Jerônimos, os Crisóstomos, ilustraram as narrações evangélicas com os
seus admiráveis comentários. Na Idade-Média, a Vida do Salvador tornou-se, como
pedia o autor da Imitação, o estudo principal dos fieis. E ainda depois da satânica
Revolução que tentou aniquilar até os últimos vestígios da nossa Religião sacrossanta,
ficou sendo por muito tempo a Vida de Jesus Cristo o livro querido do povo. Com a vista
do espírito, ainda está vendo o autor destas páginas o volume amarelento e quase
desfeito, que se lia em família ao serão, e onde aprendeu a conhecer as virtudes e
doutrinas do Mestre.
Ai! que mudados estão os tempos! Hoje lê-se mais que no passado, é verdade;
ricos e pobres, patrões e operários, ignorantes e letrados devoram com sofreguidão os
jornais e os livros; mas já se não lê, ou quase nada, a Vida de Jesus Cristo. Já nem nas
escolas nem nas famílias se ocupam com. as divinas narrações. De cem pessoas cristãs, e
até piedosas, apenas algumas conhecem por miúdo a historia do Salvador. Quanto ao
povo, tomado a monte, esse apenas lhe conhece o nome, sabe que nasceu num presépio e
que morreu na cruz. O Homem-Deus está sendo na terra o grande desconhecido e este
fato lamentável basta para explicar a diminuição da fé, o arrefecimento dos corações, o
abandono das praticas religiosas, e esse espírito de impiedade que leva as nações para o
abismo.
E não é porque faltem as Vidas de Jesus. Para forçar esta sociedade moribunda a
reentrar em relações com o seu Salvador, apresentaram-lhe sob todas as formas, mas sem
resultado, a historia evangélica. Em vão se multiplicam de dia em dia as concordâncias,
as paráfrases; os comentários dos textos sagrados, as Vidas propriamente ditas e as
historias mais ou menos científicas. Afora algumas obras, escritas especialmente para os
sábios e letrados, nenhuma Vida do Salvador conseguiu triunfar contra a indiferença
geral.
Porque é então que há de ficar indiferente às ações e feitos do Salvador esse povo,
ainda crente, que Lhe rodeia o berço no Natal, e o sepulcro na Sexta-feira Santa? É
porque, tornando-se fútil com tanto ler futilidades, tem repugnância a toda a leitura seria.
E como não busca nos livros mais que pasto à curiosidade ou à necessidade que sente de
emoções, imagina que uma Vida de Jesus Cristo nem poderia interessá-lo nem apaixoná-
lo. E por conseqüência, rejeita-a como se fora, por força, fastidiosa. Servi-lhe o novo, o
imprevisto, o dramático; e lerá o vosso livro até à última letra, e apaixonadamente,
sobretudo se o herói revive à sua vista, se o vê agir, se o ouve falar, se penetra na sua
alma de modo que compreenda e compartilhe as suas impressões, alegrias, tristezas, e
desesperos. Mas não embaraceis a marcha da narração; ide direitos ao desenlace; doutro
modo o vosso leitor, impaciente, atirará com o livro para um canto. Tal é o homem
moderno: temperamento nervoso, sempre à busca de emoções, sempre com febre. E eis
porque o produto da literatura sensacional, as novelas e os romances se espalham pelo
mundo em milhões de exemplares, ao passo que as historias de Nosso Senhor Jesus
Cristo ficam esquecidas e são desdenhadas.
E este um dos fatos mais dolorosos para todo o cristão que ama a Jesus Cristo e as
almas; e assim por vezes me perguntei a mim mesmo se não seria possível, só com os
documentos evangélicos, escrever uma historia do Salvador, não só instrutiva e edificante
para os verdadeiros fieis, mas também assaz interessante para cativar o espírito e o
coração do público indiferente ou mais ou menos pervertido. Tanto para responder a esta
questão como para dar uma idéia do livro que ofereço aos leitores, quero consignar aqui
as reflexões que a este propósito se me sugeriram.
E, em primeiro lugar, se o homem moderno quer o extraordinário e as narrações
que picam a curiosidade, onde irá ele encontrar um conjunto de fatos mais maravilhosos
que os da Vida de Jesus? Estes fatos, quase todos ignorados da multidão, são de tal modo
extraordinários, que ultrapassam a imaginação do romancista mais inventivo; e de tal
modo comovedores, que por vezes não se podem ler os seus pormenores sem estremecer
de admiração ou de horror. E tanto mais forte é a impressão sentida quanto mais certo é
que não se trata aqui de ficções, de lendas, de tradições duvidosas, de revelações mais ou
menos autênticas, mas de fatos reais, abonados pelo próprio Deus.
Em segundo lugar, afim de darem mais encanto as suas narrativas, empregam os
escritores o que eles apelidam cor local. A descrição dos lugares, a paisagem representam
um grande papel nos romances. Ora o historiador de Jesus pode pintar também o país
onde o Salvador quis nascer, viver e morrer. E que terra, como a que chamamos Terra-
Santa, fascina a alma e a enternece? Pela vista do comovido leitor irão passando
sucessivamente Belém, Nazaré, Jerusalém; o Tabor e o Jordão; os vales e as montanhas
da Judéia; e formoso lago de Genesaré; as grutas, os caminhos solitários, e as ruas de
Sião, santificadas pelos suores, lágrimas e sangue de um Deus. Ainda hoje, após dois mil
anos, atrai cada um destes benditos nomes, milhares de peregrinos, jubilosos de se
ajoelharem nesses lugares que Jesus viu com seus divinos olhos e pisou com os sagrados
pés. Descrevendo-os, dobrará o historiador o interesse que se prende às suas narrações.
Em terceiro lugar, para que um livro seja vivo e sempre atraente não podem bastar
fatos isolados e episódios por mais comoventes que sejam. E preciso que os domine uma
idéia-mãe, e os encadeie e reduza todos à unidade duma ação principal, dum drama que
se desenrola desde a primeira cena até ao desenlace. E a este propósito ha quem se tenha
em demasia figurado a Vida de Jesus, tirada dos quatro Evangelistas, como um montão
confuso de fatos e discursos, incoerentes e desconexos. Incumbe ao historiador dissipar
este erro, pondo em relevo a causa única donde dependem todos os fatos evangélicos, a
qual vai dar, como desfecho, à tragédia do Calvário.
Esta causa é a revolta dos Judeus contra o Messias, contra o Salvador que
esperavam. Com efeito, Jesus, o verdadeiro Messias, o verdadeiro Salvador, apresenta-se
para fundar um reino, o reino espiritual das almas. Ora, os Judeus orgulhosos reclamam
não um rei espiritual, mas um rei temporal; não um salvador de almas, mas um libertador
da sua nação, um vencedor que lhes dê o império do mundo. Dai o antagonismo e lutas
sem fim. O objeto das pregações de Jesus era o Reino de Deus: o povo aplaude-o, mas
perseguem-no com furor os chefes do povo. Jesus confirma a sua doutrina com
milagres: os Judeus atribuem-lhe os milagres ao demônio. Ele prova a sua divindade: os
fariseus em vez de lhe responderem, ajuntam pedras para o apedrejarem. Ele, à face do
povo, desmascara-lhes o orgulho e a hipocrisia: o tribunal supremo decreta-lhe a morte.
Alguns dias depois, Jesus ressuscita a Lázaro, entra triunfante em Jerusalém em meio
dum povo entusiasta que o quer fazer rei. Então, sem saber o que fazem, os
Judeus obcecados conduzem-no ao trono que Ele tinha vindo procurar, isto é, à Cruz
sobre a qual se torna o Salvador do mundo e o Rei de todos os povos. Depois de três dias
ressuscita, sobe aos Céus, e de lá esmaga, uns após outros os revoltados de todos os
séculos, - Judeus, pagãos, e, apóstatas, - enquanto espera pelo dia em que ha de vir a
fazer justiça aos seus amigos e inimigos. Tal é em substancia a sublime epopéia, que o
Evangelho sempre supõe e à qual se prendem todos os incidentes da Vida de Jesus. Por
fim, depois de ter posto em relevo os diversos elementos de interesse que o assunto
oferece, falta escolher uma forma literária, que comunique a esta matéria calor,
movimento e vida.
Parece-me que para corresponder ao gosto do público, a forma deve ser, como a
dos Evangelhos, exclusivamente narrativa. Para escrever a Vida de Jesus precisa-se de
ciência; mas esta ciência, difundida em toda a narração, deve-se sempre dissimular. Sob
pretexto de descrever uma localidade, não deve o historiador ceder à tentação de fazer
parada dos seus conhecimentos geográficos ou arqueológicos; e ainda menos à de inundar
a narração com reflexões morais ou ascéticas. As reflexões apresentar-se-hão por si
mesmas e com isso não deixarão de encantar ainda mais o leitor. É preciso evitar toda a
controvérsia sobre as dificuldades que apresenta o Evangelho, fazendo-as desaparecer
com uma explicação encaixada com arte no contexto. Os escritores sagrados procedem
sempre por afirmação: ora, exige o assunto que se empregue o mesmo método, sob pena
de partir a narração a cada passo, amesquinhando-lhe a majestade. Acrescentamos
também que, seguindo o exemplo dos Evangelistas, é preciso saber conter tanto o próprio
estusiasmo como a indignação. Os escritores sagrados, que ninguém igualará nunca,
narram as cenas mais horríveis com uma calma que produz calafrios. Quanto ao estilo
propriamente dito, deve também o historiador de Jesus Cristo aproximá-lo o mais
possível do estilo evangélico, dessa simplicidade majestosa, única digna do personagem
misterioso, que é preciso fazer reviver: Qualquer frase pretensiosa diminuiria, velando-a,
a grande figura do Salvador, assim como qualquer adorno mundano rebaixaria o seu
caráter divino. Contudo à simplicidade da forma deve unir-se aquele tom de reserva e de
solenidade que forçosamente exclui a vulgaridade e a mesquinhez dos pormenores, como
indignos do grande Deus, cuja Vida se conta.
Tais são as reflexões que freqüentemente me vieram ao espírito ao estudar a
possibilidade de fazer ler a todos os cristãos, ainda ao povo derrancado com a leitura de
romances, a historia de Nosso Senhor Jesus Cristo. E agora não posso concluir este
prefacio sem confessar e, até certo ponto, justificar a temeridade da minha empresa. Há
mais de trinta anos, quando um miserável apostata atirou ao público com o ignóbil
romance conhecido com o título de Vida de Jesus, tentei escrever alguns opúsculos
bíblicos segundo os princípios que levo expostos. Mas logo compreendi que vai grande
distancia do ideal sonhado pela inteligência ao retrato desenhado sobre o papel.
Multiplicavam-se-me as dificuldades sob os bicos da pena. Nem a erudição se disfarçava
o bastante, nem era bastante simples o estilo. As cenas tornavam-se monótonas e os
traços de Jesus demasiado humanos. O bom gosto reprovava a introdução de tal ou qual
pormenor. Preciso era apagar esse esboço e pedir a Deus melhor inspiração. Contudo,
depois de muitos meses e de longos trabalhos, consegui publicar com o título de
Narrações Bíblicas, vinte e cinco opúsculos sobre o Velho e Novo Testamento, os quais
foram acolhidos com benevolência por eclesiásticos e leigos, e lidos com interesse por
letrados e iletrados, por crianças e adultos. Em alguns anos distribuíram-se dois milhões
de exemplares, isto é, oitenta mil exemplares da obra completa.
Esta feliz surpresa, e as numerosas aprovações episcopais com que foram
honrados esses singelos ensaios, decidiram-me por fim a empreender uma história
completa do Salvador, e esta história tão largamente meditada é a que hoje apresento aos
membros do clero, aos religiosos e religiosas, às pessoas de piedade, às famílias cristãs, e
até às pobres almas, às quais a nossa sociedade frívola e impia perverteu mais ou menos o
senso moral ou abalou a fé.
O sacerdote encontrará neste volume o texto completo dos quatro Evangelhos, a
concordância dos fatos, a solução de mil dificuldades, e tudo numa narração que se dirige
rapidamente ao termo. Pertence-lhe a ele tirar daqui as reflexões dogmáticas ou morais
que possam interessar o povo.
Os aspirantes ao sacerdócio, nos Seminários menores e maiores, facilmente se
prepararão com esta leitura para os estudos que hão de fazer sobre os Evangelhos. Os
religiosos e religiosas haurirão neste livro um conhecimento profundo do Salvador e com
isso também uma fonte inexaurível de meditações.
Para os homens do mundo será igualmente preciosa esta vida. A divindade de
Jesus Cristo aparecer-lhes-há com todo o seu esplendor. E diante dos fatos dissolver-se-
hão as dificuldades, como a neve aos raios do sol.
Enfim, a ambição do autor seria que esta obra se tornasse o livro das famílias
cristãs, e que, reunidos pais e filhos, se lesse cada dia, antes das orações da noite, um
capitulo da Vida de Jesus. Oh! então depressa voltaria a França a ser a nação
cristianíssima e a filha querida da Igreja 1
Ó Virgem Santíssima, Vós que haveis dado Jesus ao mundo, fazei-O também
brilhar com novo esplendor em meio das trevas que O ocultam aos nossos olhos. E se
este livro, que o vosso servo humildemente depõe a Vossos pés, é demasiado defeituoso
para O tornar conhecido e amado, inspirai Vós a algum cristão de gênio o pensamento de
se encarregar desta obra necessária e de legar enfim ao mundo do século vinte a
Verdadeira Vida de Jesus.
A. P. Dias
LIVRO PRIMEIRO
O Menino-Deus
CAPÍTULO PRIMEIRO
A Aparição
Perto de trinta anos tinham decorrido desde que o Idumeu Herodes tinha em suas
mãos ensangüentadas o cetro de Judá, que usurpara. Por muito tempo tinha esperado o
povo de DEUS que algum descendente dos seus príncipes o livraria do jugo do
estrangeiro; mas a fim de lhe tirar toda a possibilidade duma restauração nacional, não
receou o tirano derramar até à última gota o sangue dos Macabeus. Esforçou-se até por
levar os Judeus a esquecerem a religião de seus pais, introduzindo em Jerusalém os usos e
costumes da Roma pagã. E na terra Santa de Jeová viram-se levantar teatros impuros,
circos onde se degolavam os gladiadores, e templos até consagrados ao imperador
Augusto, única “divindade” respeitada por Herodes. Contudo, exceção feita da seita
dos herodianos, devotados à fortuna e às idéias do amo, o povo permanecia fiel a Deus.
Debalde, para o lisonjear, fazia o tirano reconstruir, com magnificência sem igual, o
templo de Jerusalém; os Judeus fieis choravam sobre os escândalos que desolavam a
cidade santa, evocavam, suspirando, as glorias do passado, amaldiçoavam em silencio o
impio estrangeiro, causa de tantos infortúnios, e suplicavam a Jeová que enviasse enfim o
libertador tantas vezes anunciado pelos Profetas. Demais, nas sinagogas explicavam os
doutores que o Messias não podia tardar a aparecer; porque das setenta semanas de anos
que segundo Daniel deviam preceder a sua vinda, tinham já decorrido sessenta e quatro.
E de Dan até Bersabé repetiam os verdadeiros Israelitas os antigos cânticos de seus pais:
“Ó céus, enviai-nos o vosso rocio, e produza enfim a terra o seu Salvador”.
Um acontecimento singular veio confirmar estes pressentimentos. A algumas
léguas de Jerusalém vivia naquele tempo um ancião, sacerdote de Jeová, por nome
Zacarias; pertencia à classe sacerdotal de Abia, uma das vinte e quatro que à vez
desempenhavam as funções sagradas. A sua mulher, que era como ele, da família de
Aarão, chamava-se Isabel. Justos diante de Deus, observavam ambos a lei com
escrupulosa fidelidade. E, igualmente irrepreensíveis diante dos homens, ia-lhes
decorrendo aprazível a vida no seio das montanhas de Judá, tão ricas de comoventes e
graciosas recordações. E contudo minava-lhes a alma uma profunda desconsolação.
Apesar de ardentes súplicas, o seu lar estava deserto. E, já adiantados demais em idade
para ainda esperarem que Deus lhes ouvisse os desejos, aceitavam, sem se poder
consolar,. essa prova que aos olhos dos filhos de Israel se tornara quase um opróbrio.
Cada ano, em tempos marcados, dirigia-se Zacarias para a cidade santa, a fim de
desempenhar no templo as funções do seu ministério. Ora, aos trinta e cinco anos do
reino de Herodes, no mês de setembro, estando Zacarias de serviço, os representantes das
vinte e quatro famílias sacerdotais tiraram à sorte, como de costume, o ofício que teria
cada um de desempenhar. E ao venerável sacerdote designou-lhe a sorte o ofício mais
honroso que consistia em queimar o incenso sobre o altar dos perfumes.
Uma tarde, ao pôr do sol, ecoava por toda a cidade a trombeta sagrada para chamar
ao templo os habitantes. Revestido dos ornamentos sacerdotais e acompanhado pelos
sacerdotes e levitas, dirigiu-se Zacarias para o santuário e avançou até ao altar dos
perfumes. Aí, um dos sacerdotes assistentes apresentou-lhe os carvões em brasa que ele
colocou num vaso d'oiro sobre o altar; em seguida, tomando dos perfumes quanto a mão
bem cheia podia levar, espalhou-os sobre o fogo. Neste momento solene, tendo-se
retirado sacerdotes e levitas, recuou Zacarias alguns passos, conforme o rito costumado,
e prostrou-se diante de Jeová, enquanto a nuvem do fumo odorífero subia para o céu 2 .
Nesse momento, sozinho aos pés do Eterno, lembrou- se o venerável sacerdote das
calamidades que pesavam sobre o seu povo, e fazendo-se interprete de todos os Judeus
fieis, recitou, cheio de comoção, as palavras do ritual sagrado: “O Deus de Israel, salvai o
vosso povo e dai-nos o Libertador prometido a nossos pais”. Lá fora cantavam os levitas
os salmos da tarde; e a multidão reunida no átrio fazia também subir para Deus o incenso
da sua oração. De repente levanta Zacarias a cabeça e vê, à direita do altar, um anjo todo
resplandecente de gloria. Havia já muito tempo não enviava Deus aos filhos de Judá os
seus celestes mensageiros; por isso, à vista da inesperada aparição, ficou o velho
sacerdote passado de terror. Mas o anjo sossegou-o-o: “Não receies nada, lhe disse,
venho-te anunciar que a tua oração foi ouvida”.
Zacarias escutava, mas sem nada compreender; então o anjo revelou-lhe nos
seguintes termos o objeto da sua missão: “A tua esposa Isabel te dará um filho a quem
porás o nome de João. Será para ti um filho de consolação, e o seu nascimento virá a ser
para muitos um motivo de alegria. Grande diante do Eterno, não deverá beber vinho nem
qualquer outra bebida fermentada; cheio do Espírito de Deus desde o seio da sua mãe,
converterá os filhos de Israel ao Senhor, seu Deus, restabelecerá a concórdia entre filhos e
pais, e, reduzindo os incrédulos à sabedoria dos justos, preparará ao Senhor um povo
perfeito. Animado do espírito e da força de Elias, será o precursor d'Aquele que está para
vir.”
Calou-se o anjo. Comovido até ao intimo da alma, não se resolvia o santo
sacerdote a crer aos seus ouvidos. Vai aparecer o Libertador e será o filho de Zacarias
quem lhe ha de preparar os caminhos. Afirma-o o anjo de Deus, e afirma-o empregando
as próprias palavras de que se servia o profeta Malaquias, cinco séculos atrás, para
anunciar o precursor do Messias. Mas como poderão realizar-se estas promessas? Uma
dúvida perpassou de súbito pela alma de Zacarias e não pode deixar de a manifestar ao
2 Ver, sobre estes ritos sagrados, Dehaut, L´Evangile expliqué, I. 156.
anjo. “Eu estou velho, disse ele, e a minha esposa também já vai no declinar da idade: por
que sinal reconhecerei eu que a vossa predição se deve cumprir?”
- “Sabe, replicou o anjo de Deus, que eu sou Gabriel, um dos sete Espíritos que
estamos diante do trono do Eterno. Jeová enviou-me a ti para te revelar estes segredos.
Já que não acreditaste com simplicidade na minha palavra, ficarás mudo, sem poder
articular palavra, até se cumprir a minha profecia.”
No mesmo instante desapareceu a visão, e Zacarias ficou só diante do altar.
Contudo, o povo estava espantado de que o Sacerdote tardasse tanto em sair do
santuário, onde não devia demorar-se mais que o tempo estritamente necessário para
prestar a Jeová as honras devidas a sua divina Majestade. Já a multidão se agitava com
sentimentos de inquietação, quando apareceu Zacarias à porta do templo. O seu
semblante e o seu olhar exprimiam a um tempo um misto de assombro e jubilo. Levantou
a mão para abençoar os assistentes prostrados diante de si, mas os seus lábios não
pronunciaram a formula do costume. A bênção do ancião desceu silenciosa sobre a
multidão, e ele retirou-se, esforçando-se com gestos por dar a entender a todos como, em
conseqüência duma visão que tivera, perdera o uso da palavra.
O prenuncio do anjo realizou-se inteiramente. Terminado o seu ministério, voltou
Zacarias para a sua aprazível mansão, e aconteceu conceber Isabel, conforme prometera o
enviado celeste. Dissimulando o excesso da sua alegria, permaneceu recolhida em casa
durante cinco meses. A sós com Deus, agradecia-lhe o ter-se dignado levantar o opróbrio
que sobre ela pesava. E quando chegou o momento natural, deu à luz do mundo um
filho, segundo o prenuncio do anjo. Foi isto ocasião duma grande alegria por aquelas
terras: parentes, amigos e vizinhos deram os parabéns à venturosa mãe, tão
particularmente favorecida com as misericórdias do Altíssimo.
Ao oitavo dia do nascimento devia circuncidar-se a criança. Acudiram à cerimônia
os parentes e convidados para, segundo as prescrições da lei, impor um nome ao recém-
nascido. De comum acordo resolveu a família que se chamasse Zacarias, como seu pai, a
fim de perpetuar a memoria do santo velho; mas Isabel instruída das vontades de Deus
opôs-se a isso formalmente. A todas, as instâncias dos parentes respondeu sem hesitação:
Não, João é que se ha de chamar.”
Surpreendidos e descontentes desta escolha que parecia infundada, representaram-
lhe eles que nenhum membro da família tinha tal nome, e como Isabel estivesse firme na
sua, decidiram-se a consultar o pai. O velho sacerdote, mudo sempre desde a visão do
templo, pediu as tabu1etas e com a ponta do estilete gravou sobre a cera estas quatro
palavras: “João é o seu nome.”
Esta resolução tão pronta como inesperada, lançou a todos os assistentes na
estupefação, quando de repente lhes atraiu a atenção outra cena bem diversamente
comovedora. Logo que Zacarias escreveu o nome do filho, apoderou-se dele o Espírito
de Deus, soltou-lhe a lingua presa havia nove meses, e ouviram os filhos de Israel ressoar
a seus ouvidos os acentos inspirados dum novo profeta. Com a mão levantada para o Céu
e o coração ardendo em fogo divino, o santo velho exclamou: “Bem dito seja o Senhor, o
Deus de Israel, que se dignou visitar o seu povo e operar a sua redenção.
“Vai suscitar um poderoso Libertador na casa de David, seu filho de predileção,
conforme a promessa renovada de século em século pelos seus profetas, de nos arrancar
das mãos de todos os nossos inimigos e de todos os que nos odeiam.
“Lembrou-se da aliança jurada, do juramento feito a Abraão, nosso pai, de nos
conceder esta graça: que livres de todo o temor e isentos de toda a escravidão marchemos
pelos caminhos da justiça e da santidade, todos os dias da nossa vida.”
Até aqui o sacerdote de Jeová, no estusiasmo do reconhecimento, não tinha
pensado mais do que no Salvador cuja vinda anunciava; mas de repente os seus olhos
param sobre o recém-nascido e um raio de luz divina lhe descobre a sua sublime missão.
Então, com voz tremula e comovida, profetiza nestes termos:
“E tu, menino, serás chamado o profeta do Altíssimo, porque tu caminharás à
frente do Senhor a preparar-lhe os caminhos.
“Tu anunciarás aos homens a ciência dos Santos e o perdão dos pecados, perdão
que Deus vai fazer brotar das entranhas da sua misericórdia.
“Estou já vendo o divino sol descer das alturas para alumiar aos que estão
assentados nas trevas e sombras da morte, e para guiar os nossos passos pelas veredas da
paz.”
Cessou o ancião de falar. Apoderou-se um santo temor das testemunhas desta
cena, e voltaram para suas casas meditando no que tinham visto e ouvido. Logo se
difundiu pelas terras vizinhas o rumor destas maravilhas, e os pastores daqueles montes
diziam-se uns aos outros: “Que pensais vós daquela criança, e quem virá ela a ser um
dia?”
Entretanto ao menino misterioso, guiava-o visivelmente a mão de Deus. Com o
crescer da idade iam-se-lhe desenvolvendo a olhos vistos os dons do céu. E logo que
pode prescindir dos cuidados maternos, desapareceu dentre os homens e internou-se pelas
solidões do deserto. Aí viveu oculto a todas as vistas, só de Deus conhecido, até ao dia
em que aprouve ao Espírito manifestá-lo aos filhos de Israel.
CAPÍTULO II
A Virgem-Mãe
Naquele tempo vivia em Nazaré, pequeno burgo da Galiléia, uma Virgem donzela
da tribo de Judá, parenta chegada de Isabel e Zacarias. Chamava-se Maria.
Tudo o que os homens sabiam dela, era que sob um exterior singelo e modesto
ocultava um nascimento ilustre. Por parte de seu pai Joaquim pertencia à casa real de
David, e pela de sua mãe Ana, à família sacerdotal de Aarão. Depois da queda da. antiga
dinastia, os seus antepassados, despojados da sua alta dignidade e fortuna, e perseguidos,
como pretendentes perigosos, pelos novos senhores da Judéia, tinham procurado na
obscuridade o repoiso. Desconhecidos ao sombrio Herodes, e ocultos num valezinho
solitário, Joaquim e Ana lá viviam em paz dos frutos dos seus rebanhos, bastante ricos,
apesar da sua decadência, para aliviar os indigentes e oferecer abundantes vítimas sobre o
altar de Jeová.
E contudo decorriam-lhes os dias na tristeza, porque se recusava o Céu a
abençoar-lhes com prole a sua união. Como a mãe de Samuel, cujo nome gracioso tinha,
suplicava Ana ao Senhor que lhe pusesse termo à esterilidade; Joaquim juntava as suas
preces as da desolada esposa, mas parecia que Deus se comprazia em exercitar-lhes a
paciência. E contudo, por causa da sua perfeita virtude, tinha-os Deus escolhido para
executar o mais admirável desígnio de quantos concebera. No momento em que os dois
esposos perdiam de todo a esperança, deu-lhes o Senhor uma filha que havia de ser
eternamente a sua gloria e a honra da nação.
Esta criatura bendita, colocara-a Deus em seus eternos decretos acima de toda a
criatura, acima dos reis e rainhas, que no decorrer dos séculos representariam o seu
divino poder; acima dos santos, nos quais resplandeceriam com maior brilho as suas
perfeições infinitas; acima até dos nove coros de espíritos gloriosos que lhe rodeiam o
trono. Eva no paraíso terrestre, parecia-lhe menos pura, Ester menos amável, Judite
menos forte e menos intrépida.
Ao criar esta Virgem fez um milagre, com que não favoreceu nenhum outro filho
de Adão. Posto que saída duma raça manchada desde o principio, preservou a ela do
pecado original. A torrente lodosa que vai rolando suas ondas por cima de todo o homem
que vem a este mundo, deteve-se no momento da sua Conceição; e pela primeira vez,
desde o naufrágio do gênero humano, descobriram os anjos sobre a nossa terra uma
criatura imaculada. E por isso num santo arroubamento exclamaram:
“Quem é esta mulher, formosa como o sol, radiante como o astro das noites?”
Ana e Joaquim receberam com gozo esta filha privilegiada de Deus, cujo glorioso
nascimento haviam de celebrar à porfia os anjos e os homens. Não conheciam os pais
toda a grandeza do tesouro confiado aos seus cuidados, mas bem cedo observaram que a
celeste menina em nada se parecia com nenhuma outra criança da terra. Antes de poder
articular palavra, já a razão presidia a todos os seus atos e até nos movimentos mais
instintivos nunca obedecia às tendências desordenadas que germinam em, todos os
corações, infeccionando-os. Maravilhados com os dons que Deus prodigalizara aquele
anjo da terra, Ana e Joaquim prometeram consagrar-lhe a infância ao serviço particular
do templo. E de fato, apenas terminava o seu terceiro ano de vida, levaram-na para a
cidade santa afim de a apresentar ao Senhor. A menina subiu gozosa os degraus do
templo, contentíssima de se encontrar na casa de Deus, cujo amor era o que só fazia
bater-lhe o coração. Ali nos aposentos vizinhos do santuário, no meio das suas piedosas
companheiras viu ela passar demasiado rápidos os belos dias da juventude. As suas
ocupações consistiam na meditação dos Livros santos, e em confeccionar os ornamentos
destinados ao culto divino e em cantar os louvores de Jeová. Por vezes com o rosto
voltado para o Santo dos Santos, tomava do seu avô David os cantos inspirados e com um
coração mais ardente que o do santo rei, repetia ela esta letra de amor: “Senhor que
amáveis são os vossos tabernáculos! Um dia passado em vosso templo vale mais do que
mil nas tendas dos pecadores.”
À hora dos sacrifícios, quando o sacerdote imolava a vítima sobre o altar dos
holocaustos, suplicava ela a Jeová que aceitasse pela salvação do povo aquele sangue de
expiação e que enviasse enfim o Messias prometido a seus pais. Era o seu único desejo
ver com os seus olhos e venerar a mulher bendita que o havia de dar ao mundo. Com
diferença das filhas de Israel, das quais cada uma aspirava à honra de vir a ser a mãe do
Libertador, Maria julgava-se indigna deste inefável privilegio. Um dia até, impelida pelo
Espírito de Deus, renunciou a ele por um voto solene. Esquecendo-se de que vivia num
corpo de carne, elevou-se até aos anjos do Céu, e prometeu ao Senhor de não ter outro
esposo mais que a Lhe. Quando chegaram os dias da adolescência, houve a donzela de
deixar o templo e voltar para a sua casa de Nazaré. O pai e a mãe haviam descido ao
sepulcro. Na idade de quatorze anos, encontrou-se a pobre órfã sozinha, sem proteção
nem arrimo. Propuseram-lhe os membros da sua parentela, entre os quais Isabel e
Zacarias, que se desposasse com um homem da sua família, conforme prescrevia a lei.
Na qualidade de herdeira única, devia tomar, como esposo, o parente mais
próximo afim de conservar o patrimônio dos seus antepassados. Entregando-se de todo à
direção do Espírito que a inspirava a seguir este conselho, consentiu, apesar do seu voto,
no matrimonio que lhe propunham. O esposo da Virgem chamava-se José. Sendo, como
Maria, da casa de David, descendia diretamente dos reis de Judá pelo ramo de Salomão.
Mas, posto que remontasse até Abraão por uma esplêndida serie de antepassados,
a nobreza do seu caráter sobrepujava ainda o lustre do nascimento. Justo e temente a
Deus, mas pobre e obscuro também, como Maria, exercia em Nazaré o humilde emprego
de carpinteiro e ganhava a vida com o suor do rosto. Avisado do voto que a esposa fizera,
entrou nos desígnios de Deus, e constituiu-se o guarda da sua virgindade.
Não esperava o Senhor mais que por esta angélica união para realizar o projeto
cuja execução vinha preparando havia quarenta séculos. Uma tarde, ajoelhada na sua
humilde morada, expandia a Virgem de Nazaré a sua alma diante de Deus com mais
fervor que nunca. Eis que de súbito a envolve uma luz celeste e a tira do seu
recolhimento. Volta a cabeça e observa um anjo em frente de si a alguns passos do lugar
em que estava. Era o grande mensageiro de Deus, o arcanjo São Gabriel, aquele mesmo
que ha quinhentos anos, revelara a Daniel os tempos messiânicos e acabava de predizer a
Zacarias o nascimento do Precursor. Inclinou-se profundamente diante da Virgem e disse-
lhe com a humildade dum vassalo diante da sua rainha: “Deus vos salve, ó cheia de
Graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre todas as mulheres.”
Maria reconheceu logo um espírito celeste, e por isso não se assustou com esta
visita; mas aqueles louvores que lhe não parecia deverem-se dirigir a uma pobre mortal,
causaram-lhe grande perturbação. Pela sua atitude humilde e pelo rubor das faces,
adivinhou o anjo o sentimento que a agitava: prosseguiu pois com doçura, chamando-a
desta vez pelo seu nome. “Maria, vós encontrastes graça diante de Deus. Eis o que Ele
me encarrega de vos anunciar: Vós concebereis e dareis à luz um filho, a quem dareis o
nome de Jesus. Será grande, e chamar-se-ha filho do Altíssimo. Dar-lhe-ha o Senhor o
trono de seu pai David, reinará na casa de Jacob, e o seu reino não terá fim.”
Não havia aqui possibilidade de engano: o Messias, havia quatro mil anos
esperado, ia aparecer, e este Messias libertador, verdadeiro Filho de Deus, seria ao
mesmo tempo filho de Maria. Esmagada sob o peso de semelhante dignidade,
permaneceu a Virgem por um momento assombrada; depois, refletindo no voto de
virgindade, que a todo o custo queria guardar, fez esta pergunta ao arcanjo: “Como será
isso possível, quando eu não conheço homem?”
“O Espírito-Santo descerá sobre vós, respondeu o celeste mensageiro, e a virtude
do Altíssimo vos protegerá com a sua sombra; por isso o Santo que de vós ha de nascer,
chamar-se-ha Filho de Deus. Sabei que Isabel, vossa prima, concebeu um filho na sua
velhice, e eis aí que ha já seis meses a que era estéril se tornou fecunda: porque a Deus
nada é impossível.”
Maria não precisava deste exemplo para crer que para a omnipotência divina os
prodígios são como brinquedos. Entendendo que por intervenção desse poder viria a ser
mãe sem deixar de ser virgem, aniquilou-se diante de Deus e exclamou: “Eis a escrava do
Senhor, cumpra-se em mim a tua palavra.”
Depois de ter obtido este perfeito consentimento, desapareceu o anjo; e o Filho do
Eterno, descendo das mansões celestiais, encarnou no seio virginal da mulher imaculada.
Nesse momento, saudaram os exércitos angélicos ao Rei dos reis e ao Senhor dos
senhores: ao Homem-Deus; como Homem, filho de David, filho de Abraão, filho de
Adão, formado do mais puro sangue da bem-aventurada Maria; como Deus, gerado desde
toda a eternidade, Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro.
E tal é o adorável mistério que arrebatou aos anjos e ao próprio Deus nessa noite
mil vezes bendita: o mistério do Verbo feito carne. A memoria desta noite relembra-a o
sino a todos os filhos dos homens, pela manhã, quando tudo desperta aos primeiros
fulgores do dia; ao meio-dia, quando o trabalhador interrompe algum tempo os seus
trabalhos; e à tardinha quando o sol ao pôr-se nos vem de novo trazer o descanso. Então,
quando essas alegres badaladas repetirem aos campos e às cidades, aos vales e aos
montes: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”, dobrar-se-ha todo o joelho, toda a
fronte se inclinará diante do Homem-Deus e de todos os peitos humanos irromperá esta
exclamação de amor em honra da Virgem-Mãe: “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é
convosco, bendita sois vós entre as mulheres.”
CAPÍTULO III
A visitação
3São Lucas diz vagamente (I,39) que a Virgem se dirigiu para uma cidade de Judá, in civitatem Juda. Julgamos com
muitos autores que se trata da cidade sacerdotal de Hebron; posto que outros, seguindo uma tradição da Idade-
Média, colocam a habitação de Zacarias na pequena aldeia de Ain Karin, a cerca de duas léguas de Jerusalém.
“Donde a mim tal ventura que se digne visitar-me a Mãe do meu Deus? Ó Maria, mal
ouvi tua voz, logo a criatura de que sou mãe, exultou de alegria em meu seio. Feliz de ti
que acreditaste na palavra de Deus, pois tudo o que Ele predisse se cumprirá.”
Até este momento, assombrada à vista de tantas maravilhas, conserva-se em
silêncio a Virgem de Nazaré, mas ao ouvir os louvores proféticos de Isabel, o seu
coração, como um vaso que trasborda, não pode conter os seus sentimentos. A sua alma
elevou-se até Deus, único Ser a quem se deve todo o louvor. Arrebatada em espírito
respondeu aos parabéns da prima com este hino sublime em honra do Eterno:
“A minha alma glorifica ao Senhor, e o meu espírito exulta de alegria em Deus
meu Salvador.
“Porque se dignou lançar um olhar sobre a sua pobre serva, e eis que doravante me
chamarão bem-aventurada todas as nações.
“Porque operou em mim coisas grandes Aquele que é poderoso e cujo nome é
santo.
“Aquele que de idade em idade extende a sua misericórdia sobre os que O temem;
e que ostentando o poder do seu braço, destruiu os soberbos e lhes confundiu os
pensamentos orgulhosos.
“Ele precipitou os poderosos do alto dos seus tronos para elevar os pequenos e
humildes; Ele saciou os famintos e despediu com as mãos vazias os opulentos deste
mundo.”
No seu êxtase, como que via a Virgem inspirada passar diante dos seus olhos os
faraós, os Holofernes, os Nabucodonosores, os Antíocos, todos esses o opressores de
Israel que desapareceram como sombras com um sopro de Jeová. E contemplava Maria
esse povozinho de Deus, sempre abatido, mas sempre levantado pela mão omnipotente do
seu Senhor. Logo sucedeu à visão do passado a visão do futuro. Parando com a sua vista
profética sobre a pátria escrava e sobre as nações escravizadas pelos espíritos do abismo,
lembrou-se que trazia no seio o Redentor de Israel e do mundo: “Jeová, exclamou ela,
lembrou-se das suas misericórdias: vai levantar a Israel, seu servo, conforme prometeu a
Abraão e à sua posteridade por todos os séculos.”
Assim cantou a Virgem de Nazaré ao anunciar à terra a vinda do divino Redentor.
Assim devem ter cantado os anjos quando pela vez primeira contemplavam a majestade
do Altíssimo. Assim cantaram Adão e Eva à sombra do Paraíso ao admirarem as
magnificências da terra e dos céus. Assim, tomando da Virgem o seu hino de amor, canta
na terra toda a alma remida, quando, ao declinar do dia, se lembra das grandezas e
misericórdias de Jesus, filho de Maria.
Três meses ficou a humilde Virgem com sua prima;.três meses decorridos
demasiado depressa em piedosas e suaves conversas. Despediu se então Maria dos seus
hospedes muito queridos. Isabel e Zacarias verteram lágrimas ao partir Aquela que
levava o Deus dos seus corações, e Maria chorava também, porque um certo
pressentimento a advertia de que após estes três meses, do céu iam começar para ela dias
de provação.
De fato, foi o seu regresso para Nazaré ocasião de angústias mortais. Desde o
primeiro encontro com a esposa, não pode José deixar de notar os sinais não equívocos da
sua futura maternidade. Ignorante do mistério da Encarnação perguntava-se a si próprio
que devia pensar, e que partido tomar. Apesar das aparências, recusava-se a crer fosse
Maria culpada. A Virgem, entre todas pura, não podia cair de súbito das alturas do céu,
num abismo de lodaçal; mas então, como explicar o seu estado?
Maria lia no rosto do esposo as cruéis perplexidades que lhe angustiavam a alma.
Sofria pelo ver sofrer; mas não obstante a sua fronte conservou toda a sua sobreangélica
serenidade. Nenhum sentimento de perturbação lhe alterou as feições. Como nenhuma
palavra humana podia acalmar as legítimas ansiedades do seu esposo, esperou em
silêncio aprouvesse a Deus por fim a esta provação.
Com o coração dilacerado, tomou por fim José a resolução que lhe pareceu mais
conforme à justiça. A escrupulosa submissão à lei não lhe permitia continuar a habitar
com Maria antes da explicação do mistério, e a sua grande caridade não o deixava
entregar ao juiz uma senhora que ele persistia em considerar como inocente; resolveu
pois deixá-la discretamente e sem ruído. Por muito tempo lutou ele contra si mesmo
antes de executar o seu desígnio; tanto era o que lhe custava deixar desamparada uma
órfã, uma parenta e uma esposa de quem ele era o único protetor. Mas enfim, sem deixar
entrever de nenhum modo o seu projeto, fez uma tarde os preparativos da partida, e
adormeceu depois de ter oferecido a Deus o seu sacrifício.
Ora, durante o sono, apareceu-lhe um anjo do céu e com uma palavra dissipou-lhe
todas as inquietações. “José, filho de David, disse-lhe o anjo, não temas receber por
esposa Maria; pois o fruto que em si traz é obra do Espírito Santo Dará à luz um Filho a
quem porás o nome de Jesus, porque Ele libertará dos pecados o seu povo.”
Com esta revelação do Céu, despertou José todo transfigurado. Com súbita
ilustração fizera-lhe o Espírito Santo compreender que em Maria se cumpria a profecia de
Isaías: “Uma Virgem conceberá e dará à luz um filho, que se chamará Emanuel, isto é,
Deus-conosco.”
Ao mesmo tempo que a seus olhos se desvendava o augusto segredo da
Encarnação, compreendia o santo patriarca a missão providencial em que Deus o investia
com respeito ao Menino e à Mãe. Jesus e Maria precisavam dum amparo e dum protetor
na terra: o papel de José será o de zelar os dois entes queridos e de segui-los por toda a
parte, como a sombra do Pai que está nos Céus.
Livre de suas torturas, apressou-se o santo a obedecer às ordens do Céu. Às
tribulações dos últimos dias sucederam-se a alegria e a paz. Os dois esposos
conversaram entre si, com franqueza e confiança da obra divina a que serviam de
instrumentos. De Maria soube José da visita do arcanjo Gabriel bem como dos prodígios
obrados no Hebron. Crescendo no amor à proporção que iam meditando nas bondades de
Deus para com eles, os dois santos personagens adoravam a Deus enclausurado no seio
materno e apressavam com seus votos o dia venturoso em que poderiam já tomá-lo nos
braços e estreitá-lo ao coração.
CAPÍTULO IV
A gruta de Belém
CAPÍTULO V
A Apresentação no templo
Aos oito dias do nascimento foi o Menino circuncidado na gruta de Belém. José
pronunciou as palavras do rito sagrado: “Louvado seja o nosso Deus que imprimiu
em a nossa carne a sua lei, e marcou os seus filhos como sinal da aliança, a fim de os
tornar participantes das bênçãos de Abraão, nosso pai” 9. Por este modo ficou sendo o
filho de Maria filho de Abraão, o filho da promessa, o homem misterioso que Jeová para
consolar o santo patriarca glorificava nos seguintes termos: “Dar-te-hei um filho, em
quem serão abençoadas todas as nações da terra.”
No dia da circuncisão impunham os pais um nome ao recém-nascido. O Menino
do presépio foi chamado Jesus, que significa Sa1vador; nome mil vezes bendito que o
anjo trouxera do Céu para significar a missão do Verbo encarnado sobre a terra; nome
doce para a boca, mais que um favo de mel, suave para os ouvidos como um canto
melodioso, e para o coração é um como antegosto do Paraíso 10 ; nome superior a todo o
nome, o qual no Céu, na terra e nos infernos não se pronuncia senão de joelhos 11.
Depois desta cerimônia, instalaram-se José e Maria numa humilde casa de Belém,
julgando que o Messias devia residir nesta cidade de David, designada pelos profetas para
seu berço, e aonde uma circunstância providencial o levara. Daí, aos quarenta dias do
nascimento de Jesus, foram a Jerusalém afim de cumprir outras prescrições legais.
Deus tinha dito a Moisés: “A mulher que der à luz um filho, abster-se-há de
aparecer no templo por quarenta dias. No quadragésimo dia, apresentará ao sacrificador
12 Levit. XII.
13 Exod. XIII.
14 Ageu, II, 8-10.
sejais! Cumpristes a vossa palavra; os meus olhos viram o Salvador; agora posso morrer,
em paz! Vi Aquele que Vós mandais a todos os povos, a luz das nações, a gloria de
Israel!”
Assim falou o homem de Deus, José e Maria estavam admirando este hino de
louvor em honra do divino Infante, quando de repente se assombreou a fronte do ancião,
como se dolorosos pensamentos lhe agitassem a alma. Abençoou os dois santos
personagens, e em seguida disse para a Mãe: “Este Menino veio para ruína e ressurreição
de muitos em Israel. Será o alvo da contradição entre os povos; por ocasião dele virão à
luz do dia os pensamentos encobertos no fundo dos corações. E a vós, ó Mãe, vos há de
trespassar a alma uma espada de dor!” Com uma palavra, anunciava o profeta a oposição
dos judeus ao reino do Messias e fazia pressentir o Gólgota. Compreendeu Maria o
martírio que a esperava, e não se turbou. Respondeu como outrora ao arcanjo: “Cumpra-
se na sua serva a vontade de Deus.”
Nesta altura sobreveio uma nova testemunha que o Espírito enviava ao templo
para reconhecer e glorificar ao divino Infante: era Ana, a profetiza, filha de Fanuel, da
tribo de Aser. Tendo enviuvado com sete anos de casada, esta venerável mulher, que
contava então oitenta e quatro anos, levava uma vida toda do céu. Passava os dias na casa
de Deus, macerava o corpo com jejuns contínuos, e dia e noite exalava a sua oração
diante do altar do Senhor. Como o velho Simeão, reconheceu Ana, ao ver o Menino, que
era ele o Messias prometido ao povo, e a alma irrompeu-lhe em ações de graças.
Transportada de alegria, deu testemunho de Jesus diante de todos os que esperavam a
redenção de Israel. Depois destas manifestações a um tempo gloriosas e sombrias,
aproximou-se Maria do átrio dos Judeus. Veio-lhe ao encontro um sacrificador, recebeu
as duas rolinhas, presente da pobre Mãe, e recitou sobre ela as orações do rito sagrado.
Introduziu-a então o sacerdote no átrio interior para a cerimônia da apresentação.
Juntamente com José, depôs o Menino nas mãos do ministro de Jeová: depois, pagos os
cinco ciclos exigidos em resgate, recebeu-o de novo nos braços. Nesse momento ao invés
das formalidades legais que o restituíam à liberdade, o Menino Deus, voluntariamente
escravo, consagrava-se de alma e coração à gloria do seu Pai e devotava-se, como vítima,
à salvação da humanidade. Maria e José, movidos pelo mesmo amor, ofereciam a Deus
aquele precioso tesouro cuja propriedade legalmente readquiriam.
Já cumpridas as prescrições da Lei, retomaram os santos esposos o caminho de
Belém.
CAPÍTULO VI
Os reis do Oriente
Enquanto Jesus saía de Jerusalém, por assim dizer, ignorado de todos, menos dum
ancião e duma pobre viuva, preparava Deus um acontecimento, que forçaria os doutores,
o Sinédrio e o próprio rei Herodes a ocuparem-se do Recém-nascido.
Para lá das fronteiras de Israel, debaixo do formoso céu do Oriente, viviam povos,
que esperavam também eles um Salvador. Persas, Árabes, Caldeus, todos nutriam a
mesma esperança. Quando os Hebreus exilados choravam nas ribeiras do Eufrates, os
sábios do país perguntavam-lhes pelos seus destinos, folheavam com eles os livros
proféticos e iniciavam-se deste modo nos segredos do futuro. Sabiam que a vinda do
Messias de Israel seria anunciada por um sinal celeste, porque um profeta dissera, falando
dele: “Eu o estou vendo, mas ele ainda não existe. Eu contemplo-o, posto que ainda vem
longe. Uma estrela brilhará sobre Jacó, um cetro se levantará sobre israel!” Habituados a
ler nos fenômenos celestes o presságio dos grandes acontecimentos, gravaram os sábios
na memória a lembrança deste vaticínio.
Certo dia com os olhos fixos no firmamento, seguiam três chefes de tribo, com
atenção, aquelas estrelas que eles conheciam por seus nomes, como o jardineiro conhece
as flores, que rocia todas as manhãs. De repente, ó prodígio! avistam um astro novo de
extraordinária grandeza e de brilho maravilhoso. Ao mesmo tempo uma voz interior dá-
lhes a sentir que essa estrela anuncia o nascimento do grande rei, esperado pelos Judeus.
Sobre isto uma força estranha, sobre-humana, impelia-os, como irresistivelmente, a irem
em busca dessa majestade divina. A todas as objeções respondia-lhes a voz interior, que a
brilhante estrela os guiaria em todos os caminhos que houvessem de percorrer.
Fiéis a este impulso do céu, os três magos (é assim que os chamavam) decidiram-
se a empreender uma viagem, cujo termo ignoravam.
Com boa comitiva de criados e levando ricos presentes, puseram-se a caminho
com os olhos atentos à estrela misteriosa. Por muito tempo foi a caravana seguindo os
passos de Abraão ao emigrar da Caldeia; por largo tempo continuaram as ágeis montadas
a levantar sob os pés a areia do deserto: a estrela caminhava sempre. Por fim chegaram às
margens do Jordão, e depois ao monte das Oliveiras, em frente de Jerusalém.
Ao contemplarem a grande cidade e o templo famoso que lhes estadeava aos
olhares a grandiosa mole das suas muralhas e torres, pararam os magos, cuidando ter à
vista a cidade do grande rei. Ao mesmo tempo desapareceu a estrela, donde concluíram,
que eram chegados ao termo da sua peregrinação. Apressaram-se portanto a descer a
cidade santa e fizeram aos moradores esta pergunta, que se lhes afigurava tão natural:
“Onde esta o rei dos Judeus recém-nascido?”
Com grande espanto seu, responderam-lhes, surpreendidos e estupefatos, aqueles,
a quem interpelavam, havia trinta e seis anos que Herodes tinha o cetro de rei dos Judeus,
e que dum novo príncipe nada sabiam. “Mas, replicaram os três viajantes, nós vimos no
Oriente a estrela do novo rei, e viemos a adora-lo.” Mais espantados ainda olhavam os
Judeus uns para os outros com ares interrogadores. Comentando as palavras singulares
daqueles estrangeiros, perguntavam-se, alvoroçados, se o rei anunciado pela misteriosa
estrela não seria acaso o Messias esperado por Israel.
Ate o velho Herodes, avisado das perguntas feitas pelos Magos, começou a tremer
no seu palácio. Um rei, ha pouco, nascido? Acaso lhe teria ficado esquecida ao usurpador
alguma vergôntea dos Macabeus? ou terá de fato aparecido esse Messias em quem os
Judeus fundavam as suas esperanças de restauração nacional? Devorado de inquietação,
reuniu bem depressa o tirano o supremo Conselho, príncipes dos sacerdotes e doutores da
Lei.
“Segundo os vossos profetas, disse-lhes ele, onde deve então nascer o Messias a
quem esperais?” - “Em Belém de Judá,” responderam eles à uma. E citaram em prova a
profecia de Miquéias.
Folgando com saber onde encontrar o seu odioso rival, se por acaso existia,
despediu Herodes aos conselheiros; mas, a fim de completar as suas observações, quis
por si mesmo interrogar os três viajantes sobre as importunas questões que lhe causavam
perturbação. Dissimulando a importância que dava ao incidente, procurou viessem
secretamente a palácio, inquiriu deles a significação da estrela, o momento preciso da sua
aparição, e todas as circunstâncias que podiam revelar-lhe a idade do Menino; depois,
fingindo concordar com as piedosas intenções dos Magos: “Ide a Belém, disse-lhes, é lá
que o encontrareis. Procurai-o bem, e em achando a sua morada, dizei-mo para que
também eu o vá adorar.”
Desde este momento, no coração de Herodes ficou decretado um novo assassínio;
mas, por medo de exasperar os Judeus, que contavam com o Messias para romper suas
cadeias, resolveu fazê-lo desaparecer sem alarme. Deste modo, poucos anos antes
mandara ele afogar o seu cunhado Aristóbulo, cobrindo-se depois com longos vestidos de
luto a fim de ocultar o crime aos olhos da nação.
Os pensamentos de Herodes não os podiam os Magos adivinhar. Cheios de
confiança nas suas palavras tomaram sem hesitar o caminho de Belém, coisa de que não
tardaram em felicitar-se; porquanto mal haviam saído de Jerusalém tornaram a avistar a
guia miraculosa. Como nos desertos do Oriente, lá ia diante deles a estrela dirigindo-os
para a cidade de David.
Avançavam os piedosos estrangeiros com um santo arroubamento, quando de
súbito parou a estrela. Imóvel lá em cima, dardejava os seus raios sobre um ponto fixo e
parecia dizer: Ali está quem vós procurais. Ora não tinham diante de si nem templo, nem
palácio, nem tenda real, mas uma choupana semelhante a todas as outras 15 Por fim se se
admitisse que os magos trataram com Herodes, acerca do novo rei dos Judeus, um mês antes da Apresentação,
seguir-se-ia que enganado por eles, havia o assassino diferido durante um mês, apesar da sua cólera e suspeitas, a
matança dos inocentes. Seguir-se-ia também que José e Maria, apesar do furor de Herodes, “iratus est valde”,
teriam levado o Menino a Jerusalém e ao templo, isto é, às mãos do tirano, em vez de o ocultarem a todos os
olhos. O capítulo que segue mostrará melhor ainda que a fugida para o Egito e a matança dos Inocentes se
15 Conforme a tradição popular popular, teriam os magos adorado ao Menino Jesus no estábulo de Belém, dez dias,
não mais, depois de nascido. Graves dificuldades levam-nos a crer com muitos intérpretes, que a visita dos magos
não ocorreu senão após a Apresentação e numa casa de Belém.
E em primeiro lugar, como conciliar a tradição com o texto de S. Mateus que nos mostra os magos
entrando, não num estábulo, mas numa casa, “et intrantes domum.. . adoraverunt eum?”
Depois compreende-se que a sagrada Família tenha passado, por necessidade, alguns dias no está-bulo de
Belém; mas não se vê bem como S. José a teria lá deixado semanas inteiras.
seguiram imediatamente à partida dos magos. .
Entraram contudo e acharam-se em presença duma
Senhora com o Menino nos braços, e dum homem que contemplava em silêncio as duas
celestes criaturas.
Apenas tinham posto os olhos nesta santa Família, penetrou na alma dos três
magos um sentimento todo divino. Parecia-lhes que a humilde casa brilhava com um
resplendor tão vivo a um tempo e tão suave, que se cuidaram transportados ao Céu. Ao
mesmo tempo a voz interior que os impelira a esta viagem, ensinou-lhes que sob as
pobres mantilhas que envolviam o Menino, estava oculto o Filho de Deus feito homem.
Com os olhos cheios de lágrimas, prostraram-se-lhe aos pés e adoraram-no. Como reis
das tribos do Oriente, declararam-se vassalos do grande Rei e renderam-lhe em
homenagem as próprias coroas. Em seguida, depois dos servos terem descarregado seus
ricos fardos que as montadas traziam, ofereceram ouro ao seu Rei, incenso ao seu Deus e
mirra ao Redentor, que vinha dar a vida pela salvação dos povos.
Assim se cumpriram da maneira mais inesperada as palavras do profeta: “Levanta-
te, Jerusalém: sobre ti brilhou a glória do Senhor. Eis que as nações caminham à tua luz e
os reis ao brilho do teu sol. Ver-te-hás como inundada de camelos e dromedários de
Madian e Efa. Virão de Sabá, trazendo ouro e incenso, e cantando louvores a Deus.” 16
Desde aquele dia, Jeová já não é somente Deus de Israel: conduz aos pés do seu Filho os
Judeus e os Gentios, os pastores de Belém e os reis do Oriente.
Embriagados com as divinas consolações, desejavam os estrangeiros prolongar a
sua estada junto ao divino Infante; mas, por aviso do Céu retiraram-se rapidamente de
Belém. Revelou-lhes Deus em sonhos os projetos homicidas de Herodes, e como tinham
prometido ao tirano informá-lo do que soubessem com respeito ao novo rei dos Judeus,
foi-lhes dada ordem de não voltarem a Jerusalém, mas seguirem outro caminho que os
levasse a suas terras. Dóceis à voz do Senhor, tomaram os magos, pelo meio dia, o
caminho da Arábia, transpuseram em algumas horas os confins da Judéia, e continuaram
a viagem, costeando a orla do deserto. Como se foram mensageiros de Deus, na sua
passagem, não deixavam de noticiar aos que iam encontrando o que tinham visto e
ouvido, de modo que, no Oriente como nas montanhas de Judá se espalhou esta boa nova:
o Messias esperado desde longos séculos nasceu em Belém.
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
Nazaré
Situada no centro da Galiléia, não contava Nazaré mais que três mil habitantes,
operários todos ou lavradores. Nesta humilde vila é que Jesus passou os dias da infância e
O Profeta do Jordão
Trinta anos tinham decorrido desde a aparição do anjo ao sacerdote Zacarias; trinta
anos de discórdias e revoluções, que tinham aniquilado o reino de Judá e custado muitas
lágrimas aos verdadeiros filhos de Israel.
Por morte de Herodes, herdou o cetro o seu filho Arquelau, mas pronto lho
arrancou das mãos o imperador Augusto, e reduziu a Judéia a província romana. O antigo
povo de Abraão, de David, de Salomão, dos Macabeus, ficou sendo escravo dos Gentios,
que, do alto da torre Antônia, dominaram a cidade e o templo. Conservaram os Judeus a
liberdade de seguir a sua religião, mas só o governador romano, representante de César,
exerceu daí em diante o direito de vida ou de morte. No seu tribunal é que o povo de
Deus tinha de comparecer; e aos seus exatores, e não aos de Jeová, devia pagar o
imposto.
Amargamente choraram os Judeus a perda da própria nacionalidade. Herodes e os
seus vis cortesãos, aos quais chamavam herodianos, haviam feito tudo o que podiam para
favorecer a dominação do estrangeiro, mas a massa do povo, que ficara sempre fiel à lei
de Moisés, não esperava senão uma ocasião para sacudir o jugo. Um certo Judas, natural
da Galiléia, pôs-se um dia à frente duma horda de insurretos e por pouco não sublevou
toda a nação. Os Romanos só conseguiram dominar a sedição, afogando-a no sangue dos
rebeldes.
Por aqueles últimos tempos, a cólera dos patriotas chegou à exasperação. Os
quatro primeiros governadores da Judéia, enquanto maltratassem os vencidos,
respeitavam-lhes ao menos a religião; mas o quinto, Pôncio Pilatos, ultimamente
investido no poder, manifestava a trouxe-mouxe a intenção bem deliberada de violar as
prescrições mais graves da Lei Mosaica. Certa manhã viu o povo flutuar no alto da torre
Antônia as bandeiras das legiões cobertas de emblemas idolátricos. Esta profanação
sacrílega da cidade santa ocasionou um levantamento geral. Milhares de homens,
mulheres e crianças perseguiram Pilatos até ao seu palácio de Cesaréia, assediaram-no
por cinco dias com os seus clamores, e declararam que antes morreriam todos do que
tornar a ver Jerusalém manchada com. as imagens dos falsos deuses. Pilatos afinal cedeu,
mas os Judeus, desesperados, compreenderam que estava perdida a sua nação, religião e
leis, se Deus não enviasse enfim o Libertador prometido a seus pais.
E por isso mais que nunca estudavam agora os doutores, com a cabeça debruçada
sobre os rolos sagrados, as palavras solenes dos profetas. Nas sinagogas afirmavam ao
povo que não podia tardar a aparecer o Messias. Jacó predisse que não sairia o cetro de
Judá antes da chegada do grande Rei, o Desejado das nações, a quem o Senhor deve
enviar 25. Ora, diziam os sábios, como o cetro de Judá se encontra atualmente entre as
mãos dos Romanos, ha de vir já o grande Rei para o recuperar e livrar a sua nação do
jugo dos tiranos.
E aos que perguntavam se era chegado o momento preciso da libertação, citavam
os rabinos a célebre profecia de Daniel: “Setenta semanas passarão sobre o povo e a
cidade santa antes de acabar o pecado, e de ser desfeita a iniqüidade, e de aparecer a
justiça eterna, e de ser ungido o Santo dos santos. Até Cristo-Rei decorrerão sessenta e
nove semanas, e no meio da septuagésima semana cessarão a oblação e o sacrifício. 26fato
Jesus apareceu no decurso da septuagésima semana.” Segundo os seus cálculos, ainda alguns anos
mais, e eis-nos no meio dessa septuagésima semana, e por conseguinte era de esperar que
mais dia menos dia aparecesse o Messias.
Ora, exatamente na data fixada pelo profeta Daniel, aos 15 anos do governo de
Tibério César 27, e sendo Pôncio Pilatos governador da Judéia, Herodes Antipas tetrarca
25 Gen. XLIX, 10.
26 Dan. Cap. IX, 24. Trata-se nesta profecia de setenta semanas do anos (490 anos) que deviam decorrer desde o
edito que autorizava a reconstrução do templo Salomônico até à morte do Messias. E de
CAPITULO II
Os peregrinos de Betabara
O rio Jordão rega em todo o comprimento a terra dada por Deus ao seu povo.
Saído das encostas do Anti-Líbano, atravessa o lago de Genesaré onde o braço de Deus
multiplicará as maravilhas. Daí cava o seu leito por um vale profundamente encaixado
entre duas cadeias de montanhas e prossegue o seu curso de vinte e cinco léguas, através
de mil sinuosidades caprichosas até ao lago desolado a que se deu o nome de Mar Morto.
Duas léguas antes desse mar, em frente de Jericó, encontrava-se o vau de Betabara, lugar
de passagem para os viajantes e mercadores, que de Galaad se dirigiam à cidade santa.
Era aí que João batizava. Às margens do rio, que em todas as outras partes são muito
empinadas, cabiam nesta num declive suave, e facilitavam assim à multidão dos
penitentes a imersão para o batismo. Pelas duas margens cresciam salgueiros, ciprestes, e
acácias, que formavam sobre as águas um como zimbório de folhagem. Cedo afluíram a
esse lugar abençoado do Céu caravanas numerosas, vindas da região oriental e ocidental
do Jordão.
Tornou-se bem depressa tão geral o movimento religioso, que os doutores e outros
personagens oficiais terminaram por associar-se aos peregrinos de Betabara.
Naturalmente, não era muita a simpatia que sentiam para um pregador que não saía das
suas escolas, e cuja palavra rude flagelava sem dó nem compaixão as virtudes hipócritas
e os vícios mascarados. Pertencia a maior parte deles à seita dos fariseus, que faziam
profissão de adstringir-se a todas as observâncias legais, às abluções, aos jejuns, às
tradições absurdas, cujo intolerável jugo os seus rabinos impunham ao povo. Cheios do
apreço de si mesmos e do desprezo dos outros, no exterior rígidos, mas viciosos lá no
íntimo, nunca haviam compreendido que a santidade reside no coração.
Com tais princípios, não podiam esses homens, que se consideravam perfeitos,
entender coisa alguma dos ensinamentos do profeta. João anunciava a vinda do Messias e
o próximo estabelecimento dum novo reino, que chamava Reino dos Céus; mas todo o
fariseu zeloso via no Messias um Rei terrestre, um guerreiro como David, que expulsaria
o estrangeiro, subjugaria as nações, e imporia a todos a Lei de Moisés. E como não
tinham idéia sequer dum reino espiritual das almas, perguntavam-se para que servia a
penitencia, a confissão dos pecados, e esse batismo que para aí pregava o anacoreta do
Jordão. Impunham freqüentes abluções para lavar o corpo, mas de nenhum modo se
criam obrigados a lavarem-se a alma. Nisto, aliás, estavam de acordo com os saduceus,
inimigos seus encarniçados. Estes muito pouco se importavam com a Lei de Moisés, e
menos ainda com as tradições farisaicas; se nem sequer acreditavam na imortalidade da
alma! Avarentos, ambiciosos, desregrados na vida, aliados com os Romanos, isto é, com
o partido que distribuía os favores, não deixavam eles também de ter suas razões para
encarar com maus olhos ao pregador de penitência.
Contudo aos fariseus e saduceus estava-lhes bem ter conta com a opinião geral.
Longe de hostilizar a um homem qualificado de profeta pela multidão, julgaram prudente
dissimular por um pouco o seu desprezo e juntar-se até às populações entusiastas,
reservando-se o desacreditarem secretamente ao pregador, com boa vontade de encontrar
algum pretexto para o acusar diante do Sinédrio.
Certo dia, no meio dos peregrinos vindos de Jerusalém, avistou João um grande
número desses doutores inchados com os seus méritos, fariseus hipócritas, saduceus
renegados. Depois de terem escutado as exortações do homem de Deus, meteram-se de
envolta com a turba comovida e penitente, e não coraram de pedir o batismo. Mas João
lia no fundo dos corações. Viu neles os dignos filhos desses Judeus endurecidos, que
matavam os profetas, e, com voz de trovão, atirou-lhes esta terrível apóstrofe: “Raça de
víboras, quem vos leva a acautelar-vos da cólera de Deus e dos castigos que ela vos
prepara ?” E, em vez de lhes dar o batismo, acrescentou: “Fazei frutos dignos de
penitência.”
À palavra “penitência” carregaram os fariseus as sobrancelhas. Acaso esse
pretendente a profeta os tomava agora por uns pecadores, a eles, os justos por excelência,
a eles, os rígidos guardadores da Lei e das tradições? E com que direito vinha lá esse
nômade do deserto a atirar com suas invectivas contra os descendentes dos patriarcas, e
os verdadeiros filhos de Abraão?
Mas em vez de baixar a cabeça diante desses orgulhosos, fustigou-lhes João a
desdenhosa altivez: “Em vão, disse-lhes, vos gloriais lá no vosso interior e ides
alardeando aos quatro ventos de filhos de Abraão; porque vos declaro eu que poder tem
Deus para destas pedras fazer filhos de Abraão. O machado já está posto à raiz da árvore:
toda a árvore que não der bons frutos, será cortada e atirada ao fogo.”
Era isto, com um só corte, anunciar a reprovação dos Judeus impenitentes, e a
admissão ao Reino de Deus de todos aqueles, Judeus ou gentios, que, embora fossem
antes mais duros que as fragas do rio, deixassem agora, dóceis à graça, penetrar no seu
coração a fé de Abraão e o arrependimento dos seus pecados.
Este trovão devia assombrar esses homens amalgamados de mentira e hipocrisia;
mas, em vez de entrarem em si mesmos, indignaram-se com a humilhação que acabavam
de sofrer diante do público. Não só se afastaram sem receber o batismo, mas ficaram
desde esse dia inimigos figadais do Batista. Os verdadeiros Israelitas, ao contrário,
vivamente impressionados com as ameaças de João, viam já o machado vigoroso
golpeando a árvore de Judá, e lembravam-se das calamidades que desabaram sobre a
cidade santa todas as vezes que os seus mentores desprezaram os anúncios dos profetas.
E de todas as bocas partiu este brado, verdadeira expressão do arrependimento: “Que
devemos então fazer, para desarmar a cólera de Deus ?”
Para com todos teve o Precursor palavras de indulgência; mas lembrou-se que
tinha por missão afastar os obstáculos ao Reino de Deus nos corações. E como o apego
aos bens temporais dominava ao Judeu de tal maneira que até dos próprios compatriotas
necessitados se esquecia, deu João à pergunta que lhe fizeram a mais oportuna resposta,
dizendo-lhes: “Se tiverdes duas túnicas, dai uma a quem a não tiver; se tiverdes pão, parti
dele com quem precisar.”
Havia então em Israel uma classe de homens, os publicanos, a quem toda a gente
execrava. Detestados por toda a parte em razão das suas funções, eram-no ainda mais
esses arrecadadores dos impostos entre os Judeus, desde que a nação começou a pagar
tributo aos Romanos. Os patriotas esturrados sustentavam que nenhum Israelita podia,
sem pecado, pagar aquele tributo de escravidão: muito mais então reprovavam aqueles
seus irmãos que se aviltavam a ponto de se fazerem os serventuários do estrangeiro. A
estes indignos tratavam-nos como pagãos, expulsavam-nos das sinagogas, e excluíam-nos
das funções publicas. Ora de tal modo removia a pregação do Batista as consciências, que
os próprios publicanos vieram deitar-se-lhe aos pés, pedindo-lhe o batismo. Recebeu-os o
profeta com bondade; e como eles na sua simplicidade lhe diziam: “Que quereis que
façamos?”, respondeu-lhes: “Sede justos e não exijais além do que está taxado.” E
despediu-os em paz, depois de os ter mergulhado na água do rio.
Vieram também por sua vez a pedir perdão dos seus pecados os soldados que
formavam a guarda do templo. Habituados à licenciosidade, às sedições, às rixas
sangüinárias e às denuncias caluniosas, suplicaram-lhe, humildes e arrependidos, que lhes
prescrevesse o que deviam fazer para se purificar de tantos crimes. “Deveis, respondeu-
lhes com simplicidade o homem de Deus, deveis acabar com essas violências, não acusar
a ninguém injustamente, e contentar-vos com, o vosso soldo.”Como os visse dispostos à
emenda, administrou-lhes o batismo.
E todos em Israel: pequenos e grandes, pobres e ricos, falavam do profeta que
Deus enviava ao seu povo, a fim de o preparar, pela remissão dos pecados, para entrar no
seu reino. Cumpria-se assim a profecia do anjo ao sacerdote Zacarias: “O teu filho será
grande diante do Senhor; caminhará adiante d'Ele com o espírito e força de Elias, e
converterá os filhos de Israel a Jeová, seu Deus.”
CAPÍTULO III
Embaixada do Sinédrio
Tal ascendente exercia João Batista sobre os seus numerosos discípulos, que por
pouco não ia a sua admiração comprometendo a missão do precursor. A sua vida angélica,
as suas palavras sublimes, e o batismo que administrava para a remissão dos pecados, tão
alta idéia deram da sua pessoa, que o povo acabou por se perguntar, se não seria talvez
este grande profeta o próprio Libertador, cuja vinda ele anunciava para perto. Acaso
poderia o Messias viver mais santamente, pregar com mais eloqüência, e exercer sobre a
nação mais império que este homem de Deus?
Tão rapidamente se propalou este erro que João pensou dever aproveitá-lo para dar
um testemunho mais direto e retumbante à incomparável majestade do Messias esperado.
Um dia em que a multidão o aclamava, bradou-lhe João: “Aquele que há de vir depois de
mim, avantaja-se-me tanto em grandeza e poder, que eu nem sou digno de lhe desatar as
ligas das sandálias.”
Quanto ao seu batismo e valor dele comparou-o João nestes termos com o que
Jesus Cristo havia de dar: “Eu batizo-vos com água, mas Ele há-de vos batizar
com água e com fogo.” E explicou-se, dizendo que o batismo da água não passava duma
semelhança da purificação das almas, ao passo que o batismo de Cristo conferiria o
Espírito-Santo e abrasaria os corações num fogo divino.
Enfim, para mais prender os discípulos ao Messias e inspirar-lhes ao mesmo
tempo temor de o ofenderem, mostrou-lhes nele ao soberano Senhor que vem a este
mundo, decidido a tratar aos homens como o ceifeiro trata as espigas enfeixadas no seu
campo. “Ei-Lo, brada o Batista, que tem a joeira na mão, pronto a limpar a sua eira e a
recolher o bom grão nos seus celeiros. A palha, essa lançá-la-há ao fogo que jamais se há
de extinguir.”
Deste modo conseguiu João desenganar muitos dos seus discípulos, que se deram
por satisfeitos com este testemunho. Esses esperavam com santa impaciência a vinda
desse Messias, a quem o profeta se julgava indigno de servir de escravo. Suspiravam por
esse batismo de fogo, que lhes havia de transformar as almas, esperando com isto serem
admitidos no Reino de Deus, como o bom grão nos celeiros do lavrador. Outros, ao
contrário, obstinaram-se no seu erro, publicaram por toda a parte que o Messias esperado
não era outro mais que João Batista, e deram assim aos inimigos do profeta ocasião de o
denunciarem ao Sinédrio.
Não lhe perdoavam os fariseus o ter-lhes ele em público descoberto a hipocrisia do
seu procedimento. O nome de víboras com que lhes atirara, zumbia-lhes sempre nos
ouvidos. Ouvindo dizer que seus discípulos o tomavam pelo Messias, dirigiram-se ao
supremo Conselho, juiz supremo em questões religiosas, e acusaram o profeta do Jordão
de pregar sem ser mandado, de inventar ritos novos, e de fanatizar o povo de tal modo
que perante muitos se dava como sendo ele o Messias, libertador de Israel.
Formulada nestes termos, a acusação parecia grave. Tratava-se duma revolução
religiosa que abalava toda a nação. Tinha-a provocado João-Batista só com anunciar a
vinda próxima do Messias: que sucederia, se ele mesmo se declarasse o Messias
libertador? Podia temer-se um levantamento popular, e o profeta, preocupado com o
Reino dos Céus, não parecia muito disposto a tomar as armas para levantar o reino de
Israel. E a insurreição não daria mais resultado que impelir os Romanos a alguma nova
carnificina dos patriotas. Resolveu-se pois o Conselho a forçar o Batista a que revelasse
as suas intenções; e como parecia pouco prudente, vistas as disposições do povo, trazê-lo
a Jerusalém perante os juízes, decidiu-se que fosse ao Jordão uma deputação, composta
de sacerdotes e levitas para interrogá-lo sobre a sua pessoa e missão que se atribuía a si
mesmo, e sobre esse batismo, de que tanto caso faziam os seus adeptos. Segundo as
repostas que desse a estas perguntas, tomaria o Conselho as cautelas necessárias para
prover aos perigos da situação.
Naturalmente foram escolhidos os embaixadores dentre os representantes mais
acreditados da seita farisaica, que formava então grande maioria do Sinédrio. Ia pois João
passar por um interrogatório dirigido pelos seus mortais inimigos e calculado de antemão
para o perder. Se se tinha pelo Messias, intimá-lo-iam em nome das Escrituras a que
levantasse o trono de David; se recusava esse título, perguntar-lhe-iam quem o autorizava
a remexer toda a Judéia como andava fazendo havia seis meses. De qualquer modo,
cairia nas mãos do Sinédrio.
Não contavam os Judeus com o Espírito de verdade que animava a João-Batista.
Mal o haviam interrogado sobre a sua personalidade, perguntando-lhe formalmente, se
era ele o Cristo, protestou contra tal suposição e respondeu ingenuamente, como pouco
antes à multidão: “Não, eu não sou o Cristo.” Esta confissão humilde e desinteressada
desconcertou aos inquisidores; porque só com isto desaparecia o principal capítulo da
acusação; mas refletiram contudo que, sem usurpar o nome de Cristo, houvera podido
João tomar o dalgum personagem divino para justificar o seu papel de profeta, e
continuaram a interrogá-lo.
Por essa época, grande número de Israelitas esperavam a volta do profeta Elias, o
qual, segundo os doutores, devia reaparecer em Judá a fim de preparar os seus
compatriotas para a vinda do Messias. Interpretando da primeira vinda do Salvador as
palavras da Escritura; que se aplicam à segunda 29, concluíam os rabinos que, estando
próximo o Messias, devia já Elias estar redivivo sob os exteriores dalgum personagem
misterioso. Por isso pensavam muitos reconhecê-lo nesse eremita do deserto, nesse
pregador de palavra ardente que, à semelhança do Tesbita, reconduzia Israel à fé
dos seus pais. Suspeitando que talvez professasse João nesta matéria a mesma crença,
fizeram-lhe os deputados esta pergunta: “Se não sois o Cristo, sereis porventura Elias ?”
Bem pudera João responder afirmativamente; por que, segundo a palavra do anjo a
Zacarias 30, cheio da força e virtude de Elias, desempenhava, como ele, as funções de
Precursor de Cristo; mas do coração aos lábios não lhe passou mais que a verdade pura e
simples: “Não, disse, não sou Elias. - Mas ao menos, replicaram os enviados, não sois vós
algum outro profeta, por exemplo, Jeremias? - Não, respondeu o Batista, não sou
nenhum dos antigos profetas.”
29 Eis essas palavras: “Eu vos enviarei o Profeta Elias, antes que chegue o dia terrível do Senhor.” Malaq., IV, 5, 6.
30 “Animado do espírito e da virtude de Elias, irá adiante d´Aquele que há de vir.” Luc., I, 17.
Desta vez, cuidaram os fariseus havê-lo colhido na rede. Desde há quatrocentos
anos que se não via um profeta em Israel. Se João reivindicava pessoalmente o dom de
profecia, intimá-lo-iam a que provasse a sua missão com sinais celestes. Exclamaram
pois com ar de triunfo: Se não sois o Cristo, nem Elias, nem algum dos antigos profetas,
dizei-nos quem sois, a fim de levarmos uma resposta aos que nos enviaram? que dizeis
de vós mesmo?”
Respondeu João: “Eu sou a voz de que falou o profeta Isaías, a voz do que brada
no deserto: Preparai os caminhos do Senhor”31 Querem os embaixadores saber o que ele
é: ele não é mais que uma voz, mas esta voz executa missão divina, missão anunciada ao
mundo pelo profeta Isaías. Esta voz, tornou-a Deus aliás tão forte que abalou um povo
inteiro, e tão poderosa que penetrou corações mais duros que o aço. Quem logo, após um
tal prodígio, ousará negar que João-Batista seja o arauto do Cristo; anunciado por Isaías,
ou tentará sufocar uma voz cujos divinos acentos predizia o profeta, oitocentos anos
antes!
Esmagados pela evidência, bem se acautelaram os embaixadores de contestar a
missão divina do precursor, mas recaíram-lhe sobre o batismo: “Com que direito batizais,
disseram-lhe, se não sois o Cristo, nem Elias, nem profeta?” Respondeu João, como já o
fizera ao povo, que o seu batismo d'água, puro símbolo da purificação da alma, não era
mais que uma preparação para o batismo que o Cristo havia de dar, o qual teria, como o
fogo, a virtude de purificar as almas e abrasá-las num amor divino. E então, todo no
pensamento desse Cristo de quem acabava de falar, e de quem, se pareciam esquecer os
seus interlocutores para não pensar mais que no seu precursor, exclamou: “No meio de
vós anda já aquele Cristo que eu vos anuncio, e vós não lhe conheceis as grandezas.
Ainda que há de vir depois de mim, sabei que existia antes de mim: eu nem sequer sou
digno de lhe desatar as ligas das sandálias.”
Esta declaração solene nem ao menos despertou a curiosidade dos embaixadores.
Sem se importarem do augusto personagem, de quem o profeta em três palavras lhes
fazia um tão magnifico retrato, deixaram o vale do Jordão e voltaram para Jerusalém a
informar o supremo Conselho dos resultados da sua comissão. Apesar dos ressentimentos
contra o santo Precursor, viram-se obrigados a confessar que as respostas por ele dadas
desmentiam as acusações contra ele feitas. O sinédrio viu-se por conseguinte desta feita
completamente desarmado.
Quanto a João, a embaixada do supremo só contribuiu para acrescentar-lhe o
prestígio aos olhos do povo, e tornar mais retumbantes os seus depoimentos em honra do
Messias. E um só desejo consumia agora todas as almas: era o de verem enfim aquele
Messias, a quem todos chamavam o libertador de Israel, mas de cuja origem divina, e
sublimes destinos ninguém suspeitava.
CAPÍTULO IV
Seis meses havia que o santo precursor preparava os filhos de Israel para a vinda
do Messias. Ora, este misterioso personagem, cuja majestade divina João-Batista pintava
com tanta eloqüência, não o conhecia ele senão por comunicações do Espírito-Santo: os
seus olhos nunca o tinham visto. Tendo vivido no deserto desde a sua infância, ignorava
os maravilhosos acontecimentos de Belém e Nazaré. Por isso apressava com os ardentes
anelos de seu coração o ditoso momento em que lhe fosse dado contemplar o rosto do
Salvador, ouvir a sua voz e beijar-lhe os sagrados pés. Iam-lhe ser despachados os
desejos; pois, conforme a ordem de seu Pai, dispunha-se Jesus a deixar o remanso de
Nazaré para se manifestar ao mundo.
Poucos dias após a embaixada do Sinédrio, preparava João numerosos penitentes
para receberem o batismo, quando o seu olhar se deteve num estrangeiro cuja vista o fez
involuntariamente exultar. Do mesmo modo que tinha exultado no seio materno em
presença de Jesus, assim agora uma impressão toda divina que sentiu fez-lhe
compreender que se encontrava em face do mesmo Jesus. Um ímpeto instintivo o levou a
dirigir-se para ele; mas, no momento em que ia lançar-se-lhe aos pés, Jesus preveniu-o e
como se fora um pecador profundamente humilhado, pediu-lhe o batismo.
“Senhor, exclamou João, com voz trêmula de comovida, eu é que vos devo pedir o
batismo, e vós quereis recebê-lo das minhas mãos! - Deixa-me que assim o faça,
respondeu-lhe o Salvador; pois convém que deste modo cumpramos toda a justiça.”
Exigia a justiça que Jesus, tendo tomado sobre os seus ombros as iniqüidades de
todo o mundo, fosse tratado como um pecador, um daqueles Judeus que baixavam ao rio,
batendo no peito, para obter a remissão dos seus pecados. Compreendeu João e não foi
por diante com a resistência à vontade do Mestre.
E viram-no então ao profeta mergulhar nas águas do Jordão Aquele que vinha tirar
os pecados do mundo; mas não perceberam os olhos dos homens o mistério que se
realizava naquele momento solene. Ao contato de Jesus adquiriu a água a virtude de
regenerar as almas, de as purificar de toda a mancha, e de lhes conferir uma vida nova, a
vida dos filhos de Deus. O batismo de fogo, figurado pelo batismo de João, acabava de
ser instituído.
Ao sair do rio, havia-se Jesus posto em oração a seu Pai, quando de súbito se
abriram os Céus diante do novo Adão, os Céus que se conservavam fechados desde a
culpa do primeiro homem; uma grande claridade iluminou a nuvem, o Espírito-Santo
desceu sob a forma duma pomba e pousou sobre o recém-batizado. Ao mesmo tempo
uma voz do alto, a voz do Pai celestial, fez ouvir estas memoráveis palavras: “Este é o
meu Filho muito amado, em quem tenho todas as minhas complacências.”
O povo não ouviu mais que um ruído semelhante ao surdo ribombo do trovão, e
não penetrou no sentido das grandes coisas que se operavam à sua vista; mas o santo
precursor compreendeu que, apresentando- se nesta cena, as três Pessoas da augustíssima
Trindade acabavam de dar ao Messias a investidura nas suas sublimes funções. D'ora
avante podia dar de Jesus um novo testemunho e dizer aos discípulos: “Vi o Cristo, o
ungido do Senhor, e este Cristo é o Filho muito amado do Pai que está nos Céus.”
Na própria tarde deste grande dia, sob o impulso do Espírito divino, deixou Jesus o
Jordão para se retirar ao, deserto e preparar-se aí com a oração e penitência, para a sua
missão salvadora. A duas léguas do rio, no meio do deserto de Jericó, ergue-se um monte
rochoso, e despido de toda a vegetação. Levanta a sua fronte lúgubre, por cima das
colunas que o rodeiam, a duzentos pés de altitude. Não se pode lá subir senão serpeando
por veredas estreitas à beira de espantosos abismos. Nos seus flancos, a meia encosta,
encontram-se numerosas grutas, cujas paredes são formadas por enormes calhaus. A uma
destas grutas é que o Espírito de Deus conduziu ao Salvador.
Durante quarenta dias e quarenta noites ficou Jesus naquela caverna sem tomar
nenhum alimento. Vivia longe dos homens, com os animais da selva: raposas, chacais, e
leopardos; únicos seres que animam aquela natureza silenciosa e morta. Sobranceiro aos
rumores do mundo, orava por essa humanidade, de quem se havia constituído Redentor
quando veio de repente perturbar-lhe o retiro um inimigo que desde muito o espreitava.
Era o próprio satanás, príncipe dos decaídos. Desde a catástrofe do paraíso terreal,
reinava ele como senhor despótico sobre a humanidade aviltada e decaída; mas tremia
receoso de perder o império, sempre que se lembrava do fatal vaticínio de Jeová: “A
mulher e o seu Filho te esmagarão a cabeça.” Irrequieto e furibundo,
não cessava o demônio de espiar os filhos dos homens, afim de reconhecer aquele filho
de Adão, que devia salvar a sua raça, e perdê-lo a ele, como ele tinha perdido
a Adão. Ao ver o Menino de Belém, os milagres de seu berço, a sua sabedoria precoce, e
as suas virtudes sobre-humanas, conjecturou que aquele Menino bem podia ser o Messias
prometido. As cenas do Jordão quase lhe mudaram as suspeitas em certeza, e agora que,
no batismo de Jesus, uma voz celeste o havia proclamado Filho de Deus, resolveu satanás
submeter aquele personagem completamente extraordinário a uma prova decisiva.
Não sabia que acometendo a Jesus, cumpria com isso os planos de Deus. Era
preciso que o Salvador da humanidade se medisse com o destruidor dela, para que Deus
tirasse a sua desforra, e o seu adversário pagasse com uma vergonhosa derrota a vitória
do Éden. Demais, devia o novo Adão mostrar à sua posteridade que doravante lhe
estavam franqueadas as portas do Céu, mas que ninguém entraria por ela sem ter
combatido como valente.
Satanás insinuou-se na gruta do santo solitário, como se tinha deslizado
tortuosamente para junto de Eva a coberto das sombras do paraíso. Encontrou-o
extenuado pelo jejum dos quarenta dias e vivamente estimulado pela fome. Fingindo
compadecer-se do seu padecimento, espantou-se de que ao Messias, pois este nome lhe
davam, pudessem faltar mantimentos: “Se és o Filho de Deus, disse-lhe ele, manda a
estas pedras que se troquem em pães.” E mostrava a Jesus as pedras reboludas em forma
de pão, que juncavam o solo, como outrora mostrava a Eva o fruto proibido. Dizia lá para
consigo, que, se Jesus fazia um milagre para matara fome, seria preciso concluir que não
salvaria a raça decaída, porque um capitão vulnerável pelo lado dos sentidos nunca teria
autoridade para arrancar os voluptuosos aos arrebatamentos da guloseima e luxúria.
Mas o divino Mestre, com uma só palavra desarmou os cálculos do seu inimigo.
“Nem só de pão vive o homem, disse ele ao demônio mas de toda a palavra que sai da
boca de Deus”, isto é, dos meios providenciais que uma palavra de Deus pode fazer
nascer, à falta de pão, para sustentar ao homem. Aos Israelitas no deserto faltava-lhes o
pão; Jeová deu-lhes durante quarenta anos o maná do céu para seu sustento. Não fará
portanto o Salvador um milagre para satisfazer a fome: esperará da bondade de Deus os
alimentos de que precisa.
Esta resposta não satisfazia à curiosidade de satanás. O mais que pode inferir, foi
que o seu antagonista, fosse ou não fosse o Messias, parecia inacessível a toda a tentação
dos sentidos, e que eram precisas, para o vencer, armas doutra têmpera. O orgulho de
espírito, pensou ele, perderá o solitário, como me perdeu a mim, e num abrir e fechar de
olhos transportou a Jesus para cima do pináculo do templo, sobranceiro a um vale tão
profundo que se não podia mergulhar nele a vista sem sentir vertigens: “Se és o Filho de
Deus, disse-lhe o espírito maligno, precipita-te nesse vale, porque está escrito: “Deus
enviará os seus anjos para que sustentem o Messias em suas mãos, a fim de que os seus
pés não tropecem nalguma pedra.” - Também está escrito, respondeu Jesus: “Não tentarás
ao Senhor, teu Deus”, pedindo-lhe que te salve a vida por milagre, quando
voluntariamente te expões a perecer. Ainda desta vez se viu satanás rebatido, sem poder
adivinhar o verdadeiro nome do seu humilde, mas terrível vencedor.
Sem mais disfarces, tirou o espírito infernal a máscara e tentou fazer entrar Jesus
numa conjura que arruinaria de alto a baixo o plano da Redenção. Sabia que o Messias
não restabeleceria o Reino de Deus sobre a terra, senão desapegando as almas de tudo o
que as paixões cobiçam: riquezas, dignidades e gozos sensuais; mas entendia também que
os Judeus guerreariam a todo o que lhes pregasse esse desprendimento. Para atrair os
Judeus, em vez de pregar o Reino de Deus, devia o Messias declarar-se rei temporal,
armar a nação contra o estrangeiro, sujeitar os Gentios ao seu jugo, e formar de todos os
povos um império universal, cuja capital fosse Jerusalém. Israel aclamaria um tal
libertador, que abriria aos seus partidários uma fonte perene de riquezas, dignidades e
prazeres. Com a audácia do anjo que se atreveu a lutar contra Deus, propôs lúcifer ao
Messias que deixasse a idéia dum reino espiritual e realizasse a idéia judaica.
E, afim de deslumbrar o santo solitário, transportou-o a uma alta montanha donde
lhe descobriu em imenso panorama todos os reinos da terra com todas as suas grandezas.
Depois, cuidando tê-lo realmente fascinado com esse quadro mágico, assim lhe falou:
“Este mundo é meu, e dou-o a quem me apraz. Teu será este poder e tuas estas glórias, se
consentes em prostrar-te diante de mim, adorando-me.” O arcanjo fulminado convidava
a Cristo para que se pusesse a frente dos Judeus e assumisse o papel do futuro anti-Cristo.
A tão horrível proposta, lançou Jesus ao tentador um olhar indignado, e com um
gesto imperioso expulsou-o da sua presença. “Retira-te, satanás, bradou-lhe Jesus, porque
esta escrito: Adorarás ao Senhor teu Deus e só a Ele servirás.”
O príncipe do mundo desapareceu, espavorido. Tinha diante de si, e de tal já não
duvidava, aquele filho profetizado da mulher que devia arruinar-lhe o império. O Justo,
que, apoiando-se em três palavras da Escritura, acabava de resistir, calmo e impassível,
ao engodo da sensualidade, à embriaguez do orgulho, as fantasmagorias da ambição e a
todos os prestígios diabólicos, mostrava-se tão superior aos filhos de Adão que não devia
pertencer, como qualquer simples mortal, a essa raça decaída. Era ele o Filho de Deus?
Só podia satanás conjecturá-lo; mas reconhecia nele, de certo, ao Libertador esperado
desde há quatro mil anos. Votou-lhe um ódio implacável, e jurou armar contra ele e
contra a sua missão redentora, não só as milícias infernais, mas todos os do mesmo bando
na Judéia. Com tais forças contava vencê-lo, ainda que só fosse dando-lhe a morte.
E enquanto o tentador, furioso com a derrota, corria a encobrir a vergonha nos
infernos, resplandecia de súbito a gruta da montanha com claridades deslumbrantes. Os
anjos de Deus desciam do Céu, dispunham-se humildes à volta do seu Senhor, e serviam-
lhe, depois do longo jejum, o pão que de seu Pai esperava. Vencedores, como Jesus, do
inimigo de Deus, associam-se-lhe ao triunfo, e prometem-lhe servirem-no como
auxiliares na luta que terá de sustentar contra os espíritos do abismo.
CAPÍTULO V
Os primeiros discípulos
Um dia, entretinha-se o santo precursor, como de costume, com alguns dos seus
privilegiados, quando, num momento, lhes atraiu a atenção um caminhante que para eles
se dirigia. Era Jesus, que descendo da montanha onde fora tentado, chegava às margens
do Jordão. Logo que o avistou, sentiu-se João impelido pelo Espírito-Santo a dar a
conhecer aos seus discípulos aquele Cristo, de quem tantas vezes lhes havia falado.
Apontando para o caminhante, exclamou em santo transporte: “Eis o Cordeiro de Deus,
eis o que tira os pecados do mundo.” Designava assim claramente o Messias, a quem os
doutores aplicavam estas palavras de Isaías: “Tomou sobre si as nossas iniqüidades;
sacrificou-se, porque assim o quis; como um cordeiro que não bala diante de quem o
tosquia, não abriu a sua boca33.” De resto, todos os dias, o Cordeiro de propiciação,
imolado no templo pelos pecados de Israel, lembrava aos Judeus o verdadeiro Cordeiro
de Deus, que, segundo o profeta, carregaria um dia com todas as nossas iniqüidades.
Para não deixar ressaibo de dúvida no espírito dos discípulos, João acrescentou:
“Era de Jesus de Nazaré, que eu vos dizia: Depois de mim vem Aquele que existia antes
de mim. Eu não o conhecia, e contudo foi para o dar o conhecer em Israel que vim
conferir o batismo d'água.” E em prova do que afirmava contou os fatos maravilhosos
que aconteceram no batismo de Jesus. “Vi, disse, ao Espírito-Santo que descia do Céu na
forma duma pomba e repousava sobre ele. Ora, quando eu ainda o não conhecia, Aquele
que me enviara a batizar com água, tinha-me dito: Aquele sobre quem vires descer o
Espírito-Santo e pousar sobre ele, esse é quem batiza no Espírito-Santo. Eu vi este sinal,
e é por isso que dou testemunho de que Jesus é o Filho de Deus.
Esta afirmação do profeta impressionou profundamente o espírito dos ouvintes.
Estupefatos perante esta súbita aparição do Libertador de Israel, ficaram silenciosos, e
Jesus desapareceu sem que lhe dirigissem uma palavra. Como se tinham entregado ao
precursor, nem sequer pensaram em seguir o novo Mestre.
32 Lê-se em S. Lucas (XI, 1) esta palavra: .Senhor, ensinai-nos a orar, como João-Batista ensinou aos seus
discípulos. Os discípulos do Santo Precursor espalharam-se por toda a Palestina, e até por terras
33 Is. LIII, 6, 7.
No dia seguinte, encontrava se João ainda com dois dos seus discípulos, João e
André, pescadores de Betsaida, quando Jesus passou de novo por diante deles. Como de
véspera, apontou João para ele e exclamou outra vez: “Eis ali o Cordeiro de Deus!” Mas
agora foi tão expressivo o seu olhar, e o seu brado saiu-lhe tanto do coração que os dois
discípulos sentiram-se comovidos até o mais fundo da alma. Não precisou Jesus de dizer-
lhes: “Segui-me!” Arrastados por uma força irresistível, lançaram-se por si mesmos a
seguir os passos de Jesus.
E Jesus ia continuando a sua derrota ao longo do Jordão. Reparando que o
seguiam, voltou-se para os dois mancebos e disse-lhes com ar bondoso: “Que procurais?”
“- Mestre, responderam os dois, onde morais? mostrando bem que era seu desejo
o conversar mais detidamente com ele.
“Vinde e vede,” disse Jesus. E levou-os à gruta que lhe servia de asilo desde há
uns dias.
Era isto pela décima hora, e a tarde aproximava-se. A conversa entrou muito pela
noite dentro; os dois mancebos expandiram os seus corações no de Jesus, e quando o
deixaram, não só o tinham tomado já por Mestre, mas ardiam no desejo de lhe recrutar
discípulos.
Simão, irmão de André, encontrava-se também por aquelas paragens. André correu
a toda a pressa a ter com ele, e diz-lhe cheio de gozo: “Encontramos o Messias.” Simão
deixa logo tudo e segue ao irmão. Mal que chegaram aonde estava Jesus, fixando o
Senhor o olhar no recém-vindo, diz-lhe: “Tu és Simão, filho de Jonas, doravante ficar-te-
hás chamando Cefas, que significa Pedro.” Simão, o pescador, não compreendeu o que
viria a ser esta mudança; mas dando-lhe este novo nome, assinalava já o Mestre neste
homem a pedra fundamental do edifício que pretendia construir.
No dia seguinte, seguido dos seus três companheiros, dirigiu-se Jesus para a
Galiléia. No caminho encontraram um certo Filipe, natural de Betsaida, como Pedro e
André. “Segue-me, disse-lhe Jesus, e esta só palavra penetrando-lhe o coração como um
dardo de fogo, acendeu nele o zelo mais ardente.
Tinha Filipe um amigo, por nome Natanael: correu logo a anunciar-lhe a boa nova.
Natanael, à sombra duma figueira, meditava nesse momento sobre os grandes
acontecimentos que se estavam dando em Israel. Mal que Filipe o avistou de longe,
gritou-lhe:
“Encontramos Aquele a quem Moisés e os profetas anunciaram: é o filho de José,
o carpinteiro de Nazaré.
- De Nazaré? respondeu Natanael sorrindo-se. Que pode vir de bom lá desse burgo
da Galiléia?
-Vem comigo, retorquiu Filipe, e verás.”
Natanael seguiu ao seu amigo. Ao vê-lo vir para si, extendeu Jesus os braços para
ele, com estas palavras:
“Eis um verdadeiro Israelita, singelo e sem fingimento.
- Senhor, observou Natanael, e como podeis sabê-lo?
- Antes de Filipe te chamar, respondeu Jesus, vi-te eu debaixo da figueira.”
Por este dito compreendeu Natanael que tinha diante de si Aquele Senhor que tudo
vê. E não podendo conter a sua emoção, arrancou do peito esta exclamação de fé e amor:
“Mestre, vós sois em verdade o Filho de Deus, o rei de Israel.
Tu crês em mim, tornou-lhe Jesus, por ouvir-me dizer que te vi debaixo da
figueira: serás testemunha de prodígios mais assombrosos. Em verdade, em verdade, eu
vô-lo digo a todos: Vereis abrirem-se os céus, e aos anjos subindo e descendo sobre o
Filho do homem.”
Três dias depois, chegaram a Galiléia, onde, com o seu primeiro ato, mostrou
Jesus aos cinco discípulos que ele dispunha, não somente dos anjos, mas até da
onipotência de Deus.
CAPÍTULO VI
As bodas de Caná
Natanael era de Caná, pequena cidade situada sobre a margem dum valezinho, a
duas léguas de Nazaré. Jesus também lá tinha parentes e amigos, entre outros Simão,
filho de Cléofas, que veio a ser mais tarde um dos apóstolos. Guiados pela Providência,
pararam os seis viajantes naquela cidadezinha.
Ora, nesse dia, celebravam-se bodas numa família amiga, e Maria, Mãe de Jesus,
era do número dos convidados. Posto que habitualmente vivia oculta no seu retiro de
Nazaré, tinha querido honrar os esposos com a sua presença. De resto, o Espírito, que a
guiava, revelou-lhe que Deus a desejava em Caná para uma obra da sua glória.
Pela tarde, como soubessem que Jesus voltara da sua longa excursão pela Judéia,
apressaram-se os esposos a convidá-lo para a festim com os seus companheiros. E ainda
que pelo comum não apareciam os doutores pelos banquetes, abria-se uma exceção para
as festas dos esponsais e bodas, por motivo do caráter particularmente religioso que
revestiam estas cerimônias. Aceitou pois Jesus o convite dos recém-desposados. Deste
modo consagrava com a sua presença a existência e a santidade do matrimônio, que se
propunha elevar bem depressa à dignidade de sacramento. Por outra parte, uma
disposição providencial reunia, na humilde casa dos esposos de Caná, a Virgem Maria, o
seu Filho muito amado e os primeiros discípulos de que havia feito escolha.
A família pouco abastada em que se encontrava o divino Mestre não tinha
preparado para o banquete mais que as provisões necessárias. Ora, como em
conseqüência da chegada imprevista de Jesus com os seus discípulos, era o número dos
convivas, mais considerável do que se esperava, notou-se pelo meio da refeição que ia a
faltar vinho. Viria isso a ser de grande vergonha para os jovens esposos, muito mais nesta
festa solene de bodas, em que nada se poupava para hospedar dignamente os parentes e
amigos da família.
Vendo aos serventes atrapalhados e aflitos, compreendeu logo a Mãe de Jesus a
causa do seu embaraço. Cheia de compaixão para com os seus hóspedes, sentiu-se
movida a auxiliá-los; mas que meio empregar? Inclinou-se Maria para o seu Filho e
segredou-lhe ao ouvido: “Não têm vinho. - Senhora, respondeu Jesus, e que desejais que
faça? A minha hora ainda não chegou.”
Maria desejava, (e bem o dizia o seu olhar suplicante) que Jesus usasse do seu
poder soberano para tirar os esposos da cruel posição em que se encontravam; mas não
convinha, parecia dizer Jesus, adiar o exercício do poder divino para o tempo em que o
milagre seria necessário para provar a sua missão e acreditar a sua
doutrina?
Embora esta resposta pudesse ser tida por uma recusa, Maria contou com a
intervenção do seu Filho. O ato, que o seu ministério por enquanto não reclamava,
executá-lo-ia Jesus por amor dela, e movido pelo seu pedido. Havia porventura Jesus
recusado algum dia o que quer que fosse a sua, Mãe? Aproximando-se dos serventes,
disse-lhes Maria: “Fazei tudo o que ele vos disser.”
Havia ali seis grandes ânforas ou vasos de pedra, que serviam para as abluções, tão
freqüentes entre os Judeus. Estes vasos podiam levar de duas a três medidas 34. Mandou
Jesus aos servos que os enchessem d'água até cima. Em seguida, uma vez executada a
ordem, Jesus, sem dizer uma palavra, sem fazer um gesto; só com um ato da sua vontade
converteu a água em vinho. “Tirai agora para essas urnas, disse ele aos serventes, e levai
ao presidente do festim para que beba.”
Pertencia-lhe ao presidente presidir ao banquete, provar os vinhos e distribuí-los
aos convivas. Mal que provou este vinho cuja proveniência desconhecia, encontrou-o
excelente, e imaginou que o esposo quisera fazer uma surpresa aos convidados. Tomou-o
à parte e não pode deixar de lhe dar os parabéns. “É costume geral, disse, esperar o fim
da refeição, quando já o paladar dos convivas se vai embotando, para então servir os
vinhos de qualidade inferior. Vós fizestes exatamente o contrário: servis em último lugar
o vinho mais fino e delicioso.”
Protestou o esposo que nada compreendia deste mistério. Interrogaram-se os
serventes, que haviam enchido de água as seis ânforas, e eles contaram o grande milagre,
que a rogo de Maria,. Jesus acabava de operar 35. Foi o bastante para manifestar a todos
os compatriotas do Salvador o poder extraordinário em que Deus o tinha investido, e
desde aquele momento os discípulos, que o tinham seguido, fiados na palavra de João,
consagraram-se-lhe com fé plena e inteira.
Viu-se também nesta ocasião memorável a íntima união que existia entre a Mãe e
o Filho, e como a prece de Maria, prevista nos eternos decretos de Deus, obtinha de Jesus
34 A medida, metreta, tinha cerca de 25 litros.
35 Os peregrinos que vão a Nazaré não faltam em visitar Caná. É hoje uma aldeia de 800 habitantes,
muçulmanos e gregos cismáticos. Ainda, se vêem as ruínas da magnífica igreja que Santa Helena mandou
construir sobre o sítio mesmo da casa onde se dera o milagre. A fonte donde foi tirada a água, a única da terra,
brota no fundo da aldeia, no meio de palmeiras e romanzeiras.
atos que ele sem essa poderosa intercessão não faria. Assim como lhe esperou pelo
consentimento para encarnar no seu claustro virginal, esperou também o seu pedido para
mudar a água em vinho; e é ainda em atenção à sua prece que no decorrer dos séculos,
por um milagre constantemente renovado, transformará em filhos de Deus aos filhos
decaídos do velho Adão.
Nesse dia, compreendeu satanás perfeitamente que o Solitário da montanha se
tinha negado a converter as pedras em pão, não por falta de poder, mas para lhe não
revelar os seus títulos divinos. E além disso, vendo a Maria exercer sobre o seu Filho um
ascendente que a tornava omnipotente, reconheceu nela a criatura misteriosa com que
Deus desde o princípio o ameaçara por esta palavra: “Essa mulher um dia há de te
esmagar a cabeça.” E votou-lhe a ela e mais ao seu Filho um ódio eterno.
Com este milagre, tocaram o seu termo os dias aprazíveis da solidão. Após trinta
anos de vida oculta aos homens, ia Jesus manifestar-se ao mundo. Como a residência em
Nazaré não convinha doravante aos seus trabalhos, disse o último adeus a esse doce
remanso, e seguido da sua Mãe, parentes e discípulos, desceu para Cafarnaum, que se
tornou desde então a sua residência habitual e o centro do seu ministério apostólico.
LIVRO TERCEIRO
O Messias em Israel
CAPÍTULO PRIMEIRO.
Jesus em Jerusalém
CAPÍTULO II
Prisão de João-Batista
JESUS NA JUDÉIA. - OS DISCÍPULOS DE JOÃO. - O SEU ÚLTIMO
TESTEMUNHO. - HERODES E HERODÍADES. - NON LICET. -
O CALABOUÇO DE MAQUERONTE.
(João, III, 22-36.)
CAPÍTULO III
A samaritana
Havia muitos meses que Jesus evangelizava com êxito as campinas da Judéia, de
modo que os fariseus souberam, não sem irritação, que o profeta de Nazaré substituía nas
margens do Jordão ao prisioneiro de Herodes, e contava mais discípulos que o próprio
João-Batista. E cedendo à sua baixa inveja, conjuravam já secretamente os escribas de
Jerusalém contra o Salvador; mas, porque ainda não era chegada a sua hora, resolveu
Jesus esquivar-lhes as ciladas, voltando para a Galiléia.
Diante abriam-se-lhe dois caminhos: um seguia pela margem esquerda do Jordão;
o outro atravessava a Samaria. Afim de evitar qualquer comunicação com os
Samaritanos, tomavam de ordinário os Judeus pelo primeiro; Jesus, ao contrário dirigiu-
se para a Samaria, porque naquela província lhe mostrava o Espírito-Santo almas
preparadas para receberem a boa nova.
O território da Samaria extendia-se desde o Mediterrâneo ao Jordão e deste modo
separava a Judéia da Galiléia: região magnífica, onde os olhos não avistavam senão
montes cobertos de florestas, encostas plantadas de vinhas e olivais, vales ensombrados, e
campos e prados de admirável fertilidade. Infelizmente era este belo país, havia mil anos,
o teatro do cisma e idolatria. Quando Jeroboão separou de Judá as dez tribos rebeldes,
tornou-se a Samaria o centro do reino cismático de Israel. O povo deixou de ir a
Jerusalém oferecer sacrifícios a Jeová; e os reis levantaram mesmo altares aos ídolos mais
abomináveis, até que um dia os Assírios, conduzidos pelo Deus das vinganças,
devastaram o país e transportaram os habitantes para as margens do Eufrates. Os colonos
estrangeiros, que vieram a repovoar a Samaria, misturaram as suas superstições com os
ritos mosaicos e rejeitaram, com as tradições nacionais dos Judeus, todos os escritos dos
profetas, menos o livro de Moisés.
Desde então, o Judeu fiel evitava todo o comércio com os Samaritanos. Não podia
a descendência de Abraão contemporizar com os restos da idolatria estrangeira. E quando
um homem de Judá tinha de ir para a Galiléia, seguia o caminho muito mais longo do
Jordão, só para não ter de atravessar as cidades e aldeias dos Samaritanos. Se acaso se
via forçado a andar por aquele território maldito, nunca pedia hospitalidade nem o mais
insignificante serviço àqueles falsos irmãos, dos quais fugia como leprosos ou
empestados.
Alheio como era aos preconceitos dos seus compatriotas, tomou Jesus com alguns
dos seus discípulos a grande via de Jerusalém a Nazaré por Samaria. Chegou bem pronto
a Betel, ponto onde Jeová prometeu a Jacó que lhe multiplicaria a descendência como as
areias do mar. Algumas horas depois passou junto a Silo, onde a arca da aliança, figura
do Messias, esteve durante três séculos. Por fim, após uma jornada de quatro léguas,
parou num vale, que a Escritura chama “Vale ilustre.” Neste vale de grandes recordações
é que o patriarca Abraão, ao vir da Mesopotâmia, armou a sua tenda e levantou o
primeiro altar a Jeová; por ali é que ele com os seus filhos andou pastoreando os
rebanhos. Chamava-se também campo de Jacó este onde o Salvador está.
Ora nesta terra dos patriarcas, donde Jesus podia avistar a cidade de Siquém e o
templo cismático do monte Garizim, havia um poço aberto por Jacob para abastecimento
d´água necessária a sua família e rebanhos. O divino Mestre, cansado com a longa
jornada sob o dardejar dum sol ardente, sentou-se a beira do poço para descansar um
pouco, enquanto os discípulos chegavam a Siquém a comprar mantimentos. Era pela
volta do meio-dia e, em oração a seu Pai, estava Jesus esperando a volta dos seus
companheiros, quando uma mulher saindo duma casa próxima veio ao poço buscar água.
E precisamente por causa daquela estrangeira é que Jesus, dirigido pelo Espírito
divino, atravessava, de encontro aos usos da sua nação, as terras dos Samaritanos. A
desconhecida fitou por um instante a vista no estrangeiro, e reconhecendo-o logo por
habitante da Judéia, cuidou-se obrigada a encher a ânfora sem dizer palavra. Mas Jesus
dirigiu-lha primeiro: “Mulher, disse, dá-me de beber.
- Como! respondeu ela surpreendida, tu és Judeu, e pedes-me de beber a mim, que
sou samaritana! Não te lembras que os Judeus não querem nada com os Samaritanos ?”
Em vez de a seguir por aquela questão espinhosa, Jesus, com voz suave e
verdadeiramente inspirada, transportou-a à região do sobrenatural cujas maravilhas lhe
queria dar a conhecer.
“Ó mulher, se conhecesses o dom que Deus quer fazer aos homens, e quem é o que
te pede de beber, por certo que tu lhe farias o mesmo pedido, e ele te daria água viva.
- Senhor, não tendes com que tirar água do poço, e mais que bem vedes que ele é
fundo; donde tirareis, dizei-me, essa água viva de que me falais? Tereis vós acaso mais
poder que o nosso pai Jacob, que nos deixou este poço, depois de se ter dele servido mais
os seus filhos e gados?
- Mulher, prosseguiu Jesus, pairando sempre acima das idéias materiais; quem
beber da água deste poço, ainda terá sede outra vez; mas quem beber da água que eu lhe
der, esse ficara saciado para sempre. E essa água converter-se-á nele numa como fonte
eternamente perene de águas vivas.”
Atenta ouvia a Samaritana estas palavras estranhas, mas sem lhes compreender o
sentido; contudo o porte, a dignidade e autoridade sobre-humana do estrangeiro incutiam-
lhe um respeito que ela não podia explicar. Cedendo pois ao desejo de possuir aquela
água a que Jesus chamara um dom de Deus, exclamou: “Senhor, dai-me sempre dessa
água, para que eu não tenha mais sede, e não mais precise de vir tirar água a este poço.”
Era chegado o momento de bater em cheio no ponto. Simulando querer comunicar
os seus dons a todos os amigos da samaritana, disse-lhe Jesus: “Anda, vai pelo teu
marido, e traze-o aqui.
- Senhor, respondeu ela, eu não tenho marido.
- Dizes bem, volveu-lhe Jesus em tom grave, que não tens marido; já tiveste cinco,
e o homem com quem agora vives, não é teu marido.
- Senhor, exclamou a Samaritana fora de si, vejo claro que sois um profeta!”
E em vez de se irritar contra o estrangeiro que assim lhe estava lendo na alma
segredos que a faziam corar, deixou-se a pobre pecadora tomar para com ele dum vivo
sentimento de admiração. Iam-se-lhe abrindo os olhos a luz; e por isso, suspeitando ter
no seu interlocutor um homem inspirado por Deus, apressou-se a consultá-lo sobre a
questão capital que havia séculos dividia os Judeus e os Samaritanos:
“Os nosso pais, disse ela apontando com a mão para Garizim, adoraram sempre a
Jeová neste monte; e vós dizeis, os Judeus, que em Jerusalém, cidade santa, é que se deve
adorar a Deus e oferecer-lhe sacrifícios.
- Mulher, respondeu Jesus, acredita-me; eis que vem chegando a hora em que já
não adorareis o Pai celeste nem sobre este monte, nem no templo de Jerusalém. Até aqui
adoráveis a um Deus que não conhecíeis; nós, os Judeus, conhecemos a Jeová e o culto
que se lhe deve render.
Porque certo é que dos Judeus é que há-de vir a salvação; mas, já te disse, cedo
virá o dia, ou antes já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão ao Pai
celeste em espírito e verdade. E é isto precisamente o que o Pai deseja; porque Deus é
Espírito e quer ser adorado em espírito e verdade.
Esta palavra, que Jesus Cristo disse a uma pobre mulher de Siquém continha em si
toda a transformação religiosa que se ia a dar no mundo. Até ali, Judeus e Samaritanos
não tinham conhecido mais que o culto exterior, a imolação de ovelhas e bezerros. Ao
culto exterior ia Jesus acrescentar o culto interno, o culto do amor, a verdadeira religião
dos filhos de Deus. Doravante não será no Moria, nem no Garizim, nem em Heliópolis,
nem em Delfos, que se encontrará o altar do sacrifício. Deus é o Pai de todos os homens,
e terá sobre toda a superfície da terra templos e altares. Já não haverá mais Judeus nem
Gentios, mas um só povo, o povo da nova aliança, um só Reino, o Reino de Cristo, sem
limites de rios, nem montes, nem séculos.
À vista do futuro que o profeta assim lhe desenrolava aos olhos, lembrou-se muito
naturalmente a Samaritana do Redentor, cuja vinda próxima estavam esperando os seus
compatriotas não menos que os Judeus.
“Sei, disse ela, que deve aparecer em breve o Messias, a quem chamam Cristo.
Quando ele vier, há-de nos ensinar todas essas coisas.
- Mulher, respondeu Jesus, esse Messias por quem esperais, é quem te fala.”
Ao ouvir tais palavras, sentiu-se a pobre pecadora cheia dum santo temor. A graça
iluminou-lhe a alma, e acreditou em Jesus e compreendeu que tinha direito a que ela o
amasse e adorasse.
Neste momento chegavam da cidade os discípulos com as provisões. Ficaram
muito espantados de ver a Jesus conversar com uma mulher; porque os sábios de Israel
pretendiam que mais valia queimar a lei do que explicá-la a mulheres. Segundo as
tradições farisaicas, não se devia saudar mulher alguma nem dirigir-lhe a palavra nem
conversar com ela em público. Contudo o respeito que os discípulos tinham ao seu
Mestre não os deixou fazer-lhe a tal respeito pergunta alguma. Aprenderão mais tarde que
Jesus com elevar sua Mãe acima de toda a criatura, enobreceu a mulher, até então
desprezada, e que, enfim, de melhor grado comunica os seus dons à pecadora humilde,
que ao fariseu orgulhoso.
Mas vindo à Samaritana, essa toda fora de si de contente com o pensamento de
que havia encontrado ao Messias, deixou junto ao poço a ânfora e correu ligeira à cidade
a anunciar aos seus compatriotas a boa nova. “Vinde ver, dizia, a um homem que me
disse quanto fiz na minha vida. Não vos parece que será o Cristo, o Messias que estamos
esperando?” Bem conheciam os Samaritanos que mulher leviana fosse aquela. Ao verem-
na tão profundamente emocionada, saíram-se de Siquém em tropel ao encontro de Jesus.
No entretanto tomavam os discípulos a refeição, ao passo que Jesus parecia
absorto em profunda meditação. E como eles o instavam para que também comesse,
respondeu-lhes: “Eu alimento-me de iguarias que vós não conheceis.” Ao ouvirem tal,
começaram a falar entre si quem lhe teria, na ausência deles, trazido de comer. Disse-lhes
então Jesus: “O meu sustento é fazer a vontade d'Aquele que me enviou, é levar a cabo a
sua obra. Bem conheceis o provérbio : Da sementeira à ceifa vão quatro meses; pois
bem eu digo-vos: Erguei os olhos e vede como as messes aloiram já os campos.” E
levantando os discípulos os olhos para os lados de Siquém avistaram uma grande
multidão de homens, mulheres e crianças que vinham vindo a toda a pressa. A semente
lançada no coração duma pobre mulher, tinha já feito amadurecer uma formosa seara.
Explicou Jesus aos discípulos o fenômeno daquele amadurecimento rápido e o
venturoso futuro que os esperava. Por sobre aquela terra haviam passado antes deles
aqueles semeadores que se chamaram os patriarcas e os profetas. Tinham semeado o
campo do pai de famílias depositando em todos os corações a expectativa do Libertador.
Por sua vez, vai Cristo atravessar a herança dos seus pais, semeando por toda a parte o
Evangelho, e preparando a colheita: “A vosso respeito, acrescentou o divino Mestre, vai-
se realizar o proverbio: Um é o semeador, e outro o ceifeiro. Vou a mandar-vos ceifar
onde vós não trabalhastes. Outros tiveram o trabalho; e vós não tereis mais que recolher
o fruto dos seus trabalhos. E o ceifeiro receberá a sua recompensa e a messe na
eternidade há de alegrar-lhe o coração e mais o coração dos que lançaram à terra a
semente bendita.”
Ainda Jesus assim estava falando, e já à volta dele se apinhavam os Samaritanos.
Criam já na sua divina missão, uma vez que a mulher lhes afirmou, que Jesus, sem nunca
antes a ter conhecido, lhe havia historiado a vida. Vinham pois agora rogar-lhe ficasse
com eles. Bondoso recebeu o Salvador aqueles homens de fé singela, e cedendo-lhes aos
desejos, seguiu com eles para a cidade, onde permaneceu dois dias inteiros. Falou-lhes
do Reino de Deus que neste mundo vinha fundar e confirmou-os na opinião que dele
tinham. “Agora, diziam eles à Samaritana, já não é pelo teu testemunho que nele cremos;
mas porque nós mesmos o ouvimos com os próprios ouvidos e sabemos que é Ele
realmente o Salvador do mundo!”37 O poço de Jacó, ao pé do qual descansava Nosso Senhor à
espera da Samaritana, tornou-se em breve um lugar de peregrinação. Junto dele construiu-se uma igreja magnífica,
da qual faz menção São Jerônimo. Falando da ilustre Romana, S. Paula, diz: “Atravessou Siquém e entrou numa
igreja construída junto ao poço, onde Nosso Senhor, tendo fome e sede, tomou por alimento a fé da
Samaritana: Samaritanae fide satiatus est.”
Assim falavam aqueles Samaritanos. Mais felizes que os Judeus pois não tinham
letrados invejosos e altivos a corromper-lhes a simplicidade do coração e a pôr obstáculo
ao trabalho da divina graça. E foi como pesaroso que Jesus os deixou para continuar o
caminho para a Galiléia.
CAPÍTULO IV
Jesus na Galiléia
37 O martirológio romano traz a 20 de março a festa de Santa Fotina, a Samaritana do Evangelho. Segundo diversas
tradições ter-se-ia retirado para Cartago com um dos seus filhos, haveria lá pregado a Jesus Cristo, vindo depois a
morrer no cárcere pela fé, imperando Nero.
Como Jesus anunciou, tiveram ao depois os Apóstolos uma formosa seara na Samaria; e esta província
tornou-se o centro de cristandades florescentes. O célebre filósofo Justino, natural de Siquém converteu-se ao
cristianismo, defendeu-o com eloqüentes apologias, e foi martirizado sob o império de Marco Aurélio.
39 Não deixam os peregrinos de visitar aquele monte que chamam O Monte do Despenhamento. “Ainda que me
encontrava, conta o P. de Géramb, atrás dalgumas pedras que formam um como parapeito, quando baixei os olhos
para aquele precipício, arrepiei-me todo com a sua vista. Ao pé do rochedo está um altar, onde, em dia fixo, vão os
Padres Franciscanos dizer a Santa Missa, cujo Evangelho é o texto de São Lucas, no qual se refere o que se passou
neste lugar.”
E uma vez que as almas se haviam preparado para receber os divinos mistérios,
mostrava-lhes Jesus o em que consistia o Reino de Deus, e como a alma, purificada pela
penitência, se torna um como trono onde reina Deus, seu único Mestre e Senhor.
Pregava deste modo aos pobres, aflitos e doentes, preocupado unicamente com
salvá-los a todos. Privado de qualquer recurso, como o último dos indigentes, sentava-se
a mesa de quem o convidava, e dormia onde lhe ofereciam um abrigo. Por vezes,
sobrevindo a noite, retirava-se a algum lugar ermo e lá ficava orando ao Pai celeste pelas
pobres almas que vinha chamar a salvação.
Em breve, com admiração de toda a Galiléia, todos falavam do profeta de Nazaré e
das suas pregações. Os discípulos já numerosos propalaram-lhe por toda a parte a fama
do seu nome e das maravilhas, que operava, o que deu ao Salvador nova ocasião de
mostrar o seu poder. Acabava de chegar à pequena cidade de Caná, teatro do seu primeiro
milagre, quando se lhe veio lançar aos pés um oficial régio de Cafarnaum, oprimido pela
dor, porque um seu filho havia muito sofria de febre violenta, a já se tinha perdido a
esperança de o salvar.
Estava assim o infeliz pai mergulhado nas ondas da desesperança, quando ouviu
dizer que em Caná se encontrava Jesus, o novo profeta de quem toda a gente falava.
Com esta notícia retomou alento e esperança, e deixando o doente nas vascas da agonia,
saiu à busca do único médico, que, ao que se dizia, o podia curar.
Chegando a Caná, apresentou-se logo diante do Salvador e rogou-lhe tivesse a
bondade de descer a Cafarnaum para lhe salvar o filho. “Vamos depressa, dizia ele
choroso, porque já' está lutando com a morte.” Num relance de olhos apreciou Jesus as
disposições interiores deste oficial. Acostumado à vida dos campos, bem pouco se
importava aquele homem com o Reino do Céu que o divino Mestre pregava. Haviam-lhe
elogiado o poder do profeta de Nazaré, e vinha ali muito casualmente pedir-lhe a cura do
filho. Tal era aliás a disposição geral dos espíritos. Admiravam as ações do Salvador,
mas não o saudavam como Messias. Não pode Jesus deixar de chamar a atenção para esta
falta de fé: “Será preciso, disse, multiplicar sinais e prodígios para vos decidir a crer em
mim ?”
Mas o pobre pai, submergido de todo na sua terrível preocupação, nem sequer
compreendeu que o Senhor o repreendia. Contentou-se com acentuar mais o seu desejo e
confiança, exclamando com insistência: “Vinde, Senhor, vinde antes que o meu filho
exale o último suspiro.”
Compadecido da sua dor houve Jesus por bem ouvir-lhe a prece; mas, afim de lhe
ensinar que o Senhor da vida e da morte não precisa de tocar um doente para o curar,
levantou-se e com certo ar solene disse ao oficial: “Vai; o teu filho está cheio de vida.”
Voltava o feliz pai a toda a pressa para Cafarnaum, quando no caminho lhe vieram
ao encontro muitos criados da casa, que todos radiantes de alegria lhe vinham anunciar a
perfeita cura do enfermo.
“E a que hora melhorou? perguntou estupefato o oficial. - À sétima hora deixou-o
a febre,” responderam os criados.
Na sétima hora precisamente é que Jesus lhe tinha dito: “Vai, que o teu filho está
cheio de vida.” Creu nele o bom oficial com toda a sua família.
De Caná retomou Jesus o caminho de Cafarnaum. Em seis meses tinha percorrido
as três províncias da Palestina, semeando por toda a parte a boa nova. Começavam já as
chuvas do inverno a destemperar os caminhos, o que tornava difíceis as viagens. Entrou
pois na cidade que escolhera para lugar de repouso entre duas excursões.
CAPÍTULO V
O lago de Genesaré
CAFARNAUM. - O LAGO. - O VALE DE GENESARÉ. -
A GALILÉIA DAS NAÇÕES. - O TETRARCA FILIPE. -
PROFECIA DE ISAÍAS. - JESUS EM BETSAIDA. - A PESCA
MIRACULOSA. - QUATRO VOCAÇÕES.
(Mat., IV, 13-22. - Marc., I, 16-20. - Luc. V., 11-17.)
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VIII
Graves acusações
Uma vez travada a luta entre o farisaísmo e o Evangelho, sabia Jesus que os
doutores Judeus a haviam de continuar com a mais acirrada animosidade. Mas nem por
isso deixou a resolução de ir a Jerusalém, por ocasião das festas da Páscoa, com perigo
mesmo de excitar com a sua presença sérias hostilidades. E se os inimigos o
acometessem, teria ele uma bela ocasião de os confundir a face daquelas vagas de
estrangeiros que durante as solenidades inundavam a cidade santa.
Logo na primeira visita de Jesus ao templo, veio um singular incidente provocar a
cólera dos fariseus. Junto à muralha do edifício sagrado (da banda do monte), havia uma
vasta piscina, chamada probática ou das ovelhas, porque nela se purificavam os rebanhos
destinados aos sacrifícios. Tinha também o nome de Betesda, isto é, casa de graça,
porque Deus lhe dotara as águas de virtude miraculosa. Em certos dias, descia um anjo à
piscina, punha-lhe em movimento as águas, e o primeiro enfermo que nelas se metesse
depois da passagem do anjo, saia curado, qualquer que fosse a doença. E por isso, à
espera daquela passagem, havia bom numero de incuráveis: cegos, coxos e paralíticos,
que enchiam os cinco pórticos da piscina.
Ora, entre aqueles enfermos, jazia no seu grabato um pobre paralítico, que há
trinta e oito anos estava sem uso dos membros. E como estava para ali imóvel, e sem
pessoa que dele se apiedasse, abeirou-se-lhe Jesus, e interrogando-o com carinho, disse-
lhe: “Queres ser curado?
- Sim, Senhor, mas não tenho ninguém que me queira descer à piscina, no
momento propício; e enquanto a muito custo me vou arrastando, vai outro e mete-se lá
antes de mim.
- Levanta-te, continuou Jesus com autoridade, toma o teu grabato e anda.”
No mesmo instante, sentiu-se curado o paralítico. E obedecendo à ordem que de
Jesus acabava de receber, carregou o grabato às costas, e pôs-se a andar, à vista dos
assistentes grandemente estupefatos.
Era um dia de sábado, dia de descanso que os Judeus, conforme os preceitos do
Senhor, guardavam religiosamente. Mas os fariseus tinham adicionado à lei sabática um
sem número de prescrições, cada qual mais absurda. Ao parecer deles, não era lícito
naquele dia levar o mínimo peso, escrever duas letras seguidas do alfabeto, nem
prosseguir na sexta-feira, depois do sol posto, um caminho, ainda que houvesse um
homem de ficar exposto às intempéries do tempo ou aos assaltos dos ladrões.
Sucedeu pois que certos fariseus encontraram o paralítico, ao voltar alegre para
casa, com o grabato às costas. Mandaram-lhe fazer alto é repreenderam-lhe severamente
o escandaloso procedimento.
“Hoje é sábado, disseram, não te é lícito levar o teu leito.
- Quem me curou, respondeu ele, assim me disse que fizesse, e eu obedeço.”
Enleados com tal resposta, perguntaram-lhe quem era o temerário que lhe dera
aquela ordem; mas ele não soube dizer, porque Jesus desaparecera dentre a multidão,
logo depois do milagre. Um pouco mais tarde, encontrando Jesus aquele homem, no
templo, disse-lhe ao ouvido: “Olha que estás curado; agora não tornes a pecar, não seja
que te venha a acontecer coisa pior.” Foi ele logo, todo cheio de alegria e gratidão,
publicando aos quatro ventos que devia a sua cura ao profeta de Nazaré.
Tanto bastou para amotinar os fariseus contra Jesus. Foram-se ao templo e
encontrando-o no meio do povo, perguntaram-lhe, em tom de ameaça, com que direito
curava os doentes e mandava levar cargas ao sábado, quando todos deviam imitar o
descanso de Jeová depois da criação.
“O meu Pai não descansa, responde Jesus; e eu, como Ele, não cesso de trabalhar.”
Com efeito, Deus dá e conserva a vida aos sábados, como nos outros dias. Condenar a
Jesus por ter procedido, como Deus, não era condenar ao próprio Deus?
Em vez de aplacar os Judeus, estas poucas palavras fizeram-nos enfurecer.
“Chama a Deus seu Pai, exclamaram, proclama-se igual a Deus, e arroga-se o direito
soberano de violar o sábado. Não é somente um desprezador da lei de Moisés, é um
insigne blasfemo.” E já pensavam em ajuntar pedras para o apedrejar.
Mas no meio daqueles furiosos Jesus permanecia calmo. E em lugar de atenuar
uma declaração que encerrava, como os Judeus bem tinham compreendido, uma
afirmação da sua divindade, tomou a seu cargo justificá-la. Nunca discussão mais grave
se levantou perante um auditório mais apaixonado, mas a tal altura se elevou o discurso
que todos o escutaram sem ousar interrompê-lo.
“Em verdade, em verdade, vos digo, bradou-lhes Jesus, o Filho nada faz por si
mesmo, mas opera sempre à uma com o Pai. Porque tal é o amor que o Pai tem ao Filho,
que o associa a todos os seus atos, de modo que as obras do Filho são verdadeiramente
obras do Pai. Espantam-vos estas obras do Filho! mas outras mais prodigiosas ainda há
de ele fazer, com que ficareis estupefatos.”
A assembléia redobrou de atenção: depois dos milagres até ali semeados na sua
passagem, que irá fazer o poderoso taumaturgo?
“Assim como o Pai, continuou Jesus, tira os mortos do sepulcro, também o Filho
dá, quando lhe apraz, a vida às almas. Este poder de julgar e vivificar as almas, pô-lo o
Pai nas mãos do Filho, a fim de que todos honrem ao Filho, como honram ao Pai. Quem
se recusa a honrar o Filho, recusa-se a honrar o Pai que o enviou. E é por isso que, em
verdade, vos digo que todo aquele que receber a minha palavra e crer na minha missão
que procede do Pai, esse tal passará da morte à vida e possuirá a vida eterna.
“Sim, eu vo-lo afirmo de novo, vem chegando a hora, ou antes, já chegou, em que
as almas espiritualmente mortas ouvirão a voz do Filho de Deus, e as que a aceitarem,
viverão. O Pai, fonte e princípio da vida, deu ao Filho o ter também em si mesmo a vida,
e o comunicá-la ou recusá-la a todos aqueles a quem, na sua qualidade de Filho do
homem, tem a missão de julgar. E este julgamento, notai bem, não é mais que um
prelúdio; pois bem cedo virá a hora em que todos os que dormem no fundo dos sepulcros
hão-de ouvir a voz do Filho de Deus; e ressuscitarão todos: os que fizeram o bem, para a
glória eterna; e os que fizeram o mal, para a eterna condenação.”
Tal era o ascendente de Jesus, até sobre os seus inimigos, que pode assim
apropriar-se todos os atributos divinos, sem que ninguém lhe pedisse a prova das suas
afirmações. Como porém ninguém é juiz na sua própria causa, pôs ele próprio a objeção:
“Falando-vos de mim, disse, não sou mais do que o eco do Pai e só procuro com isto
fazer-lhe a vontade. Contudo, se eu fosse o único a dar testemunho de mim, poderíeis
recusar-mo; porém vós mesmos conheceis uma outra pessoa que depõe em meu favor; e
entre vós não há quem conteste a veracidade de João-Batista. Vós havei-o consultado a
meu respeito; e ele respondeu-vos como testemunha fiel da verdade. Parecia-vos então o
Batista como um farol de brilho sem igual, e vós comprazíeis-vos em caminhar à sua luz.
Se vô-lo recordo, é para vossa salvação, porque eu cá para mim não preciso do
depoimento de ninguém. Tenho por mim testemunhas mais autorizadas que o Batista; são
essas as obras que meu Pai me encarregou que fizesse, e pelas quais vos tem provado que
dele vem a minha missão; mas vós nem quereis ouvir a voz possante daquelas obras, nem
escutar a palavra interior que esta solicitando a vossa fé. As Escrituras, que vós estudais
e com razão, para nelas encontrar palavras de vida eterna, essas Escrituras, digo, dão
também testemunho de mim; e, ainda assim, não quereis vir a mim a receber aquela vida
que vos falta!”
E, em conclusão, declarou Jesus aos Judeus, que a sua incredulidade, fruto do
orgulho, seria a causa da sua reprovação. “Falo-vos deste modo, não para buscar a minha
glória, mas porque sei que em vós não reside o amor de Deus. Venho a vós em nome do
meu Pai, e hão me recebeis; se outro vier em seu próprio nome, a lisonjear as vossas
paixões, haveis de recebê-lo. Vós procurais a glória que vem dos homens, e não aquela
que só Deus pode dar; e eis aí porque não podeis crer em mim. Mas, estai certos, o vosso
maior acusador perante o Pai, não serei eu; será sim Moisés, em quem tendes postas as
esperanças. Porque, de fato, se prestásseis fé às palavras de Moisés, houvéreis de crer em
mim; porque de mim é que ele profetizou. Mas se vós não credes a Moisés, como ides
crer em mim ?”
Com efeito, Moisés deixara consignada nos seus escritos esta promessa de Jeová:
“Eu farei surgir no meio do povo um Profeta semelhante a ti, e porei as minhas palavras
nos seus lábios. Se alguém recusar fé aos oráculos que da sua boca hão-de sair, ficará por
minha conta o castigá-lo.” Ora estas palavras foram sempre aplicadas ao Messias; mas os
Judeus, obcecados por satanás, já não compreendiam quase nada das Escrituras. E surdos
a todas as vozes do Céu bem como aos gritos da própria consciência, afastaram-se
silenciosos, tanto mais resolvidos a dar cabo de Jesus quanto menos encontravam que lhe
responder.
Desde então, acusaram-no os Judeus, a torto e a direito, de que violava a lei do
descanso ao sábado. Depois das festas pascais, voltava com os discípulos para
Cafarnaum, quando eles, ao atravessarem um campo de trigo, colheram umas poucas
espigas, que debulharam entre as mãos para comer. Logo os espiões fariseus reclamaram
contra o escândalo, pois, conforme o código farisaico, ajuntar grãos de trigo no valor dum
figo, era dalgum modo fazer ceifa. “Vê, diziam eles a Jesus, como os teus discípulos, à
cara descoberta, violam a lei do sábado!” E cravaram aqueles olhos odiosos em Jesus
como num criminoso colhido em flagrante delito.
“Então vós não lestes, respondeu Jesus, como David, obrigado da fome, entrou na
casa de Deus, sendo Abiatar sumo sacerdote, e como ele e os seus comeram os pães de
Proposição, os quais, por lei, só os sacerdotes tinham direito a comer? E também não
lestes que no templo os sacrificadores violam a lei do descanso e nem por isso faltam?
Ora, aqui há alguma coisa mais sagrada que o templo, e os que o servem estão
dispensados das leis do sábado com mais razão que os sacerdotes sacrificadores. E
demais, acrescentou Jesus, se compreendêsseis o sentido desta palavra: A misericórdia
vence em preço o sacrifício, não teríeis condenado os inocentes. Ficai pois sabendo que
foi o sábado feito para o homem e não o homem para o sábado. E sabei também que o
Filho do homem”, senhor de todas as coisas, “é Senhor do próprio sábado.”
Partiram-se os espiões bem confundidos, mas cheios de azedume e cólera contra o
doutor, cuja superioridade lhes esmagava o orgulho. Oito dias depois voltaram à carga. A
uma sinagoga, onde Jesus acabava de entrar, veio um infeliz, com a mão direita
completamente mirrada, inerte e imóvel. Entreolhavam-se os fariseus como
perguntando-se, se Jesus o curaria, e assim lhes daria aso a nova acusação. E cuidando
enredá-lo fizeram-lhe esta pergunta: “Mestre, é licito operar uma cura ao sábado?”
Em vez de lhes responder, disse Jesus ao enfermo: “Levanta-te, e põe-te ai de pé
no meio da sinagoga.” Levantou-se o homem e pôs-se de pé no meio dos assistentes.
“Pergunto-vos eu por minha vez, disse Jesus, se ao sábado é lícito fazer bem ou mal,
salvar a vida a alguém ou deixá-lo perecer?” Se respondessem que não, condenavam aos
seus próprios doutores que permitiam faltar à lei do descanso para salvar a vida ao
próximo; se, pelo contrário, se pronunciassem pelo sim, legitimavam de antemão o ato de
caridade que o Salvador ia fazer. Mas os homens para se não comprometerem, calaram-
se.
Então, lançando àqueles obstinados um olhar, temperado de piedade e indignação:
“Quem de vós, perguntou-lhes Jesus,. se acaso no sábado lhe cair num fosso uma ovelha,
não vai logo tomá-la e tirá-la da água? E não vale um homem mais que uma ovelha? Não
receeis pois confessar que é permitido fazer bem no sábado!” E sem mais se preocupar
com aqueles hipócritas: “Estende a mão,” disse ao enfermo. E o enfermo estendeu a mão,
que se encontrou perfeitamente curada, tão sã e forte como a outra.
Esta cena levou ao auge a exasperação dos fariseus. Fulos de raiva, reuniram
conselho ao sair da sinagoga sobre os meios a tomar para se desfazerem do seu inimigo.
Mas como sabiam que o Sinédrio não podia lançar-lhe a mão no território da Galiléia sem
o beneplácito do rei Herodes, foram-se entender com os herodianos a fim de os decidirem
a favorecer-lhes os manejos. Esperavam que Herodes instigado pelos seus cortesãos se
apoderaria de Jesus e o enviaria a amargá-las com João-Batista nas masmorras de
Maqueronte.
Porém como ainda não tinha chegado a sua hora, dirigiu-se Jesus de novo para as
margens do lago, para continuar entre os seus queridos Galileus o curso das suas
pregações; deliberando porém retirar-se por um pouco, para as terras do tetrarca Filipe, se
os conspiradores lhe viessem a pôr em perigo a vida ou a liberdade.
LIVRO QUARTO
Fundação do Reino
CAPÍTULO PRIMEIRO
Os doze Apóstolos
CAPÍTULO II.
As Bem-aventuranças
45 Chamam-nos naquele país os Chifres de Hatin, do nome da aldeola, situada na vertente norte do monte.
Rodeado dos apóstolos, desceu Jesus ao plaino, onde aquela multidão se
encontrava reunida. E de pé sobre aquelas alturas, esteve contemplando essas vagas de
gente que afluíra de todos os pontos do horizonte para lhe pedir que a introduzisse no
Reino de Deus. Enterneceu-se à vista daquelas almas ainda sepultadas nas trevas, e
resolveu dar a conhecer a todos a sociedade espiritual que vinha fundar para procurar a
Deus a glória e aos homens a paz. E todos poderiam fazer parte desta sociedade, com a
condição de se tornarem filhos verdadeiros do Pai que está nos Céus.
Quinze séculos antes, no alto doutro monte, tinha o próprio Jeová ditado a lei
fundamental que impunha ao povo, e que estabelecia como condição essencial da sua
aliança. E os ecos do deserto ainda repetiam as palavras solenes caídas então do Sinai:
“Ouve, ó Israel, eu sou o Senhor teu Deus, fui eu que te tirei da escravidão do Egito. Não
terás outro Deus na minha presença; porque eu sou o Senhor, teu Deus, o Deus forte e
zeloso.”
Ora, num relance de olhos pelo mundo, via Jesus que todos os povos, Judeus e
Gentios, adoravam, na presença do verdadeiro Deus, divindades falsas: personificações
vergonhosas dos vícios que lhes manchavam os corações. Os seus deuses e deusas eram a
soberba, a avareza, a luxúria, a inveja, a ira, a gula e a preguiça. Em vez de procurar as
bênçãos de Jeová, o próprio Judeu pensava encontrar a felicidade na satisfação das
paixões. O fariseu embriagava-se de glória humana, o saduceu com prazeres ignóbeis, e
todos amavam o ouro e a prata mais que a Lei, mais que ao mesmo Deus.
E tamanha era a perversão da natureza humana que, no momento em que ia a
estabelecer o Reino de Deus, ouvia Jesus ecoar por toda a parte: no Oriente e no
Ocidente, em Jerusalém como em Roma, o canto dos idólatras:
“Felizes dos ricos, que dispõem à sua vontade dos bens deste mundo.
“Felizes dos poderosos, que reinam sobre milhares de escravos.
“Felizes dos que não conhecem as lágrimas, e cujos dias se passam em prazeres e
diversões.
“Felizes dos ambiciosos, que se podem saciar de dignidades e honras.
“Feliz do homem do prazer., saturado de festins e volúpias.
“Feliz do homem sem piedade, que pode satisfazer a vingança, esmagando aos
seus inimigos.
“Feliz do homem de guerra e de carniceria, que esmaga sob os seus pés aos povos
vencidos.
“Feliz do tirano, que oprime o justo na terra e nela destrói o reino do verdadeiro
Deus.”
Tais eram, havia séculos, os cantos dos filhos do velho Adão.
As turbas apinhadas sobre o monte não conheciam outros princípios sobre a
felicidade, e muitos perguntavam, havia tempo, se estas máximas corriam no Reino de
que Jesus se dava por fundador. Esperavam com impaciência que se explicasse afinal
bem claro sobre as disposições requeridas para fazer parte dos seus verdadeiros
discípulos. Assentado num outeiro donde dominava a multidão, tendo junto de si os
apóstolos, e à volta deles o povo em círculo, tomou o Salvador a palavra, e não receou
opor às pretendidas felicidades do homem decaído, aquelas divinas bem-aventuranças,
que nenhuma boca humana tinha ainda proclamado.
“Bem-aventurados os pobres verdadeiramente desprendidos dos bens deste
mundo, porque deles é o Reino dos Céus.
“Bem-aventurados os que choram; porque serão consolados.
“Bem-aventurados os que são benignos para com os seus semelhantes. porque
possuirão a terra dos eleitos.
“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos.
“Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
“Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.
“Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus.
“Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é
o Reno dos Céus.
“Sim, sereis bem-aventurados, quando os homens vos amaldiçoarem e
perseguirem, e quando mentirosamente disserem contra vós toda a casta de males, por
minha causa.
“Regozijai-vos então e rejubilai, porque a vossa recompensa será grande no Céu.
“E lembrai-vos também de que assim foram tratados os profetas que antes de vós
viveram.”
Com estas máximas estranhas, Jesus, como verdadeiro Salvador do mundo,
declarava aos homens viciosos que para entrar no Seu Reino e reencontrar a genuína
felicidade cidade, era preciso reinstalar no próprio coração ao Deus que dele tinham
desterrado e declarar guerra às falsas divindades, isto é, as sete paixões, fontes de todos
os nossos males. Pregava pois Jesus aos avarentos a pobreza, aos orgulhosos a
humildade aos voluptuosos a castidade, aos homens do ócio e do prazer o trabalho e as
lágrimas da penitência, aos invejosos a caridade, aos vingativos a misericórdia e aos
perseguidos as alegrias do martírio. Pelo sacrifício dos seus maus instintos é que a alma
passa da morte à vida, restabelece em si o Reino de Deus, e começa a prelibar na terra a
bem-aventurança do Céu. Enquanto Jesus falava, estava-se a maior parte
do auditório maravilhando à vista de tais bem-aventuranças, até aquele tempo
qualificadas de maldições. E procuravam pela fisionomia do pregador adivinhar-lhe o
sentido do discurso; mas o seu rosto permanecia sereno como a verdade, e a sua voz
meiga e penetrante não deixava entrever emoção nenhuma. Dirigia-se a uma nova
geração de homens, mais nobre que a dos patriarcas, mais santa que a de Moisés, à
geração nascida do bafejo do divino Espírito. E só o podiam compreender aqueles a quem
uma luz celeste elevasse à inteligência daqueles misteriosos ensinos.
E, quanto aos fariseus orgulhosos e avarentos, voluntariamente se excluíam dum
Reino aberto só às almas tão enamoradas de Deus, que por amor dEle desprezassem os
bens desse mundo, as honras e os prazeres carnais. Irritavam-se contra aquele sonhador
que lhes condenava todas as ações da vida e todas as aspirações do coração. Mas Jesus,
adivinhando-lhes os pensamentos criminosos, lançou contra eles e seus adeptos estes
terríveis anátemas:
“Ai de vós, ricos insaciáveis, porque tendes cá na terra as vossas delícias! Ai de
vós, homens re-fartos de prazeres; um dia sofrereis os horrores da fome! Ai de vós os que
toda a vida levais a rir; em breve chorareis e vos lamentarei! Ai de vós os que mereceis o
incenso dos mundanos; também os pais deles incensavam aos falsos profetas.”
E voltando-se logo para os apóstolos, encarregados de estender o seu Reino,
anunciou-lhes que os filhos do século e os falsos doutores não cessariam de fazer guerra
aos ministros de Deus, isto é, a todos os que pregarem e praticarem as virtudes ensinadas
no monte; mas estes, como embaixadores que são do Pai que está nos Céus, atraiçoariam
própria vocação, se se calassem por medo aos malvados, e deixassem assim as almas
sepultarem-se nas trevas e na corrupção.
“Vós sois o sal da terra, disse-lhes Jesus. Se o sal se corrompe, com que outra
coisa se há-de salgar? Não serve para mais do que para ser lançado à rua a ser calcado
por quem passa. Vós sois a luz do mundo. Não se edifica uma cidade sobre um monte
para a ocultar à vista, e ninguém acende uma lâmpada para a meter debaixo do alqueire,
mas para a colocar num candelabro donde alumie a todos os que estão na casa. Brilhe
pois de tal modo a vossa luz aos homens, que vejam as vossas boas obras e glorifiquem
ao vosso Pai que está nos Céus.”
Assim falou Jesus à Igreja nascente. E a Igreja, fiel sempre ao seu Chefe, ficará
sendo o sal que não se corrompe, e o farol a brilhar em noite tenebrosa. Até ao fim dos
séculos, ouvi-la-hão pregar as bem-aventuranças do monte, e à sua voz ir-se-hão
formando, até ao fim dos séculos, legiões de pobres voluntários, de virgens e penitentes,
de confessores e mártires, ditosos por sofrerem perseguição por amor da justiça, e ditosos
por morrerem por aquele Jesus, que se dignou com a sua morte abrir-lhes as portas do
Reino do Céu.
CAPÍTULO III.
Os preceitos evangélicos
CAPÍTULO IV
A lei do amor
Deus tinha dado ao seu povo os dez mandamentos da Lei no meio de relâmpagos e
trovões, ameaçando-o com terribilíssimos castigos, se ousasse transgredi-los. Advertiu
contudo de que, mais que o temor, outro motivo mais nobre devia impedi-lo de violar os
mandamentos. Cumulado de benefícios por Jeová, devia Israel amar ao seu Deus e
testemunhar-lhe pela fidelidade o seu amor. “Ouve, ó Israel, diz ele ao seu povo, amarás
ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas
forças. Este mandamento, gravá-lo-hás no teu coração, meditá-lo-hás dia e noite, em tua
casa e pelos caminhos; inscrevê-lo-hás no teu braço e na tua fronte, no limiar e porta da
tua casa, para que nunca o esqueças.”46
E aquele Deus de bondade, e Pai da grande família humana, acrescentou: “Amarás
ao teu próximo, como a ti mesmo.”47
Mas, afora as almas que o Espírito-Santo mais animava, o resto de Israel bem
pouco meditava no amor que a Deus devia. Obedecia a Jeová pela esperança de obter
certas recompensas temporais ou por temor das maldições impendentes sobre a cabeça
dos pecadores; e muitissimas vezes, sucumbindo às paixões, pisava
aos pés as leis que só o amor houvera podido fazer observar. Sem coração e sem piedade,
tinham os fariseus chegado ao ponto de truncar e desfigurar todos os mandamentos.
Entregues a todos os vícios, cobriam-se com a máscara da piedade, da liberalidade e do
rigorismo mais exagerado nas observâncias exteriores, unicamente por amor próprio, e
para obter louvores e aplausos dum povo que iam arrastando consigo para a perdição.
Depois de ter restabelecido e aperfeiçoado a Lei mosaica, não podia Jesus
terminar o seu discurso sem lembrar que de nenhum valor são aos olhos de Deus as obras
da Lei, quando vão esquecidos os mandamentos donde derivam todos os outros:
“Amareis ao Senhor, vosso Deus, e ao vosso próximo, como a vós mesmos.” O filho de
Deus deve amar ao seu Pai celeste, dedicar-se a servi-lo, abster-se de toda a falta e
praticar as obras que manda a Lei, não por alarde da própria pessoa, mas para agradar ao
Deus de toda a bondade e de toda a pureza. E, para desenganar ao povo, não temeu Jesus
fustigar os viciosos que se acobertavam com aparências de virtude.
“Vede, diz Jesus aos seus ouvintes, que não façais as vossas boas obras diante dos
homens, para que eles vos vejam: doutra sorte nenhuma recompensa recebereis do vosso
Pai que está nos Céus.
“Assim pois, quando fizerdes esmola, não mandeis tocar trombeta diante de vós,
como fazem os hipócritas nas ruas e sinagogas para ser honrados pelos homens. Em
verdade, vos digo, que receberam a sua paga.
“Mas vós, quando fizerdes esmola, não saiba a vossa mão esquerda o que faz a
direita, para que fique secreta a vossa esmola, e o vosso Pai, que vê o que se passa em
segredo, terá o cuidado de vos pagar.
“E quando orardes, não o fareis como os hipócritas, que se comprazem em orar de
pé na sinagoga e nos ângulos das praças públicas para ser vistos dos homens. Em
verdade, vos digo, que receberam a sua paga. Quanto a vós, para orar entrai no vosso
cubículo, fechai a porta, e orai ao Vosso Pai em secreto. E vosso Pai que vê o que se faz
em segredo vos recompensará.
“E também, quando orardes, não multipliqueis as palavras, como fazem os pagãos;
pois imaginam que à força de palavras obrigarão os seus deuses a que os atendam. Não os
46 Deuter., VI
47 Levit., XIX, 18
imiteis; porque o vosso Pai sabe o de que tendes precisão ainda antes que lho peçais. Vós
por tanto orareis assim:
“Padre nosso, que estais nos Céus, santificado seja o vosso nome, venha a nós o
vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu. O pão nosso de cada
dia nos dai hoje, e perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos
devedores; e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amem.
“Porque se vós perdoais aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai celeste
vos perdoará as vossas; mas se vós não perdoardes aos outros, também o vosso Pai
celeste vos não perdoará a vós.
“Quando jejuardes, não andeis tristes, como os hipócritas, que extenuam o rosto
para que se diga que jejuam. Em verdade, vos digo, já receberam a sua paga. Vós pois,
quando jejuardes, perfumai a cabeça e lavai o rosto, para que fique secreto a todos o
vosso jejum, menos ao vosso Pai celeste. E ele, que vê o que se passa às ocultas, terá
cuidado de vos recompensar.”
Deste modo procurava Jesus suscitar verdadeiros filhos de Deus, que, em todas as
suas ações, outra intenção não tivessem mais que a de lhe provar o seu amor, nem outra
aspiração em suas orações mais que a de glorificar o seu santo nome, de propagar o seu
reino, e de fazer-lhe a vontade na terra como lha fazem no Céu. Mas para elevar-se a
estas alturas, precisa-se de almas que no coração não tenham outro Deus mais que o
verdadeiro Deus, e por este motivo é que os Judeus não podiam compreender aquela
doutrina. Jesus via a sua nação, e sobretudo os chefes e doutores do povo, escravizados
pelo ídolo da cobiça, pilharem os estrangeiros, espremerem os infelizes, ajuntarem
montes de ouro e enterrarem-nos para os subtrair às vistas dos Romanos. Exprobrou-lhes
Jesus preferirem deste modo bens dum dia a interesses eternos.
“Não ajunteis, disse ele ao povo, tesouros que a ferrugem e os vermes gastam e
roem e que os ladrões podem desenterrar e levar. Entesourai no Céu bens
que nem a ferrugem nem os vermes roem, e que os ladrões vos não roubarão.
“Onde estiver o vosso tesouro, acrescentou Jesus, lá estará o vosso coração.” Se o
vosso tesouro está na terra, a vossa alma será terrestre; se o vosso tesouro está no Céu,
toda a vossa alma se tornará celeste.
“A nossa vista, como uma lâmpada, alumia todo o nosso corpo. Se a vista é pura,
a sua luz espalha-se por todos os nossos membros; se está viciada e obscurecida, em
trevas fica todo o corpo.” Do mesmo modo, se a vista interior da alma se obscurece, que
há a esperar dela senão obras de trevas?
“Ninguém pode servir a dois senhores. Não se pode amar a um sem odiar ao
outro; nem aderir a um, sem desprezar ao outro. Não podeis pois servir ao mesmo tempo
a Deus e a Mamon.48
A estas exortações contra o amor imoderado das riquezas opunha o judeu
insaciável as exigências da vida; Jesus porém tomou ensejo daquelas preocupações
temporais para dar a todos uma admirável lição sobre a Providência do Pai que está nos
Céus.
“Não vos inquieteis, disse, a respeito do corpo, do que haveis de comer nem do
48 Ídolo da riqueza (Nota do trad.)
que haveis de vestir.
“A vida” que de Deus recebestes, “não vale mais que o sustento, e o corpo mais
que o vestido? “Olhai as aves do céu: não semeiam, nem ceifam, nem enceleiram; e o
vosso Pai celeste sustenta-as. Não valeis vós mais que a avezinha? E depois, quem de
vós, por mais que se engenhe, vale a acrescentar à própria estatura uma linha que seja?
“E do vestuário, porque inquietar-vos? Olhai os lírios dos campos, como crescem,
eles não trabalham nem fiam. Ora digo-vos eu que nem Salomão, no maior esplendor da
sua glória, se vestiu como eles. E se a hervazinha dos campos que hoje verdeja e amanhã
se lança no fogo, assim Deus a enfeita, a vós esquecer-se-há de vos vestir, homens de
pouca fé?
“Ora pois, não andeis angustiados a dizer: Que comeremos, que beberemos, com
que nos vestiremos? Deixai essas ansiedades para os pagãos: quanto a vós, o vosso Pai
celeste sabe o que vos falta.
“Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e o resto vos será dado por
acréscimo. Não andeis ansiosos com o dia de amanhã; o dia de amanhã cuidará de si;
basta a cada dia o seu mal.”
Tal é a grande lei do Reino dos Céus: Amar a Deus de todo o coração, fazer o bem
por amor de Deus, e quanto ao mais, confiar na Providência que não faltará nunca aos
verdadeiros filhos de Deus. Mas quem ama o Pai, ama-lhe os filhos, os quais são
também membros da família celeste. Ao amor de Deus é preciso ajuntar o amor do
próximo, isto é, de todos os homens; coisa que os Judeus não compreendiam. Por muitas
vezes, neste discurso, havia Jesus exprobrado aos fariseus a sua falta de caridade, e a
dureza e maus tratamentos, por
ações e palavras, de que se tornavam culpados para com os seus irmãos. Mas voltou
ainda à carga para estigmatizar àqueles censores inexoráveis, que, tendo o coração podre
de vícios, não toleravam nos outros o mais leve defeito.
“Não julgueis, disse, e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados.
Como julgardes aos outros, assim vos julgarão a vós; e pela medida com que medirdes
aos outros, sereis vós também medidos.
“E como é que vedes um argueiro nos olhos do vosso irmão e não enxergais a
trave que trazeis nos vossos? Como vos atreveis a dizer: Deixa-me que te tire da vista
esse argueiro, tendo ao mesmo tempo uma trave na vossa! Hipócritas, tirai primeiro a
trave aos vossos olhos, e depois podereis pensar em tirar o argueiro dos olhos do vosso
irmão.”
Contudo, ainda que devemos julgar os outros com caridade, a discrição manda que
não tratemos com os maus como com os bons. “Não deiteis aos cães as coisas santas, diz
Jesus, nem espalheis as vossas pérolas diante de porcos, não suceda que as pisem aos pés,
e logo se voltem contra vos a dilacerar-vos.”
E depois deste aviso dado sobretudo aos pregadores do Evangelho, resume o
divino Mestre os seus ensinos sobre a caridade fraterna neste grande princípio: “Fazei aos
outros aquilo que quiséreis que os outros vos fizessem a vós. Esta sentença encerra a Lei
toda e os profetas.”
Ao mostrar aos homens o caminho que leva ao Reino dos Céus, bem conhecia
Jesus a impotência da natureza humana para caminhar para o Pai, se ele mesmo não a
conduz. Ensinou pois ao povo que pedisse sempre Àquele que nunca recusa ajudar-nos,
nos dê a força necessárias para não esmorecermos no caminho. E a voz de Jesus, sempre
tão branda, tomou neste ponto acentos de ternura infinita.
“Pedi, disse, e receberei; procurai e achareis; batei, e abri-vos-hão. Pois quem
pede, recebe, quem procura, acha, e a quem bate, abrem-lhe a porta. Se o vosso filho vos
pedir pão, dar-lhe-eis uma pedra? E se vos pedir peixe, dar-lhe-eis uma serpente? E se
vós, ainda maus como sois, sabeis dar aos vossos filhos boas coisas, quanto mais o vosso
Pai que está nos Céus não dará verdadeiros bens a quem lhos pedir?”
Seguros já do socorro do alto, exortou-os Jesus a entrarem resolutos pelo caminho
santo, mas difícil, que leva ao Reino dos Céus. “Entrai pela porta estreita, disse, porque a
porta larga e a estrada espaçosa levam à perdição, e muitos seguem por ela. Pelo
contrário, é estreita a porta e apertada a senda que conduz à vida; e que poucos dão com
ela!”
As dificuldades de guardar os mandamentos, juntam-se as seduções dos doutores
da mentira. “Acautelai-vos dos falsos profetas, que vêm ter convosco, vestidos de
ovelhas, mas lá por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos os conhecereis: por
ventura vai alguém colher uvas nas silvas, ou figos nos cardos? A árvore boa dá bons
frutos e a arvore má dá frutos maus. Nunca uma arvore boa dá maus frutos, nem a má os
produz bons. A má arvore só serve para que a cortem e lancem ao fogo.
“Ora pois, vós distinguireis dos verdadeiros os falsos doutores pelos frutos”, isto é,
pelas suas ações. “Com efeito, nem todos os que me dizem: Senhor, Senhor, entrarão no
Reino dos Céus, mas o que fizer a vontade do meu Pai, esse entrará no Reino dos Céus.
No dia do juízo dir-me-hão muitos: Senhor, não profetizamos nós em vosso nome, não
expulsamos nós os demônios em vosso nome e em vosso nome não operamos muitos
prodígios? - E Eu lhes responderei: Retirai-vos de mim, operários da iniqüidade, porque
vos não conheço.”
Com religioso silêncio tinha escutado a multidão estes divinos ensinamentos;
porém, ao terminar, advertiu Jesus aos ouvintes de que não hasta, para salvar-se, conhecer
as leis que os conduzem ao Reino dos Céus; mas é preciso que façam delas a regra do seu
proceder, com vontade bem determinada de arrostar, para permanecerem fiéis a Deus, as
tempestades do mundo e as borrascas das paixões.
“Quem ouve as minhas palavras, clama Jesus, e as põe em prática assemelha-se ao
varão prudente que edifica a sua casa sobre a rocha. E caiu a chuva, e trasbordaram os
rios, e sopraram os ventos e deram sobre aquela casa, e a casa não desabou, porque estava
fundada sobre a rocha.
“Mas o que ouve as minhas palavras, sem as pôr por obra, assemelha-se ao
insensato que edificou a sua casa sobre a areia. E caiu a chuva, e trasbordaram os rios e
sopraram os vendavais e deram naquela casa e desabou e com grande ruína.”
Tal a conclusão do discurso do Monte. Da boca divina de Jesus, como de
manancial puríssimo, tinham brotado palavras de vida. E todos os que as tinham ouvido
ficaram mudos de admirados, porque sentiam que falava como quem tinha autoridade
soberana, e não como os escribas e fariseus.
E todos aqueles povos da Judéia, da Galiléia, da Decápole e da Fenícia, dali se
tornaram para as suas terras a contar aos compatriotas os oráculos saídos da boca do
Profeta. E os próprios doutores concordaram em reconhecer que, dos mestres mais
nomeados pela sua ciência, nenhum tinha falado palavras tão sublimes. Nem os
sacerdotes do Oriente, nem os sábios da Grécia, nem os filósofos de Roma, tinham
desvendado, como Jesus, as misteriosas leis que ligam o homem a Deus e a terra ao Céu.
E só os pontífices de Jerusalém, os escribas e os fariseus se roíam de cólera ao ver
o entusiasmo do povo e os triunfos do seu inimigo. Quando lhes chegaram aos ouvidos
os ecos do sermão do Monte, reconheceram nele uma luz mais brilhante que a do Sinai, e
perguntaram-se como chegariam a extingui-la.
CAPÍTULO V
belzebu
CAPÍTULO VI
O ressuscitado de Naim
CAPÍTULO VII.
À sua volta, encontrou Jesus as populações das margens do lago mais preocupadas
com os seus negócios do que com o Reino dos Céus. Teve o Senhor piedade daquele
povo entusiasta mas inconstante, e mais ainda dos seus apóstolos, que poderiam
descoroçoar vendo com que dificuldade ia caminhando a obra começada. A fim de os
elevar à altura do seu ofício, resolveu mostrar-lhes que, vistas as paixões dos homens e o
furor dos demônios, o Reino de Deus não se estabeleceria na terra senão lenta e
penosamente; porém que não obstante, quase invisível a princípio, terminaria por
abranger todo o universo. E para que estas verdades não indispusessem os corações a elas
mal afeitos, envolveu-as em figuras que explicava aos seus, quando eles por si mesmos
lhes não compreendiam o sentido ou alcance.
No outono, deixou pois com eles a casa de Cafarnaum para voltar às suas
pregações. Certo dia em que descansava à beira do lago, encontrou-se em breve, como de
costume, rodeado duma imensa multidão, que afluíra das cidades vizinhas. Para se fazer
ouvir mais facilmente, subiu a uma barca, frente ao povo assentado na praia. Lá na
retaguarda do auditório, desciam para o lago campos férteis, moitas de silvas, e fragas
escalvadas. Daquele espetáculo tomou Jesus ocasião para ensinar, sobre o Reino dos
Céus, verdades que os apóstolos e os discípulos deles deverão estudar pelos séculos
afora. “Ouvi, disse Jesus, esta parábola:
“Saiu o semeador a semear o seu campo. Ora, da semente que lhe voava da mão,
parte caiu em caminho trilhado, onde foi pisada pelos pés dos transeuntes e comida pelas
aves do céu. Outra parte caiu em terreno pedregoso, mal coberto por ligeira camada de
terra; para logo germinou, mas, como não tivesse raízes, estiolou-se aos primeiros ardores
do sol. A terceira parte caiu entre os espinhos, os quais cresceram e a abafaram. E o resto
enfim caiu em boa terra e frutificou com tão boa novidade, que produziu trinta, sessenta e
até cento por um. Entendei os que podeis entender.”
Deixou Jesus aos ouvintes o cuidado de interpretar a parábola, conforme o uso dos
doutores, que por vezes propunham a sua doutrina ao povo sob uma forma alegórica. Mas
posto que fosse assaz fácil compreender as verdades ocultas sob o véu daqueles símbolos,
nem os próprios apóstolos a tanto puderam chegar. Abeirando-se pois do seu Mestre,
perguntaram-lhe o que significava aquela parábola e a que fim usava daquela linguagem
enigmática para instruir o povo.
“A vós, respondeu Jesus, e não a eles, é concedido o penetrar nos mistérios ocultos
do Reino de Deus. Dá-se em abundância àquele que soube enriquecer-se, mas ao
esbanjador tira-se-lhe o pouco que lhe resta. Se falo em parábolas a este povo, é para que
veja sem perceber e ouça sem compreender, conforme ao que profetizou Isaías. E isto é
porque este povo endureceu voluntariamente o próprio coração, tapou os ouvidos e
fechou os olhos com receio de ver, de entender, de compreender, de se converter e aceitar
a salvação a que o vim convidar.
Quanto a vós, benditos os vossos olhos, porque vêem e benditos os vossos
ouvidos, porque ouvem. Em verdade vos digo; profetas houve e muitos justos que
suspiraram por ver o que vós vedes e por ouvir o que vós ouvis, e lhes não foi concedida
esta graça. A vós portanto posso explicar a parábola do semeador.
“A semente é a palavra de Deus. O divino semeador semeia-a no coração do
homem. Cai em caminho trilhado, quando um a ouve sem a compreender; para logo a
leva o demônio. Cai em terreno pedregoso quando o ouvinte a recebe a princípio com
alegria, mas não lhe dá tempo de lançar raízes: demasiado fraco para suportar a tribulação
ou resistir à perseguição que lhe suscitam, deixa de crer na palavra divina mal o atacam.
Cai no meio dos abrolhos, quando o coração que a recebe, absorvido pelos cuidados do
mundo, pelo engodo enganador das riquezas e amor dos prazeres, a sufoca e impede de
dar fruto. Enfim cai a palavra divina em boa terra, quando o ouvinte a recebe com
excelente coração, onde a conserva com cuidado para, à força de trabalho paciente, a
fazer render até cento por um.
“E uma vez lançada a semente em boa terra, pouco importa que o lavrador durma
ou vigie: a semente germina e cresce sem nisso pensarmos. Produz espontaneamente o
seu fruto, primeiro uma hastezinha de erva e logo uma espiga com muitos grãos nela
encerrados. E, já amadurecido o fruto, só resta tomar da foicinha, para fazer a ceifa..
Assim procede o divino semeador: a sua palavra frutificará nas almas de boa vontade e
produzirá uma formosa messe de santos para o Reino dos Céus.
Esta palavra fez compreender aos apóstolos, porque tinha Jesus tantos ouvintes e
tão poucos discípulos, e que dificuldades eles próprios encontrariam no meio desse
mundo mau, que tinham sido chamados a evangelizar. E a este propósito, acabou de os
instruir uma segunda parábola, também tomada dos campos de trigo que tinham à vista.
Dirigindo-se à multidão, continuou Jesus a falar-lhe por enigmas, os quais estavam ao
alcance dos singelos de coração, mas escapavam às inteligências viciadas de
preconceitos. “Semeara um homem, disse Jesus, bom grão no seu campo. Mas de noite,
enquanto a gente dormia, vem um seu inimigo semear-lhe joio entre os grãos dc trigo, e
foi-se embora. Nada se notou quando a erva nasceu, mas quando da hastezinha saiu a
espiga de trigo, então apareceu também o joio. Espantados, foram-se os servos do pai de
família a ter com ele e disseram-lhe: “Senhor, e não semeastes vós boa semente no vosso
campo? donde lhe vem agora aquele joio ? - Foi o meu inimigo, respondeu ele, quem
praticou este malefício. - Quereis vós, replicaram eles, que vamos arrancar o joio? Não,
respondeu o Senhor, porque ao arrancar o joio podereis também arrancar o trigo. Deixai-
os crescer ambos até à ceifa; e então direi aos ceifeiros: Colhei primeiro o joio e enfeixai-
o e lançai-o ao fogo; depois recolhei o trigo e guardai-o nos meus celeiros.
Por transparente que pareça, não foi a alegoria compreendida pelos apóstolos.
Porém, uma vez que se viram a sós com Jesus, pediram-lhe que lha explicasse. E o
Senhor condescendendo com a fraqueza deles, revelou-lhes em poucas palavras a história
do Reino de Deus, desde a sua fundação na terra até à sua consumação no Céu.
“O que semeia a boa semente, disse, é o Filho do homem. O campo é o mundo. O
trigo são os filhos do Reino; o joio são os sequazes do maligno espírito. O inimigo que
semeia o joio é satanás. A ceifa há de se fazer no fim do mundo; os ceifeiros serão os
anjos. E assim como se enfeixa o joio para o lançar ao fogo, assim no fim dos séculos
enviará o Filho do homem aos seus anjos que tirarão do seu Reino todos os semeadores
de escândalos e todos os operários da iniqüidade para os mergulhar na fornalha de fogo,
onde haverá lamentos e ranger de dentes. E quanto aos justos, brilharão como sóis no
Reino do Pai celeste. Abri os ouvidos da alma, e compreendei.”
Desta vez a revelação era perfeita. Tinham os apóstolos à vista a Igreja da terra,
militante neste mundo, e triunfante lá no Céu. Porém quanta mais luz Jesus difundia pela
sua obra, maiores se deixavam ver os obstáculos que deviam opor-se ao seu
estabelecimento. As paixões dos homens iam sufocar uma grande parte do bom grão
espalhado no mundo pelos semeadores da divina palavra, e eis que o demônio se estava já
preparando para semear o joio no meio dos grãos, bastante raros, dos quais se podiam
esperar frutos. Em tais condições, chegaria o Reino de Deus a extender-se algum dia por
esse vastíssimo campo do mundo?
Mas afirmou-o Jesus em duas parábolas que propôs ao povo mais aos apóstolos:
“O Reino dos Céus, disse, é semelhante a um grãozinho de mostarda que um homem
semeou na sua horta. Esta semente, pequeníssima entre todas as sementes, cresce a tal
ponto que em breve vence em tamanho todos os arbustos, torna-se uma grande árvore e
termina por extender de tal modo os seus ramos que vem repousar-se nela as aves do ar.”
Nenhuma imagem podia dar uma idéia mais compreensiva da Igreja. Mas, como
explicar os seus misteriosos progressos em meio dum mundo rebelde, entregue às paixões
e ao demônio? “O Reino dos Céus, responde Jesus, é semelhante ao fermento que uma
qualquer mulher esconde em três medidas de farinha, e cuja virtude faz fermentar toda a
massa.” Uma virtude misteriosa, ligada à divina palavra, fará reviver a humanidade,
deitada na tumba dos seus vícios, e transformará em filhos de Deus esses filhos
degenerados do velho Adão.
Depois destas instruções sobre o Reino de Deus, despediu Jesus a multidão, e
voltou para casa com os apóstolos. Expusera ao povo a sua doutrina sob o véu da alegoria
para não atacar de frente os preconceitos dos seus compatriotas; mas aos seus familiares
revelava a verdade toda inteira, para que em tempo oportuno pudessem levar a toda a
parte a luz. “Não se acende uma lâmpada, dizia o Salvador, para ser colocada debaixo do
alqueire; mas para ser posta no castiçal, a fim de que alumie a todos os que entram em
casa. O que vos digo como que ao ouvido, deveis repeti-lo em público, e os mistérios por
agora ocultos, serão por vós revelados e expostos um dia em plena luz.”
E a fim de os resolver a consagrarem-se de alma e coração à fundação do Reino,
esforçou-se por lhes demonstrar com duas comparações a sua excelência. “O Reino de
Deus, disse, pode comparar-se a um tesouro escondido num campo. O homem que o
encontra guarda em segredo o seu achado. Cheio de gozo, vai vender tudo o que possui,
e compra o campo onde está o tesouro. Pode-se comparar também a uma pedra preciosa
que um comerciante descobre por acaso. Corre logo a sua casa, vende tudo o que tem e
volta a comprar aquela pedra preciosa. “Assim devem os homens, à custa dos maiores
sacrifícios, entrar no Reino de Deus. E o apóstolo empenhará todo o seu zelo para lhe
procurar aquele tesouro escondido.
Neste mundo, haverá sempre dentro do Reino de Deus bons de mistura com maus;
mas isto não deve paralisar os pregadores do Evangelho. “A rede lançada ao mar colhe
em suas malhas toda a sorte de peixes. Ora que fazem os pescadores? Quando cheia a
rede, arrastam-na para fora da água, e logo, sentados na praia, fazem a seleção dos peixes;
recolhem os bons nas canastras, e deitam fora os maus. Assim passará no fim dos séculos:
os anjos separarão os justos dos pecadores, e a estes últimos lançá-los-hão na fornalha do
fogo, onde haverá lamentos e ranger de dentes.”
Tendo Jesus acabado estas parábolas sobre a fundação, crescimento e consumação
do seu Reino, disse aos apóstolos: “Tendes entendido a minha doutrina?” E como
respondessem afirmativamente, acrescentou: “Instruídos como estais nos mistérios do
Reino, sereis semelhantes ao pai de família que, nas suas provisões antigas e novas,
encontra alimento apropriado ao de que necessitam os seus filhos.” Deste modo
preparava o bom Mestre aos seus apóstolos para as missões que em breve lhes ia confiar.
CAPÍTULO VIII
O divino Taumaturgo
Depois de ter instruído os apóstolos nas dificuldades da sua missão, quis Jesus
animá-los com provar-lhes, por meio duma serie de prodígios extraordinários, que
nenhum poder da terra seria capaz de impedir aos seus enviados o levarem até ao fim a
sua obra de salvação. Uma tarde, depois de ter despedido o povo, disse aos doze:
“Passemos à outra margem do lago.” Seguiram-no eles e entraram numa barca; rodearam-
na para logo outras barquitas em que iam numerosos discípulos. Pouco a pouco
envolveram as trevas o lago; e enquanto as embarcações deslizavam suavemente pelo
dorso das águas, Jesus, rendido de cansaço, adormecia com sono profundo.
De súbito, desencadeou-se no lago uma violenta tempestade. Os ventos sopravam
tão furiosos que as vagas, atirando-se contra a barca, ameaçavam engoli-la a cada
instante. E Jesus dormia tranqüilo com a cabeça descansada num travesseiro. Cuidando-
se já nas últimas, despertam-no os apóstolos a toda a pressa gritando-lhe: “Mestre, salvai-
nos, que vamos a pique!” Porém nem os seus gritos de horror nem os mugidos da
tempestade lhe alteravam a serenidade imperturbável. “Homens de pouca fé, disse ele ao
despertar, porque temeis?” E levantando-se, estendeu com majestade o braço sobre as
ondas: “Cala-te, disse ao mar, e vós, ó ventos, amainai-vos.” E os ventos deixaram de
soprar, as vagas apaziguaram-se e em toda a extensão do lago reinou grande calma.
Estupefatos e aterrados, diziam uns para os outros os apóstolos, discípulos e marinheiros:
“Que homem é este, pois até o mar e os ventos lhe obedecem?”
Mais tarde hão de se lembrar da lição os apóstolos e seus sucessores. Já não
vacilarão, quando sobrevierem as tempestades; mas cheios de confiança, exclamarão:
“Nós somos os servos d'Aquele a quem o mar e os ventos obedecem.”
Jesus e os seus aportaram à margem oriental do lago, ao país dos Gerasenos. Esta
região, habitada quase na sua totalidade por colonos gregos ou romanos, chamava-se
Decápole, por causa das dez cidades importantes nela disseminadas. Passava o Salvador
pelo meio daquele povo pagão a fim de o preparar de longe para entrar no Reino de Deus.
Mal tinha aportado quando dois endemoninhados, que eram o terror de toda aquela
terra, saíram dos túmulos onde se abrigavam e lhe vieram ao encontro,
rosnando. Um dos possessos, mais feroz que o outro companheiro, sofria há bom número
de anos a escravidão do demônio. Sem vestido e sem morada, andava errando dia e
noite pelas cavernas e montes, dando urros e despedaçando-se, às pedradas, braços e
peito. Se às vezes o conseguiam prender, rompia as cadeias que lhe ligavam as mãos e
partia os grilhões dos pés.
Mal que ao longe avistou Jesus, precipitou-se para ele aquele infeliz a quem
ninguém podia domar e deitou-se-lhe aos pés. “Sai deste homem, espírito imundo”,
ordenou Jesus. A esta ordem, começou o demônio a tremer e a pedir misericórdia ao
Salvador. Dava gritos lastimosos como se o arrastassem de sua casa para um calabouço
infecto. “Jesus, Filho de Deus Altíssimo, dizia ele, a que me vens tu aqui atacar? Para
que atormentar-me assim antes do fim do meu reino? Eu te adjuro pelo nome do Deus
vivo, que cesses de me atormentar.
- Que nome tens? perguntou-lhe Jesus.
- Chamo-me Legião, pois estamos aqui em grande número. Com efeito, uma
legião inteira de demônios estava de posse daquele homem. E de novo se puseram a rogar
ao Salvador que os não submergisse nos abismos, mas que os deixasse habitar naquele
país, que era o seu refúgio.
Ora ali por um monte próximo ia passando uma grande vara de cevados. Quando
menos eram uns dois mil. Pertenciam aos habitantes de Gerasa, os quais, pagãos como
eram, não tinham escrúpulos no uso da carne de porco, apesar das proibições da lei
mosaica. Forçados a deixar o corpo do possesso, pediram os maus espíritos que ao menos
se lhes permitisse entrar no corpo daqueles animais. Obtida a licença, saíram do possesso
e entraram nos cevados. E logo, em carreira desabalada, se precipitou do monte para o
lago a vara, e lá se afogou. Movidos pelos seus perversos instintos, disseram lá consigo
os demônios, que destruindo a fortuna dos Gerasenos, dariam aso no país a preconceitos
contra Jesus e a sua missão salvadora.
E de fato, transidos de terror, fugiram os pegureiros da vara e foram contar à gente
da cidade e do campo os fatos que acabavam de presenciar. E para logo acudiu a multidão
a informar-se daqueles estranhos sucessos. Chegados onde estava Jesus, ficaram os
habitantes de Gerasa mudos de surpresa, quando viram sentado aos pés do Salvador o
temível energúmeno, são de corpo e alma. Explicaram-lhes como uma legião de
demônios, expulsos do corpo daquele homem, se tinham arrojado sobre os porcos e os
haviam precipitado no lago. Os Gerasenos maravilharam-se do poder do taumaturgo,
mas sentindo mais a perda das suas varas de suínos do que a dos bens espirituais por
Jesus dispensados, rogaram-lhe que se retirasse das suas terras.
Ao ver as disposições daquele povo pagão, ia Jesus a embarcar-se, quando veio o
possesso agradecido pedir-lhe licença para o seguir; outras intenções porém tinha o
divino Mestre sobre aquele homem. “Em vez de me acompanhar, disse-lhe Jesus, vai
para tua casa e conta aos teus parentes e compatriotas o que o Senhor, em sua
misericórdia, operou em ti.” E o mancebo obedeceu. Tornou-se o apóstolo do seu país,
percorreu a Decápole e publicou por toda a parte o prodígio feito em seu favor. E ao
ouvirem a narração de tal maravilha, conceberam aqueles povos um ardente desejo de ver
e ouvir ao incomparável profeta da Galiléia. Deste modo trabalhava o Salvador de
antemão aquela terra ainda inculta e preparava-a para receber a semente que em breve lhe
iria lançar.
Ao deixar Gerasa, a barca em que Jesus se meteu, dirigiu-se para a margem
ocidental do lago. Lá estava já à espera do Mestre uma grande multidão, que o recebeu
com grandes sinais de alegria ao saber como tinha acalmado a tempestade, e expulsado
do corpo dum energúmeno uma legião inteira de demônios. Porém queria Deus fosse
aquela excursão semeada de prodígios cada qual mais brilhante. Enquanto o Salvador
conversava com o povo, chega a toda a pressa um certo Jairo, chefe duma das sinagogas
de Cafarnaum, e cai, soluçando, aos pés de Jesus: “Senhor, disse, não tenho mais que uma
filha, criança de doze anos, e está a morrer. Vinde, Senhor, impor-lhe as mãos, vinde dar-
lhe a vida.” Não podia o bom Mestre resistir às suplicas daquele homem de fé. Levantou-
se incontinenti e seguiu-o em companhia dos apóstolos. Por curiosidade de ver o que ia
passar, fez-lhe a turba escolta até a casa do chefe da sinagoga.
Mas eis que durante o trajeto certa mulher que havia doze anos vinha sofrendo de
fluxo de sangue avistou ao Salvador no meio daquele numeroso cortejo. Consultara
numerosos médicos, gastara a fortuna em remédios, e longe de experimentar qualquer
alívio, agravava-se o seu estado de dia para dia. À vista do profeta, veio-lhe de súbito o
pensamento de que, se conseguisse tocar-lhe no vestido, ficaria curada. Sem perda de
tempo enfia-se pela multidão, aproxima-se do Salvador e toca-lhe ao de leve com a mão
na orla da túnica. E naquele mesmo instante parou o fluxo de sangue.
Estava-se a pobre mulher dando os parabéns da sua piedosa astúcia, quando Jesus,
voltando-se para a multidão que o seguia em pinha, perguntou em tom severo quem lhe
tocara no vestido. E como todos dessem suas escusas, Pedro e os mais discípulos
espantaram-se de tal pergunta.
“Mestre, disseram eles, então a gente aperta-vos e rodeia-vos de todos os lados e
perguntais quem vos tocou?
- Alguém, repetiu Jesus, me tocou de propósito, pois senti que de mim saía uma
certa virtude.”
E ao dizer estas palavras, iam os seus olhos perpassando pelos que o rodeavam,
como para descobrir o culpado. A pobre mulher, toda temerosa, vendo que o Salvador
sabia o que sucedera, lançou-se-lhe aos pés e confessou perante todo o povo, por que
motivo lhe quisera tocar o vestido, e como, ao tocá-lo, se encontrara subitamente curada.
Longe de lhe repreender o atrevimento, disse-lhe com brandura o bom Mestre:
“Tem confiança, filha, a tua fé te salvou. Vai em paz; e não mais padecerás da tua
moléstia.”
Entrementes iam, chegando a casa de Jairo, quando muitos dos seus servos lhe
vêm ao encontro e o avisam de que a filha tinha morrido e que por tanto já nada poderia
fazer por ela o profeta. Ao ouvir tal, entrou o pai num verdadeiro desespero, mas Jesus
disse-lhe: “Não temas, basta só teres fé, e a tua filha será salva.”
Ditas estas palavras, entrou na casa, mas sem permitir que alguém o seguisse,
senão os seus três apóstolos privilegiados, Pedro, Tiago e João. Lá dentro encontraram
toda a família em luto, E já os flautistas, avisados da morte, estavam tocando árias
plangentes; as carpideiras atroavam os ares com as costumadas lamúrias; e os amigos e
vizinhos, acudindo em tropel, vinham apresentar os seus pêsames aos pais da defunta,
quando, ao passar pelo meio deles, lhes disse Jesus em tom de repreensão: “Para que
esses gritos e lamentações? Saí daqui, porque esta pequena não esta morta; está
dormindo.”
Pôs-se aquela gente a mofar dele, pois sabiam todos que a criança dera em verdade
o último suspiro. Jesus obrigou-os contudo a deixarem a casa; e tomando logo consigo o
pai e a mãe e mais aos três discípulos, entrou na câmara onde jazia o cadáver. Tocou na
mão gelada da defunta e em voz alta pronunciou em ciríaco estas duas palavras: “Talita
cumi,” que significam: “Pequena, levanta-te.”
E para logo voltou a alma da criança a animar-lhe o corpo. Ergueu-se em pé e
começou a andar. Por ordem de Jesus, apresentaram-lhe alimento e pôs-se a comer. Mal
podiam os pais crer o que viam, e já iam a desafogar em vozes de admiração, quando
Jesus lhes impôs o mais absoluto silêncio sobre o que ali acabava de suceder. Mas em
breve se espalhou por toda aquela terra a fama de tal ressurreição.
Quando Jesus saiu da casa de Jairo, seguiram-no dois cegos, gritando: “Jesus, filho
de David, tende piedade de nós.” Continuou ele o seu caminho até a pousada próxima,
porém os cegos não cessaram de repetir as suas súplicas. Disse-lhe então:
“Credes que vos posso dar a vista?
- Assim o cremos firmemente, responderam eles.
- “Então faça-se conforme a vossa fé,” replicou Jesus, tocando-lhes nos olhos.
E no mesmo instante abriram-se os olhos dos dois cegos. Iam já contar a todos
aquele novo prodígio; mas o Salvador mandou-lhes severamente que guardassem segredo
sobre o autor da sua cura, o que não obstou a que os dois cegos logo publicassem, para
glória do seu benfeitor, o milagre com que tinham sido amerciados.
Ao verem a omnipotência de Jesus, reconheciam-no os Galileus como o Messias
prometido a seus pais; porém, se o aclamavam com entusiasmo, estavam também por
demais dispostos a interpretar-lhe o prodigioso poder em benefício dos seus próprios
preconceitos. Senhor absoluto como é da natureza, pensavam eles, Jesus será o rei, o
libertador de Israel. Quem manda nas doenças, nos demônios do inferno, nas
tempestades do mar e na própria morte, basta-lhe só querer para livrar a nação da tirania
dos Romanos. Daqui as suas ovações triunfais ao Filho de David, quando Jesus operava
um novo prodígio. Por este motivo é que Jesus, posto que multiplicasse os milagres a fim
de confirmar a sua missão e doutrina, evitava por vezes que se divulgassem, sobretudo
em concursos numerosos, para não sobreexcitar os patriotas exaltados. Sabia que
estavam dispostos a aproveitar-se de qualquer ocasião para proclamá-lo rei dos Judeus,
mau grado de Herodes e dos Romanos, o que lhe comprometeria o ministério evangélico
e desencadearia contra ele, antes da hora por seu Pai marcada, as cóleras dos príncipes e
pontífices de Israel.
CAPÍTULO IX
Pouco tempo tinha Jesus para viver na terra, e queria contudo, antes de deixá-la,
que o Reino de Deus fosse pregado a todos os filhos de Israel. Na entrada pois da
primavera, convocou os doze apóstolos com intenção de os associar diretamente aos seus
trabalhos. Formados pelas suas instruções e exemplos e confirmados na fé pelos seus
numerosos milagres, deviam ir dois a dois pelas cidades e aldeias repetir aos povos as
palavras de salvação saídas da boca do Mestre e a operar, como ele, toda a sorte de
prodígios. Para este fim conferiu-lhes o poder de expulsar os espíritos impuros e de curar
todas as doenças e enfermidades.
Antes da partida, traçou-lhes o itinerário que deviam seguir e o modo como
haviam de proceder conforme o bom ou mau acolhimento por parte das populações. E ele
seria sempre e em toda a parte o seu guia e sustentáculo.
“Não vades, disse, para terras de Gentios e não entreis nas cidades dos
Samaritanos, mas buscai antes as ovelhas tresmalhadas da casa de Israel. Ide e ensinai-as,
dizendo: Aproxima-se o Reino de Deus. E depois curai os enfermos, ressuscitai os
mortos, purificai os leprosos e expulsai os demônios.
“Como tudo recebeis de graça, de graça o dai também. Não tenhais em vosso
poder ouro ou prata, nem dinheiro nos cintos, nem alforge de viagem, nem duas túnicas,
nem sandálias, nem cajado, porque digno é o trabalhador do seu salário.
“Logo que entrardes em qualquer cidade ou aldeia, perguntai quem é nela o
homem mais honrado e hospedai-vos em sua casa até ao dia da vossa partida. E ao entrar-
lhe em casa, saudai-a, dizendo: Paz a esta casa. Se a casa for digna, descerá sobre ela a
vossa paz; e senão, a vossa paz voltará para vós.
“Mas se ninguém vos receber nem ouvir a vossa palavra, saí de tal casa ou cidade,
sacudindo o pó dos vossos pés contra aqueles infiéis. Em verdade vos digo que no dia do
juízo Sodoma e Gomorra serão tratadas com menos rigor do que aquela cidade.”
Ao pronunciar estas palavras estava o Filho de Deus vendo desfilar diante dos seus
olhos, não só as cidades de Israel, às quais enviava os seus apóstolos, mas todas as
cidades do mundo, que os seus sucessores não cessariam de percorrer até ao fim dos
séculos, e as lutas que teriam de travar, e as perseguições de que seriam vítimas.
“Olhai que vos envio, disse-lhes ele, como ovelhas para o meio dos lobos. Sede
portanto prudentes como serpentes e simples como pombas.
«Mas guardai-vos dos homens, porque hão vos de entregar aos tribunais e açoitar
nas sinagogas; e hão de vos levar, pelo ódio que me têm, perante os governadores e reis, e
tereis de dar testemunho de mim diante deles e dos Gentios.
“Quando porém vos entregarem aos juízes, não penseis de antemão o que haveis
de falar ou dizer. O que haveis de dizer, ser-vos-há sugerido no próprio momento, pois
não sereis vós os que falareis, mas o Espírito do Pai celeste falará em vós.
“O irmão entregará seu irmão à morte e o pai ao próprio filho; os filhos levantar-
se-hão contra os seus pais e matá-los-hão. Sereis por todos odiados por amor do meu
nome; mas quem perseverar até ao fim, será salvo!
“Quando vos perseguirem numa cidade, fugi para outra. Digo-vos na verdade que
não tereis evangelizado todas as cidades de Israel, e já o Filho do homem terá vindo sobre
os perseguidores.”
Esta profecia, vê-la-hão os apóstolos cumprida, ao clarão do incêndio que ha de
devorar Jerusalém, e dela se lembrarão os seus sucessores, quando, no último dia do
mundo, descer do Céu o Salvador para julgar a todos os homens. Mas neste meio tempo,
deviam, à imitação de Cristo, contar com a contradição.
“O discípulo não é mais que o Mestre nem o servo mais que o seu Senhor. Basta-
lhe ao servo ser tratado como o seu Senhor, e ao discípulo como o seu mestre. Se ao pai
de família chamaram belzebu, que nomes não chamarão eles aos servos dele?
“Não os temais nem oculteis a verdade. Nada há encoberto que se não venha a
revelar, nem segredo que se não venha a descobrir. O que vos digo nas trevas, dizei-o vós
em plena luz, e o que vos segredo ao ouvido, pregai-o sobre os telhados.
“E não temais os que podem matar o corpo, mas não podem matar a alma: temei
antes Aquele que pode lançar a alma e o corpo na geena.
“De resto, não é verdade que se vendem dois pardais por uma bagatela? E ainda
assim nem um só deles cai no chão sem licença do Pai celeste. Ora pois! Os cabelos da
vossa cabeça todos estão contados. Portanto hão receeis: sempre valeis mais que mil
pássaros.
“Quem me confessar diante dos homens, eu também o confessarei diante do meu
Pai que está nos Céus. E quem me renegar diante dos homens, também eu renegarei dele
diante do meu Pai que está nos Céus.
“E depois, não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a
espada. Vim separar um homem do seu pai, a filha da sua mãe, a nora da sua sogra. O
homem encontrar-se-ha com inimigos até entre os seus domésticos.
“Portanto quem amar seu pai ou mãe mais do que a mim, não é digno de mim. E
quem não está pronto para tomar a sua cruz e seguir-me, não é digno de mim. Quem
procurar a vida presente, perderá a eterna; e quem perder a vida por amor de mim,
encontrá-la-há.
“Ide pois: quem vos recebe, a mim recebe, e quem me recebe, recebe Aquele que
me enviou! Quem receber a um profeta, como profeta, receberá a recompensa do profeta;
quem receber um justo, como justo, recebe a recompensa do justo; e quem der a um dos
meus últimos discípulos um só copo, que seja, d'água fresca, para beber, em verdade vos
digo que não há de perder a sua recompensa.”
Estas calorosas exortações acabaram por triunfar da timidez natural aos apóstolos.
No caminho encontrariam sem dúvida inimigos; mas Aquele que os enviava a combater
pela sua glória saberia bem defendê-los. Não tinham esquecido que ainda na véspera
amainara a tempestade do lago, expulsara uma legião inteira de maus espíritos e
ressuscitara a um morto. Confiados pois na proteção do Mestre, partiram a anunciar por
toda a parte, nos burgos e aldeias, o Reino de Deus, operando numerosas curas. A
exemplo de Jesus, pregavam a penitência, livravam os energúmenos, ungiam os enfermos
e restituíam-lhes a saúde. E por onde quer que passavam, ficavam todos exaltando ao
profeta de Nazaré, em cujo nome se faziam todos aqueles prodígios.
Tendo ficado só, ia Jesus continuando com as suas instruções aos ribeirinhos do
lago, quando se divulgou pela Judéia e Galiléia a notícia dum sucesso trágico. Herodes
acabava de mandar decapitar a João-Batista no cárcere. Os próprios discípulos do santo
precursor foram os que, depois de lhe terem sepultado o corpo, vieram contar ao Salvador
os pormenores da sua morte.
Não podia Herodes deixar de venerar o seu prisioneiro, mas temia-lhe a santa
liberdade da linguagem. Por vezes, a fim de se ver livre das suas censuras, vinha-lhe
vontade de o entregar aos verdugos. Mas recuava sempre diante dos gritos da própria
consciência e do receio dum levantamento popular, quando a sua cúmplice, a infame
Herodíades, por meio dum laço arteiramente armado, conseguiu vencer-lhe as hesitações.
No dia aniversário do seu próprio nascimento, fez o rei um grande festim para o
qual convidou aos seus cortesãos, oficiais militares e senhores principais da Galiléia. Por
sua vez, deu também Herodíades um banquete às suas damas de honor num aposento
vizinho ao do Tetrarca. Conforme aos costumes dos Gregos, adotados pelos Romanos,
devia o festim terminar com uma dança mímica, a qual representasse uma cena tirada de
qualquer drama. Deste costume se aproveitou Herodíades para urdir a sua criminosa
trama.
Logo que todas as cabeças estiveram bem quentes com o vinho, apareceu de
improviso na sala do festim, Salomé, que então contava uns dezoito anos, digna filha de
tal progenitora. Ia pomposamente engalanada, porque a mãe nada esquecera do que
pudesse aprimorar-lhe os encantos para enfeitiçar o coração do voluptuoso Herodes.
A moça, sem respeito e sem pudor, não corou de oferecer-se em espetáculo como
uma vil cortesã, e de executar uma daquelas danças lascivas, que Roma aplaudia, mas de
que se dava por ofendida a gravidade oriental. Os olhos de todos os convivas seguiam
fixos a dançarina e Herodes extasiava-se a vista do seu donaire e beleza.
Terminada a cena, saudou Salomé aos espectadores; e toda a sala foi um concerto
de aplausos; Herodes, a quem a paixão estonteara, pôs-se então a falar como um
insensato:
“Filha, pede-me tudo o que quiseres, que eu to darei. Sim, disse ele, eu to juro,
tudo o que quiseres, seja muito embora a metade do meu reino!”
Salomé inclinou-se e saiu para ir consultar a mãe. E tendo-lhe contado o que o
monarca lhe acabava de dizer:
“Que vou eu pedir? disse-lhe ela. - Pede-lhe, respondeu a execrável mulher, a
cabeça de João-Batista.”
E mandou-a voltar logo a sala do festim, a apresentar o pedido ao rei, a fim de lhe
não dar tempo de refletir. Obedeceu a moça e apareceu de novo diante dos convivas com
um prato na mão: “Quero, disse ela aproximando-se de Herodes, que me deis, neste prato,
a cabeça de João Batista.”
Ficou o rei por extremo triste com tal pedido; mas impôs silêncio à própria
consciência, dizendo-lhe que estava ligado pelo juramento e que não podia, de resto,
diante dos convivas faltar à palavra dada. Ordenou pois a um dos seus guardas que fosse
cortar a cabeça de João Batista e lha trouxesse no prato que a filha tinha na mão.
O guarda fez saber ao santo precursor a ordem que recebera. Sem dizer palavra,
inclinou João a cabeça sobre o cepo. Cortou-lha o soldado com um golpe de espada,
colocou-a toda ensangüentada no prato e levou-a ao rei Herodes, que a entregou à
dançarina.
O rei e os convivas continuaram a beber. Salomé, ostentando o seu troféu,
apresentou-se diante da fera Herodíades. Um sorriso infernal errou um momento pelos
lábios daquela fúria; depois, como se a cólera lhe perturbara o cérebro com a lembrança
das palavras do santo, tirou do alfinete de oiro que lhe segurava a cabeleira, tomou nas
mãos a cabeça ensangüentada e atravessou-lhe a língua. Não queria sequer que o santo
mártir fosse sepultado, mas os discípulos de João acudiram a toda a pressa, recolheram-
lhe piedosos o cadáver, e depositaram-no em um sepulcro.
Assim morreu João-Batista no silêncio duma prisão, às mãos do carrasco e por
ordem dum rei libertino. Tendo sido com as suas pregações o precursor do divino Mestre,
profetizou ainda com o seu martírio a sorte que os cúmplices de satanás reservavam para
o Filho de Deus.
Quanto a Herodes, esteve a ponto de ordenar, após a morte de João, pesquisas
contra Jesus. O espectro da sua vítima perturbava-lhe os dias e as noites, a ponto de se
persuadir que João, ressuscitado, aparecia sob outra forma. Ora certo dia em que lhe
contavam as virtudes e prodígios de Jesus de Nazaré exclamou Herodes, todo trêmulo: “É
ele, é João-Batista saído da sepultura!” E como lhe respondessem os familiares que era
antes Elias ou qualquer outro dos antigos profetas, replicou: “Se não é esse João-Batista a
quem mandei tirar a cabeça, preciso é que se saiba quem é esse profeta do qual tão
estranhas coisas se contam.” E o sombrio tirano desejava vivamente que lhe facilitassem
um encontro com o Salvador; mas Jesus, que sabia que tudo era para recear daquele rei
hipócrita e cruel, resolveu deixar por algum tempo o território da Galiléia.
LIVRO QUINTO
51 A outra Betsaida, pátria de Pedro e dos filhos de Zebedeu, estava na margem ocidental do lago.
E milhares de patriotas andavam à espera do momento em que lhe pusessem a coroa na
cabeça. Para se esquivar àqueles exaltados, como para evitar as ciladas dos seus inimigos,
é que Jesus fugia para o deserto.
Mas as multidões já não podiam passar sem o grande taumaturgo. Pela direção
que a barca tomara, adivinharam o lugar onde Jesus se deteria. Em breve, milhares de
pessoas, habitantes do país e peregrinos que se dirigiam para Jerusalém, foram costeando
o lago e encheram os plainos de Betsaida, de modo que ao pôr os pés em terra, avistaram
o Salvador e os apóstolos diante de si uma inumerável multidão que os estava esperando.
O bom Mestre teve piedade daquelas almas, desamparadas como ovelhas sem pastor. Foi
percorrendo os diferentes grupos, curou os enfermos e falou por largo tempo do Reino de
Deus com tal encanto e unção que os ouvintes, arrebatados, não notaram que já o sol
começava a cair por detrás das montanhas vizinhas.
Observaram os apóstolos a Jesus que era mais que tempo de despedir o povo.
“Estamos aqui num lugar deserto, disseram-lhe eles: mandai-lhes que vão aos burgos e
aldeias próximas a prover-se de mantimentos.
- Não é preciso, respondeu ele, dai-lhes vós mesmos o sustento de que necessitam.
- Mestre, observou Filipe, embora empreguemos duzentos denários em pão, mal
chegará isso para um quase nada a cada pessoa.
- E quantos pães tendes?
- Mestre, respondeu André que vinha de percorrer as fileiras da gente, vi ali um
rapaz com cinco pães de cevada e dois peixes. Mas isto que é para tanto povo?
- Não importa, trazei-mos cá e mandai sentar essa gente por grupos de cinqüenta e
cem pessoas.”
Cinco mil homens, não contando mulheres e crianças, se assentaram sobre o tapete
de verdura. Levantando então os olhos ao céu, abençoou Jesus os cinco pães e dois
peixes, partiu-os em pedaços, e deu-os aos discípulos para os distribuírem pelos
diferentes grupos. E tanto entre suas mãos se multiplicaram os pães e peixes que
comeram todos e ficaram satisfeitos. Terminada a refeição, disse
Jesus aos Apóstolos: “Recolhei logo os pedaços que sobraram, para que não se percam.”
E com aqueles pedaços encheram-se doze alcofas, enquanto um grito, saído de todas as
bocas, aclamava ao libertador de Israel. “É ele, bradavam de todos os lados, é o grande
profeta que Deus ha de enviar ao mundo.”
Para certo número de patriotas era este o grito precursor duma revolução.
Persuadidos de que Jesus, Messias como era, podia e devia levantar a Israel dos seus
abatimentos, tiveram para si que para lhe oferecer o cetro e a coroa nunca se lhes
depararia ocasião mais esplêndida. Ao cair da noite apoderar-se-iam do profeta e, de bom
ou mau grado seu, forçá-lo-iam a aceitar a realeza. Ali estava já todo um exército prestes
a sustentar-lhe a causa, que era a da pátria.
Mas o divino Mestre lia-lhes os pensamentos que revolviam no íntimo dos
corações. E resolveu desarmar uma tentativa de sedição que não teria deixado de armar
contra ele os Romanos e tetrarcas. E como os seus apóstolos, imbuídos como estavam
dos preconceitos nacionais, se teriam por certo associado aos que o quisessem fazer rei,
obrigou-os a reembarcarem-se para a margem ocidental, enquanto ele ficava despedindo
o povo. De feito, subiram para a barca onde tinham vindo e puseram-se ao largo.
E ele, depois de despachar a multidão, retirou-se a uma colina a orar no silêncio da
solidão. A massa dos assistentes escoou-se pouco a pouco; mas os conspiradores
deixaram-se ficar no deserto, bem resolvidos a não deixar escapar o profeta.
Durante aquele tempo, iam os apóstolos vogando em águas bonançosas para
Cafarnaum; mas eis que de súbito se levanta rijo pé de vento a soprar violentamente, e
tiveram de lutar à força de remos contra a fúria das ondas. E a barca, bamboleada pelas
vagas, avançava tão de vagar que em seis horas mal tinham feito vinte e cinco a trinta
estádios. Bem pesar sentiam por não ter consigo ao Mestre; mas, à hora da quarta vigília,
divisaram um como espectro, que avançava a largos passos por sobre as águas e até dava
mostras de querer passar-lhes à frente. Era Jesus que os vinha socorrer no momento do
perigo. Posto que o reconhecessem, ficaram tão aterrados que o houveram por um
fantasma e soltaram gritos de terror. Disse-lhes pois Jesus:
“Não temais, tende confiança, que sou eu.
- Se sois vós, Senhor, clamou Pedro todo fora de si, mandai-me ir ter convosco,
caminhando, como Vós, sobre as ondas.
- Vem! disse-lhe Jesus.”
Desceu Pedro da barca e pôs confiado os pés sobre as águas, mas de repente uma
rajada de vento levantou as vagas em torno dele e encheu-o de medo. Falhou na coragem
e no mesmo ponto sentiu que se começava a afundar nas ondas. Então extendendo os
braços para Jesus deu um grito angustiado: “Senhor, salvai-me!” Tomou Jesus da mão
assustado apóstolo: “Homem de pouca fé, disse, porque duvidaste ?”
A rogo dos discípulos, subiu o Salvador para a barca e para logo cessou o vento.
Deitaram-se-lhe Pedro e os mais companheiros aos pés, dizendo: “Vós sois
verdadeiramente o Filho de Deus.” Sustentados com milagroso pão horas havia, mas
obcecados por suas vãs esperanças, não tinham visto nele mais que um rei da terra. Foi-
lhes preciso esta aparição celeste, em meio duma noite angustiosa, para reconhecerem o
Filho de Deus.
Vogando tranqüila pelo lago, em breve aportou a barca, no território de Genesar,
ao ponto da costa que Jesus indicara. De lá seguiu pelo litoral até Cafarnaum,
atravessando cidades e aldeias e curando, só com o contato da sua túnica, todos os
doentes que lhe apresentaram.
Contudo os conspiradores, deixados ao norte do lago, estavam esperando que
Jesus descesse do monte para levar a cabo a conjuração. Ao raiar do dia, qual não foi o
seu desengano ao verificarem que o profeta desaparecera. Postados na praia perguntavam
uns aos outros como explicar aquele mistério, pois os apóstolos tinham ido sem o seu
Mestre e na única barca, fora da qual não se encontrava outra na costa. Enquanto estavam
deliberando sobre a resolução a tomar, vieram as embarcações de Tiberíades deparar-lhes
um meio de ir para Cafarnaum, onde esperavam encontrar o fugitivo. Encontraram-no,
com efeito, na sinagoga, no meio duma numerosa assembléia e contaram-lhe como o
andavam procurando desde manhã, depois que deram por sua falta no deserto. “Mestre,
acrescentaram eles, de que maneira viestes para aqui ?”
Sabendo Jesus o fim com que aqueles homens o buscavam, resolveu-se a atacar-
lhes de frente as idéias terrestres, ainda mesmo com perigo de os desligar da sua própria
pessoa. Havia chegado o tempo de revelar claramente aos filhos de Israel que a missão do
Messias consistia não em procurar aos Judeus vantagens temporais, mas em dar ao
mundo a vida eterna. E em vez de lhes explicar por que via misteriosa tinha chegado a
Cafarnaum, mostrou-lhes que bem claro compreendia por que motivo ali acudiam eles
próprios com tanto afã.
“Buscais-me, disse-lhes Jesus, não por crerdes na minha missão salvadora de que
tantas provas tenho dado, mas em razão dos pães que multipliquei e dos quais comestes
até vos fartar. Empenhai-vos pois em buscar não o pão que perece, mas o alimento
incorruptível da vida eterna que o Filho do homem vos há de dar, como o Pai celeste vo-
lo atesta, marcando-o com o selo do seu poder.
- E que é preciso fazer para que Deus nos dispense aquele pão que não perece?
- Uma só coisa: Crede em Aquele que Deus vos enviou.
Vendo-se frustrado em suas esperanças temporais, o auditório revoltou-se. Jesus
dava-se pelo Messias enviado por Deus e, ao contrário da expectativa geral, não prometia
aos seus compatriotas em paga da sua fé mais que um certo sustento, que nada dizia aos
sentidos. Era lá aquele o Messias esperado pela nação?
“Afinal, perguntaram-lhe eles com audácia, que prodígios extraordinários operais
vós para nos forçar a crer que sois o Messias? Destes-nos a comer pão de cevada; mas,
sem ser o Messias, mais fez Moisés: no deserto, comeram os nossos pais o maná, um pão
vindo do céu.
- Em verdade, em verdade, vos digo, respondeu Jesus, Moisés não vos deu pão do
céu: o verdadeiro pão do céu meu Pai é quem vo-lo dá. Este sim é verdadeiramente o pão
de Deus, o pão descido do céu, o pão que dá a vida ao mundo.”
A alegria iluminou todos os rostos. Imaginou a turba que o Salvador falava dum
pão material, porém mais excelente e mais abundante do que aquele leve maná com que
os Hebreus se sustentaram no deserto durante quarenta anos. E com aquele alimento de
natureza verdadeiramente celeste, pensavam eles, iam gozar o paraíso na terra: “Senhor,
bradaram os ouvintes de todas as partes, dai-nos, dai-nos sempre desse pão.”
Então, pondo departe toda a metáfora, disse-lhes Jesus em tom solene: “O pão de
vida de que vos falo, sou eu mesmo. Aquele que vem a mim não terá mais fome, e quem
em mim crer, não terá mais sede. Mas, ai! que vistes as minhas obras e não credes em
mim. Aqueles que o Pai me deu virão a mim; e todos os que a mim vierem, eu os
acolherei com amor. Porque desci do Céu para fazer a vontade do Pai que me enviou.
Ora a sua vontade é que eu não deixe perecer nenhum dos que ele me deu, mas que eu os
ressuscite no último dia. Tal é pois a vontade do meu Pai: todo o homem que conhece o
Filho e crê nele, terá a vida eterna, e eu ressuscitá-lo-hei no último dia.
Aquela declaração de Jesus: “Eu sou o pão da vida,” foi recebida com violentos
sussurros. Ainda não bastante, esclarecidos para fazer um ato de fé nem bastante
perspicazes para discernir ao Deus oculto sob o invólucro do homem, expandiram-se em
exclamações de desprezo: “Ele, o pão descido do Céu! diziam mofando. Mas não é ele o
filho do José. Acaso não conhecemos nós quem é o seu pai e mãe? Como se atreve ele a
dizer que desceu do Céu?”
- “Deixai-vos dessas murmurações,” replicou Jesus àqueles insensatos. E sem lhes
descobrir o mistério da sua origem, contentou-se com exprobrar-lhes a sua culposa
incredulidade. “Ninguém pode vir a mim, disse-lhes, se meu Pai não o atrai com a sua
graça; mas os profetas nos advertem que é preciso seguir com docilidade a atração do Pai.
Quem escuta ao Pai com docilidade, vem a mim. Certo que ninguém viu ao Pai, mas o
Filho de Deus que o viu, fala-vos em nome dele. Em verdade, em verdade, vos repito:
Quem em mim crê, tem a vida eterna.”
Até este ponto, Jesus apresentava-se aos seus ouvintes como o pão descido do Céu
para alimentar espiritualmente e dotar duma vida sem fim todos os que a ele se unissem
pela fé na sua palavra e prática dos seus ensinos. Mas não era isto mais que o prelúdio
das revelações extraordinárias que deviam assinalar aquele dia. Sem se importar com as
disposições hostis dos Cafarnaítas, ensinou-lhes o mistério eucarístico e de que modo os
seus verdadeiros discípulos haviam de encontrar a verdadeira vida, não já unindo-se a ele
só pela fé, mas fazendo-se uma coisa com ele ao comerem dum pão convertido na sua
carne e sangue.
“Sim, eu sou o pão da vida, disse-lhes Jesus de novo. O maná do deserto não
impediu que vossos pais morressem, porém o pão descido do Céu quem o comer não
morrerá. Eu sou o pão vivo descido do Céu, e por conseguinte quem comer deste pão,
viverá eternamente. Ora, este pão, ficai sabendo, é a minha carne que eu darei pela
salvação do mundo.”
Com esta última palavra, os murmúrios trocaram-se em tumulto. Os ouvintes
tomavam partido uns por Jesus outros contra ele; porém o maior número manifestava
ruidosamente os seus sentimentos de incredulidade. “Como vai ele, bradavam de todos
os lados, dar-nos a comer a sua carne?” E já aquelas imaginações grosseiras o estavam
representando a escorrer sangue e feito em postas.
Tinham pois compreendido perfeitamente que Jesus queria dar-lhes a sua carne a
comer. A fim de os confirmar nesta crença, Jesus fez do comer a sua carne a condição da
vida e salvação eterna. “Em verdade, em verdade vos digo, se não comerdes a carne do
Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem comer a
minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia.
Porque a minha carne é realmente um alimento e o meu sangue é realmente uma bebida.
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, fica em mim e eu nele; e assim como eu
vivo pelo Pai, assim, quem se alimenta de mim, viverá por mim. Ainda uma vez: eis aqui
o verdadeiro pão descido do Céu; os vossos pais comeram o maná e morreram; mas quem
comer este pão, viverá eternamente.”
Ao terminar este discurso, soltaram-se vozes de indignação. “É insuportável,
diziam. Quem pode ouvir a sangue frio expressões tão revoltantes?” Os seus próprios
discípulos reprovavam uma doutrina que lhes parecia absurda. Bem o sabia Jesus, e por
isso saiu caridoso a socorrê-los. “Escandalizam-vos as minhas palavras, disse-lhes ele,
mas compreendê-las-eis, quando virdes ao Filho do homem subir ao Céu, donde veio. E
então entendereis que a carne, sem Deus que a vivifica, de nada aproveitaria. As minhas
palavras são espírito e vida; mas, ainda mal que entre vós há incrédulos.” Um até havia
entre eles que se dispunha para o trair; e Jesus, que vê no íntimo dos corações, conhecia
perfeitamente os sentimentos de hostilidade que animavam a alguns dentre eles.
“Lembrai-vos, acrescentou ao concluir, do que vos disse: Ninguém vem a mim, senão
trazido por meu Pai.” Deus tinha-os conduzido ao Salvador, mas em castigo da sua
resistência ao mesmo Salvador, deixava-os extraviarem-se longe dele, pelo caminho das
trevas e perdição.
A partir daquele dia, a maior parte dos discípulos, desiludidos nas suas ambições,
deixou de o seguir. Abandonado assim dos que o amavam, disse Jesus aos doze que tinha
escolhido: “E também vós me quereis deixar?
- Senhor, respondeu Pedro, para quem iremos? Vós tendes palavras de vida eterna.
E nós cremos e sabemos que vós sois o Cristo, o Filho do Deus vivo.”
O Salvador conhecia o coração de cada um dos seus apóstolos. E se provocou esta
profissão de fé por parte de Simão Pedro, foi para fazer entrar em si a um dos doze, que
já não cria. Judas Iscariotes deixou de crer em seu Mestre no dia em que Jesus recusou a
realeza. E naquele judeu a fé esvaiu-se com os seus sonhos de avareza e ambição, e
resolveu deixar na primeira ocasião a um homem poderoso, é verdade, mas de quem já
nada tinha a esperar. E nenhuma impressão lhe fez o nobre protesto de Pedro e seus
companheiros. Ficou silencioso e impassível; mas Jesus deu-lhe a conhecer que para si
nada havia de oculto: “Não vos escolhi eu aos doze? disse ele com ar de tristeza; e um de
vós é um demônio.” Judas fingiu não compreender; mas desde então, tornado em inimigo
do seu Mestre, abriu o coração a todas as sugestões do inferno.
Aproximam-se os maus dias: ao entusiasmo dos Galileus sucede a incredulidade; o
pão material faz esquecer os milagres e o Reino de Deus; os discípulos desamparam o
Mestre, e se os apóstolos ficam fiéis, abraça já um deles a causa dos desertores.
CAPÍTULO II
Entre os Gentios
CAPÍTULO III
Primado de Pedro
CAPÍTULO IV
A Transfiguração
CAPÍTULO V
De Cafarnaum a Jerusalém
CAPÍTULO VI
A festa dos Tabernáculos ou das Tendas, uma das três grandes solenidades do ano,
lembrava aos Judeus os benefícios de que Deus cumulara seus pais, quando acampavam,
após a saída do Egito, em tendas, no deserto. Durante os oito dias que durava a festa,
alojavam-se os Israelitas em Jerusalém sob tendas de verdura. Delas dirigiam-se ao
templo com ramos de palmeira na mão, para cantar a aleluia. Imolavam-se por toda a
semana numerosas vítimas, e depunham-se ricas ofertas sobre o altar dos holocaustos.
Estas grandes recordações não conseguiram sufocar no coração dos fariseus o ódio
que tinham votado a Jesus. Resolutos a aproveitarem-se da festa para se apoderar da sua
pessoa, procuraram-no desde o primeiro dia nos diferentes grupos, perguntando aos
peregrinos se algum o tinha visto. De resto, só dele se falava naquela inumerável
multidão. Uns tinham-no por um homem de Deus; os outros como um miserável
agitador. Estes últimos exprimiam-se em alto e bom som; ao passo que os partidários do
profeta não falavam dele senão com muita discrição, para se não expor à cólera das
autoridades.
Pensavam já que Jesus não apareceria em Jerusalém, quando de repente, no meio
da festa, o viram subir ao templo e tomar lugar para ensinar publicamente. Para logo lhe
rodearam a cadeira amigos e inimigos, sacerdotes e doutores, fariseus e saduceus: uns
para o admirar na explicação do texto sagrado, os outros para lhe armar ciladas. Falou,
como sempre, com tanta ciência e profundeza que todo o auditório se mostrou arrebatado.
Só os doutores Judeus perguntavam com malícia onde fora aquele homem beber a
ciência, pois afinal, diziam eles, não freqüentou nenhuma escola. E como não recebeu
lições de nenhum mestre, o que nos prega são as suas próprias idéias. Mostrou-lhes Jesus
que se enganavam, porque queriam, a respeito dele:
“A minha doutrina, disse Jesus, não é doutrina minha, mas a do Pai que me
enviou. Se a vossa vontade não estivesse em desacordo com a do Pai, sentiríeis logo que
a minha doutrina vem de Deus e não de mim. Ora quem falar segundo as suas próprias
idéias e procurando a própria glória pode enganar-vos; mas se alguém vos fala em nome e
para glória d'Aquele que o envia, as suas palavras merecem crédito, visto como não tem
interesse algum em pregar a mentira.”
Depois de assim ter vingado a sua doutrina, tomou Jesus de repente a ofensiva.
“Moisés deu-vos a Lei, disse; essa Lei vós a violais a cada passo; e agora não vos armais
em seus defensores senão para ter um pretexto para me dar a morte.”
Ao ouvirem estas palavras, baixaram os conjurados a cabeça; mas os forasteiros
que ignoravam o que se tramava, protestaram contra tal suposição. “Verdadeiramente,
bradaram eles, algum demônio vos perturba o espírito; pois quem pensa aqui em vos
matar?” Sem se importar com os interruptores, continuou Jesus a vingar o seu modo de
proceder, pondo aos fariseus em contradição consigo mesmos. Não cessavam eles de
exprobrar-lhe a cura do paralítico, que tinha operado, dezoito meses antes , junto à
piscina probática. “Fiz aquele milagre num dia de sábado, disse Jesus, e vós protestais
com altos brados. Ora, vós não tendes o mínimo escrúpulo de circuncidar uma criança
em dia de sábado. Mas se isso vos é permitido em dia de sábado, porque vos indignais de
me ver curar um homem nesse dia?! Julgai pois as ações, não segundo as aparências
enganosas, mas segundo a justiça e a eqüidade.”
Os fariseus vendo-se confundidos calaram-se; o que levou os habitantes de
Jerusalém a dizer: “Queriam matá-lo, e agora deixam-no ensinar em público sem
nenhuma oposição. Terão acaso reconhecido os príncipes dos sacerdotes ser ele o
verdadeiro Messias? E contudo nós bem sabemos qual a origem deste homem, ao passo
que ninguém saberá donde vem o Messias.” Daquela palavra de Isaías: “Quem
reconhecerá a sua geração eterna?” concluíam eles que ninguém conheceria a parentela
do Messias. Mas Jesus, erguendo a voz, retificou-lhes as idéias sobre a sua verdadeira
origem.
“Vós sabeis quem eu sou, disse ele, e donde sou; mas Aquele que me enviou (pois
eu não vim por mim próprio) vós não o conheceis. Mas eu conheço-o, porque venho dele
e ele é quem me enviou.”
Ao ouvirem como afirmava a sua missão celeste, ardiam os seus inimigos em
desejos de o prender; impediu-os porém a atitude do povo. A multidão, com efeito,
mostrava-se inteiramente disposta a crer no profeta: “Opera tantos prodígios, dizia a
gente, que é impossível sobrepujá-lo em poder.” Estes ditos, referidos pelos fariseus aos
membros do supremo Conselho, fizeram-lhes tal mossa que para logo enviaram ao
templo homens armados, com ordem de prenderem a Jesus antes do encerramento das
festas.
Ao observar tanto alarde de forças, anunciou Jesus aos Judeus que não seria longo
o tempo que teriam de o vigiar. “Ainda estou convosco por uns poucos dias, disse ele, e
depois disso voltarei para Aquele que me enviou. Buscar-me-eis então, mas não me
achareis porque aonde eu estou, vós não podeis vir.” Os infelizes Judeus procuram, com
efeito, desde há dezenove séculos, aquele Messias a quem não quiseram receber, e o Céu,
onde ele está na sua gloria, continua sempre inacessível para eles. Porém os infelizes não
compreenderam o sentido daquela terrível profecia. “Para onde pensa ele ir, diziam os
Judeus mofando, a fim de evadir-se a todas as nossas pesquisas? Terá ele talvez a
intenção de levar a sua doutrina aos Judeus dispersos entre os Gentios, ou até aos mesmos
Gentios ?” E quanto mais refletiam, menos compreendiam o que ele lhes tinha querido
dizer. Pobres cegos! perguntavam por irrisão, se Jesus os ia deixar para pregar aos
Gentios; e puderam ver com os seus olhos como as nações lhes tomavam o lugar no
Reino de Deus, do qual eles por si próprios se excluíram.
Ao oitavo e último dia da festa, depois do sacrifício da manhã, foi um sacerdote,
conforme o costume, à fonte de Siloé com um vaso de ouro buscar três medidas de água;
e logo, subindo ao templo derramou-a ao pé do altar dos holocaustos, em memoria da
água milagrosa que Deus fez brotar da rocha. E o povo cantava entrementes, segundo o
costume: “Bebereis com gozo a água das fontes da salvação.” Logo que findou aquela
cerimônia figurativa, Jesus, de pé no templo, - ele a verdadeira fonte da salvação, -
bradou: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba; pois, conforme o atesta a Escritura, o
que em mim crer, brotar-lhe-ão do seio fontes de água viva.” Entendia falar do Espírito
Santo que haviam de receber todos os que nele cresse; o que se realizou plenamente
quando, após a glorificação do Filho do homem, foi o Espírito de Deus comunicado com
todas as suas graças aos apóstolos e discípulos.
Depois de ter ouvido a explanação deste novo discurso, a multidão agitada e
duvidosa pôs-se a disputar: “É um profeta, diziam uns, é realmente o Messias esperado. -
Mas o Messias não pode vir dum país como Galiléia, respondiam outros. Pois não está
escrito que o Filho de David há de sair de Belém, cidade de David?” Durante todo este
tempo andavam os homens d'armas enviados pelo Sinédrio espiando sempre o momento
favorável para lançar mão de Jesus; mas por fim deixaram o recinto sem se atrever a
prendê-lo. E como ao regressarem do templo lhes perguntassem os príncipes dos
sacerdotes e fariseus, porque não tinham trazido o criminoso contra quem levaram ordem
de prisão, responderam: “É que nunca ninguém falou como aquele homem.” Não se
pudera dizer coisa melhor para fazer perder a cabeça a todos os membros do Sinédrio:
“Como, vociferavam eles encolerizados, também vós vos deixais ir a reboque desse
povéu? Encontrareis acaso entre os príncipes dos sacerdotes e os fariseus um só que seja
que acredite nesse homem? Quanto a essa turba ignorante da Lei, é gente amaldiçoada
por Deus.
Entrados assim em fúria, já entre si não falavam senão de lançar contra Jesus uma
sentença de excomunhão. Mas um dos membros do Conselho, aquele mesmo Nicodemos
que, dois anos antes, fora a ocultas conferenciar com Jesus, protestou contra aquela
revoltante iniqüidade. “A nossa lei, disse, não nos permite condenar um homem sem
primeiro o ouvir e sem uma informação prévia sobre o delito de que o acusam., Esta
observação, sem réplica possível, chegou-lhes ao vivo. E recorreram às injurias para
salvar umas aparências de razão. “Então também já estás feito um Galileu? zombaram
eles. Ora bem! vai estudar as Escrituras e verás que da Galiléia não vêm profetas.” E,
com isso, separaram-se antes de tomar nenhuma resolução definitiva; mas bem decididos
a acabar o mais depressa possível com o seu inimigo. Por sua parte, retirou-se o Salvador
a monte das Oliveiras e lá passou a noite, orando.
No dia seguinte, ao romper do dia, foi Jesus de novo ao templo. Afluiu para logo o
povo e dispôs-se em coroa à volta dele. Tendo-se assentado começou, como na véspera,
a explicar as Escrituras; mas os escribas e fariseus vieram logo perturbar-lhe o ensino.
Desta vez traziam-lhe uma pobre infeliz colhida em flagrante delito de adultério. Tendo-a
colocado diante dele, no meio do povo, propuseram-lhe esta questão: “Esta mulher acaba
de ser surpreendida em adultério: Moisés manda-nos que apedrejemos esta espécie de
culpados; e vós sobre isto que dizeis?”
O laço estava armado com manha. Se Jesus se pronunciasse contra a lapidação,
acusá-lo-iam perante o Sinédrio por ter excitado publicamente à violação da Lei mosaica;
e se, pelo contrário, urgisse a aplicação do castigo, acusá-lo-iam de crueldade, porque,
depois da relaxação dos costumes, já não parecia que o delito de imoralidade merecesse a
pena capital.
Em vez de dar o parecer que lhe pediam, inclinou-se Jesus, sem nada dizer, e pôs-
se a traçar com o dedo certos caracteres no pó do pavimento. Pensaram talvez os
acusadores que lhes escrevia os nomes, como fazem os juízes antes de receber o
depoimento das testemunhas. Desgostados, instaram-no a que se declarasse. Levantando-
se então e fitando-os de frente, disse-lhes: “Quem dentre vós está sem pecado, atire-lhe a
primeira pedra!” E baixando-se de novo, continuou a escrever. Desta vez, puderam ver
que lhes escrevia os pecados. E assim desapareceram uns após outros, começando pelos
mais velhos até os mais novos.
Por entre os aplausos do auditório, disse Jesus à mulher que ali ficara de pé diante
dele: “Dos que te acusavam nenhum te condenou? - Nenhum, respondeu ela. - Também
eu te não condenarei, replicou Jesus, vai-te embora e não peques mais.” Uma vez a mais
se mostrava a divina misericórdia compadecida da fraqueza humana. Como já fizera com
a Madalena, o Salvador perdoava o pecado cometido, e recomendava a pecadora que não
volvesse a cair em pecado. E quanto aos fariseus não o podiam acusar de ter infringido a
lei de Moisés, visto que eles mesmos intimados por Jesus a atirar a primeira pedra à
mulher culpada, se tinham prudentemente esquivado.
Pela tarde, tornou Jesus a achar-se entre a multidão. Quatro candelabros de ouro,
com altura de cinqüenta côvados, inundavam o templo com ondas de luz. Representavam
eles aquela nuvem luminosa que guiava os Hebreus errantes pelo deserto, e a mesma luz
simbolizava o Messias, que, segundo os profetas, havia de alumiar os povos sentados nas
trevas. Não receou Jesus afirmar que aquelas figuras se encontravam cumpridas na sua
pessoa. “Eu sou, exclamou ele, a luz do mundo. Quem me segue não anda em trevas, mas
terá a luz que o levará de seguro, à vida eterna.” Mal havia enunciado esta proposição,
logo os fariseus lhe cortaram a palavra. “Ninguém é juiz em própria causa, disseram eles;
e por isso não somos obrigados a aceitar o juízo que sobre a vossa própria pessoa nos
apresentais.
- Ainda que eu dou testemunho de mim mesmo, respondeu Jesus, não podeis dar
por suspeito o meu testemunho, pois eu sei donde venho e para onde vou; ao passo que
vós, não vendo mais que o exterior, não conheceis a minha origem nem o meu destino. E,
de resto, não sou eu só a depor a meu respeito. À minha afirmação junta-se a de meu Pai,
o qual, conferindo-me o seu poder, atesta a missão que me confiou.”
Os Judeus suspeitavam com razão que ao falar de seu Pai, Jesus entendia falar de
Deus; mas quiseram-lho fazer dizer expressamente, para o acusar de blasfemo. “Esse Pai,
para quem vós apelais, disseram eles, onde o poderemos encontrar?” Bom cuidado teve
Jesus de não cair na cilada; mas afirmou uma vez mais o laço íntimo que o unia a seu Pai:
“Vós não me conheceis a mim nem ao meu Pai, respondeu ele. Se vós me conhecêsseis,
conheceríeis também a meu Pai.” Verdade manifesta, pois o Filho é a perfeita imagem do
Pai; mas continuava sendo um enigma para os Judeus incrédulos. Deste modo afirmou
Jesus a divindade da sua missão na sala do tesouro, diante duma imensa multidão, no
meio dos sacerdotes e doutores e ninguém se atreveu a prendê-lo, porque não tinha ainda
chegado a sua hora.
Contudo, os Judeus mostravam-se cada vez mais decididos a sacrificar toda a
verdade às suas odientas paixões. A certa altura, profetizou-lhes Jesus o terrível castigo
que os esperava. “Eu vou-me, disse-lhes ele, e quando me tiver ido, em vão me buscareis;
e morrereis no vosso pecado. Para onde eu vou, vós não podeis vir.” Em vez de
tremerem diante desta ameaça de impenitência e condenação, puseram-se de novo a
mofar, perguntando em que esconderijo inaccessível se ia ele ocultar, ou então se
pretendia suicidar-se. No qual caso, diziam eles, o lançariam no vale da Geena, com os
outros suicidas e, é claro, não tinham o menor desejo de para lá ir com ele.
Como se fora indiferente a tais sarcasmos, pôs-lhes Jesus diante dos olhos a causa
da sua oposição: “Vós sois da terra, disse, e eu sou do Céu. Vós pactuais com o mundo
perverso, e eu não sou deste mundo, e por isso é que vos digo que morrereis no vosso
pecado. Quem não crer em mim, morrerá no seu pecado. - E quem sois vós para assim
nos falar? perguntaram eles cheios de cólera. - Desde o princípio 54 vos tenho dito quem
eu sou, replicou Jesus, e muito mais poderia dizer para mostrar que a vossa falta de fé não
tem desculpa, mas limito-me a repetir-vos: Quem me enviou, não engana; e eu não faço
mais que repetir as palavras que lhe ouvi.” Ajuda assim não quiseram compreender que
falava de Deus; mas ele anunciou-lhes que em breve se lhes abririam os olhos: “Quando
tiverdes levantado o Filho do homem entre o céu e a terra, disse, sabereis quem eu sou.
Compreendereis então que eu sou um simples eco dos ensinos do meu Pai, que meu Pai
nunca se aparta de mim e que eu sempre faço o que é do agrado do meu Pai.”
Os corações dos fariseus continuavam fechados; mas, em troca, muitos espíritos
sem preconceitos acreditaram nas palavras de Jesus. Vendo o trabalho que nas almas
desses ouvintes se ia operando, exortou-os ele a permanecerem firmes na fé, se queriam
ser seus discípulos. “Pela fé, disse-lhes Jesus, arribareis ao conhecimento da verdade e
pela verdade, à verdadeira liberdade.” Ao ouvirem esta palavra de liberdade, soltaram os
fariseus gritos furiosos. “Nós somos filhos de Abraão, vociferavam eles, nunca fomos
escravos. Como pois ousais dizer: Recobrareis a liberdade?
- Em verdade, em verdade vos digo, replicou Jesus, quem comete o pecado, é
escravo do pecado. Ora, se o escravo permanece algum tempo na família, é por
tolerância; ao passo que o filho nela fica por direito. Se o Filho pois vos livrar do pecado,
então (mas só então) sereis verdadeiramente livres. Bem sei que sois filhos de Abraão,
mas não lhe imitais a fé. Revoltais-vos contra a minha doutrina e quereis dar-me a morte.
Eu digo o que meu Pai me ensina, e vós fazeis o que vos ensina o vosso.
- O nosso pai, disseram eles, é Abraão.
- Se fosseis de Abraão, replicou Jesus, procederíeis como ele. Mas quereis matar-
me, a mim, que não faço mais que transmitir-vos a vontade do meu Pai: não procedeu
assim Abraão. Não, não; vós fazeis as obras do vosso pai.
- De que pai falais vós? perguntaram eles; o nosso pai é Deus.
- Se Deus fosse verdadeiramente o vosso Pai, continuou Jesus, vós de certo me
haveríeis de amar de todo o coração, pois eu saí de Deus para vir a vós, não por minha
própria vontade, mas porque ele me enviou Se me não compreendeis, é porque o vosso
espírito resiste à verdade. O vosso verdadeiro pai é o demônio, e os seus desejos são os
vossos desejos. Homicida como foi desde o principio, ele é quem vos inspira; revoltado
contra a verdade, mentiroso e pai da mentira, comunica-vos o seu espírito; e por isso é
que vós não me credes a mim, que vos digo a verdade. Contudo bradou Jesus fixando-os
de frente, quem de vós me convencerá dum só pecado?
Este repto, que só um Deus podia lançar aos seus inimigos, não teve quem lhe
54 Principium, qui et loquor vobis - Eu sou o princípio de todas as coisas. Tal é, diz Martini (João, VIII, 25) o
sentido da Vulgata. O texto grego, posto que um tanto obscuro, pode traduzir-se assim: “Eu sou o que vos tenho dito
desde o princípio: o Cristo, o Filho de Deus.”
respondesse: “Vós calais-vos, concluiu Jesus, mas se vos não atreveis a acusar-me de
mentira, porque me não credes? A mim, que venho de Deus, vós me não ouvis, porque
não sois filhos de Deus.
- Bem dizemos nós, clamaram eles; que és um Samaritano, um energúmeno.
- Não, não, replicou Jesus com voz firme, eu não estou endemoninhado; eu honro
a meu Pai e vós desonrastes-me. De resto, não cuido dos vossos ultrajes nem procuro a
minha glória; outrem a procurará e vos julgará. Quanto a vós, disse Jesus aos que nele
criam, praticai os meus ensinos e a morte não terá império sobre vós.
- Bem vemos recomeçaram em coro aqueles energúmenos, que é um demônio que
fala pela vossa boca. Então Abraão morreu e morreram os profetas e vindes cá dizer-nos
que os vossos discípulos não morrerão? Sois acaso maior que Abraão? maior que os
profetas? Por que homem quereis passar?
- Se me glorificasse a mim mesmo, vã seria a minha glória. Meu Pai é quem me
glorifica; sim, o meu Pai, a quem vós chamais vosso Deus, mas que vós não conheceis.
Eu porém conheço-o; e se dissesse que o não conhecia, seria eu outro tal como vós,
mentiroso. Sim, conheço-o e executo-lhe as vontades. Abraão de quem vos gloriais de
ser filhos, desejou ardentemente ver o meu dia; viu-o e alegrou-se.
Como, disseram os Judeus, se ainda não tendes cinqüenta anos, e vistes Abraão?
- Em verdade, em verdade vos digo, antes de Abraão existir, Eu sou.
Só o Eterno podia dizer: antes de Abraão, antes de todos os séculos e antes de
todos os seres, Eu sou. Assim o compreenderam os Judeus e, gritando: Blasfêmia!,
correram a ajuntar pedras fora do templo para apedrejar ao homem que ali acabava de se
proclamar Deus. Mas Jesus misturou-se com a multidão da gente e desapareceu.
CAPÍTULO VII
O cego de nascimento
CAPÍTULO VIII
Hipócritas e impenitentes
55 Na vertente ocidental do monte das Oliveiras não longe do cume foi que, segundo a tradição, ensinou aos seus
discípulos a Oração dominical. Os cruzados construíram naquele lugar uma igreja destinada a perpetuar
aquela recordação. Sobre as ruínas daquele santuário, mandou uma francesa, a princesa de Tour d'Auvergne,
construir um novo, mais esplêndido que o antigo. No claustro que rodeia o edifício há trinta e dois quadros com o
Padre Nosso, escrito em trinta e duas línguas diferentes.
as cidades e aldeias que os setenta e dois mensageiros acabavam de percorrer. Os três
meses do outono separavam a festa dos Tabernáculos da festa da Dedicação que se
celebrava em Jerusalém pelos fins de dezembro. Propunha-se o Salvador, neste intervalo
de tempo, fazer um supremo apelo às populações da Judéia, subir até à baixa Galiléia e
depois atravessar o Jordão para anunciar a boa nova aos habitantes da Peréia. De lá
tornaria a Jerusalém por ocasião da festa a fim de tentar mais uma vez fazer penetrar a luz
naquela cidade.
Nesta última excursão evangélica, a palavra de Jesus, mais carinhosa, mas também
mais firme que nunca, já arrancava lágrimas, já incutia terror. Instava com os povos para
que trabalhassem na sua salvação, trovejava contra os vícios e desmascarava sem piedade
os doutores de perdição, cujo ódio o perseguia sem afrouxar. À primeira vez que o
atacaram, exprimiu-se de modo que lhes fez ver que tinha chegado o tempo de rasgar
todos os véus.
Certo dia em que Jesus acabava de evangelizar uma numerosa multidão, convidou-
o amavelmente um fariseu a tomar com ele a refeição da manhã. O Salvador aceitou o
convite. Antes de ocupar o seu lugar, fizeram os convivas com ostentação as abluções
que a seita impunha como ritos obrigatórios. Jesus, ao contrário, importando-se pouco do
alvoroto que ia ocasionar, entrou na sala do banquete sem se lavar as mãos e tomou à
mesa o lugar que lhe estava marcado. Para logo, grande agitação na assistência. O
hospedeiro carregava as sobrancelhas, indignado de que houvesse quem na sua casa
afetasse violar uma lei sagrada. Iam já romper em invectivas, quando Jesus tomou a
dianteira e pôs à descoberto a hipocrisia daqueles falsos justos.
“Vós, os fariseus, disse ele com energia toda divina, vós limpais os copos e pratos,
ao passo que a vossa alma está cheia de rapinas e iniqüidades. Insensatos! quem fez o
exterior, não fez também o interior? Do que vos sobeja, dai esmola aos pobres; e essa será
para vós a melhor das abluções.”
E dando então livre curso à sua indignação contra aqueles hipócritas viciosos e
rapinantes que afetavam austeridade para enganar o povo, exprobou-lhes em termos
veementíssimos a hipocrisia do seu proceder: “Ai de vós, fariseus, que alardeais de
generosos, pagando dízimos não obrigatórios e calcais aos pés os preceitos sagrados da
justiça e da caridade. Ai de vós, fariseus, que procurais as primeiras cadeiras nas
sinagogas e os cumprimentos na praça pública. Ai de vós, sepulcros branqueados, cujo
contato impuro mancha os transeuntes sem que o possam evitar!”
Os convivas estavam tremendo e ao mesmo tempo rugindo. Certo doutor da lei
tentou interromper o curso daquelas maldições. “Mestre, disse ele, exprimindo-vos desse
modo, também a nós, intérpretes da lei, nos injuriais.” Mas não conseguiu mais que
atrair o raio para a própria cabeça. “Ai de vós também, doutores da lei, continuou Jesus,
que impondes ao povo cargas esmagadoras, mas vós não lhes tocais nem com a ponta do
dedo. Ai de vós, que construís túmulos aos profetas, imolados por vossos pais, e lá no
íntimo dos vossos corações nutris os mesmos desígnios homicidas. Eles foram os
assassinos e vós sois os coveiros. Verificam-se em vós as palavras da divina sabedoria
Eu lhes enviarei profetas e apóstolos; e eles matarão a uns e perseguirão a outros, de
modo que esta raça há de dar conta de todo o sangue dos profetas, derramado em todas as
épocas do mundo, desde o sangue de Abel até ao sangue de Zacarias, que foi assassinado
entre o templo e o altar. Sim, eu vô-lo afirmo, pedir-se-há conta a esta geração das ondas
de sangue vertido. Ai de vós, doutores da Lei, que tendes na mão a chave da ciência; e
nem vós usais dela nem deixais que os outros a usem.”
Enquanto o Salvador lançava contra eles estes terríveis anátemas, os convivas,
exasperados tentavam cortar-lhe a palavra e oprimiam-no com interrupções e perguntas
insidiosas. E instavam a que respondesse, esperando sempre apanhar-lhe algumas
expressões imprudentes que lhes dessem ensejo de o acusar aos juízes. Talvez tivessem
chegado aos maiores excessos, se o povo, sabendo o que estava passando, não tivesse
cercado a casa dos fariseus. Vinham chegando os habitantes em linhas tão cerradas que se
atropelavam uns aos outros. E Jesus deixou os seus inimigos para levar aqueles pequenos
e humildes as palavras de salvação.
Afável e meigo para com o pecador arrependido, mostrava-se inexorável a respeito
daqueles orgulhosos sedutores que, não contentes com ceder às suas paixões criminosas,
impeliam o povo pelo caminho da iniqüidade. E desmascarava-os para os impedir de
prejudicarem. “Desconfiai, disse aos seus discípulos e à multidão, desconfiai da
hipocrisia dos fariseus. Procurai não os imitar, pois todas as maldades serão um dia
postas a descoberto. Não temais este mundo perverso, e não temais aos que podem matar
o corpo, mas aos que matam o corpo e lançam a alma no inferno. Todo o que der
testemunho de mim diante dos homens, eu o glorificarei diante dos anjos de Deus; mas
quem renegar de mim diante dos homens, também eu renegarei dele diante dos anjos de
Deus.”
Estava a gente ouvindo com grande atenção estas exortações do Salvador, quando
certo Judeu, mais cuidadoso dos negócios do que da sua salvação, lhe falou numa questão
de herança: “Mestre, disse, não poderíeis dizer ao meu irmão mais velho que reparta
comigo uma parte da legítima dos nossos pais? - Amigo, respondeu-lhe Jesus, não vim ao
mundo para ser juiz das vossas desinteligências e repartir heranças.” E tomando assunto
daquele pedido interesseiro do Judeu, disse à turba: “Cuidado com a avareza; o número
dos vossos dias não há de depender da abundância dos vossos bens. Certo rico possuía
uma propriedade fertilíssima. Um dia entrou a perguntar-se a si mesmo, onde iria
enceleirar a colheita. Vou deitar abaixo os celeiros, dizia ele, para os construir mais
capazes, onde recolherei todo o grão. E agora , ó minha alma, poderei eu então exclamar,
tens provisões para muitos anos: descansa, come, bebe, e regala-te. Mas Deus
respondeu-lhe: Insensato! esta mesma noite te virão arrancar a alma. E quem desfrutará
dos bens que amontoaste? Deste modo há-de perecer o tesouro do avaro, se não
entesourou para o Céu.”
A estas instruções contra os vícios, acrescentava Jesus outras sobre a necessidade
que tem o pecador de se converter sem dilação. “Cingi os rins, dizia, e tende as lâmpadas
acesas, como criados que estão esperando pelo seu senhor, para lhe abrir a porta logo que
bata. Felizes dos servos a quem o senhor assim encontra prestes para o receberem! Fá-
los-há sentar à mesa e terá o gosto de os servir por suas próprias mãos. E se chegar tarde
e de noite, na segunda e terceira vigília, felizes dos servos, se os encontrar despertos, a
espera dele!” E ajuntava outra parábola para os exortar à vigilância. “Se um pai de
família, dizia ele, soubera a que hora lhe haviam de vir roubar a casa, vigiaria para
impedir lhe entrasse nela o ladrão. Vós pois, do mesmo modo, estai preparados, porque
virá o Filho do homem no momento em que menos pensardes.”
A propósito de servos vigilantes, perguntou Pedro ao Salvador, se aquelas
recomendações se dirigiam aos apóstolos, ou a todo o povo? Respondeu-lhe Jesus com
outra parábola: “Um senhor procura um intendente discreto e fiel para distribuir o
sustento aos seus servos. A quem irá escolher? É evidente, que o mais dedicado ao seu
serviço. Mas se aquele bom intendente, contando com a prolongada ausência do senhor,
se puser a maltratar os servos e servas, a comer e a embriagar-se, sucederá que o senhor,
chegando de improviso, lhe há de tirar o ofício e o há de desterrar lá para entre os servos
infiéis. E, pelo que diz respeito ao castigo, quem transgredir às ordens do senhor por ter
sido negligente em informar-se acerca delas, será castigado; mas quem as calcar aos pós
com pleno conhecimento de causa, será mais severamente punido. Além disso, de quem
muito recebeu, muito se há de exigir. Quanto mais sublime for a missão, tanto mais
tremenda será a conta que dela se há de dar.” Compreendeu Pedro que a parábola se
dirigia a todos, porém mais em particular àqueles que o Salvador tinha
escolhido para intendentes no seu Reino, e seus lugar-tenentes junto dos seus servos. Aos
tais pedirá muito, porque lhes deu muito.
Imaginavam muitos não ter necessidade nem de penitência nem de conversão.
Certo dia em que Jesus se esforçava por desenganá-los, foram-lhe contar como alguns
Galileus, revoltados contra as autoridades romanas, tinham caído nas mãos de Pilatos no
próprio momento em que estavam oferecendo um sacrifício. Mortos ali mesmo,
misturou-se o seu sangue com o das vítimas imoladas no altar. Conforme a opinião
comum naquele tempo, de que a gravidade do pecado se mede pela gravidade da pena, os
Judeus consideravam aqueles Galileus, como insignes malfeitores. Jesus retificou-lhes
o juízo neste ponto. “Cuidais que eles foram mais culpados que os seus compatriotas,
disse Jesus; mas eu declaro-vos que se não fizerdes penitência, todos perecereis do
mesmo modo. De igual maneira, aqueles dezoito homens, esmagados ultimamente
debaixo das ruína da torre de Siloé, tendes para vós que eram mais culpados diante de
Deus, que os mais habitantes de Jerusalém. Desenganai-vos também e estai certos de
que, se não fizerdes penitência, todos perecereis igualmente.” Trinta anos mais tarde,
saqueavam os Romanos a Judéia e a Galiléia, e depois incendiavam Jerusalém. Os
Judeus impenitentes caíam aos fios da espada dos soldados ou debaixo das ruínas das
suas casas incendiadas.
Aos que diferiam para o futuro o fazer dignos frutos de penitência, lembrou-lhes
Jesus que Deus acaba por se cansar de esperar. “Certo homem, disse ele, tinha uma
figueira plantada na sua vinha. E foi a ela por frutos e não os achou. - Eis que vai para
três anos, observou ele ao vinhateiro, que esta árvore estéril ocupa inutilmente a terra:
corta-a. - Senhor, respondeu o vinhateiro, tende paciência mais este ano, pois eu vou
remover-lhe a terra à volta e adubá-la. Talvez que assim dê fruto; e senão, depois a
cortareis.”
Por este modo trabalhava Jesus por converter aquela Judéia ingrata e infiel. Aos
sábados pregava nas sinagogas. O povo escutava-o com admiração, e certo que teria
aproveitado aquele ensino, se os seus mestres não tivessem oposto constantemente os
próprios erros à verdade. Nas assembléias sabáticas, se ocorria que Jesus confirmasse as
suas pregações com algum prodígio, enquanto o povo aplaudia ao taumaturgo, acusavam-
no os fariseus de prevaricar contra as leis de Moisés. Numa sinagoga, onde ensinava,
notou Jesus uma pobre mulher a quem o demônio vinha atormentando havia dezoito anos
E a tal ponto a tinha alquebrado e encurvado, que já não podia levantar os olhos para o
céu. Movido à compaixão, chamou-a o Salvador e disse-lhe: “Vai terminar a tua
enfermidade.” Impôs-lhe as mãos, e para logo se endireitou a enferma e começou a
louvar a Deus.
Em vez de glorificar a Deus com ela, repreendeu-a severamente o chefe da
sinagoga diante de todo o povo, declamando também contra aquele profeta que sarava a
gente no dia de sábado: “Há seis dias para trabalhar, bradava ele; vinde nesses dias pedir
a vossa cura, mas não em dia de sábado.” A turba calava-se, e também a mulher; porém
Jesus respondeu em seu lugar: “Hipócritas, em dia de sábado soltais do curral o boi ou o
jumento para os levar a beber à fonte; e a esta filha de Abraão, ha dezoito anos encadeada
por satanás, parece-vos mal que se lhe rompam as cadeias ao sábado?” O a propósito
desta resposta esmagou os adversários e fê-los corar de vergonha, ao passo que o povo se
extasiava com os prodígios operados à sua vista.
Acabava o Salvador a sua excursão pela Judéia, quando certo doutor lhe fez esta
pergunta: “Mestre, haverá poucos que se salvem?” Recebeu a resposta que mereciam
aqueles Judeus viciosos e incrédulos: “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, disse
Jesus. Muitos procurarão entrar e não o conseguirão. E quando o pai de família tiver
fechado a porta, ireis bater e clamareis: Senhor, abri-nos. - Não vos conheço, responderá
ele; não sei donde vindes. - Insistireis então: Senhor, nós bebemos e comemos diante de
vós e vós nos ensinastes nas praças públicas. - Não vos conheço, replicará ele; retirai-vos,
operários da iniqüidade. Chorareis e rangereis os dentes, quando virdes Isaac e Jacó e
todos os profetas no Reino de Deus, ao passo que vós sereis excluídos. Do oriente e do
ocidente, do meio-dia e do setentrião hão de vir tomar lugar no Reino, do qual vós sereis
repelidos; e assim os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros.”
Naquela última excursão pela Judéia, como último adeus, deixava Jesus a
reprovação do povo Judaico.
CAPÍTULO IX.
Misericórdia e justiça
CAPÍTULO X
Os três conselhos
CAPÍTULO XI
A festa da dedicação
A Excomunhão e o Hosana
CAPÍTULO PRIMEIRO
Ressurreição de Lázaro
Três anos havia que Jesus de Nazaré, o Messias de Deus, o verdadeiro Rei de
Israel, instava com os Judeus para que entrassem no seu Reino. A cidade santa, as cidades
e aldeias tinham aclama do, cada uma por sua vez, o doutor, o profeta e o taumaturgo. E
contudo os chefes do povo perseguiam-no com um encarniçamento sem exemplo,
incriminavam-lhe as palavras e as ações, no próprio templo ajuntavam pedras para o
apedrejar e só esperavam por uma ocasião para o condenar à morte. Depois da festa da
Dedicação, fora Jesus refugiar-se nas terras além-jordânicas, à espera do dia marcado
para o grande sacrifício.
Contudo, a fim de tornar os Judeus absolutamente inescusáveis, quis Jesus provar-
lhes até ao fim, que se consentia em morrer-lhes às mãos, fá-lo-ia não em virtude dos
decretos deles, mas para obedecer ao seu Pai dos Céus. Iria para a morte não como um
vencido, mas como um triunfador; não como um simples mortal, mas como absoluto
senhor da vida e da morte. Esta prova da sua soberania devia ele aos Judeus para os fazer
recuar diante do horrível deicídio, e mais ainda aos apóstolos, aos discípulos e aos eleitos
de todo o mundo para os ajudar a reconhecer ao seu Deus no meio dos opróbrios da
Paixão. Por isso, naquele próprio momento em que os fariseus cuidavam tê-lo reduzido à
necessidade de ocultar-se para evitar o suplício, um prodígio, (o mais palpável de todos
os prodígios), feito às portas de Jerusalém, vem excitar mais do que nunca a admiração
do povo e lançar no assombro a todo o Sinédrio.
Um mês após a retirada de Jesus para Betabara, foi um mensageiro de Betânia
entregar-lhe da parte de Marta e Maria esta simples missiva: “Senhor, aquele a quem
amais, está enfermo.” Esperavam as duas irmãs que, ao saber da doença de Lázaro, se
poria logo a caminho para visitar o seu amigo e restituir-lhe a saúde; Jesus porém, ao
contrário, sem mostrar nenhuma emoção respondeu: “A doença de que sofre não é para
lhe tirar a vida, mas para procurar a glória de Deus, glorificando ao seu Filho.” Tornou o
mensageiro para Betânia, e Jesus demorou-se ainda mais dois dias no deserto, sem se
importar com o doente. Debalde o estiveram esperando Marta e Maria; o mal foi-se
agravando de hora em hora e Lázaro exalou o último suspiro. E só então é que o Salvador
disse aos apóstolos: “Voltemos para a Judéia.
- Mestre, responderam eles, não há muito ainda que os Judeus vos queriam
apedrejar, e quereis voltar para a Judéia?!”
De fato, eles receavam tanto por suas pessoas, como pela do Mestre. Como
conheciam o ódio dos fariseus contra os discípulos do profeta, podiam temer-se de ter de
compartilhar a sorte de seu Mestre. Jesus esforçou-se por acalmar-lhes os terrores. “Não
temais, lhes disse ele, o meu dia não está senão no seu declinar. Quando vem a noite,
caminha-se nas trevas, e há perigo de tropeçar contra os obstáculos; mas o sol ainda
brilha e por isso não há nenhum perigo.” Como eles não respondiam nada, acrescentou
para motivar aquele regresso para a Judéia: “O nosso amigo Lázaro está dormindo, e é
preciso que eu lá vá despertá-lo do sono.”
Tomaram os apóstolos estas palavras à letra, e exclamaram todos alegres: “Se
dorme, Senhor, curar-se-há.” É um sintoma de bom agouro e uma razão a mais para se
não ir expor à morte, voltando para a Judéia. Então Jesus, deixando os artifícios, disse-
lhes claro: “Lázaro morreu, e alegro-me de lá não ter estado durante a doença. Alegro-me
por vosso respeito, a fim de que em mim creiais. Vamos para Betânia.”
O temor de caírem nas mãos dos Judeus aterrava-os de tal forma, que ainda
hesitavam em pôr-se a caminho; mas Tomé, um dos doze, estimulou-os com esta frase
enérgica: “Sigamo-lo e, se é preciso, morramos com ele.”
À entrada no burgo souberam que Lázaro morrera, havia quatro dias. Conforme o
costume, o cadáver, lavado e perfumado, coberto de faixas e envolvido num sudário,
tinha sido depositado no sepulcro. Desde aquele momento, as cerimônias do luto
realizavam-se cada dia junto da gruta funerária. Os parentes e os amigos e Judeus de
qualidade, vindos de Jerusalém, faziam companhia às duas irmãs desfeitas em pranto; não
se ouviam mais que gemidos e lamentos. Como já se estava no quarto dia, tinha-se
acabado de verificar oficialmente o falecimento, cobrindo com o lençol o rosto do
defunto. E uma pedra que rodou para a porta do sepulcro ficava-lhe defendendo a
entrada.
Enquanto as duas irmãs, sentadas no chão no meio dos seus hóspedes,
permaneciam absortas em profunda tristeza, vieram anunciar a Marta a chegada de Jesus.
Com tal notícia, já esquecida de tudo, correu logo ao seu encontro.
“Mestre, disse ela ao aproximar-se de Jesus, se tivésseis aqui estado, o meu irmão
não teria morrido; mas ainda agora tenho a certeza de que tudo o que pedirdes a Deus, ele
vô-lo concederá.
- O vosso irmão há de ressuscitar, disse-lhe Jesus, simulando não lhe compreender
o pensamento.
- Bem sei, respondeu ela, receosa de ter-se adiantado demais; ele há de ressuscitar
no último dia.
- Marta, Eu sou a ressurreição e a vida. Quem em mim crer, posto que esteja
morto, viverá; e quem vive e crê em mim, não morrerá eternamente. Credes nisto?
- Sim, eu creio, Senhor, que vós sois o Cristo, o Filho de Deus, vindo a este
mundo.”
Depois deste diálogo sublime, Marta cheia de fé e confiança, deixou por um
momento o Salvador para ir ter com a irmã e anunciar-lhe aquela boa nova. Disse-lhe ao
ouvido, para não irritar os Judeus: “Chegou o Mestre e chama-te.” Levantou-se Maria
com presteza e saiu de casa para ir aonde estava Jesus. Os Judeus que a rodeavam e
estavam consolando, cuidaram ia ao sepulcro para dar lá saída livre às suas lágrimas, e
seguiram-na. Logo que chegou aonde o Mestre a esperava, Maria caiu-lhe aos pés e não
pode deixar de lhe dizer, como sua irmã: “Ah! Senhor, que se vós aqui estivésseis, nosso
irmão não teria morrido!” E, dizendo estas palavras, chorava ela, e com ela choravam os
Judeus. Ao ver como as lágrimas corriam de todos os olhos, apoderou-se do Salvador
uma profunda emoção, e um divino estremecimento lhe remexeu a alma. “Onde pusestes
a Lázaro? perguntou ele.
- Senhor, vamos levar-vos a ver o sepulcro.”
Seguiu-os Jesus derramando lágrimas; coisa que fez dizer a muitos: “Olha, como
ele o amava;” outros, ao contrário, inspirados pela sua costumada má vontade, iam
semeando à volta de si a desconfiança: “Ele abriu os olhos ao cego de nascimento; pois
porque não impediu que Lázaro morresse?”
Chegado à gruta talhada na rocha, diante do sepulcro, fechado com uma pedra
pesada, Jesus de novo se comoveu e disse: “Tirai essa pedra.” Marta, instintivamente,
observou-lhe que, estando Lázaro morto havia quatro dias, ia a sair do sepulcro um mau
cheiro de putrefação; mas, com uma palavra, lembrou-lhe Jesus o diálogo que entre
ambos tivera lugar: “Não vos disse já, que, se tivésseis fé, veríeis a glória de Deus ?”
Revolveram então a pedra, e diante de todos os olhos apareceu o cadáver envolto
no sudário, que o cobria dos pés à cabeça. Naquele momento solene, estabeleceu-se um
profundo silêncio. Os assistentes, imóveis, com a vista cravada no profeta, perguntavam
com ansiedade o que iria suceder. Jesus levantando os olhos para o Céu orou assim:
“Meu Pai, dou-Te graças porque sempre me tens ouvido. Tu sempre me ouves, bem o sei
eu; porém falo deste modo por amor deste povo que me rodeia, para que acredite que Tu
me enviaste.” E então, estendendo a mão para o cadáver bradou com voz forte: “Lázaro,
sai do sepulcro!” Começou o morto a agitar-se e saiu do sepulcro, com os pés e mãos
envoltas em faixas e o rosto coberto com o sudário. Mudos de assombro, contemplavam
todos aquele cadáver sepultado, que de improviso se erguia em pé e esforçava a romper
as ataduras: “Soltai-o, disse Jesus, e deixai-o livre.” Tiraram-lhe as faixas que lhe
prendiam os pés e as mãos e o sudário que lhe cobria o rosto; e apareceu Lázaro cheio de
vida e começou a andar.
Não se pode exprimir a impressão dos assistentes. Diante daquele profeta que para
provar a sua missão ia tirar os mortos à corrupção do sepulcro, todos ficavam como
petrificados. A maior parte das testemunhas deixaram os seus preconceitos e creram em
Jesus. Alguns contudo, dominados pelo espírito de seita, foram logo denunciar aos
fariseus o estranho sucesso, cuja notícia necessariamente ia provocar, em Jerusalém e em
toda a nação, um imenso movimento em favor do inimigo deles.
E, com efeito, a ressurreição de Lázaro provocou uma grande crise nos espíritos.
Era impossível negar um fato sucedido às portas da capital, e cujas circunstâncias
dramáticas eram contadas por testemunhas, amigas e inimigas do taumaturgo; era
igualmente impossível explicar aquele fato, senão pela intervenção do supremo Senhor da
vida e da morte. Os fariseus não teriam ousado atribuir ao demônio aquele prodígio dos
prodígios, sobretudo tendo-o Jesus operado, fazendo oração a seu Pai, para provar a sua
divina missão. Jesus era pois, como afirmava, o enviado de Deus, o Messias libertador, o
Filho do Pai que está nos Céus. Mas então com que nome qualificar os sectários, os
fariseus, os
doutores, os escribas, que tentavam apedrejá-lo e expulsavam da sinagoga os que nele
criam? Aproximava-se a festa da Páscoa, e era caso para um homem perguntar, se o povo,
afluindo de todas as províncias, não iria, mau grado dos personagens oficiais, levar em
triunfo o grande profeta e proclamá-lo rei de Israel. Tão crítica pareceu a situação, que
o sumo sacerdote convocou urgentemente os membros do Sinédrio para deliberar a toda a
pressa sobre os meios próprios para desviar tal perigo.
O Sinédrio, ou supremo Conselho, compunha-se de setenta membros escolhidos
nos três corpos da nação: príncipes dos sacerdotes, doutores de nomeada e anciãos do
povo, distintos pela sua prudência. Desde a dominação romana, o Sinédrio, escravizado
pelos vencedores, não se recrutava geralmente senão entre os sectários sem fé e os
intrigantes sem honra. O sumo pontificado mesmo vendia-se a quem mais dava. Um
velho astuto, chamado Anás, conseguira conservar na cabeça, durante sete anos, a tiara
dos pontífices, e depois colocá-la sucessivamente na cabeça dos seus cinco filhos e por
fim fazer dela o apanágio do seu genro, José Caifás. Este trazia-a havia muitos anos
como herança de família. Saduceu, isto é, partidário da seita que já não acreditava nos
velhos dogmas, nem sequer na imortalidade da alma, Caifás não pensava mais que em
enriquecer-se e gozar da vida presente. Aquele mau rico a chafurdar nos prazeres,
enquanto o pobre lhe morria de fome à porta, tal como Jesus o pinta, era Caifás, e toda a
gente
o tinha reconhecido. Por isso o patriotismo do sumo sacerdote acomodava-se muito bem
com a dominação romana. O pontífice, que desempenhava em Jerusalém o papel mais
brilhante e lucrativo, perguntava lá para consigo que mais lhe poderia dar o Messias.
Exceção feita dalguns personagens que eram, às ocultas, aderentes de Jesus, como
o legista Nicodemos e um rico senhor da câmara dos anciãos, chamado José de
Arimatéia, os outros membros do Conselho não valiam mais que o seu presidente.
Fariseus desmascarados por Jesus, saduceus revoltados contra a sua moral severa,
escribas invejosos da sua popularidade: todos tinham votado ao profeta um ódio
implacável. A classe dos sumos sacerdotes, especialmente representada por saduceus
sem consciência, como Caifás, Anás e os seus cinco filhos, e outros ex-pontífices ou
membros da sua família, não esperavam senão por uma ocasião para fartar a sua raiva
contra aquele (a seu ver) pretendido Messias que havia três anos lhes vinha perturbando o
sono.
Desde tempos imemoriais celebravam-se as sessões do Sinédrio no templo de
Jeová. Os juízes, com o rosto voltado para o santuário, esforçavam-se por ter sempre
diante dos olhos o Deus justo que devia inspirar-lhes as resoluções. Mas naquela época,
em que só as paixões ditavam os juízos, celebrava-se o conselho longe do santuário, sob
os pórticos do templo, na cidade e freqüentemente no palácio do sumo sacerdote, cuja
influência, tornada preponderante, mal deixava aos seus assessores uma ficção de
liberdade. Por ocasião do milagre de Betânia, pareceu a deliberação tão importante e o
segredo tão necessário, que Caifás reuniu os seus colegas longe do templo e da cidade.
Além do vale da Geena, em frente do monte Sião, possuía ele uma casa de campo 56 onde
ninguém de certo os iria surpreender. Naquele lugar ermo foi que se celebrou o indigno
conciliábulo, onde o sumo sacerdote e os seus cúmplices decretaram o maior dos crimes e
a ruína da nação judaica.
Tratava-se do procedimento que deviam ter em presença daquela ressurreição de
Lázaro que trazia o povo impressionado. “Este homem multiplica os prodígios, disseram
os sinedritas: que partido tomamos a seu respeito?” Juízes sérios teriam respondido que
era preciso examinar se os milagres eram autênticos e, em caso de que o fossem, todos
deviam reconhecer Jesus de Nazaré, como o Messias esperado há mil anos. Mas a
assembléia não tinha por fim contestar a realidade dos milagres operados desde ha três
anos diante da nação inteira; reunia-se unicamente para pronunciar uma sentença de
morte contra o taumaturgo do qual se queriam a todo o custo ver livres. E em vez da
questão religiosa única em litígio, puseram os juízes por diante uma questão politica. “Se
o deixamos andar, disseram eles, todo o povo crerá que ele é o verdadeiro Messias e
proclamá-lo-há rei de Israel.” Confessavam portanto que, se não fora a oposição
criminosa dos seus chefes, Israel teria reconhecido o Messias, e que, se a nação judaica
perpetrou um deicídio, o crime deve imputar-se, primeiro que a ninguém, aos seus
doutores e pontífices. Mas por que motivo pretendem eles, com todas as suas forças,
impedir que o povo proclame Jesus, filho de David e rei de Israel? “Porque, disseram, se
os Romanos ouvem falar dum Messias libertador, dum rei de Israel, hão de pensar que se
trata duma nova rebelião, e hão de tomar as armas e destruir o templo, a cidade e toda a
nação.” Assim falaram os saduceus que preferiam as leis e costumes romanos à leis de
Deus e de qualquer Messias; assim falaram os fariseus que, estando sempre à espera dum
Messias que reinasse no mundo, recusavam um rei pacífico que se contentava com reinar
sobre as almas.
Os partidários daquelas duas seitas inimigas uniram-se pois no intuito de reclamar
a morte de Jesus. Certos conselheiros, entre outros José de Arimatéia e Nicodemos,
discípulos ocultos do Salvador, notaram aos sectários que não era lícito condenar um
homem sem o ouvir; e que dar uma sentença de morte, às escondidas, e sem nenhuma
forma de processo, constituiria da parte dos juízes uma verdadeira monstruosidade; mas
estas reflexões, por justas que fossem, não serviram mais que para excitar a raiva
56 O Evangelho cala-se acerca do lugar onde nesta circunstância se reuniu o Sinédrio. Só a tradição o
menciona. A colina onde se elevava a casa de campo de Caifás, chama-se ainda agora o Monte do Mau Conselho.
daqueles furiosos. Vós não percebeis nada neste negócio, gritou Caifás com a sua
brutalidade ordinária; então não vedes que se trata da salvação publica? é preciso que
morra este homem por todo o povo, e salve assim duma ruína certa a nação.”
É preciso morra este homem por todo o povo! Palavra profética e fórmula da
redenção que o próprio Deus pôs nos lábios do sumo sacerdote. Por mais malvado que
fosse, Caifás representava então a mais elevada autoridade religiosa e por este motivo foi
que Deus lhe fez proclamar solenemente, que Jesus devia morrer por todo o povo: não só
pela sua nação, mas por todas as nações do universo, das quais havia de constituir o
Reino universal dos filhos de Deus.
Esta palavra de Caifás pôs termo aos debates. A assembléia lançou contra Jesus a
excomunhão maior, na qual se incluía a pena de morte contra o culpado e contra os que
lhe dessem asilo. E para executar esta sentença, intimou o supremo Conselho a quem
quer que soubesse do paradeiro de Jesus a ordem formal de o denunciar às autoridades, a
fim de haverem às mãos a sua pessoa. 57 A partir daquele dia a única preocupação dos
fariseus foi dar a morte ao seu inimigo, sem desencadear contra si próprios uma
revolução popular.
Quanto a Jesus, começou a evitar o aparecer em público. E deixando as
proximidades de Jerusalém, retirou-se com os seus apóstolos para a pequena cidade de
Efrém. Ali, no deserto, a dois passos do Jordão, ficou esperando no silêncio da solidão, o
dia em que ele mesmo se iria entregar aos seus perseguidores.
CAPÍTULO II
Jesus ficou um mês no seu refúgio. Ocupava-se em orar a seu Pai e preparar-se
para o grande sacrifício que devia coroar a sua vida neste mundo. E com inefável alegria
via ele aproximar-se aquele tão desejado dia da redenção, dia de glória para seu Pai, de
triunfo para ele, de derrota para satanás e de salvação para o gênero humano. Ia pois
afinal receber aquele batismo de sangue, pelo qual desde tanto tempo andava suspirando!
Bem diferentes eram os pensamentos dos apóstolos. Divididos entre o temor e a
esperança, perguntavam o que iria suceder ao seu Mestre e o que os esperaria a eles
57 A excomunhão era publicada, ao som de trombetas, pelos sacerdotes que presidiam à assembléias das
quatrocentas sinagogas de Jerusalém. Refere o Talmude que Jesus foi assim declarado solenemente excluído da
sinagoga e proclamado digno de morte, como feiticeiro e sedutor do povo.
próprios. Dum lado, os pontífices e os fariseus não cessariam de prosseguir na execução
da sua sentença. E esbirros, por eles enviados, poderiam a cada passo apoderar-se do
excomungado e arrasta-lo à presença dos juízes. Por outro lado, o povo, depois do
milagre em Betânia, declarava-se cada vez mais em favor do profeta. Apesar das ordens
urgentes do Sinédrio, não só ninguém havia traído o Salvador, denunciando o lugar do
seu retiro, mas nem já receavam chamá-lo Filho de David e rei de Israel. E se tinha
ressuscitado a Lázaro, dizia a gente, fora para mostrar a todos o seu poder e preparar a
sua ascensão ao trono. E de bom grado se entregavam os apóstolos, como o povo, a estes
pressentimentos, para se distrair das suas sombrias inquietações.
Mal que apareceu a lua de abril e os emissários do supremo Conselho fizeram
chegar à noticia de todo o povo que dentro de quatorze dias se havia de celebrar a Páscoa,
começaram as caravanas a dirigir-se para Jerusalém. Grande numero de peregrinos, com
efeito, adiantavam o dia da sua chegada à cidade santa, a fim de lá se purificar antes da
festa. Angustiados, esperavam os apóstolos que Jesus, visto o mandato de prisão contra
ele dado, não sairia do seu retiro, quando, dez dias antes da solenidade, lhes anunciou ele
que iam juntar-se às caravanas. Estupefatos com tal determinação, puseram-se ao
caminho, não sem medo. Jesus ia adiante deles com passo firme e decidido; eles
seguiam-no a alguma distância, tristes e silenciosos. Contudo foram pouco a pouco
retomando coragem com o pensamento de que o futuro nada tinha de encoberto para o
Mestre, e que de certo não iria ao encontro do inimigo, se não estivesse seguro da vitória.
E iam já devaneando com o reino temporal, quando Jesus, voltando-se para eles,
os tomou à parte e lhes anunciou, não somente a sua morte próxima, mas os pormenores
da sua Paixão: “Eis que subimos a Jerusalém, disse, onde se vão cumprir todos os
vaticínios dos profetas a respeito do Filho do homem. Será entregue aos príncipes dos
sacerdotes, aos escribas e anciãos do povo, que o condenarão à morte. Depois será
entregue aos Gentios que o encherão de ultrajes e o açoitarão e lhe cuspirão no rosto e o
crucificarão. Morrerá na cruz e ressuscitará ao terceiro dia.”
Destes incidentes tão explícitos e aflitivos nenhum lhes feriu o espírito obcecado.
E pensaram ouvir umas como palavras misteriosas cujo sentido não podiam penetrar.
Uma só coisa retiveram e foi que, passados três dias, Jesus havia de ressuscitar, por certo,
cuidavam eles, com intenção de proclamar o seu Reino e de confundir os seus inimigos.
Que significavam aquela morte e aquela ressurreição? Não o sabiam eles; mas tinham
para si, que Israel ia de certo assistir ao triunfo do Messias.
E esta falsa persuasão de tal modo os dominava que Tiago e João, os filhos de
Zebedeu, não puderam ter-se que não anunciassem a sua mãe, (a qual fazia parte da
caravana) o Reino próximo do Salvador. Era o momento, conforme eles pensavam, de
arranjar um lugar privilegiado no novo Reino e talvez Salomé, que tinha deixado tudo
para seguir a Jesus e o servir, poderia obter alguma coisa em favor dos seus filhos. Logo
entendeu Salomé o que os filhos dela pretendiam. Aproveitando-se pois dum momento
em que Jesus estava só, aproximou-se dele com os seus dois filhos e lançou-se-lhe aos
pés.
“Que quereis de mim? perguntou Jesus. - Senhor, respondeu ela, eis aqui os meus
dois filhos, e eu tomo a ousadia de vos pedir que os coloqueis no vosso Reino, um à
vossa direita e o outro à vossa esquerda.
- Não sabeis o que pedis, replicou Jesus, pondo os olhos nos dois irmãos. Podeis
beber o cálice que eu hei de beber e receber o batismo em que eu hei de ser batizado?
- Podemos, responderam eles, sem saber que se tratava do cálice das dores.
- Vós o bebereis, com efeito, replicou o bom Mestre, pois já os estava prevendo a
ambos afrontando o martírio pela sua glória; mas, acrescentou Jesus, sentar-se à minha
direita ou à minha esquerda, meu Pai é quem o concede àqueles a quem para estes lugares
predestinou.”
No Reino dos Céus os lugares são dados não ao favor, mas ao merecimento.
Chega-se a eles, usando bem das graças que Deus dá precisamente para que o homem
com elas mereça a glória. Mas naquele momento, os filhos de Zebedeu ocupavam-se
menos do Reino dos Céus do que dos seus sonhos dum bom futuro neste mundo. E os
outros apóstolos não eram mais atilados; pois, ao saberem da ambiciosa pretensão dos
dois irmãos, exprobraram-lhes azedamente o terem pretendido os primeiros lugares com
detrimento dos seus colegas. Mas Jesus, sempre bom e sofredor, pô-los de acordo com
lhes pregar a humildade. “Os chefes do povo, disse, dominam os seus vassalos e fazem-
lhes sentir que têm poder sobre eles; entre vós porém não há de ser assim. Antes quem
entre vós quiser ser o maior, deverá de fazer-se servo de todos, e será o primeiro quem de
todos se fizer escravo; pois o Filho do homem, cujos discípulos vós sois, não veio para
ser servido, mas para servir, e dar a sua vida pela redenção do mundo.”
Enquanto assim ia conversando com os apóstolos, viu-se Jesus para logo rodeado
duma inumerável multidão de peregrinos, que se tinham por felizes com escoltar o
profeta. Nas imediações de Jericó, tais clamores levantava aquela entusiasta multidão,
que um cego, por nome Bartimeu, assentado à beira do caminho com outro companheiro
tão cego como ele, perguntou donde se originava esse ruído e o porquê de tamanhas
ovações. Responderam-lhe que Jesus de Nazaré ia passar ao pé deles. Para logo penetrou
uma luz interior na alma daqueles dois mendigos que se puseram a gritar: “Jesus, filho de
David, tende piedade de nós!” E quanto mais se aproximava Jesus, mais redobravam eles
os seus gritos, a tal ponto que os da vanguarda do cortejo pensaram dever mandar-lhes
que se calassem. Mas em vez de os atender, continuaram a fazer o seu pedido com voz
ainda mais lastimosa: “Jesus, filho de David, tende piedade de nós!” Parou Jesus e
mandou que lhe trouxessem os dois cegos. Alguns do séquito correram para Bartimeu
dizendo-lhe: “Sus! levanta-te, é o Mestre que te chama.” Bartimeu atirou com a capa e
correu para Jesus, seguido do seu companheiro. “Que desejais de mim? perguntou-lhes
Jesus.
- Senhor, fazei que eu veja, respondeu Bartimeu. Fazei que se nos abram os olhos,
disseram ambos dois.
Movido à compaixão, tocou-lhes Jesus nos olhos, dizendo: “A vossa fé vos salvou:
levantai-vos e vede!” No mesmo instante abriram-se os olhos dos dois cegos que se
uniram ao cortejo, glorificando a Deus. Começou logo todo o povo a aclamar o profeta e
a saudá-lo como Filho de David, como o tinham feito os dois cegos, e a bendizer a Jeová
por ter afinal enviado ao seu povo o Messias esperado desde tantos séculos. E no meio
daquela multidão entusiasta entrou Jesus em Jericó.
Naquele momento a cidade de Jericó, a cidade das palmeiras e das rosas,
regurgitava de peregrinos que, vindos das duas margens do rio sagrado, faziam alto
dentro dos seus muros, antes de tomar o caminho para Jerusalém. Como era preciso
caminhar ainda sete horas através das montanhas para chegar à cidade santa, resolveu
Jesus, como o grosso dos viajantes, pernoitar em Jericó. Ia pois atravessando a cidade,
rodeado de milhares de forasteiros, ávidos de ver e saudar o profeta, quando uma
circunstância singular lhe ofereceu ocasião de salvar uma alma e dar uma lição às gentes.
Um chefe de publicanos, chamado Zaqueu, muito rico e de muito má fama,
desejava ardentemente conhecer aquele Taumaturgo de Nazaré, de quem todos falavam
com admiração. E como não podia penetrar pela multidão para se abeirar dele, nem tão
pouco vê-lo, pois era pequeno de estatura, correu para a vanguarda do cortejo e subiu a
um sicômoro, junto ao qual Jesus devia necessariamente de passar. Encoberto na
folhagem, viu Zaqueu chegar o divino Mestre. Os seus olhos arroubados estavam
contemplando aquele formoso rosto, onde se pintava uma bondade mais que humana; o
seu coração, atraído para aquele personagem que lhe não parecia da terra, batia com
força, quando de súbito levantou Jesus os olhos para ele e o chamou pelo nome: “Zaqueu,
disse o Salvador, desce com presteza; preciso me hospedar hoje em tua casa.”
Transportado de alegria, desceu da árvore o publicano e conduziu Jesus à sua
habitação, com grande estranheza dos fariseus e até dos discípulos, que não podiam
compreender aquela predileção do Mestre para com um vil pecador, um maldito
recebedor de impostos. Mas viram em breve que o publicano valia mais que muitos
fariseus, celebrados por sua justiça e piedade. Transformado de súbito pelo
arrependimento dos seus pecados e desejoso de corresponder por um ato de generosidade
à divina condescendência de Jesus, parou à porta da casa e disse-lhe diante de toda aquela
multidão: “Senhor, desde este momento consagro aos pobres a metade dos meus bens e se
cometi injustiça para com alguém, restituir-lhe-hei quatro vezes mais.”
Dividindo assim a sua fortuna com os pobres, elevava-se Zaqueu dum salto a uma
perfeição que nunca atingiria o hipócrita fariseu. E por isso quis Jesus mostrar a todos
que, apesar dos seus secretos murmúrios, tinha ele escolhido muito a dedo o seu
hospedeiro. “Zaqueu, disse o Salvador, hoje entrou a salvação na tua casa. Este,
acrescentou Jesus dirigindo-se ao povo, é um genuíno filho de Abraão. E quanto ao Filho
do homem, ficai sabendo, que veio ao mundo a buscar e salvar o que tinha perecido.”
Passou pois Jesus a noite na casa de Zaqueu. Ao dia seguinte, diante da porta do
publicano estacionava uma turba imensa. É que todos desejavam fazer escolta ao Filho de
David que, sem dúvida alguma, ia entrar triunfante na cidade santa e empunhar, como
Messias libertador, o cetro dos antigos reis. Antes de deixar Jericó, procurou Jesus mais
uma vez tirar-lhes as ilusões, que a realidade dos fatos dentro dalguns dias ia destruir.
Sob o véu duma parábola, anunciou-lhes que os ia deixar em breve para ir tomar posse do
seu reino, e como cada um dos seus vassalos seria punido ou recompensado, conforme o
procedimento que na sua
ausência tivesse.
“Um homem de nobre linhagem, disse Jesus, foi a uma região longínqua para
receber das mãos do seu suserano a coroa real e voltar em seguida a governar os seus
estados. Mas antes de partir, chamou a dez dos seus criados e entregou a cada um certa
moeda de prata, recomendando-lhes que a pusessem a render até ao seu regresso. Ora tal
ódio lhe tinham os seus concidadãos que enviaram uma embaixada ao suserano a dizer-
lhe: Não queremos que esse homem reine sobre nós; isto porém não o impediu de receber
a investidura do reino. Voltando para casa, mandou chamar os criados e pediu-lhes contas
do lucro que tinham granjeado com o dinheiro que lhes metera nas mãos. O primeiro
respondeu que a sua moeda tinha produzido mais dez. - És um servo bom, disse ele, e já
que me serviste bem neste negócio de pouca monta, terás o governo de dez cidades. A
moeda de prata do segundo produziras outras cinco; foram-lhe confiadas cinco cidades.
Veio outro que entregou ao rei a moeda que ele lhe pusera nas mãos. Apresentou-lha
cuidadosamente envolta num lenço e disse: Senhor, ei-la aqui tal qual ma entregastes.
Não me importei dela, a fim de não ter contas a dar-vos; pois bem sei quão exigente vos
mostrais, buscando onde não há que achar, e ceifando onde não semeastes.
- Servo mau, respondeu o príncipe, as tuas mesmas palavras te condenam. Já que
sabias que eu era tão exigente, porque não puseste o meu dinheiro a render num banco,
para depois mo restituir com os juros? Tirai-lhe essa moeda, disse ele aos seus agentes, e
dai-a ao que tem dez. - Senhor, observaram estes últimos, este já tem dez. É verdade,
replicou o senhor; mas dar-se-há ao que já tem, e ficará na abundância; e ao negligente
que não soube granjear, até o pouco que tem se lhe tirará. E quanto àqueles meus
inimigos que não me quiseram ter como seu rei, tragam-nos aqui já à minha presença e
degolem-nos à minha vista!”
Fácil era de compreender o sentido desta parábola. Em vez de fundar em
Jerusalém um reino terrestre, Jesus ia partir de Jerusalém para uma região longínqua, o
Céu, a fim de receber do seu Pai a investidura do Reino de Deus. Os Judeus haviam de
recusar-se a recebê-lo por seu rei, mas com isso não deixaria ele de ser o rei do Céu e da
terra. Enquanto esperam que ele volte outra vez ao meio deles, deixava aos seus
discípulos o dom da fé e graças abundantes, para que pudessem, por meio das suas boas
obras, trabalhar pela sua glória. E quando ele vier no seu trono glorioso, cada um será
recompensado conforme os seus merecimentos; mas, ai! de quem tiver recebido a fé sem
a fazer frutificar pelas suas obras; e muito mais, ai! daqueles que tiverem dito de Jesus:
Não queremos que ele reine sobre nós!
Mais ao diante, à luz dos acontecimentos, compreenderão os apóstolos e
discípulos que a parábola das moedas de prata não era mais que uma história antecipada
da realeza espiritual de Jesus, e esta lembrança dos vaticínios do Mestre sustentar-lhes-há
a fé e a coragem no meio das provações; mas por agora pensaram ver nela a confirmação
das suas esperanças. O Messias, diziam lá para consigo, estava decidido a tomar enfim
posse do seu Reino, e a mostrar o seu poder àqueles orgulhosos fariseus, que gritavam,
como os da parábola: Não queremos que ele reine sobre nós. Com estes pensamentos foi
que as turbas, seguindo a Jesus, saíram de Jericó e se meteram pelos desfiladeiros que
levam à cidade santa. Chegaram a Betânia, ao pé do monte das Oliveiras, numa sexta
feira, seis dias antes da Páscoa. O sol ia descendo no horizonte, e o sábado estava a
começar. Parou Jesus em casa de Lázaro onde queria pernoitar com os apóstolos, ao
passo que os peregrinos venciam os poucos estádios que os separavam de Jerusalém e
anunciavam a todos que, apesar da excomunhão do Sinédrio, o profeta de Nazaré subiria
ao templo por ocasião das festas pascais.
CAPÍTULO III
O Hosana
Jesus foi recebido em Betânia com transportes de júbilo, não só pelos seus
queridos hospedeiros, mas por toda a população do burgo, que se sentia feliz por tornar a
ver o divino taumaturgo que ressuscitara a Lázaro. O dia seguinte, dia de sábado, foi para
todos um verdadeiro dia de festa. É que as ovações dos peregrinos tinham aberto os
corações à esperança. Perguntava a gente, se acaso estariam em vésperas dum triunfo; e
contudo, posta a sentença de excomunhão, não se podia deixar de prever que os inimigos
do Salvador tentariam apoderar-se dele durante a sua permanência na capital.
Entre os primeiros habitantes de Betânia havia um fervente admirador de Jesus, a
quem chamavam Simão o Leproso, porque o bom Mestre em tempos o curara da lepra.
Convidou o seu benfeitor para em sua casa tomar a refeição da tarde em companhia dos
apóstolos, do seu amigo Lázaro e de muitos outros discípulos. Marta, conforme o seu
costume, encarregou-se do serviço da mesa.
Ora, durante a refeição, Maria, irmã de Marta, a pecadora de Magdala, lembrou-se
que um ano antes, em conjuntura parecida, obtivera do Salvador o perdão dos seus
pecados. E como toda se entregara ao seu Deus, compreendeu ao mesmo tempo, que
antes da partida de Jesus para Jerusalém, era conveniente, em sinal de adeus, honrar o
Mestre com um ato memorável de amor e veneração. Logo que ele tomou lugar à mesa
do banquete, aproximou-se Maria, levando na mão um vaso de alabastro cheio de
preciosíssimos perfumes, quebrou o vaso e verteu sobre a cabeça do divino hóspede
aquele nardo precioso; e logo lançando-se-lhe aos pés, ungiu-lhos também e enxugou-
lhos com a sua longa cabeleira. E toda a casa ficou como embalsamada com um puro e
suave aroma.
Os convidados foram seguindo aquela cena com atenção. Os Judeus costumavam
partir um vaso no meio do festim para mostrar, no meio das alegrias deste mundo, a
fragilidade da vida humana. E Maria acabava de profetizar; tal como o Mestre vinha
fazendo desde alguns dias, que a separação se aproximava. Todos se juntavam de coração
a Maria, naquela suprema homenagem prestada ao Salvador, quando dum grupo de
discípulos se elevaram umas palavras de descontentamento. Até ali tristonho e taciturno,
Judas, um dos doze, exprimia bem alto a sua indignação, à vista daquela que ele taxava
de prodigalidade insensata. “A que fim, dizia ele, esta despesa exagerada? Estes
perfumes, que assim prodigais, bem podiam vender-se por trezentos denários, e esta soma
dar-se aos pobres!”
Muitos aplaudiram esta crítica, não chegando a adivinhar as secretas intenções do
apóstolo infiel. Bem pouco se importava Judas dos pobres; mas como tinha a bolsa
comum, de cujo conteúdo se apropriava sem grande escrúpulo, tinha pena de perder os
trezentos denários. Por outro lado, já não amava o seu Mestre, desde que principiara a
entrever-lhe humilhações e talvez uma catástrofe, na qual seriam por força envolvidos os
discípulos. Para que prestar semelhantes honras, dizia consigo Judas, a este homem que
fala sempre do seu reino e se encontra sempre reduzido a mendigar?
Jesus via bem claro o que ia por aquela alma atormentada pelo demônio; e por isso
ele mesmo se encarregou de responder-lhe. “Deixai em paz esta mulher, disse ele a Judas
e mais censores; porque lhe exprobrais o modo como procedeu a meu respeito? Acaba de
fazer uma boa ação, pois me prestou antecipadamente os serviços da sepultura. Pobres,
sempre os tereis convosco; a mim porém não me tereis sempre. Vós vituperais esta
mulher, e eu digo-vos que no mundo todo, onde quer que for pregado este evangelho,
ecoará o seu nome com honra sua, por causa da boa ação que praticou.”
De resto, aquela unção real de Betânia, vituperada por um traidor e louvada por
um Deus, não era senão o prelúdio do triunfo, também real, que, ao dia seguinte, um
povo inteiro ia consagrar ao Salvador. Jesus tinha recusado a coroa terrestre que os
Galileus, iludidos, não cessavam de lhe oferecer; mas queria, antes de morrer, que aquele
mesmo povo lhe reconhecesse a verdadeira realeza e levasse triunfalmente pela sua
capital o Filho de David, o Messias libertador, o verdadeiro rei de Israel. Em face dos
fariseus que desde há três anos o vinham cobrindo de injúrias, do Sinédrio que o
excomungara, do sumo sacerdote que se dispunha a pronunciar contra ele a sentença de
morte, Jesus ia aparecer como rei pacífico, mas também como rei omnipotente; como um
pastor que ia morrer pelas suas ovelhas, mas também como o juiz daqueles que lhe
maquinavam a ruína. E os milhares de homens do todas as nações, vindos a Jerusalém
para as festas da Páscoa, assistiriam deste modo à exaltação do Messias por todo o povo
de Israel, antes de ver aquele mesmo Messias pregado no patíbulo dos criminosos.
Antes da chegada de Jesus a Betânia, os peregrinos que obstruíam já as ruas de
Jerusalém, perguntavam ansiosos informações acerca do profeta de Nazaré. A
ressurreição de Lázaro ocupava todos os espíritos, e, por conseguinte, cada um desejava
tornar a ver e ouvir de novo um homem, assaz poderoso para tirar vivo do sepulcro a um
morto, nele sepultado há quatro dias. E de todos os lados se ouvia fazer esta pergunta:
Virá ele à festa ou recuará diante da sentença do Sinédrio? quando, de súbito, os
peregrinos, vindos com Jesus desde Jericó até Betânia, espalharam a notícia de que o
profeta passava o dia de sábado em casa de Lázaro e que, ao dia seguinte, subiria ao
templo. Para logo se manifestou, em todos os bairros da cidade santa, uma agitação
extraordinária. Grandes magotes de habitantes e de forasteiros subiram o monte das
Oliveiras, impacientes de ver o Mestre com o seu amigo Lázaro, saído do túmulo. Lázaro
e as pessoas de Betânia contaram todas as particularidades do grande milagre operado
pelo profeta, de modo que o número dos partidários de Jesus crescia de hora para hora e
aterrava os príncipes dos sacerdotes. Inquietos e perturbados, estes últimos entraram até
em pensamentos de fazer desaparecer Lázaro, aquela testemunha vinda do sepulcro para
os cobrir de confusão.
Tal era o estado dos espíritos, quando, no domingo, Jesus deixou Betânia para
fazer a sua entrada em Jerusalém. Rodeavam-no os seus apóstolos esperançados em que
o Reino do seu Mestre ia começar. Fazia-lhe cortejo uma imensa multidão a proferir
jubilosas exclamações. E não só não pareciam desagradar-lhe aquelas manifestações, mas
para logo indicou a sua vontade de entrar na cidade santa, como um rei na sua capital.
Chegado ao monte das Oliveiras, perto do lugarejo de Betfagé, mandou parar a multidão
e tomando à parte dois dos seus discípulos: “Ide, disse, àquela aldeia que vos fica em
frente. À entrada, topareis presos uma jumenta e um jumentinho, sobre o qual ninguém
ainda montou; desatai-os e trazei-mos. E se alguém vos perguntar, com que direito assim
procedeis, respondei-lhe que por ordem do Senhor, e logo vós deixarão livres.” Os dois
mensageiros encontraram com efeito a jumenta e o jumentinho, presos a uma porta que
dava para o caminho, e soltaram-nos. Perguntaram-lhes que intentavam fazer; mas como
responderam que assim lho tinha mandado Jesus, deixaram-nos partir, sem mais
observações.
O jumento fora a cavalgadura dos reis, e sobre esta cavalgadura era que o
verdadeiro rei de Judá devia transpor as portas da sua capital, conforme aquela profecia
de Zacarias: “Rejubila, ó filha de Sião. Eis o teu rei que a ti vem cheio de brandura,
montado numa jumenta e no seu jumentinho.” Os discípulos tiraram dos ombros os seus
mantos e aparelharam o jumentinho e fizeram que Jesus montasse nele. Depois, toda a
multidão, soltando gritos de alegria, foi avançando para Jerusalém.
E foi realmente aquela uma como marcha triunfal. Compactas multidões vieram da
cidade ao encontro do cortejo, com ramos de palma nas mãos, e fazendo vibrar o ar com
as suas aclamações, de modo que Jesus se encontrou como comprimido entre duas vagas
de povo, entre os que iam seguindo desde Betânia e os que lhe vinham saindo ao
encontro. À medida que ia avançando, uns extendiam-lhe os seus vestidos ao longo do
caminho, outros juncavam o solo com verdura, e todos à porfia celebravam os louvores
do profeta e o proclamavam rei de Israel.
Quando a multidão, ao chegar ao cume do monte, descobriu as brancas muralhas
da cidade santa com os seus palácios magníficos e o seu vasto templo rodeado de muros
de defesa, lançou aos ecos todos do vale os seus gritos de fé e amor: “Hosana! Hosana no
mais alto dos Céus! Glória ao Filho de David! Bendito seja o que vem em nome do
Senhor, para levantar o reino de David, nosso pai!” Não se podia reconhecer mais
formalmente o Messias prometido a Abraão e cantado pelos profetas. E por isso os
fariseus invejosos, que se tinham infiltrado no cortejo, exprobravam a Jesus os gritos, a
seu ver sediciosos, dos seus partidários. Aquela ovação, feita ao seu inimigo, taxavam-na
eles de provocação à revolta contra César. “Mestre, nós vos intimamos, diziam eles, com
um despeito que não podiam dissimular, mandai já calar os vossos discípulos! - É inútil,
respondeu o Salvador; porque, neste momento, se eles se calassem, as próprias pedras
clamariam.”
Naquela hora, por Deus escolhida para glorificar o seu Filho em nome da nação
judaica, ninguém podia obstar aquela pública manifestação da sua realeza. Ai! dos que,
naquele dia solene, recusaram abrir os olhos à luz, e blasfemaram contra o Salvador, em
vez de cantar com o povo um hino à sua glória! Do cimo do monte das Oliveiras, pousou
Jesus, por um momento, a vista sobre aquela Jerusalém que desde há tanto tempo vinha
desprezando obstinadamente a graça da salvação, e chorou. “Ó Jerusalém, exclamou ele,
se quisesses, sim, mesmo neste dia que ainda te é dado, se quisesses abrir os olhos e
reconhecer Aquele, que só, e mais ninguém, te pode dar a paz! Porém não: estás ferida
duma cegueira que te há de causar a ruína. Eis vem o dia, em que teus inimigos te
rodearão de trincheiras e te encerrarão e apertarão por todas as partes. Eles te destruirão, e
esmagarão contra o solo os filhos que encontrarem em teu seio; e de Jerusalém não ficará
pedra sobre pedra, porque não conheceste o tempo em que o Senhor te visitou.
Alguns momentos depois, entrava Jesus na cidade seguido da imensa multidão dos
seus discípulos. E toda a população lhe saiu ao encontro numa agitação profunda. Os
estrangeiros perguntavam aos que encontravam: “Que homem é este, e porque tantas
aclamações? - É o profeta de Nazaré, respondia-lhes a gente; este foi quem ressuscitou a
Lázaro.” E o “hosana ao Filho de David” ia ecoando de grupo em grupo, através de toda
a cidade. Quanto aos fariseus, mais que nunca exasperados, diziam uns para os outros:
“Já vedes que não aproveitamos nada: nós condenamo-lo e eis que toda a gente corre em
seu seguimento.”
Os discípulos acompanharam Jesus até ao templo; mas ele só lá se demorou um
momento; contudo foi o suficiente para ver que a casa de Deus voltara a ser uma feira
publica, tal como dantes. Aproximava-se a noite; e ele saiu com a deliberação de no dia
seguinte por cobro àquelas profanações; depois, tendo despedido as turbas, voltou para o
monte das Oliveiras, onde pernoitou, orando a seu Pai.
CAPÍTULO IV
Judeus e Gentios
CAPÍTULO V
Últimas lutas
58 Têm-se perguntado donde viriam aquelas pessoas que desejavam “ver a Jesus.” Eusébio, bispo de Cesaréia, na
sua Historia eclesiástica (an. 315) e o arcebispo Moisés de Korena, na sua História da Armênia (370-450),
contam, segundo os arquivos públicos da cidade de Edessa, que as pessoas em questão eram uns mensageiros de
Abgar, rei de Edessa que se encontrava então gravemente enfermo. Deveriam entregar a Jesus uma carta
concebida nestes termos:
“Abgar, filho de Artamés, príncipe da Armênia, ao Salvador Jesus. Ouvi falar de vós e das curas operadas
por vossas mãos. Dizem que dais vista aos cegos; que fazeis andar os coxos; que limpais da lepra, e até que
ressuscitais os mortos. Ao ouvir estas maravilhas, fiquei compreendendo que vós sois Deus descido do Céu,
ou Filho de Deus. E por isto é que vos suplico, chegueis até onde eu estou e me cureis do mal de que estou
atingido.”
Os que deviam entregar esta carta a Jesus encontraram-se em Jerusalém. Naquela época e nas
circunstâncias em que se encontrava, recusou o Salvador aceder ao convite do rei; mas dignou-se
responder-lhe nestes termos:
“Resposta à carta de Abgar, escrita por Tomé, apóstolo, por ordem do Salvador.”
“Bem-aventurado é quem em mim crer, ainda que me não veja. Porque de mim está escrito: Os que me
vêem, não crerão em mim, e os que me não virem, crerão e viverão. Escrevestes-me para que eu aí fosse. É-me
preciso cumprir aqui todas as coisas pelas quais fui enviado a Jerusalém. Depois de as ter concluído, subirei
para Aquele que me enviou, e depois que para Ele tiver subido, enviar-vos-hei um dos meus discípulos, que vos
sarará da vossa enfermidade e vos dará a vida a vós e a todos os que estão convosco.”
A História Eclesiástica de Eusébio é autoridade: por isso São Jerônimo e toda a tradição, durante mais de
mil anos, tinham considerado esta narração e estas cartas como traduzidas fielmente do texto ciríaco dos
arquivos da Armênia.
MAIOR DOS MANDAMENTOS. -O FILHO DE DAVID.
(Mat., XVI, 23-27; XXI, 23-46; XXII. -Marc., XI, 27-33, XII. - Luc., XX.)
CAPÍTULO VI.
Maldições
CAPÍTULO VII.
CAPÍTULO VIII.
A última Ceia
O testamento de amor
Mal tinha Judas saído pela porta do cenáculo, quando Jesus, vendo já vir a morte
irrompeu num como canto de alegria. “Enfim, disse, chegou a hora do triunfo, a hora
que, glorificando o Filho, vai glorificar o Pai.” E logo baixando os olhos para os
discípulos cheios de tristeza: “Meus filhinhos, acrescentou com ternura, não me restam
mais que uns instantes para estar convosco. Para onde eu vou, não me podeis vós seguir
por ora. Sede fiéis ao meu mandamento: amai-vos uns aos outros, como eu vos amei. Por
esta união fraterna, é que todos reconhecerão que sois meus discípulos verdadeiros.”
Como aos apóstolos não lhes entrava no pensamento que o seu Mestre fosse
morrer, perguntavam o que significava aquele discurso. “ Senhor, disse-lhe Pedro, falais
em deixar-nos: e para onde ides então? - Para onde eu vou não me podes tu agora seguir,
respondeu Jesus, mas seguir-me-ás mais tarde. - E porque não hoje? replicou o apóstolo
que já começava a compreender; estou pronto para dar a minha vida por vós. - Estás
pronto a dar a tua vida por mim? Pois olha, eu te anuncio que antes do canto do galo, já tu
me terás renegado três vezes.” Pedro continuou protestando que arrostaria a prisão e
todos os suplícios primeiro que renegar do seu Mestre.
Aproveitou-se Jesus deste incidente para os esclarecer sobre todos os perigos por
que iam passar e para os pôr de sobreaviso contra a própria fraqueza. “Simão, Simão,
disse ele, olha que o demônio vai sacudir-vos como o crivo sacode os grãos do trigo. Eu
porém orei por ti para que a tua fé não esmoreça. E tu, uma vez plenamente convertido,
confirma os teus irmãos. Todos, com efeito, esta noite vos escandalizareis a meu respeito,
pois está escrito ferirei o pastor, e dispersar-se-hão as ovelhas. Mas, após a minha
ressurreição, tornarei a ver-vos na Galiléia.” Pedro, não dando ouvidos mais que ao amor
que sentia para com o seu Mestre, protestou com vivacidade: “Ainda que todos fraquejem
no perigo, eu cá não hei de fraquejar. - E eu te repito, replicou Jesus, que antes do
segundo canto do galo, tu me terás negado três vezes. - Nunca! nunca! embora tivesse de
morrer convosco, nunca vos negarei!” E, como o seu chefe, também os outros apóstolos
fizeram protestos de inabalável fidelidade. Observou-lhes Jesus que para permanecerem
fiéis em tempo de guerra, era preciso armarem-se de coragem.” Quando outrora vos
enviei pela terra sem bolsa nem sandálias, faltou-vos acaso alguma coisa? - Nada,
responderam eles. - Pois bem! hoje tome cada um alforge e bolsa e quem não tiver
espada, venda, se faz falta, os vestidos para comprar uma, porque se vai cumprir o que de
mim diz a Escritura: Será contado entre os celerados.” Os apóstolos, cuidando que lhes
recomendava, não o armarem-se de coragem contra a tentação, mas duma espada contra o
inimigo, disseram-lhe: “Senhor, aqui estão duas espadas. - Isso basta,” replicou Jesus,
pois não é com espada que vencereis. Pedro contudo foi tomando uma para defender o
seu Mestre, se alguém se atrevesse a agredi-lo.
Naquele momento, a tristeza dos apóstolos raiava quase na desesperança. Não
sabiam o que se tramava contra Jesus e suas pessoas, mas era evidente que alguma
espantosa calamidade os ameaçava. Jesus anunciava-lhes que um dentre eles o trairia,
que Pedro o havia de negar e que todos o desamparariam e que seria tratado como um
criminoso e até mesmo levantado numa cruz. Acabava de lhes dizer que tinha de os
deixar a fim de ir para onde ninguém o poderia acompanhar; mas como explicar aqueles
enigmas, e, em todo o caso, que viria a ser deles, privados do seu Mestre e abandonados
indefesos no meio de inimigos encarniçados? Ao vê-los naquela mortal angústia,
silenciosos, abatidos e desalentados, sentiu-se Jesus comovido até ao mais íntimo do
coração; e então foi que daquele coração lhe brotaram, para os consolar e fortalecer, as
expressões que só um Deus podia inventar.
“Meus filhinhos, disse-lhes ele, não vos perturbeis com o pensamento da minha
partida. Crede em Deus e crede em mim. Vou partir para casa do meu Pai, e naquela
casa, onde há muitas moradas, hei vos de preparar um lugar. E voltarei então para vos
tomar e conduzir para onde eu vou. Vós sabeis para onde eu vou, e sabeis o caminho. -
Não, Senhor, retorquiu Tomé com candura, nem sabemos o lugar para onde ides, nem o
caminho que a ele conduz. - Tomé, eu vou para o Pai, e o caminho que a Ele conduz, sou
eu mesmo. Eu sou o caminho,” que é preciso seguir, “ a verdade” que é preciso crer, “a
vida” que é preciso possuir, para chegar até meu Pai. Se vós me conhecêsseis,
conheceríeis também a meu Pai. De resto, vós o vistes. - Senhor, mostrai-no-Lo,
exclamou Filipe, que também desejava, como Tomé, ver antes de crer, mostrai-nos o Pai,
e nada mais pediremos. - Como? respondeu Jesus; há tanto tempo que estou convosco, e
ainda me não conheceis? Filipe, quem me vê a mim, vê a meu Pai de quem eu sou a
perfeita imagem. Como podes tu dizer: Mostrai-me o Pai? Então não credes que eu estou
no Pai e que o Pai está em mim? Ele é quem fala por minha boca e ele é quem faz as
obras que eu opero. Por causa daquelas obras prodigiosas, crede pois que o Pai está em
mim e eu nEle.”
Com estas considerações tão próprias para os confirmar na fé, reanimou-se a
esperança dos apóstolos. Acrescentou Jesus que a sua desaparição não os impediria de
estender o Reino de Deus por toda a terra, conforme lhes tinha prometido. Pois ele lhes
havia de comunicar um tal poder que operariam prodígios mais maravilhosos que os
milagres por ele operados. E que tudo o que eles em nome do Salvador pedissem ao Pai,
Jesus lho concederia a fim de glorificar por meio deles ao Pai muito amado.
Estão desolados ao pensar que não mais gozarão da sua presença nem das suas
conversas tão íntimas; sob este respeito porém, terá Jesus ainda bom meio de indenizá-
los. “Se verdadeiramente me tendes amor, disse ele, eu pedirei no meu Pai e ele vos
enviará o Espírito consolador que estará sempre convosco, aquele Espírito de verdade,
que o mundo não pode receber, nem conhecer,
nem apreciar, mas que se fará sentir de vós, porque residirá no vosso coração. E eu
mesmo vos não deixarei órfãos, mas virei ter convosco. Ainda um pouco de tempo, e o
mundo já me não verá; porém vós ver-me-eis interiormente, pois viveremos da mesma
vida. E compreendereis então que eu estou em meu Pai e em vós, e vós em mim. Eu
manifesto-me intimamente à alma que me ama, e meu Pai e eu estabelecemos nela a
nossa morada. - E por que motivo, perguntou Filipe, vos não manifestais ao mundo do
mesmo modo? - Porque o mundo, respondeu Jesus, me não quer e não se importa para
nada com os meus mandamentos.”
Para consolação dos apóstolos, acrescentou Jesus que o Espírito-Santo completaria
e explicaria a doutrina que tinham recebido. Ao despedir-se deles, deixava-lhes a paz de
Deus, a paz que o mundo não pode dar. E que a sua partida não devia causar-lhes
perturbação nem temor, pois voltaria, como tinha prometido. Por amor dele, antes se
deviam alegrar de o ver tornar para seu Pai. “Se assim vos anuncio a minha partida, é
para que a vossa fé não vacile, quando virdes que se realiza. Mas não prolonguemos esta
conversa, pois vem já perto o príncipe deste mundo; não é que ele tenha direito algum
sobre mim, mas é preciso provar ao mundo que amo a meu Pai e que lhe obedeço em
tudo, qualquer que seja a sua vontade. Levantai-vos e saiamos daqui.
Eram dez horas. Rodeado dos seus apóstolos, desceu Jesus as ladeiras do monte
Sião e encaminhou-se, pelo vale do Cedron, para o monte das Oliveiras. Os apóstolos,
agrupados à volta do Mestre, avançavam lentamente trocando idéias e confiando ao
Salvador os sentimentos que as suas profecias e recomendações lhes sugeriam à alma. E
Jesus respondeu-lhes com uma nova efusão de amor a respeito da missão salvadora que
iam desempenhar; missão que ficaria infrutuosa, se não permanecessem intimamente
unidos com ele.
“Eu sou, disse, a videira plantada pelo celeste vinhateiro e vós sois os sarmentos.
Ora o sarmento não dá fruto, se não está unido à cepa: vós pois ficareis infrutíferos, se
não estiverdes a mim unidos. Sem mim nada podeis operar; sem a seiva que de mim
procede, sois uns sarmentos estéreis que se cortam e lançam no fogo. Pelo contrário, se
permanecerdes em mim, tudo o que pedirdes, alcançareis, pois meu Pai tem a sua glória
em reconhecer-vos, pelos frutos abundantes que produzirdes, como verdadeiros
discípulos do seu Filho .
Portanto, se amam ao seu Mestre, não devem ser mais que um com ele, e devem
levar a todos os corações a vida que no Coração de Jesus hauriram. “É preciso, disse, que
vos ameis uns aos outros, como eu vos amei a vós. E eu amei-vos com o maior amor
possível, que é dar a vida por aqueles a quem se ama. Amei-vos até fazer de vós, não
servos, mas amigos íntimos; pois o servo não sabe dos segredos do seu Senhor, e eu
comunico-vos tudo o que ouvi a meu Pai. Amei-vos até vos escolher, antes que vós vos
entregásseis a mim, para serdes meus embaixadores aos povos, com o encargo de
produzir nas almas frutos de salvação abundantes e perduráveis. Peço-vos agora que
ameis aos vossos irmãos, como eu vos amei e que arrosteis todos os perigos, até a própria
morte, para os salvar.
“Não propagareis o Reino de Deus, sem encontrar adversários; mas, se o mundo
vos odiar, lembrai-vos de que primeiro me odiou a mim. Se fosseis do mundo, gozaríeis
das suas boas graças; ele há de vos perseguir com o seu ódio, porque eu vos retirei do
mundo,” para vos formar à minha imagem. Perseguir-vos-hão como a mim me
perseguiram e desprezarão a vossa palavra, como desprezaram a minha.
“Consolai-vos com pensar que vos tratarão assim pelo ódio que votam ao meu
nome, porque não quiseram conhecer Aquele que me enviou. E o seu pecado não tem
desculpa, visto como eu no meio deles operei prodígios quais nenhum outro operou; e
eles próprios foram testemunhas e não obstante odiaram-me a mim bem como a meu Pai;
pois odiar-me a mim é odiar a meu Pai. Deste modo verificaram a palavra da Escritura:
Votaram-me um ódio gratuito, sem motivo e por mera malícia. O seu ódio porém não
impedirá que os povos glorifiquem o meu nome. Quando vier o Espírito-Santo que eu
vos hei de enviar, o Espírito que procede do Pai, ele dará testemunho de mim; e vós
também, que me tendes seguido desde o princípio, sereis minhas testemunhas no meio do
mundo.
“Se vos falo tão claro é para vos pôr de sobreaviso contra a tentação. Quando vos
expulsarem das sinagogas e perseguirem de morte, pensando oferecer com isso um
sacrifício agradável a Deus, lembrar-vos-eis de que eu vos anunciei essas perseguições.
Enquanto bastava a minha presença para vos confortar, não fazia mais que deixar-vos
entrever apenas as provações que vos esperam; mas nesta hora em que nos vamos
separar, é preciso que vos abra o meu coração. Em vez de vos entristecerdes com a
minha partida, deveríeis antes alegrar-vos, pois é de vantagem para a vossa missão, que
eu me vá. Pois não virá o Espírito-Santo sobre vós sem que eu volte para meu Pai para
vô-lo enviar. Então virá ele promulgar solenemente o crime que o mundo cometeu com a
sua infidelidade, a santidade do Justo que ousaram condenar, e a sentença que tira ao
príncipe deste mundo o seu império. Muitas coisas teria ainda a dizer-vos; mas, a seu
tempo, o Espírito-Santo que ides receber, vos ensinará toda a verdade e vos revelará os
segredos do futuro.”
Jesus acrescentou para os consolar: “Ainda um pouco de tempo e já me não
tomareis a ver; e após um pouco de tempo tornar-me-eis a ver.” Os apóstolos, sempre na
ilusão acerca da morte próxima e ressurreição do seu Mestre, olhavam para ele como
quem o queria interrogar acerca do sentido daquelas palavras misteriosas. “Em verdade
vos digo, continuou logo Jesus, passado breve tempo, já não me vereis mais; chorareis
vós e gemereis enquanto o mundo gozará; porém, passado algum pouco de tempo, tornar-
me-eis a ver e a vossa tristeza converter-se-há em alegria. A mulher, que está prestes a dar
à luz, lastima-se porque chegou a hora das suas dores; mas, passada a hora do parto, não
mais se, lembra do que sofreu; tal é a consolação de ter dado mais um homem ao mundo.
Assim também, vós viveis agora na tribulação, mas em breve se há de regozijar o vosso
coração, e ninguém vos poderá arrebatar a vossa alegria. Uma vez alumiados pelo
Espírito-Santo, já não tereis que interrogar-me; e unidos intimamente comigo, tudo o que
pedirdes em meu nome, obtê-lo-eis de meu Pai, e serão cumpridos todos os vossos
desejos. Ensinei-vos em parábolas os mistérios do Reino de Deus, mas aproxima-se a
hora, em que vos falarei do meu Pai às claras e sem figuras. E vereis então que tudo lhe
podeis pedir, pois ele vos ama, porque vós me amais e crestes que vim de Deus. Sim,
crede-o firmemente, saí do seio do Pai e vim a este mundo; agora deixo o mundo, e volto
para o meu Pai.”
Pensaram os apóstolos que já compreendiam o que ainda não entendiam senão
imperfeitamente. “Já nos falais sem parábolas, disseram-lhe eles, e vemos que sabeis
todas as coisas, pois respondestes às nossas perguntas, ainda antes de as termos proposto.
E por isso cremos que saístes do seio de Deus. - Credes agora, disse Jesus que lhes via o
íntimo da alma, mas próxima está a hora em que vos dispersareis cada um para o seu
lado, e me deixareis sozinho, sozinho com meu Pai.” Parou por um momento e logo, com
voz comovida, mas sempre firme continuou: “Tudo o que eu acabo de dizer, disse-o para
que em mim encontreis o descanso das vossas almas. O mundo há de oprimir-vos, mas
estai sossegados, porque eu venci o mundo.”
Naquele momento, a obra da redenção apareceu toda por inteiro aos olhos de
Jesus. Viu os, seus enviados correndo à busca das almas até ao fim dos séculos; viu essas
almas errantes nas trevas abrirem-se por milhões às claridades do Evangelho e
glorificarem Aquele que reina nos Céus. E os olhos de Jesus todos radiantes de amor
elevaram-se então para o seu Pai e, com os braços em cruz, dirigiu-lhe esta sublime
oração:
“Meu Pai, chegou a hora por tanto tempo esperada: glorifica ao teu Filho, a fim de
que o teu Filho Te glorifique a Ti. Tu me estabeleceste cabeça do gênero humano, para
comunicar àqueles que me entregaste a vida eterna, aquela vida eterna que consiste em
conhecer-Te, único verdadeiro Deus, e a Jesus Cristo, que enviaste. Eu Te glorifiquei na
terra e cumpri com a obra de que me encarregaste: agora, meu Pai, glorifica-me Tu em
teu seio com aquela glória de que gozei em Ti desde toda a eternidade.
“Manifestei o teu nome àqueles que me entregaste. Escutaram as tuas palavras que
eu lhes transmiti; e sabem que de Ti saí e crêem que Tu me enviaste. Não peço neste
momento pelo mundo que Te não conhece, mas peço por aqueles que me deste, e que Te
pertencem como pertencem a mim. Vão ficar neste mundo que Eu deixo a fim de ir para
Ti. Pai, guarda-os no teu amor a fim de que sejam um como nós somos um. Enquanto
com eles estive, guardei-os todos; e nenhum dos que me deste pereceu, a não ser o filho
de perdição, prenunciado pela Escritura. Agora vou para Ti e oro por eles antes de os
deixar, para que encontrem em si a plenitude do meu gozo.
“Preguei-lhes a tua palavra e o mundo odiou-os, porque, seguindo as pegadas do
seu Mestre, já não são deste mundo. Eu não Te peço que os tires do mundo”, que hão de
encher com a glória do teu nome, “mas que os preserves do mal, que os santifiques na
verdade e que os consagres a tua glória, como eu próprio a ela me consagrei.
“Peço-Te por eles, e também por todos os que, por meio da sua palavra, hão de
crer em mim; para que sejam um como Nós somos um, vivendo Eu neles, e Tu em mim; a
fim de que sejam consumados na unidade, e que o mundo conheça que Tu me enviaste e
amas os meus como Me amas a mim. Ó Pai meu, estes meus queridos discípulos quero
que cheguem aonde Eu estou e que sejam testemunhas da minha glória, daquela glória
que recebo do teu amor desde o princípio do mundo. Pai, chamo aqui pela tua justiça: o
mundo não Te conheceu, mas estes creram que Tu Me enviaste e de mim aprenderam a
conhecer-Te. E deste conhecimento do teu nome, Eu lhes encherei o espírito, para que Tu
os ames, como Me amas a mim.”
Acabou Jesus de falar. Toda ocupada com estas celestiais conversas, passara a
pequena grei o Cedron e encontrava-se ao sopé do monte onde Jesus costumava passar a
noite. Diante deles encontrava-se um jardim, plantado de Oliveiras. Entrou nele o
Salvador e seguiram-no os apóstolos. Ao ver a calma e serenidade do seu Mestre, nenhum
deles pensava que naquela mesma hora ia começar o mais espantoso drama que nunca
jamais o mundo viu: a Paixão do Filho de Deus.
LIVRO SÉTIMO
Paixão e morte de Jesus
CAPÍTULO I.
Agonia e prisão
CAPÍTULO II.
Senhores enfim de Jesus, puderam os fariseus satisfazer o ardente ódio que lhe
tinham votado desde há tanto tempo. E para humilhar aquele profeta, que se dava por
Messias, quiseram fosse tratado como um criminoso vulgar. Por ordem deles, ligaram-
lhe os soldados da coorte os braços sobre o peito; e depois por meio de cordas presas a
uma cadeia que lhe cingiram à volta do corpo fizeram-no os esbirros caminhar diante de
si, como se se tratara dum ladrão e dum assassino. E da quinta de Getsemáni pôs-se o
cortejo em marcha para o monte de Sião onde se encontrava o palácio dos pontífices. Lá
é que Jesus devia ser julgado.
Ao atravessar a ponte lançada sobre o Cedron, os verdugos, por instigação dos
fariseus, precipitaram a inocente vítima no leito da corrente. E como não tinha Jesus mais
vestidos que a sua túnica e o manto, caiu com todo o peso do corpo sobre as pedras
amontoadas no fundo do riacho lodoso, o que ocasionou um redobramento de sarcasmos
e insultos. Que espetáculo divertido para aqueles chefes de Israel, o de verem prostrado
no lodo e no fundo dum charco, aquele taumaturgo que tirava os mortos do sepulcro!
Mal sabiam eles, os doutores e sacerdotes vis, que naquele mesmo momento verificavam
em Jesus aquelas palavras proféticas: “No caminho beberá da água da corrente e por isso
levantará a cabeça.” 64
Depois daquela queda, avançou com dificuldade o prisioneiro arrastado pelos
soldados, pelo vale, para o palácio do sumo sacerdote. Os habitantes de Jerusalém
ignoravam totalmente o crime que os seus chefes acabavam de cometer; contudo
começava já a reinar na cidade adormecida uma certa agitação. Decididos a concluir o
negócio aquela mesma noite, os chefes do sinédrio tinham mandado prevenir os seus
64 Esta particularidade da Paixão do Salvador é-nos conhecida pela tradição. Ainda hoje se mostra, junto à ponte do
Cedron, uma pedra de bastante tamanho na qual Nosso Senhor, ao cair, deixou a impressão dos seus
joelhos, pés e mãos. A Igreja concedeu indulgência aos peregrinos que se ajoelham naquela pedra do Cedron,
que se tornou com isso uma das estações da Via do Cativeiro. Chama-se assim o caminho que seguiu Jesus desde
o horto de Getsemáni até ao palácio de Pilatos.
colegas para que se juntassem no palácio de Caifás. Corriam emissários em todas as
direções, à procura de testemunhas falsas, com o fim de encobrir a sua infâmia com
aparência de legalidade. Enfim, como era preciso dar ao julgamento uma certa
publicidade, dirigiram-se para o tribunal os fariseus mais opostos ao profeta e às suas
doutrinas, para assistir ao interrogatório e aplaudir os juízes. De resto, a populaça, pronta
sempre, a uma palavra dos seus mentores, a amotinar-se contra o inocente, já começava a
agitar-se na sombra.
Chegou o cortejo ao palácio dos pontífices pela uma hora da manhã. Os soldados
levaram Jesus para uma das salas onde estava o magistrado, incumbido de formular a
acusação. Este juiz instrutor, chamado Anás, não era outro senão o sogro de Caifás, o
qual, sumo sacerdote como era, devia pronunciar a sentença. Depois de ter ocupado o
sumo pontificado durante largos anos, tinha-o Anás feito passar sucessivamente aos
diversos membros da sua família, ficando ele sempre a primeira autoridade no sinédrio.
Por isso Caifás nada fazia senão conforme as inspirações e direção do astuto velho.
Introduzido à presença do ex-pontífice, Jesus, carregado de cadeias, manteve uma
atitude firme e um semblante calmo e sereno. Tinha Anás preparado com cuidado o seu
interrogatório. Fez ao preso muitas perguntas sobre os seus discípulos e doutrinas, com a
esperança de colher qualquer indício de maquinações tenebrosas contra a Lei mosaica;
mas aquela esperança foi para logo reduzida a pó. Dos seus discípulos não disse Jesus
uma só palavra; pois era dele pessoalmente que se tratava e não dos que o tinham
seguido. E quanto à sua doutrina contentou-se com responder: “Eu ensinei nas sinagogas
e no templo diante do povo reunido; em secreto não disse nada. A que fim interrogar-me
sobre a minha doutrina? Interrogai aqueles que me ouviram; eles bem sabem o que eu
ensinei e darão testemunho à verdade.”
Nada mais acertado que esta resposta; tanto assim que o velho pontífice pareceu de
todo em todo desconcertado. Mas um dos servos veio-lhe em socorro; pois abeirou-se de
Jesus, aplicou-lhe uma vigorosa bofetada e disse-lhe com um tom de furioso: “É assim
que falas ao pontífice?” Jesus, sem deixar transparecer a mais pequena emoção,
respondeu àquele miserável: “Se falei mal, prova-o; mas, se falei bem, porque me feres?”
O indigno servo ficou-se calado bem como o seu amo. Este último, confuso e
desconcertado, levantou bruscamente a sessão a fim de não se expor a novas humilhações
e ordenou aos soldados que levassem o preso ao tribunal de Caifás, onde se encontravam
reunidos os membros do sinédrio.
Composta como era de fariseus e saduceus, inimigos declarados de Jesus, de
pontífices invejosos da sua glória, e de escribas que ele mil vezes confundira perante o
povo todo, não pensava aquela assembléia de modo nenhum em dar uma sentença de
justiça, mas em executar um projeto de vingança. Baste lembrar que, três vezes já, em
conciliábulos secretos, tinham aqueles mesmos juízes condenado a Jesus, excomungado
os seus partidários e por fim decretado a morte dele. Não tinha por ventura Caifás, numa
daquelas reuniões, pretendido que o triunfo de Jesus arrastaria consigo a destruição da
nacionalidade, e que por tanto a sua morte se tornava uma necessidade de salvação
pública? Estava pois Jesus condenado de antemão pelo presidente do tribunal e pelos seus
conselheiros, que todos lhe tinham seguido a opinião.
E por isso é que aqueles homens iníquos tomaram como diversão, naquele
processo, violar todas as leis. Era proibido aos juízes ter audiência na véspera ou no dia
de sábado; pois, como a execução do criminoso devia seguir imediatamente a sentença,
os preparativos do suplício teriam levado a violar o descanso do dia santo. Também
proibia a lei, sob pena de nulidade, que se julgasse durante a noite um negócio de vida ou
morte, porque as sessões deviam de ser públicas; e por este motivo não funcionava o
tribunal senão entre o sacrifício da manhã e o da tarde. Mas o sinédrio passa
resolutamente por cima de todas as formalidades legais. Prende Jesus durante a festa da
Páscoa, na véspera do sábado, à meia-noite, e procede ao julgamento uma hora depois da
prisão. O ódio não tinha tempo de esperar pelo nascer do sol. E mais, é preciso que o
povo, ao despertar, saiba que Jesus está condenado. Cairá por terra o entusiasmo das
turbas, quando ouvirem que o supremo tribunal de justiça condenou o falso profeta, como
réu de lesa-majestade divina e de lesa-nação.
Compareceu pois o Salvador, na sala do pretório, diante de todo o sinédrio. Para
motivar uma sentença de condenação, tinham os juízes fantasiado uma conspiração
contra a Lei mosaica e subornado testemunhas falsas, que, a custa de bom salário, deviam
sustentar a acusação; mas estas, por se contradizerem umas às outras, foram colhidas em
flagrante delito de mentira e impostura, fato que as expunha a graves castigos. Muito
embaraçados pareciam os juízes, quando dois miseráveis ali foram formular uma
acusação de tal natureza que era para impressionar vivamente a assembléia em peso.
“Ouvimos-lhe dizer (a Jesus), disse um deles: Posso destruir o templo de Deus e
reconstruí-lo em três dias.” O depoimento do segundo foi um tanto diferente. Segundo ele
ter-se-ia Jesus expressado da seguinte forma: “Eu destruirei este templo feito por mãos de
homem, e em três dias reconstruirei outro que não será feito com mãos humanas.”
Era esta acusação aos olhos dos Judeus de suma gravidade, porque o templo
personificava até certo ponto a nação, a Lei e todo a mosaísmo; mas como transformar as
palavras proferidas por Jesus em atentado contra o templo de Deus? Ele não dissera:
“Posso destruir” ou “destruirei este templo em três dias;” mas, pelo contrário: “Destruí
vós este templo,” que equivale a dizer: na hipótese da destruição do templo, eu o
reconstruirei em três dias. A ameaça contra o templo, a qual constituía o delito, era
portanto uma pura invenção das testemunhas. E demais, dava-se às palavras de Jesus um
sentido absolutamente alheio do seu pensamento. As expressões de que se servira
provavam claro que falava do templo do seu corpo, daquele corpo que os Judeus iam
destruir e que ele, em prova do seu divino poder, ressuscitaria depois de três dias.
Depois que os acusadores acabaram de falar, apontou Caifás ao divino Mestre um
olhar interrogador e intimou-lhe que respondesse. Mas Jesus ficou silencioso. Erguendo-
se, então, encolerizado, como um homem que se cresse objeto de desprezo, tomou Caifás
a palavra: “Então! Não respondes nada à acusação que estes formulam contra ti? E Jesus
continuou em silêncio. Não há que responder às testemunhas falsas, cujos depoimentos
nem ao menos são concordes, nem aos juízes que peitaram àqueles caluniadores. E não
responde à acusação de ter conspirado contra o templo quem, como Jesus, expulsou os
vendilhões do templo para impedir a profanação da casa de Deus. Calando-se diante
daqueles miseráveis, provava-lhes Jesus, quanto eram indignos e ao mesmo tempo dava
cumprimento à profecia de David: “Os que procuravam um pretexto para me tirar a vida,
proferiam contra mim coisas falsas e fúteis; eu porém houve-me a respeito deles como
um surdo que não ouve e como um mudo que não abre a boca.”
Aquele silêncio não deixava de inquietar os conselheiros. Pensavam de si para
consigo que, se Jesus, aquele doutor que tantas vezes os confundira com a sua ciência e
eloqüência, se dedignava de responder-lhes às acusações, era porque as julgava indignas
duma corporação tão respeitável como o sinédrio. Também Caifás assim o entendia, e
aquela humilhação fazia-o espumar de raiva. Pondo pois de parte acusações que para
nada serviam, caminhou Caifás direito ao fim, fazendo perguntas que obrigariam Jesus a
acusar-se a si próprio. “Eu te adjuro, exclamou ele em tom ameaçador, eu te adjuro pelo
Deus vivo, que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus?”
Não estava Jesus obrigado a obedecer a esta intimação, pois a Lei mosaica proibia
impor juramento ao acusado para não o colocar na alternativa de ou jurar falso ou acusar-
se a si mesmo. Caifás porém contava com que Jesus não hesitaria em afirmar a sua
divindade naquela circunstância solene. E, em todo o caso, pensava ele, quer Jesus
afirme, quer negue, perdido está do mesmo modo. Pois, se nega, condená-lo-emos como
impostor e profeta falso, visto como por muitas vezes afirmou perante o povo que era o
Cristo e o igual ao Pai que está nos Céus. Se afirma, infligir-lhe-emos a pena ditada pela
lei contra os blasfemadores e usurpadores dos títulos divinos.
Não se enganou Caifás. Jesus ao ver-se interpelado pela pontífice sobre a sua
personalidade divina e sobre a sua qualidade de Messias, quebrou o silêncio que tinha
guardado desde o começo da sessão. Sabendo bem que os juízes não esperavam senão
por uma afirmação da sua boca para lhe decretar a morte, respondeu ao sumo sacerdote
com soberana dignidade: “Acabais de dizer quem eu sou. Sim, eu sou o Cristo, o Filho do
Deus vivo. E agora escutai-me todos: Vereis um dia ao Filho do homem, sentado à direita
de Deus, descer sobre as nuvens do céu, para julgar a todos os homens.”
Mal tinha formulado esta empolgante declaração, quando Caifás, sem tomar um
momento para a examinar, bradou como um furioso: “Blasfemou! bem o ouvistes. É
inútil interrogar novas testemunhas.” E rasgou os vestidos com indignação, para protestar,
conforme queria a lei, contra a injúria feita a Deus. Mas o criminoso contra Deus era ele,
o injusto e indigno pontífice. Com que direito declarava ele que Jesus tinha blasfemado?
Conforme a lei, devia informar-se do parecer dos seus colegas, e não impor-lhes
brutalmente a sua opinião. Depois, a mais vulgar eqüidade exigia que se examinassem
seriamente as afirmações do acusado, antes de as reprovar como blasfêmias. Por que
motivo não seria Jesus o Messias e o Filho de Deus, segundo o texto da sua declaração?
Acaso não convinham à maravilha a Jesus de Nazaré os caracteres do Messias, indicados
nas Escrituras? Não tinha ele aparecido na época anunciada por Daniel, no momento em
que o cetro saía de Judá, segundo o oráculo de Jacó; na cidade de Belém, como tinha
profetizado Miquéias? A sua divina doutrina e a sua vida mais divina ainda, os seus
milagres operados desde há três anos diante de todo o povo, os doentes curados e os
mortos ressuscitados não estabeleciam a sua divindade da maneira mais evidente? e,
portanto, por que motivo condená-lo por se ter proclamado Messias e Filho de Deus?
Mas Caifás, entregue às mais vis paixões, mostrou-se menos cuidadoso de
esclarecer a sua consciência do que de satisfazer o seu ódio. Dirigindo-se pois aos seus
colegas, verdadeiramente dignos dele, bradou-lhes de novo: “Blasfemou! Que vos
parece? que pena merece? - A morte!” responderam eles à uma.
E Jesus escutou, calmo e impassível, aquela sentença monstruosa. Estava olhando
com ar de piedade para aqueles malvados que, friamente e sem exame, condenavam à
morte o Filho de Deus, porque já estava vendo o dia em que ele desceria do Céu a cassar
aquela execranda sentença e a tratar os seus autores conforme as regras da justiça
inexorável.
CAPÍTULO III.
A negação de Pedro
FUGA DOS APÓSTOLOS. - PEDRO E JOÃO NO PALÁCIO
DOS PONTÍFICES. - A TRÍPLICE NEGAÇÃO. - O CANTO DO
GALO. - OLHAR DE JESUS. - LÁGRIMAS DE PEDRO. -
A GRUTA DO ARREPENDIMENTO.
(Mat., XXVI, 69-75. - Marc., XIV, 66-72. -
Luc., XXII, 55-62. - João, XVIII, 15-27.)
CAPÍTULO IV
O maldito
66 Ao descer do monte Sião, ainda hoje visitam os peregrinos a Gruta do Arrependimento de São Pedro. Segundo
uma tradição, naquela gruta é que o apóstolo, tendo saído do palácio de Caifás, choraria amargamente (Luc. XXII,
62).até o século XII, estava aquela gruta encerrada dentro de uma igreja que tinha o nome de São Pedro in
Gallicanto (canto do galo). Esta igreja agora não existe.
DINHEIROS. - SUICÍDIO DO TRAIDOR. - O CAMPO DE
HACÉLDAMA.
(Mat., XXVI, 67-68; XXVII, 1-10. - Marc., XIV, 65;
XV, 1. - Luc., XXII, 63-71. - João., XVIII, 28.)
CAPÍTULO V.
Era preciso que a Filho de Deus morresse, não como um criminoso supliciado pela
justiça da sua nação, mas como um inocente que dá a vida por criminosos. E para que
esta verdade se imponha a todos e em todos os séculos, vai Deus forçar a autoridade
competente, a suprema autoridade, a dar-lhe solenemente e em pleno tribunal um
certificado de inocência, ao mesmo tempo que essa mesma autoridade pronunciará contra
ele uma sentença de morte. Parece isto impossível; mas a Deus nada é impossível.
A suprema autoridade em Jerusalém já não pertencia ao sinédrio, mas ao
governador romano. Desde há vinte e três anos, a Judéia, reduzida a província do grande
império, perdera até a sombra de soberania de que desfrutava ainda sob a domínio de
Herodes. O governador, que administrava o país em nome do imperador, reservava-se a
direito da espada, isto é, todas as sentenças capitais. O supremo Conselho da nação podia
excomungar, prender e açoitar, não porém tirar a vida - direito exclusivo do soberano. E
aqueles doutores de Israel liam, sem abrir os olhos, a profecia de Jacó: “Não há de sair o
cetro de Judá, antes de vir Aquele que há de ser enviado.” O cetro passou das mãos de
Judá para as mãos do imperador; veio pois o Messias; mas, em vez de o reconhecer, vão
mendigar contra ele uma sentença de morte àquele que se apoderou do cetro de Judá.
Pôncio Pilatos governava a Judéia desde há cinco anos; mas esse pouco tempo
bastara para se tornar detestado a todos as habitantes. Orgulhoso e avaro, ufano, até à
insolência, com o seu título de cidadão Romano, desprezava os Judeus, e a sua religião e
instituições e mostrava-lho em todas as ocorrências. As suas exações e violências de tal
modo a tinham tornado odioso que os príncipes do povo multiplicavam as diligencias
junto do imperador para alcançar que o depusesse. Bem o sabia Pilatos e daí o ser ainda
mais cordial o ódio que votava aos Judeus; contudo o temor duma revolução obrigava-o a
contemporizar.
Ainda que residia em Cesaréia, à beira mar, ia Pilatos cada ano a Jerusalém, por
ocasião das festas pascais. E lá habitava no magnífico palácio da torre Antônia, fortaleza
inexpugnável que os Romanos tinham levantado junto do templo para dominar a cidade e
defender-se contra qualquer tentativa de insurreição. Diante pois de Pôncio Pilatos,
orgulhoso representante da Roma imperial, é que o processo, começado pelo sinédrio,
devia terminar-se. Por conseguinte, foi Jesus transferido do palácio de Caifás para o do
governador, à distancia de cerca de trezentos passos. Exausto de fadiga, após aquela
horrorosa noite, arrastado pelos guardas que tiravam das cordas e escoltado pelos
príncipes dos sacerdotes, pelos soldados e por uma populaça fora de si que lhe ia
vociferando à volta, desceu Jesus das alturas de Sião para a cidade baixa; e depois
desandando a planura que ladeia a parte ocidental do templo, chegou ao palácio do
governador.
Eram como sete horas. A multidão estacionava no pátio de entrada para se não
manchar ultrapassando o limiar duma casa pagã; o que os impediria de assistir ao
banquete pascal. Rogaram pois os chefes ao governador houvesse por bem aparecer no
terraço exterior do palácio para lhes atender a demanda.
Pilatos conhecia perfeitamente a disposição dos Judeus a respeito de Jesus, pois
desde ha três anos que a Judéia inteira, a Galiléia e até as nações estrangeiras se
ocupavam do profeta de Nazaré. A própria esposa de Pilatos, Prócula, iniciada na
doutrina de Jesus, considerava-o como um enviado de Deus. Prometeu-se pois Pilatos o
arrancar aquele inocente as odientas vinganças daqueles fariseus hipócritas que ele
detestava com toda a alma. Dirigindo-se portanto aos chefes do sinédrio que tinha em
frente de si e apontando para Jesus fez-lhes esta pergunta: “Que acusações trazeis vós
contra este homem?”
Esta pergunta, tão natural na boca dum juiz, indispôs os Judeus. Esperavam que
Pilatos lhes entregaria Jesus sem mais inquéritos, pois responderam-lhe brutalmente: “Se
este não fora um malfeitor, não to teríamos entregado.” Vê-se claro, que aos seus olhos,
rever um julgamento do sinédrio e não ratificar, sem mais exame, uma sentença por ele
proferida, era fazer-lhe uma injúria. A tal arrogância replicou Pilatos com uma ironia que
os deve ter ferido no mais íntimo.
“Se é assim, exclamou, levai lá o vosso preso e julgai-o conforme as vossas leis.
-Bem sabeis, replicaram eles encolerizados, que não temos direito de condenar à
67
morte. Ora, aqui trata-se dum criminoso que merece a pena capital.
- Bem, respondeu o governador, mas eu outra vez vos pergunto que acusação
formulais contra este homem?”
Tornava-se manifesto que Pilatos não ratificaria pura e simplesmente a sentença do
supremo Conselho, mas que pretendia examinar a causa antes de se pronunciar. Foi pois
necessário lavrar ata duma acusação qualquer. Ora muito bem sabiam os príncipes dos
sacerdotes que a uma acusação de blasfêmia sorrir-se-ia Pilatos, pagão e filósofo cético
que não falava da religião judaica senão para a crivar de zombarias insolentes. A fim de
sobressaltar o governador, transformaram Jesus em agitador politico. “Perguntais que
crime praticou? clamaram eles. Nós colhemo-lo a tramar uma revolução contra o
imperador. Proíbe ao povo o pagar tributo a César e pretende ser o Messias, o rei que
deve libertar a nação judaica do jugo do estrangeiro.” O próprio satanás não teria podido
imaginar mentira mais impudente. Jesus pregava ao povo um reino puramente espiritual;
recusava a coroa que lhe ofereciam; e, três dias antes de se entregar aos Judeus, ensinava
no templo a obrigação para os vassalos de pagar o tributo a César. Desde há três anos
vinham os fariseus recusando reconhecê-lo por Messias, apesar dos sinais mais autênticos
67 Jesus foi condenado por um tribunal romano, observa S. João (XVIII, 32), a fim de se cumprir uma das suas
profecias. Anunciara aos apóstolos que seria crucificado: ora os Romanos crucificavam os condenados, ao passo
que os Judeus reprovavam tal gênero de suplício. Se fosse justiçado pelo sinédrio, não seria Jesus crucificado, mas
apedrejado.
da sua divina missão, unicamente porque não viam nele o Messias dos seus sonhos, o
conspirador político, o rei conquistador que devia libertá-los da tirania de Roma.
Imputavam pois a Jesus o crime de rebelião que ele não quisera cometer e que eles
próprios suspiravam ardentemente por cometer. Era o cúmulo da perfídia; e que bem
conhecia Jesus aos Judeus, quando lhes dizia: “Vós sois filhos do mentiroso, daquele que
foi homicida desde o princípio!”
Não tomou Pilatos a sério as impudentes calúnias do sinédrio. Sabia, melhor que
ninguém, qual era a seita que organizava as revoluções e se insurgia contra o pagamento
do tributo. Contudo, quis examinar o que havia no âmago de todas aquelas acusações e
qual o motivo porque se encarniçavam os Judeus em apresentar aquele homem, tão
modesto, tão manso, tão paciente e ao mesmo tempo tão digno, como um facínora
grandemente perigoso. Deixando pois os Judeus que vociferassem à vontade, retirou-se
ele à sala do pretório e mandou aos guardas que lhe levassem o acusado. Subiu Jesus a
grande escadaria de mármore 68 que conduzia para a dita sala e em breve se viu a sós
com o governador. Sem se importar das acusações inverossímeis e ridículas com que os
Judeus o carregavam, perguntou-lhe Pilatos o que significavam os títulos de rei e Messias
que, segundo diziam os Judeus, ele se atribuía. “És tu verdadeiramente rei? disse-lhe o
presidente.
- Perguntais-me isso por vós mesmo, respondeu-lhe Jesus, para saber quem eu sou,
ou simplesmente porque os meus acusadores vô-lo sugeriram?
- Sou eu por ventura algum Judeu? replicou Pilatos com desdém. Tenho eu
alguma coisa que ver com as vossas querelas religiosas? Os pontífices e o povo
trouxeram-te ao meu tribunal como usurpador da realeza, e eu só te pergunto por que
motivo tomas tu o título de rei?
- O meu Reino não é deste mundo, prosseguiu Jesus. Se fora deste mundo, os
meus vassalos combateriam por mim e me defenderiam dos Judeus. O estado em que me
encontro bastantemente vos diz que o meu reino não é deste mundo.”
Não compreendeu Pilatos bem de que reino queria Jesus falar, mas sabia já o
suficiente para se convencer de que o império nada tinha a recear do seu interlocutor. Que
podia contra César e as suas legiões o rei misterioso doutro mundo? Aquele homem
pareceu a Pilatos um sonhador inofensivo que tomava as quimeras como realidades. E
disse-lhe, como para lisonjear-lhe o devaneio: “Com que então tu és rei ?
- Sim, respondeu Jesus com majestade, dizeis bem. Eu nasci para reinar e vim ao
mundo para fazer reinar comigo a verdade. Todo o homem que vive da verdade, ouve a
minha voz” e torna-se meu vassalo.
“- A verdade! disse Pilatos sorrindo, que é isso de verdade?”
O Romano tinha ouvido falar de opiniões filosóficas e religiosas mais ou menos
acreditadas e de interesses de que, segundo diziam, se devia ter mais cuidado do que de
opiniões; mas a verdade, quem a conhecia? haveria mesmo por aí alguma verdade?
68 Aquela escadaria de mármore branco, de vinte e oito degraus, que Jesus rociou com o seu sangue depois da
flagelação, foi transportada para Roma por ordem de Constantino. É a Scala Sancta, que se venera em S. João de
Latrão. Os fiéis não sobem por ela senão de joelhos.
Evidentemente, ficaria Pilatos pensando, que tinha diante de si um sonhador e um
simples que professava sem dúvida doutrinas opostas às dos fariseus; mas a ele, Pilatos,
que se lhe dava das controvérsias judaicas? Voltou pois à fala com os príncipes dos
sacerdotes e disse-lhes, mostrando a Jesus: “Não encontro nada de repreensível neste
homem, e por conseguinte não o posso condenar.”
Mal proferiu estas palavras, explodiu na assembléia um tumulto pavoroso. Os
príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo acumulavam contra Jesus as mais
monstruosas acusações, às quais ele não respondia senão com o silêncio. Pilatos devia ter
procedido contra aqueles vis caluniadores, mas viu-os em tal grau de exaltação que lhes
temeu os ressentimentos. “Bem vês, disse ele a Jesus, quantas acusações amontoam
contra ti: e tu nada respondes?” Sempre impassível, Jesus nem abriu a boca para se
desculpar; isto desconcertou inteiramente ao governador.
Ao vê-lo perplexo, insistiram os Judeus sobre o lado político da questão. A dar-
lhes crédito, era Jesus um sedicioso que fomentava por toda a parte perturbações e
levantamentos. “Ele revolucionou todo o país, bradaram, desde a Galiléia, onde começou
a pregar, até Jerusalém.” À palavra ‘Galiléia’, Pilatos interrompeu os Judeus. Acabava de
achar uma escapatória para se desembaraçar dum negócio que principiava a inquietá-lo.
“Este homem é Galileu?” perguntou o pretor. E como lhe respondessem que sim,
acrescentou logo: “Se assim é, pertence à jurisdição do rei Herodes, atualmente em
Jerusalém. Levai-lhe o vosso preso, e ele que o julgue. É do seu direito.” E tendo dito
estas palavras, voltou as costas aos sinedritas, aos fariseus e à populaça desconcertada e
entrou no palácio, dando-se os parabéns de ter achado tão belo expediente para se tirar do
negócio. Sem dúvida, tinha sacrificado a inocência e atraiçoado a verdade; mas não ia
naquilo o seu interesse, e depois, que é isso de verdade?
Pelas oito horas da manhã chegava um arauto de Pilatos à casa de Herodes, a
anunciar-lhe que o seu amo, por deferência para com o tetrarca da Galiléia, enviava para
o seu tribunal um certo Jesus de Nazaré, suposto réu de diferentes crimes. Tinha por sem
dúvida que bem pudera julgar aquele Galileu, preso em território judaico, mas que
preferia pôr aquela causa nas mãos do soberano de quem Jesus imediatamente dependia,
em razão da sua origem e domicílio.
Tanto mais lisonjeado se sentiu Herodes com tal mostra de benevolência, quanto
menos a esperava, porque havia alguns anos que andava desavindo de todo com o
governador da Judéia. De mais, esta decisão inesperada oferecia-lhe a ocasião, de há
muito procurada, de ver ao profeta de Nazaré. O rei dissoluto, o marido incestuoso de
Herodíades, o assassino dc João-Batista, regozijou-se de poder conferenciar com aquele
sábio tão celebrado e poderoso taumaturgo, a quem desde há três anos vinham os povos
aclamando.
O palácio de Herodes elevava-se a uns cem passos da torre Antônia. Jesus, sempre
algemado e sempre escoltado por uma populaça furiosa, lá foi conduzido pelos chefes do
sinédrio. Assentado no seu trono, estava-o o rei esperando no meio dos seus cortesãos,
que com o seu amo se prometiam assistir a um divertidíssimo espetáculo. Para homens
licenciosos tudo se torna espetáculo, até o sofrimento, até a agonia e o martírio do justo.
Aqueles porém ficaram bem falidos na sua expectativa.
Durante toda aquela audiência, apesar das vociferações e odiosas calúnias dos
Judeus, permaneceu Jesus com os olhos baixos e num silêncio absoluto. Herodes, que se
dava ares de sábio e doutor, fez-lhe um largo interrogatório acerca das questões entre ele
e os fariseus controvertidas, sobre os seus milagres, projetos e reino. Em pé, diante dele,
esteve-o o Salvador ouvindo sem dar mostras da mais ligeira emoção e sem proferir uma
só palavra. Herodes e os seus entreolhavam-se com assombro, desorientados e
despeitados. Os príncipes dos sacerdotes cuidando ter chegado o momento de extorquir
ao rei uma sentença de condenação, representaram-lhe que aquele sedicioso se atrevia a
chamar-se o Cristo e o Filho de Deus. Esperavam que o tetrarca da Galiléia, amigo dos
Romanos, salvaria a nação e a religião, imolando aquele blasfemo. Herodes convidou
Jesus a defender-se, mas não obteve uma palavra, um gesto, um olhar ao menos, como se
o acusado fora surdo e mudo.
Jesus dignou-se falar a Judas, a Caifás, a Pilatos e ao próprio servo que não corou
de o esbofetear; porém não falou a Herodes, porque Herodes tinha sufocado as duas
grandes vozes de Deus: a voz de João-Batista e a voz da consciência. O Filho de Deus já
não fala ao homem que, com os seus vícios e crimes, se rebaixa ao nível dos brutos.
Tomou então o tetrarca uma deliberação, de todo em todo, a par dos seus instintos.
Todo salpicado ainda com o sangue de João-Batista, não ousou banhar as mãos no sangue
do novo mártir: preferiu divertir-se à custa do Jesus. Afinal de contas, disse ele lá para
consigo, este silenciário obstinado talvez não seja mais que um louco indefeso, com
quem nos podemos divertir uns momentos. Depois do que, reenviá-lo-emos a Pilatos,
que o tratará como quiser.
A idéia do seu digno amo sorriu aos homens de prazer que o rodeavam. Trouxeram
uma túnica branca e vestiram-na ao Salvador entre os aplausos da assistência. A túnica
branca, vestido próprio dos grandes, dos reis e das estátuas dos deuses, era também a
libré dos loucos. Aquele Jesus, que se tinha pelo Messias e Filho de Deus, não era
porventura, aos olhos daqueles sábios, um louco mil vezes merecedor da veste da
ignomínia? A fim de lhe fazer sentir todo o seu desprezo, entregou- o Herodes como um
joguete nas mãos dos seus serventuários e soldados; e depois que se divertiu, quanto lhe
aprouve, com os seus jogos cínicos e graçolas sacrílegas, mandou Jesus para Pilatos mais
os que lho tinham trazido.
Assim procederão os Herodes de todos os séculos: como não podem do leito
lodoso em que estão estirados elevar-se à inteligência das coisas divinas, desprezá-las-ão.
Sprevit illum.
CAPÍTULO VI.
Condenação à morte
Pelas nove horas, os chefes do sinédrio, seguidos de multidão cada vez mais
tumultuosa, reapareciam diante do palácio de Pilatos, pedindo com grandes gritos a morte
de Jesus. Um juiz de consciência teria proclamado altamente a inocência do acusado e em
caso de necessidade dispersaria pela força os sinedritas com os energúmenos por eles
assoldados; porém, dominado sempre pelo temor de se comprometer, recuou Pilatos
diante da sua obrigação. Pôs-se a parlamentar com os mentores do motim; coisa que
naturalmente lhes aumentou a audácia.
O exórdio da sua arenga mostrava ainda assim certa coragem. “Há algumas horas,
disse, apresentastes-me este homem como um faccioso, revoltado contra a dominação
romana; ora, depois de o ter interrogado diante de vós, não achei fundamento nenhum às
acusações que lhe impúnheis. Remeti-vos para Herodes, e vedes que o tetrarca também o
não julgou digno de morte...” Ia prosseguir, quando os amotinadores, pressagiando uma
sentença de absolvição, o interromperam com gritos ferozes e sinais dum furor diabólico.
Pilatos ficou de tal modo atemorizado que depois de ter estabelecido a perfeita inocência
de Jesus, concluiu a sua alocução dum modo singular e de todo inesperado: “Como este
homem, disse, de nenhum modo mereceu a pena capital, vou mandá-lo açoitar e depois
soltá-lo-ei.”
Esta concessão covarde produziu violentos protestos. Se Jesus está inocente,
porque açoitá-lo? Se é culpado, porque poupá-lo? E de todos os ângulos da praça se
elevaram estes clamores selvagens: “Morte! Morte! queremos que ele morra!”
À vista daquela horda de furiosos, ia talvez Pilatos a ceder, quando um incidente
misterioso lhe foi levar um pouco de energia. Um mensageiro, enviado por sua mulher,
entregou-lhe uma carta. Dizia-lhe Prócula: “Não te metas nesse negócio e não te tornes
responsável pela morte desse Justo. Por amor dele fui eu esta noite horrivelmente
atormentada em sonhos.” Pilatos não tinha fé; mas, como todos os pagãos, era
supersticioso: por isso viu naquele sonho um supremo aviso do Céu, (e nisto não se
enganava ele) e resolveu fazer uma tentativa desesperada para salvar a Jesus.
Era entre os Judeus costume muito antigo dar a liberdade a um preso por ocasião
das festas pascais. A alegria do infeliz posto em liberdade lembrava-lhes o gozo dos seus
pais ao saírem do cativeiro do Egito. Uma vez senhores da Judéia, não pensaram os
Romanos dever abolir aquele uso imemorial e cada ano soltava o governador um preso, à
escolha dos Judeus. Resolveu Pilatos aproveitar-se desta circunstância para chegar ao seu
fito.
Tinha então nas prisões de Jerusalém um malfeitor insigne, chamado Barrabás:
nome que só por si inspirava terror. Chefe duma horda de salteadores, desde longa data
anichada nas montanhas de Judá, tinham-no colhido numa sedição e condenado ao
suplício da cruz. Resolveu Pilatos dar a escolher ao povo entre Jesus e Barrabás. Cinco
dias antes, aquele povo levava Jesus em triunfo: há de ele hoje, movido por um
sentimento de ódio execrável, preferir-lhe Barrabás? Não podia Pilatos crer tal.
Levantando pois a voz de modo que o ouvisse a multidão, recordou-lhe como naquele dia
tinha por costume libertar um criminoso, e depois, sem lhes dar tempo de tomar conselho,
fez esta pergunta aos assistentes: “Qual dos dois quereis vós que ponha em liberdade: o
salteador Barrabás, ou Jesus, vosso rei?”
Ao ouvir aquele nome de Barrabás, houve na imensa turba um momento de
assombro e hesitação; mas os chefes do sinédrio, compreendendo o perigo, espalharam-se
por entre a gente, reaqueceram as paixões e persuadiram à plebe tresloucada que
reclamasse a Barrabás. Por isso, quando, alguns momentos depois, Pilatos renovou a
pergunta, ecoou-lhe aos ouvidos este grito feroz, que dominava toda a praça:
“Barrabás! queremos Barrabás! Dai-nos Barrabás!”
Indignado com tal cinismo, Pilatos rebrada-lhes:
“Que quereis vós então que eu faça de Jesus, rei dos Judeus?
E o povo todo, a uma voz:
“Crucifica-o! crucifica-o!”
Apesar do horrível clamor, Pilatos insiste:
“Que mal fez ele.”
Mas a turba não atende; continua a vociferar:
“Crucifica-o! Crucifica-o!”
Pilatos ficava outra vez vencido. Em lugar de dar uma sentença em nome da
justiça, tinha receado contrariar as paixões dum povo fora de si, e agora aquele povo,
encarniçando-se contra a sua presa, impera como senhor. Já não vê nem ouve; é um tigre
sedento de sangue. Pilatos recai sobre a sua primeira idéia. Já que o povo quer sangue, ele
dar-lho-á, mas com certa medida. Mandará açoitar Jesus para dar uma tal qual satisfação
aos Judeus, e depois pô-lo-á em liberdade. Propôs de novo este meio termo, porque,
repetiu ele, não vejo nenhuma razão para aplicar a pena capital; e ainda que reclamavam
a crucifixão com raiva cada vez maior, ordenou aos verdugos que procedessem à
flagelação.
Os Romanos infligiam este suplício com tal requinte de crueldade, que muitas
vezes os padecentes expiravam sob os golpes. De mais a mais, nesta circunstância, como
se tratava de excitar o povo à compaixão, receberam os verdugos ordem de não poupar a
vítima. O inocente cordeiro foi levado à praça pública, adjacente ao palácio de Pilatos.
Quatro verdugos despiram-no até à cintura, prenderam-lhe as mãos a uma coluna isolada
no meio da praça; e logo empunhando o terrível açoite armado de bolas de ferro,
atiraram-se contra Jesus e feriram-no com uma raiva verdadeiramente infernal. O sangue
corria de todos os pontos, voavam as carnes aos pedaços e todo o corpo contundido não
era mais que uma chaga. E assim se cumpria a profecia: “Foi esmagado por causa das
nossas iniqüidades.” Os verdugos não cessaram de ferir senão quando o açoite lhes caiu
das mãos. Desligando então o Salvador, arrastaram-no quase exânime para o pátio do
pretório onde se encontrava reunida a coorte dos soldados romanos.
Naquele pátio foi onde se passou uma cena de irrisão sacrílega, mais revoltante
ainda que a flagelação. Como era preciso lançar qualquer vestido sobre aquele corpo
despedaçado e ensangüentado, fantasiaram os soldados vestir como rei de comedia aquele
Jesus a quem acusavam de aspirar à realeza. Mandaram-no sentar sobre um tronco de
coluna como em trono, deitaram-lhe sobre os ombros um andrajo de cor escarlate à guisa
de manto real, e por cetro meteram-lhe nas mãos uma cana. Faltava-lhe uma coroa:
teceram-lhe uma de espinhos e puseram-lha na cabeça. Dobrando então o joelho um após
outro, gritavam-lhe zombeteando: “Salve, rei dos Judeus.” E levantando-se, davam-lhe de
bofetadas, cuspiam-lhe no rosto e enterravam-lhe a coroa de espinhos na cabeça
ensangüentada, à força de golpes que lhe davam com a cana. Como à coluna da
flagelação, também agora sofria Jesus aquelas torturas e humilhações sem exalar uma
queixa. Após aquela paródia estúpida e cruel, os soldados levaram Jesus a Pilatos.
Este, movido à compaixão, não duvidou de que aquela figura ensangüentada inspiraria
enfim ao povo um sentimento de comiseração. Do alto duma galeria exterior dirigiu-se de
novo àquela multidão, que estava exasperada com tanto esperar.
“Torno-vos a trazer o acusado, disse ele, e declaro-vos mais uma vez que o julgo
inocente. E, caso fosse culpado, ides ver em que estado ele se encontra, e dar-vos-eis por
satisfeitos.” E Jesus, levado pelos soldados, apareceu ao lado de Pilatos, com o rosto
inundado de sangue, com a coroa de espinhos na cabeça, e com o andrajo de púrpura
sobre as espáduas. Estendendo o braço para ele, mostrou-o Pilatos ao povo.
“Eis o homem!” bradou ele com força. O infeliz juiz implorava a piedade dos
Judeus. Vozes, vozes dos chefes, responderam-lhe:
“Crucifica-o!”
E a turba repetiu o horrível grito:
“Crucifica-o! crucifica-o!”
A vista do sangue irritava aqueles monstros em vez de os acalmar. O coração do
Romano soergueu-se perante tal infâmia, e lançando àqueles homens de ódio um olhar de
desprezo, disse-lhes:
“Que eu o crucifique? Tomai-o lá vós e crucificai-o. Quanto a mim repito-vos, que
não encontro motivo para uma condenação.”
Pilatos portanto punha resolutamente de parte a acusação de sedição, com que os
Judeus haviam contado para o mover. Vendo-se iludidos, deitaram-se ao pretendido
crime de blasfêmia que o sinédrio imputava a Jesus. “É culpado, vociferavam eles em
tom ameaçador, e segundo a nossa legislação deve ser punido com a morte, pois se
atreveu a proclamar-se Filho de Deus.”
Ao ouvir este nome de Filho de Deus, ficou Pilatos todo suspenso. E o seu olhar
fixou-se em Jesus, sempre calmo e paciente no meio de inefáveis dores e ignomínias sem
nome. Recordou-se daquela palavra que Jesus dissera: “O meu Reino não é deste
mundo”, e começou a pensar, se não teria diante dos seus olhos um daqueles gênios
benéficos que os deuses enviavam aos mortais para lhes revelar um segredo. E os
prodígios feitos por Jesus e o sonho recente de Prócula só podiam confirmá-lo naquela
opinião. Entrou Pilatos a tremer; com a idéia de que talvez mandara açoitar um imortal.
Deixando de novo os Judeus, a tumultuar na praça, reentrou no pretório e mandou que lhe
levassem a Jesus a fim de esclarecer aquele mistério.
“Donde és tu?” disse-lhe Pilatos.
Pilatos conhecia a origem humana de Jesus; e quanto à sua geração eterna, não lhe
deixava o seu ceticismo que a admitisse. Sabia também, por outra parte, que se Cristo se
chamava rei, o seu reino invisível não devia de modo algum inquietar a César. E isto
bastava para as exigências da causa. Por isso, nada respondeu Jesus; fato este que acabou
de desorientar o governador. Sentia-se subjugado pelo ascendente de um ser de todo
superior aos outros homens. Não pode contudo deixar de queixar-se dum silêncio que lhe
pareceu ofensivo da sua dignidade. “Não me respondes a mim? disse. Não sabes que
tenho poder sobre ti, e que de mim depende mandar-te crucificar ou pôr-te em
liberdade?”
Àquela afirmação do direito de julgar, sem se importar da justiça eterna, opôs
Jesus o direito de Deus. “Tu não tens outro poder sobre mim, respondeu ele, senão o que
do alto te foi dado.” E ao mesmo tempo, o seu olhar divino mergulhou até ao mais intimo
da alma do governador para lhe exprobrar a iniqüidade do seu procedimento. Todavia,
levando-lhe em conta os esforços que tentara para o arrancar à morte, acrescentou: “ Os
que me entregaram em tuas mãos são mais pecadores do que tu.”
Desassossegado, transtornado, levantou-se Pilatos, bem decidido a cumprir com o
seu dever, ainda à custa de incorrer na ira dos Judeus. Voltou a anunciar-lhes a sua
resolução definitiva, que era de pôr Jesus em liberdade; mas os príncipes dos sacerdotes e
os anciãos do povo esperavam-no naquele momento decisivo para lhe jogar o último tiro.
“Se o deixais em liberdade, gritaram eles com gestos furibundos, não sois amigo de
César, pois todo o que se faz rei conspira, é claro, contra César.”
Pilatos sucumbiu como esmagado por uma martelada. Ao ouvir o nome de César,
esqueceu-se de Jesus, dos direitos da justiça e do sentimento da sua dignidade. César era
o temeroso Tibério rodeado dos seus delatores; era o monstro que, por uma simples
suspeita, condenava à morte amigos e parentes. Imaginou-se para logo denunciado,
deposto e perdido sem remédio. O interesse levou de vencida a consciência, e decidiu-se
enfim a sacrificar Jesus.
Restava dar a sentença conforme as formalidades exigidas por lei. Na praça, em
frente do pretório, havia uma cadeira elevada, formada com pedras multicolores, a qual
em hebreu chamavam Gábata que significa elevação e em grego Litóstrotos ou montículo
de pedras. Do alto daquele tribunal, diante de todo o povo, era que o governador romano
devia proferir as suas sentenças. Tendo Pilatos tomado lugar naquela espécie de estrado
donde dominava a multidão, foi ali trazido perante ele Jesus, preso e rodeado de guardas.
Todos os olhos se fixaram no juiz e na vítima e todos os ouvidos se aplicaram a ouvir os
termos da sentença que se ia dar.
Pilatos olhando para a multidão pareceu, por última vez, pedir-lhe que perdoasse
ao réu. E mostrando Jesus coberto de sangue e de feridas, disse com voz comovida:
“Eis o vosso rei!” Uma força superior o impelia a proclamar a realeza de Jesus
perante aquele povo revoltado.
Responderam-lhe com horríveis clamores: “Fora! fora! seja crucificado!”
Tentou até o Romano despertar os sentimentos patrióticos daqueles Judeus, outrora
tão prezados da sua nacionalidade e dos seus príncipes. “Quereis então, disse ele, que eu
mande crucificar o vosso rei? - Nós não temos outro rei mais que César!” responderam
eles cobardemente. Deste modo, aquele povo de Deus, aqueles pontífices, aqueles
escribas, aqueles magistrados, aqueles Judeus que a cada passo blasonavam de
descendentes de Abraão e David, ei-los todos que abdicam a sua nacionalidade, a realeza
de Jeová, a realeza do Messias libertador, todas as glórias do passado e todas as
esperanças do futuro! Ei-los a todos de joelhos diante de César, e a exprobrar a Pilatos o
não ser assaz dedicado ao imperador! E por que motivo se prostra todo aquele povo com
tal impudor aos pés dos pagãos? Por ódio a Cristo, Filho de Deus, para obter de Pilatos
que o pregue num patíbulo e lhe verta as derradeiras gotas de sangue! O ódio levado a tal
excesso já não é sentimento humano: tais como o traidor Judas, os Judeus da Paixão,
verdadeiros instrumentos de satanás, procedem e falam como teria feito o próprio satanás.
Ao vê-los, para fartar a sua raiva, calcar aos pés o interesse e a glória da sua nação,
compreendeu Pilatos que tudo era para temer de semelhantes furiosos, se lhes resistisse
mais tempo. Atormentado de remorsos, mais atido porém ao seu posto do que ao seu
dever, quis contudo, ao dar a vitória ao motim, protestar solenemente contra a sentença
que lhe extorquiam. Mandando pois que lhe trouxessem água, lavou as mãos diante da
assembléia, dizendo:
“Povo, eu estou inocente do sangue deste Justo: vós respondereis por ele.”
Um grito formidável, saído de milhares de peitos, ressoou pela cidade santa: “Caia
o seu sangue sobre nós e sobre nossos filhos!”
Este grito subiu até Deus e decidiu a ruína de Jerusalém, a degolação dum povo
inteiro e a destruição da nação deicida.
Momentos depois, proclamava um arauto a sentença redigida por Pilatos. Dizia
ela que “Jesus de Nazaré, sedutor do povo, desprezador de César e falso Messias, seria
levado através das ruas da cidade ao lugar ordinário das execuções e uma vez lá, despido
dos seus vestidos, seria pregado numa cruz, onde ficaria suspenso até à morte.” 69
E assim terminou o mais iníquo de todos os processos. Os príncipes dos sacerdotes
deram-se os parabéns pelo seu triunfo; a multidão, ébria de sangue, bateu as palmas;
Pilatos, sombrio e mal humorado, entrou no palácio para lá ocultar a sua vergonha. Só
Jesus, o condenado à morte, saboreava, no meio das suas dores, uma alegria que nada
pode traduzir: a hora do sacrifício que havia de salvar o mundo, aquela hora pela qual
vinha suspirando desde a sua aparição neste mundo, acabava enfim de soar.
CAPÍTULO VII.
A via dolorosa
70 Havia outrora nesta paragem uma capela dedicada a Nossa Senhora do Espasmo. Ainda hoje lá se lhe vêem as
ruínas.
71 Por ser de Cyrene, em África.
sangue; toma logo o véu que cobria a sua fronte e enxuga com ele a face da santa vítima.
Agradeceu-lhe Jesus com um olhar e continuou o seu caminho; mas qual não foi o
assombro daquela mulher, quando, tendo entrado em sua casa, viu sobre o véu de que se
servira, a impressão da santa face do Salvador, daquela face triste e lívida, verdadeiro
retrato da dor. Em memoria deste fato, os discípulos de Jesus imortalizaram, sob o nome
de Verônica 72 , aquela heroína da caridade.
Não faltavam mais que uns cem passos para chegar à porta judiciária, chamada
assim por passarem por ela os condenados à pena capital quando se dirigiam ao Gólgota.
Por aquele caminho pedregoso, tornava-se difícil a subida; e apesar dos esforços do
Cireneu para o ajudar, caiu Jesus outra vez sob o peso da cruz. Levantou-se com grande
trabalho e aproximou-se da porta. Ali, sobre uma coluna de pedra, chamada coluna da
infâmia, estava afixado o texto da condenação. E o Salvador, ao passar, pode ler que ia à
morte por ter revolucionado o povo contra César e usurpado o título de Messias. Não
deixaram os fariseus de lhe apontar para a odiosa tabuleta que lembrava as acusações que
eles lhe fizeram.
Depois de ter passado a porta, encontrou-se Jesus ao pé do Gólgota. Apesar da
proibição de chorar à passagem dum condenado, um grupo de mulheres corajosas não
pode ficar, ao vê-lo, sem sair-se em gritos e lamentos. Algumas tinham os filhos nos
braços; e aqueles filhos choravam com as suas mães. Movido à compaixão ao pensar nas
calamidades que iam precipitar-se sobre a ingrata Jerusalém, lamentou Jesus aquelas
mulheres desoladas: “Filhas de Jerusalém, disse, não choreis por mim, mas chorai por vós
e por vossos filhos. Dias virão em que se há-de dizer: Bem-aventuradas as mulheres que
não tiveram filhos e felizes dos peitos que não amamentaram. E então clamarão aos
montes: Caí sobre nós! e às colinas: Esmagai-nos! Pois se deste modo é tratado um lenho
verde, que sucederá ao seco?” Se assim é tratado o inocente, que será do pecador?
Seis dias antes, do alto do monte das Oliveiras, vertia Jesus lágrimas sobre
Jerusalém e profetizava-lhe a ruína. Hoje, como ela põe o cúmulo aos seus crimes,
anuncia-lhe solenemente a reprovação e a espantosa catástrofe que porá fim aos seus
destinos. Os chefes do povo, ao ouvir aquela profecia, deveriam ter tremido de assombro;
porém, cegos e endurecidos como demônios, irritaram-se com as ameaças que aquele
condenado proferia contra a cidade santa. E os verdugos, por eles instigados, redobraram
os golpes com que o feriam, de tal modo que, tratado como um jumentinho de carga,
exausto de forças, caiu pela terceira vez nas pedras do caminho, antes de chegar ao cume
da colina. 73 Levantaram-no quase sem vida; e à força de o empuxar, arrastar e tirar por
ele em todos os sentidos, chegou enfim ao lugar do suplício.
72 Diz-nos a tradição que aquela mulher intrépida se chamava primeiro Serafia. E o seu nome de Verônica não seria
mais que uma alusão à Santa Face: Vera icon, verdadeira Imagem. Quando Saulo andava perseguindo a Igreja
nascente, S. Verônica deixou a Palestina, levando consigo o precioso tesouro. É uma das maiores relíquias de que se
faz, cada ano, exposição em S. Pedro de Roma.
73 Conforme esta relação, podem os nossos leitores imaginar as quatorze estações da Via Sacra, que a Igreja
representa à piedade dos fiéis. As duas primeiras: a condenação à morte e a imposição da cruz encontram-se no
pretório, que é hoje um quartel turco. As sete seguintes estão escalonadas às distâncias acima indicadas nas três
ruas que acabamos de percorrer. As últimas cinco estão encerradas na basílica do Santo Sepulcro, a qual cobre todo
o cume do Calvário. Terão cabida no capítulo que segue.
Naquele momento a multidão que afluía de todas as partes, cerrava-se densa à
volta do montículo, para saborear os derradeiros padecimentos do condenado e aplaudir a
sua morte. Vai soar a sexta hora do dia; o momento é solene como nenhum: a grande
tragédia a que assistem os anjos, os homens e os demônios, a tragédia do Homem-Deus é
chegada ao seu desenlace.
CAPÍTULO VIII.
A Crucifixão
74 A tradição referente ao crânio de Adão, bem anterior a Jesus Cristo, encontra-se nos escritos de quase todos os
Padres, em particular de Tertuliano, Orígenes, S. Cipriano, S. Basílio, S. João Crisóstomo, S. Ambrósio e S.
Agostinho. Refere-a S. Jerônimo numa carta para Marcela. S. Epifânio afirma que nos foi transmitida não só pela
voz das gerações, mas pelos monumentos da antiguidade, librorum monumentis.
clamor selvagem. Era o povo a amaldiçoar o Crucificado, conforme o que está escrito:
“Maldito seja o criminoso suspenso na cruz. 75 Os dois ladrões, igualmente crucificados,
foram postos à direita e esquerda do Salvador a fim de cumprir uma outra profecia: “Foi
comparado com vis malfeitores.”
Enquanto a multidão insultava os supliciados, os quatro algozes, cansados do seu
trabalho, sentaram-se ao pé da cruz do Salvador para dividirem entre si os vestidos dele,
pois, conforme a lei, cabiam-lhes em posse. Dividiram tudo em quatro partes para que
tivesse cada um deles a sua; mas como a túnica era sem costura, dum só tecido d'alto a
baixo, resolveram, por interesse de todos, deixá-la intacta e deitar sortes para ver a qual
caberia. E não sabiam que estavam executando ponto por ponto as palavras que um
profeta põe na boca do Messias: “Dividiram entre si os meus vestidos e tiraram à sorte a
minha túnica.” Versados como eram nas Escrituras, deveram os chefes do sinédrio
recordar-se dos oráculos divinos vendo como à vista deles se verificavam; mas o prazer e
o ódio farto sufocava neles qualquer outra idéia e sentimento.
Mas um incidente bem singular lhes foi contudo aguar aquela criminosa alegria. E
foi que viram de repente como os soldados colocavam no alto da cruz uma inscrição
ditada pelo próprio Pilatos. Ora aquela inscrição: “Jesus de Nazaré, rei dos Judeus,”
continha em quatro palavras uma injúria pungente aos fariseus. Para se vingar daquele
povo que o levara a condenar um inocente, mandava o governador afixar publicamente
que aquele criminoso, julgado por eles digno do suplício dos escravos, nem por isso
deixava de ser o Rei deles. E para que todos os estrangeiros que enchiam Jerusalém,
pudessem saborear a amarga ironia, estava a inscrição em três línguas: hebraica, grega e
latina. Fora de si de cólera à vista daquela tabuleta, despacharam os chefes do povo um
recado a Pilatos representando-lhe o ultraje que fazia à nação e rogando-lhe houvesse por
bem modificar a inscrição da forma seguinte: Jesus de Nazaré que se disse rei dos Judeus.
Porém Pilatos respondeu-lhes secamente: “O que escrevi, escrito está.”
Naquela ocasião profetizou Pilatos, como outrora Caifás. Caifás declarou “que
devia morrer um homem por todo o povo”, e Pilatos proclamou em todas as línguas do
mundo que aquele homem, aquele Redentor, aquele Messias, aquele Rei que há-de
dominar sobre todos os povos, Judeus, Gregos ou Romanos, é o Crucificado do Gólgota.
A má vontade de Pilatos exasperou os Judeus. E como não podiam tirar a tabuleta
que dava a Jesus o título de rei, puseram-se a mofar e blasfemar daquela aos olhos deles
pretendida realeza. Nisto os sacerdotes e escribas davam o exemplo. “Salvou aos outros,
diziam por zombaria, salve-se agora a si mesmo; se é o Messias e rei de Israel, desça da
cruz e creremos então nele. Apelava para Deus, e proclamava-se Filho de Deus: venha
agora Deus a livrá-lo!”
O povo animado com as blasfêmias dos seus chefes, repetia-as acompanhando-as
de insultos grosseiros. Passando e repassando por diante da cruz em magotes, abanavam
aqueles furiosos a cabeça e gritavam: “Anda! tu que destróis o templo e em três dias o
reedificas, desce lá da cruz, se podes, e põe-te em salvo. Se és Filho de Deus, desce do
teu patíbulo.”
Os próprios soldados que de ordinário executam o seu ofício em silêncio,
75 Maledictus qui pendet in ligno.
terminaram por tomar parte naquele trasbordamento de injúrias. Aproximavam-se do
Crucificado, ofereciam-lhe vinagre de refresco, dizendo-lhe: “Se tu és o rei dos Judeus,
salva-te então!”
Com descer da cruz não era que o Filho de Deus devia afirmar a sua realeza, mas
sim morrendo nela para exercitar o seu ofício de Redentor e Salvador. Por isso ao ouvir
aquelas sacrílegas provocações, Jesus não experimentou senão um mais vivo sentimento
de amor. Os seus olhos, arrasados de lágrimas, detiveram-se por um momento naqueles
judeus em delírio e pela primeira vez desde a chega da ao Calvário, saiu-lhe dos lábios
uma palavra: “Meu Pai, perdoa-lhes!... pois não sabem o que fazem!” Não só pedia
misericórdia para aqueles grandes criminosos, mas escusava-lhes, porque assim o
digamos, os crimes e blasfêmias atribuindo-as à ignorância. De fato, eles não conheciam
a divindade de Jesus; e isto até certo ponto tornava menos criminosa aquela horda de
deicidas.
Excitado pelas irrisões e insultos que toda aquela turba vomitava contra Jesus, um
dos ladrões, junto dele crucificados, voltou a cabeça para o lado e blasfemou assim contra
ele: “Têm razão no que dizem; se és tu realmente o Cristo, salva-te a ti e salva-nos a nós.”
Mas o companheiro, calmo e resignado, repreendeu-lhe o procedimento. “Nem tu sequer
temes a Deus? disse-lhe ele. A que fim tais imprecações contra um homem condenado,
como tu? E mais nós somos justamente castigados pelos crimes que fizemos; este porém
que mal fez ele?”
Ao pronunciar estas palavras, sentiu o ladrão, como em sua alma se operava uma
completa transformação. Descerraram-se-lhe os olhos sob a ação duma luz interior e
compreendeu que Jesus, o Filho de Deus, estava morrendo pelos pecados dos homens.
Penetrou-lhe no coração o arrependimento, mas um arrependimento cheio de amor que
lhe fez rebentar as lágrimas pelos olhos. “Senhor, disse ele então a Jesus, lembrai-vos de
mim, quando entrardes no vosso Reino.” E para logo ouviu esta resposta de infinita
misericórdia: “Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso,” isto é, no limbo onde os justos
estavam esperando Aquele que lhes havia de abrir as portas do Céu. Enquanto os
príncipes dos sacerdotes, os doutores, os soldados e a populaça mofavam da realeza de
Jesus e se fartavam de o ver padecer, veio de súbito um espetáculo novo lançar o
assombro no meio daqueles deicidas. À hora do meio-dia, quando o sol brilhava com
todo o seu fulgor, o céu, até então puro, tornou-se sombrio e ameaçador. As nuvens, cada
vez mais espessas, cobriram o disco do sol, e pouco a pouco, difundiram-se as trevas pelo
Gólgota, por Jerusalém e por toda a terra. Era a noite misteriosa profetizada por Amós:
“Naquele dia extinguir-se-há o sol em pleno meio-dia e no meio da mais viva luz
invadirão as trevas o mundo. 76 Deste modo respondia Deus aos insolentes reptos dos
76 Destas trevas, preditas por Amós (VIII, 9) e atestadas pelos evangelistas, fazem menção os historiadores
profanos. Thalus, liberto de Tibério, diz que naquela época, “uma horrível obscuridade cobriu o universo
inteiro.” Cem anos mais tarde, escrevia Flegão, liberto de Adriano, “que houve naquela época um eclipse do sol tão
completo que ninguém jamais foi testemunha de semelhante acontecimento.” Ora sendo então lua cheia era
naturalmente impossível um eclipse de sol. Depois de ter dito que o sol se apagou no meio da sua carreira,
acrescenta Tertuliano (Apolog.): “Tendes em vossos arquivos a relação deste fato.” S. Luciano, mártir, assim
falava ao juiz acerca da divindade de Cristo: “Como testemunha, disse, cito-vos o próprio sol que ao ver o crime
dos deicidas ocultou em pleno meio-dia a sua luz no céu. Buscai nos vossos anais e neles encontrareis que no
Judeus: o sol ocultava-se para não ver o crime deles; e a natureza inteira cobria-se com
um véu de luto para chorar a morte do Criador.
Naquele mesmo instante, emudeceram os blasfemadores e sobre o Calvário
começou a reinar um silêncio de morte. A turba, desvairada, fugiu a tremer; os próprios
chefes do povo, entrevendo qualquer vingança divina, desapareceram uns após outros. E
só ficaram no monte os soldados romanos incumbidos de guardar os supliciados, o
centurião que os comandava, alguns grupos isolados que deploravam no íntimo da alma o
crime cometido pela nação, e as santas mulheres que rodeavam a Virgem Maria. Até
aquele momento, os soldados tinham-nas contido a distância, mas então aproximaram-se
da Cruz. Ao clarão sanguíneo do céu meio velado, podia-se ver o corpo lívido de Jesus e
o seu rosto contraído pelo sofrimento. Os olhos permaneciam-lhe fixos no céu; e os
lábios entre-abertos murmuravam uma prece.
Junto de Maria, Mãe de Jesus, estavam João, o apóstolo amado, Maria de Cléofas
e Salomé, mulher de Zebedeu. Maria Madalena, toda submergida na sua dor, tinha-se
lançado aos pés da cruz e com ela abraçada derramava abundantes lágrimas. Baixou
Jesus
os seus divinos olhos para aqueles privilegiados do seu coração. E os seus olhos
encontraram-se com os da sua Mãe que não se desviavam dele um instante. Viu-lhe o
martírio interior e como a espada da compaixão, profetizada pelo santo velho do templo,
lhe perpassava a alma até o mais íntimo. E julgou-a digna de cooperar no ato da
Redenção, como tinha cooperado no ato da Encarnação; e não contente com dar-se a si
mesmo, levou a bondade ao ponto de nos dar sua Mãe.
João estava chorando aos pés da Cruz. Chorava ao seu bom Mestre, pois, posto
que tivesse ainda vivos os seus pais, sem Jesus, o Deus do seu coração, julgava-se órfão.
Não pode Jesus ver, sem comover-se, as lágrimas do apóstolo misturadas com as lágrimas
de Maria. Dirigindo-se pois à divina Virgem, disse-lhe: “Mulher, eis aí o teu filho.”
Aquele filho, que ela dava à luz entre lágrimas, representava a humanidade inteira
resgatada pelo Sangue divino. Jesus entregava-o à nova Eva, encarregando-a de
transmitir a vida a todos aqueles a quem a primeira dera a morte; e desde aquele
momento sentiu Maria que o coração se lhe dilatava e enchia do mais misericordioso
amor para com todos os filhos dos homens.
Dirigindo-se depois Jesus a João mostrando-lhe com a vista a Virgem desfeita em
pranto: “Meu filho, disse, eis aí a tua Mãe!” E desde aquele dia, João amou-a e serviu-a
como à sua própria mãe. E desde aquele dia também, todos aqueles a quem Jesus
alumiou com a sua graça, compreenderam que para ser verdadeiramente membros de
Jesus crucificado, é preciso nascer daquela Mãe espiritual que o Salvador criou no
Calvário.
Depois daquele supremo dom do seu amor, pareceu Jesus isolar-se da terra.
Estabeleceu-se em torno dele um silêncio temeroso que durou cerca de três horas. Os
guardas assombrados iam e vinham no meio das trevas sem dizer palavra. Imóvel diante
tempo de Pilatos, enquanto Cristo padecia, o sol desapareceu e o dia foi interrompido pelas trevas.” Trevas
evidentemente miraculosas: à vista daquele fenômeno inexplicável, Dionísio Areopagita exclamou: “Ou Deus
sofre, ou a máquina do mundo se desconcerta.”
da cruz, parecia que o centurião queria penetrar até ao mais íntimo da alma daquele
estranho supliciado. E Jesus, com os olhos no céu, orava a seu Pai, oferecendo por todos
os seus indizíveis sofrimentos, as suas ignomínias sem nome, o sangue que lhe brotava
das feridas e a morte que o ia ferir.
Num dado momento, assombreou-se-lhe o rosto e uma horrível angústia lhe
oprimiu o coração: viu-se só, carregado de crimes, amaldiçoado pelos homens, a morrer
sobre um patíbulo entre dois criminosos. Repelido da terra, voltou-se a sua alma para o
Céu; porém, mais vivamente ainda que em Getsemáni, experimentou ele o sentimento
pavoroso do mais completo desamparo. Era a justiça de Deus que passava sobre a vítima
de expiação, sem que um anjo do Céu viesse consolá-la no momento supremo. Pela hora
nona, do seu coração esmagado e agonizante escapou-se este grito de angústia: “Eli, Eli,
lamma Sabactani?” que significa: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” São
as primeiras palavras dum salmo onde David, por antecipação, conta as dores e a agonia
do Homem-Deus.
Contudo começavam as trevas a dissipar-se. Alguns Judeus, que tinham
permanecido no Calvário, atreveram-se até a mofar outra vez da sua vítima já moribunda:
“Está chamando por Elias, diziam eles; a ver se vem Elias livrá-lo.” Experimentava então
Jesus aquela sede ardente, que é o tormento mais horroroso dos crucificados. Tinha as
entranhas mirradas e a língua pegada ao céu da boca. No meio do silêncio, de novo se
ouviu a sua voz: “Tenho sede!” disse, exalando um profundo suspiro.
Havia ao pé da cruz um vaso cheio de vinagre. Molhou nele uma esponja um dos
soldados e segurando-a na extremidade duma haste de hissopo, aproximou-a aos lábios
de Jesus. E Jesus aspirou algumas gotas, para cumprir a profecia de David: “Para me
matar a sede, deram-me a beber vinagre.”
Tinha bebido até o fim o cálice das dores, cumprido todas as vontades do Pai
celeste, realizado as profecias e expiado os pecados do gênero humano: “Tudo está
consumado” disse Jesus.
E ao pronunciar esta palavra solene, viu-se como o corpo se lhe tornava ainda mais
lívido e a cabeça coroada de espinhos lhe caía em peso sobre o peito, e os lábios se
descoravam e os olhos se apagavam. Ia já exalar o último suspiro, quando, de repente,
erguendo a cabeça, deu um brado de tal força que todos os assistentes ficaram gelados de
espanto. Não era o gemido plangente dum homem moribundo; era o brado triunfal de um
Deus que diz à terra: Eu morro, porque quero. Os seus lábios benditos abriram-se então
pela última vez: “Meu Pai, disse, em vossas mãos entrego o meu espírito.” E tendo dito
estas palavras, inclinou a cabeça e expirou.
Morreu Jesus: pontífices, doutores, anciãos do povo, escribas e fariseus, vós
cuidais que o seu Reino acabou; ao passo que, bem pelo contrário, o seu Reino começa.
Essa Cruz à qual o pregastes, torna-se desde hoje o trono do grande Rei. À volta daquele
trono vão ajoelhar-se todos os povos da terra, como ele anunciou: “Quando for levantado
entre o céu e a terra, atrairei tudo a mim.”
LIVRO OITAVO
O Triunfo
CAPÍTULO PRIMEIRO.
A Ressurreição
No próprio momento em que Jesus exalou o último suspiro, uma revolução súbita
transtornou toda a natureza. O último brado do Deus moribundo ecoou até aos abismos. A
terra pôs-se a tremer, como se a mão do Criador cessasse de a manter em equilíbrio; e as
rochas partiram-se em conseqüência daquelas espantosas comoções. Até a rocha do
Calvário, sobre a qual se levantava a Cruz do Salvador, se fendeu violentamente até ao
profundo. 77 No vale de Josafá abriram-se os sepulcros e muitos mortos ressuscitaram e
apareceram, envoltos em seus longos sudários, pelas ruas de Jerusalém, espalhando por
toda a parte o espanto e a consternação. Era Deus que forçava a todos, vivos e mortos, a
proclamarem a divindade do seu Filho.
No templo, era o terror ainda maior. Os sacerdotes que estavam a acabar de imolar
as vítimas, pararam perturbados até ao íntimo da alma, enquanto o povo, mudo de
assombro estava esperando pelo final do estranho cataclismo. De repente ouve-se um
ruído sinistro do lado do Santo dos Santos; voltam-se todos os olhos para o véu de
Jacinto, de púrpura e de escarlate que fecha a entrada do santuário impenetrável, onde
Jeová se manifestava uma vez por ano ao sumo sacerdote; e eis que o véu misterioso se
rasga d'alto a baixo, rompendo assim a antiga aliança para ceder a lugar à nova.
Sacerdotes, cessai de imolar vítimas figurativas: a única vítima agradável ao Senhor, vós
a imolastes no Calvário! Povo de Israel, escuta a profecia de Daniel: “Depois de setenta
semanas de anos, será morto o Messias; o povo que o há-de renegar, já não será para o
futuro o seu povo; a oblação e o sacrifício hão-de cessar; e a abominação da desolação
morará no templo e a desolação perdurará até ao fim.” Sacerdotes e doutores, as setenta
semanas passaram; junto ao véu roto do santuário, confessai que crucificastes o Messias,
o Filho de Deus!
Em meio destas cenas de desolação, um silêncio lúgubre reinava no Calvário;
silêncio entrecortado de tempos a tempos pelos gritos lancinantes que davam os dois
ladrões. Depois da morte de Jesus, tinham-se afastado um pouco as santas mulheres com
Maria e o apóstolo João. Só o centurião, imóvel no meio dos seus soldados, não podia
despregar do divino Crucificado os olhos. Ainda lhe ecoava aos ouvidos o último brado
que Jesus dera; e a vista dos prodígios operados na sua morte acabou de lhe abalar o
coração. Dirigindo-se pois a todos os que se encontravam no Calvário, exclamou: “Era
um justo, era em verdade o Filho de Deus.” E todas as testemunhas daquele drama
sublime, impressionadas até ao íntimo da alma, voltaram para suas casas, batendo no
peito e dizendo como aquele Romano: “Sim, era verdadeiramente o Filho de Deus.”
O mesmo brado se ouviu lá nas profundezas do inferno. Quando Jesus deu o
último suspiro, compreendeu satanás o seu erro. Tinha amotinado a Sinagoga contra o
Justo, e aquele Justo era o Filho de Deus. Quisera o demônio, com raiva insensata,
aquela morte que dava a vida ao gênero humano e trabalhara sem o saber para remir
aqueles filhos de Adão que considerava como seus perpétuos escravos. “Era o Filho de
Deus, gritava ele desesperado, e eu servi-o nos seus desígnios” E naquele próprio
momento, pode satanás ver a alma de Jesus separada do seu corpo, quando descia ao
misterioso limbo onde desde longos séculos a estavam esperando os filhos de Deus. Ali
se encontravam os patriarcas e profetas: Adão, Noé, Abraão, Moisés, David e todos os
justos que tinham desejado a vinda do Salvador e nele tinham posto a sua esperança. Ao
entrar naquele templo dos santos, foi Jesus acolhido com um brado tal que ecoou naquele
77 Ao contrário dos efeitos naturais dos terremotos, a rocha está fendida transversalmente, e a ruptura cruza-lhe os
veios dum modo estranho e sobrenatural. “Está demonstrado por mim, diz Addison (De la Réligion Chrétienne, t. II)
que isto é efeito de um milagre que nem a arte nem a natureza podem produzir. Dou graças a Deus por me ter trazido
aqui para contemplar este monumento do seu admirável poder, este testemunho lapidar da divindade de Jesus
Cristo.”
momento ao pé da cruz e nos infernos: “É ele, é o Filho de Deus, é o Redentor que nos
vem anunciar a nossa próxima libertação!”
Neste meio tempo, alguns soldados, enviados por Pilatos, subiam silenciosos pelo
monte Calvário. Os Romanos desamparavam às aves de rapina os cadáveres dos
supliciados, mas a lei dos Judeus proibia que se deixassem suspensos na patíbulo depois
do sol posto. Como ia começar o sábado, mais urgente ainda se tornava o guardar as
prescrições legais. Os príncipes dos sacerdotes pediram pois a Pilatos mandasse acabar
com os três supliciados e depor-lhes, a seguir, os corpos. Para esta última execução é que
os soldados armados de enormes maças, subiam ao Gólgota.
Aproximaram-se dum dos ladrões e partiram-lhe as pernas e o peito. A mesma
sorte coube ao segundo ladrão. Chegando porém a Jesus, para logo notaram, na palidez
do rosto, inclinação da cabeça e rigidez dos membros, que há algumas horas deixara de
viver. Julgaram pois inútil quebrar-lhe as pernas. Contudo para maior segurança, um
soldado passou-lhe o lado com uma lançada. O ferro atingiu o coração e da ferida saiu
água e sangue. E deste modo se cumpriu aquela palavra da Escritura: “Fixarão os seus
olhos naquele a quem crucificaram;” e aquela outra concernente ao Cordeiro pascal:
“Não lhe partireis nenhum osso.”
O apóstolo João, que estava com as santas mulheres, viu com os seus olhos todos
os particulares desta cena misteriosa. Viu entrar o ferro da lança no Coração de Jesus, viu
correr o sangue e a água - aquelas duas fontes de vida saídas do divino Coração: a água
batismal que regenera as almas, e o sangue eucarístico que as vivifica. E João deu
testemunho do que tinha visto, a fim de a todos inspirar fé e amor.
Para concluir o seu ofício, dispunham-se os soldados a desprender os supliciados e
a enterrá-los, como de costume, com os instrumentos do seu suplício, quando se
apresentaram dois homens, a reclamar o corpo de Jesus. Um deles, José de Arimatéia,
pertencia à nobreza e tinha voz no supremo Conselho. Amigo como era da justiça e afável
e bom por natureza, recusara associar-se à negra conspiração tramada contra Jesus. No
íntimo, era discípulo do Salvador e esperava o Reino de Deus; mas o terror que
inspiravam os Judeus tinha-o impedido de manifestar a sua fé. As grandes emoções do
Calvário tal ousadia lhe meteram na alma que, ao morrer o Salvador, concebeu o desígnio
de lhe dar honrosa sepultura. Animado pois subitamente duma coragem heróica, não
receou ir ter com Pilatos e pedir-lhe o corpo de Jesus. Muito tinha o governador romano
por que penitenciar-se a respeito do Crucificado e dos seus amigos; veio de bom grado no
que se lhe pedia, mas quis primeiro certificar-se da morte, pois lhe parecia demasiado
prematura. Chamou pois o centurião encarregado de guardar os supliciados e, ouvindo
dele que Jesus já não vivia, ordenou-lhe que entregasse o corpo a José. Com José ia
Nicodemos, aquele doutor da lei que, desde a sua conversa noturna com Jesus, não tinha
deixado nunca de o defender das injustas acusações dos chefes do povo. José levava um
sudário para amortalhar o corpo, e Nicodemos, uma confeição de mirra e aloés, para o
embalsamar. Com o auxílio de João e de mais alguns discípulos despregaram da cruz o
corpo do Salvador; e depois carregando com o precioso depósito foram colocá-lo sobre
uma fraga a alguns passos da cruz. E ali afinal foi que as santas mulheres puderam
contemplar o rosto inanimado do Mestre a quem tinham seguido com tanta dedicação; ali
pode a Mãe de Jesus banhar-lhe com suas lágrimas as sagradas chagas e cobri-las de
beijos. Mas foi preciso bem depressa, concluir com aquelas demonstrações de dor e
ternura, pois o sol estava no ocaso e ia começar o Sábado.
José extendeu sobre a pedra o sudário que devia servir de mortalha. Colocaram o
corpo sobre aquele lençol, cobriram-no de perfumes, conforme ao costume dos Judeus, e
por fim cobriram com as extremidades do lençol fúnebre os membros e a cabeça do seu
muito amado Mestre.
Perto do lugar onde Jesus foi crucificado, num jardim pertencente a José de
Arimatéia, havia um sepulcro aberto na rocha, o qual ainda não servira. Deu-se José por
feliz com poder consagrá-lo à sepultura do Salvador. 78 Aquele jazigo funerário
compunham-no duas celazinhas abertas na rocha e que comunicavam entre si. Num
nicho, feito na segunda destas celazinhas, é que foi posto o corpo do Salvador; coisa que
mui bem notaram Maria Madalena e as santas mulheres, porque tinham formado o
desígnio de voltar ao sepulcro, passado que fosse o Sábado, para proceder, com menos
precipitação, ao embalsamamento de Jesus.
Tendo assim prestado os últimos serviços ao seu bom Mestre, saíram os discípulos
do monumento e rolaram-lhe para a entrada uma pedra enorme com o fim de lhe impedir
o acesso; depois, com o coração triste, com os olhos arrasados de lágrimas e oprimidos
com o peso da dor, entraram na cidade. Maria e as santas mulheres houveram também de
resignar-se a deixar o Calvário. Foram encerrar-se no cenáculo para lá passar o dia do
Sábado.
Tudo parecia concluído. O profeta de Nazaré morrera na cruz, como um vil
escravo. Os apóstolos, aterrorizados, tinham desaparecido; umas quantas mulheres,
depois de o terem seguido até ao Sepulcro, voltavam para suas pousadas, derramando
lágrimas. Dir-se-ia que os príncipes dos sacerdotes e os fariseus triunfavam
incontestavelmente; e contudo, coisa estranha! pareciam temer ainda aquele personagem
prodigioso, que tantas vezes os tinha espantado com o seu poder. Aquelas trevas que
envolveram a cidade durante a sua agonia, aquele tremor de terra no momento da sua
morte, aquele véu do Santo-dos-Santos rasgado miraculosamente, afiguravam-se a todos,
como presságios sinistros. E o que mais que tudo os inquietava é que o Crucificado tinha
anunciado que ressuscitaria três dias depois da sua morte.
Em tal assombro os lançaram estes temores que sem se importar com o descanso
sabático, foram para logo ter com Pilatos. “Senhor, disseram-lhe eles, lembramo-nos
que aquele impostor, quando ainda vivia, anunciou que ressuscitaria ao terceiro dia
depois da sua morte. Fazei-nos pois o favor de mandar guardar o seu sepulcro até ao fim
do terceiro dia, para que não vão os seus discípulos tirar o cadáver e digam depois ao
povo que ressuscitou dentre os mortos. Pois este segundo erro ainda seria mais perigoso
que o primeiro.”
Pilatos execrava aqueles homens, sobretudo depois que eles lhe extorquiram uma
sentença que a sua consciência lhe exprobrava como um crime. Por isso respondeu-lhes
78 As cinco últimas estações da Via Sacra: o despojamento dos vestidos, a crucifixão, o levantamento da
cruz, a pedra da unção ou preparação do corpo para a sepultura e o sepulcro acham-se encerradas dentro da
Basílica do Santo-Sepulcro.
com desprezo: “Tendes a vossa guarda: ide lá, e mandai guardar esse sepulcro, como bem
vos parecer.” Os príncipes dos sacerdotes e os chefes do povo foram ao jazigo onde
repousava o corpo do Crucificado. Selaram a pedra que defendia a entrada, e colocaram
soldados à volta do monumento a fim de impedir que alguém se aproximasse. E, feito
isto, retiraram-se plenamente seguros: parecia-lhes impossível que um morto tão bem
preso e tão bem guardado lhes pudesse escapar. Já se tinham esquecido de que, tendo-lhes
Jesus prostrado com só pronunciar o próprio nome, os soldados no Horto de Getsemáni,
bem podia, se quisesse, prostrá-los de novo junto do sepulcro. Dispunha porém Deus que
eles tomassem aquelas ridículas precauções, a fim de que os próprios Judeus fossem
obrigados a verificar oficialmente o triunfo do Crucificado!
Ao predizer a sua morte, e a sua morte na cruz, Jesus ajuntava que ressuscitaria ao
terceiro dia. “Destruí este templo, dizia ele aos Judeus, falando do templo do seu corpo, e
eu o reconstruirei em três dias.” E até aos fariseus que lhe pediam um prodígio no céu
para provar a sua divindade, anunciou-lhes que o grande sinal da sua missão divina seria
a sua ressurreição. “Assim como Jonas ficou três dias e três noites no ventre da baleia,
assim ficara o Filho do homem três dias no seio da terra.” E este é o milagre por
excelência, o milagre que há-de lançar o mundo aos pés do Filho de Deus. Jesus
anunciou; é preciso que a sua palavra se cumpra.
Mas o posto romano, composto de dezesseis soldados vigiava cuidadosamente o
Crucificado do Gólgota. E de três em três horas, novas sentinelas iam render as que
tinham acabado o seu quarto de guarda. O Filho de Deus esperava, na paz e silêncio do
sepulcro, o momento fixado pelos decretos eternos. Ao romper da aurora do terceiro dia,
a sua alma, voltando do limbo, reuniu-se ao corpo e, sem nenhum movimento na colina, o
Cristo glorificado saiu do sepulcro. E os guardas nem sequer perceberam que estavam
vigiando um sepulcro vazio. Mas eis que, momentos depois, começa a terra a tremer
violentamente, e um anjo desce do Céu, à vista dos soldados aturdidos, rola a pedra que
fechava a entrada da gruta e senta-se sobre aquela pedra como um triunfador no seu
trono. O seu rosto brilha como o relâmpago, o seu vestido alveja como a neve, os olhos
despedem chamas e fixam os guardas que para ali caem com o rosto no pó, quase mortos
de pasmo. Era o anjo da ressurreição que descia do Céu para anunciar a todos que Jesus,
o grande Rei, o vencedor da morte e do inferno, acabava de sair do sepulcro.
Passado aquele primeiro momento de assombro, os guardas, fora de si, fugiram
para a cidade e foram contar aos príncipes dos sacerdotes os fatos prodigiosos de que
tinham sido testemunhas. Eles, os sacerdotes, espavoridos e desconcertados,
conferenciaram para logo entre si acerca do modo que poderiam ter de ocultar a verdade
ao povo, e pô-lo, de antemão, de pé atrás contra as manifestações que por sem dúvida se
iam dar. E mandando imediatamente convocar os anciãos não deram com melhor ardil,
para sair airosos do caso, do que subornar os soldados a peso de dinheiro. Prometeram-
lhes pois a cada qual uma soma avultada, se estivessem dispostos a explicar ao povo que,
enquanto eles dormiam, tinham vindo os discípulos de Jesus e levado o corpo do seu
Mestre. E como objetassem os soldados que, se Pilatos ouvisse falar do furto do cadáver,
teriam eles de lhe dar contas de como procederam, respondeu-lhes o Conselho que ele se
encarregava de os desculpar perante o governador. Deste modo, livres de perigo,
deitaram-se os soldados ao dinheiro que lhes metiam nas mãos e propalaram entre os
Judeus a fábula ridícula do suposto roubo. Mas com isto nada mais conseguiam que
desonrar-se a si, mais aos cúmplices, pois era bem fácil dar-lhes esta resposta: “Se
estáveis a dormir, como dizeis, não vistes nem ouvistes nada durante o sono: como então
vos atreveis a afirmar que os discípulos levaram o cadáver que estáveis guardando?” 79
Melhor do que com estas mentiras ineptas não podiam os Judeus provar a verdade da
ressurreição, isto é, o brilhante triunfo do Rei a quem tinham negado e crucificado.
Mas pouco lhe aproveita ao sinédrio: o triunfo que Jesus alcança hoje sobre um
inimigo que ninguém jamais venceu nem vencerá, deixa na sombra todos os triunfos. Por
este sinal, há de reconhecer o universo ao seu Deus e Salvador. Este dia da ressurreição
há-de ter um nome particular; chamar-se-há o domingo, o dia do Senhor, o dia do eterno
aleluia, porque nesse dia a Vida e a Morte combateram num assombroso duelo, e o
Senhor da Vida prostrou a Morte. O Senhor ressuscitou verdadeiramente! Aleluia.” Assim
hão de cantar os filhos do Reino que Jesus, saindo do sepulcro, vai agora estabelecer no
mundo inteiro e perpetuar até ao fim dos séculos.
CAPÍTULO II.
As aparições
CAPÍTULO III.
Últimas instruções
A vida dos homens e a sua ação neste mundo terminam-se com a morte; mas, ao
contrário, a vida de Jesus e o seu reinado na terra começam no momento em que morre
pela salvação do mundo. Naquele dia, seu Pai investiu-o na realeza sobre essa raça de
Adão, que Jesus acabava de arrancar à morte e ao inferno. E por isso, a Cruz, que foi o
instrumento da sua vitória, tornar-se-ia o estandarte do seu reinado, Vexilla regis, e por ela
vencerá a todos os povos: Judeus, Romanos e bárbaros. E eis aí porque Jesus suspirava
pelo batismo de sangue: “Quando for levantado entre o céu e a terra, dizia ele, hei-de
atrair tudo a mim.” Ora, no dia de Páscoa, ao sair do túmulo, restava-lhe, ao todo, para
fundar o seu Reino... uma alma, a única a não fazer naufrágio no momento da Paixão. Era
sua Mãe, a Mãe das dores. Ao pé da Cruz viu Maria morrer o seu Filho; mas a sua fé não
sofreu o menor eclipse. Ela nunca esqueceu que o seu Jesus, o seu Filho e o seu Deus
ressuscitaria ao terceiro dia, como anunciara. E por isso, ao fazer menção das diversas
aparições de Jesus aos apóstolos incrédulos, cala-se a Escritura sobre as aparições de
Jesus a Maria, a fim de não dar azo a crer que lhe apareceu, como aos apóstolos, para lhe
reavivar a fé. Houve pois um dia, que foi o sábado, véspera da ressurreição, em que
Maria constituía, por si só, a Igreja nascente. Ao lado do novo Adão, a nova Eva, a Mãe
dos crentes.
Em oito dias, conquistou o Rei Jesus, os seus apóstolos, as santas mulheres e um
certo número de discípulos, que, tendo-o visto com os seus olhos, aderiram a ele de todo
o coração e se tornaram os zelosos missionários da sua ressurreição. Durante aquela
primeira semana, a Igreja inteira estava encerrada no cenáculo. Para a fazer crescer, era
preciso deixar Jerusalém, onde não se atreviam a reunir-se senão com as portas fechadas,
para não excitar o furor dos Judeus. Logo após as festas pascais, retomaram os apóstolos
o caminho para a Galiléia, segundo a ordem de Jesus. Ali naquele país, querido do seu
coração, é que ele devia passar ainda quarenta dias na terra para consolar os seus, para os
fortificar e lhes dar as últimas instruções sobre o Reino de Deus.
Enquanto esperavam que o Mestre se dignasse manifestar-se de novo retomaram
os apóstolos as suas ocupações ordinárias. Uma tarde achavam-se nas margens do lago
sete dentre eles, a saber, Simão Pedro, Tomé, Natanael, os filhos de Zebedeu com mais
outros dois. A hora era azada e o mar estava favorável; Pedro disse para os companheiros:
“Vou pescar. - E nós vamos contigo,” responderam eles. Subiram a uma barca e lançaram
as redes: mas apesar dos seus esforços nada apanharam por toda a noite.
Chegada a manhã, avistaram um homem que de pé na praia parecia tomar
interesse por eles. Era Jesus; eles porém não o reconheceram. Bradou-lhes ele em tom
familiar: “Rapazes, apanhastes algum peixe? Não, responderam eles. - Deitai a rede à
direita da barca, replicou o desconhecido e logo achareis.” Obedeceram eles, pois tão
grande parecia a segurança daquele homem, e, de fato, encheu-se a rede com tal cópia de
peixes que mal a podiam arrastar. Ao ver aquela pesca verdadeiramente prodigiosa,
adivinhou-lhe o coração a João que era o bom Mestre. “É o Senhor,” disse ele a Pedro.
Este, prestes como um relâmpago, vestiu a túnica e atirou-se ao mar para chegar mais
depressa aonde Jesus estava. Os outros foram levando a barca, apenas distanciada uns
duzentos côvados, e arrastando comsigo a rede cheia de peixes.
Descendo à praia, viram uns carvões acesos e sobre este fogo um peixe a assar, e
ao lado pão. Convidou-os Jesus a tomar parte na refeição que lhes tinha preparado.
“Trazei, disse-lhes ele, alguns dos peixes que agora colhestes.” Correu Pedro à barca e
quando tirou a rede para terra, encontrou cento e cinqüenta e três grandes peixes. Apesar
daquele peso enorme, malha nenhuma da rede se rompeu. Disse-lhes então Jesus:
“Aproximai-vos agora e comei.”
Alinharam-se eles à volta de Jesus. E, como outrora, o bom Mestre tomou o pão e
distribuiu-lho, bem como o peixe. Já não havia porém a doce familiaridade dos passados
dias; na presença do divino Ressuscitado os apóstolos, quase trêmulos, estavam calados e
nenhum se atrevia a fazer-lhe a menor pergunta. Esperaram pois se dignasse ele tomar a
palavra e ditar-lhes as suas vontades. Ora, uma vez que tinha estabelecido diante
deles por duas vezes a verdade da sua ressurreição, o fim desta terceira aparição era
lembrar-lhes a grande missão confiada ao seu empreendimento, e sobretudo mostrar a
Pedro, chefe designado da sua Igreja, o a que o obrigava a autoridade soberana.
Terminada a refeição, dirigindo-se Jesus a este último, fez-lhe esta pergunta: “Simão,
filho de Jonas, amas-me tu mais que estes?”
Pedro compreendeu a pungente alusão. Tinha afirmado que permaneceria fiel,
embora todos os seus companheiros abandonassem o Salvador, e Jesus pedia-lhe contas
daquela palavra de jactância, que ele tão cedo desmentira com a sua tríplice negação.
Profundamente humilhado respondeu com simplicidade: “Senhor, vós sabeis que vos
amo. - Apascenta os meus cordeirinhos,” disse-lhe Jesus.
Depois, como se receasse não ter sondado bem o coração do apóstolo, antes de lhe
confiar aquela função de pastor, perguntou-lhe segunda vez:
“Simão, filho de Jonas, amas-me?” Já lhe não perguntava se o amava mais que os
outros, mas se o amava realmente. Ao pensar que Jesus parecia duvidar do seu amor,
Pedro humilhou-se ainda mais profundamente e apelou para Aquele que lia no íntimo dos
corações.
“Senhor, disse ele, vós bem sabeis que vos amo.
- Apascenta os meus cordeiros,” respondeu-lhe Jesus.
Contudo, o olhar do Salvador continuava pregado no apóstolo. E terceira vez o
interpelou solenemente:
“Simão, filho de Jonas, amas-me tu de coração?”
Desta vez, a confusão cedeu o lugar à tristeza. Pedro pareceu pedir misericórdia.
“Senhor, vós tudo sabeis, vós bem sabeis quanto Vos amo.
- Apascenta as minhas ovelhas!” disse-lhe Jesus.
Por esta última palavra compreendeu Pedro que Jesus lhe tinha querido fazer
expiar a tríplice negação com uma tríplice protestação de amor. E à medida que as
protestações lhe saíam do coração, mais humildes e mais ardentes, colocava-lhe o divino
Pastor sob o cajado os cordeirinhos, os cordeiros e as ovelhas, isto é, todo o seu rebanho.
E ficava Pedro sendo o que Jesus o fizera em Cesaréia de Filipe, o fundamento visível do
novo Reino, o Pastor universal, o Vigário de Cristo na terra. E por isso ardia Pedro em
desejo de dizer (e desta vez do mais íntimo do coração) que estava disposto para todas as
dedicações e sacrifícios por amor da glória do seu Mestre e salvação do rebanho que ele
se dignara confiar-lhe; mas Jesus não lhe deu tempo. Pois adiantando-se-lhe ao
pensamento, disse-lhe: “Pedro, em verdade te digo, quando tu eras novo, cingias-te a ti
mesmo e ias para onde bem te parecia. Mas dia virá, em que, já velho, estenderás os
braços e outro te cingirá e levará para onde tu não quiseras ir.” Era isto anunciar-lhe o
martírio. Pedro pode ver de antemão as cadeias que o haviam de prender, os verdugos a
arrastarem-no ao suplício e os seus braços extendidos na cruz. Disse-lhe então Jesus:
“Segue-me!”, e Pedro avançou por sobre as pegadas do seu Mestre, decidido a sofrer tudo
por amor dele.
A alguma distância seguia-os o apóstolo João, o discípulo privilegiado de Jesus, o
companheiro inseparável de Pedro. Quis Pedro saber se o seu amigo compartilharia das
provações que Jesus acabava de lhe fazer entrever. “E este, disse Pedro, designando
aquele que os seguia, que lhe reservais, Senhor?” Jesus deu-lhe esta misteriosa resposta:
“Se eu quero que ele fique neste mundo até que eu venha, a ti que te importa? Quanto a
ti, segue-me.” Por ocasião destas palavras correu o rumor entre os irmãos, que João não
morreria e que seria arrebatado ao Céu. Ora, Jesus dissera simplesmente que João não
havia de morrer, antes de ver ao Filho do homem manifestar o seu poder pelo castigo da
cidade deicida. Pedro morria de morte violenta à imitação de Jesus, mas João ficaria
neste mundo até ao dia em que a morte, por ordem do Mestre, lhe rompesse os fios da
existência.
Tais foram as particularidades que assinalaram aquela aparição de Jesus nas
margens do lago de Galiléia. E por muitas vezes, durante aqueles quarenta dias, apareceu
deste modo já aos apóstolos reunidos, já a um deles em particular. Tiago Menor, parente
de Jesus, gozou deste insigne favor. 80 Estas manifestações ensinaram aos antigos
discípulos que Jesus tinha verdadeiramente ressuscitado, como anunciara, e com isto, o
número dos crentes foi crescendo de dia em dia. Antes de deixar este mundo, ordenou
Jesus aos apóstolos que se reunissem todos num monte próximo, no cimo do qual em
presença da sua Igreja nascente, conferiria solenemente aos doze que escolhera a missão
de propagar e governar o Reino de Deus. No dia fixo, dirigiram-se os apóstolos para o
monte designado, seguidos de mais de quinhentos discípulos, 81 vindos da Galiléia e de
Jerusalém. A Igreja que há alguns dias estava toda encerrada no cenáculo, já cobria agora
todo o planalto do monte. De repente apareceu Jesus no meio da assembléia, e todos
caíram de joelhos diante dele e o adoraram como a seu Deus e Salvador. Alguns contudo
mal podiam crer nos seus olhos e pensavam se não teriam diante de si algum espírito ou
fantasma; mas Jesus bem depressa lhes dissipou todas as dúvidas.
Com a autoridade e majestade dum Deus, tomou a palavra no meio da multidão
silenciosa e arroubada. Dirigindo-se aos apóstolos e a todos os que deviam trabalhar com
eles na propagação do seu Reino: “Todo o poder, disse, me foi dado no Céu e na terra.
Ide pois através do mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura. Ensinai todas as
nações, batizai-os em nome do Padre e do Filho, e do Espírito Santo e ensinai-os a
guardar os mandamentos que vos dei. Quem crer e for batizado, será salvo; quem não
crer, será condenado!”
E ao ver os seus representantes a levarem a todos os povos o seu Evangelho, o seu
batismo e os seus mandamentos, conferiu-lhes Jesus, com o dom dos milagres, o sinal
autêntico da sua divina missão. “Os que em mim crerem, disse ele, terão o poder de
expulsar os demônios em meu nome, falarão línguas novas; não temerão o veneno da
serpente nem quaisquer outros; porão as mãos nos doentes e os doentes sararão.
Armados destes poderes prodigiosos, os apóstolos converterão os homens de boa
vontade; mas quem os defenderá contra os malvados e sectários, contra os Judeus e
Romanos, dispostos a tratá-los a eles como trataram o seu Mestre? “Não temais,
exclamou Jesus ao terminar o seu discurso, eis que eu estou convosco até à consumação
dos séculos.” E desapareceu após esta solene promessa, deixando os apóstolos e
discípulos cheios de confiança na vitória do seu Mestre; pois, afinal, quem será capaz de
vencer Aquele que venceu a morte?
CAPÍTULO IV.
A Ascensão
Tinha Jesus concluído a sua missão na terra. Tendo descido do Céu para pregar o
Reino de Deus, resgatar a humanidade decaída e fundar a nova sociedade dos filhos de
Deus, não lhe restava mais que transformar os continuadores da sua obra noutros tantos
Cristos, dotando-os com aquele Espírito divino que falava por sua boca e operava por
suas mãos. Mas, como anunciara muitas vezes, não havia de enviar-lhes o Espírito Santo
senão depois de voltar para junto do seu Pai e após a sua glorificação nos Céus.
Depois dum mês passado com os seus apóstolos em celestiais conversas, mandou-
lhes Jesus que voltassem para Jerusalém e que o esperassem no cenáculo, onde iria
juntar-se-lhes. Puseram-se a caminho, alegres, com as caravanas que se dirigiam já para a
cidade santa para se preparar para as festas do Pentecostes. Ia com eles Maria, a Mãe de
Jesus, rodeada de santas mulheres que não faltavam nunca em a acompanhar e dum certo
número de discípulos privilegiados. Bem receosos estavam ainda das cóleras e vexações
dos fariseus deicidas, mas o divino ressuscitado estaria com eles e saberia defendê-los
contra os seus inimigos. Se os convocava em Jerusalém, era sem dúvida para os fazer
testemunhas dalgum novo triunfo; quem sabe? (diziam eles) irá enfim restaurar o reino de
Israel? Apesar de todas as instruções do seu Mestre sobre o Reino de Deus, permanecia-
lhes arraigado no espírito o preconceito nacional acerca do reino temporal do Messias.
Aos quarenta dias depois da Ressurreição, estavam reunidos no cenáculo, quando
Jesus apareceu no meio deles e sentou-se familiarmente à mesa com a assembléia. Falou,
como sempre, do Reino de Deus que os Apóstolos iam estabelecer na terra. Durante os
três anos que passara com eles, tinha-lhes revelado o seu Evangelho, confiado os seus
divinos sacramentos e designado o chefe soberano que devia dirigi-los; a eles pertencia
agora pregar a todos a ressurreição do Mestre, como prova da sua divindade e da religião
santa que o Pai intimava por seu Filho a todos os habitantes da terra.
A empresa seria rude; tanto mais que os poderes deste mundo não poupariam aos
discípulos mais do que pouparam ao Mestre; mas Jesus não abandonaria os seus
enviados. Enviar-lhes-ia o Espírito do Alto que os encheria de luz e penetraria com a sua
força. Mandou-lhes pois que não saíssem de Jerusalém, mas que ali esperassem aquele
Espírito que os revestiria com a divina armadura. Começaria nesse momento a missão
deles - a pregação da penitência para remissão dos pecados - e em Jerusalém onde iam
receber o batismo de fogo é que deviam inaugurar o seu ministério.
Animados com estas recomendações e promessas, imaginaram os apóstolos, que
com a vinda do Espírito-Santo ia começar o reino visível do Messias. “Senhor,
perguntaram eles, ides agora restaurar o reino de Israel? Não respondeu Jesus a esta
pergunta e deixou ao Espírito-Santo o cuidado de espiritualizar aquelas almas terrenas;
mas repetiu-lhes o que já lhes dissera sobre o seu Reino definitivo. “Não vos pertence a
vós conhecer os tempos e momentos que o Pai determinou em virtude do seu poder
soberano.” E, com respeito à missão deles, acrescentou: “Vai descer sobre as vossas
almas o Espírito-Santo; e então sereis minhas testemunhas em Jerusalém e depois em
toda a Judéia e na Samaria e até aos confins da terra.”
Depois da refeição, levou-os o Senhor Jesus fora da cidade, para os lados de
Betânia. Cento e vinte pessoas acompanhavam o divino triunfador. O cortejo seguiu pelo
vale de Josafá. Jesus avançava majestosamente no meio dos seus. Os apóstolos, os
discípulos e as santas mulheres em grupo com a divina Mãe, seguiam-no com santa
alegria e contudo com os olhos rasos de lágrimas, ao pensar que o bom Mestre os ia
deixar. Atravessou Jesus a torrente do Cedron, onde os seus inimigos lhe haviam dado a
beber água lodosa; depois deixando à esquerda o horto de Getsemáni, teatro da sua
mortal agonia, subiu pelo monte das Oliveiras. Tendo chegado ao cimo, lançou um
derradeiro olhar àquela pátria terrestre onde tinha passado trinta e três anos, desde o seu
nascimento no estábulo de Belém até à sua morte sobre a Cruz do Gólgota. Tendo vindo
ao meio dos seus, os seus não O tinham recebido; mas aproximava-se a hora em que a
raça humana, vivificada pelo seu sangue, ia adorá-lo como a seu Pai e a seu Deus. Para
além do Mar Grande, o seu olhar abraçava aquele Ocidente, aonde os seus apóstolos
levariam em breve o seu nome bendito, e arvorariam, até no alto do Capitólio romano, a
Cruz do Calvário. E para aquelas longínquas plagas é que um frágil baixel, conduzido
pelos anjos, levaria os seus amigos de Betânia: Lázaro o ressuscitado, a fiel Marta e
Maria a penitente. Ali é que milhões de corações, durante o decorrer dos séculos, baterão
por ele com um amor que excede todos os amores. E antes de deixar a terra, abençoou
todos aqueles povos que deviam compor o seu Reino.
Todos os olhos, nele cravados, contemplavam a sua face radiante, a sua fisionomia
toda celestial e o seu olhar cheio de bondade e ternura que passeava pelo auditório como
para dirigir a cada um o derradeiro adeus. Depois levantou as mãos para dar a todos uma
bênção suprema e enquanto os abençoava, prostrados a seus pés, eis que de repente o seu
corpo glorioso, posto em movimento por um ato do seu divino poder, se elevou acima da
terra e tomou majestosamente o vôo para os Céus. Mudos de surpresa e admiração, os
apóstolos e discípulos seguiram-no longo tempo com a vista, até que por fim uma nuvem
o envolveu e subtraiu aos seus olhos. E como não cessassem de fixar o ponto onde o
tinham visto desaparecer, apresentaram-se a eles dois anjos vestidos de branco. “Homens
de Galiléia, disseram, porque permaneceis assim com os olhos pregados no Céu? Este
Jesus que acaba de vos deixar para subir aos Céus, deles descerá um dia como o vistes
subir.” Tendo descido do Céu sob a forma de escravo para salvar os homens, segunda vez
de lá descerá com a majestade do Rei dos reis, para os julgar.
E Jesus continuava a subir para o trono do seu Pai. Para logo se viu rodeado de
inumeráveis legiões de almas que retidas no limbo desde longos séculos, estavam
esperando que o novo Adão lhes abrisse as portas do Céu. À frente daqueles fiéis da
antiga aliança marchavam os dois exilados do Éden que não tinham cessado de esperar a
salvação pelo Redentor prometido à sua raça; os patriarcas, Abraão, Isaac e Jacó; Moisés
e os profetas. A seguir iam as gerações santas, de alma reta, e que de coração tinham
esperado Aquele que devia de vir.
David com sua maravilhosa linguagem pintou a chegada do triunfador ao alto dos
Céus. Assim como à porta do Éden vigiavam dois arcanjos para impedir que nossos
primeiros pais nele entrassem, assim também às portas do Paraíso estavam os anjos de
vigia para as abrir ao novo Adão. De repente ouviram eles o canto triunfal do exército
dos santos, que rodeavam a Jesus: “Príncipes, diziam eles, abri as vossas portas; abri-vos,
ó portas eternas, e entrará o Rei da glória. - Quem é esse Rei da glória? perguntaram os
anjos. - É o Senhor, responderam os Santos, é o Deus forte e poderoso, é o Deus
invencível nas batalhas. Abri-vos, portas eternas, é Ele, é o Deus das virtudes.”
E as portas abriram-se e Jesus atravessou as fileiras dos exércitos celestiais que,
por sua vez, o aclamaram como a um chefe desde longo tempo esperado. Pelo Cristo,
com efeito, é que as suas adorações e louvores devem subir para o Eterno mais dignas da
sua majestade santa; por ele também é que se encherão as lacunas abertas em suas fileiras
com a queda dos maus anjos. Jesus entrou pois no Céu, tanto como Rei dos anjos, quanto
como Rei dos homens.
David conta também como Cristo, seu filho segundo a carne, mas Senhor seu pela
geração eterna, foi recebido por seu Pai celeste, quando se lhe apresentou diante do trono.
“Jeová disse ao meu Senhor: Senta-te à minha direita.” E o Pai lembrou-lhe que ele tinha
direito a esta honra, primeiro pôr ser seu Filho, igual em tudo a ele mesmo: “Eu te gerei
antes da aurora;” e depois como filho do homem, vencedor do mundo e do inferno, Rei
da humanidade resgatada: “Senta-te à minha direita e os teus inimigos sejam o escabelo
dos teus pés.”
Em virtude da sua realeza, foi Cristo investido dum tríplice poder: primeiro de
estabelecer o seu Reino sobre todos os povos, mau grado da oposição dos seus inimigos:
“Terás na mão o cetro do poder e estabelecerás o teu império sobre Sião;” e depois sobre
toda a terra: “Tu serás combatido pelo príncipe do mundo e pelos seus sequazes, mas tu
hás-de dominar como soberano sobre os teus inimigos.”
Em virtude da sua realeza, foi Cristo logo investido no pontificado eterno: “Tu és
Sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec.” O Pai celeste rejeitou os
sacrifícios e as vítimas da lei figurativa. Não há mais que um sacrificador e que uma
vítima que lhe agradam: o sacrificador é o Rei Jesus, e a vítima é também ele próprio. No
Céu e na terra, fica ele sendo o Cordeiro imolado pela salvação do mundo, e sempre vivo
para se oferecer a seu Pai e interceder por aqueles a quem remiu.
Enfim, o Pai conferiu ao Filho a suprema Judicatura. “No dia da sua cólera,
esmagará reis e povos. Julgará as nações, reduzirá a pó os seus adversários e encherá o
mundo de ruínas. Pois bebeu da torrente no dia das suas humilhações e dores, justo é que
levante a cabeça e confunda os seus inimigos.” Sendo Filho de Deus, fez-se homem e
escravo e tornou-se semelhante ao bichinho da terra que se pisa com os pés; e por isso é
que “Deus o exaltou e lhe deu um nome superior a todo o nome, para que ao Nome de
Jesus todos dobrem o joelho no Céu, na terra e nos infernos.”
E este mesmo Jesus, que está sentado à direita do Altíssimo, é Aquele a quem os
apóstolos devem glorificar na terra; e o seu Reino é que eles vão estabelecer no mundo
todo. Os Judeus, os Romanos e os apóstatas far-lhes-hão uma guerra sem tréguas; mas
quem poderá vencê-los, se com eles está Jesus? “Conspiram contra o Senhor e contra o
seu Cristo, exclama David; Deus porém ri-se das suas vãs conspirações. Eu dei-te em
herança as nações todas da terra, disse ele a seu Filho; eu extenderei o teu império até aos
confins do mundo; e aos teus inimigos parti-los-hei como quem quebra um vaso de barro.
Compreendei, ó reis; e vós, ó povos da terra, aprendei!”
E desde a Ascensão até ao juízo final, a história dos séculos não será mais que a
representação dramática desta profecia. A Igreja, o Reino de Jesus, não cessará de se
dilatar e enviar eleitos para o Céu, ao passo que os anti-Cristos irão uns após outros
juntar-se com o seu despótico amo no profundo dos infernos.
CAPÍTULO V
O Pentecostes
CAPÍTULO VI.
CAPÍTULO VII.
CAPÍTULO VIII.
Na véspera da crucifixão, antes de entrar no jardim das Oliveiras, dizia Jesus aos
apóstolos; “Tende confiança, eu venci o mundo.” E, depois de decorridos oito séculos,
oito séculos de perseguições atrozes, a despeito de satanás e seus ministros, tinha
realmente vencido o mundo: o mundo judaico, o mundo romano e o mundo bárbaro. Ego
vici mundum. E reinava num imenso império que se chamava cristandade. Os reis
prostravam-se diante do monarca supremo; as suas leis baseavam-se no Evangelho; os
povos viviam da sua vida, esforçando-se por lhe reproduzir as divinas virtudes. A partir
de Constantino, durante mil anos, a Europa cobriu-se de igrejas e de mosteiros onde
ecoavam perpetuamente os louvores de Cristo Salvador. Os Bentos, os Brunos, os
Domingos e os Franciscos de Assis multiplicavam as ordens religiosas, verdadeiros
viveiros de santos e de mártires votados de corpo e alma à glória d’Aquele a quem
amavam mil vezes mais que a si próprios. E todos os vassalos do Senhor Jesus: reis,
cavaleiros, sacerdotes, religiosos e simples fiéis, sábios ou ignorantes, cheios de Fé e de
amor, apesar das suas paixões, recitavam a mesma prece e trabalhavam para o mesmo
fim. “Venha o vosso Reino! Diziam eles, seja glorificado o vosso nome no mundo inteiro
e faça-se a vossa vontade, ó Mestre divino, assim na terra como no Céu.”
Soldados de Jesus, defensores do seu Reino, os cristãos olhavam como seus
inimigos pessoais aos inimigos do Salvador, hereges, cismáticos e apóstatas. Quando
Maomé e seus muçulmanos se lançaram contra os fiéis de Cristo, ameaçando exterminar
a Igreja de Deus, encontraram por toda a parte, em França, em Espanha, na África e no
Oriente os cavaleiros da Cruz que, durante longos séculos, ao grito de Deus o quer!,
derramaram o seu sangue por Jesus Cristo e concluíram por esmagar, em Lepanto, as
hordas maometanas. Ao mesmo tempo, sobre as pegadas de Colombo, legiões de zelosos
missionários atravessavam oceanos desconhecidos para ajuntar ao Reino de Cristo os
continentes novamente descobertos. E já saudavam a aurora do grande dia em que,
segundo a profecia do Salvador, não haverá mais que um só rebanho e um só Pastor.
Porém esqueciam-se os cristãos daquela outra profecia do Salvador que, antes do
seu completo triunfo sobre os seus inimigos e da sua segunda vinda à terra, as nações
substituídas aos Judeus deicidas também haviam de passar por uma crise mais terrível
que a perseguição dos imperadores romanos. Não tinha dito o Mestre na ante-véspera da
sua morte: “O mundo passará por uma tribulação tal, qual nunca jamais se viu nem verá
nunca outra semelhante? Deus lhe abreviará a duração por amor dos seus eleitos, porque
naquele tempo se levantarão falsos cristos e falsos profetas, os quais se hão-de assinalar
com tais prestígios que, se fora possível, induziriam a erro até os próprios eleitos.” 82 E
comentando Paulo aos primeiros cristãos aquela palavra do Salvador, anunciava “que um
mistério de iniqüidade se formava na Igreja de Deus”, 83 isto é, heresias, cismas e seitas
que conspirariam contra o Evangelho e a Cruz de Jesus. Ele vê “surgirem, pelos fins dos
tempos, inovadores, inimigos da doutrina sã, que voltariam as costas à verdade para
aderir a toda a casta de erros. 84 E então, dizia o apóstolo, virá a apostasia das nações,
então aparecerá o homem de pecado, o filho de perdição, o grande adversário que se
levantará sobre tudo o que se chama Deus, até se sentar no templo para se fazer adorar
como o único Deus.” 85 Será esta a desforra de satanás, e o seu último combate contra o
seu vencedor, mas também a sua derrota suprema. “Com um sopro da sua boca, Jesus
exterminará o anti-Cristo” 86 e todos os sequazes daquele ímpio, testemunhas da sua
queda, reconhecerão enfim ao Homem-Deus, e o proclamarão Rei dos reis e Senhor dos
senhores.
Ora, no momento fixado por Jesus para a grande provação das nações, foi
permitido ao demônio abrir o poço do abismo, e saiu dele uma fumarada que cegou os
espíritos, lhes roubou as claridades do Evangelho e os remergulhou nas trevas do antigo
paganismo. Fascinados outra vez pelas belezas materiais de que satanás se serve para
corromper as almas, os cristãos perderam de vista a beleza sobrenatural e as virtudes
celestiais que tinham trocado a face do mundo. E a sociedade criada pelo Espírito divino
a tal ponto se esqueceu da sua glória que chegou a ter saudades da civilização grega e
romana. Viram-na erguer de novo, em face do Crucificado, as estátuas impuras dos
deuses e deusas da antiguidade, celebrar solenemente as saturnais dos pagãos, abandonar
os mistérios que representavam a Paixão de Cristo para refartar-se em lubricidades
escandalosas, anatematizadas pelo Evangelho. Chamaram divinos aos poetas, oradores, e
filósofos de Roma e Atenas: e deram-se a estudar-lhes os livros com mais cuidado que os
dos profetas e apóstolos. Os produtos mais maravilhosos da arte cristã, até as nossas
sublimes basílicas, foram acoimadas de bárbaras. Convencionaram que a luz e a beleza
tinham desaparecido do mundo com o paganismo e que os dez séculos da Idade Média,
alumiados por gênios sublimes, como os Agostinhos, os Jerônimos, os Crisóstomos, os
Bernardos e os Tomás de Aquino, ilustrados por chefes como Carlos-Magno e S. Luís, e
santificados pelas virtudes heróicas dos grandes fundadores de Ordens com os seus
inumeráveis discípulos, convencionaram, digo, que aqueles dez séculos se chamariam na
história os séculos de ignorância e de barbárie, o sombrio período das trevas, a noite da
Idade Média. A fim de caracterizar aquele movimento de retorno às idéias, aos costumes
e à civilização pagã, deram-lhe o nome de Renascença. E de igual maneira, para marcar
o novo espírito que ia presidir doravante aos destinos do mundo, a história, a partir
82 Mateus, XXIV, 21.
83 II. Tess., II, 7.
84 II. Tess., IV, 3-4.
85 II. Tess., II, 3-4.
86 II. Tess., II, 7.
daquele momento, tomou o nome de história moderna. E terá como principal objeto
contar as peripécias da grande apostasia das nações, isto é, as ações e feitos do anti-Cristo
e seus precursores.
À renascença pagã, primeira fase das nações cristãs pelo caminho da apostasia,
sucedeu, no século dezesseis, a Reforma protestante. Tendo sufocado o Espírito de Jesus
com o desregramento dos costumes e a perversão das idéias, a sociedade paganizada
levantou o estandarte da revolta contra a santa Igreja de Deus. Sob pretexto de a reformar,
um apóstata empreendeu destruí-la. À sua voz, reis e príncipes coligaram-se contra o
Pontífice de Roma, chefe daquela Igreja, romperam violentamente os sagrados laços da
obediência que deviam ao Rei dos reis e separaram os seus povos da cristandade. Em
menos de um século, a Alemanha, a Inglaterra, a Escócia, a Suíça, a Holanda e os Estados
escandinavos, passavam para o cisma e heresia, perseguiam aos católicos fiéis com o
furor dos imperadores pagãos e ateavam o fogo das guerras civis na Europa inteira.
Satanás triunfava: a pretendida Reforma tinha desmembrado a Igreja; mas o
demônio, sempre cego, não via que os verdadeiros filhos de Deus se purificavam e
fortificavam pelo martírio. Os cristãos, a braços com os apóstatas, combatiam até à
morte pela vitória da Fé; o concílio de Trento excomungava as seitas separadas, opunha
aos seus falsos doutores a valente Companhia de Jesus, ao mesmo tempo que, por meio
de reformas salutares, reanimava o clero e reconduzia os fiéis ao caminho da santidade.
Santos e sábios religiosos lá partiam para longes terras, para a América, para as Índias,
Japão e China, a levar a cruz de Jesus Cristo. E para mostrar aos povos apóstatas que
tentavam debalde ressuscitar o velho paganismo, um papa Sixto V, não temeu, nos fins do
século dezesseis, levantar o famoso obelisco dos jardins de Nero, cuja base tinha sido
banhada com o sangue dos mártires, encimá-lo com uma cruz e fazer ler a todos os povos
da terra esta inscrição triunfal: “Eis a cruz do Senhor: fugi, potestades inimigas; o Leão
da tribo de Judá venceu! Cristo reina, Cristo impera, Cristo vence!”
O inferno estremeceu e todos os seus adeptos, iniciados pelas sociedades secretas
no grande mistério de iniqüidade, lançaram os povos para a terceira fase da apostasia. Já
se não trata somente de destruir o espírito cristão e derrubar o Papado, mas de atacar
diretamente a Jesus Cristo, negando-lhe a divindade e a realeza, como fizeram os Judeus.
Um novo precursor do anti-Cristo apareceu no mundo, rodeado de apóstatas que tomaram
o nome de filósofos. O chefe daquela horda infernal ousou declarar-se inimigo pessoal de
Cristo. “Esmagai o Infame!” gritava ele aos sectários. E todos à uma, durante meio
século, se puseram a bater em brecha a divindade do Salvador Jesus, a Revelação, e toda
a religião com os seus dogmas, moral, sacramentos e culto. Nunca o inferno, nem mesmo
sob Nero e Diocleciano, vomitou tantas blasfêmias contra o Filho de Deus, nem tantas
calúnias e ultrajes contra os cristãos. Em nome da razão, da liberdade e do bem da
humanidade, organizaram, com o nome de Revolução, um novo estado social, baseado
não na vontade de Deus, mas na vontade do povo, que doravante será o único soberano e
legislador.
Com a ajuda daquela conspiração satânica que ia de encontro à realeza de Cristo,
pensaram os conjurados ser assaz fortes para exterminar o Catolicismo. Em nome do
povo, de quem se intitulavam representantes, decretaram a abolição de todas as
instituições religiosas, exilaram ou assassinaram sacerdotes e fiéis, demoliram igrejas e
altares, suprimiram tudo o que lembrava o antigo culto, a semana, o domingo, o
calendário católico e até a era cristã. O passado já não existia; um mundo novo começava
com a Revolução.
E desde há um século que a Revolução vem prosseguindo, com uma infernal
tenacidade, a descristianização das sociedades e dos indivíduos. Já as nações, enquanto
nações, deixaram por toda a parte de reconhecer a Jesus Cristo como seu Rei, o Papa
como seu chefe e o Decálogo como a lei suprema. Em virtude dos princípios chamados
liberais, todos os governos professam não se importar, na confecção das leis, com a
vontade de Deus. Não reconhecem outra divindade mais que o povo soberano, outra lei
mais que o bel-prazer das maiorias, ainda que elas legislem contra o Evangelho, contra o
Decálogo, contra Cristo e a sua Igreja. É a repudiação de Cristo-Rei de quem Carlos
Magno se chamava o lugar-tenente; é a apostasia das nações, discessio, predita pelo
apóstolo S. Paulo, e antes dele por David: “Os reis e os povos conspiram contra Deus e
contra o seu Cristo, exclamava o Rei-profeta. Rompamos as suas cadeias, dizem eles, e
sacudamos para longe de nós o seu jugo odioso.”
Contudo, apesar da influência poderosa dos governos ateus e das suas leis ímpias,
há ainda muitos cristãos fiéis. Verdade é que a fé dum grande número se vai extinguindo
a pouco e pouco, que os corações se resfriam e que a virtude soçobra no abismo dos
escândalos. Mas Deus conserva os seus eleitos; e isto faz rugir a satanás. Para arrancar a
Jesus até o último dos seus Batizados, emprega hoje a Revolução o meio mais eficaz. O
divino Salvador cristianizou o mundo por meio do ensino católico; a Revolução
descristianiza-o com o ensino satânico. Arranca violentamente as crianças ao Deus do seu
batismo, à Igreja sua Mãe e aos seus pais segundo a natureza, para os entregar ao
demônio, que é o único “deus” que a Revolução adora. Em todas as cidades e aldeias terá
ela doravante uma escola sem Deus, donde serão expulsos o crucifixo, o catecismo e a
oração. E a fim de que todas as crianças sem exceção cheguem à idade adulta sem
nenhum conhecimento do Salvador que os batizou no seu sangue, fecha-lhes a escola
cristã, obriga-as à escola sem Deus, e força assim as novas gerações a receberem a
instrução dada pelos seus professores de ateísmo.
Estão pois cumpridas as profecias das Escrituras sobre a apostasia geral das
nações. Como outrora os Judeus, assim bradam agora os povos: “Não queremos que
Jesus reine sobre nós. O Pontífice romano, o Vidente de Israel, bem situado para julgar do
estado do mundo, é quem o verifica oficialmente: “A tais termos chegamos, diz ele,
mesmo na Itália, que receamos se venha a perder a fé. A ação das sociedades secretas
tende a realizar certos desígnios inspirados por um ódio mortal contra a Igreja: abolição
de toda a instrução religiosa, supressão das Congregações, exclusão de todo o elemento
católico ou sacerdotal das administrações públicas, das obras pias, dos hospitais, das
escolas, das academias, dos círculos, das associações, das comissões e das famílias;
exclusão em tudo, em toda a parte e sempre. Ao contrário, a influência maçônica sente-se
em todas as circunstâncias da vida social, e torna-se árbitra e senhora em todas as coisas.
Assim é que se aplanará o caminho à abolição do Papado!. . e isto não sucede só na
Itália, mas é um sistema de governo a que se os Estados conformam dum modo geral.” 87
“O livre-pensamento, diz por seu turno um prelado ilustre, não oculta o desígnio
declarado de destruir tudo. Disso não devem duvidar os fiéis. Se aqueles desígnios se
realizam, ser-lhes-ão em breve fechadas as igrejas, proscrito o culto, expulsos
violentamente os ministros de Deus e ver-se-ão voltar os dias em que os cristãos pagavam
com a liberdade e até com a vida a fidelidade aos próprios deveres.” 88
Ora como acabará esta conjuração satânica das nações contra Jesus Cristo e a sua
Igreja? Acabará, como a dos Judeus e dos Romanos, com o destroço dos revoltados e o
triunfo solene do grande Rei que eles pretendem destronar. “O mundo meter-vos-há sob a
prensa, disse o Salvador, mas estai tranqüilos, que eu venci o mundo.” 89 “Antes do fim
dos tempos, sobrevirá a grande tribulação, tribulação tal, qual não viram os povos
semelhante desde o princípio; eu porém hei-de-lhe abreviar a duração por amor dos
eleitos. Então surgirão falsos cristos e falsos profetas, cujos prestígios e prodígios seriam
de fazer cair em erro, se tal fosse possível, até os próprios eleitos. Lembrai-vos deste
prenúncio, e guardai-vos de vos deixar enganar por tais impostores.” 90
Mas quem será logo o principal autor dessa grande tribulação? Um dia, diz S.
Paulo, (e dia que só Deus sabe) quando a apostasia das nações lhe tiver aplanado os
caminhos, “aparecerá o homem de pecado, o filho de perdição, o anti-Cristo ou o
adversário do Salvador, o qual se levantará por cima de tudo o que tem nome de Deus e
sentar-se-há ele próprio no templo para se fazer adorar como Deus. Verdadeira
personificação de satanás como há-de ser, enganará os homens com toda a casta de
seduções, artifícios e prodígios diabólicos que os arrastarão à ruína. Como não quiseram
crer na verdade que salva, há-de os Deus entregar ao espírito do erro e da mentira.
Aquele monstro de iniqüidade, diz o Apóstolo, aparecerá no tempo marcado por Deus,
mas o Senhor Jesus destrui-lo-há com um sopro da sua boca.” 91
S. João, no seu Apocalipse, descreve de modo empolgante a luta do anti-Cristo
contra a Igreja e o extermínio dos apóstatas. “O dragão infernal, diz ele, entrou em furor
e foi guerrear aos que observam os mandamentos de Deus e dão testemunho por Jesus
Cristo. E vi aparecer uma Besta terrível, forçuda como um leão e cruel como o leopardo.
O dragão comunicou-lhe o seu poder e todos os povos da terra, depois de ter adorado o
dragão, prostraram-se diante da Besta, dizendo: Quem poderá combater contra ela?
“E ao anti-Cristo, personificado naquele monstro, foi dada uma boca por onde se
exalava o orgulho e a blasfêmia. E exerceu o seu poder durante quarenta e dois meses,
vomitando horríveis blasfêmias contra Deus, contra a Igreja e contra os seus fiéis. E
também lhe foi concedido fazer guerra aos santos de Deus e vencê-los e imperar, como
senhor, sobre os povos de toda a língua e de toda a nação. E adoram-no todos, todos
aqueles cujos nomes não estão escritos no livro da vida.
“E vi outra Besta que falava a linguagem de satanás. Este falso profeta operava
toda a casta de prodígios em presença do anti-Cristo e fazia que o adorassem. Até fazia
87 Leão XIII, Encíclica de 15 de outubro de 1890.
88 Carta do Cardeal Lavigerie ao seu clero, 1º de setembro de 1889.
89 João, XVI,33.
90 Mateus, XXIV, 2-24.
91 II. Tess., II, 3-10.
descer fogo do céu sobre a terra, e seduzia os homens a ponto de lhes persuadir que
erigissem estatuas à Besta,” isto é ao anti-Cristo. “E ele animava aquelas imagens e elas
davam oráculos, e todos os que recusavam adorar aquelas imagens eram mortos à espada.
Pequenos e grandes, ricos e pobres, homens livres ou escravos, todos eram obrigados a
trazer na fronte o sinal da Besta, sob pena de não poder vender nem comprar.” 92
Tal será a perseguição do anti-Cristo “que se levantará por cima de tudo o que tem
nome de Deus e se fará adorar como Deus.” Os Judeus deicidas adorá-lo-ão como a seu
messias, e todos os apóstatas se darão por satisfeitos com poder continuar, com tal chefe,
a sua guerra satânica a Jesus Cristo. Desta vez, hão-de cuidar estar certos de aniquilar a
Igreja; mas nos combates contra Deus, nunca homem está mais perto da ruína do que
quando canta vitória.
Depois de ter revelado as abominações do anti-Cristo, manifestou o Senhor a S.
João o desenlace da horrível perseguição. “Os Gentios, disse ele, calcarão aos pés a
cidade santa durante quarenta e dois meses; mas eu darei o meu espírito às minhas duas
testemunhas, as quais profetizarão, revestidas de cilícios durante mil duzentos e sessenta
dias.” Estas duas testemunhas de Jesus, ensina-o toda a tradição, são Enoc e Elias, que
foram tirados vivos deste mundo para sustentar a causa de Jesus contra o anti-Cristo.
Durante os três anos e meio que durará a guerra contra os cristãos, aparecerão na terra os
dois profetas, pregarão a penitência, e consolarão e defenderão os amigos de Deus. “São
duas oliveiras,” diz o Senhor, que espalham a unção do divino Espírito; “dois
candelabros” incumbidos de alumiar o mundo no meio das suas espantosas trevas. “Se
alguém lhes quiser fazer mal, da boca deles sairá fogo que devorará os seus inimigos; se
algum os quiser ofender, perecerá igualmente pelo fogo. Terão poder de fechar o céu e
impedir que chova durante o tempo que profetizarem e de ferir a terra com toda a sorte de
pragas quantas vezes quiserem.”
E mostrou Deus a S. João como os dois profetas opunham verdadeiros milagres
aos prodígios dos seus adversários, chamando-os à penitencia, desencadeando contra eles
os mais espantosos flagelos: pestes, fomes e guerras sanguinolentas e cobrindo-os de
pragas semelhantes às do Egito. Porém, em vez de corresponderem ao apelo das duas
testemunhas de Deus, os apóstatas, excitados pelo anti-Cristo, endurecer-se-ão cada vez
mais, blasfemarão como demônios e convocarão todos os reis da terra para dar o último
combate ao Deus omnipotente.” 93
E o Senhor há de permitir para glória sua e confusão dos malvados, que estes
triunfem por um momento. Assim como Jesus, no momento da sua Paixão, pareceu
despojado da sua força divina, assim também as suas duas testemunhas, preenchida a sua
missão, perecerão desamparados do Alto. E o anti-Cristo, vencedor, apossar-se-há deles e
dar-lhes-há a morte. Os seus cadáveres permanecerão estendidos na praça pública,
durante três dias e meio, sem que seja permitido sepultá-los. E de todas as partes
concorrerão os povos, para contemplar aqueles tão temidos profetas, agora já sem força
nem vida. E ao saberem da sua morte, os apóstatas de todos os países soltarão gritos de
alegria, dar-se-hão os parabéns do seu triunfo e enviarão presentes uns aos outros, tendo-
92 Apocalipse, XII, 1-17.
93 Apocalipse, XVI, passim.
se por felizes por se verem livres dos dois profetas que oprimiam e atormentavam todos
os habitantes da terra.
Mas eis que aos cânticos de alegria sucedem de repente gritos de espanto. “Três
dias e meio depois, continua o apóstolo, o espírito de vida entra nos cadáveres dos dois
profetas.” Enoc e Elias levantam-se sobre os seus pés, em presença dos apóstatas
aterrorizados. Do alto Céu uma voz, a voz de Deus, brada-lhes: “Subi para aqui,” e as
duas testemunhas, envolvidas em uma nuvem, remontam-se aos Céus, à vista dos seus
inimigos. Ao mesmo tempo treme a terra nos seus fundamentos, desabam as cidades,
sepultando em suas ruínas milhões de homens, os bons dão glória a Deus, e os maus
morrem num último combate. 94
S. João assistiu, numa visão, a vitória do triunfador. “Vi o céu aberto, diz ele, e
para logo apareceu o Fiel, o Verídico, aquele que julga e combate com justiça. Os olhos
dardejavam-lhe chamas; tinha na cabeça grande número de diademas, e o seu vestido
tinto no próprio sangue: chamava-se o Verbo de Deus. Da boca saía-lhe uma espada de
dois gumes com que fere as nações. E na orla dos seus vestidos lia-se esta letra: “Rei dos
reis e Senhor dos senhores.” E vi então a Besta, o anti-Cristo e os reis da terra com os
seus exércitos concentrados para combater o Verbo de Deus. E foi apanhada a Besta e
com ela o falso profeta que em sua presença tinha feito prodígios de sedução que
decidiram aos apóstatas a receberem o caráter da Besta e a adorá-la. Ambos foram
precipitados vivos no tanque de enxofre e fogo; os seus exércitos caíram sob a espada do
Vencedor,” 95 enquanto os exércitos angélicos entoavam este hino de triunfo: “O reino do
mundo tornou-se o reino de nosso Senhor e do seu Cristo.” 96
Era a proclamação solene da realeza de Cristo sobre todos os povos da terra.
Despertados com tais trovões e alumiados pelo Espírito Santo, reconhecerão os povos o
poder soberano do Filho único de Deus. Ao ver como Jesus, com um sopro da sua boca,
aniquilou aquele anti-Cristo, aquele rei das nações ao qual tinham tomado por seu
Messias, os Judeus estremecerão de horror ao lembrar-se do seu deicídio, entregar-se-hão
de alma e coração ao Deus que tinham crucificado e tornar-se-hão os mais ardorosos
propagadores do seu Reino. “Se a sua reprovação, diz S. Paulo, foi ocasião de se
converterem os Gentios, que não fará o seu chamamento? Será uma como nova vida, uma
ressurreição dentre os mortos.” As nações, por demasiado tempo vítimas dos partidários
de satanás, dos hereges, dos apóstatas e de todos os anti-Cristos saídos das sociedades
secretas, amaldiçoarão aos que os enganaram e jurarão fidelidade ao Senhor Jesus. Judeus
e Gentios unidos na mesma fé e no mesmo amor, levarão o Evangelho a todos os povos
que o sol alumia. E todos cairão de joelhos ao pé da cruz, adorarão Aquele que deu o seu
sangue pela salvação do mundo, e, conforme a profecia do Mestre, já não haverá mais
que um só rebanho e um só pastor.”
E reinará Jesus na terra pelo tempo que for necessário para completar o número
dos eleitos. Quantos anos? Quantos séculos? é um segredo que a ninguém revelou. Tudo
o que pelas suas derradeiras profecias sabemos é que um dia soará a hora da agonia do
CONCLUSÃO.
A Jesus, nosso Rei
Senhor Jesus, ao começar o livro da Vossa Vida, o apóstolo amado escreve estas
palavras: “No princípio era o Verbo, e o Verbo era em Deus, e o Verbo era Deus... E o
Verbo se fez carne e habitou entre nós. E nós vimos a sua glória, glória como do Filho
único de Deus.”
E nós também, depois de ter seguido os vossos passos desde Belém até ao
Calvário, ouvindo as vossas palavras e meditando as vossas ações, exclamamos com o
apóstolo: “Sim, nós vimos a glória do Salvador, vimos o Filho unigênito de Deus!”
Em Belém, os anjos cantavam por sobre o vosso berço: “Nasceu o Menino-Deus!
Glória a Deus nas alturas, e na terra paz aos homens de boa vontade!” E do longínquo
Oriente, acudiam os reis, guiados pela milagrosa estrela, a ofertar os seus presentes.
Aos doze anos, confundíeis vós os doutores de Jerusalém com a sabedoria das
vossas perguntas e a sublimidade das vossas respostas.
Nas margens do Jordão, no vosso batismo, o Pai celeste proclamava-vos seu Filho
muito amado e objeto do seu beneplácito.
A rogos da vossa Mãe, mostrastes em Caná ser o senhor da natureza, mudando a
água em vinho.
No templo de Jerusalém, um relâmpago dos vossos olhos punha em fugida os
profanadores da casa de Deus.
Por todos os caminhos da Galiléia e Judéia, os povos, arroubados de admiração,
proclamavam-vos o doutor dos doutores, o taumaturgo incomparável e o santo por
excelência. “Um grande Profeta surgiu no meio de nós, diziam eles, e Deus visitou o seu
ÍNDICE
100 Rom., VIII, 38-39
Prefácio
Prólogo do Tradutor
CAPÍTULO PRIMEIRO
A Aparição
CAPÍTULO II
A Virgem-Mãe
CAPÍTULO III
A visitação
CAPÍTULO IV
A gruta de Belém
CAPÍTULO V
A Apresentação no templo
CAPÍTULO VI
Os reis do Oriente
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
Nazaré
CAPÍTULO PRIMEIRO.
O Profeta do Jordão
CAPÍTULO II
Os peregrinos de Betabara
CAPÍTULO III
Embaixada do Sinédrio
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
Os primeiros discípulos
CAPÍTULO VI
As bodas de Caná
CAPÍTULO PRIMEIRO.
Jesus em Jerusalém
CAPÍTULO II
Prisão de João-Batista
CAPÍTULO III
A samaritana
CAPÍTULO IV
Jesus na Galiléia
CAPÍTULO V
O lago de Genesaré
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
Discussões com os fariseus
CAPÍTULO VIII
Graves acusações
CAPÍTULO PRIMEIRO
Os doze Apóstolos
As Bem-aventuranças
CAPÍTULO III.
Os preceitos evangélicos
CAPÍTULO IV
A lei do amor
CAPÍTULO V
belzebu
CAPÍTULO VI
O ressuscitado de Naim
NAIM. - RESSURREIÇÃO DUM MORTO. - OS DISCÍPULOS DE JOÃO. -
NOTÁVEL PERGUNTA. - RESPOSTA INESPERADA. - PROFECIA CUMPRIDA. -
ELOGIO DE JOÃO-BATISTA. (Luc., VII, 11-50. - Mat., XI, 2-19.)
CAPÍTULO VII.
As sete parábolas
CAPÍTULO VIII
O divino Taumaturgo
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO PRIMEIRO
Entre os Gentios
CAPÍTULO III
Primado de Pedro
CAPÍTULO IV
A Transfiguração
CAPÍTULO V
De Cafarnaum a Jerusalém
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
O cego de nascimento
CAPÍTULO VIII
Hipócritas e impenitentes
CAPÍTULO IX.
Misericórdia e justiça
CAPÍTULO X
Os três conselhos
CAPÍTULO XI
A festa da dedicação
CAPÍTULO PRIMEIRO
Ressurreição de Lázaro
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
O Hosana
CAPÍTULO IV
Judeus e Gentios
CAPÍTULO V
Últimas lutas
CAPÍTULO VI.
Maldições
CAPÍTULO VII.
A última Ceia
CAPÍTULO IX.
O testamento de amor
JESUS ANUNCIA AS GRANDES PROVAÇÕES. - TRISTEZA DOS APÓSTOLOS. -
DISCURSO DE ADEUS. - MOTIVOS DE FÉ, DE ESPERANÇA E DE
CONSOLAÇÃO. - UNIÃO COM JESUS: A VIDEIRA E OS SARMENTOS. - AMAR
AS ALMAS COMO AO PRÓPRIO JESUS - SUPORTAR, A EXEMPLO SEU, OS
PERSEGUIDORES. - ORAÇÃO DO REDENTOR. (João, XIV-XV-XVI-XVII, 1-26.)
CAPÍTULO I.
Agonia e prisão
CAPÍTULO II.
CAPÍTULO III.
A negação de Pedro
CAPÍTULO IV
O maldito
CAPÍTULO V.
CAPÍTULO VI.
Condenação à morte
CAPÍTULO VII.
A via dolorosa
A Crucifixão
CAPÍTULO PRIMEIRO.
A Ressurreição
CAPÍTULO II.
As aparições
CAPÍTULO III.
Últimas instruções
A Ascensão
CAPÍTULO V
O Pentecostes
CAPÍTULO VI.
CAPÍTULO VII.
CAPÍTULO VIII.
CONCLUSÃO