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1 Eiberdrs Comité Cientifico ‘Ary Baddinl Tavares (UNIMESP) “Andrés Falcone (Universidad Nacional de Mar del Plata, Argentina) ‘Alessandro Octavian (USP-SP) Daniel Arruda Nascimento (UFF-R)) Eduardo Saad-Diniz (USP, Ribeirfo Preto) Isabel Lousada (Universidade Nova de Lisboa, Portugal) Jorge Miranda de Almeida (UESB-BA) Marcia Tiburi Marcelo Martins Bueno (Mackenzie) Miguel Polaino-Orts Universidade de Sevilha,Bspanha) Mauricio Cardoso (FFLCH - USP) Maria J Binet (CONICET, ARG) Michelle Vasconcelos de Oliveira Nascimento (FURG-RS) Paulo Roberto Montero Araijo (Mackenaie-SP) Patricio Sabadinl (Universidad Cuenca de Plata, ARG) Rodrigo Santos de Olvera (FURG-RS) Sandra Caponi (UFSC-SC) ‘Sandro Lutz Bazzanella (Universidade do Contestado - Un) ‘Tiago Almeida (USP SP) Saly Wellausen (USP-SP) MERLEAU-PONTY Compéndio lraquitan de Oliveira Caminha Terezinha Patrucia da Nobreaa. (organizadores) Primeira Edigao Sao Paulo Editora LiberArs 2018 DIMENSOES DA PERCEPCAO EM MERLEAU-PONTY: Marcus Sacrini Merteau-Ponty & comumente reconhecido como um flésofo que atribulu & ppercepsdo um papel central na reflexdo floséfica. No entanto, esse reconhecimento ‘genético pouco esclarece as nuances de abordagem do autor acerca desse tema em suas diferentes obras. Neste text, protendo reconstruir 0 posicionamento desse autor acerca dda ineréncia de aspectos culturais no contedido percebldo. Esses aspectos remetem a ‘contextos ou mesmo a tradigées que favorecem a apreensio de certas qualidades em ddetrimento de outras. Por exemplo, que algo aparesa imediatamente como belo, iti, disfuncional, ete, ou mesmo que apareca com énfase em certas tonalidades de cor ou ‘certas falas sonoras em detrimento de outras, pode depender da vigéncia de certos pparimetror cultursis lornis, of quale nia serlam imediatamente partilhados por ‘quaisquer sujeitos. Minha questio é se eem que medida a percepsiio apreende os dadios ji erformados culturalmente, no sentido de envolver possibilidades de relaividade dos ‘contotidos percebidos conforme a insergdo em tradigbes s6cio-hstbricas diferentes. Ou seri que em seu funclonamento mais bisico, a percepsdo se limita a registrar dados ‘ensbrios universalmente vélides, de maneira que toda significado cultural relativa seja ‘um acrésclmo cognitive posterior? Veremos que hi uma oscilagio de Merleau-Ponty ‘quarto a essas alternativas, em particular em suas primeiras obras, a qual s6 se resolverd ‘em textos de seu periodo intermedisrio. e inicio, proponho analisaro tema no primeiro livro publiado por Merleau-Ponty, A esrutura do comportamento (1942). No terceiro capitulo dessa obra, apés expor as ordens fisicae vital de fendmenos, o autor conclu, ao buscar a especificidade da ordem dos ‘enémenos humanos, que o trabalho "projeta entre o homem e os estimulos fisico- ‘quinicos dos ‘objetos de uso’ () ~ a vestimenta, a mesa o Jardim - ‘objets cultura’ ~ 0 livea o instrumento de miisica, a Unguagem -, que constituem o melo préprio do homem fe farem emergir novos ciclos de comportamento" (Merleau-Ponty, 2002, p-175). Esse melo préprio do ser humano seria percebido de modo Imediato, quer dizer, no seria ‘composto por uma camada primordial de estimulos ebjetivos aos quats se associaria posteriormente algum sentido cultural. A discriminagio perceptiva de temas culturais ‘seri, assim, marca da ordem dos fenémenos humanos, ‘Segundo o autor, esse cariter imediatamente cultural da percepgiio se torna levidente se se estuda a conseléncta infantil, que apreende de forma eminente, j& nos "Pete on es ceva em tg Prep at ular cher Marlee Poy 208) 308 primelrs anos de vida os gestos humanose os utenstlas, Por consegunt, a perceps%0 infantil no assimilaria iniilmente ma natureza obetiva, & qual predcados cltrals seriam acrescentados & medida que 0 aprendizado pritico-Intelectal da crianga avangasse. Na verdade, Merleau-Ponty parece estar sugerindo o contro: os estimulos Sensivelsapreendidas pela erianca oferecem desde muito ced “a representa de um drama humano" (MERLEAU-PONTY, 2002, p.182), e & a partir dessa insergio muito bsica, ainda no nivel sensorial especificidade das questbes humana, que a crianga se desenvolve ¢ aprende a inserir-se em contextos socioclturais especiens.Supde-s, desse modo, que aconseitncia infant 6 estrutralmentevoltada para stages cltuais. Sem essa suposiio, tora-se dif expicar como os outros seres humanos ea linguagem recebem tio rapidamente no desenvolvimento infantil um privilggo em relaglo 0s ‘outros objets disponiveis no campo sensive das criangas. ‘Até esse ponta Merleau-Ponty liga intimamente a atividade perceptiva as stuagdes cauturais. Longe de ser apresentada como uma operagio mental neura, que asinilria somente estimulos sensérios ligadas a qualidades objetivas ou reais do ambiente Iaterll a percepeo€ apresentaa como urna operagiointenconal que nos aproxima de certs conjuntosfenomenaisprivilegiados, os quis manifestam diretamente (endo por meio do acréscimo de predicados derivado da compreensio intelectual) umm sentido Cultural Entretanto, essa no parece ser sua posigio final em A estruura do comportamento 0 flsofo desvela uma ambiguidade consttuinte da ordem humana: & verdade que os sults insttuem estruturas socials ou calturis particulars em que sua vida se desenrola;contudo, a consciéncia humana pode uitrapassar essasestruturas, negi-las enquanto determinagdes relatvas,e se afimar como meio universal, ito & como o eampo primordial em que todos os objetos do unversoreeebem sa sgneao (MERLEAU-PONTY, 2002, p191).Desse ponto de vst, aconseéncla 6 uma espéciefoco responsivel pela manifestago de tudo o que existe. Nao se trata aqul de recusar que 0: Seres humanas esto ineridos em contextos soda ecltuaisrelativos. Mas Metlea- agit que ou ely 8 winslow “a pepe stra de que ela endo um espetéulo que elas di (2002, 22), que todos os eventos Ou ‘objetossupéem a consiénca para se manfestar enquanto tas. Cabe notar que Merleau-Ponty ndo pretend fila-se a0 intelecualismo por meio dessa ditima tse. 0 ponto que o salvaguarda desse tipo de posigéo 6 0 seguinte: a conscéncia que exerce o papel de meio universal nio é a conscéncia cognitive, nfo € 0 entendimento ox: mesmo 8 Fazio, entendidas como faculdades subjetivas superiores,e sima conscigncia perceptiva (MERLEAU-PONTY, 2002, p227).& para a percep que os fendmenos fica, vitals ¢ mesmo humanos se doam orginariamente, no para a atividade juicativa. A compreensio intelectual do mundo se rellza por melo de Signiiagdes; por sua vera pereepgfo se bre diretamente sobre as cols mundanas. ‘lem disso, do ponto de vista do sujeito cognitiv,o corp préprio se torma um objeto submetido aos parimetrosobjetivosutlizados para conhecer as coisas mundanas. Ja do ponto de vista da percepeio o corpo é experimentado como uma base Indispensavel, de Imaneira que a consciénciaoriginria se reconhece como encarnada (MERLEAU-PONTY, 2002, p24). No entanto, apesar desss diferengas entre a consiéncia pereeptiva eo sujito cogniivo, a fungde conferida & primeira parece se aproximar daquela atrbuida a0 segundo nas flosofas intelecualists. Anal, a consciéncia pereeptiva nfo € mals concebida como uma capacidade existencil ligada a alguns’ conjuntos fenomenais particuares (incisive a situapes culturais, e sim como um limite transcendental, no Interior do qual se poderia acompanhar como o mundo se organia enquanto fendmeno significativo, Nesse sentido, a ligasio da percepedo a conjuntasfenomenals eulturalmente caegados passa a ser seeundéria ante o papel de suport universal para a consttiglo 308 de sentido de qualquer fendmeno mundano. Veremos que essa perspectiva parece se ‘mantém em Fenomenologia da percepso, segundo livro publicado por MERLEAU-PONTY (em1945). [Anise da atividade perceptiva contida em Fenomenologia da percepeto 6 muito ‘mais detalhada que aquela de A estrutura do comportamento. Entretanto,aideia de tomar 4 percepsio como uma espécle de base de atestacio universal da realidade se mantém presente na segunda obra, Algumas afirmagBes do preficio do livro j4 confirmam a mmanutengio dessa Idela. Ali, a percepso no é apresentada como “um ato, uma tomada de posigdo deliberada’, © sim como “o fundo sobre o qual todos os atos se destacam {como sendo] pressuposta por eles” (Merleau-Ponty, 1997, px). percepsao seria uma *consciéncia ofigindria" (Merleau-Ponty,1997, px), anterior & linguagem e a qualquer ‘manifestasio cultural, uma consciénia em torno da qual “se organizam os atos de enominagdo e expressio" (Merleau-Ponty,1997, px ) e em que se tem “acesso 3 verdade" (Merleau-Ponty, 1997, pal). Além disso, a consciéncia perceptiva possui urn “salber primordial do reaf” (Merleau-Ponty, 1997, pai), que funda a distingdo entre a realidade eo sonho antes mesmo que esse problema sejaexplicitado em nivel conceitual. Dessa maneira,o campo perceptive parece nao se ater, oiginariamente, a dados culturais particulares, conforme o inicio da exposigio sobre a ordem humana em A estrutura do omportamento sugeria; ele opera como o meio responsive pela abertura dos sujeitos Ihumanos os aspectos mais bésicos e geras das situacdes vividas. “Tal qual jassinalado na sesso anterior, essa apresentagio da percepsdo ja era cesbosada no final do primeira liv de Merleau-Ponty. 0 quarto capitulo de A estrueura do ‘Comportamento se abre pot wm exame da experiéncia ingémua, ainda nao contaminada hem por opiniges do senso comum nem por explieagGes cientficas. Esse tipo de ‘experiénci € exemplificado pelo perspectivisino inerente 3 visio, conforme as descrigdes Gterecidas. pela fenomenclogia huszerliona. “Ae ‘cole’ na experidndia ingénua <0 tevidentes como seres perspectivos (.); eu apreendo em um aspecto perspectivo, que eu Sei que ndo € senio um de seus aspectos possivels, a prépria colsa que o transcende” (Merteau-Ponty, 2002, p:202), conta-nos Merleau-Ponty. Essa descrigfo fenomenologica festa aqué de toda particularidade factual que nuangaria ou complexficaria um tal perspectivismo, Segundo 0 filésofo, qualquer que seja “a dificuldade encontrada para pensar a percepgio assim descrita,cabe a nés nos ajustarmos” (MERLEAU-PONTY, 2002, 1.202), j4 que "6 assim que nés percebemos e que a consciénca vive nas cots (Merleau-Ponty, 2002, p.202). Merleau-Ponty esta corto aqul de explicitar um carter tidéico da percepsio, ndiferente a qualquer relativizago cultural, Em Fenomenologia da percepedo, o autor retoma essa descrisao das estruturas mais, igerals da percepslo. 0 perspectvismo visual 6 entio descritoconforme os parémetros da, ‘organizasio figura sabre fundo: todo fenémeno visto se organiza como uma figura, da ‘gual nfo se v8 sendo alguns aspectos,extrafda de um ambiente mais vasto. A estrutura figura sobre fundo "é a prépria definigio do fenémeno perceptivo Isso sem 0 qué um fendmeno no pode ser dito percepeio" (MERLEAU-PONTY, 1997, p.10). Essa definlgo implica a recusa da nogio de sensagio como constituinte do contetido percebido. Essa nogio nio descreve corretamente o conteido percebido porque a estrutura figura sobre fanco exige que haja relagdesIntrinsecas entre os dados sensivels,o que exclui que esses ‘iltimos sejam originalmente estimulos pontuaise instantaneos. 'Aideia de sensagdo, segundo Merieau-Ponty, decorre de certo tipo de pensamento entifco, que eré em um mundo objetivo Inteiramente determinado, SupOe-se que tal mundo existe , em segulda, desenvolve-se uma explicagio de como poderfamos conhecé-lo, na qual a sensagio exerce um papel central: registrar na consciéncia as ‘qualdades objetivas desse proprio mundo. Ora, apresentar a conscitncia como 305 reprodutora de caracteristica plenamente determinivels do mundo 6 desconhecer a ividade perceptiva. A organzagao prope. da experlénca pereeptiva, gaante-nos jerleau-Ponty,envolve indeterminagdo, no sentido em que os conjuntos fenomenais nio se reduzem 4 propriedades Inequivocss, portadoras de. contetdes objeivamente delinedves. As lias na sie de Maller-Lyer, que no podem ser ditas nem igus nem desiguais, lustraiam essa caracterstica (Merleaw-Ponty, 1997, p.t2).E nio somente lusdes Spticassfo Indeterminadas, mas de maneira geal todo conjunto fenomenal envolve algum grau de indeterminaglo, que seu sentido nto deriva de “étomas sensivels" portadores de qualidades determinadas, mas de inimerasrelagSes plas quais ‘Nesirutira figura sobre undo se forma em cada ocasto. ‘Outro aspecto salientado por Merleau-Ponty & 0 carter lacunar da percepeo em relagio aos stpostos dados sensorials de base. Segundo esse aspecto, 0 sentido dos fendmenos percebidos nfo se restringe a elementos efeivamente intuldos. 0 autor oferece os segulntes exemplos: “a forga do som sob certascondigbes Ihe fx perder altura, a adjungio de linkas ausiliares torna desiguais duas figuras objetivamente iguas” (WMerleauPonty, 1997, p14), Nesses casos, 0 que & percebido nao se reduz a-uma somatéria de informagdes objetivas transmitidas por sensagdes.Is0 fie claro porque 0 Sentido global do fendmeno se altera som que hajaaerésimo ou dlminulgdo de dados abjtivos, mas conforme certa nas de forg inerentes a propria sitacio fenomenal em vista Essas duas caracteristias constituem a signifcagZo pré-objetva dos fendmenos pereebidos, que Merleau-Ponty expde em detahes na itrodusto ena primeira parte de Fenomenologia da perceppdo, Importa notar que ess tipo de significasto ¢apresentada como anterior a toda qualifcagdo ou relatvizardo eure. sso se torna patente se se retoma 9 método sugerido pelo autor para estuda a signiiagio perceptiva, Merleau- Ponty preconiza ir além da "percepsdo empirica ou segund, aquela que exercemos a cada Instante” (MERLEAU-PONTY, 1997, pp53-4,j& que ela mascararia a ordenagio tiginria do campo fenomenal ssa percepeio empiric “éreplota de aquisigSesantigas fe ovoren, or accion dizer, na superficie do ee” (MeeleaunPonty, 1997, PSA). Fare ssasaqulsigbes, esto Inchdas todas as marcas cuturas, que, por exemple, apresentam 4s cons segundo énfasesrelatvas 3s tradigbes aque as pessoas pertencem Esse tipo de apreensio percepliva culvada deve ser posta entre parénteses em favor dena ‘contemplagtio dsineressada que apreende “um objeto com 0 tnico cuidado de vé-lo cstv desdobrar (.) suas rquezas” (MERLEAU-PONTY, 1997, pS). Merleau-Ponty dferece ap menos um exemplo desseesforgo contemplativo em que a produivdade Inerente & percepsio, aquém da sedimentagio das signiicaes empfricas, se detea apreender: “para qe eu reconheca a érvore como uma drvore, énecessario que, abaixo dessa signieacZo adqurid, o arranjo momentaneo do espeticulo sensivel recomece, como no primeiro dia do mundo vegetal, a desenbar a idela individual dessa drvore” (OMERLEAD-PONTY, 1997, p58), Esse retorno a um comeso quase mitico da alvdade Derceptiva, em que as relagdes do campo fenomenal se fam independentemente de {qualquer signifcagdo sedimentads, de. qualquer reatvizagso cultural, revearia 0s processosuniversais de organiza sensvel De qual process se trata aqu? Em particular, da distibuigio das qulidades pereebidas (cores, formas, sons te) em um eampoferiomenal, no qual, como jévimos, bs fendmenos ordenam-se como figuras sobre fundo. Por exemple, “sja um miro Branco ‘a sombrae um papel dnzanaluz; nose pode dizer que o muro permanece braneo 0 papel cies" (MERLEAU-PONTY, 1997, p3S1)-A atmosferaluminosa é tal que o muro ot © papel aparece com cores diferentes daquela que eles portariam “objtivaments Como. se vé, a. percepsio origindria revela os. dalos percebides tal como. eles espontaneamente se. arranjam em funglo de restrigdes inerentes as estrturas 306 perceptivas?. Merleau-Ponty acentua que essa distribuido das qualidades, embora nfo eterminada objetivamente,impSe uma ordem rigida. As qualidades sensivels reenviam uma is outras de maneira bastante precisa: “nossa percepedo & animada por uma logica ‘que atribul a cada objeto todas as suas determinagSes em fungio daquelas dos outros e ‘que barra’ como irreal todo dado aberrante® (MERLEAU-PONTY, 1997, p.361).H6, assim, parinetros rigorosos de ordenagio das qualidades sensfvels, os quals Instauram uma tespéde de “necessidade” fenomenal anterior a toda relativizagio derivada do exereico “empirico” da perceprdo. Isso quer dizer, por exemplo, que “uma coisa nao teria essa cor se ele no tivesse também essa forma, essas propriedades titels, essa sonoridade, esse ‘odor’ (MERLEAU-PONTY, 1997, p.368); em suma, a unidade da coisa percebida decorre de relagbesestritas entre as qualidades fenomenais?. Como se vé, em Fenomenologia da percepsto, Merleau-Ponty pretende ter esvelado uma lgica sensvel bisica de ordenagio do campo fenomenal. Nao hi mengio a possibilidade de relatvizagZo na apreensio dos fendmenos conforme hibitos culturals, por exemplo, Para marcar © cariter problemitico desse ponto, consideremos os equines casos citados pelo autor: "vé-searigidez ea fragilidade do vidro e, quando ele se quebra com um som cristalino, esse som & trazido pelo vidro visivel. Vé-se a lasticidade do ago, a maleabiidade do ago incandescente, a dureza da lama em uma plaina, a moleza das aparas" (MERLEAU-PONTY, 1997, p.265). Cabe perguntar se esse recorhecimento imediato da riqueza expressiva do vidro ou do ago no supe um longo contato com esses materiais. Talver povos que os desconheram no percebessem os detalhes enumerados por Merleau-Ponty na primeira vez em que tivessem contato com les. Nesse caso, alguns niveis da expressividade sensivel dependeriam de episédios ‘empiricos, cujavigéncia o fenomendlogo recomendava suspender para que se pudesse cexplictar aldgica origindria da percepsdo, Se ¢ assim, entio, para revelar por completo a constituigio do fendmeno percebido, soa artificial isolar uma camada de relagdes ‘expressivas origidrias dos episédios empiricos em que as relaydes entre os conteidos percebidos se enriquecem. Vimos que Merieau-Ponty descola a atividade peroeptiva em sua operatividade coviginiia, de qualquer relatividade cultural. Em termos geris, no livro de 1945, a ativiade perceptva & associada as “montagens naturais do sujeito psicoisio” (MERLEAU-PONTY, 1997, p59), sto 6 a um conjunto de capacidades de ordenagio do meio anteriores a0 aprendizado empirco. £ verdade que o autor reconhece que “as ‘estrturas pereepivas no se impoem sempre” (MERLEAU-PONTY, 1997, p.503), que certas relagdes simbélio-culturaisalteram por vezes a segregagdo “natural” dos fenénenos. Entretnto, essa observagio pouco eslarece sobre © modo como os componentesculturas aderem as montagens perceptvas naturals, as quai, na maior partedo testo, so apresentadas como universal. ‘Apesar dessa condusio parcial, seria extemamente simpliicador defender que Fenomenologia da percepsao ignora qualquer contibuigao da diversidade cultural na consttuiglo da experidncia. Na verdade, ao explorar alguns temas lgados a0 corpo 2 etm no cag ero un monn de gad, mas ua infu tal a tbl os aes {prepa x ets conju MERLEAU-PONTY, 1997, 9.29) 5 Engrs not qs node doje pln pnt, ara ise quads sess senpee ‘empanerd spt ae so ne ei a ina sean ov pi preserS 0 ‘Sn pda mene no pce perp” (99, pps 270). Com sa, comes a emp Preshios infos qe « dso dr feinems paces, qe ele inkerminae cneme i i, Se frp que ocango fore sh a repli lh oie it io elo ie co dans € pose Hk interno cnt carina ms omega ip wate ds qua ove. 307 préprio, Merleau-Ponty expica a possiilidade de variagio cultural como inerente& Inserglo concreta nos contextos vvios. Tratarel.a segue desse ponto, ‘Assim como reeusava uma determinagio objtiva para o campo fenomensl Merieau-Ponty reeita que haa uma determinagdo boligica para as alvidades corporal. Para o autor, "0 uso que um homen fri de seu corpo 6 wanscendente em rlagioaesse corpo como ser simplesmente hioligico” (MERLEAU-PONTY, 1997, p.220). & claro que os aspects anatomicos e isioldgios do corp colaboram necessarlamente para estabelecer fs hibitos que garantem uma inseredo hem Sueedidanasstuagdes mundanas. Mas sso ‘slo implica que haja uma tinier maneira de vivencar corporalmente a. situa, impermedvel &s pariulaidades eulturas histrieas. Merleau-Ponty reconece esse onto explctamente: “0 equipamento psicofsioidgico deta abertas vias Possblidades e no hi agul nem no dominio dos instntos uma natureza humana daa dle uma vez por todas” (WERLEAU-PONTY, 1997, p20). Ele eta como exemplo 35 Aiferengas na expressio das emogSes entre ocdentals ejaponeses, e aceiun que “a diferenga das mimieas recobre uma dferenga das prépriasemogbes" (MERLEAU-PONTY, 1997, p20) Longe entio de seem vivenciadas de maneira nes, as emogdes so, ass, “inventadas como as palavras”(Merleat-Ponty, 1997, p.220), © se sedimentam como diferentes linguasdisponives conforme a tradi¢io cultural da qual se fz parte. ‘Como se va experiénca corporal se ordena de maneira a permit varabiidade cultural 0 que fragliza aquela dela de percepsio originiria, anterior aos episédios pereeptivos empirieos. Afinal de contas,& inegdvel que a percepeio & uma atividade encarnada,conforme ja era admitdo em A estrtura do comportamento e relterado em diversas passagens de Fenomenolagia da percepedo. Neste livre, Merleau-Ponty assevers, por exemplo, que “o sentir (.) investe a qualidade de um valor vital, apreende-a _rimeiramente em sua signfieagao para nés, para essa massa pesada que nosso corpo, ¢ dai vem que ele comporte sempre uma referénca ao corpo” (Merieau-Ponty, 1997, 64). Para apreender a eonscineia perceptiva em seu funcionamento origndro, € preciso, ‘sin remetéla a orp, yal alo € ui mere objeto para pereepyo, as const (“solo a partir do qual a perceproocorre. Se € assim, sea pereepe&o é mals um tipo de expressio da vida encarnada, nio deveria ela entdo permitir a variablidade na articulago da expertncia, tal como parece ocorrer com as outras atividades corporal por exemplo, com os habitos ou com a veiculagio das emog6es? Como jf vimos, nfo € 0 «ue se defende em Fenomenologia da percep. Merieau-Ponty parece supor que abaixo da variagio antropolégica ou cultural da experiéncia do corpo, ha a garantia de um acess0 universal ao mundo, Em um trecho importante acerca dessa questo, © autor ‘firma: Nunca vivo inteiramente nos esparos antropolgcos, estou sempre ligado, por minhas rafzes, a um espaco natural e inumano. Enquanto atravesso a praca da Concérdia e acreditointeramente tomade por Paris, posso deter meus olhos em uma pda do muro do jardim das Tuileries, a Concérdia desaparece e s6 existe esta pedra sem hisrs posso ainda perder meu olhar nessa superficie granulosa e amarelada,e ni existe mats hem mesmo pedra, sé resta um jogo de luz em uma matériaindefinida. Minha percepeio total nio é feitadessas pereepgdes analiticas, mas ela sempre pode dissolver-senelas, meu corpo, que por meus hibitos assegura minha insereso no mundo humano, Justamente so fax projetando-me primeiramente em um mundo natural que sempre ‘ransparece sob o outro (_) (MERLEAU-PONTY, 1997, 339) Merleaw-Ponty salenta aqui que sob as apreensBes antropologicamente marcadas do conteddo da experiéncia vige uma conexio silenciosa com os aspectos mais universais “ipa dings oe weld hem mn epic carparl qo atmos como un ome ces recs qe parece com mein” (MERLEAU-PONTY, 19979190) 308 do mundo, uma inserso em um mundo pré-cultural em torno do qual os ambientes antropoldgicos sio construfdes. Essa presenga no mundo natural, essa ligago com os ‘ontefdos mais universais da experiéncia parece ser estabelecida pela percepsao, ccnforme indica a sequéncia do texto citado acima: “mesmo se existe uma percepeio ddaquilo que é desejado pelo desejo, amado pelo amor, adiado pelo édio, ela sempre se orma em torno de um niicleo sensivel, por mais exiguo que ele sea, € no sensivel que la encontra sua verifcagio e sua plenitude” (MERLEAU-PONTY, 1997, p339), Seria ppossivel, assim, distingulr um niileo sensivel fundante de toda diversidade antropol6gica-cultral, uma ligacfo perceptiva com os contesidos fenomenais do mundo natural antes da instituigSo dos mundos humanos®. Desa maneira, os ambientes caulturais seriam sempre secundirios em relagio a essa manifestacio de um ntcleo sensfvelindiferente as relativizapdes antropoldgicas. A atvidade perceptiva, ao menos fem sta operatividade originfria, instauraria um campo fenomenal pré-cultural, compasto de relagbesrigdas entre qualidades sensiveis que anunciam o mundo natural w Em textos de seu periodo intermediério, Merleau-Ponty parece corrigit esse desequilbrio entre 0 corpo como Imediatamente expressive de ambientes culturais e a percepsio, que, sendo encarnada, velcularia, mesmo se somente em um supasto nivel originfio, conteddos fenomenais universais. 0 filésofo parece recusar a distingo entre um nicleo sensivel natural originério © ambientes antropoldgicos percebldos de modo ‘empirco ou secundério,e passa a admitr, de maneira geral, que "nossa cultura pode (.) enformar nossa percepeio do visivel” (Merleau-Ponty, 1960, .61)* ou que a atividade perceptiva "projeta no mundo a assinatura de uma civilizagio” (MERLEAU-PONTY, 1999, p97Y’. Como compreender essa mudanga de posisao? Parece que Merleau-Ponty altera sua posicao principalmente por melo de uma aproximasso mais detalhada entre percepsso © linguagem. Desde A estrutura do ‘compertamento a percepsio & descrita como ma atividade que sintetiza dadas parciais ‘de maneira que eles apresentem uma coisa, cula explictagio da totalidade dos aspectos cconsttuintos exigiia de fato um tempo infinite. Nesse caso, a percepeio se oculta ‘enguanto processo centrado em aspectos parcais em favor da manifestagdo da coisa ccomo plena. Paralelamente, a linguagem, conforme descrita nos anos cinquenta pelo {ldsof, "se [deixa]esquecer na medida em que a expresso & bem sucedida” (MERLEAU- PONTY, 1999, p.15), quer dizer, na medida em que os atos expressivos se dissipam em favor das significagbes por eles exprimidas, de maneira que se tem a impressio de que las so entidades autOnomas, independentes do processo expressivo pelo qual ganharam forma. Dessa forma, percepsio e linguagem partikam de um mesmo tipo de sintese,na qual os dados de partida, sempre parcias, dio gar a polos objetivos (coisas ‘ou significagées) que aparecem como entes prontos, independentes dos préprios processos que os sustentam. EE preciso dar mais um passo nessa aproximacio entre linguagem e percepsao. Lembremos que Merleau-Ponty sustentava que a ordenagio perceptiva seguia uma Logica estrite, segundo a qual as qualidades sensivels seriam coordenadas apenas segundo as Jinhas de forsa vigentes no campo fenomenal. Parece ndo haver algo similar no dominio da inencionalidade lingulstica, As signficagbes exprimidas pelos atos linguisticos 5 0s manae haan span sere “abe fo um ico mundo steal” Mace Poy, 1997, p40, tte iecear Ponty ene dogs ago fi eka “A ngnages india ne dose fe eight olla Orman err do mon J qu es eapoextk, comps provement ene 1M 1952. 309 claramente podem ser desenvolvidas, Iterpretadas e mesmo modificadas &Iuz de novos atos linguistics, sem que se possa distinguir uma camada de sentido origindria e umm ‘mero uso empirico das palavras. De fato, ji em Fenomenolagia da. percepeao as signficagdes ingulsticas eram consideradas como recursos expressives modilavels, passfvels de serem retomados por atos expressivos ulteriores que Thes atribuems novos aspectos significativos, de modo que as possibilidades de sentido veiculadas pelas significagdes nao se esgotam em nenhuma das suas formulagSes disponivels (MERLEAU- PONTY, 1997 - cap. “O corpo como expressio e a fala") Ora, para que a aproximagio centre linguagem © percepsio avance, seri preciso reconhecer essa propriedade de sedimentagio de uma base de resultados parcals passivels de alteracio na prépria atividade perceptiva E seri Justamente nossa diregao que Merleau-Ponty caminkar em seus textos des anos 50 mencionados hi pou Sejamos mais precisos em relaglo a esse ponto, Ei Fenomenolagia da perceppao, Merleau-Ponty reconhecia que as colsas percebidas se manifestavam com base em dados ‘sempre parcials (MERLEAU-PONTY, 1997, p84, por exemple). Entretanto, ao menos em seu nivel origindrio, o Inacabamento dos dados sensiveis nfo implicava em possibilidades de organizacio divergentes do campo fenomenal, o qual enyolveria um iiicleo sensivel pré-antropolégico, de carster universal. Nos textos intermediérios, 0 autor passa a reconhecer que a parcialidade dos dados sensiveis permite configuragées ‘minimamente variivels do campo fenomenal, assim como por meio de diferentes atos expressivos uma signifiario pode receher contornos particulares de sentido, Desde endo, a sintese perceptiva nio se elabora segundo uma Idgica sempre inflexivel, mas sedimenta certas abordagens privileiadas de ordenacio dos fondmenos, as quais no excluem, por prinefplo, que outras abordagens, que imponham énfases de modo minimamente variado nos contesos fenomenais, sejam possiveis. Nesse sentido, a atividade perceptiva cristaliza certos marcos privlleglades de apreensio dos dados, derivados, por exemplo, da discriminagdo recorrente de certos tragos perceptivos em dletrimento de outros. A expusiyio reitevadla « uerty contexte ambiental favorece cert tipo de circunscrigio de fendmenos ali vigentes, 0 que nio teria imediatamente uma vigencia universal, como parecia supor Merleau-Ponty em alguns trechos de Fenomenologia da percep Esse tema de uma certa habitualidade perceptiva (para além da delimitaro de um nicleo intultivo universal) & explorado principalmente no artigo A linguagem indireta e ‘as vozes do silénco. Ali, Merleau-Ponty contesta a interpretagio clissica da plntura realista, segundo a qual, por melo de alguns recursos técnlcos (tas quals a perspectiva planimétrica), essa pintura representaria a realidade de uma tal maneira que seus resultados seriam reconhecfveis universalmente, Essa interpretagio toma o sistema perceptivo “como um meio natural dado de comunieagio entre 03 homens” (Merleau- Ponty, 1960, .60), que os ligaria a um mundo nico. Essa interpretacio sup6e ainda que "os dados dos sentides' jamais variaram no correr dos séculos” (Merleau-Ponty, 1960, 1.61), isto é, que haja um micleo de contetido sensfvel que se Impde necessatiamente a todas as culturas em qualquer época,tese que parecia estar presente em alguns trechos de Fenomenolagia da percepea. Importa notar que Merleau-Ponty rejeita expressamente essa interpretagio; para ele “a percepsio dos cléssicos dependia de sua cultura’ (MERLEAU-PONTY, 1960, p.61,), e sua pintura, longe de traduzir o mundo real manifestado de modo inexorivel pelos sentidos, exprimia um tipo apreensio dos fendmenos guiado por certas expectativas culturals prvilegladas na 6poca, tals como a compreensio racional dos eventos naturais. Seguesse daf que © mundo percebido no é um tecido composto de relagbes universalmente apreendidas, mas um campo polimorfo, no interior do qual diferentes cconfigurapdes sensiveis podem ser privilegiadas, Os fendmenos percebidos contim, 310 assim, uma latncia de signficagao que nao se esgota em nenhuma de suas atualizagdes concrstas. Desde enti, € possivel considerar que a apreensio do campo fenomenal institu tradigBes perceptivas, que enfatizam maneiras recorrentes de dispor as qualiéades sensivels. Aqullo que Merleau-Ponty apresentava como miiceo sensivel "universal nao é sendo uma certa configuragio jé enviesada minimamente pelo ambiente sociocultural em que ocorre, Desse modo, a percepsdo, tal qual toda atividade corporal, institut imediatamente possibilidades antropol6gicas de apreenso dos dados, em relaglo As quals ndo se tem garantla prévia de que sefam plenamente partilhiveis de ‘maneta imediata. Da mesma forma como as palavras dependem do contextolingutstico para terem seu sentido precisado, ou como as emogBes remetem a certas tradigdes corporais, mesmo a perceprio envolve possibilidades de énfase na ordenagio das ‘qualldades que ndo vigorariam universalmente. Se 6 assim, entio a atividade peroeptiva ‘no é um solo timo em que se apolar em contextos de divergéncia multicultural, como se elagarantisse Imediatamente, por melo de um nicleo intultivo comum, @ sentido da situagio em vista. As difculdades da compreensio multicultural nem sempre poderio ser resolvidas por uma espécle de fundo a-histrico supestamente partlhado antes ‘mesmo de qualquer contato intersubjetivo; ea percepeo, assim como os demais usos do corpo, deve tomar parte nos esforgos de construco de consensos (ou a0 menos de esclarecimento das raz6es das divergéncias em contextos de confitos multiculturas), sem oprviléglo de apresentar-se como a instancia de conexo com o mundo real aquém de qualquer variagSo cultural. Referéncias Merieas-Ponty,M.La prose du monde. Pais: Glimard col Tel, 1999, structure du comportement Paris: PUE, 2002, — Paénoménologie dela perception. Pars Gallimard, coL Te, 1997. vue tang inlet ete ve dust’ bs. Sys Parts: Gallmar 1960, pp49-104, Soernl M "Perception et caltue cher Merleau-Ponty’,Philosophiques, vol35,n.2, 2008, pp297- 316, an

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