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EROTISMO, SAGRADO E MORTE

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EROTISMO, SAGRADO E MORTE

2018

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Coordenação
Sergio Cohn

Projeto gráfico e finalização


Pensamento Brasileiro
Reitor
Pe. Josafá Carlos de Siqueira SJ Concepção da capa
Raïssa de Góes
Vice-Reitor
Pe. Álvaro Mendonça Pimentel SJ Revisão
Pensamento Brasileiro
Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos
Prof. José Ricardo Bergmann Selo Pensamento Brasileiro RUTH SIMÃO PAULINO
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Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

Vice-Reitor para Assuntos Comunitários


Prof. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio L435 Leal, Aline
Sob o sol de Hilda Hilst e Georges Bataille/Aline Leal. Prefácio de
Marília Rothier Cardoso. – Rio de Janeiro:Azougue Editorial; Editora
Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento
PUC-Rio,2018.(Selo Pensamento Brasileiro)
Prof. Sergio Bruni 192p.: Il.

Decanos
Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz (CTCH)
ISBN 978-85-7920-220-9
Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS)
Prof. Luiz Alencar Reis da Silva Mello (CTC)
Prof. Hilton Augusto Koch (CCBS)
1. Teoria Literária. 2. Analise Literária. 3. Crítica Literária. 4.
Literatura. 5. Literatura Brasileira. 6. Literatura Francesa. 7. Literatura
Conselho Gestor PUC-Rio
Comparada. 8. Hilst, Hilda (1930-2004). 9. Bataille, Georges (1897-
Augusto Sampaio, Danilo Marcondes, Fernando Sá,
1962). 10. Ética Filosófica. 11. Estética Literária. 12. Erotismo. 13.
José Ricardo Bergmann, Júlio Diniz, Luiz Alencar
Sagrado. 14. Morte. 15. Transgressão. 16. Narrativa Hilstiana.
Reis da Silva Mello, Luiz Roberto Cunha, Miguel 17.EnsaiosBataillianos.I. Título. II. Série. III. Poéticas da radicalidade.
Pereira e Sergio Bruni. IV. A paixão dos raios solares: Hilda Hilst e Georges Bataille já se
encontraram. V. Os obscenos. VI. Os santos profanos. VII. Os
© Editora PUC-Rio - Rua Marquês de S. Vicente, mortais. VIII. Cardoso, Marília Rothier. IX. Pensamento Brasileiro. X.
225. Casa Editora PUC-Rio/Comunicar - Gávea, Barbosa, Aline Leal Fernandes.
Rio de Janeiro, RJ – 22451-900 - Tel.: (21) 3527-
1760/1838 edpucrio@puc-rio.br CDU 82 CDD 800
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Rua Teresina, 67 - Belo Horizonte – MG - 31230-570


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SUMÁRIO

PREFÁCIO - POÉTICAS DA RADICALIDADE 11

INTRODUÇÃO - A PAIXÃO DOS RAIOS SOLARES 19


Hilda Hilst e Georges Bataille já se encontraram 28

OS OBSCENOS 37
Arriscar queimar-se 55
Obsceno sol 61
O olhar apodrecido 66
Porcarias e revelações 71
Olhos por todos os lados 78
De olhos (e pernas) abertos 81
Sol incandescente 85

OS SANTOS PROFANOS 89
Tocar o abismo do céu 98
Construções destrutivas 102
Perdições 106
Economia literária 107
Santo, santo, santo 110
Reajustes do corpo 115
Reinvenções carnais 118
Suplícios do corpo 121

OS MORTAIS 127
De mãos dadas 138
O nome da morte 149
A morte de 152
Possibilidade da morte 163
Incorporada morte 167

CONSIDERAÇÕES FINAIS 173

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 177

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Agradeço à Rosana Kohl Bines e ao José Thomaz Brum por estarem ao
meu lado na realização deste trabalho. Ao Cnpq, pela bolsa de pesquisa que me
foi concedida durante o curso de doutorado, e à Capes, pela bolsa-sanduíche
PDSE, que viabilizou minha temporada de estudos na Université Paris-Diderot
(Paris VII).

para a casa do sol

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PREFÁCIO

POÉTICAS DA RADICALIDADE

Marília Rothier Cardoso

Se os dois nomes de escritores, que compõem o título deste livro, instigam


nossa curiosidade de leitor e, em certa medida, nos desafiam com as questões
densas, que suas obras propõem, cabe pôr em evidência a condição solar de cada
uma de suas páginas. É a garantia de ingresso nessa aventura arriscada e agradável
de conhecer essas duas trajetórias literárias desconcertantes, guiados pela mão
segura de uma pesquisadora, capaz, ela também, de operar com arte, contami-
nando-se com a intuição brilhante de seus objetos de atenção.
Conhecidos, de perto, a partir de uma atração apaixonada ou, à distância,
como referências culturais obrigatórias, Hilda Hilst e Georges Bataille apresen-
tam-se como autores com obsessões temáticas inegavelmente equivalentes, mas
sem troca de influências (a brasileira mostra-se leitora do francês mas cita-o entre
muitos outros nomes, vários de referência mais insistente) e sem pertencimen-
to a vertentes e/ou grupos comuns ou aproximados. Foi graças à sua intuição
perspicaz que Aline Leal leu a escrita de cada um dos autores como intercessora
da construção de sentido da outra. É possível que a enfática recusa de Bataille à
racionalidade capitalista da modernidade ocidental e a operação de seu raciocínio
crítico através da economia das sociedades arcaicas, tenha levado Aline a perce-
ber a dimensão política das narrativas hilstianas, que se servem de usos escondi-
dos/escusos do corpo para denunciar o modo atual de circulação da arte e, além
disso, para situar essa denúncia no fulcro das relações sócio-profissionais de hoje.

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De um lado, Bataille tomou a imagem do sol como dispositivo de trans- que ela não tenha chefiado grupos de ação pública, mas tenha achado meios de
gressão e, de outro, Hilda Hilst chamou de “Casa do Sol” o espaço que construiu divulgar seu comportamento marcadamente anticonvencional.
para preservar seu legado. A insistência nesse símbolo deve ter levado a pesqui- A radicalidade com que os dois desempenharam sua carreira literária ultra-
sadora a destacar a presença do astro – com seus efeitos poderosos de vivificar e passa (decisiva e propositalmente) o circuito intelectual; intervém nos fundamen-
destruir – na elaboração do ensaio. Paralelamente, a crise da razão, no intervalo tos da cultura. A construção dos três capítulos do ensaio ressalta o impacto dessa
entre as duas guerras, que mobilizou o intelectual europeu a liderar a edição de radicalidade. Tal resultado – é bom que se diga – foi atingido graças à clareza
revistas de agressivo confronto com as belas artes, a constituir grupos anti-ins- incisiva mas discreta do estilo da redação. Aline estudou criteriosamente a ima-
titucionais de debate (como o Collège de Sociologie) e até sociedades secretas gética batailliana, tanto quanto as invenções léxico-sintáticas de Hilst, mas não
(como Acéphale), fez ver, na escrita de Hilda Hilst, o abandono do discursivo e tentou imitá-las. Sua escrita sóbria conseguiu fazer-se suficientemente flexível
da verossimilhança, levando à construção de personagens-narradores obcecados para indicar as nuances paradoxais das linguagens-objeto.
pelos meios abjetos de atingir a santidade. Também, o comportamento chocante A força viva, atuante, da escrita violenta dos dois perseguidores do sol pode
da moça da sociedade paulista, que radicalizou, em pornografia desafiadora, sua transmitir-se ao texto rigoroso e tranquilo do ensaio justamente porque este não
temática sacro-erótica, chamou atenção para a seriedade da ficção batailliana, cuja se fechou na demonstração de uma hipótese prevista. Foi a incorporação de
trama de sexualidade exacerbada produz efeito questionador tão rigoroso quanto documentos pessoais, artigos de imprensa e cadernos de estudo da artista que
seus ensaios redigidos em termos acadêmicos. criaram ruídos seja em relação ao padrão acadêmico, seja diante dos tratamentos
Embora sejam óbvios os paralelos que traço para indicar a função da lei- interpretativos ou biográficos convencionais. Desenhos, fotos e manuscritos –
tura em contraponto, meu objetivo é por em destaque, de um lado, a estratégia não só representações mas marcas do corpo – impregnaram a razão analítico-
inteligente do ensaio ao revitalizar os estudos comparatistas e, de outro lado, o -crítica de sensações e afetos. Deixaram transparecer sua iluminação significante
desenvolvimento consequente do abandono dos parâmetros convencionais da e o resíduo sem sentido de seus pontos cegos. Em sua coerência e adequação, a
história da literatura para tratar como contemporâneos (no sentido de Agamben) escrita do ensaio rastreou o pensamento nas artes de Hilst e Bataille mas também
escritores situados em posições distantes. materializou a potência intraduzível de suas vidas-obras.
Encontrando saídas inesperadas para tratar semelhanças e contrastes, Aline Num desdobramento que reforça o aspecto anteriormente apontado, ob-
Leal formulou uma metodologia adequada para um trabalho comparativo ple- serva-se que, ao longo dos capítulos, mantém-se atenção constante à construção
namente satisfatório, isto é, que se desviou dos paralelos redutores, garantindo da linguagem de Hilda Hilst. Nesse ponto, mais agressiva que Bataille, ela força
a complexidade peculiar das duas obras confrontadas. Outra vantagem de sua decisivamente os limites do sistema linguístico. Sua escrita poética, além de ex-
clara intuição metodológica é o inter-relacionamento pertinente de vida e obra, cessiva, opera, com frequência, regras (quase) aleatórias de sintaxe e experimenta
conforme os parâmetros da recente crítica biográfica. Mesmo sem experimen- ampliar o léxico português, na ânsia de nomear seres/objetos/qualidades a serem
tar a ficcionalização de um possível intercâmbio entre Bataille e Hilst, o ensaio percebidos. Poder-se-ia dizer que os cadernos de estudo (documentos paratex-
(inicialmente, tese de doutorado) conseguiu jogar com o contraponto entre as tuais) de Hilst correspondem à base de sua alegoria paródica – o “caderno rosa”
trajetórias públicas e as obras circulantes dos dois escritores. Com essa estratégia, de Lori Lamby. Aí, num exercício homólogo ao “dicionário crítico”, que Bataille
ressaltou tanto o sentido específico da intervenção agressiva de ambas quanto a inseriu na revista Documents para desconstruir os significados estabelecidos pela
participação da energia perceptivo-afetiva de seus corpos na construção de sua cultura hegemônica, a menina-memorialista (diarista) estranha as palavras ouvi-
arte/pensamento. Nesse caso, creio que a atividade pública visível e intensa de das dos adultos. Assim, antes e depois de inventar seu alter-ego (pseudo)-infantil,
Bataille fez ressaltar o impacto ético-político da carreira de Hilda Hilst, ainda Hilda Hilst empenha-se em reduzir, tanto quanto possível, a domesticidade da

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língua. Nessa operação, que o ensaio analisa em sua dimensão estético-erótica – para os questionamentos atuais, na crise do antropoceno. Aline se serve desse
isto é, da agudização de todas as formas de sensibilidade –, destaca-se o apelo às clima para sua exploração convincente de narrativas como A obscena senhora
percepções e afetos, exacerbando a crise da racionalidade. Por isso mesmo, a ma- D, que, instalando-se no vão da escada, experimenta um devir-porca; mencio-
terialidade da escrita é ressaltada. Por um lado, apontam-se os desvios do padrão ne-se, também, de Fluxo-floema, o conto “O unicórnio” que descreve a gradu-
editorial dos livros, mostrando a composição plástica da página; por outro lado, al transformação da narradora nesse animal mítico.
pode-se deduzir a variedade de efeitos sonoros possíveis, a começar pela proli- Assim, a pulsão vital e suicida de fitar o sol, nas trajetórias das personagens,
feração de nomes exóticos, altamente sonoros, vários compostos de modo ali- engendradas nessas obras, a seu modo anuncia a perplexidade anti-humanista
terado. Embora não insista nessa direção, Aline não descuida dela, pois compõe contemporânea e atrai leitores, agora, pelo próprio impacto que chocou o públi-
seu texto como contraponto entre a escrita verbal e a exibição de um conjunto co dos anos de sua publicação. Para leitores de hoje, a retomada das linguagens
selecionado de imagens – tanto vindas do arquivo de Hilst, quanto apropriadas apaixonadamente violentas de Georges Bataille e Hilda Hilst interessa menos
do acervo recente da mídia e das artes. Assim, à medida que mostra e desenvolve pelo choque que sua desobediência proposital possa produzir e mais pela força
o comportamento de leitura solicitado pela escrita hilstiana – e reforçado pelas de vida que se inscreve na escrita exuberante de ambos. A capacidade de pensar
referências constantes à sua fortuna crítica e à de Bataille –, o ensaio também através de sensações, que caracteriza a arte (a completa distância das noções de
dispõe-se de jeito a ampliar o horizonte de expectativa do leitor. Não lhe basta ‘belas artes’ e ‘belas letras’), impõe-se, cada vez mais, justamente por resultar do
dizer que seu objeto trata a linguagem como corpo erótico, sedutor – na medida envolvimento de corpo e espírito na construção do conhecimento. Daí, como
de sua resistência agressiva. quer Deleuze, o efeito de “saúde” produzido pela literatura.
Com sutileza inteligente, sem desafiar padrões, o ensaio também se expõe Nos últimos anos têm-se divulgado novas traduções de textos seminais de
enquanto corpo, chama atenção para a engenhosa construção e articulação de Georges Bataille e, diante das perplexidades do presente, muitos leitores vêm
suas partes. Sem deixar de ser um espaço crítico, que analisa e avalia, é também em busca do legado literário de Hilda Hilst. Neste momento, é muito importante
um constructo inventivo, que se deseja manipulado e rearticulado pelo leitor. ter acesso a uma leitura solar desses dois artistas que apontaram vertentes pode-
Trazendo à conversa mais um comportamento interessante da construção rosas de pensamento através do uso inventivo da linguagem. A escrita de Aline
do ensaio, lembro a atualidade do enfoque das duas obras – a de Bataille da Leal articulou-se em convivência alegre com a radicalidade dessas poéticas.
primeira metade e a de Hilst dos meados e fins do século XX. Nos destaques A força viva, atuante, da escrita violenta dos dois perseguidores do sol pode
de leitura dos textos propriamente ensaísticos de Bataille, o teor anti-idealis- transmitir-se ao texto rigoroso e tranquilo do ensaio justamente porque este não
ta dos mesmos é o ponto importante a corroborar seu anti-intelectualismo, se fechou na demonstração de uma hipótese prevista. Foi a incorporação de
partilhado por Hilda Hilst. Como vanguarda (desgarrada dos movimentos da documentos pessoais, artigos de imprensa e cadernos de estudo da artista que
virada do século), respectivamente, no clímax e no declínio da modernidade, criaram ruídos seja em relação ao padrão acadêmico, seja diante dos tratamentos
ambos levaram adiante seja a percepção precoce de Sade, seja o diagnóstico de interpretativos ou biográficos convencionais. Desenhos, fotos e manuscritos –
Nietzsche da “morte de Deus” e a consequente queda do homem de seu lugar não sórepresentações mas marcas do corpo – impregnaram a razão analítico-crí-
privilegiado no topo da pirâmide dos seres. Os ensaios bataillianos de A litera- tica de sensações e afetos. Deixaram transparecer sua iluminação significante e
tura e o mal e seu estudo sistemático da sociedade capitalista nomeado A parte o resíduo sem sentido de seus pontos cegos. Em sua coerência e adequação, a
maldita constituem, certamente, a base do pensamento chamado pós-estrutru- escrita do ensaio rastreou o pensamento nas artes de Hilst e Bataille mas também
ralista que, na esteira do maio de 68, colocou a produção filosófica francesa materializou a potência intraduzível de suas vidas-obras.
no topo das discussões sobre a recepção crítica dos legados de Freud, Marx e Num desdobramento que reforça o aspecto anteriormente apontado, ob-
Nietzsche. A literatura de Hilst, sem se fixar, diretamente, nesses debates, tem serva-se que, ao longo dos capítulos, mantém-se atenção constante à construção
contribuído, à sua maneira e à medida que vem sendo reeditada e estudada, da linguagem de Hilda Hilst. Nesse ponto, mais agressiva que Bataille, ela força

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decisivamente os limites do sistema linguístico. Sua escrita poética, além de ex- ta dos mesmos é o ponto importante a corroborar seu anti-intelectualismo,
cessiva, opera, com frequência, regras (quase) aleatórias de sintaxe e experimenta partilhado por Hilda Hilst. Como vanguarda (desgarrada dos movimentos da
ampliar o léxico português, na ânsia de nomear seres/objetos/qualidades a serem virada do século), respectivamente, no clímax e no declínio da modernidade,
percebidos. Poder-se-ia dizer que os cadernos de estudo (documentos paratextu- ambos levaram adiante seja a percepção precoce de Sade, seja o diagnóstico de
ais) de Hilst correspondem à base de sua alegoria paródica -- o “caderno rosa” Nietzsche da “morte de Deus” e a consequente queda do homem de seu lugar
de Lori Lamby. Aí, num exercício homólogo ao “dicionário crítico”, que Bataille privilegiado no topo da pirâmide dos seres. Os ensaios bataillianos de A litera-
inseriu na revista Documents para desconstruir os significados estabelecidos pela tura e o mal e seu estudo sistemático da sociedade capitalista nomeado A parte
cultura hegemônica, a menina-memorialista (diarista) estranha as palavras ouvi- maldita constituem, certamente, a base do pensamento chamado pós-estrutru-
das dos adultos. Assim, antes e depois de inventar seu alter-ego (pseudo)-infantil, ralista que, na esteira do maio de 68, colocou a produção filosófica francesa
Hilda Hilst empenha-se em reduzir, tanto quanto possível, a domesticidade da no topo das discussões sobre a recepção crítica dos legados de Freud, Marx e
língua. Nessa operação, que o ensaio analisa em sua dimensão estético-erótica – Nietzsche. A literatura de Hilst, sem se fixar, diretamente, nesses debates, tem
isto é, da agudização de todas as formas de sensibilidade –, destaca-se o apelo às contribuido, à sua maneira e à medida que vem sendo reeditada e estudada,
percepções e afetos, exacerbando a crise da racionalidade. Por isso mesmo, a ma- para os questionamentos atuais, na crise do antropoceno. Aline se serve desse
terialidade da escrita é ressaltada. Por um lado, apontam-se os desvios do padrão clima para sua exploração convincente de narrativas como A obscena senhora
editorial dos livros, mostrando a composição plástica da página; por outro lado, D, que, instalando-se no vão da escada, experimenta um devir-porca; mencio-
pode-se deduzir a variedade de efeitos sonoros possíveis, a começar pela proli- ne-se, também, de Fluxo-floema, o conto “O unicórnio” que descreve a gradu-
feração de nomes exóticos, altamente sonoros, vários compostos de modo ali- al transformação da narradora nesse animal mítico.
terado. Embora não insista nessa direção, Aline não descuida dela, pois compõe Assim, a pulsão vital e suicida de fitar o sol, nas trajetórias das personagens,
seu texto como contraponto entre a escrita verbal e a exibição de um conjunto engendradas nessas obras, a seu modo anuncia a perplexidade anti-humanista
selecionado de imagens – tanto vindas do arquivo de Hilst, quanto apropriadas contemporânea e atrai leitores, agora, pelo próprio impacto que chocou o públi-
do acervo recente da mídia e das artes. Assim, à medida que mostra e desenvolve co dos anos de sua publicação. Para leitores de hoje, a retomada das linguagens
o comportamento de leitura solicitado pela escrita hilstiana – e reforçado pelas apaixonadamente violentas de Georges Bataille e Hilda Hilst interessa menos
referências constantes à sua fortuna crítica e à de Bataille --, o ensaio também pelo choque que sua desobediência proposital possa produzir e mais pela força
dispõe-se de jeito a ampliar o horizonte de expectativa do leitor. Não lhe basta de vida que se inscreve na escrita exuberante de ambos. A capacidade de pensar
dizer que seu objeto trata a linguagem como corpo erótico, sedutor – na medida através de sensações, que caracteriza a arte (a completa distância das noções de
de sua resistência agressiva. ‘belas artes’ e ‘belas letras’), impõe-se, cada vez mais, justamente por resultar do
Com sutileza inteligente, sem desafiar padrões, o ensaio também se expõe- envolvimento de corpo e espírito na construção do conhecimento. Daí, como
enquanto corpo, chama atenção para a engenhosa construção e articulação de quer Deleuze, o efeito de “saúde” produzido pela literatura.
suas partes. Sem deixar de ser um espaço crítico, que analisa e avalia, é também Nos últimos anos têm-se divulgado novas traduções de textos seminais de
um constructo inventivo, que se deseja manipulado e rearticulado pelo leitor. Georges Bataille e, diante das perplexidades do presente, muitos leitores vêm
Trazendo à conversa mais um comportamento interessante da construção em busca do legado literário de Hilda Hilst. Neste momento, é muito importante
do ensaio, lembro a atualidade do enfoque das duas obras – a de Bataille da ter acesso a uma leitura solar desses dois artistas que apontaram vertentes pode-
primeira metade e a de Hilst dos meados e fins do século XX. Nos destaques rosas de pensamento através do uso inventivoda linguagem. A escrita de Aline
de leitura dos textos propriamente ensaísticos de Bataille, o teor anti-idealis- Leal articulou-seem convivência alegre com a radicalidade dessas poéticas.

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INTRODUÇÃO

A PAIXÃO DOS RAIOS SOLARES

Há uma atração forte pelo sol. Imantados, nossos olhos giram em direção
a ele. Surpreende que, tão iluminado e tão vital, o sol também nos queime e nos
destrua. Que a claridade do meio-dia equivalha à noite absoluta, o impedimento
do olhar. Excessivo astro, transbordante esplendor: dele tenho medo, dele me
aproximo, desejo e angústia. A maldição de Ícaro: tomado pelo desejo de voar
perto do sol, derreteu-se, desfigurou-se, desapareceu. Qual será o limite do ilimi-
tado, seu interdito mais feroz, a medida do nosso enfrentamento?
Para Georges Bataille, o sol foi uma metáfora importante, como disposi-
tivo de excesso e exuberância, de glória improdutiva. O sol fonte de irradiação
inesgotável que dispensa toda a sua energia sem contrapartida, além disso órgão
excretor, ânus que expele os rejeitos de um corpo homogêneo, notabilizando o
que excede. São diversas as atribuições que Bataille lhe dedica, invariavelmente
apontando para o ímpeto desafiador com que tratou seus temas diversos, o que
lhe legou uma obra por vezes inclassificável, além da reputação de filósofo, santo,
talvez louco, frase de sua própria autoria1. A marca profunda que lhe deixou o pai
sifilítico, a vocação religiosa precoce adiante recusada, as duas guerras mundiais,
o flerte com o surrealismo e o comunismo, a obra ficcional profundamente erótica,

1 É interessante que nesta frase Bataille mostre estar consciente de que o que ele faz não
pertence ao continente stricto sensu da filosofia. Aproximando-a da santidade e da loucura,
ele parece nivelar suas operações e saberes, fazendo uma auto-descrição bastante precisa.

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o engajamento em comunidades e revistas, notadamente Documents (1929/1930), tábua etrusca3. A isso, respondeu com o lançamento de sua trilogia4 pornográfica,
Minotaure (1933/1939), Acéphale (1936/1939), Critique (1946/1949). Todo o mo- avisando: “A santa tirou a saia para chamar a atenção dos leitores”. Fica como
vimento de Bataille orienta-se para o risco absurdo de fixar o sol de olhos aber- foto símbolo aquela em que Hilst, com a face sorridente, mostra o dedo do meio,
tos, risco a que ele se entregou. um gesto de afronta e desdém, um grande foda-se. Nasce em 1930 em Jaú, cidade
Nascido em 1897 na pequena cidade de Billom, na França, ele muito cedo do interior do estado de São Paulo, e morre em 2004, quando morava na Casa do
muda-se com a família para Reims, dali parte com a mãe e o irmão devido às Sol. Hilda Hilst o próprio sol.
ameaças da artilharia alemã durante a primeira grande guerra, deixando para trás No Dicionário dos Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, aponta-se
o pai enfermo. Em Paris, chega em 1918, e é admitido na École de Chartes, quan- para a função ambivalente do sol: psicopompo5 assassino e hierofante iniciático,
do abandona toda ideia de vocação religiosa, formando-se, em 1922, como ar- podendo guiar as almas pelas regiões infernais, e trazê-las de volta à luz do dia
quivista-paleógrafo. Na cidade de cenário intelectual estimulante, alia-se a nomes seguinte, embora, frequentemente, inexista a esperança de despertar. Para o bem
como Michel Leiris, André Masson e Pierre Klossowski, com quem estabeleceria e para o mal, ele nos conduz, a ele tendemos displicente ou involuntariamente,
parcerias situadas à margem dos grandes movimentos da época, propondo em como tendemos ao que há de mais repugnante, ao horror que reforça a atração
seu lugar um baixo materialismo. Torna-se arquivista na Biblioteca Nacional da e excita o desejo, como diz Bataille. Como tendemos à morte. Rico em contradi-
França, no departamento de heráldica e numismática, oscilando seu tempo entre ções, não há como evitar segui-lo, por ameaçador e arriscado seja o seu itinerário,
o trabalho, a vida intelectual e as tavernas, chamado de “devasso de fim de sema- todo o seu poder inequívoco sobre nós. Sigamos então o nosso sol, com a facul-
na”2. Morre em 1962, em Paris. Georges Bataille, o próprio sol. dade da águia de contemplá-lo de frente, ou com o olho pineal, verticalizando
Por sua vez Hilda Hilst. Também ela teve em relação ao mundo uma postu- nossa visão. Ei-lo aqui em Hilda Hilst e Georges Bataille, eis o sol de Hilda Hilst
ra de desencaixe e enfrentamento. Refratária aos códigos e condutas reservados e Georges Bataille.
às mulheres de sua época, foi chamada de puta, louca e até mesmo bruxa. Transi- Uma questão se impõe: por que os reunir no percurso de um livro? A re-
tou entre a poesia, o teatro, a prosa, as crônicas, sempre com a linguagem poética lação entre os autores já foi tratada antes, por intensos e evidentes os elos que
no comando, poeta maior. Tratou do erótico, do sagrado, da morte, devotando os unem. O erotismo, o sagrado, a morte são temáticas centrais de suas obras,
toda a sua obra ao seu pai, Apolonio de Almeida Prado Hilst, que muito cedo
fora tomado pela loucura; seu pai uma espécie de sol. De vida social agitada na
3 A língua da civilização etrusca não foi completamente decifrada, e os poucos documen-
grande São Paulo, ela decide, em 1965, construir uma casa – a Casa do Sol – em tos que foram encontrados estão em espécies de lápides. Assim, Hilda Hilst usa diversas
um terreno da família nos arredores de Campinas, para se dedicar exclusivamente vezes “tábua etrusca” para referir-se à dificuldade que atribuem à sua escrita, de modo
à literatura. Inspirada pela leitura de Carta para El Greco, de Nikos Kazantzakis, que essa expressão ficou fortemente associada à sua obra, sendo várias vezes usada para
em que o autor defende a necessidade do isolamento para tornar possível o co- referir-se a ela.
nhecimento do ser, ela constrói ali a sua torre de capim, em sarcástica apropria- 4 A trilogia mais tarde consolida-se como tetralogia, com a incorporação do livro de
ção da torre de marfim dos intelectuais. poemas Bufólicas (1992). No entanto, tendo em vista que o projeto original de Hilda Hilst
consistia em uma trilogia, vamos tratá-la nestes termos, dando ênfase aos três primeiros
Durante toda a vida Hilst foi assombrada pela escassez de leitores e críticos,
livros: O caderno Rosa de Lori Lamby (1990), Contos d’escárnio, textos grotescos (1990) e Cartas
que a consideravam hermética, totalmente incompreensível, uma verdadeira
de um sedutor (1991).
5 A palavra psicopompo tem origem no grego psychopompós, junção de psyché (alma) e
2 Expressão utilizada na apresentação de A história olho, livro publicado pela Cosac Naify, pompós (guia), designa um ente cuja função é guiar ou conduzir a percepção de um ser
2003. humano entre dois ou mais eventos significantes.

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é insuportável. Aproximar-se deles, portanto, requer despir-nos: roupas, modos,
máscaras, porque, à violência autoritária da razão e dos bons costumes, responde-
-se violentamente. E, desse entrechoque, podemos sair dilacerados. Vejamos aqui
um trecho de entrevista com Hilda Hilst, que aponta para esse eixo:

Para mim a problemática importante é a morte, as relações humanas, as


relações eróticas, as situações extremas. Eu não tenho nada a ver com essa
coisa do dia-a-dia, ainda que ela possa ser terrível. Eu tenho a ver com as
situações extremadas, o homem em convulsão.6

Na década de 1990, Hilda Hilst vendeu grande parte de seu acervo – ma-
nuscritos, anotações, cadernos, agendas – para o Centro de Documentação Cul-
tural Alexandre Eulálio, da Unicamp. Observa-se aí um dedicado trabalho de
elaboração de seus temas e suas personagens, indicando que ela pensava sua
obra durante um longo período, e pensava escrevendo. É interessante encontrar
também nesse material reflexões agudas sobre o seu próprio trabalho, talvez para
suprir o que ela considerava insuficiência de leitura e crítica. Tais reflexões apare-
ceram vez ou outra em entrevistas nas quais Hilda Hilst apresentava-se com ma-
estria, contribuindo para a construção de uma imagem ousada e desconcertante,
e para a criação de mais um gênero hilstiano, além da poesia, da prosa, do teatro
e das crônicas.7 A seguir, transcrevemos trecho de um caderno de HH, em que
ela trata de apontar o universo e as preocupações que atravessam a sua criação,
apostando sempre no excesso como vetor que orienta sua obra, excesso para o
qual sua obra tende:

Basicamente meus textos se referem a pessoas em situações extremas.


Cadernos de Hilda Hilst. Diante do amor, diante da própria vida, diante do cotidiano, diante da
morte. Todas essas personagens estão muito preocupadas com os conceitos
além disso são modos operatórios da linguagem, sua tendência incontinente, seu de vida e morte, ser e não ser mais, estar ali e não estar mais. São sempre
excesso. Está aí o ponto crucial em que se encontram: a extremidade que per- excessivas.
seguiram como via inevitável de criação, via crúcis, sol ambivalente, derradeiro
fracasso. No cruzamento entre pensamento teórico e prática poética, como filó- 6 Alexandre, C e Francisco, S. Jornal de Brasília. Brasília, 23 de abril de 1989.
sofo-poeta e, por que não, poeta-filósofa, realizaram uma obra polêmica, esgarça- 7 Algumas destas entrevistas foram reunidas por Cristiano Diniz no livro Fico besta
da, na investigação erótica dos limites, do que a linguagem suporta, do que a ela quando me entendem (Diniz, 2013).

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Excesso de compaixão, excesso de paixão, excesso de lucidez. Pessoas Não parece imprudente pensar que Hilda Hilst pudesse compor o corpus
que não conseguem o meio-termo, a prudência, o estar ali com critério literário que Bataille reuniu em A literatura e o mal, a partir de ensaios publica-
e reflexão. Um filósofo que me emociona muito, Kierkegaard disse que dos durante uma década (1946/1957), em sua maioria na revista Critique. Ao
“viver é sentir-se perdido”. lado de Emily Brontë, espécie de “mocinha vitoriana”8 que passara a vida na
Pessoas que buscam o essencial, a ordem, porque são desmesuradamente austeridade de um presbitério, Hilda Hilst contrastaria como mulher desimpe-
desordenadas e passionais. Perdidas diante do existir. Pessoas que tem a dida, desbocada, deslavada, embora tenha optado por algo próximo de uma
nostalgia de uma ínfima luz, luz essa que tinha alguma coisa a ver com reclusão monástica – a Casa do Sol – para a realização de sua obra. Se o amor
a perfeição, a harmonia, a beleza. de Catherine e Heathcliff em Wuthering Heights foi tratado por Bataille na chave
A voluptuosidade das palavras, personagens mais para serem ouvidas, da liberdade de uma infância selvagem, avessa a qualquer restrição, O caderno
não há propriamente uma história linear, há instantâneos de dor, de rosa de Lori Lamby também poderia tratar do reino da infância, como lugar de
fulgor, de desastre de si mesmo. Radiografias de meu percurso. soberania ingênua, de recusa das razoáveis convenções dos adultos. Néscia e
impudica, Lori diz: “O moço falou que quando ele voltar vai trazer umas meias
furadinhas pretas pra eu botar. Eu pedi pra ele trazer meias cor-de-rosa porque
eu gosto muito de cor-de-rosa e se ele trazer eu disse que vou lamber o piu-piu
dele bastante tempo, mesmo sem chocolate. Ele disse que eu era uma putinha
muito linda” (Hilst, 2016, p.15). Se o despudor de Lori Lamby soa exagerada-
mente ofensivo para nossa moral puritana, se, no auge de seus oito anos, ela
fala abertamente do prazer de lamber e ser lambida, de seu interesse descara-
do pelo dinheiro, incorrendo em erros que apontam seu desconhecimento da
gramática, então a narrativa aproxima-se do Mal que Bataille tanto exaltara na
literatura – e que, segundo ele, Brontë experimentara profundamente – para
livrá-la da subordinação, do moralismo e do tédio.
Em outro exercício de alucinação, o próprio Bataille ficcionista poderia fi-
gurar entre os objetos literários de sua escolha, pois toda a sua escrita tendeu ao
excesso, à perturbação, ao sacrilégio, à embriaguez, tendência que ele buscava em
suas leituras. A cena de História do olho em que Simone, Sir Edmond e o narrador
estrangulam o padre – sacrifício de um “rato de sacristia” –, para que a jovem
Simone pudesse penetrar os músculos retesados do membro de um morto, aspi-
ram ao auge da profanação literária, verdadeiro êxtase sádico. Sir Edmond expli-
ca o procedimento: “Você sabe que os condenados à forca ou ao garrote ficam
com o pau tão duro, no momento do estrangulamento, que esporram. Portanto,

8 Essa expressão foi tirada da nota do tradutor Fernando Scheibe à edição para a editora
Página do excesso. Autêntica de A literatura e o mal (Bataille, 2015, p.7).

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você será martirizado, mas trepando.” (Bataille, 2003, p.89). Simone introduz o primeira parte de Sobre Nietzsche, terceiro volume da Suma ateológica, com O culpado
olho do padre estrangulado no ânus e depois na vagina; e o que falar dos testí- (1944) e A experiência interior (1943), Bataille afirma: “Exceto por algumas exce-
culos – “pequenos testemunhos” – do touro abatido inseridos na “carne rosa e ções, minha companhia na Terra foi a de Nietzsche”, e, mais adiante: “Somente
preta” de Simone? Olho imponente sol ofuscante. Nietzsche se tornou solidário a mim – dizendo nós”12. François Warin no ensaio
No livro Versions du soleil – Figures et système de Nietzsche (1971), Bernard Pau- “Georges Bataille e a maldição da literatura” (1974) aponta para o encaminha-
trat parte da metáfora pungente do excesso, heliologia como pensamento da ori- mento que Nietzsche e Bataille deram à questão do desvio da linguagem como
gem e do declínio, para realizar uma “descrição orientada” do texto de Nietzsche. potência de linguagem:
Pautrat elabora assim um dos eixos de sua pesquisa: “uma vez que reconhecemos
que o pensamento de Nietzsche não pode exceder os limites que a linguagem O uso irregular do corpo e da linguagem correspondem-se assim estreita-
natural fixa, ligada à metafísica ocidental (ao platonismo), convém fazer o exato mente: a literatura é, para Bataille, não somente um desvio da função das
inventário desses limites, marcar a metaforicidade inteira da língua, retirar dela palavras, mas uma subversão da linguagem e da ideologia que ela veicula:
toda a retórica” (Pautrat, 1971, p.9).9 uma perversão sistemática das palavras, das hierarquias, das fronteiras
A linguagem limitadora por ora nosso raio mais cegante, também raio de léxicas e das oposições sobre as quais repousa nossa cultura. Reencon-
luz que abre caminhos, aponta desvios, elabora-os no interior da linguagem, de tra-se aqui uma estratégia à respeito da linguagem que é análoga à de
modo que tencionamos uma liberdade acorrentada. Porque impressiona que a Nietzsche, que tentou escapar com um jogo paródico aos constrangimentos
linguagem ironize a própria linguagem, que estenda seus limites ao mesmo tem- gramaticais que nos impõem a linguagem. Com efeito, também para Ba-
po em que abarca todo movimento que a ameaça, mantendo-a em funcionamen- taille, trata-se de usar a linguagem contra si mesma, traí-la, escapar ao
to. Mas Pautrac emenda: “por outro lado, bastaria despertar o poder retórico e jogo da sublimação e da representação a fim de mostrar esse reverso das
metafórico da língua, para que o texto de Nietzsche se torne instável, liberando e palavras, esse exterior de nossa cultura que são o corpo, o desejo, a nudez,
exibindo as figuras que o ocupam e o escrevem.” (Ibid, p.9)10 o gasto, a morte. (Warin, 1974, p.61/62)13
Sabemos que Nietzsche foi um sol eminente para Bataille, a ele dedicou
notavelmente seu livro Sur Nietzsche (1945), além de comparecer com importân- Evoca-se o caráter obsceno da literatura, no sentido de expor aquilo que
cia na sociedade secreta e nas edições das revistas Acéphale (1936-39), bem como estava ocultado, de trazer para a cena o que fora rejeitado, o que escapa ao tratado
atravessar todo o seu pensamento, contribuindo para a revisão do legado do filó- de subordinação e o evidencia, literatura como prática erótica, de transgressão
sofo alemão no século XX e a ampliação da recepção francesa de sua obra11. Na cruel das formas. Se a literatura clássica estava comprometida com a ideologia
dominante, trabalhando para reduzir as diferenças, a literatura moderna opera na
9 Tradução nossa do trecho original: «une fois reconnu que la pensée de Nietzsche ne
peut excéder les limites que lui fixe la langue naturelle, liée à la métaphysique occidentale samento francês, ressoando no pensamento de Gilles Deleuze, Maurice Blanchot, Pierre
(au platonisme), il convient de faire l’exact inventaire de ces limites, de marquer la méta- Klossowski, Bernard Pautrat, entre muitos outros.
phoricité entière de la langue, d’en déployer tout le rhétorique» 12 Edição de On Nietzche (Paragon House Saint Paul/First e-book edition, 2012) do
10 Tradução nossa do original: « d’autre part, il aura suffi d’éveiller ainsi la puissance rhé- Kindle (sem página). Tradução nossa de: “Except for a few exceptions, my company on
torique et métaphorique de la langue, pour que le texte de Nietzsche se trouve instable, earth is mostly Nietzsche”, e mais adiante: “Nietzsche is the only one to support me – he
libérant et déployant les figures qui l’occupent et l’ecrivent.» says we”.
11 O livro Nietzsche and the question of interpretation (1991), de Alan D. Schrift, observa a 13 WARIN, François. “Georges Bataille e a maldição da literatura”. In: discurso.São Pau-
contribuição de Georges Bataille para a ampliação do interesse sobre este autor no pen- lo: USP.ano.05.nº 5.1974.p.55-64. Acessado em 24/04/2017: https://bit.ly/2JgCbTj

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“dissolução do código retórico” (Warin, 1974, p.62), encaminhando a linguagem projeto intelectual e literário. Em sua obra as influências de leituras e referências
para a sua ruína. De modo que a literatura é culpada, advertiu-nos Bataille: culpa- culturais são evidenciadas, os personagens, as epígrafes, as dedicatórias indicando
da de trair o discurso, culpada de prescrever a moral, de exceder os sentidos, de obras e autores que faziam parte de sua formação intelectual. Na trilogia erótica,
transbordar os limites, do seu gasto improdutivo, de seu gozo frívolo. em que se poderia imaginar que este tipo de abordagem fosse deixado de lado
Há uma violência intrínseca da literatura autêntica, avessa a qualquer conces- para se privilegiar temáticas menos elaboradas, são inúmeras as citações de livros,
são, a qualquer acordo com a sociedade organizada, sua revolta como potencial filmes, artistas, apontando para as referências pessoais da autora e sua presença
de liberdade. Bataille observa: “A literatura é mesmo, como a transgressão da lei marcante na própria obra. Na entrevista “Potlacht, a maldição de Hilda Hilst”,
moral, um perigo”, em seguida diz: “Sendo inorgânica, ela é irresponsável. Nada que a autora conferiu ao crítico literário José Castello, ela tenta explicar o porquê
repousa sobre ela. Ela pode dizer tudo” (Bataille, 2015, p. 22). A literatura é, por- do seu ostracismo, e confere ao excesso de pensamento em sua obra a causa de
tanto, culpada de sua violência exuberante, do seu poder de deslumbrar e ofuscar seu insucesso entre os leitores: “Todos os meus personagens têm o mau hábito
como os raios solares. de pensar. Mesmo quando decidi escrever literatura pornográfica, meus persona-
No primeiro capítulo deste livro, aliando reflexões a respeito do obsceno a gens viviam com a cabeça cheia de pensamentos. Eles pensam sem parar. Até no
partir do olhar, do corpo e do impossível, queremos pensar em que medida Hilda meio do sexo decidem fazer perguntas supercomplicadas” (Diniz, 2013, p.160)14.
Hilst e Georges Bataille distenderam-se do campo central do logos, das formas, Nos dois últimos livros da trilogia erótica são fartas as citações à “alta cultura”.
dos sentimentos, para explorar continentes marginais: ali onde o sol queima sem Em Contos de Escárnrio, Textos Grotescos: Vladimir Horowitz, Lucrécio, Ezra
dó os olhos de seu inconsequente admirador, onde um pintor decide arrancar a Pound, Shakespeare, Grieg, Tchaikovsky, Bach, Spinoza, Kierkegaard, Keats,
própria orelha, uma senhora decide viver no vão da escada, onde os vermes, mi- Yeats, Dante, D.H. Lawrence, Catulo, Freud, Polanski, Fernando Pessoa, Dos-
cróbios e bactérias se concentram para proliferarem sua abjeta existência. toievsky, Bertrand Russel, Byron, Shelley, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha,
A experiência do sagrado – no domínio sexual, nos ritos coletivos, na pró- entre outros.
pria vida cotidiana –, a experiência mística de transbordamento, sua atmosfera Em Cartas de um sedutor: Emil Michel Cioran, Liev Tolstói, Soren Kierkega-
extática de saída e perda de si, seu ideal de dispêndio em contradição aos empre- ard, Michel Foucault, Paul Verlaine, Arthur Rimbaud, Jean Genet, George Batail-
endimentos de acumulação serão os condutores da reflexão que tencionaremos le, Roberto Piva, João Silvério Trevisan, Otto Rank, Daniel Schreber, Arthur Ko-
abarcar no segundo capítulo do livro. estler, Nietzsche, D. H. Lawrence, Yukio Mishima, Marcel Proust, James Joyce,
Enfim a morte, seu caráter irrevogável, a experiência radical de continuida- Richard Francis Burton, Albert Camus, Freud, Jung, Ovídio, entre outros.
de a que o erotismo e o sagrado tendem. Será ela a nos conduzir pelas reflexões Se a listagem apresentada soa como um verdadeiro “name dropping” de
do terceiro capítulo, com toda a soberania e a poesia que a faz reinar como se- referências, é assim como aparece na própria obra de Hilda Hilst, com persona-
nhora absoluta da vida. gens que destilam erudição sem se darem ao trabalho de elaborar o pensamento
de tais fontes, e inserindo-os de forma recorrente em meio a atos profanatórios,
realizando um intercâmbio entre as esferas do erudito e do popular. Em Contos
HILDA HILST E GEORGES BATAILLE JÁ SE ENCONTRARAM d’escárnio, textos grotescos, lemos: “Dona Vivalda quer muito que ele seja, cré, né
gente?, um moço de fama, um pianista, o senhor sabe, seu Vlad, que pianista
Quando Hilda Hilst decide afastar-se da vida agitada que levava na Grande
São Paulo e refugiar-se em um sítio na propriedade de sua família nos arredo- 14 Castello, José. “Potlatch, a maldição de Hilda Hilst”. O Estado de São Paulo, São Pau-
res de Campinas, construindo ali uma casa para viver, estava delineando o seu lo, 30 out.1994. Especial Domingo, Literatura.

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tem que estudar muito, eles têm que tocar Grieg, Tchaikovsky, o Bach o senhor Não fica claro de onde vem esta citação de Bataille, mas de fato o autor
conhece?”15. E, em mais uma das inúmeras ocorrências: “Que coisa idiota o sexo, comparece entre as suas referências literárias. Na epígrafe da seção “De outros
que bela porcaria emerdada isso de comer cu de inglesas ou americanas (...) E eu, ocos”, de Cartas de um sedutor, há uma citação de A parte maldita: “um esplendor
que decadência. Eu que na mocidade havia lido Spinoza, Kierkegaard, e amado infinitamente arruinado/ ...o esplendor dos farrapos/ e o obscuro desafio da
Keats, Yeats, Dante, alguns tão raros, mas deixem pra lá, enfim que bela droga indiferença”.
o que eu vinha fazendo da minha vida”16. Em seu incansável empreendimento A biblioteca da Casa do Sol, hoje aberta aos que participam do programa
de leitura e estudo, um trabalho que exercia diariamente, Hilst chamava a es- de residência do Instituto Hilda Hilst, contém os seguintes livros de Georges
ses interlocutores de “luminares”, apresentando-os como determinantes para a Bataille, não raro grifados pela autora e com sinais de uso: Minha mãe (1985,
construção de sua obra. editora Brasiliense), O erotismo (1988, editora Antígona), O abade C. (1982, editora
Na contracapa de Amavisse17, do latim “ter amado”, livro de poemas que Contexto), O azul do céu (1986, editora Brasiliense), História do olho (2003, editora
HH lança junto com O caderno rosa de Lori Lamby, ou seja, ao mesmo tempo em Cosac Naify), História de ratos (1988, editora Hiena), A parte maldita (1975, editora
que dá o seu “adeus à literatura séria”, há uma espécie de manifesto do escritor Imago).
maldito, em que ela narra sua trajetória literária em tom de desapego:

O escritor e seus múltiplos vem vos dizer adeus.


Tentou na palavra o extremo-tudo
E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância
Foi velada: obscura na teia da poesia e da loucura.
A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito
Tempo-Nada na página.
Depois, transgressor metalescente de percursos
Colou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra.
Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar.
A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo.
O Caderno Rosa é apenas resíduo de um “Potlatch”.
E hoje, repetindo Bataille:
“Sinto-me livre para fracassar”.

15 HILST, Hilda. Pornochic – O caderno rosa de Lori Lamby/ Contos d’escárnio textos grotescos/
Cartas de um sedutor. São Paulo: Editora Globo, 2016, p.73.
16 HILST, Hilda. Pornochic – O caderno rosa de Lori Lamby/ Contos d’escárnio textos grotescos/
Cartas de um sedutor. São Paulo: Editora Globo, 2016,, p.77. Grifos de HH em A literatura e o mal.
17 Em entrevista à TV Cultura, por ocasião do lançamento de O caderno rosa de Lori Lamby
e Amavisse, Hilda Hilst diz: “O Amavisse é seriíssimo, naturalmente vão comprar um ou Nos seus cadernos e anotações, também a referência a Georges Bataille
dois. Eu espero que a Lori Lamby comprem cem mais ou menos”. Link para assistir:
https://bit.ly/2J1fiQh
aparece, indicando sua presença entre os seus principais interlocutores. Em uma
lista de livros que Hilda Hilst rascunha, A literatura e o mal, de Georges Bataille,

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aparece ao lado de Susan Sontag, George Steiner, entre outros. Em outra página,
Hilst faz notas a respeito deste livro: “A literatura é o essencial ou não é nada”,
“Tumulto escaldante da criação literária – Sobre Emily Brontë”, “Como é vo-
luptuosa a destruição – Bataille citando Sade”. E em uma página de um caderno,
temos a seguinte anotação:

Sobre Kafka (Bataille) pg 90 “A literatura e o mal”. Evidentemente o


pai respondia com a dura incompreensão do mundo de atividade. Lem-
brar pai de Lucius Kod.
Bataille: que a satisfação sexual tem lugar uma grande desordem dos
sentidos”
Óbvio.
Bataille
“Há na sensualidade uma perturbação e um sentimento de estar afoga-
do”. (p.152)
O que destrói um ser arrebata-o também.
O arrebatamento é sempre por outro lado a ruína de um ser que se dera
os limites do decoro. A desordem sexual decompõe as figuras coerentes que
nos estabelecem para nós mesmos e para os outros.

Além disso, em ensaios e artigos acadêmicos, dissertações e teses sobre a


escritora Hilda Hilst é quase certa a presença de Georges Bataille como referên-
cia bibliográfica. O tema da transgressão, do erotismo, do sagrado e da morte é
central na filosofia de Bataille, fazendo dele uma bibliografia quase incontornável
para se pensar a obra hilstiana, também essencialmente debruçada sobre essas
questões. Mas este livro não é sobre a obra de Hilda Hilst que tem em Georges
Bataille uma forte referência bibliográfica. A ideia foi colocar as duas obras em
fricção, contato, realizando um percurso por vezes errático, baseado em afinida-
Sobre Kafka, em A literatura e o mal.
des e cruzamentos, e fazendo deste encontro escorrer algum resíduo.

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Notas de A literatura e o mal. Lista de leitura.

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OS OBSCENOS

No ensaio “A imaginação pornográfica”, de 1967, Susan Sontag discute a


exclusão da pornografia como objeto literário da crítica norte-americana e ingle-
sa, apoiada que está em pressupostos estanques da grande literatura realista dos
romancistas do século XIX e classificando como “vanguarda” ou “marginal” o
que foge a esses pressupostos, e além disso declarando essa uma fase concluída.
Sontag propõe uma abordagem crítica diferente, que estabelece como inerente à
própria literatura – e a arte de forma mais geral – a investigação de estados fron-
teiriços da consciência, seus recantos mais longínquos, sendo as variadas formas
de consciência a matéria-prima da arte.
Portanto, uma vez que a imaginação pornográfica trata de uma forma particular
de consciência, que transcende as esferas sociais e psicológicas, torna-se privile-
giada na reapreciação da natureza da literatura, questão fundamental para a era
moderna, além de problematizar a própria noção de homem e humanidade. Isso
porque a pornografia vai tratar do excesso, daquilo que transborda aos pressu-
postos determinados, encenando formas frequentemente censuradas de se estar
no mundo, apontando para a consonância e a coincidência entre os excessos da
imaginação, os excessos da linguagem, os excessos do corpo, ao mesmo tempo
revalorizando-os como possibilidade de expandir a escala humana na arte, para
além dos limites da vida em sociedade. Contornando a crítica da intencionalidade
da literatura pornográfica – acusada de excitar o leitor e ferir o princípio desinte-
ressado da arte genuína –, Sontag vai afirmar:

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As sensações físicas involuntariamente produzidas em alguém que leia a contemporaneamente, liberdades foram conquistadas em relação ao comporta-
obra carregam consigo algo que se refere ao conjunto das experiências que mento, à exposição, à decisão, aos direitos do sexo, do corpo e seus derivados,
o leitor tem de sua humanidade – e de seus limites como personalidade ainda que outros interditos tenham sido levantados em consonância com reivin-
e como corpo. A singularidade da intenção pornográfica é, na realidade, dicações de civilidade. Por exemplo, a pauta do movimento de mulheres sobre os
espúria. Mas a agressividade da intenção não o é. Aquilo que parece um limites de seus corpos e mesmo algumas correntes do feminismo que acusam a
fim é, na mesma medida, um meio, assustadora e opressivamente concreto. pornografia de estar ao lado do patriarcado na incitação da violência e na objeti-
O fim, entretanto, é menos concreto. A pornografia é um dos ramos da ficação das mulheres.
literatura – ao lado da ficção científica – voltados para a desorientação e Para refletir sobre o processo histórico dos interditos que balizam a mo-
o deslocamento psíquico. (Sontag, 1967, s/p) ralidade e o comportamento social, destacamos uma matéria do jornal Última
Hora, de 2 de abril de 1959, de título “Deve a mulher ter os mesmos direitos
O ensaio de Sontag foi escrito em 1967, estamos em 2018. Qual será nossa do homem?”. A discussão girava em torno de um projeto de lei que nivelava os
aproximação do pornográfico, do erótico, do obsceno, aqui tratados sem distin- direitos civis da mulher no código civil – até então situada ao lado dos “perdu-
ção ou escala, sem fronteiras definidas? Será ainda uma via de acesso importante lários, inconscientes e selvagens” – aos direitos do homem. Algumas mulheres
para estados extremos da consciência, e portanto um dispositivo de arte? É claro de destaque da época foram solicitadas a darem sua opinião a respeito desta
que o obsceno varia cultural e historicamente, de modo que interditos são der- atualização. Ligia Fagundes Telles, em defesa da estrutura da família, saiu-se com
rubados e outros são levantados conforme se desenvolve e se transforma o con- esta: “Liberdade condicionada aos deveres do lar”. A resposta de Hilda Hilst, por
sentimento do que a vida civilizada abarca. Sontag indica ainda a forte influência sua vez, surpreende por seu teor enfático: “As mulheres devem ter mais deveres
na noção de “vida civilizada” da apreciação dos impulsos sexuais pela cristandade do que direitos. Sou francamente favorável a um quase retorno à Idade Média,
ocidental, tradição que quase todos, nessa cultura, carregamos. De modo que com mulheres submissas e não preocupadas com campanhas feministas. O mais
avançar na história não significa menos ou mais interditos, porém que os inter- importante é o direito de amar e desamar: desde que esse direito não seja ferido,
ditos em voga conduzirão o traçado do nosso caminho, seja pelo respeito aos li- não vejo por que acrescentar outros, plenamente dispensáveis.” Então com 29
mites impostos socialmente, seja pelos momentos pessoais de rebeldia e desdém, anos e afeita a aparições polêmicas e rascantes, não sabemos de fato o quanto
seja nos eventos específicos de permissão, seja na experimentação transgressora dessa afirmação comparece no pensamento, de então e posterior, de Hilda Hilst
desses limites pela arte e a literatura. sobre as mulheres, mas é fato que ela costumava se identificar mais fortemente
Georges Bataille escreveu a maior parte de sua obra na primeira metade com a figura masculina, dissociando-se de certo comportamento feminino ligado
do século XX; Hilda Hilst, na segunda. Ambos privilegiaram o obsceno como à fragilidade. Já com quase 70 anos, em entrevista para o Cadernos de Literatura,
modo de experimentação extrema em relação ao cotidiano morno e disfarçado, ela diz: “Eu tenho uma certa diferença com as mulheres, porque sinto que elas
desafiando as convenções às quais somos constrangidos sem a prerrogativa – não são profundas. Eu tenho um preconceito mesmo em relação à mulher.” (Ca-
consentida – da contestação. Advogaram para si a autoridade de transgredir a dernos de Literatura, 1999, p.30)
moral e os bons costumes, em narrativas de questionamento da realidade e dos Porém, uma questão apresenta-se: se o movimento de ascensão e queda
limites do eu, na exibição de parcelas do humano vedadas à circulação. Se foram desses interditos é absolutamente razoável e mesmo requisitado nas formas de
tratados de forma recorrente como malditos, obra, e por vezes comportamento, vidas sociais, qual será seu peso e domínio sobre as formas de arte? A polêmica a
considerados escandalosos e extravagantes, qual seria a recepção que lhes relega- respeito da inclusão dos livros de pornografia como literatura (séria), como nos
ria esse século XXI? Certamente a sexualidade é tratada de forma mais aberta relatou Sontag no ensaio citado, e as opiniões divididas entre censurar e liberar a

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literário-pornográfica de Aretino, autor italiano do século XVI de Diálogo das
prostitutas e de Sonetos luxuriosos, que contribuiu para a consolidação do gênero na
criação de modelos literários. Estudos como os de Lynn Hunt, organizadora de
A invenção da pornografia, atuam neste campo e constituem uma importante pes-
quisa historiográfica a respeito da cultura erótica na sociedade moderna, não raro
definindo-a como um fenômeno de mercado aliado a uma postura transgressiva,
destacando que “o desenvolvimento da pornografia ocorreu a partir dos avanços
e retrocessos da atividade desordenada de escritores, pintores e gravadores empe-
nhados em pôr à prova os limites do ‘decente’ e a censura da atividade eclesiástica
e secular.” (Hunt, 1999, p.10). Hunt também lembra que: “Os autores e grava-
dores pornográficos surgiram entre os hereges, livres-pensadores e libertinos de
reputação duvidosa, que ocupam uma posição inferior entre os promotores do
progresso no Ocidente” (Ibid, p. 11). Eliane Robert Moraes é também fonte
importante para esses estudos, com diversas publicações que aliam cultura sobre
o gênero com reflexão filosófica, essencial para tratar a fundo um tema cultural
e literário que explora os limites do humano. Na apresentação do livro Lições de
Sade, ela cita Bataille a propósito de Sade, para tratar de um grupo particular de
escritores que opera uma espécie de ruptura com o mundo, com a ordem ética e
Deve a mulher ter os mesmos direitos dos homens? Última Hora, 2 de abril de 1959.
moral. Ela afirma: “Dessa forma, sua visada última é despertar e colocar em jogo
virtualidades humanas ainda insuspeitas, valendo-se da imaginação para aceder
circulação desses livros, ser contra ou a favor como se tratasse de posicionar-se aos domínios do impossível” (Moraes, 2006, p.11).
sobre o “aborto legalizado”, evidenciam essa tensão. Ana Chiara, no ensaio “Os O que baliza nossa discussão aqui, e que não deixa de estar inserida no con-
limites do pornográfico: o que dizer disso?”, propõe repensar tais limites para texto do fenômeno pornográfico, em larga medida impulsionado pela literatura,
além da moral, e aposta na representação do sexo como via para se compreender é pensar sobretudo a relação entre linguagem e investigação erótica, na medida
as relações entre homem-linguagem-mundo. Chiara diz: “a obra pornográfica em que, por um lado, trata-se de uma operação de nomear as práticas, partes
com valor estético produz escândalo no imaginário” e, assumindo o fracasso de do corpo, técnicas que atravessam a atividade sexual, operando no sentido de
estabelecer uma ponte direta com o real, “nos projeta sem álibis na falta consti- esticar os tentáculos da linguagem até os acessos obscuros do humano, trazen-
tutiva entre a linguagem e o mundo”1 (Chiara, p.11). do-os à cena no embate das palavras, sua materialidade e seus vãos; por outro, a
Não pretendemos aqui perfazer o percurso da pornografia como gênero carga de intensidade e violência próprias do erotismo constituem uma operação
restrito a um pequeno e seleto círculo até sua popularização, na esteira das no- de perda, rarefação e fissura, atuando nos escombros e silêncios da linguagem.
vas tecnologias de impressão do século XVI, ou falar da importante herança Como equilibrar os dois lados desta moeda, destarte coincidentes? Talvez esta
seja tarefa para um numismata... Até que ponto arriscar-se na transgressão que é
1 CHIARA, Ana Cristina de Rezende. “Os limites do pornográfico: O que dizer?”. In:
contemplar regiões de forte tabu? Tarefa talvez para um adorador do sol... Fica
O Povo: Fortaleza, 24, nov, 2007. Acessado em 24/03/2017: https://bit.ly/2si8wiG . como projeto a instabilidade do que estava condenado ao repouso.

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Nos cadernos e notas do acervo de Hilda Hilst, vemos um intenso trabalho
de investigação do obsceno, ao que tudo indica, a maior parte realizado no pe-
ríodo de preparação de A obscena senhora D e em seguida do Caderno Rosa de Lori
Lamby. São anotações que dizem respeito à natureza do obsceno, citações atribu-
ídas sobretudo a Henry Miller, cânone da literatura erótica, e diversas notas que
tratam da personagem Hillé, “um susto que adquiriu compreensão”. A intensida-
de da procura aproxima personagem e escritora, duas senhoras no rastro da “luz
numa cegueira”: os olhos voltados em direção aos raios luminosos. De modo
que, se estava em jogo colocar-se à prova, expostas a tamanha cintilação, de fato
queimaram-se e exibiram as feridas como o que resta da experiência essencial
da lucidez. No caso de HH, isso tem a ver com o ofício de escritora; sabemos,
e ela nos relata em diversas entrevistas, o quanto a entrega e o rigor devotados à
literatura lhe custaram caro; em Hillé, na aproximação da loucura, com o habitar
o vão da escada, esse limiar entre dois – ou mais – regimes, e uma espécie de
destacamento do mundo social, “afastada do centro de alguma coisa”. Em am-
bas, a cicatriz como marca da busca da lucidez, tarefa absolutamente ousada. A
aposta é no obsceno como via de acesso à compreensão, e nas marcas que Hilst
lhe emprestou: “desagregação, deterioração, putrefação”, eixos de orientação da
literatura hilstiana. A seguir, transcrevemos trecho de uma anotação em que ela
trata de delinear as questões de Hillé que cruzam suas próprias questões:

A intensidade da experiência no eu essencial (dependendo da gradação


dessa intensidade) afasta o homem da comunidade. Dobrar-se sobre si
mesmo, “morar no vão da escada”, ir até o não mais possível, para emer-
gir. Há alguns riscos nessa Busca, um deles é a loucura, o estar frente
a frente com seus demônios e não suportar. Há uma grande esperança:
a ressurreição, isto é, uma nova, uma nova e luminosa aceitação de si
mesmo e do outro.
O homem na situação extrema de reconhecimento e aceitação de si mesmo,
consciente da finitude de sua condição humana, e no entanto o coração e a
mente ligados de forma indissolúvel à sua alma imortal. Esta é a estrada
do meu tema, a minha obsessão. Obsceno - desagregação, deterioração, putrescível.

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Hillé e Hilda Hilst: as senhoras obscenas. Em entrevista ao Cadernos de litera-
tura, Hilst diz: “A senhora D, aliás, foi a única mulher com quem eu tentei convi-
ver – quer dizer, tentei conviver comigo mesma, não é?” (Cadernos de Literatura
Brasileira, 1999, p.30), apontando em seguida para a obsessão metafísica como
identificação entre Hilda e Hillé: “essa coisa de uma busca ininterrupta de Deus,
como eu tive” (Ibid, p.30). Neste livro cruzam-se os temas centrais hilstianos: o
erotismo, o sagrado, a morte, o envelhecimento, além da pesquisa na esfera da
linguagem, um percorrer sua superfície, suas nuances, provar seu cheiro, testar
a temperatura, arriscar-se em seus vãos e silêncios, toda a dimensão sensorial, a
contaminação poética em sua obra. Hillé diz:

As horas. Êxtase. Secura. Ardi diante do lá fora, bebi o ar, as cores, as


nuances, parei de respirar diante de uns ocres, umas fibras de folha, uns
pardos pequeninos, umas plumas que caíam do telhado, branco-cinza,
cinza-pedra, cinza-metal espelhado, e tendo visto, tendo sido quem fui,
sou esta agora? Como foi possível ter sido Hillé, vasta, afundando os
dedos na matéria do mundo, e tendo sido, perder essa que era, e ser hoje
quem é? (Hilst, 1993, p.40)

Também O caderno rosa realiza uma ampla investigação do obsceno ligado à


literatura e ao ofício do escritor. O texto desenvolve-se em diversas camadas: a
ninfeta Lori e sua disposição para o sexo prostituído, suas aventuras erótico-in-
fantis com o tio Abel, os impasses entre a escrita séria e comercialmente fracassa-
da do pai de Lori e a insistência do editor Lalau para que ele invista na escrita de
bananeiras2, quer dizer, bandalheiras, isto é, “escrever do jeito do Henry Miller”,
a intercessão e o desdobramento do caderno rosa em caderno negro e de volta
em caderno rosa, as histórias para crianças que Lori escreve, como O cu do sapo
Liu-Liu, além da mescla de gêneros – caderno, carta, poesia –, procedimento am-
plamente utilizado por Hilst em seus livros. E o próprio estatuto de caderno, seu
A intensidade da busca no eu essencial. (Note que esta página tem quase o mesmo lugar de processo, inacabamento e de produto lateral à grande obra insere uma
texto da figura anterior, só que manuscrito. Tal operação deve indicar que HH chave de leitura a mais ao texto, já repleto de vias a serem tomadas – ou recusadas
elaborava suas ideias mais de uma vez na forma escrita, provavelmente primeira-
mente escrevendo à mão e depois batendo à máquina.
2 Alcir Pécora sugere uma interessante abordagem: bananeira seria a bandalheira como
produto nacional.

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– pelo leitor ou crítico, e sugerindo uma ampla rede discursiva, verdadeira encru-
zilhada. O tom paródico-irônico que atravessa a obra é marcante, remetendo e
subvertendo o estilo dos textos pornográficos, de antemão de teor paródico, na
exposição extrema dos assuntos ligados ao sexo, em personagens pouco desen-
volvidas, no desdém por uma narrativa de começo-meio-fim, sobrepondo várias
camadas de aparência, desautorizando a hierarquia de uma sobre a outra. Entre-
tanto, a elocução rasgadamente ingênua da narradora Lori, os tropeços na gra-
mática, as piadas que remetem ao mundo real, sua tara por comprar uma boneca
da Xoxa, a caricatura do intelectual inconformado e enojado do pai, emprestam
a toda essa sacanagem um ar de graça, de modo que Lori Lamby pode parecer
uma grande comédia. Mas ela dá tesão? A depender da resposta, amplia-se ou se
apazigua a autocondenação do leitor.
No acervo, também encontramos um exercício interessante em que Hilda
Hilst anota palavras pouco usuais (abaçanado, plumitivo, nervudo...) e ao lado
indica seu significado, palavras que mais tarde podem figurar em suas narrativas,
no que parece uma aposta em aproximar-se delas, fazer contato, criar intimidade,
aposta também em sua plasticidade, seu caráter material e sonoro. Em A obscena
senhora D, há um trecho particular em que Hilst parece ter pinçado palavras do
dicionário, porém levando-nos a um lugar que transcende o significado catalo-
gado para nos transportar a seus diversos aspectos materiais, além disso, indi-
cando o caráter extensivo da linguagem, seus tentáculos no esforço de abraçar o
mundo: “uma Hillé lagamar, escura, presa à Terra, outra Hillé nubívaga, frescor
e molhamento, e entre as duas uma outra que se fazia o instante, eterna, onipa-
rente” (Hilst, 1993, p.61). Igualmente notável é a relação de Lori Lamby com as
palavras: ouvi-las, conhecê-las, apreendê-las, torná-las correntes. Lori pergunta:
“O que é raro?”; “Então, o que é predestinada, tio? E o que é questionando?” Dicionário hilstiano de palavras estranhas.
(Hilst, 2016, p.23), “O que é escroto, hein, tio? São tantas palavras que eu tenho
que procurar no dicionário, que quase sempre não dá tempo de procurar uma por realizando havia quatro décadas e cujo valor ela não hesitava em manifestar: “Eu
uma.” (Ibid, p.43). Trabalhar a língua, portanto, um exercício de encantamento, fiz um excelente trabalho, de primeira qualidade. Sou meio megalômana mesmo.
aquisição, profanação, lambeção... Não entendo nada de teoria literária, mas sinto que o que escrevo é bom. Desde
Sabemos que o lançamento da trilogia erótica (O caderno rosa de Lori Lamby, o início, eu sentia que ia ser um grande poeta”3.
1990; Contos d’Escárnio: textos grotescos, 1990 e Diário de um sedutor, 1991) foi uma
forma de HH chamar atenção para sua obra, uma banana em direção ao público 3 STYCER, Maurício. Hilda Hilst. Folha de São Paulo, São Paulo, 16, abril, 1997. 4º cader-
e ao mercado editorial, que ignoravam sistematicamente o trabalho que ela vinha no, Folha Ilustrada, p. 01.

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Fica evidente, portanto, a intertextualidade entre O caderno rosa e seu ofício uma carta de J.B. Garcia, aparentemente alguém que HH esbarrara antes uma vez
de escritora, seu eterno embate entre a escrita que realizava e o baixo apelo que na vida, e que não obstante sente-se impelido a aconselhá-la, ou melhor, desacon-
tinha perante o negócio da literatura. E a resposta que ela dá, a autoproclamada selhá-la, a essa história de pornografia:
guinada profissional, sobrevém como ato político, além de literário, bramindo
sobre a transformação da arte em mercadoria. Em outra entrevista, Hilst diz: “O Li, estarrecido, em “O Diário”, desta cidade, que Hilda Hilst vai se
fato é que no Brasil escritor vale menos que um gato morto. Os editores querem dedicar agora a escrever pornografia. Tive que ler de novo. Mas estava
é um escritor mediano, se não idiota”4. Para completar, reforçando os laços de ali, escrito e gritante. Então me contive até aqui para escrever-lhe sem
identificação entre autora e personagem e carregando na tinta do deboche, a outro calor que não seja o da cooperação e de um relacionamento tão bem
primeira edição da obra, publicada pela editora Massao Ohno5, estampa na con- começado. Escrever-lhe para um apelo sentido: não faça isso.
tracapa a foto de HH criança e os dizeres: “Ela foi uma boa menina”.

“Ela foi uma menina”, foto de HH com 6 anos, que estampou a


contracapa da primeira edição de O caderno rosa de Lori Lamby.

Fato é que, se a paródia e a ironia requerem um contexto de cumplicidade


entre as diferentes instâncias, não raro os códigos não compartilhados geram
ruído na comunicação, e uma das partes pode sair ofendida. A seguir, trecho de

4 PRADO, L.A. Lori Lamby, o ato político de Hilst. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14
jun, 1990. Caderno 2, Leitura, Erotismo, Polêmica, p.4.
5 Massao Ohno (1936-2010) foi um dos principais editores da carreira literária de Hilda
Hilst, recusada sistematicamente por grandes e médios editores. É considerado um dos
principais artistas gráficos brasileiros do livro, tendo inovado em formatos, uso de papéis
e cortes especiais, em trabalho meticuloso e artesanal, modernizando a edição gráfica no
país, que até então tinha um aspecto bastante acadêmico. Apelo para que HH não enveredasse para a pornografia.

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Mas, ao que tudo indica, Hilda Hilst não só estava pouco se lixando para
esse tipo de comentário, como era sua intenção provocá-los, e até mesmo se di-
vertia com eles. Em entrevista ao Estado de São Paulo, a propósito do lançamen-
to de Lori Lamby, HH diz: “Dizem que vou abalar meu prestígio, isso é hipocrisia.
Rompem comigo mas continuam admirando Henry Miller, a Anaïs Nin, que
escreveram também pornografia. Eles podem, autor brasileiro não pode. Isso é
provincianismo”6. Ora, a escritora Hilda Hilst, no alto de seus sessenta anos e 28
títulos publicados, não estava suscetível a que lhe dissessem o que podia ou não
fazer, de modo que sem pudor, mas atenta às consequências, “a santa levantou a
saia”, frase que ela costumava proferir sobre essa fase. A seguir, transcrevemos
mais alguns trechos das anotações de Hilda Hilst, em que ela realiza uma reflexão
entre o obsceno, a lucidez e o ofício do escritor:

Havelock Ellis – sexólogo inglês muito famoso (1859-1939): a obsce-


nidade é um elemento constante na vida social humana e corresponde a
uma profunda necessidade do espírito. Diferença enorme entre escrever
para distrair o outro e escrever para pensar o homem esse “animal vazio”
(como disse o gênio de Ernest Becker).
Lori Lamby é pueril – isto é, ingênua, infantil, inocente, meninil.
O que é obsceno? Obsceno? Ninguém sabe até hoje o que é obsceno. Obs-
ceno para mim é a miséria, a fome, a crueldade, a nossa época é obscena.
A SD é obscena porque é pura luz e a luz e lucidez demasiada é obsceno?
O jogador não pode ser maior que o jogo. A literatura tem sido somente
um negócio, e para o escritor isso significa a marginalidade, o fracasso, o
anonimato.

Em outra anotação, lemos:

O obsceno na escrita pode ser uma arma para acordar o outro que dorme
profundamente. Uma cuspida também é uma arma-insulto. Você pode
usar o obsceno com sarcasmo para por exemplo mostrar a falsidade das Obsceno é a miséria, a fome, a crueldade.
convenções.

6 PRADO, L.A. Lori Lamby, o ato político de Hilst. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14
jun, 1990. Caderno 2, Leitura, Erotismo, Polêmica, p.4.

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Também sabemos do forte investimento de Bataille no obsceno. Toda a es-
fera do que não deve ser mostrado, do que é proibido ou rejeitado será valoriza-
da. Diversas serão as incursões de Bataille no sentido de subverter os limites que
estabelecem a ordem e a desordem, o visível que nos olha e o que instaura a cisão
do olhar, insuportável claridade. Entre a vida solitária e o desejo de se fundir em
uma comunidade, participou de diversos projetos que visavam colocar em pauta
os valores da vida burguesa, bem como os dos movimentos de vanguarda da
época, que via com desconfiança. Em relação ao dadaísmo, lançou o movimento
Oui, que implicava uma perpétua aquiescência a todas as coisas, em contraponto
ao movimento Non, como consideravam o Dadá, visando, como afirmou Michel
Leiris: “a superioridade de escapar ao que há de pueril em uma negação sistema-
ticamente provocante”7.
A experiência étnica-estética de Documents – uma “máquina de guerra”
contra o surrealismo, como chamou seu biógrafo Michel Surya8, aliando alguns
dissidentes deste movimento, como Georges Limbour, Jacques André-Boiffard,
Roger Vitrac e Robert Desnos – terá destaque na elaboração de pontos decisivos
do pensamento batailliano, além de apontar para a sua incontestável originalida-
de. Publicada nos anos 1929-30, Documents contará com 15 edições, será finan-
ciada por Georges Wildenstein, que também financiava a Gazette de Beaux-Arts,
e idealizada por, além de Georges Bataille, Pierre d’Espézel e Carl Einstein. Em
O valor de uso do impossível (1991)9, prefácio da edição fac-similar de Documents,
Denis Hollier aponta para o baixo materialismo como pedra de toque da filosofia
anti-idealista de Bataille, que encontraria manifestação nas páginas da revista. O
baixo materialismo, como ataque aos materialistas e sua exigência da forma ideal
da matéria, consistirá em um certo gosto pela depreciação, representando uma

7 Trecho do artigo “Leur dada de Bataille”, de Francis Marmande, publicado em 29 de


outubro de 2005, no Le monde, por ocasião da exposição DADA, no Centre Pompidou,
de 5 de outubro de 2005 a 9 de janeiro de 2006.
8 Interessante que “Surya”, nos Vedas, as escrituras sagradas da Índia, seja o Deus do Sol.

O obsceno é uma arma para acordar o outro que dorme profundamente. 9 Este texto foi publicado como prefácio da reimpressão de Documents, organizada pelo
próprio Denis Hollier. Paris: Jean-Michel Place, 1991. Depois foi republicado em Les
Dépossédés: Bataille, Caillois, Leiris, Malraux, Sartre. Paris: Minuit, 1993. Publicado no Brasil
em 2012 na Alea, revista do Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculda-
de de Letras -UFRJ. Acessado em 25/05 em: https://bit.ly/2kBOeN9 .

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arma de peso contra a burguesia e seus dispositivos de conservação. Hollier de- despertado por suas obras. Privilegiarão, assim, as situações extremas, em que
senvolve: “O materialismo de Bataille é uma exaltação ao não acumulativo (o perde-se a consciência de si mesmo para uma fusão homem-mundo, uma de-
que leva à perda), da diferença à fundo perdido, sem representantes, sem futuro sindividuação atraente e também bastante perigosa, mas fonte de energias vitais.
e sem reserva, sem sequência, sem descendentes, sem dia seguinte.” (Hollier,
2012, p.301).
O artigo “O dedão do pé”, de Georges Bataille, publicado no número 6 da ARRISCAR QUEIMAR-SE
Documents, tratava de uma “paródia desbragada ao idealismo poético”, como o
definiu Michel Surya, apontando para a escolha do mais baixo, do mais indigno, Dever da lucidez: alcançar um desespero correto, uma ferocidade
mas também para aquilo que seduz, como objeto de fetiche, como horizonte de apolínea.
predileção. Surya, em “O coice do burro”10, apresentação à publicação de alguns Emil Cioran, Silogismos da amargura.
artigos de Documents, desenvolve essa ideia sobre o asqueroso dedão do pé:
Se olharmos para o sol por algum tempo – digamos, a metade de um mi-
A sorte que o coloca na lama, na dejeção, a sorte que ao mesmo tempo o nuto – o resultado disso é que uma massa escura se forma diante dos olhos e se
devota à porcaria e aos calos, às calosidades e aos joanetes, essa sorte é a espalha até tomar conta do cérebro. É um efeito temporário esse, e aqui descrito
do homem que só erradamente consideramos elevado. Se ele se orgulha por de forma não científica, mas de fato um tipo de cegueira momentânea, estupor
estar ereto em direção ao sol, é porque o seu pé lhe garante a necessária da visão obscurecida traz uma experiência sensorial que pode gerar reflexões
base na lama e nas dejeções. Só por si indica que a vida é feita de um
filosóficas. O sol, essa estrela alçada a astro, grande provedor da luz e do calor na
movimento de vaivém, desde o esterco até ao ideal e desde o ideal até ao
terra, esfera ofuscante que aquece e queima, ilumina e cega.
esterco, raiva que é fácil fazer incidir num órgão tão baixo como o pé. Tão
“Se a despeito de tudo o fixarmos com bastante obstinação isto supõe, pelo
baixo é o pé que, tal como a queda (o defeito que o pé tem de não manter o
contrário, uma certa loucura e a noção [de Sol]11 altera o seu sentido porque,
equilíbrio) significa a morte. E porque significa a morte, é o mais humano
com a luz, a produção deixa de surgir e surge o resíduo”, discorre Bataille no
e o mais desejável. (Surya, p.18)
ensaio “Sol apodrecido”12; ou seja, “a combustão que é psicologicamente muito
Sem meias palavras: o homem é porco, vem da lama e almeja a lama, mas, bem expressa com o horror libertado por uma lâmpada de arco incandescente”
a custa de muito esforço, toda manhã levanta-se, lava-se, perfuma-se, veste sua (Bataille, 2007, p.83). Este resíduo que fica é o rastro da atitude louca, transgres-
máscara de focinhez, sai para trabalhar: aqui e ali é tentado a romper essa estru- siva de nos aproximar daquilo de que deveríamos nos afastar. A lâmpada de arco
tura que o possibilita e que o aprisiona, pequenos – ou grandes – gestos de trans- incandescente é o resultado de luz e sombra daqueles que desafiaram os limites
gressão que serão punidos conforme o seu grau de ruptura. O projeto intelectual do possível da própria organicidade.
batailliano, assim como o projeto literário hilstiano, serão em grande medida o
de explorar o âmbito da transgressão, operando uma verdadeira desclassificação
11 “Para descrevermos até ao fim a noção de Sol no espírito de quem é forçado a cas-
e desorganização do mundo real, portanto o sentimento de desamparo amiúde
trá-lo como consequência da incapacidade dos olhos, temos de dizer que este Sol possui
na sua acepção poética o sentido da serenidade matemática e da elevação do espírito.”
10 A, Michel. (1994) O coice do burro. In: BATAILLE, Georges. A mutilação sacrificial e (Bataille, 2007, p.83).
a orelha cortada de Van Gogh. Apresentação. Tradução de Carlos Valente. Lisboa, Hiena. 12 Este ensaio foi publicado na revista Documents no3, Hommage à Picasso, 1930.

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O resíduo fruto desta ação temerária é a própria materialização, concretude Este sol olhado – ainda que a sua manifestação mais completa deva ser de
do impossível desta ação. Algo que dela resta do enfrentamento da impossibili- fato este que brilha no céu – pode estar em outras figuras, para o indivíduo ou
dade de visualização. Sua intensidade sobre a organização dos corpos instala a a sociedade. Em Minha mãe (1966)15, de Georges Bataille, para o personagem
novidade no tocante à ordem do vivido. Coisa que escapa da órbita dos olhos e Pierre, este sol poderá ser a sua mãe, objeto de desejo e perdição, corrupção
que, em sua extrema potência de visibilidade, apresenta na mesma medida seus e prazer, maldição, vileza, desgraça, naufrágio, desespero, horror, ignomínia,
efeitos contrários e deletérios. Trata-se aqui não do que os olhos deixaram de provocação, baixeza, inconsistência – essas algumas palavras pinçadas da no-
ver com o efeito de castração do sol, mas daquilo que eles, apesar ou em função vela. Após a morte do pai, por quem Pierre nutria um sentimento de aversão,
disso, viram. Incômodo conviver com esse resíduo, porque difícil interpretá-lo, intensifica-se o relacionamento entre ele e sua mãe, que expõe sua atração pelo
encaixá-lo, e vivê-lo acaba acompanhado do sentimento de angústia e dor. que há de mais baixo e o induz nesse caminho de transgressão que ela trilha.
Goethe, em seu Teoria das cores (1810), foi um dos primeiros a conferir às Em determinado momento, ela diz: “– Sua mãe – me disse ela – deverá desen-
“pós-imagens” – isto é, às impressões residuais cromáticas e luminosas que se caminhá-lo”. (Bataille, 1985, p.50)
seguem ao contato dos olhos com uma fonte de luz ofuscante – o estatuto de Toda essa novela como toda a ficção de Bataille, se desenvolve nesse impul-
“verdade ótica”. Ao analisar os círculos flutuantes diante dos olhos fechados, so erótico, de libertinagem, alheamento, marginalidade, ruptura. Está aí o foco
destacou a base subjetiva e fisiológica da visão: mesmo que o sol ou outra fonte da vida, do prazer: “o prazer só começa no momento em que o verme está no
de luz fosse o estímulo original, as modulações cromáticas subsequentes nos fruto. Apenas quando nossa felicidade vem carregada de veneno ela é deleitável”
olhos são um evento puramente fisiológico, independente de sua fonte original.
(Bataille, 1985, p.63). Inunda-se de prazer na mesma medida em que ruma em
É o que Jonathan Crary nos conta no ensaio “The blinding light”13 (2000), em
direção ao abismo. Inicia-se assim uma busca pela própria desgraça, onde reside
que analisa a fase solar do pintor J.M.W. Turner, sobretudo seu quadro Regulus,
alguma verdade, “o único bem digno desse nome, o único que não pode enganá-
que faz referência à história do enviado romano para Cartago, onde foi detido e
-lo” (Bataille, 1985, p.77).
torturado até a morte por falhar em negociar a libertação de prisioneiros. Uma
parte da punição de Regulus14 foi ter suas pálpebras arrancadas e forçado a olhar Pierre lembra-se da frase lapidar de La Rochefoucauld (1613-1680): “‘nem
diretamente para o sol, assim cegando-se. o sol nem a morte podem ser olhados fixamente’... Aos meus olhos, a morte não
era menos divina que o sol, e minha mãe nos seus crimes estava mais próxima de
13 Jonhatan Crary “The Blinding Light,” in J. W. Turner: The Sun Is God, exh. cat. (Li- Deus do que tudo que eu havia entrevisto pela janela da Igreja” (Bataille, 1985,
verpool, UK: Tate Liverpool, 2004), 18–27.
p.44). Sol, morte, Deus, mãe... Reúnem-se aqui os equivalentes que reinam em
14 O quadro de J.M.W. Turner conta a história de Marco Atílio Régulo (299 a.C. – 246
a.C), político da gente Atília, da República Romana. No livro Os romanos para leigos, de Guy sua duplicidade e soberania. Geradores inesgotáveis de energia, absolutos no dis-
Bédoyère, encontramos a descrição da “lenda de Marco Atílio Régulo”: “A história de pêndio dessa energia em direção à humanidade, absolutos no ato de jorrar. Fonte
Marco Atílio Régulo é ficcção, mas foi inventada para ajudar a criar a imagem romana de generosa e também corrosiva, provedora e castradora.
honra e autossacrifício. A história dizia que Régulo estava conduzindo o exército romano
no norte da África. Em 255 a.C., os cartagineses destruíram seu exército e o capturaram. A noção de crime também aparece quando se trata de desviar-se da condu-
Enviaram Régulo de volta a Roma para apresentá-los com os termos de paz dos cartagi- ta permitida, como vemos em Minha mãe. Investe-se em uma vivência perigosa,
neses, na condição de que, se os romanos recusassem, ele voltaria para Cártago. Régulo
voltou a Roma e fez um discurso tão provocativo para rejeitar as condições de paz dos
cartagineses que, naturalmente, os romanos não aceitaram os termos. Mas Régulo man- 15 Ma mère é um romance póstumo, publicado em 1966, na França, pelos amigos de
teve sua promessa, voltou a Cártago e foi torturado e morto.” (Bédoyère, 2013, p.208). Bataille. É considerado um prolongamento inacabado de Madame Edwarda, publicado
Ao que tudo indica, a tortura infligida a Régulo, que teria tido as pálpebras cortadas e em 1941 sob o pseudônimo de Pierre Angelique. Ao que tudo indica, tratava-se de um
sido rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos, é, na verdade, ficção da projeto de realizar uma trilogia chamada Divinus Deus. Ma mère se situaria entre Madame
propaganda bélica romana, e Régulo provavelmente teria morrido numa prisão da África. Edwarda e Charlotte d’Ingervilles, também publicado após a morte de Bataille.

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aquela que fatalmente levará à maldição e à desgraça, mas ela é a única possível
para os seres atormentados pela visão do horror; também o crime uma forma de
busca intensa, anseio pela interrogação, desejo de transgressão. A transgressão é
aquela dos corpos delimitados atingidos pela faca, o sangue, o fluido, o sexo; a
libertinagem, o crime, o sacrifício. Se crime é uma noção que se desenvolve social
e historicamente, está sempre em rel(ação) de corte, ruptura – transbordamento
face aquilo que deseja ser controlado. E a literatura e as artes são potencialmente
criminosas porque trabalham com uma contra-possibilidade, por exemplo na ex-
posição da artificialidade em que se habita, no apontamento de impossibilidades
possíveis, no atravessamento de limites éticos e estéticos, e, portanto, arte e lite-
ratura são também sujeitas a condenações.
Bataille afirma: “a vida humana não pode em caso algum ser limitada aos HH lê Bataille e grifa alguns trechos.
sistemas fechados que lhe são destinados em concepções judiciosas.” (Bataille,
2013, p.32). De fato, ela só começa com o déficit desse sistema: do que se libera,
do que escoa no processo de insubordinação das forças ordenadas e reservadas, falta de esperança em uma comunicação possível aliada ao intenso desejo e mo-
de modo que a vida residirá em seu transbordamento. O crime representa em vimento de comunicação, apontando para a própria dinâmica do erotismo: ele é
relação à lei o que o dispêndio representa em relação às obras de crescimento, ao mesmo tempo transgressão e revelação do interdito, e, além disso, encontro
sua qualificação subversiva. Bataille vai insistir na interdependência dos movi- com a angústia, pois abala a ordem do vivido.
mentos de conservação e dissipação, engrenagem fundamental da vida humana: Se o sol, em sua energia absolutamente poderosa, soberana e inesgotável
“Os homens asseguram sua subsistência ou evitam o sofrimento, não porque parece situar uma relação de não reciprocidade conosco, porque tudo nos dá
essas funções determinem por si mesmas um resultado suficiente, mas para ter e nada pede em troca, estabelecendo uma noção de transcendência, não é ne-
acesso à função insubordinada do dispêndio livre” (Bataille, 2013, p.33). Resta- cessariamente assim que se deve pensar essa relação. No prólogo do Assim falou
-nos, assim, desfrutar dos variados prazeres do crime, porque daí também advém Zaratustra, o profeta se retira para as montanhas e passa dez anos em uma caverna
a concepção de ordem. aberta acumulando a luz do sol. Um dia Zaratustra sai e faz um discurso para
Em Minha mãe, destaco aqui um trecho grifado por Hilda Hilst em seu ele, em que ao mesmo tempo o louva e diz que ele não seria o sol se não tivesse
exemplar: “Na solidão em que penetrei, as medidas deste mundo, se subsistem, a quem iluminar. Isso, mais as referências do lago e da montanha, e da águia e
é para manter em nós um sentimento vertiginoso de desmedida: essa solidão é da serpente, já condensam simbolicamente o projeto poético/filosófico da obra:
Deus” (Bataille, 1985, p.39). No prefácio ao livro de poesia Poemas malditos, gozosos, instaurar um pensamento da pura imanência, em que tudo se afeta reciprocamen-
devotos (1984), de Hilda Hilst, em que a poeta interpela Deus, Alcir Pécora dis- te, sem nenhuma instância transcendente, como as que, sob várias roupagens,
corre a respeito dos mistérios dolorosos a que “se dispõe o poeta, que reconhece guiaram a nossa tradição metafísica de civilização, cultura e valores.
perfeitamente que o pensamento de Deus é, em essência, uma entrega à mais Deus perpassa aqui dinâmica semelhante, ser de luz e trevas, bondoso e te-
apavorante solidão. Isto é, pensar em Deus é, no limite, compor na própria carne merário, provedor e assassino, comunicação e silêncio, via do corpo e do espírito.
um discurso de ausência, de desejo sem nenhuma correspondência” (Hilst, 2011, Deus, esse sol a que se recorre incansavelmente, intenso desejo de busca, e, no
p.12). Pécora destaca aqui uma relação de não reciprocidade, transcendência, a afã de comunicação com o divino, entra-se no campo do sacrifício. O sacrifício

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– instituição definida, verdadeira função social, como descreve Bataille – repre- O exercício ao qual Hillé se propõe é o de buscar esse resíduo – fruto do
sentaria a intenção de semelhança perfeita com um termo ideal através de alguma olhar para o sol em sua plena combustão, atitude transgressora de revelação –
forma de (auto)mutilação, como um tirar para fora de si. Deus, ser fulgurante, que será o aproximar-se da compreensão. Ehud insiste em que não há resposta,
que enche os humanos de estupefação, tem uma via de acesso a partir do sacri- nem no vão da escada, nem no andar de cima, mas Hillé teima em buscá-la para
fício, porque nele “O deus, que é ao mesmo tempo o sacrificante, confunde-se talvez encontrá-la “no sopro de alguém, num hálito, num olho mais convulsivo,
com a vítima e por vezes até com o sacrificador. Todos estes elementos díspares, num grito, num passo dado em falso, no cheiro quem sabe de coisas secas, de
que entram nos sacrifícios vulgares penetram aqui uns nos outros e confundem- estrume, um dia um dia um dia” (Hilst, 1993, p.35). Também Hillé: “buscava
-se” (Bataille, 2007, p.107). nomes, tateava cantos, vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nos
Essa busca pelo desconhecido toma a forma de uma ânsia por linguagem, fios, nas torçuras, no fundo das calças, nos nós nos visíveis cotidianos, no ínfimo
talvez de uma correspondência mais satisfatória e ajustada, da palavra exata, ou absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o destino, um dia
senão uma corrupção dessa correspondência tão artificial que engana e frustra. vou compreender, Ehud.” (Hilst, 1993, p.35).
Busca-se por um sentido porque nada fecha e nem deve fechar, mas a vivência Hillé, personagem marcante de Hilda Hilst. A Senhora D de derrelição, de-
consciente dessa dissolução – apresentada como aporia – causa o sentimento samparo e abandono. Hillé e suas máscaras. Hillé e seu devir-porca, abjeta. Hillé
de abandono. A ideia do engano e da impossibilidade do conhecimento gera o e seu espírito de não-vizinhança. A narrativa se passa um ano após a morte de
vazio e o desamparo. A obscena senhora D (1982), relato de Hillé, uma mulher de Ehud, ainda assim, ela é toda um diálogo com ele, num impasse entre a vontade
sessenta anos que decide viver no vão de uma escada e recusa sistematicamente o de expansão de Hillé e a de contenção de Ehud, essa uma conversa em fluxo con-
bom-senso de Ehud, seu marido recentemente falecido, começa assim: tínuo, com falas sobrepostas, sem marcação do emissor, com períodos abertos,
poucos sinais delimitadores do discurso escrito. Hillé não é só Hillé, é também
Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem Senhora D, mulher-porca, sapa. Hillé é polifônica, porque nela soam várias vozes:
por isso irei à sacristia, teófaga, incestuosa, isso não, eu Hillé também a de Ehud, as da vizinhança, a do menino-porco. Ela substitui os peixes do aquá-
chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu rio por peixes de papel pardo, porque não suporta coisa-viva, mesmo o corpo
à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do e suas satisfações. E no movimento de afastar-se do que a linguagem não pode
sentido das coisas. (Hilst, 1993, p.17) alcançar, Hillé diz: “não venha Ehud, não posso dispor do que não conheço, não
sei o que é corpo mãos boca sexo, não sei nada de você, Ehud” (Ibid, p.39).
Este livro aparece com destaque na produção ficcional de Hilda Hilst: foi
com ele que inaugurou-se a edição das obras completas da autora pela editora
Globo organizada por Alcir Pécora, que considerou que aí cruzavam-se os gran- OBSCENO SOL
des temas da sua prosa de ficção. Para nós, A senhora D apresenta o lançar-se no
fluxo de consciência – que, nesse caso, adquire forma dialógica, uma conversa No ensaio “A mutilação sacrificial e a orelha cortada de Van Gogh”16, Ge-
orges Bataille relata a história de Gaston F., um desenhador de bordados que
entre Hillé e Ehud – de uma personagem que tende ao transbordamento de sua
decepou o indicador esquerdo com os próprios dentes. Atraído pelos raios do
existência, no limiar de um processo ao mesmo tempo de dessubjetivação e de
sol, fixou nele o seu olhar e acreditou receber o comando de secção. Parece que
autoconstrução, que redundará em seu devir-porca. É tornando-se porca que
Hillé pode tornar-se amante do Porco-Menino, Construtor do Mundo.
16 Este ensaio foi publicado na Documents no 8, em 1930.

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Gogh ergue os olhos para o “sol em toda a sua glória”, expressão que ele
emprega em uma carta ao irmão, época em que sua obsessão solar chega a um
ponto culminante (Bataille, 2007, p.96). Em julho de 1890, depois de sair de
Saint-Rémy, Van Gogh comete suicídio.
O filósofo René Descartes (1596/1650) acreditava que o sol, se olhado sem
mediação ou representação produziria um atordoamento semelhante à loucura.
Olhar para o sol é perder as condições a partir das quais a razão funciona, asso-
berbada pelo abismo do brilho solar em que todos os objetos e as relações que
orientam a mente evaporam. (Crary, 2000, p.23). Fixar o sol como a própria ati-
tude transgressora que enfrenta o comando do olho de desviá-lo. Ousar fixá-lo,
ousar queimar-se, ousar cegar-se, uma forma de (auto)sacrifício.
Não é imediato associar Georges Bataille ou Hilda Hilst a autores solares,
pelo menos não no sentido mais corrente que se tem da ideia de sol. Aliás, a
tendência é que a eles sejam atribuídas as trevas, as sombras, o lado obscuro da
vida, que desejaram perscrutar a fim de deparar-se com algum resíduo, alguma
lucidez. São autores assombrados, do horror, do desamparo, das margens. Suas
obras estão marcadas pela postura transgressora, por uma ofensa aos valores, ao
bom gosto, às categorias, à razão. Estão eles menos próximos de Apolo – deus
solar da forma – que de Dionísio. Em O coice do burro, prefácio de Michel Surya,
biógrafo de Bataille, à “Mutilação Sacrificial e a orelha cortada de Van Gogh”, ele
A Documents 8 publicou o famoso ensaio de Bataille La mutilation aponta: “Só os moralistas dizem que o horror deve ser combatido. Bataille faz
sacrificielle et l’oreille coupée de Vincent Van Gogh. pior: conta-o em pormenor e deixa-se, complacentemente, fascinar por ele; uma
lucidez de olhos abertos que fixam o sol” (Surya; Bataille, 1994, p.18).
o automutilador havia lido uma biografia de Van Gogh em que aprendera que o Somente através do horror se poderá escapar à pobreza das experiências
pintor, em um ataque de loucura, havia metido a faca na própria orelha, embora, realistas e alcançar o sentimento de verdade, fórmula que deve valer tanto para
como aponta Bataille, “quando uma decisão intervém com a violência necessária a ficção quanto para a vida. Bataille afirma: “o horror teve por vezes em minha
para se cortar um dedo, escapa por completo às sugestões literárias que tenham vida uma presença real. Também é possível que, mesmo alcançado na ficção,
podido antecedê-la; e a ordem que os dentes tão repentinamente tiveram que somente o horror tenha me permitido escapar da sensação de vazio da menti-
acatar deve surgir como uma necessidade que ninguém conseguiria resistir” (Ba- ra”17(Bataille, 1962, p.9).
taille, 2007, p.95).
Fixar o sol como pulsão suicida, outrora considerado por alienistas como 17 Tradução nossa do trecho original: “l’horreur eut parfois dans ma vie une présence
sinal incurável de loucura. Em 1889, no asilo de alienados de Saint Rémy, Van réelle. Il se peut aussi que, même atteinte dans la fiction, l’horreur seule m’ait encore
permis d’échapper au sentiment de vide du mensonge”.

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O horror. Em Hilda Hilst associou-se isso à obscena lucidez: “e o que foi sua peça Dias felizes escreve: “Eu não posso dizer mais; diz-se o que
a vida? uma aventura obscena, de tão lúcida” (Hilst, 1993, p.71), diz Hillé. se pode”. Prefiro dizer: Quero falar tudo nos meus textos e posso dizer
“Obscenus: tudo aquilo que acontece além da encenação dos sentidos” (Schol- ainda mais. Faço perguntas possíveis a mim mesma: se eu falasse com a
lhammer, 2007, p.82), palavras, discursos, situações tipo sol do meio-dia, que voz do mundo, como falaria? Se eu falasse com a voz dos ancestrais (que
desagradam o olhar e que conviriam antes castrar que ter de lidar com elas. representa o sangue e o sêmen dentro de mim) haveria a refulgência de
Obscenidade e lucidez como contraponto ao sentido dado – da cena –, uma nova voz? É preciso tentar tudo, experimentar tudo. Talvez assim a
contraponto à linguagem como sistema fechado do sentido próprio, obscenidade verdade, a resposta, seja encontrada. (Diniz, 2013, p.34)20
e lucidez como poesia. Alcir Pécora trata do rompimento dos pactos na obra hils-
tiana, no sentido de desmontagem, decomposição da escrita a fim de descobrir So much I want to say21, ecoa a voz da artista plástica Mona Hatoum em sua
as partes do texto que estão dissimuladas e que nos interditam. Sonia Purceno obra homônima, enquanto mãos calam fisicamente a sua boca. Tirando aqui o
indica a obscenidade como marca das violações que atiçam as possibilidades do contexto dessa obra política, imaginamos a frase saindo da boca de um semblante
artista: “O obsceno, portanto, será tratado como objeto de perseguição; aquilo já envelhecido de Hilda Hilst. So much I want to say, diria a senhora, autora de 40
que HH e os escritores criados por ela desejavam esgotar a fim de exorcizar o livros entre poesia, teatro e prosa, que, embora tenha parado de escrever quatro
‘fracasso’ no ‘excesso de lucidez’ e estraçalhar o que se encena” (Purceno; Péco- anos antes de sua morte, afirmando que já havia escrito tudo, assumiu como mis-
ra, 2005, p.65), entendendo que obscenidade e invenção literária são movimentos são a escrita, construindo uma casa – a Casa do Sol – para esse propósito, fazen-
cúmplices. do desse exercício uma investigação da vida em todas as suas relações, negando
Georges Bataille e Hilda Hilst parecem encenar um obsceno sim18, no sen-
os instrumentos de censura que incorrem sobre os indivíduos, sobretudo às mu-
tido em que em suas obras abstiveram-se em larga medida de censuras temáticas
lheres de sua época, fazendo pouco das possibilidades para encetar os impossíveis.
ou formais, trouxeram à cena tudo o que se esperava que dela ficasse de fora
Expondo da carne, a carne, e não banhando-a em ouro, fazendo-a produto, mo-
(Purceno; Pécora, 2005, p.65), tudo abarcaram sem imporem-se restrições de
eda de troca, ou tão simplesmente higienizando-a da sua futura podridão. Hilda
ordem moral, autônomos em relação a tais pressupostos, considerando ser essa
a dicção própria do artista, no desvelamento das estruturas limitadoras da lin- Hilst em sua vivência do erotismo como uma “experiência ligada à vida, não
guagem, das máscaras proliferantes e cambiáveis socialmente, dos pactos sociais como objeto de ciência, mas paixão, mais profundamente, uma contemplação
que dissimulam naturalidade, afirmando o impossível de que Bataille fala, estado poética” (Bataille, 2013, p.31), como Bataille o definiu em O erotismo. Georges
próprio da poesia. Em seguida, trecho de entrevista concedida por Hilda Hilst,
em 1975, para O Estado de São Paulo: ensaio “Da ficção”, de Leo Gilson Ribeiro, publicado no Cadernos de Literatura Brasilei-
ra, do Instituto Moreira Salles, essa afinidade é elaborada.
Há pessoas que tratam a carne como outros tratam o ouro, às escondi- 20 Em Cartas de um sedutor, no pequeno conto “Triste”, apresenta-se uma construção
parecida a essa. O personagem do conto aparece na cidadezinha, não lhe sabem o nome,
das. Escolhi para meus textos o tratamento oposto. Samuel Beckett19 na
de onde veio, e ele fala uma única frase: “nem tudo pode ser arrumado.”. Até que, em um
dia chuvoso, ele diz uma outra coisa: “nem tudo pode ser arrumado, arruma-se o que se
18 Em trecho do documentário “Hilda (Humana) Hilst” (2002), quando questionada
sobre o que, na vida, não havia feito, em tom claro de deboche, Hilda Hilst, já uma pode”. (Hilst, 2014, p.186)
senhora, responde: “Fuder com uma mula eu nunca fudi”. Hilda (Humana) Hilst é um 21 O vídeo So much I want to say (1983) consiste em uma série de imagens still, trocando
documentário produzido em 2002 por alunos da disciplina “A Mensagem Videográfica a cada oito segundos, em que aparece a face da artista em close-up com um par de mãos
- problematização e realização”, ministrada pelo professor Paulo Bastos Martins, do De- masculinas sufocando sua boca e a impedindo de falar. Enquanto isso, sua voz repete
partamento de Multimeios do IAR (Instituto de Artes) da UNICAMP. infinitamente o título da obra. Hatoum nasceu em 1952, em Beirute, no Líbano, e foi para
19 Embora pareça aqui que Hilda Hilst esteja se afastando de Beckett, muitos estudos Londres em 1975, como exilada da guerra libanesa. Para ver e saber mais sobre esta obra,
apontam para a proximidade entre esses autores, sobretudo em termos de linguagem. No acessar o link para o site da Tate Gallery: https://bit.ly/2J8bRHD .

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Bataille e Hilda Hilst, autores que ousaram fixar esse sol, encarar a morte, dialo- concebeu cego (completamente cego), eu não posso arrancar meus olhos como
gar com Deus... deitar-se com a mãe? O tabu original. Édipo. Como Édipo, decifrei o enigma: ninguém o decifrou mais profundamen-
te que eu” (Bataille, 2003, p.104). Ora, é também como “escória da sociedade”,
“mácula da cidade”, tal como Édipo terminou seus dias, que Bataille será capaz
O OLHAR APODRECIDO de enxergar aquilo que escapa ao olhar orientado na horizontalidade dos objetos
do mundo real. A propósito disso, Bataille vai pensar o olho pineal, um horrível
Tratando-se de romper tabus, convém pensar sobre o que nos é dado e o vulcão em atividade no alto do crânio: “Ora, não há dúvida nenhuma de que o
que nos é vedado ver. Estará na transgressão desse limite a resposta do enigma olho é o símbolo do Sol ofuscante, e aquele que eu imaginava no alto do meu
a ser decifrado, seu desvelamento? A jornada edípica apresenta as transforma- crânio estaria necessariamente em brasa uma vez que votado à contemplação do
ções da pulsão escópica: da articulação entre o ver e o saber, o ver e o dar-a-ver, e Sol no summum do seu brilho” (Bataille, 2007, p.56).
a clivagem entre o olho e a visão. A ambiguidade fundamental de Édipo: deci- O olho pineal, projetado verticalmente, corresponderá a um segundo siste-
frador de enigmas, e o próprio enigma a ser decifrado, estrangeiro de Tebas, e ma de impulsos, não mais subordinado ao sentido da razão e seus efeitos produti-
seu nativo, salvador da cidade, e o seu princípio de desgraça, cego e clarividente. vos, porém a uma concepção anal do sol, isto é, noturna, ligada aos excrementos
Antonio Quinet, no livro Um olhar a mais – ver e ser visto na psicanálise22, trata da e à destruição. Subvertendo a visão dirigida na horizontal, de acordo com a qual
articulação entre o saber e o olhar na peça de Sófocles: “Quando a verdade dos desenvolveu-se a razão em sua relação com os objetos, o olho pineal, por sua vez,
fatos descobertos durante a investigação ia saltando aos olhos, Édipo nada via; será capaz de gerar uma outra experiência que não a experiência mediada pela
quando ele a vê, fura os próprios olhos”23. Eis a verdade ofuscante demais para consciência, será, portanto, a perda de soberania do intelecto. Um olho próprio
olhos tão opacos. E assim Édipo, como investigador da verdade, vai de rei à para o sol, olho direcionado para além do que é visível.
dejeto: “Édipo, aquele célebre para todos, o primeiro dos humanos, melhor dos Imaginar esse olho localizado na abóboda do crânio de HH e de Georges
mortais, o homem do poder, da inteligência, das honras e das riquezas, revela-se Bataille, um desejo de libertar-se do condicionamento humano e de unir-se ao
o último, o mais miserável, o pior dos homens, um criminoso, um dejeto, objeto sol, no limite do possível, na transgressão que empreenderam como transborda-
de horror para seus semelhantes, odiado pelos deuses, reduzido à mendicância e mento dos limites, de texto, de gênero, do real, de vida. No ensaio O sol apodrecido,
ao exílio”24. Eis o resultado de seu desejo apaixonado pelo saber a qualquer custo, Bataille aponta para o caráter abstrato do sol, uma vez que, em sua mais elevada
sua desgraça almejada: última concupiscência25. acepção – isto é, o sol do meio-dia – ele é impossível de ser olhado fixamente,
Em W.C - Prefácio à História do Olho, Georges Bataille trata de identificar-se como abstrato serão nossos próprios olhos – ponto cego, opacidade incontor-
com essa personagem mítica, apontando para a relação equívoca do olhar com nável. Paixão solar.
o saber, para a inversão da cegueira que dá a ver. Ele diz: “Como meu pai me Sabemos o quanto o olho – desorbitado, deslocado, enucleado, desfocado,
cego – é central no pensamento de Bataille, e que muito disso se deve à sua expe-
22 Capítulo: “Édipo entre a visão e a cegueira: o olhar no teatro trágico”. riência enquanto criança com o pai sifilítico, cego e paralítico. A memória da vi-
são do pai enquanto urinava com os olhos inteiramente brancos e uma expressão
23 Acessado em 31/03/2017: https://bit.ly/2J4sp7k .
de alucinação é para ele a própria imagem do horror. “O espetáculo fascinante e
24 Citação do livro Oepidu sans complexe por Antonio Quinet, Acessado em, 31/03/2017:
https://bit.ly/2J5zv7K . repelente do pai cego é o sol apodrecido por excelência, o Sol cego ou o Sol que
25 “Última concupiscência” é uma expressão de Santo Agostinho utilizada por Lacan
cega, pouco importa” (Fernandes; Bataille, 2007, p.17). Em O culpado, recorte de
para designar o desejo ardente de ter querido saber. um diário redigido por Bataille, entre 1939 e 1944, ele diz, num misto de horror

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e fascínio, distância e semelhança: “Meu pai cego, órbitas ocas, um longo nariz Sol também pai castrador, autoritário, poder repressivo que atua como a
de ave magricela, gritos de sofrimento, longas risadas silenciosas: gostaria de me própria consciência na imposição dos limites do real. Sol olho da polícia. Se
parecer com ele!” (Bataille, 2017, p.43). Hillé é toda expansão e derramamento, Ehud28 é a contenção, a vigilância e o
Sabemos que, assim como para Georges Bataille, para Hilda Hilst a figu- corte social, tentando trazê-la para o mundo compreendido, que é diferente da
ra do pai26 – Apolonio de Almeida Prado Hilst27 – foi importante como guia compreensão que Hillé busca, esse algo como uma compreensão proibida, que
para construção de sua obra. Em inúmeras entrevistas, HH afirmou dever-se à se adquire em susto: “Hillé era turva, não?/ um susto que adquiriu compreen-
vontade de agradar ao pai seu vigor de escritora, afirmou escrever basicamente são” (Ibid, p.83), diz o Porco-Menino, de quem Hillé acaba sendo esposa após a
para ele, que também escrevia, mas cuja loucura, que lhe apossou aos 34 anos, morte de Ehud, uma espécie de hierofante, talvez o condutor para esse segredo
o tornou um homem inválido e recluso. Em inúmeras entrevistas, Hilst conta a que ela busca.
história de quando, aos 16 anos, fora-lhe visitar, e Apolonio, já louco, talvez con- Pensemos agora na perspectiva ocular de Hillé. Ela muda-se para o vão
fundindo-a com sua mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, lhe implorava: “Só três noites da escada – lugar comumente associado a uma ascensão, mas todo o seu mo-
de amor, só três noites de amor”. A série de seis poemas “Odes maiores ao pai” vimento é de derramar-se, como se algo despencasse, se perdesse, máscaras e
termina com o verso que tornou-se o epitáfio de Apolonio, morto em 1966: “E mais máscaras caindo. Ela mira Deus, “o Todo”, “o Incomensurável”, porém,
ainda que as janelas se fechem, meu pai, é certo que amanhece”, também parte “teófaga incestuosa”, tem os olhos voltados para o que está na lama, sua de-
da epígrafe de A obscena senhora D. gradação profunda.
No Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, no extenso e O olhar de Hillé parece daqueles penetrantes, olhar que dói, que pergunta e
rico verbete sobre o sol, na tentativa de fazer jus a essa entidade tão poderosa que desvela, compassivo e acusador, que aproxima, integra, mas que também afasta e
rege a terra e as vidas que nela habitam, e em tantas culturas recebe uma apropria- aparta – experiência de olhar radical. Olho como ponto privilegiado de contato
ção diferente, encontra-se a sua relação com o ser masculino, fálico, castrador. Sol com o mundo, dois orifícios que apontam da face, órgão hegemônico a partir do
que é considerado fecundador, mas que também queima e pode matar: qual se realiza a experiência. Não há salvação para Hillé, não há salvação para
quem quer que seja – isso já sabemos – mas a pergunta refletida nesse olho – in-
O sol é símbolo do pai. Para a astrologia, igualmente, o Sol sempre foi sistentemente perseguida –, de tão lúcida é capaz de cegar.
o símbolo do princípio gerador masculino e do princípio de autoridade do Hillé esquadrinha seu campo de visão com forte carga poética e sensorial,
qual o pai é, para o indivíduo, a primeira encarnação. Também é sím- apostando na desorganização da apreensão desse mundo em intimidade, seus
bolo da região do psiquismo instaurado pela influência paterna no papel olhos de águia a mirar o sol sem proteção: “E depois vi os olhos dos homens,
da instrução, educação, consciência, disciplina, moral. No horóscopo, o
Sol representa a opressão social de Durkheim, a censura de Freud, de
28 Sigamos este movimento. Ehud diz: “escute, Senhora D, se ao invés desses tratos com
onde derivam as tendências sociais, a civilização. (Chevalier, Gheerbrant,
o divino, desses luxos do pensamento, tu me fizesses um café, hein?” (Hilst, 1993, p.35);
1998, p.839)
“Você está me ouvindo, Hillé? olhe, não quero te aborrecer, mas a resposta não está aí,
ouviu?” (Ibid, p.36); “Hillé, andam estranhando teu jeito de olhar” (Ibid, p.37); “tenta,
26 Hilda Hilst diz em entrevista, em 1977: “Acho que só se escreve por motivos como Hillé, algumas vezes lhes dizer alguma palavra, você está me ouvindo?”(Ibid, p.38); “te
este: a presença, na família, de uma figura trágica que pode ser tanto ser a da mãe quanto amo, Hillé, está escutando?”(Ibid, p.38); “sabe, Hillé, você deve ver as pessoas, você deve
a do pai, às vezes a dos dois... Figuras trágicas de verdade”. (Diniz, 2013, 39). Pisa, Clelia foder comigo, deve se arrumar um pouco” (Ibid, p.41); “porra, esquece, segura meu
& Petorelli, Maryvonne Lapouge. Brasileiras: voix, écrits du Brésil. Paris: Des Femmes, 1977. caralho e esquece, te amo, louca”; “nomeia as ilusões, afasta-te da vertigem (Ibid, p.61)”;
27 Ou Luís Bruma, “poeta menor” do modernismo paulista. “busca tua salvação, empurra o espírito para uma longa viagem” (Ibid, p.61).

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fúria e pompa, e mil perguntas mortas e pombas rodeando um oco e vi um túnel a que o homem civilizado é acometido, Bataille vai dizer: “Com efeito, a respeito
extenso forrado de penugem, asas e olhos, caminhei dentro do olho dos homens, do olho, parece impossível pronunciar outra palavra que não seja sedução, pois
um mugido de medos garras sangrentas segurando ouro” (Hilst, 1993, p.44). A nada é tão atraente quanto ele no corpo dos animais e dos homens. Mas a sedu-
obscena senhora D condensa momentos elevados poética e filosoficamente com ção extrema está provavelmente no limite do horror” (Bataille, 2003, p.107). Em
descidas a palavras e imagens que tocam nos motivos degradantes da espécie seu livro, Didi-Huberman desenvolve: “Que horror, exatamente? Aquele que toca
humana, em tom pessimista diante desse ser cuja fatalidade é a vaziez, o inaca- no nervo da fobia comum – a fobia do tato – de que o olho é evidentemente o objeto”
bamento, a podridão, a morte. Mas tudo acaba em chacota, em tom de desdém (Didi-Huberman, 2015, p.88).
e desligamento: “Livrai-me, Senhor, dos abestados e atoleimados” (Ibid, p.84), Ora, se não devemos tocar no que é sagrado e no que é abjeto, a transgres-
termina assim A obscena senhora D. são será desdenhar dos tabus do toque – associados ao que não pode ser tocado
Parte-se da sedução, a sedução do olhar para o sol, a sedução do corpo a sem ser sujado ou sem sujar – e de investir em um “contágio perturbador”,
corpo, da transgressão da forma – abismo da descontinuidade – pela violência em “relações irritantes” (Ibid, p.39), na realização de coisas malditas e sagradas.
do desejo: comunicação intensa. Em A semelhança informe – ou o gaio saber visual se- Não à toa, neste verbete, Bataille vai citar o filme Um cão andaluz (1929), de Luís
gundo Georges Bataille (1995), Georges Didi-Huberman, tratando da experiência de Buñuel e Salvador Dalí, indicando a aproximação que aí se dá entre olho e lâmina
Documents, aponta para o contato interdito como método batailliano, viés de sua – amor sangrento –, e destacando a força desta imagem terrível, seu potencial de
filosofia anti-idealista. A revista, na montagem de textos e imagens que aliavam corte, como diz Bataille, na nota de rodapé a este verbete: “não se pode esconder
o baixo e o sublime, em relações visuais evidentes e desconcertantes, na aposta a que ponto o horror se torna fascinante e também que ele é a única brutalidade
da semelhança dilacerada, superando o regime de fixidez da imagem, apresentará capaz de romper aquilo que sufoca” (Bataille, 2003, p.147).
uma nova concepção da forma, em direção à sua transgressão, sua tendência Se, a respeito de Édipo e de sua jornada da ignorância à compreensão, da
ao informe29. Didi-Huberman aponta para o caráter de interdição da semelhan- visão que cega à cegueira reveladora, fala-se, na psicanálise32, de pulsão escópica,
ça: “quando se diz que duas coisas ou duas pessoas se assemelham, supõe-se apontando tanto para a aderência do olho ao espetáculo do mundo como para
normalmente que elas não se tocam” (Huberman, 2015, p.38), para tratar da a fissura no momento da castração, encobrimento e revelação, sobre Georges
semelhança informe batailliana, fruto de uma operação mortífera de laceração, uma Bataille podemos falar de paixão escópica: olho libidinal, para o qual somos inde-
abertura do informe na forma, operação de contato, a mobilidade provocativa de levelmente atraídos, chamados ao toque, de modo que cortá-lo, como o fizeram
seu gaio saber visual. Buñuel e Dalí, ou comê-lo, como uma iguaria canibal, seria a mais aguda profa-
No Dicionário Crítico30 do número quatro da revista (1929), dedicado ao nação, nosso mais violento desejo diante da mais rigorosa lei.
Olho31, o verbete escrito por Georges Bataille chama-se Guloseima Canibal
(Friandise Cannibale). A respeito do horror ao olho, dentre os horrores inexplicáveis
PORCARIAS E REVELAÇÕES

29 Informe será um importante verbete do Dicionário Crítico de Documents.


O horror é para Bataille uma miragem, seus olhos lhe estão voltados, atraí-
30 O Dicionário Crítico foi implementado no segundo número da revista Documents.
dos para o horror como o porco para a lama, a lama em que se deseja chafurdar.
31 No Dicionário Crítico da Documents n.4, de setembro de 1929, o verbete Olho foi
publicado em quatro partes: “1. Imagem do olho”, por Robert Desnos; “2. Guloseima
canibal”, por Georges Bataille; “3. Mau olhado”, por Marcel Griaule; e “4. O olho na 32 Lembrando que o olhar, no divã analítico, ganha um novo lugar, uma vez que aí pri-
Academia Francesa”, de autoria anônima. vilegia-se a escuta.

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Em Minha Mãe, essa personagem dissoluta escancara sua compulsão abjeta para Gestalt, pequeno conto de Hilda Hilst publicado originalmente em 1977 em
o filho Pierre; causando-lhe fascínio e horror, ela diz: “Sua mãe só fica à vontade Pequenos discursos. E um grande, e em Rútilos (2003)33 nas obras completas editadas
na lama. Você jamais saberá de que horror sou capaz. Gostaria que soubesse. pela Globo, é escrito em terceira pessoa e traz para a cena o animal, entre o selva-
Amo minha lama. Acabarei vomitando, hoje: bebi demais, ficarei aliviada” (Ba- gem e o doméstico, descoberto pelo matemático Isaiah na geometria do quarto.
taille, 1985, p.22). Momento de grandeza do ser: seu desfazimento, seu processo No início do conto, o ser porco revela-se em sua animalidade estranhamente
de dissolução e perda individual, a entrega ao que há de mais sujo, ali onde ele delimitada: “Escuro, mole, seu liso, nas coxas diminutos enrugados, existindo
encontrará prazer e angústia. aos roncos, e em curtas corridas gordas, desajeitadas, o ser do porco estava ali.”
Também a situação-porco será privilegiada nas narrativas hilstianas, como Mais adiante o porco recusa a sua domesticação, incompatível com os modos e as
animal que habita e investiga o lixo, os dejetos mundanos. O xingamento que relações humanas, afirmando sua animalidade: “quando o homem tentou alisá-lo
evoca tudo aquilo que há de imundície e indecência, nojo e repugnância, é apre- como se faz aos gatos, aos cachorros, disparou outra vez num corre gordo, desa-
sentado como lugar eleito para se observar e investigar a condição humana, de- jeitado, e de lá do outro canto novamente um esticado muito teso e pequeninos
sinflando-a de sua tendência metafísica à elevação para fazê-la afundar os pés na ruídos gorgulhantes”34.
lama mais porca e abjeta que se deseja ao mesmo tempo incorporar e ocultar, e Mais tarde o porco, que se saberá porca, ganhará o nome de Hilde35, mãe
que constitui o que há de mais genuíno dessa condição. de Isaiah, em referência à sentença: “sempre de alguma coisa temos medo”. Ao
fim, Isaiah e Hilde irão se casar e serão plena, visceral e lindamente felizes, ter-
mina assim o conto. Gestalt, matemática, geometria, porco, porca, corpo, mãe,
casamento, felicidade: a montagem que se realiza evoca uma realidade fantástica,
indicando uma desestabilização do real ordenado, ao mesmo tempo sugerindo e
impedindo uma moral ou uma filosofia a ser retirada ou colocada desta descon-
certante narrativa.
A extravagância das relações, as descrições detalhadas e inusitadas, um cam-
po sensorial intenso e excitante apontam para a potência da literatura de encetar
impossíveis, provocar e encenar modelos insustentáveis ao mundo real. Se a Ges-
talt é a psicologia da forma, a matemática, a geometria e a trigonometria, ciências
da forma, a literatura, por sua vez, também fortemente inserida no campo da
forma, será, por sua vez, no informe, do porco, da porca, da lama, no dejeto, no
escarro, em que se ensaiará alcançar a plenitude. Isso porque será justamente o

33 Antes disso, o conto foi publicado pelo jornal Aqui, de São Paulo, edição de 10 a 16
de fevereiro de 1971.
34 Essas citações não contêm página pois foram retiradas do conto publicado no jornal,
em imagem na página anterior.
Gestalt no jornal Aqui, de São Paulo, edição de 10 a 16 de fevereiro de 1971. 35 Variações e aproximações do nome de Hilda Hilst em suas personagens são constan-
tes e identificáveis.

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escapar das formas o que garantirá um conhecimento mais essencial de si, uma Que a porca no conto Gestalt seja associada à mãe – e ao medo –, como
nova maneira de apreensão do mundo, na psicologia, nas ciências matemáticas e Bataille também associou este animal à Minha mãe e à sua vontade de libertar-se
na literatura digna deste nome36. de todas as amarras da moral e dos bons costumes, e que essa porca-mãe, em
Diante desta reflexão, é interessante destacar o trecho final do verbete In- ambas as narrativas, seja objeto de desejo no movimento da transgressão do tabu
forme, escrito por Bataille, para o número 7 da Documents, em dezembro de 1929. do incesto, movimento que Édipo, de forma inconsciente, também realizou, pa-
Após propor um dicionário que diz das palavras o que elas fazem e não o que elas rece condizer com a ideia de contato com uma ligação original, uma continuidade
são, suas obrigações e não o seu sentido, apontando o informe como termo desorga- primitiva, tratada em termos de decadência.
nizador, ele afirma, fazendo um ataque ao academicismo: Não se trata de uma origem como ponto inicial de semelhança perfeita,
igualdade de formas, como, por exemplo, entre homem e deus, trata-se, porém,
Toda a filosofia não tem outro objetivo: trata-se de dar uma roupagem de ir em direção aos interditos originais que consolidam as estruturas metafísicas
ao que já existe, dar uma aparência matemática. Por outro lado, afirmar – para transgredi-los. Convém pensar, entretanto, o quanto custará explorar tais
que o universo não se assemelha a nada e que ele não é nada além de zonas de interdição, quem de fato irá se dispor a transitar nessa lama atraente e
informe retoma a ideia de que o universo é como uma aranha ou um repugnante, em que momentos e em que situações, e com quais consequências –
escarro.37 conquanto imprevistas – seremos capazes de lidar.
Em A obscena Senhora D o porco aparece como apêndice, a ser acoplado às
Para ficarmos no nosso campo de reflexão, podemos pensar o seguinte: o instâncias mais definidoras do ser: “porco-mundo”, “casa da porca”, “porco-me-
matemático Isaiah renuncia ao mundo das formas atribuídas quando dá voz ao nino”, “mulher-porca”. Será então a partir dessa lama destinatária (ou originária)
seu desejo ligado ao informe, isto é, seu desejo de fusão com o porco. Ambos que se desenvolverá a narrativa, já de princípio declarada como marginal, quando
os modos – Isaiah matemático, Isaiah desorganizado – serão, entretanto, uma se anuncia: “Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome”
apropriação do mundo, mais ou menos lassa na medida do controle requerido, (Hilst, 1993, p.35).
do grau de aderência ao mundo como espetáculo. Trata-se, no informe, de uma Auto-exilada no vão da escada como bicho acuado diante de um espetáculo
mirada anti-idealista, em que as formas ideais que organizam e oprimem a maté- que não compreende ou que não lhe diz respeito, Hillé intensificará sua jornada
ria serão corrompidas para uma desarticulação e desencaixe da interdependência investigativa, recorrendo a um novo “regime focalizador”39, que a desloca da
do ser da linguagem com o mundo das coisas38. visão enquadrada das imagens do mundo ordenado para abordá-las de um novo
ângulo, em que a fixidez das formas se dissolve em prol de um derramamento
36 Será interessante refletir, e este livro escapa a esta reflexão, a respeito da escrita de Ba- reflexivo, depressivo, de incompreensão e abandono: “alguém-mulher querendo
taille e Hilst. Enquanto Bataille de certa forma não mergulha no experimentalismo, por
compreender a penumbra, a crueldade – quadrados negros pontilhados de negro
exemplo, de um Joyce, de um Beckett ou Céline, Hilda Hilst apresenta gestos de escrita
por vezes caóticos, superlativos, que tendem ao excesso, realizando uma escrita bastante
particular. linguagem e do mundo se acha desfeita. O primado da escrita está suspenso. Desaparece
37 Tomamos aqui de empréstimo a tradução de Eduardo Jorge, Érica Zíngano e Marcela então essa camada uniforme onde se entrecruzavam indefinidamente o visto e o lido, o
Nascimento, no ensaio de Eduardo Jorge de Oliveira “O verbete, o dicionário e o do- visível e o enunciável. As coisas e as palavras vão separar-se. O olho será destinado a ver
cumento: Uma leitura da montagem em Georges Bataille”, In: Poiésis. n. 13. ago. 2009. e somente a ver; o ouvido somente a ouvir. O discurso terá realmente por tarefa dizer o
Niteroi: UFF. p. 145-158. Acessado em 12/05/2017: https://bit.ly/2kItumE . que é, mas não será nada mais que o que ele diz.” (Foucault, 2000, p.60).
38 Como elaborou Michel Foucault em As palavras e as coisas, na relação da linguagem 39 Termo utilizado por Georges Didi-Huberman em A semelhança informe - ou o gaio saber
com o pensamento clássico e o pensamento moderno: “A profunda interdependência da visual segundo Georges Bataille.

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– alguém-mulher caminhando levíssima entre as gentes, olhando fixamente as Sentindo-se apartada e abandonada, ela dispara contra seus próximos, em um
caras, detendo-se no aquoso das córneas, no maldito brilho” (Ibid, p.37). desabafo doído com uma pegada infantil, salvando de sua lista negra apenas Léo,
É interessante notar como os olhos aparecem nesta narrativa enquanto pos- muito provavelmente seu amigo e crítico Léo Gilson Ribeiro, e seu idealizado e
síveis portais de acesso às respostas buscadas, embora esta seja uma pesquisa de louco pai:
caráter inconclusivo, pois há um limite para o que pode ver um olho, seu enqua-
dramento inevitável: “acontecível isso de alguém ser muito ao mesmo tempo Adeus Dante fica c/ sua Iara/ Adeus Iara fica c/ seu Dante/ Adeus
nada, de olhar o mundo como quem descobre o novo, o nojo, o acogulado, e Zé Luiz fica c/ sua Olga/ Adeus Olga fica c/ seu Zé Luiz/ Adeus
olhando assim ainda ter o olho adiáfano, impermissível, opaco” (Ibid, p.42). Em Julio fica com seu jornal/ Jornal fica c/ Julio/ Adeus Lygia fica com
mais uma passagem: tua vaidade/ Vaidade, fica com Lygia/ Léo, obrigada, fica no meu co-
ração [...]/ Cláudia fica c/ teus anseios/ Anseios fiquem c/ Cláudia/
Engasgo neste abismo, cresci procurando, olhava o olho dos bichos frente Ademar fica c/ o bobo do outro/ Outro fica com Ademar [...] Rui, meu
ao sol, degraus da velha escada, olhava encostada, meu olho naquele olho, irmão, fica c/a boba da tua Wilma/ Wilma boba fica com meu irmão/
e via perguntas boiando naquelas aguaduras, outras desde há muito mor- Almeida Prado40, obrigada.
tas sedimentando aquele olho, e entrava no corpo do cavalo, do porco, do
cachorro, segurava então minha própria cara e chorava
que foi, Hillé?
o olho dos bichos, mãe
que é que tem o olho dos bichos?
o olho dos bichos é uma pergunta morta. (Ibid, p.43/44)

Fica evidente neste trecho a identificação com os animais, identificação que


Hilda Hilst desenvolveu em diversas narrativas e que na própria vida haveria de
ser intensa, a Casa do Sol abrigando mais de cem cachorros. Mas, ainda que os
bichos sejam um possível ponto de contato, ainda que em seus olhos algo se pos-
sa vislumbrar, ainda assim o que neles se encontra é impermissível: uma pergunta
morta, terrível solidão.
Em uma nota de caderno, de 21/01/87, 20 para as 11 da noite, HH escreve
em tom de confidência doída: “Bem, meus amigos, é assim: uma dor de mun-
do. Uma identificação com as vítimas-animais, esses pobres animais: cães, bois,
animais surrados, maltratados, servindo de cobaia e de comida. Dor de mundo.
Muito triste, cansada de ver caduquice, cansada da truculência dos humanos, can-
sada da crapulice do meu século. Dor de mundo”. E mais adiante: “Eu não tenho Dor de mundo.
nada a ver com os humanos. Horríveis os que vivem na Terra. Amigos? Meu
Deus! Que enorme solidão. Amo os bichos, ninguém tem nada a ver comigo”. 40 Aqui Hilda Hilst refere-se ao seu pai, Apolonio de Almeida Prado Hilst.

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OLHOS POR TODOS OS LADOS (Moraes, 2006, p.50), como aponta Eliane Robert Moraes no ensaio A imagi-
nação no poder, do livro Lições de Sade, ensaios sobre a imaginação libertina. Moraes de-
Hilda Hilst reclamava que não se ousava nomear o que havia da cintura senvolve: “Sade se defronta invariavelmente com o excesso e o desregramento.
para baixo, e tratou de fazê-lo abundantemente. De maneira mais extensiva em Ao colocar o sexo em discurso ele aponta para o infinito da linguagem erótica,
sua trilogia erótica, embora nunca tenha se acanhado em empregar uma lingua- onde a saturação existe apenas provisoriamente, onde a liberdade abre para o
gem que tendesse ao que se considera uma certa “baixeza” em níveis morais, vazio.” (Ibid, p.50)42.
intelectuais ou estéticos. E há de se pensar: como calhou das partes que se deve O detalhamento das atividades e desejos eróticos nos faz mais próximos
evitar falar (da mesma forma evitar o olhar) adquiriam tantos nomes41? Talvez desta experiência, dela nos tornamos íntimos, como se investigássemos suas do-
justamente a necessidade de desvio tenha tornado tão produtiva essa nomeação, bras e vincos e pudéssemos, enfim, torná-la atual. Desloca-se para o campo de
talvez a atração tão grande dos olhos ocidentais para essas partes estabeleceu a visão o que tencionava manter-se no quarto fétido de um bordel ou nas páginas
necessidade de contorná-las de tantas e variadas formas. Além disso, parece ser censuradas de uma literatura infame, e Marquês de Sade e Hilda Hilst parecem
uma brincadeira da linguagem multiplicar esses seres ofuscantes, uma estratégia querer dizer: lidem com os fatos, isso existe. A questão dos limites da represen-
de se aproximar e se afastar. E Hilda Hilst, por sua vez, torna-os visíveis em sua tação, um dos debates fundamentais da modernidade, é colocada aqui em termos
obra, dessa visibilidade que acontece para cegar. do irrepresentável ligado ao desejo.
Filiada a Marquês de Sade, dentre os autores malditos que buscaram ultra- Enfim o ânus, retraído, escondido, renegado, apontará para cima, empina-
passar a linguagem para inserir nela os interditos ligados à sexualidade, à cruel- do como o olho pineal ou o ânus solar. Se os símios mantinham uma postura
dade, a tudo aquilo que pretende-se manter afastado do campo de visão e de co- agachada, apontando o ânus desabrochado em direção ao sol, o humano, em sua
nhecimento das boas mentes, além de serem verdadeiros estilistas da linguagem, posição ereta, tem o ânus “profundamente retirado no interior das carnes, na
Hilda Hilst não fica para trás quando o assunto é confrontar o leitor com cenas fenda das nádegas, e só é saliente na posição agachada e de excreção.” (Bataille,
e vocabulários de pornografia explícita. A estratégia verborrágica totalizadora 2007, p.61). Daí o movimento escatológico que HH e Bataille empreendem no
aproxima-se daquela do Marquês, em seu empenho – “trabalho interminável”, sentido de dar atenção àquilo que é desprezado, sujo, abjeto. Os dejetos mais
“projeto utópico” – de “classificar, contabilizar e ordenar a experiência erótica” podres que saem dos corpos humanos, seu destino final, os corpos mais gro-
tescos, as palavras mais sujas do vocabulário, os pensamentos e atitudes baixos
41 Alcir Pécora tratou de relacionar todos os nomes dados aos órgãos sexuais que apare- que embrulham o estômago e provocam ânsias de vômito: sêmen, sangue, suor,
cem em Cartas de um sedutor. A quem interessar possa, transcrevo-os aqui. “Para o órgão
urina. Segue trecho de A obscena senhora D em que o ânus aparece como orifício
sexual feminino: cona, biriba, rosa, xiruba, xerea, tabaca, mata, perseguida, xereca, pom-
ba, cabeluda, prexeca, gaveta, garanhona, vulva, choca, xirica, pataca, caverna, gruta, for-
que absolutamente reluz:
nalha, urinol, chambica, poça, xiriba, maldita, brecheca, camélia, bonina, nhaca, petúnia,
babaca, “os meios”, crica. Para o órgão masculino: bagre, mastruço, bastão, quiabo, rom- 42 Em A literatura e o mal, no ensaio sobre Sade, Bataille realiza uma reflexão em mesmo
budo, gaita, taco, ponteiro, sabiá, malho, verga, mangará, “um não sei quê”, cipa, farfalho, sentido: “Excluindo-se da humanidade, Sade teve em sua longa vida uma única ocupação,
chourição, picaço, cipó, estrovenga, toreba, besugo, porongo, envernizado, mondrongo, que decididamente o cativou, a de enumerar até a exaustão as possibilidades de destruir
trabuco, bimbinha, fuso, mango, manjuba, pau-barbado, chonga, vara, ganso. Para a re- seres humanos, de destruí-los e de gozar com o pensamento da morte e do sofrimento
gião fisiológica comum aos dois sexos: anel, rosquinha, buraco, rebembela, rodela, “o deles. Ainda que fosse a mais bela, uma descrição exemplar teria pouco sentido para ele.
meu”, pretinho, of, oiti, prega, rosquete, aro, regueira, cifra, mucumbuco, ó, mosqueiro, Só a enumeração interminável, entediante, tinha a virtude de estender diante dele o vazio,
roxinho, pregueado, botão, borboleta, cibazol, jiló, cabo, bozó, besouro, chibiu, furo, o deserto, a que aspiravam sua fúria (e que seus livros ainda estendem diante daqueles que
porvarino, figo, babau”. (Pécora, 2005, p.21/21) os abrem)”. (Bataille, 2015, p.110)

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Convém lavarmo-nos, pelos e sombras, solidão e desgraça, também lavei beleza! Eu nem sabia que existia borboleta! Fechou-se ensimesmado. E
Ehud no fim algumas vezes, sovacos, coxas, o escuro buraco, sexo, bolo- fechou-se tanto que o sapo Liu-Liu questionou: será que o sol me fez o cu
tas, Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás mas fritado? (Hilst, 2016, p.58).
quantas vezes pensado, escondido atrás, todo espremido, humilde mas
demolidor de vaidades, impossível ao homem se pensar espirro do divino A perspectiva do cu do sapo Liu-Liu – esse terceiro olho – mudou e ele
tendo esse luxo atrás, discurseiras, senado, o colete lustroso dos políticos, agora tem acesso a um novo horizonte (ou seria um vértice?), apto a ampliar o
o cravo na lapela, o cetim nas mulheres, o olhar envesgado, trejeitos, ca- limite do que ele conhecia, mas também capaz de deixá-lo com o cu tostado. Eis
beleiras, mas o buraco ali, pensaste nisso? Ó buraco, estás aí também no o terrível dilema dos orifícios assanhados.
teu Senhor? Há muito que se louva o todo espremido. Estás destronado,
quem sabe, Senhor, em favor desse buraco? Estás me ouvindo? Altares,
velas, luzes, lírios, e no topo uma imensa rodela de granito, umas dobras DE OLHOS (E PERNAS) ABERTOS
no mármore, um belíssimo ônix, uns arremedos de carne, do cu dos escul-
tores líricos. E dizem os doutos que Tua Presença ali é a mais perfeita, Um sol por demais incandescente: Lori Lamby, capaz de deixar inconfor-
que ali é que está o sumo, o samadhi, o grande presunto, o prato. (p.54) mados leitores que imaginar-se-iam livres de julgamentos morais frente ao obje-
to literário. Humberto Werneck, em artigo publicado pelo Jornal do Brasil, em
Ao que Ehud responde: “Senhora D, querida Hillé, murmuras, hein? Os 1990, reuniu algumas reações à época de sua publicação:
segredos da carne são inúmeros, nunca sabemos o limite das trevas, o começo da
luz” (Hilst, 2013, p.54). Ali onde o sol não bate, o destino final dos resíduos dos Se o objetivo era chocar, foi alcançado em cheio, a julgar pela reação das
seres, ao mesmo tempo fechado e aberto, dentro e fora, órgão limítrofe do eu pessoas a quem mostrou os originais. Um amigo, ela conta, o pintor
com o mundo, impossível ignorá-lo em toda a sua fetidez, contorná-lo em toda Wesley Duke Lee, achou O caderno rosa “um lixo absoluto”. Outro,
o médico José Aristodemo Pinotti, ex-secretário da Saúde do estado de
a sua potência vulcânica. “Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco?” (Ibid,
São Paulo, considerou que “uma poetisa nunca deveria enveredar pelo
p.54), céu e profundezas.
pornô”. A escritora Lygia Fagundes Telles, com quem troca confidências
Ao final do Caderno Rosa, Lori Lamby resolve escrever histórias para crian-
e produção literária desde os anos 1950, admite que ficou “meio assus-
ças, lindas histórias infantis que poderiam ser reunidas num caderno chamado
tada, aturdida”. O editor Caio Graco Prado, da Brasiliense, gostou do
“O cu do Sapo Liu-Liu e outras histórias”, apostando na veia cômica, irônica e
que leu, mas, temendo o escândalo, não se aventurou a publicar. Não tive
mordaz que perpassa grande parte da obra hilstiana. O ânus – esse fétido bura- coragem, confessa. Mesmo o crítico Leo Gilson Ribeiro, há muitos anos
co comum a todos, mas cuja presença preferimos esquecer e esconder – é aqui uma voz solitária na defesa de Hilda, não pareceu entusiasmado com a
protagonista: mudança de rumos. (Werneck; Hilst, 2016, p.245/246)

Quando o cu do Liu-Liu olhou o céu pela primeira vez, ficou bobo. Era Personagem de oito anos, Lori Lamby fala de toda a sua experiência sexual
lindo! E ao mesmo tempo deu uma tristeza! Pensou assim: eu fiu-fiu, a partir de um repertório infantil. O universo da criança atravessado por essa
que não sou nada, sou apenas um cu, pensava que era Algo. E nos meus experiência é contado com a ingenuidade da descoberta, em um trabalho de
enrugados, até me pensava perfumado! E só agora é que eu vejo: quanta aproximação de universos a princípio afastados, portanto o estranhamento e o

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desconforto que causam, a sensação de desencaixe. A linguagem conduzida pela disse que gostava muito porque sem dinheiro a gente fica triste porque não
criança é como se tratasse de algo que ela desconhece, a criança descobrindo o pode comprar coisas lindas que a gente vê na televisão” (Hilst, 2016, p.12). E
mundo a partir de um repertório escasso, e avançando na captura dessa novidade adiante: “mas a coisa de predestinada é mais ou menos assim: uns nascem pra
com uma linguagem ainda selvagem, precária na elaboração de um mundo já ser lambidos e outros pra lamberem e pagarem. Aí eu perguntei por que quem
cheio de significados. Insistimos então na hipótese de que a escrita, nos livros de lambe é que paga, se o mais gostoso é ser lambido. Então ele disse que com
Hilda Hilst, adquire um caráter investigativo da própria realidade, um trabalho gente grande os dois se lambem e tem até gente que não paga nada nem pra ser
de aproximação, toque, tato, contato em que linguagem e experiência fundem-se lambido” (Ibid, p.23).
ora como acerto e estabilidade, ora como dissonância e abandono. Um exemplo: Em uma das possibilidades de leitura deste texto desdobrável (caderno, di-
“Eu perguntei se o pau era a cacetinha, mas esse homem disse que não, que era ário, novela, paródia, sátira), Lori Lamby será personagem ficcional desse pai,
pau mesmo. Eu peguei na coisa-pau dele e na mesma hora saiu água de leite” escritor genial rejeitado pelo público, às voltas com seu editor – o tio Lalau –, que
(Hilst, 2016, p.19). o pressiona a publicar “bandalheiras”, a fim de tornar-se financeiramente viável.
Diminutivos, associações pueris e originais, desconhecimento de vocabulá- Alcir Pécora, em Por que ler Hilda Hilst, aponta para também esta chave de leitura:
rio dão o tom de inocência que possibilita colocar a personagem na situação de
43

confronto com o desconhecido, um jogo que é construído a partir das ferramen- nada barra definitivamente a suposição de que Lori seja apenas o nome
tas disponíveis à personagem, ressaltando o contraste entre o mundo da criança do narrador-personagem criado pelo narrador-personagem do pai de Lori,
e o do sexo. Narrada por uma menina de oito anos, a carga sexual de que se vale gênio incompreendido, rendido à venalidade de Lalau, o editor. E isto
é potencializada à perversão, à situação de crime, pedofilia. pode seguir em várias direções, sacando-se narrador de dentro de narra-
Diferentemente da novela batailliana Minha mãe, que tem no incesto a ideia dor, caderno de dentro de caderno, sem que ao cabo dessa incontinência
clara de transgressão – e no que isso traz de angústia e prazer –, a narrativa de da imaginação uma instância se afirme como a única possível. (Pécora,
Lori Lamby está destituída de culpa no seu contar, pois os conceitos e códigos 2005, p.25)
morais ainda não foram todos eles assimilados pela protagonista, que atravessa
a experiência, de um lado, pela perspectiva do corpo e seus modos de sentir, do Sabemos que esse livro tem afinidades em relação à – pretensa – guinada na
outro, pela perspectiva do capitalismo e seus modos de apropriação. Lori diz: escrita que Hilda Hilst estava realizando com o lançamento de sua trilogia erótica.
“Ele perguntou me lambendo se eu gostava do dinheiro que ele ia me dar. Eu Lançado em 1990, quando a autora tinha 60 anos, cansada de editores e leitores
pouco afinados com sua obra, considerada rebuscada demais para o grande pú-
43 Em vários momentos Lori Lamby se vê em busca do significado das palavras. Um blico e, portanto, impossibilitada de fazer parte do círculo daqueles que ganham
exemplo:
“- Lorinha, você tem a bundinha mais bonita que eu já vi, e eu já vi que você tem dois
dinheiro com livros, desgostosa da pecha de ser uma escritora genial que não era
furinhos, duas covinhas em cima da bundinha, e isso é raro. lida, uma autora maldita, HH resolve fazer uma prosa declaradamente – e lançada
- O que é raro? midiaticamente, pode-se dizer – pornográfica, anunciando seu “adeus à literatura
- Raro é quando pouca gente tem.
- O que, por exemplo? séria”. Porém, já foi dito o quanto essa fase soa mais como uma extensão – ou o
- Dinheiro – ele disse – e os teus furinhos. escancaramento – de uma escrita que já tende ao erotismo, e também o quanto a
- Mas dinheiro é fácil.
- É fácil nada. tentativa de estreitar os laços com o público não resultou em uma literatura mais
- Pra mim é fácil. “fácil” ou “convencional”, e, portanto, mercadológica, demonstrando que Hilst
- É que você é predestinada.
Aí ficou difícil para ele explicar o que é predestinada.” (Hilst, 2016, p.23) não parecia preocupar-se muito com esse provável leitor.

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Sônia Purceno afirma que: “não há rupturas drásticas na obra de Hilda e SOL INCANDESCENTE
que a tetralogia veio enfatizar questões fulcrais de sua produção que pode ser
centralizada em A obscena senhora D e em Com os meus olhos de cão” (Purceno; Péco- Então, qual será o limite do “obsceno sim”? Se a obscenidade está rela-
ra, 2005, p.65). E Alcir Pécora observa: “a crueza desses textos não tem como cionada à exposição do que deveria permanecer à sombra, qual será o limite
efeito a excitação do leitor, a não ser que o leitor se trate (como me esforcei para suportável desse dar a ver, qual a fronteira entre o “obsceno sim” e o “repressor
imaginar certa vez), de um tarado lexical, de um onanista literário” (Pécora, 2005, não”? Em entrevista ao crítico Leo Gilson Ribeiro, Hilda Hilst fala de uma con-
p.20), de modo que só quem tivesse uma tara semântica poderia se masturbar duta literária que não pode deixar de ser “entranhadamente ética”, isso porque o
com os seus livros pornográficos. No entanto, embora a série erótica esteja re- motor de todo escritor roda no sentido de não pactuar como o que nos é impos-
cheada de citações intelectuais, muito embora suas personagens tenham o “mau to como mentira circundante: “O escritor é o que diz ‘Não’, ‘Não participo do
hábito de pensar”, ainda assim o campo do pensamento é aí pervertido, antes na engodo armado para ludibriar as pessoas’” (Diniz, 2013, p.56), fazendo, portanto,
tarefa de ironizar a pompa e a solenidade do ser atraído pelo que é repulsivo do da linguagem e da sintaxe uma ferramenta política (contra a polícia). Não pactuar,
que de elevar ou desinfectar os prazeres inconfessáveis, transformando-os numa em Hilda Hilst e em Georges Bataille, será um gesto de liberdade. No entanto, a
qualidade mental. Desse modo, segundo nosso parecer, o desabrochar lexical e própria Hilda Hilst admite que há um limite – ético – para essa abertura:
fabulatório hilstiano não assassinará o tesão.
É claro que esse texto foi fortemente polemizado à época de sua publicação, Eticamente algum escritor, alguma pessoa, pode assumir a tremenda res-
e continuará sendo polêmico, porque transgride uma série de interditos absolu- ponsabilidade de romper os limites que o outro aceitou, ou porque lhe
tamente primordiais para a organização da nossa sociedade, protetores de uma foram impostos de fora ou porque ele se arrumou diante dessa conciliação
ideia de civilização que progrediu até formalizar esse humano possível e atual. A com a opressão externa e o condicionamento interno de que foi vítima?
criança, especialmente a menina, é colocada em situação que não condiz com o Revelar ao outro que ele pode muito mais e pode ser ele mesmo com uma
lugar a ela concedido, aliás, é uma agressão a esse lugar, bem como aqueles que se liberdade total de qualquer tipo de repressão política, econômica, sexual,
lhe dispõe em torno atuam de forma a embaralhar os códigos estritos e escritos: religiosa, psicológica etc, eu me pergunto, não pode levar uma pessoa à
Lori Lamby é incentivada e empresariada pelos próprios pais na atividade sexual, morte, à loucura sem retorno?44 (Diniz, 2013, p.57)
é detentora de desejo e prazer e está amplamente inserida em uma sociedade de
consumo, que tem o dinheiro como principal mediador das relações. Lori Lamby Trata-se de uma questão de sobrevivência, na medida do que é tolerá-
foi abusada e explorada sexualmente, é vítima desse mundo de adultos e suas per- vel em termos de ruptura das fronteiras da constituição do real – histórica
versões, pedofilia e proxenetismo? O caderno de Lori Lamby é, por si só, criminoso e socialmente definido. A responsabilidade do escritor, portanto, repousa em
enquanto publicação? Seus leitores são sádicos? Essas questões foram colocadas uma linha de caráter vertiginoso, oscilando entre transgredir os tabus morais
criticamente à obra, ressaltando aí o quanto a literatura – a arte –, embora realize artificialmente impostos e limitadores da experiência e preservar os limites que
um contraponto à vida real, à sociedade, ao criar um mundo autônomo desses possibilitam a experiência, como concepção humana. O escritor, imbuído des-
pressupostos, será sempre lida por esse indivíduo – ou corpo social – que habita sa tarefa, flerta então constantemente com a linha da transgressão – logo está
o mundo real da ordem, do qual certos princípios são inegociáveis.
44 Ribeiro, Léo Gilson. “’Tu não te moves de ti’, uma narrativa tripla de Hilda Hilst”. O
Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 de março de 1980.

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nessa corda-bamba – redefinindo ou subtraindo os limites éticos mediadores -sellers, interessados apenas em excitar furtivamente, provocar uma estimulação
das relações sociais. O escritor parece, portanto, apontar para a experiência do “sub-reptícia”. Por sua vez, as grandes obras que transformaram o mundo têm
impossível de que Bataille trata. a grandeza do apelo sexual não dissimulado, sua violenta potência libidinal: “O
Ao propor uma elaboração literária – temática e operatória – do impossível, sexo é um fortíssimo, benéfico e necessário estimulante da vida humana, e todos
Bataille realiza uma investigação radical sobre os limites da experiência humana ficamos reconhecidos ao sentir-lhe o quente e genuíno fluxo que em nós penetra
a fim de identificar as chaves de acesso para o que nos une profundamente. A como uma espécie de sol.” (Ibid, p.25)
questão é saber se esse ser limitado e utilitário será capaz de restituir sua continui- Voltamos então ao sol. Ao seu encontro dramático com os olhos. Na pintu-
dade essencial, aquela que foi sufocada sob o triunfo da racionalidade – e moral ra de Turner, a posição de Régulus é coincidente com a dos observadores do qua-
– ocidental. Neste propósito, Bataille vai se interessar por experiências funda- dro. Com ele, olhamos sem piedade para o sol, e a luz que define os contornos
mentais como o erotismo, o sagrado, a morte. Mas é importante ressaltar que esta da visão será a mesma que provoca a indistinção absoluta, na fusão entre sujeito
empreitada está fadada ao fracasso, visto que o impossível é negado na medida e objeto, sol, olho e mundo e, em última instância, também entre ser e divindade.
dos limites intransponíveis do homem (ser limitado, descontínuo), legando à lite- Como Régulus, estamos no limiar entre o brilho total e a escuridão absoluta.
ratura – e ao escritor – o movimento vertiginoso entre o possível e o impossível. Entretanto, como aponta Jonhathan Crary no já citado ensaio “The blinding
No ensaio “Pornografia e obscenidade” (1929), D. H. Lawrence ensaia uma light”, não se trata de cegar-se como o término final da visão, mas, em vez disso,
resposta à censura a seus livros e pinturas, e realiza uma análise das questões do como abertura para a reversão desse mundo existente e os hábitos visuais que o
sexo e da liberdade em uma sociedade marcadamente moralista. Aí Lawrence sustentavam. Evoca-se, assim, o tema do apocalipse, não no sentido de cataclis-
anuncia o que seria a verdadeira libertação do ser das perversas mentiras sociais: ma ou destruição, mas no seu sentido paralelo de revelação e advento para um
“Acima de tudo a libertação do eu, da mentira do eu, da mentira da importante novo mundo. Crary observa: “A arte de Turner é um dos lugares cruciais dentro
ascendência do eu” (Lawrence, 1984, p.31). Trata-se, assim, de sair do círculo da modernidade em que a aspiração para expandir radicalmente os limites da ex-
vicioso do eu, da masturbação do eu, do auto-cativeiro, da consciência de si pró- periência sensorial encontra paralelo com o desdobramento das transformações
prio. Trata-se de trazer à luz do dia o “segredinho reles”45, o segredinho sujo sociais, políticas e tecnológicas.”46 (Crary, 2000, p.25)
estimulado apenas pela pornografia autorizada, e, em seu lugar, dar relevância aos Assim, enfrentar o sol, arriscar queimar-se, será o imperativo ético que ba-
impulsos sexuais criadores. Nesse sentido, Lawrence vai afirmar: “Um homem lizará a conduta do escritor, na inscrição de inimagináveis, na ampliação de pos-
deve ter a consciência necessária para conhecer os seus próprios limites e pres- síveis, na introdução do caos em uma ordem vigente e no próprio processo de
sentir a existência de algo que o ultrapassa. Aquilo que consegue ultrapassar-me é transformação, no ultrapassamento e libertação do eu. Essa conduta, por sua
o impulso da vida no interior de mim próprio, vida que me obriga a esquecer de vez, estará alinhada com a conduta do obsceno, na medida em que faz caírem
mim próprio e ceder ao violento, mas só meio consumado, impulso que me leva a as máscaras socialmente impostas para revelar o que se encontra por debaixo da
destruir a grande mentira do mundo e a criar um novo mundo.” (Lawrence, 1984, carcaça imaculada do indivíduo.
p.30). O impulso transgressor que corrompe as barreiras do eu e o situa para um Bataille diz, em História de ratos: “Só gosto de viver desde que me queime
além de si está ausente, segundo Lawrence, da pornografia moderna, dos best- (não me faltava nada, querer durar)” (Bataille, 1988, p.40), inserindo aí a questão

45 Expressão utilizada na tradução portuguesa deste ensaio, que corresponderia a “segre-


dinho sujo”. D.H. Lawrence. “Pornografia e obscenidade, precedido de Reflexões sobre 46 Tradução nossa de: “Turner’s art is one of the crucial sites within modernity where
a morte de um porco-espinho”. Tradução de Aníbal Fernandes, Editora ETC, Lisboa, an aspiration to expand radically the limits of sensory experience parallels the convulsive
1984. P.23-44. unfolding of social, political and technological change”.

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temporal, da duração do indivíduo descontínuo. Podemos pensar também em
Hilda Hilst a mirar o sol sem proteção, lançando-se destemidamente em uma
experiência heliotrópica, uma investigação dos limites dos enquadramentos visu-
ais. Mas, afinal, de que sol se trata? É, portanto, preciso encarar esses luminares,
privilegiar o instante escaldante ao futuro redentor. Enfim arriscar queimar-se,
amar mesmo o calor desta chama. OS SANTOS PROFANOS

Por que desfazer-se de Deus para refugiar-se em si mesmo? Por que essa
substituição de cadáveres?
Emil Cioran, Silogismos da amargura.

Sentada, uma das pernas levantada, coxas afastadas, Madame Edwarda1 pu-
xava a pele dos dois lados a fim de abrir a fenda ainda mais: “Assim, os trapos de
Edwarda olhavam para mim, peludos e rosados, cheios de vida como um polvo
repugnante”. Em seguida, com a voz rouca, ela não hesita em afirmar: “veja, eu
sou DEUS”. A “chaga em carne viva” insiste desafiadoramente para que os olhos
não se desviem: “Não, você tem que olhar: olhe!” (Bataille, 1981, p.82). Publicada
em 1941, pela Éditions du Solitaire, sob o pseudônimo de Pierre Angélique, a
novela batailliana narra a experiência angustiada e excitante do encontro entre
um homem – o narrador – e a prostituta que dá nome ao título, marcada pela
seguinte evolução: quanto mais Madame Edwarda for obscena, mais ela será di-
vina. Deus-vulva-peluda, sol que atrai e ofusca, perturbadora imagem, entretanto
irresistível: “não esquecerei jamais o que há de violento e maravilhoso no desejo
de abrir os olhos, encarar de frente o que acontece, o que é. E eu nada saberei sobre
o que acontece se nada souber sobre o prazer extremo e a extrema dor” (Ibid,
p.10), afirma Bataille no prefácio a esta obra. A edição de 1956, editada pela Jean

1 Escrito sob o pseudônimo de Pierre Angélique, originalmente em 1941, com uma tira-
gem inicial de 50 exemplares, mais 50 em 1945, tinha um falso título em sua contracapa
– Divinus Deus –, que seria o primeiro de uma trilogia, seguido por Ma mère e Charlotte
d’Ingervilles. O manuscrito original de Madame Edwarda foi dedicado a Paul Eluard (1895-
1952), poeta francês.

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Jacques Pauvert2, contará com um prefácio do próprio Bataille, em que ele co- caro”, e, como tréplica: “não diga, sempre te associei a caralhos frementes”, e
meça afirmando a gravidade do tema – da vida sexual, do prazer –, e apontando em seguida: “não. Isso é Deus e o Lawrence, o D.H.” (Ibid, p.201). Mais adiante,
para o contorno do sagrado nos temas da transgressão: “os tabus mais comuns Stamatius vai consolar Eulália, que acordara no meio da noite aos gritos de um
incidem quer sobre a vida sexual, quer sobre a morte, de tal sorte que uma e outra sonho com o chifrudo, e então...: “Então saio dos meios, da quentura, e de pau
formam um domínio sagrado, de cunho religioso” (Ibid, p.9). duro no meio da choça começo a gritar: sou Deus! sou Deus!” (Ibid, p.202),
Ora, que uma prostituta no ato de exibir a vagina se autoproclame Deus não blasfemando sem limites a figura divina bem como sua antípoda espiritual. E em
escapa à reflexão que liga o obsceno ao sagrado, de fato é praticamente a imagem um pequeno conto na seção Novos Antropofágicos, a respeito de uma ligação
que condensa esta ideia. De modo que o obsceno, ao jogar luz3 sobre o que está amorosa proibida entre um rapaz de 18 anos e uma bordadeira de 29, uma pe-
relegado às sombras, ao revelar o segredo que excede o valor moral, segredo do quena fábula de iniciação sexual, somos apresentados à seguinte situação: “Antes
qual temos medo, será um dispositivo de transgressão em direção à experiência de começar a chupá-la fiz o sinal da cruz, pedindo a Deus para ser aprovado
integrada do sagrado, aquela que abarca em igual medida sua face nefasta e pro- naquela minha primeira prova. Fui. Gozou muitas vezes, e no gozo repetia Ai
fana. E assim Madame Edwarda será profanada, sua santidade decaída na con- Jesus, ai Jesus” (Ibid, 213). E, tempos depois de desfeita a relação em virtude do
junção carnal: “Finalmente me ajoelhei, vacilante, e pousei meus lábios sobre a flagrante da mãe, o rapaz segue com a lembrança, que dará o tom de fantasia a
chaga em carne viva. A sua coxa acariciou a minha orelha: pareceu-me ouvir um seus relacionamentos subsequentes: “Até hoje (passaram-se anos) só consigo o
ruído de mar – pode-se escutar o mesmo barulho colocando uma concha grande prazer ajoelhado diante da xiriba, fazendo o sinal da cruz e pedindo à parceira
contra o ouvido.” (Ibid, p.83). que repita várias vezes ai Jesus, ai Jesus” (Ibid, p.214). De modo que o universo
Também em Hilda Hilst este cruzamento será amplamente explorado, a sexual será atravessado pelo universo sacro, e vice-versa, apostando na potência
transgressão sacrílega em narrativas que invadem espaços a priori reservados deste encontro que se dá na carne e que a supera no contato da ferida dos corpos:
quer ao universo do sagrado, quer ao universo do obsceno, realizando uma con- paixão de Cristo.
taminação de esferas que se diriam opostas e que, entretanto, apresentam-se con- O sacrilégio será parte constituinte do sagrado, seu polo complementar e
vergentes. Logo no início de Cartas de um sedutor (1990), terceiro livro da trilogia polo impuro privilegiado por Hilst4 e Bataille. Não se buscará, entretanto, o sa-
erótica, deparamo-nos com a seguinte consideração: “Deus? aqui ó, só sei de grado na ascensão de caráter transcendente, porém na exploração de sua parte
Deus quando entro na boca cabeluda da biriba” (Hilst, 2016, p.139), frase que terrena, provisória e imanente: será, sobretudo nos estados limítrofes da vida
mira no ponto que une a santidade à sacanagem. Na seção “De outros ocos”, mundana, em seus momentos de exuberância e excentricidade, em que se divisará
Stamatius depara-se com o demônio nu, tristinho, de pau miúdo, e lhe pergunta: os vislumbres de Deus. Ao final de Madame Edwarda, após uma elaboração a
“por que teu pau é assim mirrado?”, ao que o coisa-ruim responde: “desuso, meu respeito do sentido – e da ausência de sentido – do ser, emenda-se com a seguinte
proposição: “E DEUS? que podemos dizer a respeito, senhores Crentes? Será
2 Jean-Jacques Pauvert (1926-2014) ficou conhecido por editar novos autores e obras
consideradas marginais. Em 1945, com 20 anos de idade, editou oficialmente Juliettte, do
então censurado Marquês de Sade, tirando sua obra da clandestinidade, o que lhe rendeu 4 No ensaio “A medida estilhaçada”, publicado no Caderno de Literatura Brasileira
um processo que durou dez anos. Pauvert também ficou conhecido por ajudar a tornar a (1999), do Instituto Moreira Salles, Eliane Robert Moraes aponta para o fato de que essa
obra de Georges Bataille respeitada. não foi inicialmente a apropriação do divino feita por Hilda Hilst, indicando que, em seu
3 No prefácio à História do olho, Bataille afirma: “Porém, se não fizermos incidir um foco de luz primeiro tempo como poeta, iniciado com Presságio (1950), a ideia de Deus supõe uma
no ponto exato onde a noite cai, como poderemos saber que somos feitos da projeção do ser no horror?” metafísica pura e imaterial. A mudança ocorreria em seu primeiro livro de prosa, Fluxo
(Bataille, 1981, p.13). (1970), confrontando a ideia de Deus com o reino do perecível e do contingente.

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que pelo menos Ele sabe? DEUS, se soubesse, seria um porco*”5 (Bataille, 1981, Há, portanto, no obsceno um percorrer e ultrapassar determinado limiar –
p.94). Mais uma vez o símbolo do que é abjeto situa-se como lugar privilegiado do que é privado, proibido, perigoso – e que irá conferir contorno ao desejo: a
para as revelações das fissuras da realidade, algo que está para além da realidade, “atração-encanto” do desconhecido, o vazio da fabulação. Isso porque o perigo
mas que ao mesmo tempo a constitui6. não apenas inibe como também excita o desejo. Trata-se, portanto, de uma expe-
Para Henry Miller, autor que, como vimos, era para Hilda Hilst referência riência nas bordas do dizível e do inteligível, uma pausa, uma brecha das normas
no tratamento do erótico, Deus e o obsceno serão estados cúmplices, uma vez que contornam e corrigem. Pedro Alvim, no prefácio à edição portuguesa do en-
que ultrapassam a medida da classificação. Assim começa seu ensaio “Obsceni- saio de Miller, observa: “a obscenidade nos transcende à semelhança de Deus”,
dade e Reflexão”, escrito por ocasião da censura de seu Trópico de Câncer (1934): e Eliane Robert Moraes, em “Excesso do excesso”, apresentação do livro Das
“Discutir a natureza e o sentido da obscenidade é quase tão difícil como falar de maravilhas e prodígios sexuais – a pornografia bizarra como entretenimento (2006), de Jorge
Deus” (Miller,1991, p.25). Do mesmo modo, se quisermos dizer o que significa Leite Jr., vai na mesma direção: “se a obscenidade aproxima-se do divino é por-
o que Miller chama de “seis adjetivos mortais” – obsceno, lúbrico, lascivo, sujo, que ambos excedem o humano. Signos da ‘obscura noite da alma’, esses conheci-
indecente, vergonhoso – seremos fracassados, porque escapam a uma existência mentos secretos permanecem interditados ao mundo social, só se desvelando ao
controlada. Neste ensaio, o autor de cânones da literatura erótica atenta para a preço de sua própria falsificação” (Moraes; Leite Jr, 2006, p.11). Também Bataille
arbitrariedade da censura sobre o obsceno, tendo em vista seu caráter inclassifi- vai tratar do tema da falsificação, da forma dissimulada de apresentação do eró-
cável, uma vez que nada seria obsceno em si, porém um efeito de determinada tico. No prefácio à Madame Edwarda, ele aponta: “O domínio do erotismo está
moralidade, e considerando a diversidade das obras potencialmente classificadas condenado, sem escapatória, ao fingimento” (Bataille, 1981, p.13), isso porque,
de eróticas, de Platão, Ovídio, Shakespeare às páginas da Bíblia. E será quase ao como a morte, está sempre desviado para o outro, eludido, pois fortemente dele-
final deste ensaio que Miller oferecerá uma bela e poética paisagem do obsceno: téria será sua plena aproximação.
Além disso, o erotismo – como Deus, como a morte – por sua condição
Se há qualquer coisa que merece o nome de ‘obsceno’ é precisamente esta excessiva, será aquilo que não se pode fundamentar, que escapa à sua represen-
confrontação oblíqua de voyeur com os mistérios, esta marcha pelas bordas tação, de modo que a tentativa de representá-lo será imperfeita e rudimentar,
do abismo, com todos os êxtases da vertigem, ao mesmo tempo que nos uma tapeação diante de sua enormidade incontornável. E se é justamente nes-
recusamos a abandonar a atração-encanto do desconhecido. O obsceno ses momentos – diga-se de passagem, insuportáveis – em que entramos mais
tem todos os requisitos da pausa que nos é subtraída. (Miller, 1991, intimamente em contato com o que há de mais genuíno em nosso ser, é preciso
p.56/57) reconhecer que: “o ser nos é dado em um transbordamento intolerável do ser”
(Bataille, 1981, p.12), apontando para uma intimidade exterior, ou uma exte-
5 Esta nota em asterisco está contida no original e aparece no final do livro: “(*)Disse rioridade íntima. Sendo assim, serão testados os limites do indivíduo, de seu
que Deus, se ‘soubesse’, seria um porco. Aquele que (suponho que estaria, no momento,
corpo, sua identidade, sua permanência, em uma reelaboração dos estatutos
mal lavado, ‘despenteado’) compreendesse até o fundo o que eu quero dizer, que dose de
humanidade teria? além, e de tudo... mais longe, mais longe ainda... ELE PRÓPRIO, em definidores do ser, sua separação concreta então vivida como experiência de
êxtase sobre o vazio... E agora? ESTOU TREMENDO.” (Bataille, 1981, p.95). dissolução e abandono, seu traço de acumulação como dispêndio. Bataille vai
6 Impossível não relacionar este ao Deus-porco de Hilda Hilst, que aparece na versão afirmar, em O erotismo:
feminina – “a porca é Deus” – em Com os meus olhos de cão. Como forma de prece em
Amavisse – “Senhor de porcos e de homens”. Como personagem – Porco-menino – em
A obscenidade significa a desordem que perturba um estado dos corpos
A obscena senhora D, como aponta Eliane Robert Moraes no ensaio já citado “A medida
estilhaçada”. que estão conformes à posse de si, à posse da individualidade durável e

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afirmada. Há, ao contrário, desapossamento no jogo dos órgãos que se respondeu à trama do caos através de formas fraturadas, estruturas parodísticas,
derramam no renovar da fusão, semelhante ao vaivém das ondas que se justaposições inesperadas, registros de fluxos de consciência e da atmosfera da
penetram e se perdem uma na outra. (Bataille, 1987, p.14) ambiguidade e ironia trágica que caracterizam tantas obras do período” (Moraes,
2001, p.57). Assim, se a experiência do indivíduo moderno caracteriza-se pela sua
Na obra batailliana e hilstiana não raro o corpo se apresentará como pre- fragmentação, os movimentos que Bataille prioriza visam justamente restituir a
sença ostensiva, e ele aparece sobretudo em desajuste e desatino, inconformado fusão do homem com o mundo, recuperando sua inteireza, o que passaria pela
com sua forma e afeito a criar novas (im)possibilidades, apesar da angústia que experiência mística do sagrado.
acompanhará esse impulso subversivo. O corpo não é um fato dado e invisível Desse modo, a busca pela comunhão por meio de um ritual será também
do ser, muito pelo contrário, ele reclama, sofre, escarra, peida, arrota, goza: exis- um gesto político, no sentido de restaurar a integralidade da experiência huma-
te um corpo e ele quer se satisfazer. Impossível fazer dele pouco caso, simples na, que havia sido dissolvida pela modernidade, e poder agir no mundo, como
contorno ou receptáculo, algo lhe escapa, como escapam nas narrativas hilstianas Bataille indicou em L’apprentice de sorcier, texto que escreveu para a publicação
um gemido, uma frase dita como ato falho, uma palavra mais convulsiva, envere- oficial do College de Sociologie (1937/1939)7. A comunidade que Bataille havia fun-
dando para diversos registros e materialidades. Como as narrativas hilstianas es- dado junto com Michel Leiris e Roger Caillois visava aliar pesquisa e militância
capam a um gênero que lhes possa encerrar, como é de difícil classificação a obra em uma ideia de sociologia sagrada8, em oposição à experiência fragmentada e
de Bataille. E aí o corpo, que passava incólume como signo natural do homem, controlada do indivíduo moderno. A comunidade Acéphale por sua vez, que teve
que estava alheio às suas manifestações, passa a ser um tema e um dilema. Além existência concomitante ao College, porém atuando de forma secreta, tinha pre-
disso, serão as suas partes menos nobres, aquelas que soíam ficar ocultadas – o tensões de religião, mas dentro de uma mitologia voltada à destruição e à morte
ânus, a vagina, o pênis, o dedão do pé – para onde estarão voltados os refletores. de Deus, e, segundo reza a lenda, teria se dissolvido em razão da proposta – feita
E, como as possibilidades do corpo na fabulação parecem exceder aquelas por Bataille – de realização de um sacrifício humano consentido, algo que jamais
que lhe reservam nosso real demarcado, o corpo humano pode, sem prestar con- chegou a ocorrer. Tais experiências nas quais Bataille se engajou, em uma época
tas, se metamorfosear em unicórnio, enfiar um olho vagina adentro, ascender ou em que a Europa vivia na iminência da segunda grande guerra9, foram, por alguns
descender de seu estado material e profano. Mas o real guarda também surpresas
e pode vez ou outra colocar-nos cara a cara com a cena aterrorizante do corpo
7 Para uma compreensão mais aprofundada deste tema, ler ensaio “Georges Bataille, Mi-
degenerado, emprestando ao real aparência de ficção e ao corpo paisagens inima- chel Leiris e a experiência do sagrado no entreguerras” de Julia Vilaça Goyatá. Acessado
gináveis: as fotografias da execução do chinês Fou Tchou Li e a tortura dos cem em 10/05/2017: https://bit.ly/2kO9v68 .
pedaços será, para Georges Bataille, algo como o encontro com o horror como 8 No número 3 e 4, de 1937, da revista Acéphale, em “Nota sobre a fundação de um co-
disparador do pensamento sobre o suplício, a destruição, o dispêndio ilimitado. légio de sociologia”, que transcrevemos aqui: “O objeto preciso da atividade visada pode
O horror que desestabiliza e nos mobiliza, como nos mobilizam o nojo e o asco. receber o nome de sociologia sagrada, dado que ele implica o estudo da existência social em
Eliane Robert Moraes, em O corpo impossível (2001), contextualiza o gesto todas aquelas de suas manifestações em que vêm à luz a presença ativa do sagrado. Ela
se propõe assim a estabelecer os pontos de coincidência entre as tendências obsedantes
estético destrutivo como resposta à crise do humanismo ocidental, entre o final
fundamentais da psicologia individual e as estruturas diretrizes que comandam suas revo-
do século XIX e a Segunda Guerra Mundial. A sensação de dispersão e instabili-
luções” (Acéphale, vol. 3 e 4, p.28).
dade provocada pela vida moderna terá no corpo o alvo principal a ser atacado,
9 Em 1933, Bataille publica “La structure psychologique du fascisme”, em La Critique Sociale,
sua integridade física feita em pedaços. Assim, ao artista moderno restava cap- destinado a pensar a ascensão do fascismo. Neste ensaio, Bataille apresenta dois concei-
turar os fragmentos desta época em seus instantes de presente: “A arte moderna tos que atravessarão toda a sua obra, o de homogeneidade e o de heterogeneidade.

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Não espanta que o grande intelectual marxista da França no século XX se sentis-
se incomodado com um pensamento que aludisse ao sagrado, a uma economia
do excesso e à valorização do instante presente em detrimento do tempo ulterior,
sentindo aí cheiro de misticismo.
O sacrifício será o espetáculo de destruição dos corpos para o qual Bataille
demonstrará particular interesse, contribuindo para elaborar a noção de sagra-
do11 que percorrerá toda a sua obra. Os ritos sacrificiais das antigas civilizações,
sobretudo as mexicanas, e, em especial, o Potlatch12, das tribos do noroeste da
América do Norte, como “poder de perder”, serão privilegiados na medida em
que o dispêndio ali praticado subverte a ordem da acumulação para a ordem do
gasto improdutivo, criando uma suspensão das atividades produtivas em favor
do jogo, da festa. De modo que se destaca, na sociedade humana, o “interesse em
perdas consideráveis, em catástrofes que provoquem, de acordo com necessidades de-
finidas, depressões tumultuosas, crises de angústia e, em última análise, um certo
estado orgíaco” (Bataille, 2013, p.20).
Sabemos que também Hilda Hilst flertou com o sagrado intensamente. É
Revista Acéphale – La Conjuration Sacrée.
notável que sua obra e sua vida lhe tenham sido permeáveis, no insistente esforço
intelectuais, consideradas dotadas de conotações fascistas. Giorgio Agamben, no de interlocução com o divino, na busca de um contato mais pleno com a matéria
ensaio “Bataille e o paradoxo da soberania” (1987), conta a anedota que lhe fora essencial, ainda que em estado acidental, em sua disposição para uma sensibili-
relatada por Pierre Klossovski sobre seus encontros com Walter Benjamin, que, a dade extrema que pudesse alcançar o que o mundo real organizado recusa. Reli-
respeito do grupo Acéphale e do ensaio batailliano “Sobre a noção de dispêndio”, giosa e profana, fortemente mística e atenta aos sinais deste e de outros mundos,
afirmava: “Vous travaillez pour le fascisme!”. Ainda que esses movimentos fos- do humano e de outros seres e manifestações, Hilda Hilst, figura insólita e avessa
sem declaradamente anti-fascistas, Benjamin alertava sobre o perigo de se entrar a convenções, apostava em uma concepção particular do sagrado, destituída de
em um jogo puro de “estetismo pré-fascista”. Além disso, o fascínio com o ritual, regras ou religiões, em que o homem transporia sua individualidade limitadora
o sacrifício e a comunidade soava por vezes, e para alguns, próximo aos regimes para uma comunicação intensa e extensiva. Em entrevista para o jornal Aqui13, de
do fascismo. São Paulo, em 1971, ela afirma:
Jean Paul Sartre, por sua vez, chamou Georges Bataille de “ateu místico”,
no ensaio “Um nouveau mystique”, publicado em Cahiers du sud, em fevereiro de
1943. Aí Bataille é acusado de, em A experiência interior (1943), a que Sartre deno- 11 Conceito adquirido do vocabulário antropológico a partir de sua leitura de Marcel
mina ironicamente “ensaio mártir”, introduzir a transcendência na imanência, de Mauss, sobretudo de seu Ensaio sobre o dom, e advindo indiretamente de Émile Durkheim,
em Les formes élémentaires de la vie religieuse (1912).
fundar uma religião sem Deus, ou de apoiar um Deus “como assombramento”10.
12 De acordo com o maior número de fontes consultadas, Potlatch em chinook quer
10 Encontramos esta expressão no ensaio de Françoise Meltzer “Sobre a questão da dizer “presente” ou “ato de dar”.
Aufhebung: Baudelaire, Bataille e Sartre” (2006), publicado no Brasil na Revista Crítica de 13 SCWARTZKOPTT, H. Hilda Hilst: Perto do coração selvagem. Aqui, São Paulo, 10
Ciências Sociais. Acessado em 13/06/2017: https://bit.ly/2Hk4R8Y . a 16 de fevereiro, 1971.

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Imagino que se o homem retomasse o sagrado das coisas, se ele olhasse especulativo” (Ibid, p.837). Epifania uraniana14, desdenha das mediações da or-
cada coisa como se ela tivesse uma pulsação sagrada, se ele pudesse ver isso dem constituída, perfura as formas cristalizadas, incide sem barreiras no mundo:
sem os termos da religiosidade ortodoxa, se ele pudesse ver o existir da revela, “em realidade és”.
planta, do ar, dos bichos, se de repente o homem pudesse observar o mun- Georges Bataille teve no sol um aliado na busca pela substância que resta
do com um certo fervor, sem essa religiosidade arrumada, se ele descesse no momento em que um raio incandescente incide sobre as estruturas da cons-
ao poço, começaria a perceber sua íntima relação com tudo o que o cerca, ciência.15 Esse resíduo, fruto de uma operação transgressora, será tratado como
e essa coisa faria ele retomar as coordenadas de sua alma. excesso, excremento, dejeto, parte da experiência humana que foi rejeitada pela
ética dominante e que escorre insolente sem atribuição ou projeto. Por sua vez
No prefácio à Madame Edwarda, Bataille vai afirmar: “Deus não é nada se a degradação das formas, constitutiva dessa atividade, se dá por uma operação
não for um ultrapassar de Deus em todos os sentidos; no sentido do ser vulgar, de perda, sacrifício, na obra batailliana definido a partir da noção de dispêndio
no sentido do horror e da impureza e, finalmente, no sentido de nada” (Bataille, improdutivo, de função insubordinada, que é ao mesmo tempo insustentável e
1981, p.12). Assim, o ultrapassar os limites, a suplantação do eu, do que lhe ex- irrecusável, que “não é outra coisa, no sentido etimológico da palavra, que não a
cede e do que lhe compreende, do que é exterior a ele mas ainda assim o abarca, produção de coisas sagradas” (Bataille, 2013, p.22). Trata-se, portanto, de realizar
paira sobre as indagações deste capítulo. O sagrado será, assim, um dispositivo a travessia entre o que é profano – reduzido à sua utilidade – e o que excede aos
para se pensar o que não é possível nomear, o que incide no corpo e o questio- domínios do sistema delimitado, e que é, portanto, soberano.
na, a linguagem do excesso e do resíduo, da busca e da espera, do que se faz em A automutilação do desenhador de bordados que Bataille relata no ensaio
silêncio e em nada. A mutilação sacrificial e a orelha cortada de Van Gogh, que, a partir de um comando
imperioso do sol apertou entre os dentes o indicador esquerdo, arrancando-o
por completo, dão prova da comunicação imediata das ordens divinas, desse sol
TOCAR O ABISMO DO CÉU irremediável, também de sua consumação em sacrifício. Fixar o sol, e, sem hesi-
tar, enfiar o dedo na boca, firmar nele os dentes, seccionar primeiro a pele, em
a vida foi, Hillé, como se eu tocasse sozinho um instrumento, qualquer seguida os tendões e extensores, os ligamentos ao nível da articulação falangiana,
um, baixo, flautim, pistão, oboé, como se eu tocasse sozinho apenas um com a mão direita torcer a extremidade do indicador esquerdo, dilacerando-o e
momento da partitura, mas o concerto todo onde está? arrancando-o por completo. Assim és: sacrifique o filho, empreenda guerras, atire
A obscena Senhora D, Hilda Hilst. à fogueira, lance pragas e maldições, arruíne vilas e plantações.
Também Hillé – A obscena senhora D (1982) de Hilda Hilst – em sua “obses-
O sol, se não é o próprio Deus, é, para muitos povos, uma manifestação são metafísica” – empreende uma operação de perda – da identidade, dos nomes,
da divindade (Chevalier, Gheerbrant, 1998, p.836). Disco de ouro, reina no céu da face, da humanidade – a fim de escapar daquilo que a encerra, o inescapável,
absoluto em toda a sua exuberância, alheio às concessões da vida humana na
14 Uranos é o céu. O sol é uma epifania/manifestação celeste (em oposição às ctónicas),
Terra. Indestrutível e irascível – e fonte de luz, do calor, da vida – tem a medida
e na verdade a maior delas.
da transgressão bem como da consciência dos limites. Considerando a luz como
15 Jean Luc-Nancy, na entrevista “Mas deixemos de lado o Sr. Bataille”, à Madeleine
conhecimento, eis aqui uma interessante aplicação simbólica: “o sol representa
Chalon, vai falar em “estrução”, como amontoado, nem construído, nem desconstruído,
o pensamento intuitivo, imediato; a lua como conhecimento por reflexo, racional, “resto de sagrado no meio – no coração – do que resta”, “inquietude sagrada”. Acessado
em 23/04/2017, em: https://bit.ly/2Je1jed .

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derradeiro fracasso. Hillé “sessenta anos à procura do sentido das coisas” é um cerceamento – e empobrecimento – da experiência plena e primitiva, ape-
(Hilst, 1993, p.35), decide viver no vão da escada um ano antes da morte de nas acessada como rápidos lampejos de uma noite escura e remota – instantes
Ehud, seu marido, e é deste entre-lugar que ela estabelece um diálogo com de acesso, brechas na lei. O real, subordinado ao instrumento e ao trabalho, à fi-
o amante recentemente morto, pautado por indagações e inconformismo, in- nalidade das operações e ao tempo como duração, como afirmação de um tempo
quietações e inadequação, enquanto se desfazem no aquário peixes recortados ulterior, é o esvaziamento de algo maior e mais fascinante. Vejamos agora um tre-
de papel pardo. Seu ser perguntante16 interpela Deus de maneira insistente à cho de Teoria da Religião, escrito em 1948, mas publicado postumamente em 1973,
procura do “sentido das coisas”, “da luz numa cegueira”. Este, O Luminoso, em que Bataille apresenta sua visão da posição objetiva do mundo das coisas:
O Vívido, O Nome, Cara Escura, Sorvete Almiscarado, O Obscuro, O Sem
Nome. Hillé chama, busca, aproxima, quer – mas há algo da ordem do inaces- O mundo real permanece como um dejeto do nascimento do mundo di-
sível que desemboca no desamparo. vino: os animais e as plantas reais separadas de sua verdade espiritual
Este diálogo com Deus tratará, portanto, não da condição, mas da constrição reencontram lentamente a objetividade vazia dos instrumentos, o corpo
humana, colocada em evidência e ao mesmo tempo confrontada. “Engolia o humano mortal é pouco a pouco assimilado ao conjunto das coisas. Na
corpo de Deus a cada mês, não como quem engole ervilhas ou roscas ou sa- medida em que é espírito, a realidade humana é santa, mas é profana na
bres, engolia o corpo de Deus como quem sabe que engole o Mais, o Todo, o
medida em que é real. Os animais, as plantas, os instrumentos e as ou-
Incomensurável, por não acreditar na finitude me perdia no absoluto infinito”
tras coisas manejáveis formam com os corpos que os manejam um mundo
(Ibid, p.36). O movimento de Hillé de fusão com o divino manifesta o desejo
real, submetido e atravessado por forças divinas, mas decaído. (Bataille,
de continuidade, no próprio ritual da deglutição, da fusão da vista com a luz e a
1993, p.34)
escuridão: este será um projeto de conhecimento das coisas “nos frisos, nos fios,
nas torçuras” (Ibid, p.35), que prevê um movimento de abandono, derrelição –
A inserção do trabalho no mundo, segundo Bataille, substituiu a intimidade
perda de referenciais, renúncia aos contratos, condição abismal.
das coisas, seu contato com o imediato divino, pelos encadeamentos racionais e
A comunicação com o divino comporta algo de inconformidade com o
lógicos, pelo isolamento finito das coisas materiais, suas relações utilitárias. Po-
limite (a forma) que nós – seres humanos – apresentamos perante o mundo
rém, ainda que subordinada e decaída, a vida humana “só tem sentido a partir do
das coisas, uma descontinuidade que nos representa, identifica, e que tanto nos
momento em que as forças ordenadas e reservadas se liberam e se perdem para
dá, e tanto nos tira. O divino, estando em todas as coisas, fio de ligação, convi-
fins que não podem ser sujeitados a nada de que seja possível prestar contas”
da-nos à continuidade, ao “absurdo de uma sucessão infinita” (Bataille, 1993,
(Bataille, 2013, p.32). Está aí a força do dispêndio, da destruição espetacular, do
p.15). Perdida ou jamais experimentada, nostalgia ou ilusão, a continuidade é
jogo sacrificial sanguinolento. E disso o que deve restar? O horror – seu cará-
um fantasma que nos atrai, e tendemos a ela no impulso transgressor dos limi-
ter irredutível, sua violência soberana. Horror intrinsecamente ligado à vida, sua
tes que nos cercam.
conexão fundamental com a morte: Bataille vai buscar nos ritos sacrificiais das
Este pensamento está no cerne da filosofia batailliana, que tratará do pro-
civilizações antigas – sobretudo as mexicanas – o horror sagrado, experiência ao
fano e do sagrado em termos de descontinuidade e continuidade, possibilidade e
mesmo tempo rica e angustiante, que destrói o sentido limitado das coisas, resti-
impossibilidade, real e divino. O mundo real, que é o mundo humano da linguagem,
tuindo ao mundo sagrado o que fora apropriado pelo mundo profano.

16 Em entrevista, em 1993, para o jornal Curitiba, Hilda Hilst afirma haver 394 perguntas
em A obscena senhora D. (Diniz, 2013, p.149).

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CONSTRUÇÕES DESTRUTIVAS

“Hamat, eu Hiram, quero construir a casa. Dentro de mim, sagrado des-


contentamento” (Hilst, 2014, p.19), começa assim o conto “O projeto”, de Hil-
da Hilst. Este pequeno texto foi publicado originalmente em 1977 no livro
Ficções, publicado pelas edições Quíron, que reunia os contos já publicados em
Fluxo floema (1970), primeiro livro em prosa de HH, além de Kadosh17(1973) (en-
tão ainda Qadós), e o inédito Pequenos discursos. E um grande. Na edição das Obras
Completas que Alcir Pécora organizou para a editora Globo, ele abre o livro Rútilos
(2003), que fecha com o conto Rútilo Nada18 (1993). Neste texto circular, que fecha
como abre – isto é, em descontentamento sagrado – estão presentes os elementos-chave
da estética hilstiana: um enredo de difícil apreensão, uma forte carga poética, perso- “É uma besta. É um tigre. Sou eu” (HH). Gravura de
nagens que se proliferam indefinidamente (Hiram, Hamat, Hakan, Herot, Hemiu), Maria Bonomi. Qadós de Hilda Hilst: solitário e ardente.
e o que Pécora definiu como o narrador preferido de Hilda Hilst: aquele que siste-
maticamente se recusa a narrar.
Este é, desde o início, um projeto cujas linhas de força não colaboram para uma
O rei, repressão, corpo. O rei, sepultura do povo. Cochicho em seus ou-
edificação, um plano que indica uma direção e um ponto de chegada, ao contrário
vidos: meu rei, não será para sempre teu envoltório de gozo, um dia a
parece esquivar-se de qualquer assimilação esquemática, portanto um projeto em
garra do teu povo se alonga até a garganta e rasga a lâmina metálica que
descontentamento, em decadência e frustração. Hiram quer construir a casa, mas,
tu colocaste. Fecundo e odioso pode ser o grito de quem jamais ouviu sua
em sentido contrário, há uma força de desconstrução e impermanência, uma en-
xurrada que torna muito difícil a tarefa de edificá-la. Se casa é algo que se ergue, é própria palavra, experimenta, meu rei, repetir FACA FACA, mental-
ascendente, por outro lado “tudo se adere ao círculo, tudo é a mesma linha que se mente desenhá-la, FACA FACA e pensa numa bota sobre a tua cara,
estende, tudo é tangente, tudo está colado a mim” (Hilst, 2014, p.16), em aposta FACA, FACA, e a tua boca de sangue, e de repente ao teu alcance o
à horizontalidade do contato dos corpos fronteiriços, à intuição da continuidade instrumento de aço. Não te tornarás inteiro fogo e agressor? FACA, meu
original. Termina assim este conto: rei, palavra que dirá teu povo, com a mesma volúpia com que dizes amor.
E com a mesma inflexão dos justos. Eu, Hiram, vou construir a casa.
17 A capa da primeira edição do livro Kadosh é de autoria da artista plástica e amiga de
Dentro de mim, sagrado descontentamento. (Hilst, 2014, p.20)
Hilda Hilst Maria Bonomi. Na entrevista em vídeo para a Ocupação Hilda Hilst (2015),
do Itaú Cultural, Bonomi conta que a autora a procurara e perguntara se ela poderia fazer
a capa para o seu livro Qadós, dizendo: “É um tigre, é uma besta, sou eu”. Na mesma Movimento em larga medida erótico esse que narra Hiram: visceral e íntimo,
entrevista, Bonomi explica sua ilustração: “Este ser de dentes, lindo, que quer açambarcar em que algoz e vítima encontram-se, aquele que mata e aquele que deve morrer,
o mundo, dizer tudo ao mundo, dizer e retirar também”. Aliás, várias capas e ilustrações
das obras hilstianas são feitas por artistas renomados. Deixamos aqui alguns nomes: Ode agressor e vítima. FACA: aresta cortante incitada a rasgar envoltórios. FACA: cor-
fragmentária, 1961 (capa de Fernando Lemos); Sete cantos do poeta para o anjo, 1962 (ilustra- tem a cabeça desse rei repressor do corpo. FACA: nossa ferramenta de gozo e
ções de Wesley Duke Lee); Poemas malditos, gozosos e devotos, 1984 (capa de Tomie Ohtake); sangue. FACA: horror amor, amor horror. Linguagem-faca: vai Hilda Hilst abrir
Bufólicas, 1992 (capa e desenhos de Jaguar); O caderno rosa de Lori Lamby, 1990 (ilustrações
e capa de Millôr Fernandes).
os caminhos bloqueados por uma regência opressora, degolar reis, enfrentar pac-
18 Em 1994, Rútilo Nada recebeu o prêmio Jabuti na categoria “Contos”. tos. Não há concessão permitida pela linguagem-faca, ou meio-caminho cortado,

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trata-se de ir até o limite do possível, ali onde fraquejam o dizível e o inteligí- A linguagem tem um papel encantatório, de aplacar a fúria de conhe-
vel. Não há complacência permitida pela linguagem-faca: a literatura hilstiana cer, de romper os limites do apreensível para chafurdar no Absoluto. A
propõe-se a agir sobre os pactos firmados, e não há motivos para se exibir um linguagem é o Tao, o caminho, um labirinto selvático, a linguagem é um
trabalho acabado se tudo escorre sem alicerces de sustentação. ritual propiciatório, uma alquimia de instrumentos verbais para chegar
A linguagem poética que domina a escrita em prosa de Hilst, marcante à gnose20.
nesse conto, opera uma desconstrução do discurso racional e edificante, de tal
forma que somos conduzidos por entre vãos e silêncios, brechas e sombras, e, A linguagem que aspira ao absoluto, que, com insistência, o persegue, evi-

desprotegidos e assustados, tentamos aqui e ali apoiar-nos em algum susten- dencia sua tendência religiosa, na busca infindável do sentido para a vida, de fu-

táculo: “Alicerce de pedra porque o chão é de areia, e matéria alvinitente para são do ser com um além da realidade imediata e, em igual medida, tendência eró-

espelhar o grande sol de dentro” (Hilst, 2014, p.18). Assim, como não raro sói tica, na apropriação profanadora do discurso, no desejo de fusão dos corpos e de

acontecer nas narrativas hilstianas, temos a impressão de que O projeto trata-se plenitude da vida. Esse será um tema batailliano, que identifica o sagrado – fruto

de uma fábula, uma parábola ou alegoria a nos indicar, na tessitura de sua tra- de um sacrifício religioso – à morte e à ação erótica, na dissolução dos seres que

ma, algum significado superior que nos conforte: mas a verdade, a moral e o aí se engajam, na restituição da continuidade perdida, “lembrando o desenrolar

sentido não chegam. Na maioria das vezes, seu destino é confusão e desordem. de águas tumultuosas” (Bataille, 1987, p.16). Trata-se, assim, de perseguir o mais

As personagens hilstianas parecem querer ir fundo no sagrado da existên- íntimo do ser, a verdade eminente da vida, fruto de uma operação de dissolução,

cia, apontar para o imenso céu cósmico, pesquisar freneticamente “a casca que destruição, violência. Logo, o desejo de conhecer – que é visceral, que empenha

recobre a ferida de se ser”, “a palha que se chama aparência” (Ibid, p.17). Mas o corpo e os sentidos – arrisca desintegrar aquele que ali se arrisca a chafurdar.

até onde chegarão? Ana Chiara, no ensaio “Hilda Hilst: ‘respirei teu mundo O projeto termina como começa: em sagrado descontentamento. Circular

movediço’”, observa o jogo reflexivo hilstiano que aponta sucessivamente para podemos dizer do que não tem um ponto de partida nem de chegada, que es-

um vazio impossível de ser preenchido, de modo que esse fracasso será justa- tabelece um limite no movimento de retornar: sagrado descontentamento. Pois,

mente o motor que movimentará o percurso alheio à lógica ou resultado, inte- por mais intenso e insistente que seja o movimento de dilaceração, por esgarça-

ressado antes nos meandros e percalços do trajeto: “Ela perquire, circunscreve das estejam as feridas, a ligação radical que se almeja, a comunicação soberana, a

(escreve em círculos), busca de modo dramático – pondo vozes em diálogo – a transgressão absoluta, porém, nunca é total, tratando-se apenas de uma promessa

melhor maneira de dirigir uma pergunta, modos de colocar as perguntas sobre ilusória, como aquela dos seres apaixonados21.

a experiência, o vivido, a existência, sem deixar que as respostas se anteponham Portanto, a solidão extrema dos seres descontínuos que somos, a angústia

à visão do múltiplo, do fragmentário, do singular do tempo diferido” (Chiara, que lhes abate da continuidade como “direção extrema das ações essenciais”

2015, p.15)19. Leo Gilson Ribeiro, no prefácio ao livro Ficções (1977), para as
edições Quíron, aponta para o desenvolvimento desta escrita: 20 Acessado em 23/04/2017: https://bit.ly/2JeWvVY .
21 Bataille, ao falar da paixão como erotismo do coração, cuja essência é a continuidade
entre os dois seres apaixonados, vai apontar para seus efeitos deletérios: “A paixão ventu-
rosa acarreta uma desordem tão grande que é comparável ao seu oposto, o sofrimento”
(Bataille, 1987, p.15). Vale também lembrar da etimologia da palavra paixão, do latim
19 Acessado em 26/04/2017: https://bit.ly/2JeLOmq . tardio passio -onis, derivado de passus, particípio passado de patī: “sofrer”.

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(Bataille, 1987, p.15), porém marcada por um interdito e jamais plenamente al- a liberdade dos seres condenados ao servilismo, a descarga do ser da avareza e do
cançada. Em O erotismo, lemos: “Trata-se de introduzir, no interior de um mun- cálculo frio, a vingança da poesia contra a subordinação da linguagem discursiva
do fundado sobre a descontinuidade, toda a continuidade de que este mundo e utilitária. No movimento dos dois textos a aposta na ferida como propiciadora
é suscetível” (Ibid, p.15). De modo que a vida descontínua não é condenada a de contato entre os corpos, contato entre o alto e o baixo, e supressão da relação
desaparecer, ela é apenas posta em xeque. Se o que está em jogo não é ir até o fim, sujeito/objeto, movimentos próprios do rito sacrificial.
tendo em vista o caráter impossível e mesmo indesejável de uma fusão definitiva,
trata-se, ainda assim, de perseguir o sentimento de continuidade nos movimentos No sacrifício, não há somente desnudamento [como na ação erótica], há
que o evocam. imolação da vítima (ou se o objeto do sacrifício não for um ser vivo, há,
de alguma maneira, destruição desse objeto). A vítima morre, enquanto
os assistentes participam de um elemento que revela sua morte. Este
PERDIÇÕES elemento é o que se pode chamar, como os historiadores das religiões, de
sagrado. O sagrado é justamente a continuidade do ser revelada àqueles
O dispêndio será um contraponto em relação à sociedade de empreendi- que fixam sua atenção, num rito solene, na morte de um ser descontínuo.
mento, a consumação um contraponto às obras de crescimento, e a continuidade (Bataille, 1987, p. 16)
surgirá contrária à fragmentação do homem e seu conhecimento das coisas em
detrimento do conhecimento mais pleno de si. Vejamos agora um trecho de A Georges Bataille chama atenção tanto para o fato de o sacrificante parti-
Parte Maldita (1949), em que Bataille narra prática de sacrifício na sociedade aste- cipar intimamente da vítima, cancelando a separação e a subordinação entre as
ca: “Os sacerdotes matavam suas vítimas no alto das pirâmides. Estendiam-nas instâncias, quanto para a necessidade espetacular do ritual, a fim de que se revele
sobre um altar de pedra e atingiam-nas no peito com uma faca de obsidiana. o que de hábito nos escapa. De modo que não é suficiente apenas matar ou mor-
Arrancavam o coração ainda palpitante e assim o elevavam para o Sol.” (Bataille, rer, é preciso que se assista ao sacrifício e à morte, que os nossos olhos estejam
2013, p.66). Acreditava-se que, se essas oferendas cessassem, o sol cessaria de abertos em direção ao sol em todo o seu esplendor, que seus raios incandescentes
iluminar, e, como a maioria das vítimas imoladas era prisioneira de guerra, jus- atuem na suplantação dos limites das coisas.
tificava-se a ideia de guerra como consumação, e não como conquista. Assim, a
consumação do rito sacrificial fará a comunicação entre o mundo profano e o Esfolava-se o morto, e um sacerdote logo se vestia com essa pele sangrenta.
mundo sagrado, entre os seres individuais e os seres divinos, em um momento de Jogavam-se homens em uma fornalha de onde eram tirados com um gan-
suspensão do cálculo da ordem real, uma vez que “a consumação é o caminho cho para serem postos ainda vivos sobre o cepo. Na maioria das vezes, as
por onde se comunicam seres separados” (Bataille, 2013, p.72). carnes consagradas pela imolação eram comidas. (Bataille, 2013, p.67)
Parece haver uma intimidade estética entre a prática sacrificial e o conto
hilstiano O projeto de que tratamos, de dilaceramento formal que aponta para
uma comunicação direta e divina, de consumação dos meios e materiais, até o ECONOMIA LITERÁRIA
limite dos recursos imagéticos, sensoriais, extensão e desgaste da linguagem na
fronteira entre o prazer e a dor, o frenesi e a angústia: “te fazer sangrar de gozo, O estado de perda é próprio da literatura, Bataille aponta para “criação por
de desgosto, te dar outra vez mil vezes minha magnificência dureza, ser lânguido meio da perda” (Bataille, 2013, p.23), verdadeira necessidade de destruição. Hilda
e barroco” (Hilst, 2014, p.17). Quer se consumir tudo até o limite, pois essa será Hilst dizia-se vítima de uma maldição que se assemelhava ao ritual do Potlatch,

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entendido como “destruição solene de riquezas” (Bataille, 2013, p.79). Em en- de capim, a excêntrica e marginal autora de textos ilegíveis: devemos deixá-la
trevista a José Castello para O Estado de São Paulo, de 1994, Hilst diz: “Escrevo escorrer como dejeto inutilizável, assim como exibi-la a plena vista como insígnia
há trinta anos e tenho quase trinta livros. Estou continuamente exibindo minhas de prestígio.
riquezas, entregando o que tenho de melhor, mas os outros jogam fora o que lhes Sabemos que, no intuito de contornar esta maldição, no início dos anos
ofereço. Adquiri com o tempo esse ‘poder de perder’ que Mauss viu nos amerín- 1990, Hilst lança a sua trilogia erótica, num esforço de ampliar o seu público
dios” (Diniz, 2013, p.157/158). leitor e logo dar outro encaminhamento para suas riquezas. Nesses livros a fi-
Marcel Mauss escreve sobre a instituição do Potlatch em Ensaio sobre o dom gura do escritor está tematizada, sempre de maneira sarcástica, também como
– forma e razão da troca nas sociedades arcaicas, publicado em L’Année Sociologique indivíduo marginal e degradante, verdadeiro excremento rejeitado da sociedade.
(1923-1924, p.30-186). O regime de troca arcaico realizado por índios do noroes- Em Contos D’Escárnio, Textos Grotescos, temos a famosa sentença: “Resolvi escre-
te dos Estados Unidos da América, entre outros povos22, indica que a necessida- ver este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi
de da perda é superior à necessidade da aquisição, e levará Bataille a formular as escrever o meu. [...]. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que
leis da sua economia geral, cujo escopo compreende a totalidade da vida, e que não posso escrever a minha?” (Hilst, 2016, p. 64). E em Cartas de um sedutor, na
ele publica em A parte maldita23. Mas Bataille chama atenção para a base bastante seção “De outros ocos”, Karl apresenta a Stamatius a receita do escritor para o
ambígua dos princípios gerais do Potlatch, exigindo que não seja unilateralmente bom relacionamento com o editor e o público: “O negócio é inventar escroteria,
interpretado como consumação de riqueza: “uma dilapidação de energia é sem- tesudices, xotas na mão, os caras querem ler um troço que os faça esquecer que
pre o contrário de uma coisa, mas ela só entra em consideração se tiver entrado na são mortais e estrume” (Ibid, p.198). Sabemos também que, embora a vendagem
ordem das coisas, se estiver mudada em coisa” (Bataille, 2013, p.79). desses livros, sobretudo O caderno rosa24, tenha de fato alcançado números muito
De modo que a noção do Potlatch, ainda que baseada na dissipação das superiores ao restante de sua obra, não parece correto dizer que Hilst tenha feito
riquezas úteis, assume um sentido de aquisição na medida em que “dar se torne um trabalho de facilitar sua escrita e oferecer um produto mais digerível a uma
adquirir um poder”, na medida em que “se enriquece com desprezo pela riqueza” nova safra de leitores.
(Bataille, 2013, p.79). Assim, também o dispêndio como signo da obra hilstiana, Assim como a vida deve se exceder para escapar da solidão e do tédio de sua
seu desdém a trocas comunicativas em privilégio da originalidade de sua escrita, descontinuidade, a literatura pelos mesmos motivos deve sangrar até a sua con-
em uma economia material falida, empresta-lhe certa aura como selo de distin- sumação, e este potencial de violência está próximo ao do sacrifício na medida
ção. Hilda Hilst, a genial escritora maldita, a “tábua etrusca” isolada em sua torre em que tem por finalidade revelar a continuidade do ser a partir da comunicação

22 Alguns povos que Bataille nomeia: os Tlingit, os Haida, os Tsimshiam, os Kwakiutl, da 24 Na matéria de jornal “Lori Lamby, o ato político”, para o Estado de S. Paulo, temos a
costa noroeste dos Estados Unidos da América; os Tchuki, do nordeste siberiano. seguinte informação: “Há um mês, publicou pela pequena editora Massao Ohno o escan-
23 Georges Bataille designou, a vários de seus amigos, A parte maldita como sendo o daloso O caderno rosa de Lori Lamby, 87 páginas da mais devassa infanto-pornografia
livro mais importante de sua obra, cuja reflexão tem origem em A Noção de despesa, ensaio com ilustrações de Millôr Fernandes. Neste curto período de tempo, a primeira tiragem
publicado na revista La critique sociale, em 1933. Aí ele realiza uma exposição sistemática de mil exemplares – antes considerada de bom tamanho para um livro de Hilda – se
de sua visão de mundo. É a noção de excesso que está na base da construção do seu esgotou. Uma nova remessa está sendo preparada enquanto – surpresa – o telefone toca
pensamento: “sempre há excesso, porque a irradiação solar, que está na origem de todo muitas vezes na casa da escritora, um sítio localizado nas propriedades de Campinas,
crescimento, é dada sem contrapartida: ‘O sol dá sem nunca receber’, há, então, necessa- com convites para o lançamento de Lori em várias cidades do país”. (Prado, L.A. Lori
riamente acumulação de uma energia que só pode ser disperdiçada na exuberância e na Lamby, o ato político de Hilda Hilst. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 de junho de
ebulição” (Piel; Bataille, 2013, p.12). 1990, Caderno 2).

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com o divino. Hilda Hilst vai dizer que toda a sua obra tende para Deus: “Posso rodela de granito, dobra de mármore, belíssimo ônix. O acesso ao sagrado vai
blasfemar muito, mas o meu negócio é o sagrado. É Deus mesmo, meu negócio se dar por meio de profanações, contaminação do sagrado, aí a atração de Hilst
é com Deus” (Cadernos de Literatura, 1999, p.30). Sóror Juana Inés de la Cruz e Bataille pelo mais degradante, porco e abjeto, aí um canal para a experiência
e Santa Teresa d’Ávila são apontadas nessa entrevista como seus pares na convi- extática de transbordamento, o acesso ao divino, limite da treva e começo da luz.
vência do erótico com o sublime, no sentimento de perder-se em Deus, na sensa- Também Bataille desde muito cedo se sentirá atraído pelo divino: já no co-
ção extática de transbordamento, típicos da ascese mística e da atividade sexual. légio interno, entrega-se à devoção de um Deus, à pia batismal e às comunhões.
Hilst diz: “O erótico, para mim, é quase uma santidade. A verdadeira revolução Mais tarde, ingressará em um seminário católico, indicando um futuro devotado
é a santidade” (Ibid, p.31). a alguma ordem austera. No entanto, é quando se muda para Paris que ocorre a
grande transformação: “Sabe-se que em 1922 é devoto, e em 1924 um dissoluto”
(Fernandes; Bataille, 2007, p.11). Bataille, dando cada vez mais indícios de seu
SANTO, SANTO, SANTO espírito inconformista, se tornará frequentador assíduo de bordéis e tavernas, e
não hesitará em afirmar: “Sou diferente dos meus amigos porque troço de todas
Hilda Hilst, por toda a sua vida, teve no divino um zênite: norte que as convenções, procuro o meu prazer onde é mais baixo” (Ibid, p.11). Assim,
aponta para o ápice da abóboda celeste. Está ali seu interesse maior, sua procura: diz-se que Bataille sofreu uma conversão às avessas – de católico em devasso,
Deus é pergunta e tudo em nós vai convergir em direção a Ele.25 apostando na transgressão como mote vital.
Profanar, movimento de transgressão, de “contato interdito”, do tato que
Quando eu tinha oito anos, minha maior vontade era ser santa. Eu es- dilacera. Será justamente na fricção entre o alto e o baixo que as obras de Hil-
tudava em colégio de freiras, rezava demais, vivia na capela. Sabia de cor da Hilst e de Georges Bataille irão transitar. Georges Didi-Huberman, em A
a vida das santas. Eu ouvia a história daquela Santa Margarida, que semelhança informe – ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille, cita a expressão
bebia a água dos leprosos, e ficava impressionadíssima. Vomitava todas batailliana “sacrilégio imundo e brilhante”26, que diz respeito igualmente ao “sa-
as vezes que as freiras falavam disso. Elas diziam: “Não é pra vomitar”. grado portador de sujeira”, apontando para a língua da “antítese sem reserva”
Eu queria demais ser santa. (Cadernos de Literatura Brasileira, p.30) (Didi-Huberman, 2015, p.49), para a convivência de contrários, o conflito con-
ceitual como definidor do pensamento batailliano em sua luta filosófica contra o
Vontade de santidade manifestada desde menina como vocação e viscerali- idealismo. As relações entre o alto e o baixo serão perturbadas, de modo que as
dade. Há algo do horror e do abjeto na proximidade com Deus, também algo que excreções, os rejeitados, estarão associados à elevação, vias de acesso ao divino,
se dá na carne, nos fluidos, algo que se absorve e que também se vomita, o mais e os tabus como locais de sagração serão corrompidos, decaídos. A atitude está
divino e o mais humano: do “dedão do pé” de Georges Bataille, que contesta a ligada ao erotismo, como o que ensaia ligar o abismo profundo existente entre os
tendência humana à elevação e sublinha esse lugar tão rasteiro, ao “fétido bura- seres descontínuos, apontando para a comunicação soberana, não subordinada.
co” da Hillé de Hilda Hilst, orifício inesquecível, demolidor de vaidades. Hillé Mais tarde, HH vai se interessar pela comunicação com o além através de
diz: “Ó buraco, estás aí também no teu Senhor? Há muito que se louva o todo ondas de rádio – chamada transcomunicação instrumental –, experiência que
espremido.” (Hilst, 1993, p.54). O Senhor foi destronado em favor desse buraco, tem por base a do cientista sueco Friedrich Jürgenson, que captava vozes dos
amigos mortos em meio ao registro de cantos de pássaros ). Atividade solitária
25 Cadernos: Sua obra, no fundo, procura...
Hilda Hilst: Deus. (Cadernos de Literatura, 1999, p.37) 26 Referência de “Le langage des fleurs”, Documents, 1929, n 3, p.163.

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e de extrema disciplina – uma vida de freira: Hilda Hilst trabalha de cinco a seis de mais de trezentos anos, a figueira27 da Casa do Sol que atende a pedidos de
horas diárias com o gravador ligado no rádio, em seguida rebobina a fita dezenas todos os tipos28.
de vezes a fim de acessar ali vozes de outras dimensões. No programa de televi- Desejo intenso de comunicação, toque. E se há a sensação de fracasso em
são Fantástico sobre essas gravações, do ano de 1979, HH apresenta a captação termos de alcance de leitores e de compreensão, por outro lado Hilst nunca
de duas vozes sussurrantes: “Hilda. Tu és près de moi”; e a que diz ser a voz de lançou mão – nem mesmo quando disse que o faria, na trilogia erótica – de
sua própria mãe, respondendo “sim” às palavras do sobrinho de Hilda, neto de uma escrita encarregada da construção de um pensamento fechado e inteiro,
Bedecilda: “Eu espero que você esteja feliz”. mais acessível à decodificação. Ao contrário, dificultou a tarefa daqueles que
Esse experimento conduzido por Hilda Hilst foi amplamente abordado em pretendiam acercar-se da obra com chaves de acesso pré-adquiridas, favore-
entrevistas desse período, destacando a carga mística e excêntrica da autora, ela cendo antes um desencaixe e, logo, desestruturação e até mesmo certo tipo de
que já era uma figura irreverente da sociedade paulista por sua postura à frente abandono, como aquele sentido pela Senhora Derrelição, a Obscena senhora D,
do tempo e que já havia causado espanto quando, em 1966, constrói a Casa do justificando a insatisfação que atinge muitos dos leitores desavisados num pri-
Sol e se muda para lá com o então marido, Dante Casarini, local onde iria viver meiro contato com a obra, submetidos a uma espécie de turbilhão de gêneros,
com amigos, intelectuais e artistas da época até o fim da sua vida, e que lhe servirá vozes e dinâmicas textuais.
como uma espécie de monastério da escrita.
27 A figueira da Casa do Sol, famosa por atender a pedidos, aparece em algumas passa-
Em entrevista, Hilda Hilst vai dizer que sua dedicação à experiência trans- gens da obra de HH. Aqui um trecho de O unicórnio: “Essa figueira é mágica, ela dá frutos
comunicacional apresenta intenção de contornar o isolamento rumo a uma co- mas são frutos venenosos, essa figueira é minha há muitos anos, olha, alguém pregou um
municação que sua obra – considerada hermética e para poucos – não teria al- prego aqui no tronco. Os vegetais sentem dor, você sabia? Eu disse isso para o irmão
pederasta. Sabe o que ele fez? Ele enterrou o canivete na figueira e enquanto escorria
cançado: “Eu com certeza seria mais útil colaborando com essas experiências do uma gosma clara, ele dizia: existir é sentir dor, existir não é ficar ao sol, imóvel morrer, é
que escrevendo livros que talvez sejam muito valiosos, mas que ninguém lê, que morrer e renascer a cada dia, é verter sangue, minha amada irmã” (p.171/172).
nada provocam, que não encontram nenhum eco nos outros”. E ela continua: 28 Um pedido famoso é o do seu amigo e escritor Caio Fernando Abreu. Contam que
“Penso que é muito mais possível chegar ao outro por meio desse canal do que ele pedira à figueira para engrossar a voz. Assim, de um dia para o outro, a voz esganiça-
da transformara-se em uma verdadeira voz máscula. Na matéria “A aids é a minha cara:
por minha literatura” (Diniz, 2013, p.44). Anos Dourados”, depoimento à Fátima Torri, para a revista Marie Claire, em setembro de
Hillé diz: “o corpo é quem grita esses vazios tristes” (Hilst, 1993, p.45). 1995, Caio F. Abreu conta esta história: “Tinha uma figueira enorme na fazenda. A Hilda
A escritora Hilda Hilst, por sua vez, experimenta também os vazios do corpo, dizia: ‘Cainho, essa figueira é mágica. Quando a gente tem um problema muito grave, fala
com ela e ela resolve’. Meu maior problema era a voz de menino. Uma noite, abracei a fi-
seus ecos e evocações: “É por isso que resolvi viver assim, retirada, ‘a distân- gueira e pedi para a voz mudar. Voltei para o quarto, peguei um livro de Fernando Pessoa
cia’, por medo de que as pessoas percebessem a que ponto estou o tempo todo que estava lendo e no terceiro verso a voz ficou assim, grave. Pedi com tal concentração
comovida, perturbada” (Diniz, 2013, p.43). Houve uma personagem Hilda e fé que, acho, eu mesmo me curei. A partir da mudança da voz fiquei mais seguro. Aí
me assumi como adulto. Essa história é verdadeiríssima. A Hilda Hilst é testemunha.”No
Hilst que apresentou-se na maior parte de suas aparições públicas: casca-gros- entanto, uma carta, recentemente publicada no livro Numa hora assim escura, com cartas
sa, destemida, afiada. Por exemplo, sobre Massao Ohno, seu editor mais antigo, que Caio enviara à HH durante duas décadas, ele atribui essa mudança a um pedido que
dizia, sem papas na língua e alfinetando-o, que ele devia colecionar seus livros fez à lua cheia da varanda da Casa do Sol: “Vocês vejam que coisa estranha e mágica: três
noites atrás, sentei na varanda e comecei a olhar a Lua cheia, que estava muito bonita.
embaixo da cama, pois não os distribuía: “Jamais encontro meus livros em Aí, de repente, me deu uma sensação esquisita, senti que eu podia fazer três pedidos e
livrarias, só em sebos, ao lado daqueles autores mortos” (Diniz, 2013, p.159). que seria atendido. Aí, pedi primeiro que minha voz melhorasse; segundo, para ir logo
Também houve a Hilda Hilst mística, envolvida em experiências de comunica- para o Rio; e terceiro, para ganhar esse concurso. No dia seguinte, recebi o telegrama do
Francisco (o segundo pedido). Ontem a voz melhorou (o primeiro) − portanto agora só
ção com o além, sensível a todos os oráculos possíveis, devota de uma figueira falta ser atendido o terceiro”.

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se evocará uma corporalidade reinventada, a linguagem terá de se refazer. Há
Hilda Hilst, por vezes, disse não compreender a incompreensão que atribu- algo do corpo que lhe é incomunicável, realizado na linguagem somente como
íam à sua obra, que fosse acusada de obscurantismo ao mesmo tempo em que silêncio ou suplício. E assim, entretanto, vai se fazendo uma escrita.
dirigia um convite ao outro (Diniz, 2013, p.44), convite por sua vez que visava
alcançar um destinatário desarmado e abrir vias outras de compreensão:
REAJUSTES DO CORPO
Eu proponho uma remodelagem, dirijo uma proposta diferente para
O CORPO CORPO CORPO, diz-se em caixa alta em O unicórnio, quar-
atingir o outro, de acordo com uma visão que tenho dele, uma torrente,
to conto de Fluxo-floema (1970). Nesta narrativa, a voz de uma narradora, entre
fazer com que o outro exploda, que ele seja obrigado a praticar por conta
amarga e irônica, conta para uma segunda voz (ao que tudo indica, também uma
própria esse processo que é, ao mesmo tempo, de regresso e de autoconhe-
mulher) lembranças, fragmentos de memória, aparentemente sem ordem ou cau-
cimento (Ibid, p.43/44).
salidade, relacionados sobretudo a três personagens do seu passado: o compa-
nheiro, a irmã lésbica, o irmão pederasta. Este diálogo em fluxo de consciência,
A fala de Hilst sugere uma origem primitiva da essência do ser, cujo acesso
escrito ele todo em quase um só bloco de texto29 é, entretanto, bastante fragmen-
requer um deslocamento do ponto em que reinam a centralidade do pensamento
tário, apresentando uma multiplicidade de vozes intercaladas, provocando a sen-
racional como mediador de todas as relações, a moralidade como termômetro
sação constante de instabilidade, procedimento, aliás, típico da estética hilstiana.
do comportamento humano. De modo que essa proposta prevê um processo
Em determinado ponto do conto, a narradora, subitamente, transforma-se em
de perda das certezas balizadoras do eu, de rompimento dos pactos socialmen-
unicórnio, e será então levada a viver em um parque. Ao final, às portas da morte,
te estabelecidos, de destruição das formas dos gêneros tradicionais, processos
a narradora-unicórnio vai dizer quarenta vezes “eu acredito”, um grande bloco
transgressores caros à Hilda Hilst. Ao que tudo indica, o corpo, em sua natureza
textual aos olhos do leitor, quase uma poesia concreta, uma experimentação po-
carnal, em seus devires e metamorfoses, será condutor de uma revelação em ge-
ética e pictórica, pedaço de carne.
ral embotada pela supremacia do logos e seus dispositivos de dominação. Hilda
“Interesses espirituais profundos e as alegrias do corpo. O CORPO COR-
Hilst entrega ao outro a responsabilidade de traçar seu próprio caminho de en-
PO CORPO” (Hilst, 2003, p.151). O irmão pederasta dizia que era casto: “Acre-
contro. À sua literatura caberá desgastar o solo largamente endurecido.
ditei durante muito tempo, ele parecia honesto quando dizia que era casto, ele me
No corpo, a vivência terá predomínio sobre o conhecimento, induzindo a
confessou que teve uma paixão violenta por um homem, lógico, mas que depois
uma experiência menos simbolizada e mais espontânea. O corpo e sua matéria
teve medo e pudor. Depois de quê? Depois de pensar muito. Ahn” (Hilst, 2003,
abjeta, seus lugares obscuros, seus odores asquerosos, seu destino putrefato: será
p.151). Vai negando-se o corpo na medida em que a cabeça ganha projeção, de
ele campo de experimentação e superfície sintomática das questões mais íntimas
modo que se antagonizam corpo e mente ao ponto em que a segunda torna-se
do ser, acesso a um conhecimento intuitivo refratário aos filtros do real organiza-
polícia do primeiro. Nega-se por uma vida toda esta abertura de carne: escondi-
do. Trata-se, portanto, de um corpo avesso à linguagem realista, aliás verdadeira
da, encoberta, relegada, Hilda Hilst e Georges Bataille, por sua vez, tratarão de
bomba explosiva a ser acionada contra essa linguagem, exigindo-lhe subversão
em desprezo à tarefa representativa a que se dedica. Assim, do mesmo modo que 29 Na edição de 2003 da editora Globo, em 72 páginas há somente seis quebras para-
grafais.

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lhe lançar luz, assim dizendo que a parte que está ocultada muito pode revelar do
que de fato aparece, e que está relacionada ao desejo, do que reluz e eclipsa como O genocídio, os requintes de crueldade, homens que estão comendo ho-
o ânus solar. Vejamos aqui mais um trecho de O unicórnio, em que fica evidente mens, mulheres de tetas murchas sangrando, cadáveres de criancinhas,
o teor cômico e mordaz que HH confere a esse tema30. A narradora, em um ato milhares de pessoas apodrecendo, opressão, sangue em todos os caminhos,
de ingenuidade, empresta seu apartamento para o irmão pederasta, enquanto é preciso responder com sangue, basta de palavras, mate-se, você, aí, ma-
passeia pela cidade com seu companheiro. Quando eles voltam, lá está o irmão te-se, você com a boca entupida de palavras. Mas e o Cristo? eu dizia.
com um “adolescente bonitinho”: O Cristo? Imbecil – a voz agora é tonitruante – nós somos o Cristo,
nós somos o Cristo que se cansou de parábolas, o Cristo que nunca mais
Se os meninos queriam dar a bunda, o que é que você tinha com isso? se deixou crucificar, o Cristo com um pênis deste tamanho na bunda de
Não, mas ele me fez de besta, espere um pouco, ele nunca me falou da todos os opressores, esse é o Cristo de nosso tempo (Hilst, 2003, p.194).
bunda. Mas ninguém fala muito da bunda, fala? Ah, mas espera um
pouco, eu contei a minha vida inteira para ele, os pecados mortais e O sofrimento do mundo é tão grandioso, a realidade em detalhes tão ad-
os maiores, e ele se fazendo de cu e pensamento limpo? (Hilst, 2003, versa que as palavras e as narrativas ofendem por seu asseio e adstringência,
p.152). por seu descolamento total. A imagem de um indivíduo com a boca cheia de
palavras sugere que sejam absolutamente dispendiosas e também que resta algo
Os tabus relacionados às partes dos corpos serão transgredidos na medida do incomunicável, recado que só um redentor em sua máxima potência erótica,
em que é preciso colocá-los em pauta, em que urgem, em que não obedecem aos dotado de extrema violência, será capaz de transmitir. Daí o erotismo e sua carga
imperativos de discrição, em que refutam a higienização de sua carga vergonhosa, messiânica, líder na abertura de caminhos. Ora, Bataille e Hilst vão justamente
fazendo um elogio ao abjeto. Esfregar na cara do leitor o que convencionalmente exibir essa ferida, optando pelo que arde em detrimento da mornidão de uma
se propõe ocultar acompanha certa dose de violência, e será justamente essa feri- vida castrada, optando pela erotização contínua, com toda a violência elementar
da aberta a via de comunicação entre os corpos. A presença do corpo é ostensiva, que isso implica.
e aparece sobretudo na linha da transgressão; violento e violado, ele tenciona Tendo renegado a passividade das vivências uniformes, impossibilitadas de
essa linha, de modo que, desfigurado o corpo, é difícil agarrá-lo e transformá-lo serem narradas em enredos mais ou menos tradicionais, delimitadas ou definidas,
em linguagem. Parece que algo sobra (ou falta) para esse encaixe, de certa forma as personagens hilstianas emergem e desenvolvem-se absolutamente fragmenta-
instabilizando o conceito de representação, fragilizando a possibilidade de con- das e dissolutas, sempre próximas demais da chama e a ponto de queimarem-se.
torno. A narrativa O unicórnio oferece ainda este seguinte momento, uma conversa Não há contorno possível, subjetividade ou corpo que as compreenda, de modo
entre a narradora e um amigo que dizia que era preciso agredir, atirar, matar, não que seu “grito da existência dilacerada” ecoa por todas – ou a mesma garganta.
ser débil em uma época tão viril: Sua geografia é a encruzilhada, superfície de cruzamento entre o que delimita e o
que abre. Aliás, por onde andam essas personagens? O cenário em que habitam
30 Em Cartas de um sedutor, há também uma passagem memorável sobre este orifício: “Há e transitam tampouco é definível, ocupando menos uma territorialidade real ou
pestilentas rodelas. A minha por exemplo. Cheia de pelos amarelos. E cus pardacentos, mesmo fictícia, mas sobretudo uma interioridade permeável.
ignóbeis. Aquele nojento do Karl tinha uma aquarela na grande sala de jantar: pinceladas
Em determinado ponto da narrativa de O unicórnio, o corpo da narradora
vermelhas num olho negro assustado, dobras cinzentas. Eu comia as lagostas, olhava a
aquarela e pensava: e pensar que tudo vai ser esfrangalhado pela minha rodela” (Hilst,
– voz esta intercalada por uma proliferação de outras, incapazes de conter uma
2014, p.192). unidade (Pécora; Hilst, 2003, p.11) – começa a mudar e ela transforma-se em

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um unicórnio: o corpo começa a avolumar-se, as patinhas crescem, um enorme que o animal saia rua afora, como o prisioneiro ao encontrar a saída;
focinho, um couro espesso, por fim um corno, sim: unicórnio. Metamorfose-uni- então, provisoriamente, o homem cai morto e a besta se comporta como
córnio, devir-porca de Hillé: aponta-se o dedo para a incontinência – manifesta uma besta, sem nenhuma preocupação em provocar a admiração poética
já nas vozes fragmentárias e cambiantes, verdadeira multidão – de uma aparência do morto. É neste sentido que observamos um homem como uma prisão
encerrada em um corpo dado, reconhecível e apaziguado. O que será isso que de aparência burocrática.31
emerge? Esse “alguém que se vê determinado a falar, não necessariamente por
vontade própria?” (Pécora; Hilst, 2003, p.10). A animalidade sufocada do homem na esteira da hipertrofia da sua racio-
Corpo em vias de destituir-se, seu dilaceramento formal que aponta para nalização. A natureza-humana será um dizer-não aos impulsos aniquiladores e
uma comunicação intensa, condição extática que transcende a fronteira abismá- violentos da natureza-animal, aos impulsos sexuais dispendiosos e destrutivos a
tica que define a descontinuidade do indivíduo, a diferença primeira. “Cena de fim de canalizá-los para uma atividade-fim do mundo organizado como trabalho.
possessão”, para usar a expressão de Alcir Pécora, do homem pela animalidade, Mas, em alguma medida, a animalidade persiste e insiste vez ou outra, aqui e ali,
indicando que a ascensão ao divino como horizonte humano é, antes, uma opera-
em mostrar a cara, o focinho, as patas, oferecendo lampejos da experiência de
ção de regresso e expulsão (da humanidade e do real), o que já vinha indicado no
liberdade. O homem, entretanto, não consegue sair definitivamente de sua pele
teor escatológico dos textos. Assim, deparamo-nos com algumas advertências:
humana, e nem abandonar completamente sua couraça animal, de modo que
“olha que o corpo é de luta e não de perfumarias” (Hilst, 2003, p.153). E também
ultrapassar os limites do homem será, de alguma forma, incorporar esse ultrapas-
que: “Existir com esse meu contorno é ferir-se, é agredir as múltiplas formas
sar aos seus limites, incorporar os acidentes da matéria à matéria. Em O erotismo,
dentro de mim mesmo, é não dar sossego às várias caras que irrompem em mim
de manhã à noite, levante-se, comece a ferir esse rosto” (Ibid, p.172). Bataille aponta para essa dinâmica ininterrupta, entre o sufocar e o despontar de
camadas:

Mas ainda que ele comece onde termina o animal, a animalidade não dei-
REINVENÇÕES CARNAIS
xa de ser o seu fundamento. Desse fundamento a humanidade se desvia
com horror, mas ao mesmo tempo o conserva. A animalidade é mesmo
No verbete Metamorfose, publicado em novembro de 1929, na revista Do-
tão bem conservada no erotismo que o termo animalidade ou bestialidade
cuments, Bataille trata do homem como “uma prisão de aparência burocrática”.
não deixa de lhe estar ligado. (Bataille, 1987, p.62).
Vejamos aqui trecho desse verbete:

A “obsessão da metamorfose” tratará, portanto, de um impulso erótico do


Podemos definir a obsessão da metamorfose como uma violenta necessi-
homem em vias de libertação da humanidade. Assim, ele afirma sua potência
dade, confundida, aliás, com cada uma das nossas necessidades animais,
soberana, uma vez que o animal-besta – esse unicórnio que emerge sem prestar
estimulando um homem a se afastar de repente dos gestos e das atitudes
exigidas pela sua própria natureza humana: por exemplo, um homem no
meio dos outros, num apartamento, atira-se de bruços e vai comer a co-
mida do cachorro. Há assim, em cada homem, um animal fechado numa 31 Aqui uso a tradução de Eduardo Jorge de Oliveira contida na tese “Inventar uma pele
para tudo: Texturas da animalidade na literatura e nas artes visuais”, em que se realiza uma
prisão, como um prisioneiro, e há uma porta que, se entreaberta, permite incursão na obra de Nuno Ramos a partir de Georges Bataille, defendida pela UFMG e
pela IV. École Normale Supérieure (Paris). Acessada em: https://bit.ly/2M5vdPr .

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contas, dialogando intimamente com outra metamorfose literária do século XX32 sua irmã, Grete Samsa, outrora sua última aliada, quem lhe dará a sentença final
– não atende às regras de servilismo impostas às funções humanas baseadas na como bicho repulsivo, encarregando a empregada de varrer seu cadáver, uma
utilidade e no lucro, na constituição de um ser que se quer absoluto mas que, se espécie de anti-Antígona moderna34. Em Hilda Hilst, por sua vez, a personagem
tomado a cabo, não se dissociará da figura do escravo. Aqui a metamorfose dia- transforma-se em um dos mais belos seres mitológicos, que povoa o imaginário
loga igualmente com o sacrifício como ritual de dispêndio e de destituição de um infantil. Mas o unicórnio hilstiano, quadrúpede avantajado, também traz trans-
antigo valor de uso da coisa para transportá-la para a esfera do sagrado, quando tornos, e ele terá de ser removido do pequeno apartamento para um parque, para
sairá da ordem do real, ganhando assim independência e soberania. Ora, alcança- trás de uma grade de ferro, onde tudo é chão de cimento. E é deste cenário que
-se uma intimidade mais profunda enquanto unicórnio do que com a embalagem a besta unicórnio, do coração do “tamanho de um enorme tamanho” (Ibid, 218),
insípida com a qual nos revestimos cotidianamente, algo nesta transposição re- nos instantes finais da vida, em meio a um ruído gosmoso, quer muito dizer,
vela, senão como forma final então como processo, uma vez que a metamorfose vezes sem fim: Eu acredito.
acontece como erotização e epifania. O unicórnio será o homem turbulento da
noite, em contraponto ao homem de negócios sérios da manhã.33
A metamorfose estará, ao mesmo tempo, questionando essa forma-homem SUPLÍCIOS DO CORPO
tão bem arquitetada e absolutamente falida, sua representação posta em xeque.
Sim, ela fracassou, fracassamos enquanto projeto de humanidade, algo escapou Georges Bataille dedica as últimas páginas de As lágrimas de Eros (1961),
dando provas de uma medida incontrolável, de um substrato que não se dá conta, seu último livro publicado em vida, ao Suplício Chinês. Trata-se de uma série de
causando-nos espanto e estupefação. Eliane Robert Moraes, em seu livro Corpos fotografias, uma delas reproduzida em 1923 na revista Traité de Psychologie, de
impossíveis, aponta para a resposta dos autores do século XX frente à sensação de George Dumas, presenteada a Bataille em 1925 pelo psicanalista francês Adrian
derrota encaminhada pela cena histórica: “As guerras e suas assustadoras conse- Borel35. As quatro fotografias da série retratam o lingchi36 – a tortura dos cem
quências acabaram por precipitar esses projetos, obrigando o pensamento a en-
frentar os temas da finitude, da dor, do genocídio, da tortura, da mutilação, enfim 34 É Karel Kosik, no ensaio “O Século de Grete Samsa: sobre a possibilidade ou a im-
do aniquilamento da vida” (Moraes, 2002, p.88). Moraes completa: “Num mundo possibilidade do trágico no nosso tempo” (1996), quem relaciona a personagem kafkiana
com uma espécie de Antígona do século XX.
em que a vida sofria tal ordem de ameaças, não havia outra forma de afirmar a
35 Com quem Bataille se analisava por indicação de Michel Leiris.
existência sensível senão recolocando o corpo humano em questão” (Ibid, p.88).
36 Embora Bataille se refira ao lingchi como a tortura dos “cem pedaços”, na maioria das
É interessante que Hilda Hilst escolha um animal mítico para tratar desta fontes que encontramos, o lingchi é referido como a tortura dos “mil cortes”. O lingchi
metamorfose. Na Metamorfose (1915) de Franz Kafka, o caixeiro-viajante Gregor teria surgido na China durante a dinastia Tang (de 618 a 907) e tido curso até 1905, no
Samsa, após uma noite mal dormida, transforma-se em um inseto monstruoso. É final da dinastia Qing (de 1644 a 1912), quando então foi banido. A punição começava
com prender o castigado em um tronco e ir fatiando sua pele pouco a pouco. A ideia
era aplicar a maior quantidade de cortes possível antes de a pessoa perder a consciência
32 “Espera um pouco, minha cara, depois da ‘Metamorfose’ você não pode escrever ou sucumbir aos ferimentos. Em geral os cortes começavam pelo peito, onde a pele e os
coisas assim. Ora bolas, mas eu sou unicórnio, é preciso dizer a verdade, eu sou um uni- músculos eram meticulosamente removidos até que as costelas ficassem praticamente
córnio que está fechado em um apartamento”. (Hilst, 2003, p.188) expostas. Depois, prosseguia-se para os braços e, por último, o foco passava a ser as
33 Em A parte maldita, Bataille diz: “O aspecto da vida humana muda a partir do mo- coxas do executado. Fou Tchou Li teria sido o último homem a ser executado por essa
mento em que ela deixa de seguir ao sabor da fantasia para responder às necessidades técnica, que teria sido abolida duas semanas depois da sua execução. (As informações
de empreendimentos que asseguram a proliferação de determinadas obras. Do mesmo contidas nesta nota foram retiradas sobretudo de dois sites eletrônicos. Executed Today:
modo, a face de um homem muda se ele passa da turbulência da noite para os negócios https://bit.ly/2xNGi4V e o site Mega Curioso: https://bit.ly/2Ji2RDW , ambos acessa-
sérios da manhã” (Bataille, 2013, p.63). dos em 20/04/2017).

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jo que acompanha de perto como procissão. O espetáculo de que se tem registro
assemelha-se ao sacrifício religioso das sociedades primitivas, em que se permite
que impulsos violentos sejam manifestados de forma ritualística, com a finalida-
de da união do humano com uma divindade.39
Além disso, ao horror e ao sacrifício estará associado o erotismo, na me-
dida em que induzem a uma reconexão temporária com as forças de destruição.
Bataille aponta: “O meu propósito é ilustrar aqui um elo fundamental entre o
êxtase religioso e o erotismo — em especial o sadismo. Do mais inconfessável
ao mais elevado. Este livro não diz respeito a uma experiência limitada como é a
de todos os homens” (Bataille, 1984, p.46). Aquilo para que o olhar é atraído –
atração sádica – entra em desacordo com a experiência humana controlada para
confrontar-se com o horror extremo e o êxtase divino.
As imagens do lingchi indicam uma espécie de resumo da visão estética ba-
tailliana, relacionada ao movimento paradoxal e vertiginoso de atração e repulsão,
O Suplício Chinês – A execução de Fou Chou Li.
e às ideias de transgressão, erotismo e sagrado40. Robert Buch, no ensaio “Elogio
da crueldade: Bataille, Kafka e o ‘suplício chinês’”41, aponta para o subproduto
pedaços – documentando o esquartejamento do jovem chinês Fou Tchou Li,
da dialética da transgressão: “O propósito de proibições relativas ao sagrado não
assassino do príncipe Ao-Han-Quan, no início do século XX, em Pequim.
Observa-se, por parte de Bataille, um notável interesse visual na investi- é restringir os impulsos violentos suscetíveis ao impulso dessas forças, mas antes
gação da realidade sensível, como aparece em vários momentos de sua obra. E, fornecer um mecanismo para exprimi-los” (Buch, 2014, p.224).
embora a série de fotografias tenha sido reproduzida apenas em 1961 com um
comentário reduzido frente à importância declarada do objeto37, a ideia do suplí- 39 Bataille chama atenção para o elemento extático da imagem, dizendo: “Insisto em
cio, da laceração e do horror atravessam o pensamento batailliano desde a obses- dizer que o condenado tomava uma dose de ópio para prolongar o suplício. Dumas de-
tém-se no ar extático das feições da vítima. É bem certo, acrescento eu, que um inegável
são disparada em 1925. Bataille comenta o impacto desta visão: “Nunca deixei
ar de êxtase soma alguma angústia à imagem fotográfica, e está em parte, pelo menos,
de sentir-me obcecado por essa imagem da dor ao mesmo tempo extática(?) e
ligado ao ópio” (Bataille, 1984, p.46).
intolerável” (Bataille, 1984, p.45)38.
40 Susan Sontag, no livro Diante da dor dos outros (2003), realiza uma breve reflexão a res-
O corpo retalhado de Fou Tchou Li, um rasgo na altura do peito, suas peito da visão do sofrimento pelos olhos modernos: “Bataille não diz que obtém prazer
entranhas que saltam para fora, a ausência dos braços que foram arrancados, a com a visão desse martírio. Mas diz que pode imaginar o sofrimento extremo como algo
perna sendo cortada na altura do joelho pelo carrasco – um corpo desmontado, mais do que o mero sofrimento, como uma espécie de transfiguração. Trata-se de uma
indiscernível, despossuído, em tudo destituído de sua individualidade – e o corte- visão do sofrimento, da dor dos outros, que está enraizada no pensamento religioso e
vincula a dor ao sacrifício, o sacrifício à exaltação — uma visão que não poderia ser mais
alheia à sensibilidade moderna, que encara o sofrimento como um erro, um acidente ou
37 No livro, ao suplício chinês é dedicada uma página e meia. um crime. Algo a ser corrigido. Algo a ser recusado. Algo que faz a pessoa sentir-se im-
38 Lemos estas passagens na edição portuguesa, número 12 da série K, da editora Pro- potente.” (Sontag, 2003, p.266-267).
dução & etc, de Lisboa, tradução de Aníbal Fernandes. 41 Acessado em (16/06/2017): https://bit.ly/2sKkCAQ .

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Para Bataille, as vivências marginais, as experiências-limite que ameaçam a de extremidade, questionamento de estruturas, deslocamento de sentidos. Rimos
linguagem da razão e dos enlaces lógicos, meio supremo de proteção e defesa também daquilo que nos causa o maior constrangimento.
do sujeito, constituíram uma via exploratória privilegiada para o seu pensa- Hilst evoca sentimentos extremos e, ao fazê-lo, aponta para a potência do
mento. De modo que a angústia, o sofrimento, mas também o riso, a infância, desespero no sentimento de vida. O arrebatamento será detonador tanto daquilo
geram momentos importantes de revelação. O interesse de Bataille parece vol- que desloca o ser do seu próprio ser, colocando-o às margens de si, como pos-
tar-se justamente para as figuras que viveram atraídas pela imagem do horror, sibilidade de contato com a inteireza do ser, ainda que apenas em instantes de
por sua energia tórrida, sua luz ofuscante, personagens trágicas que tiveram a acesso, assim como um raio de luz em uma noite escura, uma dor de dente lan-
existência marcada pela visão rascante do intolerável, chamadas ao abjeto, ao cinante, um riso louco, uma intensa atividade sexual42. Atravessamos a literatura
obsceno. Aqueles para quem a consciência não levou a uma frieza das paixões, de Hilda Hilst em constante estado de clímax, de tal forma que pouco resta do
a um prazer temperado, mas, no limite do seu contorno, experimentaram o enredo, da constituição das personagens, dos acontecimentos, quase tudo é sus-
extremo do possível, em toda a sua sordidez e angústia, de modo tal que seu pensão do que restou do rompimento dos pactos sociais, do atravessamento dos
prazer violento foi considerado, por vezes, patológico. Van Gogh, Nietzsche, limites, quase tudo é culminância, ápice, tensão, engasgo, extintas as fronteiras
Marquês de Sade, Simone, Edwarda, Troppmann, Éponime: uma amostra de apaziguadoras da existência humana.
párias de determinada ordem vigente, mas também redentores, mártires, isso O desconforto que desperta deve ser levado em conta como um fator cen-
porque sofreram as consequências da transgressão que empreenderam, apre- tral destas obras: o que está em jogo não é certamente o apaziguamento dos
sentando o resíduo desta atividade como uma forma de arte, sem deixar de ânimos, a inteligibilidade, uma compreensão fortificante, um ordenamento dis-
exibir toda a sua violência disparada. ciplinar. O desmerecimento dessas questões, aliás, é constitutivo do movimento
Deparamo-nos com aqueles que tiveram de encarar essa imagem tenebro- de Hilst e Bataille. O acesso à verdade se dará por vias outras que não o conhe-
sa sem descanso, sofredores e delinquentes, monstros e mártires, sacrificantes e cimento, a coerência, desviando essas atribuições e sensações para o corpo, e
sacrificados. Bataille projeta um encontro ficcional de um famoso par de olhos privilegiando os órgãos considerados mais baixos como fio de ligação para um
com a imagem assombrosa do corpo de Fou Tchou Li em suplício: “Embora não sentido oculto, aquele que fora abafado pelos empreendimentos da razão. Assim,
assistindo ao suplicio real, que soube sonhar mas lhe não foi acessível, imagino o o próprio estatuto de escrita e de leitura estará carregado de corporalidade.
partido que teria tirado um Marquês de Sade desta imagem: imagem que o dito A experiência de contato com este pensamento – a nossa experiência
marquês nunca deixou de ter à frente dos olhos, de uma forma ou de outra.” – resultará em um desconforto extremamente físico: talvez esse corpo-leitor
(Bataille, 1984, p.45). exposto levante da cadeira, curve-se, capengue, para, por fim, tombar agoni-
A imagem do horror. Colocamos Hilda Hilst entre aqueles que viveram zante. Bataille e Hilda Hilst escolhem a violência, e nos atacam com seu po-
assombrados por essa visão, espetáculo fascinante e repelente, sol ofuscante do der destruidor: nada é sutil, transigente, agradável, tudo excede, jorra, dilacera.
meio-dia. Seus personagens também devem participar deste rol: A senhora D., Somos ética e esteticamente violados: estará aí nosso esquartejamento, nosso
Lori Lamby, Crasso, Clódia, Lucas, Lucius Kod, Tadeu, Matamoros, Axel. Per- suplício, ser e linguagem desmembrados. Mas será também essa nossa fonte de
sonagem hilstiano algum, aliás, deve ficar de fora desta lista, dado o caráter de-
sajustado, a sensação de desconforto, a suspensão em que se encontram, a busca 42 Em entrevista a Léo Gilson publicada pelo O Estado de S. Paulo, em 16 de março de
1980, Hilda Hilst diz: “O meu trabalho é aquele instante, um segundo antes da flecha
incessante que empreendem, a dor, a depressão, o abismo com o qual flertam, a
ser lançada, a tensão do arco, a extrema tensão, o sol incidindo no instante do corte, é a
tragicidade que emprestam às situações. E se há também muito riso e graça nas rapidez de uma navalha que com um golpe lancinante, fulminante, corta o teu pescoço.”
narrativas hilstianas, não devemos descartar esta modalidade como dispositivo (Diniz, 2013, p.63).

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prazer, o que nos conduz para a exterioridade, na fusão com todos os objetos,
no extraordinário fluxo de conexões. Será esse nosso sol: tão poderoso e tão
cruel àqueles que lhe estarão voltados.
Fou Tchou Li é um sol eminente. A senhora D., nosso sol de meio-dia. Ba-
taille nos aquece e queima, Hilst nos dá a ver cegando-nos. Haverá aqueles que
desviarão os olhos, avessos à tal violência. Não se trata, é claro, de um campo de OS MORTAIS
visão ou de uma disposição ocular literal: o nobre e aristocrata Marquês de Sade
não chegou a ver as fotos de Fou Tchou Li, mas é como se tivesse vivido diante
destas imagens; Emily Brontë passou a quase totalidade de seus 30 anos de vida Mas não é a cada dia que morre um irmão.
em um presbitério em Yorkshire, mas isso não a impediu de ter o profundo sen- Lázaro, Hilda Hilst.
timento do mal, de acordo com Bataille. O sol fixado violenta e induz a uma ex-
creção: “Em termos práticos o Sol fixado identifica-se com a ejaculação mental,
com a espuma nos lábios e a crise de epilepsia.” (Bataille, 2007, p.83) Irmão de Marta e Maria, Lázaro de Betânia teve dentre os homens o destino
No ensaio “O sol apodrecido”, Bataille cita o mito de Ícaro para indicar o de quase nenhum outro: o de morrer duas vezes. Sepultado havia quatro dias no
caráter ambíguo do sol: “o summum da elevação se confunde, na prática, com uma interior de uma rocha, ele é ressuscitado por seu amigo Jesus, quando ordena:
queda súbita e de inaudita violência.” E Bataille continua, indicando a divisão do “Lázaro, vem para fora!”. Subverte-se, assim, a passagem bíblica que diz: “aos
sol em dois neste mito: “o que brilhava no momento da elevação de Ícaro e o homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disso, o juízo” (He-
que fundiu a cera quando Ícaro se aproximou demasiado dele, determinando a breus: 9:27). Lázaro é uma derivação grega do nome hebraico “Elzeário”, que
defecção e a queda aparatosa.” (Ibid, p. 84). significa “Deus ajudou”.
Para escapar do labirinto feito prisão, Dédalo, o pai de Ícaro, confecciona Hilda Hilst dedicou um conto homônimo1 a essa personagem bíblica, o
asas a partir das penas caídas dos pássaros e coladas com cera de abelha. Enge- terceiro de seu primeiro livro de prosa Fluxo-floema (1970). Lázaro é o narrador
nhoso trabalhador manual, Dédalo projeta asas perfeitas como as de uma ave. em primeira pessoa que nos relata a passagem da vida à morte, com a acuidade de
Antes da fuga, faz algumas recomendações ao filho: cuidar para não subir tão quem a experienciou: “Primeiro um golpe seco na altura do coração. O espanto
alto, que o calor do sol derreta a cera das asas, nem tão baixo, que a umidade de sentir esse golpe. Os olhos se abrem, a cabeça vira para o lado, tenta erguer-se
do oceano faça as penas pesarem demasiado. Ora, se tudo é uma questão de e dá tempo de perceber um prato de tâmaras na mesa comprida da outra sala.
medida, por que, fascinados pela possibilidade de voar, parecemos convocados Dá tempo de pensar: alguém que não eu vai comer essas tâmaras” (Hilst, 2003,
à desmesura? “Ícaro, Ícaro, onde você está?”, grita Dédalo, quando percebe que p.112). E então a vida em seus últimos momentos é descrita até a visão final:
o filho não o acompanha mais. Sabemos do desfecho da transgressão de Ícaro, “Ainda vejo a cabeça de Maria na beira da cama. A cabeça cheia de cabelos escuros na
apaixonado pelos raios solares. Ainda assim, o sol nos convida a fixá-lo, a ousar
ir ao seu encontro. 1 É interessante que este conto seja dedicado ao seu amigo Caio Fernando Abreu, cujo
espírito Hilst relata ter visto no dia de sua morte: “Ele morreu à uma hora e veio se des-
pedir às dez da noite. A gente tinha combinado isso. Ele veio com o cachecol que tinha
uma fita vermelha. [...] o vermelho ia significar que estava tudo bem”, mas em seguida
Hilst se queixa da repercussão de suas visões na boca dos outros: “Falam: A Hilda é uma
bêbada, uma alcoólatra, está sempre louca” (Diniz, 2013, p. 204).

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beira da cama. Foi a última coisa que vi: a cabeça de Maria” (Ibid, p.112). Lázaro daqueles que fascina, o cadáver é a imagem de seu destino. Ele testemunha uma
não está mais morrendo, Lázaro está morto. violência que não apenas destrói o homem, mas que destruirá todos os homens”
Há certo tom de trivialidade nessa cena, pois, se não é a cada dia que morre (Ibid, p.68).
um irmão, milhões de irmãos morrem a cada dia, a face cotidiana e ordinária Bataille indica ainda que o nascimento deste interdito teria coincidido com
da morte. Lázaro conta-nos do encontro com seu outro eu, o duplo de Lázaro o nascimento do trabalho, na medida em que, aliado à razão, o trabalho regula a
pós-morte: Rouah, “alguém feito de mim mesmo e de um Outro” (Ibid, p.114). violência de que a morte é originária e a desordem que a morte instaura. O traba-
Rouah é um corpo estranho, um ser sexuado (de sexo peludo e volumoso), obs- lho refreia a violência do desejo e sua solicitação imediata e, por sua vez, solicita
ceno e repulsivo, e Lázaro lhe implora: “irmão gêmeo Rouah, eu preciso voltar, ganhos no tempo ulterior. Assim, controla-se a desordem da morte a fim de or-
eu devo voltar.” (Ibid, 121). E então temos diante de nós um ser ressuscitado, dená-la nos limites do que a razão acolhe, instaurando o interdito e seus dispositi-
de volta ao mundo dos vivos após ter conhecido a morte, ali onde “vê-se em vos de atração e recusa: “Aquilo que, com o trabalho, esse homem reconheceu de
profundidade” (Ibid, p.113). Morrer, no conto, é encontrar-se com seu outro eu, pavoroso e transformador – e mesmo de maravilhoso – é a morte”. (Ibid, p.67)
com sua alteridade, defrontar-se com seu próprio corpo, já outro. O ser pessoal A morte, signo da ruína do mundo, escancara a violência que esse mundo
é destruído, e a morte é uma revelação. aplica-se em encobrir. Reside aí, portanto, uma ambiguidade: se a consciência
Além da dimensão carnal e espiritual, há a dimensão ritual da morte: o da morte é uma das pedras fundamentais deste mundo, a morte é igualmente
que fazer com esse corpo, como encaminhá-lo à morte diante dos vivos? Mar- recusada, na medida em que sua violência ameaça nossa “civilização suavizada”
ta, em sua disposição implacável, soube fazê-lo muito bem, “ela soube fazer a (Ibid, p.70). Assim, os rituais surgiriam a fim de suavizar o horror e o fascínio
minha morte, ela soube colocar tudo, como se coloca tudo no corpo de alguém que tal instância provoca, indicando uma medida possível para o que é de caráter
que morre”. Lázaro elenca os procedimentos cerimoniosos: “Primeiro ela tirou impossível, para o que é, sem dissimulação, impossível, para nós, sustentar. Isso
a minha roupa. E tirar a roupa de um morto é colocar outra. Depois lavou-me. porque, ainda que seja atraído pelo abismo da continuidade – fascinante e verti-
Depois escolheu as essências” (Ibid, p.111). O corpo de Lázaro é enfaixado e, ginoso – o ser apega-se firmemente à descontinuidade que o faz durar, mas essa
por fim, colocado em uma gruta, “buraco fundo”. é uma situação perecível.
Georges Bataille identifica, em O erotismo, o ato da inumação e o costume da A violência será o princípio dos movimentos de dissolução dos limites
sepultura como testemunho de um interdito concernente aos mortos, cujo sur- fundadores do mundo, de destruição da descontinuidade constitutiva do ser, de
gimento coincide com a desaparição do Homem de Neandertal (o Homo faber)2, no que a morte é a experiência radical, e o erotismo, na fusão dos corpos e no
fim do Paleolítico Médio, e a vinda do Homo Sapiens, o homem semelhante a nós. desencadeamento de impulsos destrutivos, uma de suas manifestações. Bataille
Trata-se de assinalar uma diferença entre o cadáver humano e os outros objetos, observa: “O erotismo abre para a morte. A morte abre para a negação da dura-
e a diferença do homem em relação ao animal: “o que chamamos de morte é em ção individual. Poderíamos, sem violência interior, assumir uma ligação que nos
primeiro lugar a consciência que temos dela. Percebemos a passagem do estado conduz ao limite de todo o possível?” (Ibid, p.47). O erotismo será um face a face
vivo ao cadáver, ou seja, ao objeto angustiante que é para o homem o cadáver com a morte e desvelará o seu segredo: a abertura à continuidade ininteligível,
de outro homem” (Bataille, 2014, p.68). O horror aos mortos é decorrente da incognoscível... intragável.
evidência da violência intrínseca à morte e de seu contágio irrestrito e irrecuperá- Na introdução ao Erotismo, Bataille cita duas vezes a frase do Marques de
vel, além disso, da consciência adquirida de sua podridão porvir: “Para cada um Sade “Não há melhor meio de se familiarizar com a morte do que aliá-la a uma
ideia libertina” (Sade apud Bataille, 2014, p. 36, 47), que marca com exatidão o
2 Que viveu 100 mil anos antes de nós. princípio que liga morte e excitação sexual. A experiência da sexualidade em Sade

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se dará sob o signo da transgressão, que terá na violência, no excesso e na desor- encontrado no coração das paixões humanas, onde coexistem desencadeamen-
dem condutores de extravasamento e êxtase. Os objetos do desejo conduzirão tos, a princípio, inconciliáveis. Sade será, assim, o modelo exemplar da profana-
ao suplício da morte, apontando para o que Bataille destacou como a verdade ção sem Deus.
da obra sadiana: “que traz a má nova de um acordo dos vivos com aquilo que os Também o sagrado apresentará semelhante movimento de dissolução, ten-
mata, do Bem com o Mal, e se poderia dizer: do grito mais forte com o silêncio” do de igual forma a violência como pedra de toque, como aponta Bataille: “O
(Bataille, 2015, p.104). Assim, deparamo-nos com uma linguagem que excede a sagrado é justamente a continuidade do ser revelado aos que fixam sua atenção,
possibilidade de dizer, provocando um esgarçamento do discurso, com momen- num rito solene, sobre a morte de um ser descontínuo” (Ibid, p.45), indicando a
tos em que horror e felicidade coincidem, elevando o sentimento ao seu clímax, imolação da vítima no sacrifício como o momento de ruptura da descontinuida-
em que o ser é dado no seu ultrapassamento, para além de suas limitações. de. No mundo moderno, sustenta Bataille, o sagrado dos sacrifícios primitivos
O próprio assassinato é evocado com atrativo e volúpia, como inflamador será o divino das religiões. Trata-se, portanto, de situações em que o ser descon-
de paixões capaz de realizar um desencadeamento radical nas ordens do trabalho tínuo precipita na continuidade do ser.
e da decência. Torturar, humilhar, matar? Tudo é possível aos olhos de Sade, Erotismo, sagrado, morte: movimentos de perturbação, desorganização,
desde que resulte em prazer. O interdito não será capaz de sufocar aquilo que despossessão, instaurando o espaço que Bataille chamou de “encruzilhada de
refreia, podendo, inclusive, ser seu multiplicador: o tamanho dos limites impos- violências fundamentais” (Ibid, p.47). Ora, Lázaro atravessa tais instâncias e nar-
tos ao desejo será o tamanho da libertinagem disparada. O ser transgressor do ra essa travessia como quem falasse de um outro, como quem visse de fora,
interdito será atingido por uma maldição, no entanto, “a maldição é a condição embora essa exterioridade lhe diga respeito. Aponta-se, assim, para o intervalo
de sua glória [...] como se o interdito nunca fosse mais do que o meio de atribuir uma gloriosa aberto entre dois pontos do espectro, para a ferida aberta da dilaceração, a densi-
maldição àquilo que ele rejeita” (Ibid, p.72). Assim, haverá uma recompensa libidinal dade da linha de transgressão: “O meu corpo foi depositado no seu lugar. Estou
ao ser maldito. acima dele, a uma pequena distância. Pairo sobre ele” (Hilst, 2003, p.116). Desse
Em sua obra, Sade avança sobre a ideia da morte de Deus. Dessa questão, encontro dissociado, ele diz: “Ele é alguém feito de mim mesmo e de um Outro”,
Sade faz o ponto de partida de toda a sua reflexão, de toda a sua liberdade. Sem e em seguida diz: “O outro, eu não lhes saberia dizer o nome. O Outro não tem
Deus, o homem não é mais o ser à sua imagem e semelhança e, portanto, não nome. Talvez tenha, mas é impossível pronunciá-Lo” (Ibid, p.114). Assim, ainda
ocupa mais o topo da hierarquia, e será, assim, apenas um animal entre os outros. que seja possível pressenti-lo, ainda que Ele seja também um “si próprio”, essa
De modo que pode-se afirmar: “De seu desejo incontrolável, Sade chega a con- propriedade lhe é exterior, e não será possível fazê-lo palavra, organizá-lo na
clusões próximas às das Luzes, exceto que ele também expressa suas consequ- disposição da linguagem, apontando para sua insuficiência abissal. Em um ato de
ências mais sombrias: se o homem é a natureza, a violência da natureza é natural falsificação, será preciso rebatizá-lo, portanto: Rouah.
para ele, e a crueldade, o fim, a morte, portanto, também lhe são naturais, no que Ele – o Outro – é com maiúscula que se escreve, indicando um ser sobera-
permitem que o ciclo de vida se perpetue.”3 Logo, para Sade o sublime será no e transcendental. Mas é interessante a ruptura que, ao longo do conto, se dá
em relação a essa instância. Em sua travessia, Lázaro aporta entre os monges do
3 Este trecho foi retirado do artigo “Fin du XVIII siécle – La Révolution libère les último convento sobre a terra, e só então fica a par do cruel destino de Jesus, a
pulsions destructrices” (pág 17-20), de Karim Ressouni-Demigneux, para a revista Sade partir de uma imagem na parede, da imagem de todas as paredes da casa: o filho
– Attaquer le soleil, publicada pelo Musée d’Orsay por ocasião da exposição homônima
ocorrida neste museu, de 14 de outubro de 2014 a 25 de janeiro de 2015. Neste artigo, seu
autor ressalta a cena histórica pré-Revolução Francesa como disparadora da obra sadia- sobre Sade em A literatura e o mal, a Tomada da Bastilha, as prisões de Sade que somam
na, portadora da violência revolucionária. Para Georges Bataille, no artigo que escreveu quase 30 anos de encarceramento, ligam a vida e a obra de Sade “de maneira estranha”.

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de Deus crucificado com uma coroa de espinhos na cabeça. Mas a novidade é além: esse espaço – essa experiência – só será de fato compreendido uma vez
ainda mais drástica: não importa o nome que se lhe queira dar – Jesus, Rouah, rasgado e atravessado, no momento mesmo de sua dilaceração. Isto é, a experi-
Azezel, Keteb, Alukah – o que se sabe agora é que ele não existe, que ele nunca ência se dará no momento em que o sujeito vai ao encontro do seu limite, em que
existiu: “Escuta, filhinho, Lázaro meu filhinho, o Jesus de quem falas está morto o chifre do touro perfura a órbita do toureador, no instante em que os corpos
há muito tempo, e para os homens de agora nunca ressuscitou, nem está em lugar atingem o gozo frívolo, em que o ser se vê, como Lázaro, remetido à própria
algum nem... não te aborreças, mas... sabemos que Ele... que Ele nunca existiu, morte. De modo que, na experiência moderna, o sujeito não será formado ou
Ele foi apenas uma ideia, muito louvável até, mas... Ele foi apenas uma tentativa protegido, porém supliciado e destruído. E assim a morte de Deus será também
de...” (Ibid, p.137). a morte do sujeito.
Sem Ele, a morte ganha uma tonalidade bastante mais dramática, e até mes- O encontro entre os vivos e os mortos se dá na maior parte da escrita fic-
mo os monges a receiam: “sabendo toda a verdade a morte fica uma coisa bem cional de Bataille, sobretudo na chave da excitação sexual. Em História do olho,
triste, apesar de que a vida também não tem muito interesse, mas, enfim, antes, dá-se a seguinte cena de perversão: “Voltamos ao quarto, ela tinha se enforcado
antes era belo morrer porque poderíamos vê-Lo, tocá-Lo, amá-Lo por toda a dentro do armário. Cortei a corda, ela estava bem morta. Nós a colocamos em
eternidade, mas agora... a morte não é nada”. (Ibid, p.138). Assim, a inexistência cima do tapete. Simone me viu de pau duro e me bateu uma punheta; deitamos
de Deus aponta aqui também para a inexistência da morte, uma vez que seu ima- no chão e eu a fodi ao lado do cadáver” (Bataille, 2001, p.53). Isso para não falar
ginário finamente elaborado tomba quando seu principal sustentáculo é varrido da passagem em que o narrador, Simone e Sir Edmond atacam sexualmente um
da cena. E logo a inexistência de Deus e da morte instauram o lugar de uma nova padre até a morte, em uma cena com toques de necrofilia: “O esperma do morto
existência, doravante encarada sob essa ausência, vivida no espaço desse vazio escorrendo pelas coxas. Deitei-me para fodê-la também. Estava paralisado. Um
projetado. excesso de amor e a morte do miserável tinham me esgotado. Nunca fiquei tão
Mais uma vez a morte de Deus: Michel Foucault vai tratar deste tema em satisfeito”; e em seguida: “A moça teve vontade de contemplar a sua obra e me
Prefácio à transgressão, ensaio publicado na revista Critique em homenagem ao seu afastou para se levantar. Montou outra vez, de cu pelado, em cima do cadáver
fundador, George Bataille, em 1963, um ano após a sua morte. Nesse texto, a pelado” (Bataille, 2001, p.73).
experiência da sexualidade, pensada sob o signo do excesso e da transgressão, de- Também em Hilda Hilst a morte e a excitação sexual poderão apresentar
lineará o que se constitui como a experiência moderna: aquela da morte de Deus. ligações profundas. Em Contos d’escárnio, textos grotescos, segundo livro da trilogia
Suprimido o limite do ilimitado, retirada da linguagem a palavra que ultrapassa erótica, a cena de abertura já evoca a dobradinha sexo-morte na vida do ser que
todas as palavras, o vazio deixado em sua esteira será o espaço do reencontro nasce, se reproduz e morre: o pai de Crasso morre em um bordel em cima de
contínuo do limite com a sua transgressão. Assim, afirma-se a interdependência uma puta peituda e rebolante, e mais adiante na narrativa Crasso se pergunta em
entre a fronteira e a sua ultrapassagem, sua cumplicidade intrínseca e inextinguí- retrospecto sobre a repercussão desta ocorrência em sua vida: “Será que porque
vel, seu tratado eterno de convivência. o pai morreu em cima de uma puta eu ia ficar em cima das mulheres o tempo
Foucault discorre sobre isso: “A transgressão é um gesto relativo ao limite; todo?” (Hilst, 2014, p.77). Por sua vez o preceptor de Crasso, o tio Vlad, tem
é aí, na tênue espessura da linha, que se manifesta o fulgor de sua passagem, mas também uma morte que não reclama decência, que não poupa sua vítima de
talvez também sua trajetória na totalidade, sua própria origem. A linha que ela embaraços sexuais: “Tio Vlad morreu quando estava sendo chupado por um co-
cruza poderia ser também todo o seu espaço.” (Foucault, 2001, p.30). Assim, o roinha lá na Grota do Touro, um lugarejo muito longe daqui” (Ibid, p.72). Bocó,
espaço da experiência moderna será o do encontro do limite com a sua violação, um cara de boca fofa, foi quem espalhou a notícia: “Seu Vlad tá morto com a
com toda a violência que este gesto deve implicar. Mas a ideia lança-se ainda minhoca pra fora lá na Gota do Touro” (Ibid, p.74). Em uma carta à Clódia, sua

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amante, pintora de vaginas e pintos, Crasso expõe sua vontade de proteger o
pensamento de ideias deletérias: “Saber da própria morte, por exemplo, é uma
maçada. A profusão de vermes e de asas que espoucarão no meu corpo-montu-
ro”. Então Crasso propõe a criação de uma geringonça que desse conta disso:
“A morte arrancada do cérebro. Olharíamos o morto e seria como se olhásse-
mos uma travessa de alfaces. Comer o morto seria até melhor do que sabê-lo”
(Hilst, 2014, p.107).
Negar a morte. Sabemos que para Hilda Hilst o livro seminal de Ernest
Becker – A negação da morte (1973) – teve uma importância fundamental, e ela
não cansou de citá-lo e exaltar a genialidade do escritor em diversas entrevistas
que deu. Em um encontro que Nelly Novaes Coelho organizou4, uma das crí-
ticas literárias contemporâneas à autora que mais prestou atenção em sua obra,
Hilda Hilst diz: “Há um homem de que eu gosto muito, que parece ter vindo de
uma outra galáxia. Chama-se Ernest Becker. Escreveu um livro chamado A ne-
gação da morte, que considero um dos maiores livros escritos nestas décadas. Ele
diz que o homem é o animal mais devastador que existe sobre a terra, porque
deseja um destino incompatível com o animal, que é o que ele é: um animal”
(Diniz, 2013, p.114).
São tantos os elogios conferidos a Becker que o leitor de Hilda Hilst fica
interessado em conhecer este autor e saber de seu pensamento sobre a morte e
Em página de agenda, HH expressa sua admiração por Ernest Becker.
o ser humano que vive destinado a esta fatalidade. Na página de 22 de janeiro de
1979 de uma agenda, Hilst escreve sobre o impacto desta leitura: “Releio Ernest
Becker. Incrível. Mas se toda essa minha experiência é a dimensão depois da é a principal e mais determinante inquietação que move o ser humano, que o
morte, então é preciso pensar tudo de novo. Por que o consciente não registra o faz avançar em suas atividades, mas que é ao mesmo tempo fonte de suas mais
espaço-tempo morte como o inconsciente? O inconsciente se pensa imortal? Por profundas angústias. A luta contra a morte estará, portanto, no cerne da vida
quê?” E depois Hilst faz uma pequena lista de “irmãos”: Franz Kafka, Ernest humana. Becker diz:
Becker, Samuel Beckett, Nikos Kazantzakis, Carl Gustav Jung, Hermann Broch.
No livro, considerado pelo próprio Becker como sua primeira obra madu- A perspectiva da morte, disse o Dr. Johnson, impõe uma concentração
ra, apoiado em Freud, Jung e Otto Rank, ele apresenta sua tese de que a morte admirável da mente. A tese principal deste livro é que ela faz muito mais
do que isso: a ideia de morte, o temor a ela, persegue o animal humano
4 Coelho, Nelly Novaes. “Um diálogo com Hilda Hilst”. In: Coelho, N.N. et al. Feminino como nenhuma outra coisa: ela é um dos maiores incentivos da atividade
singular: a participação da mulher na literatura brasileira contemporânea. São Paulo: GDR; Rio
humana – atividade em grande parte destinada a evitar a fatalidade
Claro, SP: Arquivo Municipal, 1989. Esta entrevista é resultado da participação de Hilda
da morte, a vencê-la negando de algum modo ser ela o destino final do
Hilst no curso homônimo ao título do livro, promovido no primeiro semestre de 1987
pelo Arquivo Público e Histórico do Município de Rio Claro – SP. homem. (Becker, 1976, p.9)

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Becker aponta para a essência paradoxal do homem: o fato de ele ser meio transformado em filosofia, poesia5, arte. Aqui, ficamos com um trecho do livro
animal, meio simbólico. O homem possui uma identidade simbólica que o des- A barca da morte, de D.H. Lawrence, autor que, tal como Hilda Hilst e Georges
taca do restante da natureza, ele é peculiar e diferente dos outros animais, no en- Bataille, tocou em feridas profundas do humano. Se será vão tentar evitar o que
tanto, ao mesmo tempo, “o homem é um verme e comida para verme” (Ibid, p. vem ao nosso encontro, será preciso, então, construir nossa barca:
45). Becker assinala então que o homem está bipartido: sobressai-se na natureza
com originalidade e soberania, mas a qualquer dia estará “sob uns poucos palmos 7
Morrendo, estamos morrendo, agora só nos resta
de terra a fim de, cega e estupidamente, apodrecer e desaparecer para sempre”
aceitar a morte, e construir a barca
(Ibid, p.45). Eis a nossa mais terrível consciência, aquela da qual tentamos nos
da morte que nos leve a alma na mais longa viagem.
afastar cotidianamente, mas que nos sopra, a cada dia, seu hálito quente a alardear
sua presença.
Uma pequena barca, com remos e comida
Interessante que este paradoxo fundamental do homem o faça oscilar entre
e pequenos pratos, e todo o apetrechamento
o que há de mais elevado e o que há de mais baixo em matéria humana. Como pronto e necessário à alma de partida.
Becker observa, a consciência desenvolvida do homem o faz considerar-se um
pequeno deus na natureza, ele pensa estar reservado a um destino heroico. Ao Agora, lança à água a pequena barca, agora, que o corpo morre
mesmo tempo, Becker dedica uma extensa reflexão a respeito da corporalidade e a vida parte, lança a alma frágil
do homem e de um orifício específico que o faz tombar de toda e qualquer pre- na frágil barca da coragem, na arca da fé,
tensão de majestade, em passagens que se assemelham em muito a trechos de com os mantimentos, as pequenas caçarolas
textos hilstianos: “O mais estranho e degradante de tudo é a constatação de que e as mudas de roupas;
o corpo tem, localizado na extremidade inferior, atrás e fora de visão, um orifício
5 No ensaio Georges Bataille e as formações do abjeto, Marcelo Jacques de Moraes discorre a
do qual saem cheiros fétidos”(Ibid, p.50). Em outro trecho: “O ânus e seu in- respeito dos métodos de excreção e de apropriação do dejeto, do seu processo de homo-
compreensível e repulsivo produto representam não só determinismo e servidão geneização ou da circulação de sua heterogeneidade. Segundo Jacques de Moraes, para
Bataille a filosofia e a poesia seriam modalidades de apropriação do excremento, ao ope-
físicos como o destino de tudo o que é físico: decadência e morte” (Ibid, 51). E,
rar um processo de sublimação, a serviço de “construtos civilizatórios”. A filosofia rea-
para completar, ele faz uma citação filosófica: “Como Montaigne disse, no mais lizaria uma apropriação intelectual do dejeto, reduzindo sua “resistência concreta a uma
alto trono do mundo o homem se senta sobre o traseiro” (Ibid, p.50). dimensão conceitual abstrata”. Sobre a poesia, reproduzimos todo trecho da reflexão de
Jacques de Moraes: “A poesia, a seu turno, leva frequentemente, em sua autonomia, à
Não podemos negar esse orifício, embora asqueroso e fétido, ele está ali constituição de uma ‘homogeneidade estética’; pois ao converter a realidade vulgar em
e tem uma função. Ele é nosso canal de excreção, nossa vergonha erógena, o realidade superior, o grotesco em sublime, o informe em forma, o abjeto em ideia, dis-
pondo, assim, o dejeto como forma acabada – e, portanto como ideia pronta para o con-
sol vital que nos queima. A morte também, embora negada, embora reprimida sumo, como mercadoria –, ela não pode evitar sua ‘incorporação em um sistema intelec-
e escondida como o ânus no meio das carnes, não nos poupa de sua dimensão tual homogêneo, isto é, uma anulação hipócrita do caráter excremencial’” (Moraes, 2005,
espetacular, leonina. Os mortos estão por todo lado, e falar da morte não deve p.114). Entretanto, quando falarmos neste capítulo de poesia, trataremos sobretudo do
que Bataille chamou, em A noção de despesa, de poesia da perda, em sua fase excremencial,
ser outra coisa que falar da vida. Se resta algo, seu resíduo é ininteligível e incon- e portanto em seu sentido vizinho ao de sacrifício. Bataille diz: “O termo poesia, que se
formável. aplica às formas menos degradadas, menos intelectualizadas da expressão de um estado
de perda, pode ser considerado como sinônimo de dispêndio: significa, com efeito, do
Por indomável que seja, esse resíduo, no entanto, tantas vezes será modo mais preciso, criação por meio da perda” (Bataille, 2013, p.23).

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no negro deserto do dilúvio desfalece6. A morte o ápice da vida, do humano e do não humano, profunda
nas águas do fim afirmação, profunda subversão.
no mar da morte, onde navegamos ainda, Morte: sol negro7, noite definitiva. Assim como a vida tende à morte, em
às escuras, porque não temos leme nem existe porto. que ela se afirmará, os movimentos de que queremos tratar, e que permeiam as
obras de Hilda Hilst e de Georges Bataille, também miram seu clímax: o erotis-
7 mo, o sagrado, a poesia – sol fatal sobre nossas cabeças; intensidade de calor que
We are dying, we are dying, so all we can do derrete os limites, risco assumido de fusão.
is now to be wiling to die, and to build the ship Do sol negro temos a seguinte acepção, encontrada no Dicionário dos Sím-
of death to carry the soul on the longest journey. bolos: “De acordo com as tradições, o sol negro é uma pré-representação do
desencadeamento das forças destrutivas no universo, numa sociedade ou num
A little ship, with oars and food indivíduo. É o prenúncio da catástrofe, do sofrimento e da morte, a imagem
and little dishes, and all accoutrements invertida do sol em seu zênite.” (Chevalier, Gheerbrant, 1999, p.840). Daí que a
fitting and ready for the departing soul. morte – a catástrofe, o sofrimento – será fonte de angústia na medida em que é
também fonte de desejo, em que o ser se satisfaz naquilo que lhe dá medo, por
Now launch the small ship, now as the body dies isso espelho – imagem invertida – da vida em sua potência mais vigorosa, daí
and life departs, launch out, the fragile soul situar-se a um passo ínfimo da tragédia, no que ela tem de representação (espe-
in the fragile ship of courage, the ark of faith táculo) e horror.
with its store of food and little cooking pans Eixo central da vida, além de sua culminação, a morte estabelecerá a dimen-
and change of clothes, são contínua a que tais movimentos (o erotismo, o sagrado, a poesia) tendem,
upon the flood’s black waste e também a sua promessa: “a morte, ruptura dessa descontinuidade individual a
upon the waters of the end que a angústia nos prende, se propõe a nós como uma verdade mais eminente do
upon the sea of death, where still we sail que a vida” (Bataille, 2014, p.42). Desse modo, se queremos da vida a verdade,
darkly, for we cannot steer, and have no port. convém buscá-la nos extremos, onde a vida convulsiona e (se) gasta, ali onde
ela quiçá não mais poderá ser chamada de vida, pois destituída de suas formas,
contratos e duração.
DE MÃOS DADAS Faces opostas e complementares, apartadas e indissociáveis, morte e vida
em movimento paródico. Parodiando a linguagem de O ânus solar, que diz estar
Para quem respirou a Morte, que desolação o odor do Verbo! claro ser o mundo paródia pura, podemos dizer, por nossa conta e risco, que a
Emil Cioran, Silogismos da amargura. morte é paródia da vida, a vida é paródia da morte, assim como a angústia e a dor

Este sol que clareia, este sol que cega. Dar à luz, ceder às trevas, nascer mor-
6 “Toda a operação do erotismo tem por fim atingir o ser no mais íntimo, no ponto em
rer etc. Quero do sol a sua potência completa, violação, fusão de corpos, abismo que o coração desfalece” (Bataille, 2014, p.41).
de morte. Fascínio da morte, angústia da morte: o ponto em que o coração 7 Aqui referido à morte, o “sol negro” é mais comumente metáfora da melancolia. O
livro Sol negro – depressão e melancolia (1989), de Julia Kristeva, consolidou esta expressão.

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são paródias da felicidade e o frenesi amoroso paródia do desespero arrasador. Bataille utilizou no ensaio que citamos, estão perdidas na natureza, “na totalidade
E assim que o vagido é paródia do último suspiro, e o túmulo paródia do início do que é”, e, uma vez indistintas, não desaparecem11.
e do fim. Enfim, queremos dizer da cópula que liga uma coisa à outra, de modo
que “tudo estaria ligado se um único olhar descobrisse a totalidade do percurso Para se separar dos outros, a “mosca” precisaria da força monstruosa do
deixado por um fio de Ariana que conduz o pensamento no seu próprio labirin- entendimento: então ela se nomearia, fazendo o que em geral a linguagem
to” (Bataille, 2007, p.45). Olhar total, mirada da morte. Também a figura hege- opera pelo entendimento, que só ele funda a separação dos elementos, e ao
liana do sábio – do saber absoluto – evoca o movimento circular de totalidade, fundá-la se funda sobre ela, no interior de um mundo formado de entida-
e “consistiria no fechamento do círculo do conhecimento, em que saber e não des separadas e nomeadas. Mas nesse jogo o animal humano encontra a
saber, razão e loucura, potência e impotência, soberania e servidão, coincidiriam” morte: ele encontra precisamente a morte humana, a única que amedron-
(Penna; Bataille, 2013, s/p), como aponta João Camillo Penna8 na apresentação ta, que horripila, mas amedronta e horripila apenas o homem absorvido
à tradução do ensaio de Bataille “Hegel, la mort et le sacrifice”9, publicado em na consciência do seu desaparecimento futuro, enquanto ser separado e
1955, no número 5 da revista Deucalion – “Études Hegeliennes”10. insubstituível; a única verdadeira morte, que supõe a separação e, pelo
Daí que os movimentos de morte, em sua violência, propiciem a violação discurso que separa, a consciência de ser separado. (Bataille, 2013, s/p)
dos corpos e a dissolução (relativa) do sujeito, uma despossessão “semelhante ao
vaivém das ondas que se penetram e se perdem umas nas outras” (Bataille, 2014, Para negar a natureza, foi necessário lançar mão da violência do entendi-
p.41). O homem está separado do homem e isolado na natureza, a qual ele nega mento, uma verdadeira “luta histórica em que o Homem se constituiu como
em privilégio da linguagem e do discurso, isto é, em privilégio do próprio ho- ‘Sujeito’, ou como ‘Eu abstrato’ do ‘Entendimento’, como ser separado e no-
mem, de sua humanidade, enquanto as ondas, e a mosca, para usar o exemplo que meado” (Bataille, 2013, s/p). O nome será, portanto, essa quebra da natureza
total, ação separadora do entendimento, fragmentação do mundo. E esse ho-
8 Bataille aprofunda seu contato com a obra de Hegel através do curso sobre a Fenomeno- mem que se separa do animal, tornando-se um “eu-pessoal puro” (Ibid, s/p),
logia do Espírito que Alexandre Kojève ministrou entre 1933 e 1939 na Escola Prática de determinado pelo nome, é temporal e finito, e logo está condenado a desapare-
Altos Estudos (EPHE). A princípio dizendo-se anti-hegeliano, posteriormente Bataille
cer definitivamente. De modo que a morte – fruto da violência da negatividade
vai se propor a realizar um Hegel “misturado com tintas nietzschianas”, como João Ca-
do homem contra a natureza – assegura a existência do homem, sua liberdade,
millo Penna descreve na apresentação da tradução de Hegel, la mort et le sacrifice. Penna diz:
“Para Bataille, trata-se antes de mais nada de ‘experimentar’ Hegel, de transformar o pro- historicidade, individualidade.
grama hegeliano em experiência: ‘por contágio, imitação, realizo em mim o movimento Também o erotismo distingue o ser humano da animalidade na medida de
circular. Realizar em si o círculo do saber consistiria em suma, nada mais nada menos, do uma busca psicológica na atividade sexual independente da finalidade de repro-
que realizar no ipse, ou seja, em si, a totalidade universal, tornando-se... Deus’”. (Penna; dução, incitada pelos interditos que contornam essa atividade. Mas igualmente aí
Bataille, 2013, s/p). trata-se de perder-se, desafiar os próprios interditos que o constituem, de modo
9 Revista ALEA. Rio de Janeiro, vol. 15/2, p. 389-413, jul-dez 2013. Acessado em
13/06/2017: https://bit.ly/2xP1K9B . 11 Neste ensaio, Bataille observa: “Sem dúvida, a mosca individual morre, mas estas
10 A revista Deucalion: Cahiers de philosophie (1946-1957), com seis edições, teve como fun- moscas aqui são as mesmas do ano passado. As do ano passado estariam mortas?... É
dadores Jean Wahl e Pierre Thévenaz, e fazia parte da coleção “Être et Penser”, das Édi- possível, mas nada desapareceu. As moscas permanecem, iguais a elas mesmas, como o
tions la Baconnière. A edição número 5, “Études Hegeliennes”, contou com as seguintes são as ondas do mar. Aparentemente é forçoso ser assim: um biólogo separa esta mosca
colaborações, entre outras: Alexandre Kojève, Georges Bataille, Raymond Queneau, Jean aqui do turbilhão, um traço de pincel basta. Mas ele a separa para si mesmo, ele não a separa
Wahl, Eric Weil, Robert Minder, Rachel Bespaloff. para as moscas” (Bataille, 2013, s/p).

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que “o ser se perde objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto ele sabe o que está fazendo, e a medida da sua consciência é a medida da sua
que se perde” (Bataille, 2014, p.55). Ficamos então com esse processo bastante culpa, a medida do seu prazer.
vertiginoso e mesmo circular em que o erotismo se desenvolve na medida em O humano é o ser habilitado para o erotismo tanto quanto para a morte,
que o homem se afasta da atividade sexual rudimentar e animal, e logo essa sexu- e o abismo de que é originário é o mesmo abismo de sua desordem, é ali onde
alidade envergonhada confrontará os interditos que a constituíram no limite entre o ele se encontra e esse é o local de sua perdição. Ora, se por sua vez a mosca está
homem e o animal e na nostalgia da continuidade perdida. Em O culpado, Bataille perdida entre as moscas, as ondas na multiplicidade das ondas, no erotismo os
confessa: “o que realmente amamos, amamos sobretudo na vergonha” (Bataille, corpos estarão entre os corpos, o sujeito entre o objeto, na grande cópula que se
2017, p.17), fazendo do constrangimento social uma modalidade do erótico. anuncia em O ânus solar, apostando no deslizamento das identidades, no processo
Em O erotismo, Bataille observa que, se a consciência da morte será indicati- de aquisição e perda da humanidade e da animalidade, também na fragmentação
vo da transição do homem em meio à natureza ao homem “civilizado”, também e desfragmentação da linguagem.
a sexualidade envergonhada, isto é, as restrições às liberdades sexuais serão deter- Mas por que será que Bataille vai falar em paródia, em “a mesma coisa com
minantes na consolidação das estruturas sociais, que, por sua vez, distanciam uma forma decepcionante” (Bataille, 2007, p.45)? Eliane Robert Moraes apon-
progressivamente o homem da natureza. O trabalho será o principal fator da ta para recurso semelhante entre os surrealistas, movimento do qual Bataille se
regulamentação da sexualidade e da morte, elevando tabus nos dois domínios aproxima e com o qual acabará rompendo. Paródia como um devir ininterrupto
mais importantes da vida. Bataille observa: “Podemos dizer somente que, em dos objetos, como encontro fortuito13, indicando a instabilidade das imagens do
oposição ao trabalho, a atividade sexual é uma violência que, enquanto impulso mundo exterior: “De Lautréamont aos autores surrealistas, a paródia tornou-se,
imediato, poderia perturbar o trabalho: uma coletividade laboriosa, no momento por excelência, um exercício de desconfiança diante das imagens imediatas que
do trabalho, não pode ficar à sua mercê.” (Bataille, 1987, p.33) o mundo oferecia” (Moraes, 2001, p.47). A imagem da “mesa de dissecação”,
Hilda Hilst, em resposta à pergunta de Jorge Coli ao Cadernos de Literatura evocada por Lautréamont14 numa passagem de Os cantos de Maldoror (1869), será
do Instituto Moreira Salles sobre a relação entre animalidade e humanidade, afir- aplicada como fórmula do movimento surrealista, que tinha como base a associa-
ma: “Acho que os animais são puros, não têm consciência. Já o homem, não: é ção livre de ideias, como apresentado no primeiro Manifesto. A frase de Maldoror
safado”. (Cadernos de Literatura, 1999, p.34). A safadeza será então indício de “Belo como [...] o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-
consciência, logo de humanidade, uma vez que requer certo grau de elaboração -chuva sobre uma mesa de dissecação”15 (Lautréamont apud Moraes, 2001, p.40)
da atividade sexual, que será incitada pelos interditos que definem do desejo à
Contador Borges na orelha de A literatura e o mal (Autêntica, 2015). E assim, como
angústia. Assim não parece inoportuno ter sido Lori Lamby a protagonista da
Borges afirma, a literatura será a “infância reencontrada”.
estreia de Hilda Hilst em sua declarada fase pornográfica: na medida em que, na
13 Eliane Robert Moraes cita a famosa frase de Lautréamont proferida por Max Ernst
criança, a pureza ainda se apresenta – ou deve se apresentar –, a ignorância dos para definir a colagem: “encontro fortuito de duas realidades distantes em um plano não
tabus sistematicamente rompidos acentua tanto o descolamento da criança do pertinente” (Lautréamont apud Moraes, 2001, p.44). Para os surrealistas, a paródia pôde
que deve constituí-la, isto é, os próprios interditos que acompanham a formação também ser considerada como extensão dos procedimentos de colagem.
do ser, como a força violenta de transgressão dos seus exploradores: o papi e a 14 Conde de Lautréamont é o pseudônimo literário de Isidore Lucien Ducasse (1846-
mami proxenetas, o tio Abel.12 O homem é safado, diz Hilda Hilst, isso porque 1870). Poeta uruguaio que viveu na França, foi considerado por Breton como uma espé-
cie de precurssor dos surrealistas.
12 A infância será um momento privilegiado para Bataille, por ser uma fase em que “as 15 Mervyn, um “filho da loira Inglaterra”, um dos muitos adolescentes bonitos de Os
disposições do indivíduo se mostram soberanas, na recusa de tudo aquilo que, por meio cantos de Maldoror, é tão belo como “o encontro fortuito de uma máquina de costura e
do cálculo e da razão normativa, pretende regular o desejo e o dispêndio”, como aponta um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação”.

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é indicativa do grau de arbitrariedade das composições delirantes apresentadas bibliofílico”18, e desse modo domesticando sua potência. Assim, o pensamento
pelo escritor e estimadas pelos surrealistas. heterológico vai privilegiar as “forças excremenciais” em contraponto às “forças
Assim como à atividade sexual e à morte serão impostos interditos para de apropriação”, o “valor de uso improdutivo” em contraponto ao “valor de
a fundação do mundo real do trabalho e da duração, à linguagem também será troca”, oferecendo resistência aos movimentos do consumo, da racionalidade,
imposto um funcionamento restrito para ser servil. Por sua vez o jogo paródico, enfim, da ideia, a fim de que o heterogêneo não seja assimilado pelo homogêneo.
na aproximação de realidades distantes, revelando novos e imprevisíveis encon- Nesse sentido, Marcelo Jacques de Moraes vai observar: “a questão fundamental
tros, ampliará a liberdade frente aos constrangimentos gramaticais e linguísticos para Bataille parece ser a de sustentar o que ele chama de ‘irrealidade prática’ do
colocados pelas relações consagradas, e assim, o “ouro, a água, o equador ou dejeto, ou seja, manter-lhe a dimensão de corpo estranho ao sujeito sem con-
o crime podem ser indiferentemente enunciados como o princípio das coisas” vertê-lo em ideia, em forma acabada, ou seja sem dispô-lo à ‘fabricação’ e ao
(Bataille, 2007, p.46). Propõe-se, portanto, exibir o avesso das palavras, ali onde ‘consumo racional’” (Moraes, 2005, p.114).
elas resistem a se encaixar e a nomear, como acontece em nossa cultura com os Sabemos do flerte de Bataille com o surrealismo, do seu posterior rompi-
movimentos do desejo, da morte, do dispêndio, da poesia. mento e das acusações que ele faz e das que lhe são dirigidas pelo movimento.
Bataille vai preservar o tom paródico em sua obra, apostando na cópula Os anos de 1929-1930 representarão o auge desta crise: o segundo Manifesto sur-
erótica entre todas as coisas, inclusive acusando o movimento bretoniano de realista é publicado no último número da revista La Révolution Surréaliste19 (1929),
idealista e querendo ir além dele na incorporação da totalidade: “se o surrealis- dirigida por Breton, contendo ataques à Bataille e a outros membros dissidentes,
mo, se o homem surrealista quer realmente se entregar à totalidade da existência, e, em janeiro de 1930, é publicado o panfleto Un cadavre20, em resposta a este
logicamente ele não pode excluir o que é baixo, o que é vil.” (Scheibe; Bataille, ataque, que Bataille, Jacques Prévert, Raymond Queneau, Robert Desnos, entre
2014, p.11)16. Assim, Bataille indica o baixo materialismo como fundamento do outros, organizaram contra Breton.
seu pensamento heterológico, valorizando os dejetos, os restos, o inassimilável na
direção de um pensamento do impossível.
Marcelo Jacques de Moraes, no ensaio “Georges Bataille e as formações do
18 Expressão utilizada por Denis Hollier no ensaio O valor de uso do impossível. In:
abjeto” (2005)17, faz uma ampla investigação do informe batailliano e discorre a
Alea [online]. 2013, vol.15, n.2, pp.279-302. ISSN 1517-106X. https://bit.ly/2xQqFJQ .
respeito do termo “heterologia”, como “a ciência do que é completamente outro
19 La Révolution Surrealiste, revista do movimento surrealista em Paris, teve doze edições
[tout autre]” (Bataille apud Moraes, 2005, p.112), que Bataille propõe pela primeira
publicadas entre 1924 e 1929. Seguiu-se a esta publicação Le surrealisme au service de la
vez no ensaio O valor de uso de D.A.F. Sade (1930). Aí, Bataille acusa o movimento révolution, lançada esporadicamente entre 1930 e 1933.
surrealista, representado na figura de seu principal expoente, André Breton, de 20 No fim de 1924, por ocasião da morte de Anatole France e as homenagens a ele
reduzir a obra de Sade ao seu valor “literário”, limitando-se a um “gozo conferidas, André Breton institui um tribunal para julgá-lo, uma vez que os surrealistas o
consideravam um defensor da burguesia e de seus costumes moralistas. Além do julga-
mento, Breton publica um panfleto contra France, chamado Un cadavre, em que participa
16 De acordo com Fernando Scheibe, tradutor de Bataille para a editora Autêntica, Ba- com o texto “Refus de Inhumer” (Recusa de inumar), mostrando que os surrealistas recu-
taille acusa o surrealismo bretoniano de idealismo e de utilização hipócrita de Sade, nos savam-se a participar das homenagens conferidas por sua morte. Retomando o título e o
textos “Le prefixe ‘sur’ un surréalisme et surhome” e em “La valeur d’usage de D.A.F. de formato do Cadavre contra Anatole France, alguns dissidentes do surrealismo e atacados
Sade” (Scheibe; Bataille, 2014, p.11). por Breton no Segundo Manifesto reeditarão o panfleto. Sua epígrafe traz outro cadáver,
17 In: MORAES, Marcelo Jacques de. Georges Bataille e as formações do abjeto. In: o próprio André Breton: “il ne faut pas que cet homme fasse de la poussière”, “não é
Revista Outra travessia 5. IIha de Santa Catarina, 2° semestre de 2005: 107-120. preciso que este homem vire pó”.

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Último número da revista La révolution surréaliste, em que se publica o
Segundo Manifesto Surrealista, com ataques a Bataille e aos dissidentes Revista La révolution surréaliste.
do surrealismo.

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As críticas contidas neste panfleto acusavam o “papa do surrealismo” so- O NOME DA MORTE
bretudo de autoritarismo e de hipocrisia, chamando-o, além de “papa”, de “tira”
e “cura”. Michel Surya, em Bataille, la mort à l’œuvre, discorre a respeito da rela- Entregar-se à totalidade da existência será contemplar a morte, seu alcan-
ção entre os dois proeminentes intelectuais franceses do século XX: “O que é ce global? Daí que a morte apareça como miragem e dispositivo poético, como
surpreendente não é que discordassem, mas a obstinação de ambos de não se lugar privilegiado para se pensar as tensões de atividade limítrofe, derrubar os
ignorarem mutuamente” (Surya, 2002, p.228)21. Em 1935, Bataille e Breton se limites ainda que temporariamente, de modo que Georges Bataille e Hilda Hilst
reconciliam para a organização do grupo antifascista Contre-attaque – Union de lutte mantiveram-na como foco de luz solar, insuportável e incontornável, temida
de intellectuels révolutionnaires, que, no entanto, por desacordos internos, teve curta e desejada a morte. Além disso, à morte tenderam poeticamente, apostando
duração (1935-1936). nessa linguagem, e no que ela tem de transgressão e perda, como motor para a
atividade literária.
Se o trabalho transforma a natureza e cria o mundo, fundando o homem
em sua duração, a poesia, por sua vez, nos conduz, como a morte, à negação
da duração individual, de modo que operam movimentos antagônicos: “O ho-
mem trabalha e combate: transforma o dado ou a natureza: cria, ao destruí-la,
o mundo, um mundo que não existia. Há, de um lado, poesia: a destruição,
surgida e se diluindo, de uma cabeça ensanguentada; de outro, Ação: o trabalho, a
luta” (Bataille, 2013, s/p). Georges Bataille inicia o longo poema Túmulo, que
abre o livro O arcangélico22 (1944), assim: “Imensidade criminosa/ vaso rachado
da imensidade/ ruína sem limites” (Bataille, 2015, p.29), evocando a sensação
de uma amplitude sem contornos, a morte este abismo a que um indivíduo ten-
de, sua queda no infinito, a morte “loucura alada”, “grito da noite definitiva”,
“desejo da noite” (Ibid, p.29).
Que o livro de poemas de Georges Bataille seja sombrio, perturbador, de
poética estranha e desesperada, é coerente com as inquietações que aparecem ao
longo de toda a obra do autor, aqui dramatizadas no próprio ato da linguagem.
Na apresentação à edição brasileira deste livro, chamada “Explosão em silêncio”,
Eliane Robert Moraes e Fernando Paixão sinalizam o paradoxo que encenam
os poemas bataillianos: aí temos um “‘eu-lírico’ que se apaga em cada verso,
Com os olhos fechados, uma lágrima de sangue escorrendo do can-
to das pálpebras, uma coroa de espinhos cingindo a fronte, Breton condenando seu próprio enunciado ao mais profundo silêncio” (Moraes, Paixão;
é representado como Jesus crucificado. Bataille, 2015, p.19), logo trata-se justamente de “ultrapassar o domínio verbal
a partir do próprio verbo” (Ibid, p.21), ideia que confirma-se na sensação de

21 Lido no inglês: Georges Bataille – an intellectual biography. “What is surprising is not so 22 Tradução para a Editora UFMG, 2015: Alexandre Rodrigues da Costa e Vera Casa
much their discord as their obstinacy in not completely ignoring each other”. Nova.

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desamparo provocada pelo poema: desta experiência saímos com menos pontos I
de sustentação, menos certezas, dela sairemos menores, mais frágeis e instáveis. Te batizar de novo.
A quem poderá interessar este tipo de aniquilação? Talvez àqueles capazes de Te nomear num trançado de teias
encontrar, nas fragilidades, suas maiores fortalezas. Ainda assim, esse poderá ser E ao invés de Morte
um projeto perigoso, tanto pessoal como coletivamente; isso se, em meio a tanto Te chamar Insana
bombardeamento, não se puder erguer, de fato, outras fortalezas. Fulva
Está aí a noção de poesia como perda, fuga da linguagem do logos, de “cria- Feixe de flautas
ção por meio da perda” (Bataille, 2013, p.23), que Bataille evocara no ensaio “A Calha
noção de despesa”, apostando nas figuras de dispêndio. E também a noção da Candeia
impossibilidade da morte – assim como a impossibilidade da palavra silêncio, a Palma, por que não?
impossibilidade da poesia como linguagem e negação da linguagem – que requer Te recriar nuns arco-íris
que ela seja vivida como dramatização. No ensaio “Hegel, a morte e o sacrifício” Da alma, nuns possíveis
esta questão será abordada por Bataille: se é na morte em que o homem revela- Construir teu nome
-se a si mesmo, seria então preciso morrer em vida, “olhando-se deixar de ser”. E cantar teus nomes perecíveis:
Bataille vai afirmar: “O conhecimento da morte não pode deixar de se valer de Palha
um subterfúgio: o espetáculo” (Bataille, 2013, s/p), daí o sentido do sacrifício, Corça
em que a figura do sacrificante, identificando-se com a figura do animal ou do Nula
indivíduo morto, vê-se morrer. Assim, observa-se uma dinâmica espetaculosa em Praia
que a linguagem dramatiza a morte sacrificial como estratégia que possibilita um Por que não? (Hilst, 2013, p.29)
ver-se morrer através do outro.
Também Hilda Hilst encenou a morte e dela aproximou-se no livro de po- Esta cena de abertura inaugura a relação do eu-poético com a morte, sub-
emas Da Morte. Odes Mínimas, publicado pela primeira vez pela Massao Ohno/ vertendo os encaixes primeiros da linguagem para criar novos tipos de aproxi-
Roswitha Kempf Editores23, em 1980, ano em que a autora completara 50 anos. mação, proliferando os pontos de contato entre o eu e a morte, esta senhora
Se a morte já ecoa como um dos grandes temas da obra poética e em prosa de onipresente, intensa participante da vida. Dramatiza-se aí a relação entre poeta
Hilda Hilst, associada à solidão, à velhice, à perda, à desilusão amorosa, aqui o e morte, de reconhecimento, aproximação: aí o movimento hilstiano de acer-
seu eu-poético vai confrontá-la de forma mais direta, mais íntima, na necessidade car-se do (des)conhecido a partir de uma investigação da linguagem, uma ope-
de trazê-la para perto. Hilda Hilst terá na morte uma interlocutora, a quem ela se ração particular que revela ao mesmo tempo certa desconfiança das relações
dirige, evoca, chama, quer contato, de forma a tentar cercá-la e compreendê-la, dadas e a necessidade de darem-se relações (outras), sendo preciso, portanto,
vê-la chegar e se afastar, em uma interpelação entre duas fortes mulheres/ Na sua rebatizar a prole. Isso porque não se pode dispor daquilo que não se conhece,
dura hora. Vejamos o poema que abre este livro: como afirmava Hillé, a obscena senhora D, quando dizia: “Ehud, não posso
dispor do que não conheço, não sei o que é corpo mãos boca sexo, não sei nada
23 A edição das obras completas de Da morte. Odes mínimas contém 50 poemas divididos
de você Ehud a não ser isso de estar sentado agora no degrau da escada, isso de
em três partes: a primeira Da morte. Odes mínimas, com quarenta poemas, Tempo-morte, com
cinco, e À tua frente. Em vaidade, também com cinco. Além disso, na parte inicial são apre-
me dizer palavras, nunca soube, você se deitava comigo, mesmo não sabendo”
sentadas suas aquarelas entre seis pequenos poemas. (Hilst, 1993, p.39).

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No entanto, esse movimento parece tratar-se menos de uma tarefa nomeadora abaixo seu líquido escuro, seu corpo minguando, os olhos encovados, o coração
do que de uma operação de deslizamento entre os significantes, remetendo ao desfalecendo. Juiz bem-sucedido na tarefa de aplicar as leis, cabe agora a Ilitch
movimento paródico que Bataille evoca em O ânus solar, de modo a indicar um obedecer esta que não exime homem algum de sua condenação, e ele caminha
devir ininterrupto que propõe a instabilidade dos nomes, outrora talvez um dos sozinho para o cadafalso com a angústia e o ressentimento da constatação de
últimos redutos de segurança e repouso. Se a linguagem é um dos alicerces do uma vida condenada – escrava e desprovida de sentido.
real, estrutura fundamental do mundo humano, a poesia por sua vez vai tratar de “Ehud, por favor, queria te falar, te falar da morte de Ivan Ilitch, da solidão
transgredir os limites desta organização, embaralhar os signos, de modo a evo- desse homem, desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de
car o movimento de continuidade e desfragmentação na tendência ao absoluto, nós, queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa
tendência de morte. Mas a recusa de um nome próprio resulta ao mesmo tempo coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo.” (Hilst, 1993, p.36) Hillé e Ivan
na proliferação de nomes, no exercício vertiginoso de resvalar e fixar, remetendo Ilitch parecem afundados na mesma lama reflexiva que tem a morte como hori-
ao que Hilda Hilst realizou sobre os nomes dos órgãos sexuais e os nomes de zonte da vida, seu relógio em contagem regressiva, sua aproximação de passos
Deus24, fazendo-os transbordar em diversos significantes, evidenciando o caráter silenciosos, sua hora solitária, como foram solitárias todas as horas da vida. Se
redutor do nome próprio. miram a morte, e são dela mirada, é a partir da vida humana que flertam com
E se é preciso matar o animal a partir da “força monstruosa do entendi- seu abismo fascinante e sua desordem latente. Nesse sentido, Bataille alerta-nos
mento” (Bataille, 2013, s/p) para fazer surgir o homem, a poesia, em sentido para a sensação ambígua perante o tempo, a morte, a relação de medo e enlevo:
contrário, vai provocar a animalidade sufocada, incitar o ser separado e nome- “Suportamos mal a situação que nos prende à individualidade fortuita, à indivi-
ado a um movimento de fusão e transbordamento, sua morte encenada. E se dualidade perecível que somos. Ao mesmo tempo que temos o desejo angustiado
é preciso encarar essa fera de frente, assim como é preciso encarar de frente a da duração desse perecível, temos a obsessão de uma continuidade primeira, que
morte, deste olho a olho não sairá mais que um vislumbre de noite, a sensação nos religa geralmente ao ser” (Bataille, 2014, p.39).
de abismo, o disparo acidental de uma arma, o momento sangrento de um ritual A obra-prima de Tolstói25, verdadeiro tratado sobre a morte, comparece
de sacrifício. Assim é que, assustadora e fascinante, a morte é, também “Amada/ no imaginário de mais de uma personagem hilstiana; também o protagonista de
Torpe/ Esquiva// Bem-vinda” (Hilst, 2013, p.32), como dirá o eu-poético das Cartas de um sedutor menciona a novela russa: “Que leituras! Que gente de primei-
odes mínimas. ra! O que jogaram de Tolstói e de filosofia não dá para acreditar! Tenho meia
dúzia daquela obra-prima A morte de Ivan Ilitch e a obra completa de Kierke-
gaard” (Hilst, 2013, p.139)26. E na entrevista a Caio Fernando Abreu, Hilda Hilst
A MORTE DE diz: “Existe uma novela que eu acho perfeita: A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói.

Ivan Ilitch está cara a cara com a morte, ele percebe sua presença, sente que 25 A Morte de Ivan Ilitch é uma novela de Liev Tolstói (1828-1910), publicada pela primeira
ela lhe rouba aos poucos a vida, sua vitalidade pinga como goteira, escorre ralo vez em 1886 e considerada por alguns críticos como a novela mais perfeita da literatura
mundial. Foi a primeira obra que Tolstói escreveu após seu retorno à atividade literária,
24 E sobre a morte a profusão vocabular em Da morte. Odes mínimas elenca-se assim: tendo abandonado a literatura para se dedicar à vida espiritual.
Dorso mutante, Túrgida-mínima, cavalinha, cavalo, búfalo, Velhíssima-Pequenina, Meni- 26 Olga Bilenky, viúva de José Mora Fuentes e residente da Casa do Sol, hoje diretora do
na-Morte, Caracol de sumos, Andorinha, Crina, Acróbata de guarda-sóis, amiga, Nada, Instituto Hilda Hilst, conta que a escritora, fascinada pela novela russa, distribuíra exem-
Ventura, Rosto de Ninguém, Morte-Ventura, Prisma, Púrpura, Unguento, Duna, Riso, plares para diversas pessoas que frequentavam a casa, a fim de que pudessem discutir a
Sonido, Altura, minha-irmã, Tempo. obra.

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Ele conseguiu chegar ao centro, usando as palavras mais ortodoxas e tal, mas de que a morte é a problemática constante de toda a sua obra; ela diz: “Quero
chegou” (Diniz,2013, p.99). Este centro de que se fala aqui remete à resposta an- dizer que ela esteve constante, presente, em toda minha poesia, em todos os
terior de Hilst, que diz: “Fiquei toda minha vida procurando esse centro, ou uma homens e mulheres, meus personagens; todos eles, em muitos momentos, se per-
espécie de tranquilidade – não uma tranquilidade idiota, mas uma certa tolerância guntam ou meditam sobre a morte. Porque eles não estão conformados” (Diniz,
com tudo o que te rodeia, com a tua condição de mortal, de apodrecimento” 2013, p.32). Em seguida, HH afirma também sua inconformidade com a finitude
(Ibid, p.99). E se Hilda Hilst menciona a linguagem “ortodoxa” do russo, isso e discorre a respeito das experiências transcomunicacionais que vinha realizando
aparece em contraste com a sua própria linguagem, avessa ao pensamento dis- e que tinham por objetivo mudar o conceito que se tem de morte. “Na verdade,
cursivo, operando um verdadeiro sacrifício do discurso, de modo que toda a sua não morremos, passamos para outra dimensão – e as coisas só me interessam na
escrita em prosa foi contaminada pela poesia, logo uma escrita em prosa-poética. medida em que, justamente, pode ser lançada uma ponte dessa dimensão em que
Se a escrita de Tolstói e, em alguma medida, a do próprio Bataille, indicam uma estamos para outra. Conservamos uma individualidade na morte” (Ibid, p.45).
utilização da linguagem de forma mais clássica, a escrita hilstiana, por sua vez, é Tencionava fazer na Casa do Sol a Fundação Apolonio de Almeida Prado Hilst,
entrecortada, fragmentada, explodida, indicando que seu pensamento se faz aos que cuidaria de estudos psíquicos e de imortalidade, e dizia querer ir para Mar-
engasgos, e aos engasgos é apresentado, sendo essa “forma engasgada” relevante duk, um planeta onde seres geniais se encaminhariam após a estada na Terra.
na produção de sentido do texto. Assim, sua escrita é comparada a de Guimarães Vejamos trecho de outra entrevista de Hilda Hilst, desta vez para o Cadernos de
Rosa e a de Clarice Lispector, a de Joyce e a de Beckett. Literatura, em resposta a Millôr Fernandes, que lhe perguntara se a “literatura é a
A morte é um dos temas centrais de Hilda Hilst; sua literatura, por vezes vida ou até mais importante do que isso”:
relacionada sem pudores à própria vida da autora, com relances autobiográficos,
tem na mortalidade um eixo de reflexão que conduz seus personagens aos ex- A vida é uma coisa absurda, que a gente não sabe como é. De certa forma
tremos, uma aproximação desesperada frente à vida em seu embate implacável nos deram uma compreensão para entender a vida, mas a gente não conse-
com o perecimento. E se ela diz na entrevista da busca de um certo lugar de gue. Então nos deram uma cabeça para poder compreender as coisas, mas
apaziguamento – esse centro que Tolstói atingira – isso deve corresponder a uma sempre é a terra, né? É sempre o túmulo, sempre o sepulcro. Então, é por
investigação da escrita em relação à morte e seus temas circundantes que pode isso que eu fico impressionada com essa coisa de Deus. Eu tenho medo da
ser sintetizada na frase que deve ter sido dita com variações por mais de um es- solidão, do sepulcro. Mesmo sabendo que tem alguma coisa depois. Tenho
critor: “Escrevo para não morrer”, na medida em que a escrita é, de certa forma, medo de ser enterrada, por isso vou pedir para ser cremada. (Cadernos de
a condenação e a salvação da vida, seu momento de angústia e alívio27. Se o pere- Literatura, 1999, p.38)
cível é aquilo que é possível, a limitação do ser humano, nossa individualidade e
sua duração, então o movimento do escritor remete à experiência do impossível, Hilda Hilst acabou sendo enterrada, no cemitério Parque das Aléas, em
à transgressão dos limites da vida na antecipação da morte, sua suspensão dos Campinas, no dia 05 de fevereiro de 2004. Na entrevista para o Cadernos, pu-
dispositivos repressores na pressão do contínuo. blicado cinco anos antes de sua morte, deparamo-nos com uma Hilda evasiva,
Em entrevista para o Estado de São Paulo, de 1975, HH confirma a intuição impaciente e de respostas curtas, que por vezes não condiziam com o que lhe era
perguntado. Ela parece já conformada, ou indiferente ao fato de que seus livros
27 Na entrevista “Um diálogo com Hilda Hilst”, organizada por Nelly Novaes Coelho, não atingiram um grande público, queixa e cicatriz que exibira na maioria das en-
encontramos a seguinte frase de Hilda Hilst: “Imagino que as pessoas escrevam por de- trevistas precedentes. Como se diz dos artistas incompreendidos por seu tempo,
bilidade. Eu escrevo por debilidade. Não escrevo porque eu, realmente, tenha muita coisa
aposta-se aqui também em um possível reconhecimento póstumo por parte do
a dizer. Escrevo porque preciso me salvar” (Diniz, 2013, p.125).

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público. No entanto, ela diz: “Talvez daqui a 100 anos alguém me leia. Mas eu desaparecimento, mesmo que a qualquer custo preferissem permanecer, mesmo
não tenho esperança. Eu continuo vivendo porque tenho que continuar vivendo. que, de todo modo, permaneçam. Warin aponta para a grande ironia deste para-
Tenho medo de morrer” (Ibid, p.41). A crença na imortalidade, na permanência doxo:
da vida após a morte, no entanto, não faz da dama escura28 uma senhora menos
temível, do seu encontro fugimos como o diabo da cruz. A literatura não seria soberana se o autor não desaparecesse, esquecido,
Bataille foi enterrado em um pequeno cemitério em Vézelay, com uma como a morte, aceitando apagar seus traços, consagrando ao fogo sua obra
lápide simples, em que estavam escritos apenas seu nome e as datas: Georges como Kafka morrendo o quis. Mas esse é um limite impossível e a lite-
Bataille, 1897-1962. Sabemos que também Georges Bataille gozou de um pres- ratura não pode dar mais que o simulacro da soberania. No inferno das
tígio em vida aquém da obra que realizava, e que somente postumamente foi bibliotecas a obra maldita permanece conservada, escapando ao excesso
tratado como grande pensador do século XX, como ficou registrado nas co- que deveria destruí-la. A soberania é uma comédia e Bataille soube rir
nhecidas palavras de Michel Foucault na apresentação às suas obras completas: dela, ele fez do riso o que há de mais divino e de mais mortal. (Warin,
“Hoje nós sabemos: Bataille é um dos mais importantes escritores do nosso 1974, p.62/63)31
século, a ele devemos em grande parte o momento onde estamos; mas tudo
o que falta fazer, pensar e dizer, isso também lhe devemos e ainda o faremos A variação da frase de Bataille que aponta para as motivações da escrita – o
durante um longo tempo”29. escrever para não morrer – é esta: “Escrevo para apagar meu nome”, e sabemos
No ensaio “Georges Bataille e a Maldição da Literatura” (1974), François que escrevia para depurar sua mente de obsessões perturbadoras, sugestão de
Warin aponta para a permanência da obra como contradição à sua soberania seu psicanalista Adrian Borel, em um tratamento alternativo que acabou resul-
almejada. Se a soberania é o projeto de insubordinação frente à autoridade, à tando na escrita de A história do olho (1928), publicado sob pseudônimo de Lord
normatividade e mesmo à duração, então o destino natural da obra seria a morte. Auch. Se para Bataille o gesto de escrever é contíguo ao gesto de apagar-se, e a
Mas este é um destino que poucos tiveram a disposição de aceitar, a presença transgressão é o lugar do apagamento do sujeito, trata-se aí de ir em direção ao
de espírito de Kafka30. De modo que a obra, e o autor, estão condenados ao silêncio – palavra-paradoxo que nomeia o que não deveria ser capturado32 – e em
direção à própria morte, também como movimento de deixar-se escapar. Logo,
28 “Dama escura” é como chama-se a morte em Rútilo nada: “Antes do derradeiro, antes se escreve-se para não morrer, também para morrer é que se escreve. E, se a
da sombra, o revólver em cima da mesa, queres me perguntar o que sente alguém diante
da dama escura? Sinto frio, Lucius.” (Hilst, 2013, p.24).
recusava-se a executá-lo. Não morreu, no entanto, sem ter exprimido essa vontade, de
29 Aqui usamos a tradução de Eliane Robert Moraes no ensaio O Jardim Secreto: No- aparência decisiva: era preciso jogar no fogo aquilo que deixava”. (Bataille, 2015, p.143).
tas Sobre Bataille e Foucault. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v.
31 WARIN, François. ‘’Georges Bataille e a maldição da literatura”. In: discurso. São Pau-
7, n.1e2, p. 21-29, 1995. A referência para a apresentação de Foucault é: FOUCAULT,
lo: USP.ano.05.nº 5.1974.p.55-64. Acessado em 24/04/2017: https://bit.ly/2KgRetd .
Michel. (1970) Apresentação. In: BATAILLE, Georges. Oeuvres complètes. Tomo I. Paris,
Gallimard. 32 Aqui um trecho da apresentação à tradução de O arcangélico, “A Explosão do Silêncio”,
de Eliane Robert Moraes e Fernando Paixão, que ajuda a entender este ponto: “A palavra
30 No entanto, no ensaio dedicado à Kafka em A literatura e o mal, Georges Bataille coloca
em questão a própria decisão de Kafka de eliminar a sua obra. Em resposta à pergunta silêncio, diz Bataille, carrega em si um paradoxo. O que ela diz nomear não se deixa captu-
“É preciso queimar Kafka?”, Bataille elucubra: “A meu ver, até o final, Kafka não saiu rar por nenhum nome; o que promete designar não pode jamais ser designado. Trata-se
da indecisão. Esses livros, para começar, ele os escreveu; é preciso imaginar algum tempo de um significante que, no limite, burla seu próprio significado, uma vez que toda palavra
entre o dia em que se escreve e aquele em que se decide queimar. Depois ele ficou na de- implica, por princípio, um ruído a desmentir o silêncio” (Moraes, Paixão; Bataille, 2015,
cisão equívoca, confiando a execução do auto da fé àquele de seus amigos que o avisara: p.19).

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solidão de Ivan Ilitch é o fator maior de angústia da novela de Tolstói, a solidão fato se der a hora do encontro entre os dois entes, cujos corpos ardem na medida
do moribundo é a própria solidão do ser posta em evidência; angústia e isola- em que se aproxima o momento inescapável em que coincidirão. Há momentos
mento que tenta-se violar no movimento da morte – da poesia, do erotismo, do de sensualidade, quando o ser que morre e morte buscam-se, tateiam flanco,
sagrado. dentes, língua, ânus, regaço, em um processo cujo desfecho se anuncia uma e
Não à toa, o encontro com a morte será frequentemente erótico, sua apro- diversas vezes, mas que permanece como indagação e anseio da hora exata: como
ximação como transgressão ao fechamento do indivíduo em si mesmo. Bataille me tomarás? Assim que a vida pauta-se por sua iminência, consumindo-se len-
cita o Marquês de Sade, para quem havia uma óbvia relação entre morte e exci- tamente e conservando aquilo que resta de sua incessante ameaça: “Procura, na
tação sexual: “Não há melhor meio de se familiarizar com a morte do que aliá-la minha hora,/ Entre sarrafos e palha// O que restou de mim/ À tua procura”
a uma ideia libertina” (Sade apud Bataille, 2014, p.36). Pois também o eu-poético (Hilst, 2013, p.68).
das odes mínimas de Hilda Hilst encena com a morte uma relação quase carnal, A suspensão em que se habita é a antessala do encontro com esta velha
incitando uma ideia de atração recíproca, aqui uma aproximação entre duas mu- conhecida, que permanece, entrementes, incompreendida: “Não compreendo.
lheres que, a princípio, se tateiam a fim de encontrar o ponto exato de encaixe Apenas/ Tento/ Somar meu corpo/ A teu corpo negro/ Minhas águas/ A teu
em que então se unirão como uma só no beijo fatal, cópula entre vida e morte, remo” (Ibid, p.65). A intimidade desenvolve-se no processo de conhecimento
gozo final: – que transpõe as vias da razão –, e seu método de investigação debruça-se nos
meandros da linguagem, do que resta da fuga dos processos de dominação, por
II isso sua abordagem minoritária, das sobras, migalhas, resquícios: mínima. Se está
Demora-te sobre minha hora. propensa ao encontro dos corpos, ao momento erótico em que eles se tocarão, a
Antes de me tomar, demora morte, por sua vez, recusa-se a deixar-se conhecer pelo nome, quando ela então
Que tu me percorras cuidadosa, etérea repousaria em sua sepultura, seu atestado de redundância. Assim, interlocutora
Que eu te conheça lícita, terrena e morte estão que nem gato e rato, porque a morte foge à sua apreensão, sendo
possível conhecê-la apenas por suas beiradas.
Duas fortes mulheres
Na sua dura hora. XIX
Que me tomes sem pena Se eu soubesse
Mais voluptuosa, eterna Teu nome verdadeiro
Como as fêmeas da Terra.
E a ti, te conhecendo Te tomaria
Que eu me faça carne Úmida, tênue
E posse
E então descansarias.
Como fazem os homens. (Hilst, 2013, p.30)
Se sussurrares
De carga erótica notável, nos poemas das odes mínimas não há, entretanto, Teu nome secreto
um teor de forte violência que acompanhe a fusão dos corpos, característico da Nos meus caminhos
transgressão; o clima é antes de preliminares, um aquecimento para quando de Entre a vida e o sono

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Te prometo, morte I
A vida de um poeta. A minha: Imensidade criminosa
Palavras vivas, fogo, fonte. vaso rachado da imensidade
ruína sem limites
Se me tocares,
Amantíssima, branda imensidade flácida que me esmaga
Como fui tocada pelos homens sou fraco
Ao invés de Morte o universo é culpado
Te chamo Poesia
loucura alada minha loucura
Fogo, Fonte, Palavra viva
rasga a imensidade
Sorte. (Hilst, 2013, p.47)
e a imensidade me rasga

Mas se a morte foge à dominação verbal, é a partir do próprio verbo que estou só
ela escapa, sugerindo uma linguagem desviante, marginal, sem finalidade ou con- cegos lerão estas linhas
cessões, sem teleologia ou propósito: soberana. A poesia é a expressão de um em intermináveis túneis
estado de perda, “criação por meio da perda”, apontou Bataille, destacando seu
caráter improdutivo, dispendioso, e aproximando a poesia do sacrifício. Sacrifí- caio na imensidade
cio, poesia, erotismo, morte: mo(vi)mentos de excesso, do que excede o humano que cai em si mesma
no desafio à razão: “O luxo da morte, nesse aspecto, é encarado por nós assim ela é mais negra que minha morte
como encaramos o luxo da sexualidade: inicialmente, como uma negação de nós o sol é negro
mesmos e, depois, em súbita inversão, como a verdade profunda do movimento
a beleza de um ser é o fundo dos porões
de que a vida é a exposição” (Bataille, 2013,p.54). Daí o interesse de Bataille por
um grito da noite definitiva
esses movimentos, no que eles têm de reveladores na negação da negação da na-
tureza, seu paradoxo anunciado, porque se a morte – a sua consciência – constitui o que ama na luz
o ser humano destacado da natureza, ela é também o seu processo de dissolução o arrepio com o qual ela se congela
na natureza, seu estado de perda.
é o desejo da noite (Bataille, 2015, p.29)33
A morte é central no longo poema O túmulo (1944), de Georges Bataille,
em que se destaca a imensidade a que o homem está destinado, o impiedoso
lançar de dados, lançar de sorte: a “ruína sem limites”, a “imensidade flácida”, o
“deserto sem saída” a que se tende no olho a olho com a morte, contato visual 33 Le Tombeau// Immensité criminelle/ vase fêlé de l’immensité/ ruine sans limites//
sem trégua, risco exagerado de fusão. Se os poemas de Hilda Hilst sobre a morte immensité qui m’accable molle/ je suis mou/ l’univers est coupable// la folie ailée ma
encaram a inevitabilidade de sua chegada com expectativa construída, através de folie/ déchire l’immensité/ et l’immensité me déchire// je suis seul/ les aveugles liront
elementos épicos que anunciam esse encontro esperado, em Bataille se reforça o ces lignes/ en d’interminables tunnels// je tombe dans l’immensité/ qui tombe en elle-
aspecto abismático desta noite definitiva, o homem lançado nas trevas, em toda -même/ elle est plus noir que ma mort// le soleil est noir/ la beauté d’un être est le fond
a sua tragicidade. Vejamos o trecho inicial de O túmulo: des caves/ un cri de la nuit définitive// ce qui aime dans la lumière/ le frisson dont elle
est glacée/ est le désir de la nuit.

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A cena expansiva da imensidade evocada sugere a sensação deslimitadora meus olhos são raios cegos
da morte, sua dimensão infinita, em meio a qual o ser se torna ínfimo, quase nada. meu coração é o céu
Aliado a isso a sensação de queda, o perigo iminente de transitar na beirada desse onde a tempestade eclode
buraco fundo, ou buraco sem fundo. Assim que a morte é o tombo sem dura-
ção de um processo vertiginoso, que tende a uma clareira sem proporções, de em mim mesmo
um espaço/tempo sem esperanças. Essa sugestão caótica e selvagem inaugura o no fundo de um abismo
poema e o atravessa, apostando bem no “excesso de trevas”, bem no “brilho das o universo imenso é a morte. (Bataille, 2015, p.51)36
estrelas”, com cenas brutais, passagens angustiantes, desejos ardentes e trechos
escatológicos: essa a paisagem batailliana da morte.
POSSIBILIDADE DA MORTE
o excesso de trevas
é o brilho das estrelas O ser humano encontra-se no limite do eu ao nada, ideia que Bataille explo-
o frio da tumba é um dado ra em seu ensaio sobre Hegel, o sacrifício e a morte, em que o Nada se manifesta
como ação negativa ou criativa, no momento em que se instala a morte na nature-
a morte jogou o dado za, portanto como um vetor da existência humana, também de seu dilaceramento
e o fundo dos céus jubilou-se absoluto. Bataille cita Kojève, a partir de quem ele aborda Hegel neste ensaio:
da noite que tombou em mim. (Ibid, p.41)34 “‘o pensamento e o discurso, revelador do real, nascem da Ação negadora que
realiza o Nada aniquilando [anéantissant] o Ser: o ser dado do Homem (na Luta)
Relaciona-se a imensidade – cenário acachapante – ao crime, ao que ele e o ser dado da Natureza (pelo Trabalho – que resulta aliás do contato real com
representa em termos de transgressão à lei; à loucura – alada loucura – no que a morte na Luta). Quer dizer então que o próprio ser humano não é nada além
ela não se deixa simbolizar; aos elementos associados ao improdutivo, aos excre- dessa Ação: ele é a morte que vive uma vida humana’” (Kojève apud Bataille,
mentos, à obscenidade, no que excedem à representação. Também neste poema 2013, s/p). Essa frase final é citada três vezes ao longo do ensaio, apostando na
evoca-se o movimento paródico de O ânus solar, em que “o amor é paródia no constituição inseparável entre morte, vida e humano, tripé da experiência do real,
não-amor/ a verdade paródia da mentira/ o universo um alegre suicídio”35 (Ba- por vezes forçada ao limite até a experiência do impossível, de dissolução e de
taille, 2015, p.33), aliando o senso ao contrassenso e gerando fluxos de contami- apagamento do sujeito.
nação poética. Aqui também um exemplo desse fio de Ariana: Mas, se a morte é uma experiência extrema, ela é ainda assim possibilida-
de, “uma vez que só o homem pode morrer, de sorte que a morte ainda é para
o nada não é mais que em mim eu mesmo ele uma possibilidade, uma potência, porque a rigor ela é a possibilidade da
o universo não é mais que minha tumba impossibilidade.” (Blanchot apud Antelo; Bataille, 2014, p.24), como sublinha
o sol não é mais que minha morte Raúl Antelo, citando Maurice Blanchot, no prefácio à edição brasileira de O
erotismo. Ou seja, a experiência do impossível, como a morte de fato, são movi-
34 l’excès de ténèbres/ est l’éclat de l’étoile/ le froid de la tombe est un dé// la mort joua
le dé/ et le fond des cieux jubile/ de la nuit qui tombe en moi. 36 le néant n’est que moi-même/ l’univers n’est que ma tombe/ le soleil n’est que la
35 Em O ânus solar, temos: “O ar é a paródia da água./ o cérebro é a paródia do equador./ mort// mes yeux sont l’aveugle foudre/ mon cœur est le ciel/ où l’orage éclate// en
o coito é a paródia do crime” (Bataille, 2007, p.46). moi-même/ au fond d’un abîme/ l’immense univers est la mort.

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mentos e não paradas, não se pode conhecê-las de fato senão por subterfúgios “Por que te desprezei?”, “Por que te fiz rainha?”, “Quando é que vem?” (Ibid,
de visibilidade. p.37), “Onde nasceste, morte?”, “Que cores, ocaso e monte?”, “Por que não par-
Ora, são justamente as experiências de intensidade máxima que Bataille vai tes?” (Ibid, p.53), “Que rumos? Que calmarias?”, “Me levas pra qual desgosto?”,
valorizar, como empreendimento de deslocamento e dessubjetivação. Moraes e “Há luz, há um deus que me espia?” (Ibid, p.56), “Por que me fiz poeta?” (Ibid,
Paixão, na apresentação à tradução dos poemas de O arcangélico, vão sublinhar esta p.60), “Devo eu morrer?”, “Deves me perseguir?” (Ibid, p.62). E aqui o único
tendência radical que já se encontrava nos ensaios filosóficos de Bataille: “Estra- momento em que a morte digna-se a prestar contas a que veio: “Que queres,
nha eloquência, a desse ‘eu-lírico’ que se apaga em cada verso, condenando seu morte,/ Vestida de flor e fonte?// – Olhar a vida” (Ibid, p.54).
próprio enunciado ao mais profundo silêncio. Aliás, é em torno do silêncio que Mas a morte não chega de fato, e, se chegasse, já não encontraria uma poeta
essa poesia gravita o tempo todo, como que buscando avizinhar-se da morte.” falante, capaz de dizê-la. Daí a linguagem, diante da morte, ser sempre linguagem
(Moraes, Paixão; Bataille, 2015, p.19). da iminência. A morte é miragem, zona de contemplação, interlocutora fantas-
A morte consiste, portanto, no lugar privilegiado para essa experiência ex- ma. Interpela-se a morte: “Pertencente te carrego:/ Dorso mutante, morte. / Há
trema – impossibilidade possível –, e parece oportuno que tenha sido tema cen- milênios te sei/ E nunca te conheço.” (Hilst, 2013, p.31), ressaltando seu caráter
tral do único livro de poemas de Bataille, em que o pensamento ensaia questões- esquivo, inapreensível, porque, por mais que possamos contemplar a sua aproxi-
-chave de sua filosofia de forma ainda mais selvagem. Igualmente notável que mação, caminhar em direção a ela enquanto ela caminha em nossa direção, este
Hilda Hilst, interessada nas questões-limite do humano, tenha dedicado um livro encontro é fugidio e incompleto, um raio de luz numa noite escura. De modo
de poemas à morte, também um dos grandes temas de sua obra. E, embora o que a consciência da morte – pré-requisito do ser – não pode prescindir da repre-
tratamento a essa questão tenha adquirido tonalidade diferente entre os dois au- sentação, do espetáculo, “sem cuja repetição poderíamos, diante da morte, per-
tores, o espectro incansável da morte que vive uma vida humana, do ser que vive para manecer estrangeiros, ignorantes, como aparentemente o são os animais. Nada
a morte, ronda o limite que abre para a imensidade esmagadora, “criminosa”, de é menos animal, de fato, do que a ficção, mais ou menos distanciada do real, da
modo que HH e Bataille delinearam de certa forma essa vastidão (des)conhecida, morte” (Bataille, 2013, s/p).
apostando na dramatização da morte como condição da vida, e na mortalidade De modo que, se a morte, como experiência extrema, é algo que escapa
como condição da poesia. ao símbolo e excede à representação, no entanto é tema de uma enxurrada de
Na apresentação às odes, Alcir Pécora comenta: “Construir a interlocução publicações, dramatizações, ficções, e eixo central que conduz a vida que con-
da morte significa, para Hilda, permanecer atento ao seu trote de cascos enfaixa- duz à morte. No ensaio Tonalités mortelles (2016)37, de José Thomaz Brum, somos
dos, que trabalham em silêncio pela aniquilação. Importa sobretudo a observação apresentados a algumas paisagens da morte a partir de grandes figuras do pensa-
minuciosa de seu lento consumir da vida, à maneira da ferrugem, que não dorme mento. Segundo Thomaz Brum, para Giacomo Casanova, a vida é uma espécie
nunca” (Pécora; Hilst, 2013, p.09). Assim, este encontro, embora de expectativa de ópera, um divertimento musical. E a morte, por sua vez, é a intrusa que vem
assustadora, envolve também certa suavidade, um movimento de lentidão inten- interromper os prazeres da vida. Para Vladimir Jankélévitch, a morte é um mons-
siva no trajeto até a hora marcada. Trata-se nestas odes de uma “espia cuidadosa tro que revela o não-ser, e é tão difícil pensá-la como é difícil pensar Deus, o tem-
da morte em vida”, mais uma vez nas palavras de Pécora, apontando para a ob- po, a liberdade ou o mistério musical. Para o romeno Emil Cioran, a “utilidade”
servação tateante deste eu-poético, este o seu método de trazer conforto frente da morte é denunciar a ilusão da vida, e morrer – o que sem nenhum esforço
às indagações sucessivas e infindáveis. fazemos – pode ser uma vantagem. O ensaio fecha com a visão de Annemarie
Uma série de perguntas, portanto, é feita para esta interlocutora: “Como
virás, morte minha?”, “Como te emoldurar?”, “Como me tomarás?” (Ibid, p.33), 37 José Thomaz Brum, “Tonalités mortelles”, Alkemie, 2016 - 2, n° 18, p. 65-67.

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Schwarzenbach sobre a morte, afirmando que ela é inelutável, incompreensível, INCORPORADA MORTE
inumana. Bataille e Hilst também deixaram sua contribuição neste campo, ex-
plorando seu imaginário, demarcando a consciência da morte, e apontando para Como horizonte de expectativa, destino inalcançável a que se tende, vazio e
a impossível tarefa de lhe atribuir sentido, sua incoerência abissal. Hilst sobre a ausência, e por sua inclinação erótica, a morte situa-se no campo do fetiche e do
morte: desejo, na medida em que o homem é atraído pelo que o repugna e o assusta. E a
interdição de que é alvo, que trata da vontade do homem de querer durar, impõe
XIII sobre a morte os limites que ativam o desejo. Pierre Klossowski, no ensaio “O
Funda, no mais profundo do osso. monstro”, do primeiro número de Acéphale 39, observa: “não é na presença, mas
Fina, na tua medula na espera dos objetos ausentes que se gozará desses objetos – isso quer dizer que se gozará
No teu centro-ovo. Rasa, poça d’água desses objetos destruindo sua presença real” (Acéphale, 1936, p.5), de modo que há
Tina. Longa, pele de cobra, casca. um esforço para se escapar ao objeto da espera. Ora, para reforçar a hipótese
Clara numas verticais, num vazado sol de que a Lei ativa nosso próprio desejo, Bataille cita Sade, em Cento e vinte dias
Da tua pupila. Paciente, colada às pontes de Sodoma: “a verdadeira maneira de estender e multiplicar seus desejos é querer
Onde devo passar atada aos pertences da vida. impor-lhe limites” (Sade apud Bataille, 2014, p.72). Assim, o homem não apenas
Em tudo és e estás. teme, mas também busca e deseja a morte, por vezes tendendo a ela voluntaria-
meus olhos são raios cegos mente, consciente ou inconscientemente, e opera no sentido de criar um rico
meu coração é o céu imaginário para a sua espera. Mas a morte não chega de fato, ela é da ordem do
desejo. É também na epígrafe ao ensaio de Klossowski que lemos a dramaturgia
onde a tempestade eclode (Hilst, 2013, p. 41)
que Sade criou para a sua morte:
E Bataille:
Será enviado um mensageiro ao senhor Lenormand, mercador de madei-
eu sou o morto ra... para pedir-lhe que venha ele próprio, com uma charrete, buscar meu
o cego corpo para ser transportado... ao bosque de minhas terras da Malmai-
a sombra sem ar son... onde quero que seja colocado, sem cerimônia alguma, na primeira
como os rios no mar mata de corte cerrada que se encontra à direita no dito bosque... Minha
em mim o ruído e a luz fossa será aberta nessa mata pelo caseiro da Malmaison, sob a inspeção
se perdem sem fim do Sr. Lenormand, que só deixará meu corpo após tê-lo colocado dentro
eu sou o pai
e o túmulo 39 A Conjuração Sagrada – 24 de junho de 1936. Neste ensaio, Klossowski reflete a
céu (Bataille, 2015, p.39)38 respeito dos “modos de espera” em Sade, suas personagens estando inseridas em um
universo que renega a imortalidade da alma. Ele observa: “negando assim a elaboração
temporal de seu próprio eu, sua espera as recoloca paradoxalmente no estado de pos-
sessão de todas as possibilidades de desenvolvimento em potência, que se traduz por
38 je suis le mort/ l’aveugle/ l’ombre sans air// comme les fleuves dans la mer/ en moi seu sentimento de potência incondicionada” (Acéphale, 1936, p.6). A isso Klossowski
le bruit et la lumière/ se perdent sans finir// je suis le père/ et le tombeau/ du ciel. chamará de candidatura à monstruosidade integral.

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da dita fossa... A fossa uma vez recoberta, serão semeadas bolotas de Quando eu morrer, quero que ao invés das bolinhas de algodão que usu-
carvalho, a fim de que, em seguida, o terreno da dita fossa se achando almente colocam nas narinas do morto, que você providencie bolinhas de
reguarnecido e a mata se achando cerrada como era antes, os vestígios de pentelho virgem. Sei que será uma estafante tarefa porque primeiro: não
meu túmulo desapareçam da superfície da terra, como me gabo de que há virgens. Segundo: as que seriam virgens seriam impúberes e portanto
minha memória se apagará do espírito dos homens. (Acéphale, p.5) sem pentelhos: glabras. Vá pensando nisso tudo. Outra coisa importante:
pinte uma vagina dentro de uma casca de ovo, com nuances bleu foncé e
O ritual que Sade deixa registrado em seu testamento tem como objetivo negro, e estando eu morto coloque a pequena tela no bolso da minha calça.
final o apagamento do indivíduo, seu descolamento da memória da humanidade, Do lado direito. Enquanto coloca, alise com brandura meu caralho-prega
o que soa coerente com o projeto de desindividuação e dissolução do sujeito que (este que eu agora aliso enquanto te escrevo e que está tudo aquilo túr-
Bataille atribui à poesia e à literatura (ao erotismo, ao sacrifício, à morte), e assim gido, duro, aceso, pulsante, vibrátil, túmido, sem que os amigos ao redor
Sade ensaia uma saída literária da vida. Bataille, no ensaio que dedica a Sade em A do esquife percebam, para não ficar constrangedor para mim, percebes?)
literatura e o mal40, discorre a respeito deste testamento, na chave do que ele chama (Hilst, 2014, p.106)
de “vontade de destruição de si” como sentido da obra sadiana: “o sentido de
uma obra infinitamente profunda está no desejo que o autor teve de desaparecer Mas se a morte, tão banal e cotidiana quanto extrema e insana, é representa-
(de se dissolver sem deixar nenhum vestígio humano): pois não havia nada mais da de forma solene, também ela está ligada ao aniquilamento do ser e à podridão
à sua altura” (Bataille, 2015, p.104/105). Mas é curioso que tenha se dado ao tra- do corpo. O cadáver – o que resta do ser destituído de vida – em um primeiro
balho de deixar registrado a teatralização de seu enterro, como grand finale da vida, momento semelhante ao corpo vivo, está em trânsito para virar matéria fétida e
seu clímax, ponto máximo, o que por outro lado contribui para a consolidação comida de verme, quando então já não terá nome algum na língua humana. Mas
de sua memória. E assim como o desejo final de Kafka não foi respeitado e seus há algo de muito estranho, bastante perturbador: aquele recipiente que abrigava
manuscritos sobreviveram, Sade foi enterrado no cemitério do asilo de Chareton, a vida de um ser, sua identidade de tantas formas manifestada, agora é vazio,
em uma cova com uma cruz e sem nenhuma inscrição. E, mais que isso: sua obra ausência, impossibilidade, nada. Mas o cadáver é sempre um terceiro, e, por isso,
eternizou-se. espetáculo da morte. Bataille discorre sobre este espanto:
Em Contos d’escárnio, textos grotescos, o testamento de Crasso, por sua vez,
reivindica um ritual funerário bastante criativo. Ele dispensa todo culto sobre a Na morte de outro alguém, enquanto esperávamos, nós que sobrevivemos,
morte e apronta uma cerimônia cujo centro gravitacional é o desejo sexual: o ca- que se mantivesse a vida daquele que, perto de nós, repousa imóvel, nossa
dáver imaginado, embora morto para algumas coisas, continua vivíssimo quando espera, de repente, se resolve em nada. Não que um cadáver seja nada,
o assunto é ter o sexo estimulado. Em mais esta passagem, fica claro que as cenas mas esse objeto, esse cadáver está marcado desde o princípio pelo signo
pornográficas hilstianas são, em boa parte, uma grande comédia: nada. Para nós que sobrevivemos, esse cadáver, cuja purulência próxima
nos ameaça, não corresponde ele próprio a nenhuma expectativa seme-
lhante àquela que tínhamos desse homem estendido, quando estava vivo,
mas a um temor: assim, esse objeto é menos que nada, pior que nada.
(Bataille, 2014, p.82)
40 Retomada do artigo “Le secret de Sade” [O segredo de Sade] publicado nos números
15-16 (ago-set) e 17 (out) da revista Critique, em 1947. (Nota dos editores da edição bra-
sileira de La littérature et le mal).

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Da morte não sabemos nada; assistimos todos os dias à morte. Alguns dias E minha voz e cantiga?
a morte está ao nosso lado, e podemos mirá-la bem de perto, esquadrinhá-la. A Meu verso, meu dom
morte, esta velha senhora do tempo, cuja zona de influência estende-se indistin- De poesia, sortilégio, vida?
tamente entre os distintos, condição da vida e da poesia. A morte, a quem Hilda Ah, leva-os contigo.
Hilst dedicou odes, por sua ilustre presença, por sua passagem célebre. Voltando Por mim.
a pensar na personagem de Ivan Ilitch, a morte é a agonia de um burocrata, o
jogo de uíste, a decência da vida, a hipocrisia das convenções sociais, a morte é a Algum desapego se faz necessário, pois, à exceção de Lázaro, a quem Jesus
casa nova, a queda da escada, é a dor no rim, é a indiferença da esposa e dos fi- ordenou que retornasse à vida, e à exceção do sol, que morre todos os dias para
lhos, é a cumplicidade do criado Gerasim. Seu obituário no jornal, e o seu velório. voltar a nascer no dia seguinte, a morte não parece muito afeita a devolver aquilo
Há algo que a morte leva, algo que acontece no corpo e nos deixa perple- que tomou. Assim, nos rendemos: vem, morte, toma aquilo que é teu, pois, con-
xos, seu componente sagrado: ela é o que não deve ser tocado, embora de forma denados de antemão, e sem a esperança de sermos absolvidos, com ansiedade
recorrente seja alvo de profanação. A morte é ameaça, desconfiança e solenidade, aguardamos o dia em que, de forma silenciosa ou explosiva, pronunciarás o cha-
mas é também náusea, repugnância e nojo. O corpo como primeiro espelho da mado final. Que a terra nos seja leve.
morte: morrem-se dedos, mãos, braços, peitos, ancas, face, pés, pernas... e o que
resta? O que cabe à vida e o que cabe à morte: o que nos pertence?

XI
Levarás contigo
Meus olhos tão velhos?
Ah, deixa-os comigo
De que te servirão?
Levarás contigo
Minha boca e ouvidos?
Ah, deixa-os comigo
Degustei, ouvi
Tudo o que conheces
Coisas tão antigas.

Levarás contigo
Meu exato nariz?
Ah, deixa-os comigo
Aspirou, torceu-se
Insignificante, mas meu.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

SOL-TE

SOLTE O SOL

SOLTE
TODO SOL
TODA SORTE

PODE
QUE VOLTE

SOL-TE

Paulo Leminski

Eros e Tânatos – talvez possamos evocar os dois seres mitológicos como


motores ocultos deste livro. Na mitologia grega, Eros, o deus do amor, o mais
belo dos deuses, é o portador do arco e da flecha com os quais costuma enlaçar
homens, mulheres e deuses. Certa vez, adormeceu em uma caverna sob o feitiço
de Hipno (deus do sono). Ao acordar de um sono relaxante e povoado de so-
nhos, suas flechas estavam espalhadas pela caverna em meio às flechas de Tâna-
tos, o deus da morte. Ao recolhê-las, sem querer Eros levou também algumas que
pertenciam a Tânatos, e assim passou a portar flechas de amor e morte.
Tudo indica que fomos atingidos pelas flechas embaralhadas de Eros e Tâ-
natos, e gestos criativos e destrutivos aparecem em conexão da mais corriqueira

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à mais grandiosa ação humana. Tudo indica que em Georges Bataille e em Hil- clarões abertos por esses autores e refletir a partir dessa experiência e do resíduo
da Hilst estas flechas abriram feridas profundas, e exibi-las tornou-se questão que sobrevém em sua esteira, terá sido essa nossa estratégia de aproximação.
de vida ou morte: a violência que por vezes anima essas obras leva a crer que Sabemos que ordem e transgressão da ordem são conceitos e práticas que
teria destruído seus autores tivesse sido mantida encarcerada. A alguns de nós se completam e se retroalimentam. Momentos de suspensão da ordem e meca-
– leitores, admiradores – cabe também realizar um segundo tempo dos efeitos nismos de expressão de forças reprimidas são, assim, instaurados em privilégio
produzidos por esses textos, a fim de que não – apenas – nos destruam, e assim da própria ordem, como vimos em relação aos rituais de sacrifício, aos eventos
nasceu este livro. de violência, dispêndio e êxtase. Essa estratégia, entretanto, nunca será suficiente,
Se fosse o caso de refletir sobre as características deste livro, talvez pudés- e estamos condenados – alguns mais, outros menos – ao desgosto da limitação
semos dizer que o pensamento aqui se fez de forma aproximativa, produzindo diária. Assim, a atividade artística, a atividade erótica – mas também por vezes o
associações, realizando gestos de magnetização, abrindo caminhos, searas, crian- crime, com toda a irresponsabilidade que esta proposição contém – proporcio-
do campos especulativos, deslocando proposições. Assim, Hilda Hilst puxou nará momentos de suspensão e fuga dos controles direcionados à vida humana.
Georges Bataille, Georges Bataille puxou Hilda Hilst, os olhos fixaram o sol e, Quais e quantas fronteiras atravessar será uma escolha de ordem ética e estéti-
desviando-se, divisaram a lama, os corpos reivindicaram presença em desmem- ca. No entanto, embora se evoquem clarões de continuidade que se pretendem
brar-se e fundir-se, o ânus desabrochou mostrando a que veio, o divino foi con- atemporais e soberanos, estamos sempre dialogando com a história, essa força
vocado a lançar o fio que nos une a todas as coisas, e, por fim, a morte selou o descontínua que nos localiza em relação a todas as outras variantes.
percurso do eu ao nada como haverá sempre de ser. Os movimentos de que tratamos ao longo deste livro situam-se sobretudo
Evocamos sem cessar a sensação de continuidade a que os movimentos do entre as experiências da vida moderna de ruptura das fronteiras definidoras do
erótico, do sagrado e da morte tendem, na fusão dos objetos descontínuos, no indivíduo e da linguagem, momento em que o corpo, por exibido e maltratado,
ultrapassar dos limites do indivíduo e da linguagem. E se não foi possível calcu- ganha centralidade e emergência, e por isso é ele uma linha de força que atravessa
lar os perigos a que estivemos expostos ao experimentar o prazer e a dor destes toda a nossa reflexão. Se a modernidade nos ultrapassou, e hoje denominamos
gestos de transgressão, no entanto trata-se de admitir que o risco a que nos sub- custosamente nossa época de modernidade tardia, pós-modernidade, contempo-
metemos é parte constitutiva desta operação: não há dilaceramento possível que raneidade, com suas questões e sintomas, se duas guerras mundiais atravessaram
não seja acompanhado de uma boa dose de surpresa. o ocidente e relegaram à sua história imagens de carnificina e horror, além de
Mas, embora tenham evocado experiências-limite e, portanto, esgarçado os outros tantos espetáculos grotescos do homem, como chega o corpo até aqui? E
limites do que nos forma, Hilst e Bataille ainda assim nos legaram uma obra, seus como nos atravessa a leitura desses autores que o colocaram em questão, refle-
textos foram publicados, as estantes de bibliotecas e livrarias contêm seus livros, tindo com filosofia e ficção a respeito de suas particularidades orgânicas e de seu
a eles recorremos. Assim, embora esteja em jogo a libertação de uma determi- embate com o mundo?
nada maneira de ser que nos mantém cativos, há algo deste cativeiro de que não Além de Eros e Tânatos, das forças do sexo e da agressividade, da libido
podemos abrir mão, do contrário a desorganização a que seríamos submetidos e da destruição, Apolo e Dionísio não podem ser esquecidos como motores de
nos tornaria seres inviáveis. nossa escrita aqui. Assim, a forma e a deformidade, a harmonia e o caos, o espí-
Foi jogando luz sobre os limites ao mesmo fixados e recusados, foi exibin- rito da ordem e a vontade espontânea e extasiada são linhas de força que atraves-
do experiências que impõem-se sobre esses limites de maneira soberana, que sam as reflexões a que nos dedicamos, no movimento de fluxo contínuo em que
foi possível contemplar um pensamento de ultrapassagem, proposição que pode uma ideia se liga a outra, em fluidez ou embate agonístico. Eros e Tânatos foram
conter em si o sentimento de libertação. Assim, habitar momentaneamente os as duas figuras mitológicas escolhidas por Freud para tratar das pulsões de vida

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e morte, centrais à psicanálise. Apolíneo e dionisíaco, por sua vez, são conceitos
notoriamente ligados ao pensamento estético de Nietzsche em O nascimento da
tragédia. E assim os dois grandes pensadores do fim do século XIX são também
motores ocultos deste livro, como de grande parte do pensamento moderno que
se produziu no século XX e que ainda se produz.
Dispêndio, excesso, gozo. Prazer, violência, morte. Essas noções e suas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
implicações foram fonte de diferentes formas de elaborações éticas e estéticas,
filosóficas e literárias. Hilda Hilst e Georges Bataille deram contribuições sin-
gulares a estes temas, impossibilitando o repouso do pensamento e do sentido,
emprestando-lhes fundamentação e poesia. Assim, dizemos deles transgressores,
revolucionários, sem medo de que estes sejam títulos fortes demais para suas
personalidades, até porque não há medida exata para um termo como esse. Sob AGAMBEN, G. Bataille e o paradoxo da soberania. Trad. Nilceia Val-
o sol de Hilda Hilst e de Georges Bataille certamente haveremos de nos queimar. dati. In: A exceção e o excesso; Agamben & Bataille. Outra Travessia. Revista de
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Entrevista de Hilda Hilst para a TV Cultura
REVISTAS: Concedida em 1990, por ocasião do lançamento de "O caderno Rosa de
Lori Lamby"
Acéphale, vols 1, 2,3, 4. Tradução Fernando Scheibe. Florianópolis: Cultu- Disponível em: https://bit.ly/2J1fiQh .
ra e Barbárie, 2014.
Vídeos realizados por ocasião do Evento “Ocupação Hilda Hilst” (2015).
Sade: Attaquer le soleil. Paris : Beaux Arts Éditions, 2014.
DOCUMENTOS:
TESES CONSULTADAS:
Arquivos do Acervo Hilda Hilst, do Centro de documentação Alexandre
ANDRADE, Sônia da Silva Purceno. Orientador: Antonio Alcir Bernárdez Eulálio (Cedae - IEL - Unicamp).
Pécora. A torre de capim de Hilda Hilst: o ofício do escritor em “Fluxo”,
dramaticidade e humorismo mordentes, 2013. 495 p. Tese (doutorado) - Uni-
versidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.
Disponível em: https://bit.ly/2Ji65HA .

OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. Orientadores: Profª. Drª. Maria Ester Ma-
ciel de Oliveira Borges (UFMG) e Prof. Dr. Dominique Lestel (ENS). INVEN-
TAR UMA PELE PARA TUDO Texturas da animalidade na literatura e
nas artes visuais (Uma incursão na obra de Nuno Ramos a partir de Ge-
orges Bataille), 2014. 353 p.Tese (doutorado) - Linha de pesquisa: Literaturas
e Políticas do Contemporâneo. Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade
de Letras.
Disponível em: https://bit.ly/2M5vdPr .

RECURSOS AUDIOVISUAIS:

“Hilda (Humana) Hilst” (2002)


Documentário produzido em 2002 por alunos da disciplina "A Mensagem

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