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2018
Decanos
Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz (CTCH)
ISBN 978-85-7920-220-9
Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS)
Prof. Luiz Alencar Reis da Silva Mello (CTC)
Prof. Hilton Augusto Koch (CCBS)
1. Teoria Literária. 2. Analise Literária. 3. Crítica Literária. 4.
Literatura. 5. Literatura Brasileira. 6. Literatura Francesa. 7. Literatura
Conselho Gestor PUC-Rio
Comparada. 8. Hilst, Hilda (1930-2004). 9. Bataille, Georges (1897-
Augusto Sampaio, Danilo Marcondes, Fernando Sá,
1962). 10. Ética Filosófica. 11. Estética Literária. 12. Erotismo. 13.
José Ricardo Bergmann, Júlio Diniz, Luiz Alencar
Sagrado. 14. Morte. 15. Transgressão. 16. Narrativa Hilstiana.
Reis da Silva Mello, Luiz Roberto Cunha, Miguel 17.EnsaiosBataillianos.I. Título. II. Série. III. Poéticas da radicalidade.
Pereira e Sergio Bruni. IV. A paixão dos raios solares: Hilda Hilst e Georges Bataille já se
encontraram. V. Os obscenos. VI. Os santos profanos. VII. Os
© Editora PUC-Rio - Rua Marquês de S. Vicente, mortais. VIII. Cardoso, Marília Rothier. IX. Pensamento Brasileiro. X.
225. Casa Editora PUC-Rio/Comunicar - Gávea, Barbosa, Aline Leal Fernandes.
Rio de Janeiro, RJ – 22451-900 - Tel.: (21) 3527-
1760/1838 edpucrio@puc-rio.br CDU 82 CDD 800
www.puc-rio.br/editorapucrio
OS OBSCENOS 37
Arriscar queimar-se 55
Obsceno sol 61
O olhar apodrecido 66
Porcarias e revelações 71
Olhos por todos os lados 78
De olhos (e pernas) abertos 81
Sol incandescente 85
OS SANTOS PROFANOS 89
Tocar o abismo do céu 98
Construções destrutivas 102
Perdições 106
Economia literária 107
Santo, santo, santo 110
Reajustes do corpo 115
Reinvenções carnais 118
Suplícios do corpo 121
OS MORTAIS 127
De mãos dadas 138
O nome da morte 149
A morte de 152
Possibilidade da morte 163
Incorporada morte 167
POÉTICAS DA RADICALIDADE
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Há uma atração forte pelo sol. Imantados, nossos olhos giram em direção
a ele. Surpreende que, tão iluminado e tão vital, o sol também nos queime e nos
destrua. Que a claridade do meio-dia equivalha à noite absoluta, o impedimento
do olhar. Excessivo astro, transbordante esplendor: dele tenho medo, dele me
aproximo, desejo e angústia. A maldição de Ícaro: tomado pelo desejo de voar
perto do sol, derreteu-se, desfigurou-se, desapareceu. Qual será o limite do ilimi-
tado, seu interdito mais feroz, a medida do nosso enfrentamento?
Para Georges Bataille, o sol foi uma metáfora importante, como disposi-
tivo de excesso e exuberância, de glória improdutiva. O sol fonte de irradiação
inesgotável que dispensa toda a sua energia sem contrapartida, além disso órgão
excretor, ânus que expele os rejeitos de um corpo homogêneo, notabilizando o
que excede. São diversas as atribuições que Bataille lhe dedica, invariavelmente
apontando para o ímpeto desafiador com que tratou seus temas diversos, o que
lhe legou uma obra por vezes inclassificável, além da reputação de filósofo, santo,
talvez louco, frase de sua própria autoria1. A marca profunda que lhe deixou o pai
sifilítico, a vocação religiosa precoce adiante recusada, as duas guerras mundiais,
o flerte com o surrealismo e o comunismo, a obra ficcional profundamente erótica,
1 É interessante que nesta frase Bataille mostre estar consciente de que o que ele faz não
pertence ao continente stricto sensu da filosofia. Aproximando-a da santidade e da loucura,
ele parece nivelar suas operações e saberes, fazendo uma auto-descrição bastante precisa.
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Na década de 1990, Hilda Hilst vendeu grande parte de seu acervo – ma-
nuscritos, anotações, cadernos, agendas – para o Centro de Documentação Cul-
tural Alexandre Eulálio, da Unicamp. Observa-se aí um dedicado trabalho de
elaboração de seus temas e suas personagens, indicando que ela pensava sua
obra durante um longo período, e pensava escrevendo. É interessante encontrar
também nesse material reflexões agudas sobre o seu próprio trabalho, talvez para
suprir o que ela considerava insuficiência de leitura e crítica. Tais reflexões apare-
ceram vez ou outra em entrevistas nas quais Hilda Hilst apresentava-se com ma-
estria, contribuindo para a construção de uma imagem ousada e desconcertante,
e para a criação de mais um gênero hilstiano, além da poesia, da prosa, do teatro
e das crônicas.7 A seguir, transcrevemos trecho de um caderno de HH, em que
ela trata de apontar o universo e as preocupações que atravessam a sua criação,
apostando sempre no excesso como vetor que orienta sua obra, excesso para o
qual sua obra tende:
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8 Essa expressão foi tirada da nota do tradutor Fernando Scheibe à edição para a editora
Página do excesso. Autêntica de A literatura e o mal (Bataille, 2015, p.7).
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15 HILST, Hilda. Pornochic – O caderno rosa de Lori Lamby/ Contos d’escárnio textos grotescos/
Cartas de um sedutor. São Paulo: Editora Globo, 2016, p.73.
16 HILST, Hilda. Pornochic – O caderno rosa de Lori Lamby/ Contos d’escárnio textos grotescos/
Cartas de um sedutor. São Paulo: Editora Globo, 2016,, p.77. Grifos de HH em A literatura e o mal.
17 Em entrevista à TV Cultura, por ocasião do lançamento de O caderno rosa de Lori Lamby
e Amavisse, Hilda Hilst diz: “O Amavisse é seriíssimo, naturalmente vão comprar um ou Nos seus cadernos e anotações, também a referência a Georges Bataille
dois. Eu espero que a Lori Lamby comprem cem mais ou menos”. Link para assistir:
https://bit.ly/2J1fiQh
aparece, indicando sua presença entre os seus principais interlocutores. Em uma
lista de livros que Hilda Hilst rascunha, A literatura e o mal, de Georges Bataille,
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4 PRADO, L.A. Lori Lamby, o ato político de Hilst. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14
jun, 1990. Caderno 2, Leitura, Erotismo, Polêmica, p.4.
5 Massao Ohno (1936-2010) foi um dos principais editores da carreira literária de Hilda
Hilst, recusada sistematicamente por grandes e médios editores. É considerado um dos
principais artistas gráficos brasileiros do livro, tendo inovado em formatos, uso de papéis
e cortes especiais, em trabalho meticuloso e artesanal, modernizando a edição gráfica no
país, que até então tinha um aspecto bastante acadêmico. Apelo para que HH não enveredasse para a pornografia.
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O obsceno na escrita pode ser uma arma para acordar o outro que dorme
profundamente. Uma cuspida também é uma arma-insulto. Você pode
usar o obsceno com sarcasmo para por exemplo mostrar a falsidade das Obsceno é a miséria, a fome, a crueldade.
convenções.
6 PRADO, L.A. Lori Lamby, o ato político de Hilst. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14
jun, 1990. Caderno 2, Leitura, Erotismo, Polêmica, p.4.
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O obsceno é uma arma para acordar o outro que dorme profundamente. 9 Este texto foi publicado como prefácio da reimpressão de Documents, organizada pelo
próprio Denis Hollier. Paris: Jean-Michel Place, 1991. Depois foi republicado em Les
Dépossédés: Bataille, Caillois, Leiris, Malraux, Sartre. Paris: Minuit, 1993. Publicado no Brasil
em 2012 na Alea, revista do Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculda-
de de Letras -UFRJ. Acessado em 25/05 em: https://bit.ly/2kBOeN9 .
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33 Antes disso, o conto foi publicado pelo jornal Aqui, de São Paulo, edição de 10 a 16
de fevereiro de 1971.
34 Essas citações não contêm página pois foram retiradas do conto publicado no jornal,
em imagem na página anterior.
Gestalt no jornal Aqui, de São Paulo, edição de 10 a 16 de fevereiro de 1971. 35 Variações e aproximações do nome de Hilda Hilst em suas personagens são constan-
tes e identificáveis.
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Quando o cu do Liu-Liu olhou o céu pela primeira vez, ficou bobo. Era Personagem de oito anos, Lori Lamby fala de toda a sua experiência sexual
lindo! E ao mesmo tempo deu uma tristeza! Pensou assim: eu fiu-fiu, a partir de um repertório infantil. O universo da criança atravessado por essa
que não sou nada, sou apenas um cu, pensava que era Algo. E nos meus experiência é contado com a ingenuidade da descoberta, em um trabalho de
enrugados, até me pensava perfumado! E só agora é que eu vejo: quanta aproximação de universos a princípio afastados, portanto o estranhamento e o
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confronto com o desconhecido, um jogo que é construído a partir das ferramen- nada barra definitivamente a suposição de que Lori seja apenas o nome
tas disponíveis à personagem, ressaltando o contraste entre o mundo da criança do narrador-personagem criado pelo narrador-personagem do pai de Lori,
e o do sexo. Narrada por uma menina de oito anos, a carga sexual de que se vale gênio incompreendido, rendido à venalidade de Lalau, o editor. E isto
é potencializada à perversão, à situação de crime, pedofilia. pode seguir em várias direções, sacando-se narrador de dentro de narra-
Diferentemente da novela batailliana Minha mãe, que tem no incesto a ideia dor, caderno de dentro de caderno, sem que ao cabo dessa incontinência
clara de transgressão – e no que isso traz de angústia e prazer –, a narrativa de da imaginação uma instância se afirme como a única possível. (Pécora,
Lori Lamby está destituída de culpa no seu contar, pois os conceitos e códigos 2005, p.25)
morais ainda não foram todos eles assimilados pela protagonista, que atravessa
a experiência, de um lado, pela perspectiva do corpo e seus modos de sentir, do Sabemos que esse livro tem afinidades em relação à – pretensa – guinada na
outro, pela perspectiva do capitalismo e seus modos de apropriação. Lori diz: escrita que Hilda Hilst estava realizando com o lançamento de sua trilogia erótica.
“Ele perguntou me lambendo se eu gostava do dinheiro que ele ia me dar. Eu Lançado em 1990, quando a autora tinha 60 anos, cansada de editores e leitores
pouco afinados com sua obra, considerada rebuscada demais para o grande pú-
43 Em vários momentos Lori Lamby se vê em busca do significado das palavras. Um blico e, portanto, impossibilitada de fazer parte do círculo daqueles que ganham
exemplo:
“- Lorinha, você tem a bundinha mais bonita que eu já vi, e eu já vi que você tem dois
dinheiro com livros, desgostosa da pecha de ser uma escritora genial que não era
furinhos, duas covinhas em cima da bundinha, e isso é raro. lida, uma autora maldita, HH resolve fazer uma prosa declaradamente – e lançada
- O que é raro? midiaticamente, pode-se dizer – pornográfica, anunciando seu “adeus à literatura
- Raro é quando pouca gente tem.
- O que, por exemplo? séria”. Porém, já foi dito o quanto essa fase soa mais como uma extensão – ou o
- Dinheiro – ele disse – e os teus furinhos. escancaramento – de uma escrita que já tende ao erotismo, e também o quanto a
- Mas dinheiro é fácil.
- É fácil nada. tentativa de estreitar os laços com o público não resultou em uma literatura mais
- Pra mim é fácil. “fácil” ou “convencional”, e, portanto, mercadológica, demonstrando que Hilst
- É que você é predestinada.
Aí ficou difícil para ele explicar o que é predestinada.” (Hilst, 2016, p.23) não parecia preocupar-se muito com esse provável leitor.
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Por que desfazer-se de Deus para refugiar-se em si mesmo? Por que essa
substituição de cadáveres?
Emil Cioran, Silogismos da amargura.
Sentada, uma das pernas levantada, coxas afastadas, Madame Edwarda1 pu-
xava a pele dos dois lados a fim de abrir a fenda ainda mais: “Assim, os trapos de
Edwarda olhavam para mim, peludos e rosados, cheios de vida como um polvo
repugnante”. Em seguida, com a voz rouca, ela não hesita em afirmar: “veja, eu
sou DEUS”. A “chaga em carne viva” insiste desafiadoramente para que os olhos
não se desviem: “Não, você tem que olhar: olhe!” (Bataille, 1981, p.82). Publicada
em 1941, pela Éditions du Solitaire, sob o pseudônimo de Pierre Angélique, a
novela batailliana narra a experiência angustiada e excitante do encontro entre
um homem – o narrador – e a prostituta que dá nome ao título, marcada pela
seguinte evolução: quanto mais Madame Edwarda for obscena, mais ela será di-
vina. Deus-vulva-peluda, sol que atrai e ofusca, perturbadora imagem, entretanto
irresistível: “não esquecerei jamais o que há de violento e maravilhoso no desejo
de abrir os olhos, encarar de frente o que acontece, o que é. E eu nada saberei sobre
o que acontece se nada souber sobre o prazer extremo e a extrema dor” (Ibid,
p.10), afirma Bataille no prefácio a esta obra. A edição de 1956, editada pela Jean
1 Escrito sob o pseudônimo de Pierre Angélique, originalmente em 1941, com uma tira-
gem inicial de 50 exemplares, mais 50 em 1945, tinha um falso título em sua contracapa
– Divinus Deus –, que seria o primeiro de uma trilogia, seguido por Ma mère e Charlotte
d’Ingervilles. O manuscrito original de Madame Edwarda foi dedicado a Paul Eluard (1895-
1952), poeta francês.
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16 Em entrevista, em 1993, para o jornal Curitiba, Hilda Hilst afirma haver 394 perguntas
em A obscena senhora D. (Diniz, 2013, p.149).
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desprotegidos e assustados, tentamos aqui e ali apoiar-nos em algum susten- dencia sua tendência religiosa, na busca infindável do sentido para a vida, de fu-
táculo: “Alicerce de pedra porque o chão é de areia, e matéria alvinitente para são do ser com um além da realidade imediata e, em igual medida, tendência eró-
espelhar o grande sol de dentro” (Hilst, 2014, p.18). Assim, como não raro sói tica, na apropriação profanadora do discurso, no desejo de fusão dos corpos e de
acontecer nas narrativas hilstianas, temos a impressão de que O projeto trata-se plenitude da vida. Esse será um tema batailliano, que identifica o sagrado – fruto
de uma fábula, uma parábola ou alegoria a nos indicar, na tessitura de sua tra- de um sacrifício religioso – à morte e à ação erótica, na dissolução dos seres que
ma, algum significado superior que nos conforte: mas a verdade, a moral e o aí se engajam, na restituição da continuidade perdida, “lembrando o desenrolar
sentido não chegam. Na maioria das vezes, seu destino é confusão e desordem. de águas tumultuosas” (Bataille, 1987, p.16). Trata-se, assim, de perseguir o mais
As personagens hilstianas parecem querer ir fundo no sagrado da existên- íntimo do ser, a verdade eminente da vida, fruto de uma operação de dissolução,
cia, apontar para o imenso céu cósmico, pesquisar freneticamente “a casca que destruição, violência. Logo, o desejo de conhecer – que é visceral, que empenha
recobre a ferida de se ser”, “a palha que se chama aparência” (Ibid, p.17). Mas o corpo e os sentidos – arrisca desintegrar aquele que ali se arrisca a chafurdar.
até onde chegarão? Ana Chiara, no ensaio “Hilda Hilst: ‘respirei teu mundo O projeto termina como começa: em sagrado descontentamento. Circular
movediço’”, observa o jogo reflexivo hilstiano que aponta sucessivamente para podemos dizer do que não tem um ponto de partida nem de chegada, que es-
um vazio impossível de ser preenchido, de modo que esse fracasso será justa- tabelece um limite no movimento de retornar: sagrado descontentamento. Pois,
mente o motor que movimentará o percurso alheio à lógica ou resultado, inte- por mais intenso e insistente que seja o movimento de dilaceração, por esgarça-
ressado antes nos meandros e percalços do trajeto: “Ela perquire, circunscreve das estejam as feridas, a ligação radical que se almeja, a comunicação soberana, a
(escreve em círculos), busca de modo dramático – pondo vozes em diálogo – a transgressão absoluta, porém, nunca é total, tratando-se apenas de uma promessa
melhor maneira de dirigir uma pergunta, modos de colocar as perguntas sobre ilusória, como aquela dos seres apaixonados21.
a experiência, o vivido, a existência, sem deixar que as respostas se anteponham Portanto, a solidão extrema dos seres descontínuos que somos, a angústia
à visão do múltiplo, do fragmentário, do singular do tempo diferido” (Chiara, que lhes abate da continuidade como “direção extrema das ações essenciais”
2015, p.15)19. Leo Gilson Ribeiro, no prefácio ao livro Ficções (1977), para as
edições Quíron, aponta para o desenvolvimento desta escrita: 20 Acessado em 23/04/2017: https://bit.ly/2JeWvVY .
21 Bataille, ao falar da paixão como erotismo do coração, cuja essência é a continuidade
entre os dois seres apaixonados, vai apontar para seus efeitos deletérios: “A paixão ventu-
rosa acarreta uma desordem tão grande que é comparável ao seu oposto, o sofrimento”
(Bataille, 1987, p.15). Vale também lembrar da etimologia da palavra paixão, do latim
19 Acessado em 26/04/2017: https://bit.ly/2JeLOmq . tardio passio -onis, derivado de passus, particípio passado de patī: “sofrer”.
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22 Alguns povos que Bataille nomeia: os Tlingit, os Haida, os Tsimshiam, os Kwakiutl, da 24 Na matéria de jornal “Lori Lamby, o ato político”, para o Estado de S. Paulo, temos a
costa noroeste dos Estados Unidos da América; os Tchuki, do nordeste siberiano. seguinte informação: “Há um mês, publicou pela pequena editora Massao Ohno o escan-
23 Georges Bataille designou, a vários de seus amigos, A parte maldita como sendo o daloso O caderno rosa de Lori Lamby, 87 páginas da mais devassa infanto-pornografia
livro mais importante de sua obra, cuja reflexão tem origem em A Noção de despesa, ensaio com ilustrações de Millôr Fernandes. Neste curto período de tempo, a primeira tiragem
publicado na revista La critique sociale, em 1933. Aí ele realiza uma exposição sistemática de mil exemplares – antes considerada de bom tamanho para um livro de Hilda – se
de sua visão de mundo. É a noção de excesso que está na base da construção do seu esgotou. Uma nova remessa está sendo preparada enquanto – surpresa – o telefone toca
pensamento: “sempre há excesso, porque a irradiação solar, que está na origem de todo muitas vezes na casa da escritora, um sítio localizado nas propriedades de Campinas,
crescimento, é dada sem contrapartida: ‘O sol dá sem nunca receber’, há, então, necessa- com convites para o lançamento de Lori em várias cidades do país”. (Prado, L.A. Lori
riamente acumulação de uma energia que só pode ser disperdiçada na exuberância e na Lamby, o ato político de Hilda Hilst. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 de junho de
ebulição” (Piel; Bataille, 2013, p.12). 1990, Caderno 2).
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Mas ainda que ele comece onde termina o animal, a animalidade não dei-
REINVENÇÕES CARNAIS
xa de ser o seu fundamento. Desse fundamento a humanidade se desvia
com horror, mas ao mesmo tempo o conserva. A animalidade é mesmo
No verbete Metamorfose, publicado em novembro de 1929, na revista Do-
tão bem conservada no erotismo que o termo animalidade ou bestialidade
cuments, Bataille trata do homem como “uma prisão de aparência burocrática”.
não deixa de lhe estar ligado. (Bataille, 1987, p.62).
Vejamos aqui trecho desse verbete:
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Este sol que clareia, este sol que cega. Dar à luz, ceder às trevas, nascer mor-
6 “Toda a operação do erotismo tem por fim atingir o ser no mais íntimo, no ponto em
rer etc. Quero do sol a sua potência completa, violação, fusão de corpos, abismo que o coração desfalece” (Bataille, 2014, p.41).
de morte. Fascínio da morte, angústia da morte: o ponto em que o coração 7 Aqui referido à morte, o “sol negro” é mais comumente metáfora da melancolia. O
livro Sol negro – depressão e melancolia (1989), de Julia Kristeva, consolidou esta expressão.
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21 Lido no inglês: Georges Bataille – an intellectual biography. “What is surprising is not so 22 Tradução para a Editora UFMG, 2015: Alexandre Rodrigues da Costa e Vera Casa
much their discord as their obstinacy in not completely ignoring each other”. Nova.
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Ivan Ilitch está cara a cara com a morte, ele percebe sua presença, sente que 25 A Morte de Ivan Ilitch é uma novela de Liev Tolstói (1828-1910), publicada pela primeira
ela lhe rouba aos poucos a vida, sua vitalidade pinga como goteira, escorre ralo vez em 1886 e considerada por alguns críticos como a novela mais perfeita da literatura
mundial. Foi a primeira obra que Tolstói escreveu após seu retorno à atividade literária,
24 E sobre a morte a profusão vocabular em Da morte. Odes mínimas elenca-se assim: tendo abandonado a literatura para se dedicar à vida espiritual.
Dorso mutante, Túrgida-mínima, cavalinha, cavalo, búfalo, Velhíssima-Pequenina, Meni- 26 Olga Bilenky, viúva de José Mora Fuentes e residente da Casa do Sol, hoje diretora do
na-Morte, Caracol de sumos, Andorinha, Crina, Acróbata de guarda-sóis, amiga, Nada, Instituto Hilda Hilst, conta que a escritora, fascinada pela novela russa, distribuíra exem-
Ventura, Rosto de Ninguém, Morte-Ventura, Prisma, Púrpura, Unguento, Duna, Riso, plares para diversas pessoas que frequentavam a casa, a fim de que pudessem discutir a
Sonido, Altura, minha-irmã, Tempo. obra.
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Mas se a morte foge à dominação verbal, é a partir do próprio verbo que estou só
ela escapa, sugerindo uma linguagem desviante, marginal, sem finalidade ou con- cegos lerão estas linhas
cessões, sem teleologia ou propósito: soberana. A poesia é a expressão de um em intermináveis túneis
estado de perda, “criação por meio da perda”, apontou Bataille, destacando seu
caráter improdutivo, dispendioso, e aproximando a poesia do sacrifício. Sacrifí- caio na imensidade
cio, poesia, erotismo, morte: mo(vi)mentos de excesso, do que excede o humano que cai em si mesma
no desafio à razão: “O luxo da morte, nesse aspecto, é encarado por nós assim ela é mais negra que minha morte
como encaramos o luxo da sexualidade: inicialmente, como uma negação de nós o sol é negro
mesmos e, depois, em súbita inversão, como a verdade profunda do movimento
a beleza de um ser é o fundo dos porões
de que a vida é a exposição” (Bataille, 2013,p.54). Daí o interesse de Bataille por
um grito da noite definitiva
esses movimentos, no que eles têm de reveladores na negação da negação da na-
tureza, seu paradoxo anunciado, porque se a morte – a sua consciência – constitui o que ama na luz
o ser humano destacado da natureza, ela é também o seu processo de dissolução o arrepio com o qual ela se congela
na natureza, seu estado de perda.
é o desejo da noite (Bataille, 2015, p.29)33
A morte é central no longo poema O túmulo (1944), de Georges Bataille,
em que se destaca a imensidade a que o homem está destinado, o impiedoso
lançar de dados, lançar de sorte: a “ruína sem limites”, a “imensidade flácida”, o
“deserto sem saída” a que se tende no olho a olho com a morte, contato visual 33 Le Tombeau// Immensité criminelle/ vase fêlé de l’immensité/ ruine sans limites//
sem trégua, risco exagerado de fusão. Se os poemas de Hilda Hilst sobre a morte immensité qui m’accable molle/ je suis mou/ l’univers est coupable// la folie ailée ma
encaram a inevitabilidade de sua chegada com expectativa construída, através de folie/ déchire l’immensité/ et l’immensité me déchire// je suis seul/ les aveugles liront
elementos épicos que anunciam esse encontro esperado, em Bataille se reforça o ces lignes/ en d’interminables tunnels// je tombe dans l’immensité/ qui tombe en elle-
aspecto abismático desta noite definitiva, o homem lançado nas trevas, em toda -même/ elle est plus noir que ma mort// le soleil est noir/ la beauté d’un être est le fond
a sua tragicidade. Vejamos o trecho inicial de O túmulo: des caves/ un cri de la nuit définitive// ce qui aime dans la lumière/ le frisson dont elle
est glacée/ est le désir de la nuit.
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XI
Levarás contigo
Meus olhos tão velhos?
Ah, deixa-os comigo
De que te servirão?
Levarás contigo
Minha boca e ouvidos?
Ah, deixa-os comigo
Degustei, ouvi
Tudo o que conheces
Coisas tão antigas.
Levarás contigo
Meu exato nariz?
Ah, deixa-os comigo
Aspirou, torceu-se
Insignificante, mas meu.
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SOL-TE
SOLTE O SOL
SOLTE
TODO SOL
TODA SORTE
PODE
QUE VOLTE
SOL-TE
Paulo Leminski
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OLIVEIRA, Eduardo Jorge de. Orientadores: Profª. Drª. Maria Ester Ma-
ciel de Oliveira Borges (UFMG) e Prof. Dr. Dominique Lestel (ENS). INVEN-
TAR UMA PELE PARA TUDO Texturas da animalidade na literatura e
nas artes visuais (Uma incursão na obra de Nuno Ramos a partir de Ge-
orges Bataille), 2014. 353 p.Tese (doutorado) - Linha de pesquisa: Literaturas
e Políticas do Contemporâneo. Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade
de Letras.
Disponível em: https://bit.ly/2M5vdPr .
RECURSOS AUDIOVISUAIS:
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