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WENDY BROWN

nas ruínas do
neoliberalismo
a ascensão da pilitica
antidemocrática
no ocidente
Aturdidos pela rápida ascensao das forças •
de extrema direita, não sabemos como
í nomeá-las. O mérito de Wendy Brown,
professora de ciência política na Universi-.
dade da Califórnia em Berkeley, é pôr e s s ^
^ evento em perspectiva numa análise qué
mantém a heterogeneidade dos elemento^
envolvidos. Por um lado, os dispositivos já,
familiares do neoliberalismo: privatiza-
ção do Estado, desmonte da solidarieda-
^^jí^de social, financeirização e corrosão da I,
democracia. Por outro lado, de dentro da \
democracia liberal-capitalista, emerge seu " nas ruínas do neoliberalismo
, aparente oposto: nacionalismo, conserva-
. .dorismo cristão, racismo e masculinismo
branco. Agregando ambos, a nova direita
báte-se^de maneira agressiva, debochada
e cteletéria contra a ciência, a laicidade e
•'^as in^ituições democráticas, ao mes^o
tempo em que exibe uma feroz e oca von-
teide de potência. Embora seus coanponen^
tes pareçam familiares, estamos diante d^
uma formação relativamente inédita..^s ) sg
A leitu^í^gmarxista e foucaultiaAa'de
Brown ifes riibstra que o j)rojeto neoliberaí'
que déu à luz seu filho É^tardo fqi gestado ^
desde a 2® Guerra Mundial: pá^Fa. blindar o ^
capitalismo do "perigo" representado pelo
poder popular e a intervenção estatista, a
cidadania deve ser rigidamente cerceada.
Mais tarde, economistas como Friedrich
Hàyek elaboram o projeto mercado-e-
.-moral: a partir da lógica de mercado, tra-
ta-se de moldar o Estado, a moral e ã lei;
^ ^ o lugãf da igualdade e da solidariedade
social, agora as famílias são responsáveis
Nas ruínas do neoliberalismo:
a ascensão da política antidemocrática no Ocidente
WENDY BROWN
© 2019 Columbia University Press
© 2019 Editora Filosófica Politeia

TÍTULO ORIGINAL

In the ruins of neoliberalism:


the rise of antidemocratic politics in the West

TRADUÇÃO

Mario Antunes Marino e Eduardo Altheman C. Santos


REVISÃO

Humberto do Amaral e Sílvia Antunes Marino

nas ruínas do
PROJETO GRAFICO

Isabela Sanches

neoliberalismo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/ 9410

BSyyn Brown, Wendy


Nas ruínas do neoliberalismo / Wendy Brown
traduzido por Mario A. Marino, Eduardo Altheman C. a ascensão da política
Santos. - São Paulo : Editora Filosófica Politeia, 2019, 256 p.
Inclui bibliografia e índice, ISBN 978-85-94444-07-3 antidemocrática
1. Neoliberalismo. i. Marino, Mario A.
II. Santos, Eduardo Altheman C. iii. Título. no ocidente
CDD 330.98
2019-1062 CDU 338.1

índice para catálogo sistemático


1. Neoliberalismo 330.98
2. Neoliberalismo 338.1

A reprodução parcial sem fins lucrativo deste livro,


para uso privado ou coletivo, em qualquer meio, requer
autorização prévia dos editores.

As URLS foram testadas em agosto de 2019

Editora Filosófica Politeia


São Paulo I outubro de 2019
www.editorapoliteia.com.br 1
editora politeia
K3 @ /editorapoliteia
151
CAPÍTULO 4
AGRADECIMENTOS
BOLOS F A L A M ; CENTROS
DE G R A V I D E Z O R A M
Liberdade religiosa e liberdade de expressão
na jurisprudência neoliberal | Bolos que
INTRODUÇÃO falam | Proprietário ou artista? | Artista ou
A ascensão da política antidemocrática fornecedor? | Expressão artística ou semiótica
I Neoliberalismo? O quê!? do bolo? I Liberdade de exercício como liberdade
de expressão | Centros de gravidez oram
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CAPÍTULO 1 197

A SOCIEDADE DEVE SER D E S MA N T E LA D A C A P Í T U LO 5

Democracia, igualdade e o social | A sociedade NENHUM FUTURO PARA HOMENS BRANCOS:

deve ser desmantelada | Hayek hoje: a liberdade NIILISMO, FATALISMO E R E S S E N T I M E N T O

e o social | Hannah Arendt não ajudou | Niilismo e Dessublimação | Niilismo


Perdendo o imaginário político do social e ressentimento | Espaço

67
CAPÍTULO 2
A POLÍTICA DEVE SER DESTRONADA 229

A antipolítica neoliberal | Milton BIBLIOGRAFIA

Friedman | Friedrich Hayek |


Os ordoliberais | O que deu errado? 247
ÍNDICE

109
CAPÍTULO 3
A E S F E R A PESSOAL E PROTEGIDA
DEVE SER ESTENDIDA
Teorizando o tradicionalismo moral como
elemento do neoliberalismo | A tradição
segundo Friedrich Hayek | O neoliberalismo
realmente existente | Reconfigurando a
nação como família e empresa privada
AGRADECIMENTOS

Este livro surgiu de reflexões provocadas pelas eleições pre-


sidenciais de novembro de 2016 nos Estados Unidos. Ele foi
concluído em 2018 nas Palestras da Biblioteca René Wellek
em Irvine, nos Seminários Gauss de Crítica em Princeton e
na Palestra Robert S. Stevens na Escola de Direito de Cornell.
Eu havia planejado outro tipo de pesquisa e de escritos para
esse período, durante o qual recebi a Bolsa da Fundação
Simon Guggenheim e a President's Humanities Research
Fellowship da Universidade da Califórnia. Dediquei-me às
perguntas e análises desenvolvidas nestas páginas porque
me pareceu irresponsável proceder de outro modo. Tenho
uma dívida profunda com os dois programas que apoia-
ram esta realização e com as instituições que acolheram
as palestras.
Os fundos Class of 1936 First Chair permitiram que eu con-
tratasse dois soberbos assistentes de pesquisa em Berkeley,
William Callison e Brian Judge. Para além da extensa ajuda
com a pesquisa e com o preparo do manuscrito, ambos
influenciaram meu pensamento com suas reflexões. O pro-
fundo conhecimento de Callison sobre os ordoliberais e
suas ideias refinadas sobre racionalidade política foram
especialmente importantes na concepção e revisão do capí-
tulo 2. Ele me salvou de várias gafes e me tutorou durante
o trabalho.
Além de Brian e Will, agradeço a Judith Butler, Michel
Feher, Bonnie Honig, Steve Shiffrin, Quinn Slobodian e Nel-
son Tebbe. Cada um ofereceu excelentes sugestões. Minha
aula magna na Universidade de Lucerna no verão de 2018
permitiu-me refinar algumas ideias.
Wendy Lochner da Columbia University Press foi encora-
jadora, flexível e profissional. Bud Bynack, revisor extraordi-
nário, e também gentil e divertido, é uma dádiva para escri-
tores e leitores.
A doença terminal de Saba Mahmood acompanhou gran- INTRODUÇÃO
de parte da escrita deste livro. Helene Moglen faleceu subi-
tamente durante a finalização do texto. Ambas eram amigas
amadas. Ambas nutriam irrepreensível ardor pela beleza e Eis o espírito tirânico querendo brincar
pelas possibilidades deste mundo, além de uma fúria límpi- de bispo e de banqueiro por toda parte.
da contra suas crueldades, ardis e erros. Que seus espíritos George Eliot, Middlemarch.^
possam inspirar nosso futuro.
A introdução e os capítulos i, 2 e 5 baseiam-se em argu-
mentos que delineei em Neoliberalisms Frankenstein: Autho- Para sua própria surpresa, forças da extrema direita subi-
ritarian Freedom in Neoliberal "Democracies". O capítulo 1 traz ram ao poder nas democracias liberais pelo mundo todo.^
também elementos de Defending Society, da série Big Pictures. Cada eleição traz um novo choque: neonazistas no parla-
mento alemão, neofascistas no italiano, o Brexit conduzi-
do pela xenofobia alimentada por tablóides, ascensão do
nacionalismo branco na Escandinávia, regimes autoritários
tomando forma na Turquia e no Leste Europeu e, é claro, o
trumpismo. O ódio e a belicosidade racistas, anti-islâmicos
e antissemitas crescem nas ruas e na internet. Grupos de
extrema direita recentemente amalgamados têm eclodido
audaciosamente na vida pública após terem passado anos à
espreita, na maior parte do tempo nas sombras. Políticos e
vitórias políticas encorajam movimentos de extrema direita
que, por sua vez, se sofisticam à medida que manipuladores

Agradeço a Corey Robin, que me enviou essa frase de Middle-


march.
Os sentimentos nativistas, racistas, homofóbicos, sexistas,
antissemitas, islamofóbicos, bem como sentimentos cristãos
antisseculares, adquiriram bases políticas e legitimidade
inimagináveis há uma década. Políticos oportunistas surfam
nessa onda, enquanto conservadores com mais princípios
buscam submergir e esperar que ela passe; as agendas polí-
ticas de ambos frequentemente confluem mais para a pluto-
cracia do que para as paixões furiosas de uma base que exige
a criminalização de imigrantes, do aborto e da homossexuali-
dade, a preservação de monumentos ao passado escravista e
que as nações voltem a se dedicar à branquitude [iDhiteness]
e à cristandade.
T
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políticos e peritos em mídia social moldam a mensagem. cujas limitações em breve ficarão claras, vai mais ou menos
Enquanto esse recrutamento continua crescendo, centris- nesta direção: no Norte global, a política econômica neoli-
tas, neoliberais mainstream, liberais e esquerdistas hesitam. beral devastou áreas rurais e suburbanas, esvaziando-as
^Indignação, moralização, sátira e esperanças vãs de que fac- de empregos decentes, aposentadoria, escolas, serviços e
ções internas ou escândalos na direita produzirão sua auto- infraestrutura enquanto os gastos sociais minguavam e o
destruição têm prevalecido sobre estratégias sérias para capital ia ã caça de mão de obra barata e de paraísos fiscais
^ desafiar essas forças por meio de alternativas convincentes. no Sul global. Ao mesmo tempo, abria-se uma clivagem cul-
Nós temos dificuldade até mesmo com a nomenclatura: tra- tural e religiosa sem precedentes. Citadinos modernos, edu-
ta-se de autoritarismo, fascismo, populismo, democracia não cados, elegantes, seculares, multiculturais e viajados cons-
liberal, liberalismo antidemocrático, plutocracia de extrema truíam um universo moral e cultural diferente daquele dos
direita? Ou outra coisa? interioranos, cujas desgraças econômicas foram temperadas
A incapacidade de prever, compreender ou efetivamen- com um distanciamento crescente dos costumes daqueles
te contestar esses desenvolvimentos é devida, por um lado, que os ignoravam, ridicularizavam ou desdenhavam. Além
a suposições cegas sobre valores e instituições ocidentais de empobrecidos e frustrados, os cristãos brancos, rurais ou
duradouros - especialmente o progresso, o Iluminismo e a suburbanos, eram deixados de lado e para trás, alienados e
democracia liberal e, por outro lado, à aglomeração pouco humilhados. E havia o racismo duradouro, crescente confor-
familiar de elementos na direita ascendente - sua curiosa me novos imigrantes transformaram bairros suburbanos e
combinação de libertarianismo, moralismo, autoritarismo, conforme políticas de "equidade e inclusão" pareceram, ao
nacionalismo, ódio ao Estado, conservadorismo cristão e homem branco não escolarizado, favorecer a todos, menos
racismo. Estas novas forças conjugam elementos já fami- a ele. Assim, as agendas políticas liberais, as agendas eco-
liares do neoliberalismo (favorecimento do capital, repres- nômicas neoliberais e as agendas culturais cosmopolitas
são do trabalho, demonização do Estado social e do político, geraram uma crescente experiência de abandono, traição
ataque às igualdades e exaltação da liberdade) com seus e finalmente raiva por parte dos novos despossuídos, das
aparentes opostos (nacionalismo, imposição da moralidade populações da classe trabalhadora e da classe média bran-
tradicional, antielitismo populista e demandas por soluções cas do Primeiro Mundo e do Segundo. Embora seus pares de
estatais para problemas econômicos e sociais). Elas conju- pele escura tenham sido prejudicados tanto quanto ou mais
gam a retidão moral com uma conduta amoral e não civiliza- pelas dizimações neoliberais dos empregos protegidos por
da quase celebradora. Endossam a autoridade enquanto exi- sindicatos e dos bens públicos, pelo declínio das oportuni-
bem desinibição social e agressão pública sem precedentes. dades e do acesso e qualidade da educação, uma coisa que
Batem-se contra o relativismo, mas também contra a ciência negros e latinos não sofreram foi a perda da supremacia na
e a razão, e rejeitam afirmações baseadas em fatos, argu- América e no Ocidente.
mentação racional, credibilidade e responsabilidade. Desde- À medida que esse fenômeno tomava sua forma inicial,
nham dos políticos e da política enquanto manifestam uma prossegue a narrativa, plutocratas conservadores manipu-
feroz vontade de potência e ambição política. Onde estamos? lavam-no brilhantemente: os despossuídos eram a cada vez
Não faltaram esforços de analistas e acadêmicos para lançados sob o rolo compressor da economia, enquanto se
responder essa questão. Uma narrativa comum da esquerda. tocava para eles uma sinfonia política de valores familiares
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cristãos, acompanhada por hinos louvando a branquitude e foram igualmente alimentados com uma dieta regular de
o sacrifício de seus jovens em guerras intermináveis e sem comentários de direita da Fox News, de programas de rádio
sentido. É disso que trata o livro What's the Matter with Kan- e mídias sociais, articulada pelas franjas enquanto um
sas?^ Misturar patriotismo com militarismo, cristandade, pot-pourri de movimentos antes isolados - nacionalistas
família, mensagens racistas cifradas e capitalismo desen- brancos, libertarianos, contrários ao governo e fascistas -
freado foi a receita de sucesso dos neoliberais conservadores conectava-se pela internet.® Devido especialmente á desilu-
até a crise financeira de 2008 devastar a renda, a aposen- são generalizada com as intermináveis guerras no Oriente
tadoria e a casa própria da classe trabalhadora e da clas- Médio, o patriotismo militarista e os valores da família não
se média branca que constituíam sua base.^ Uma mudança eram mais suficientes. Ao invés disso, o novo populismo de 1
séria era então necessária: até mesmo economistas murmu- extrema direita sangrou diretamente da ferida do privilégio
ravam seus equívocos sobre a desregulamentação descon- destronado que a branquitude, a cristandade e a masculini-
trolada, sobre o financiamento da dívida e sobre a globaliza- dade garantiam àqueles que não eram nada nem ninguém.
ção. Isso significava gritar contra o Estado Islâmico, contra Foi fácil pôr a culpa pelo seu destronamento no roubo de
os imigrantes ilegais, contra os mitos acerca das ações afir- empregos por migrantes, minorias e outros supostos bene-
mativas e, acima de tudo, culpar o governo e o Estado social ficiários não merecedores da inclusão liberal (mais escan-
pela catástrofe econômica, sorrateiramente transferindo a dalosamente, aqueles de religiões e etnias supostamente
culpa de Wall Street para Washington, porque o governo terroristas) e cortejados por elites e globalistas. Os danos
limpava a lambança resgatando os bancos, enquanto dei- das políticas econômicas neoliberais foram assim manipu-
xava as pessoas comuns na mão. Por conseguinte, nasceu lados na imagem de suas próprias perdas, espelhada no des-
uma segunda onda de reação ao neoliberalismo, mais rebel-
caminho da nação. Era ^ m a g e m de um passado míticode
de, populista e repulsiva. Já atormentados por uma elegan-
famílias felizes, íntegras e heterossexuais, quando m u ^ -
te família negra na Casa Branca, os brancos descontentes
res e minorias raciais sabiam seus lugares, quando as yizi-
nhanças eram ordeiras, j ^ r a s e homogêneas, a heroína
era problemâjdfls negros, 9 terrorismo não estava em^ solo
3 Thomas Frank. What's the Matter with Kansas? A s referências
bibliográficas completas encontram-se na bibliografia ao final
pátrio e quando nridt^nHads e branquitude hegemônicas
deste volume, [N.E.] constituíam a identidade, o poder e o orgulho nianiffíatos
4 Muitos estudiosos cuidadosos tratam a longa cauda da crise da'nagao'e do Ocidente.^ Contrário á invasão de outros povos,
de 2 0 0 8 como a causa que precipitou a virada de direita. ideias, leis, c u E u r a s ê^eligiões, esse era o mundo de conto
Cf., entre outros, Yanis Varoufalcis, "Our N e w International de fadas que os líderes populistas de direita prometeram
Movement Will Fight Rising Fascism and Globalists". David
Leonhardt, "We're Measuring the Economy All Wrong: The
Official Statistics Say That the Financial Crisis Is Behind Us. David Neiwert, Alt-America: The Rise of the Radical Right in the
It's Not". Manuel Funlce et ai, "The Financial Crisis is Still Age of Trump.
Empowering Far-Right Populists: W h y the Effects Haven't Cf James Kirchik, The End of Europe: Dictators, Demagogues,
Faded". Philip Stevens, "Populism is the True Legacy of the and the Coming Dark Age. Douglas Murray, The Strange Death
Global Financial Crisis". Khatya Chhor, "Income Inequality, of Europe. Walter Laqueur, After the Fall: The End of the Euro-
Financial Crisis, and the Rise of Europe's Far Right". pean Dream and the Decline of a Continent.
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proteger e restaurar. Os slogans das campanhas dizem tudo: trabalhadora branca ou o novo racismo ao qual se apegam
"Make America great again" [Faça a América grande de novo] jovens brancos não escolarizados. Alguns sublinham o
(Trump), "A França para os franceses" (Le Pen e a Frente papel dos poderosos think tanks de direita e do dinheiro na
Nacional], "Take back control" [Recupere o controle] (Brexit), política. Outros sublinham os velhos/novos "tribalismos"
"Nossa cultura, nosso lar, nossa Alemanha" (Alternativa para que emergem do colapso de Estados-nação ou de regiões
a Alemanha), "Polônia pura. Polônia branca" (Partido Polonês antes mais homogêneas (em termos raciais ou religiosos).
da Lei e da Justiça), "Mantenha a Suécia sueca" (Democra- Entretanto, quase todos concordam que a intensificação da
tas Suecos). Esses slogans e o ressentimento que expressam desigualdade neoliberal no Norte global foi um barril de pól-
conectaram grupos de franjas racistas outrora dispersos, vora e que a imigração em massa do Sul para o Norte lançou
católicos de direita, cristãos evangélicos e cidadãos subur- um fósforo aceso.
banos frustrados que despencavam da classe média e da Com suas várias inflexões, essa narrativa se tornou o
classe trabalhadora. A crescente segmentação [siloization] senso comum da esquerda desde o terremoto político de
do consumo de mídia, da TV a cabo ao Facebook, reforçou novembro de 2016. Ela não está errada, mas incompleta,
tais conexões e alargou o abismo entre os interioranos e como procurarei mostrar. Ela não registra as forças que
os instruídos, urbanos, cosmopolitas, mestiços, feministas, sobredeterminam a forma radicalmente antidemocrática da
defensores do queer e ateus. Ao mesmo tempo, a implacável rebelião e, assim, tende a aUnhá-la aos fascismos de outrora;
corrosão neoliberal de toda forma de existência não moneti- ela não considera a demonização do social e do político por
zada - tal como ser bem informado e cheio de idéias sobre o Darte da pnvpmpmpntalidade nraliberal, nem a valorização
mundo - convergiu com a privatização, que sufocou o acesso da moralidadeJttadicional e j o s mercados como seus subs-
ao ensino superior para muitos. Uma geração já afastada da titutos: não reconhece a d e s i n t ^ a ç ã o da sociedade e o des-"
educação em artes liberais'' voltou-se contra ela. prpHitn Hn berri Dúblíco pelaj"4;&ãQ neoliberal, a semear"^
O foco dessa narrativa varia. Ora são as políticas neoli- terreno cara os assim chamados "tribalismos" que emergi-
berais, ora a suposta fixação da esquerda liberal com o mul- i:am como identidades e forças políticas em anos recentes.
ticulturalismo e com políticas identitárias, ora o crescente Não explica como o ataque à igualdade, combinado com a
poder e importância política de nacionalistas evangélicos e mobilização dos valores tradicionais, pôde aumentar o fogo
cristãos, ora a crescente vulnerabilidade de uma população e legitimar racismos dos legados coloniais e escravagistas
não escolarizada às mentiras e conspirações, ora a neces- que há tanto tempo fervem em fogo brando — o que Nikhil
sidade existencial de horizontes, ora a falta de atratividade Singh chama de nossas "guerras internas e externas" - ou
da visão de mundo globalizado para todos, exceto para as ainda o caráter de nunca-vá-suavemente-noite-adentro® da
elites e, por vezes, o racismo duradouro de uma velha classe

"Never go gently into the night" ou sua variação "never go


7 Uma educação em artes liberais é um curso universitário vol- softly into the night" remete ao poema "Do not go gently
tado à ideia de uma educação interdisciplinar que visa uma into that good night" de Dylan Thomas, publicado em 1951.
vida cívica ativa e livre. Seu objetivo é explorar diversas áreas A expressão, hoje popularizada na língua inglesa, refere-se à
para desenvolver conhecimentos gerais de modo a fortalecer idéia de lutar até o fim, não entregar os pontos, mesmo quan-
o pensamento crítico e a comunicação, [N.T.] do o f i m é i m i n e n t e , [N.T.]
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T 17

superordenação masculina;® não capta o niilismo crescente fica intocado pela forma neoliberal derazão^e de valoração,
que desafia a verdade e transforma a moralidade tradicional e que o ataque_do neoliberalismo à demõcí^ia tem. em todo
em arma de batalha política; n^o identifica como os ataques o lugar,TnflSido lei, cultura polítina p ciihiPÜjüíladÊjiolíÜca.
à democracia constitucional, à igualdade racial, de gênem Compreender as raízes e as forças da situação atual requer
ê ^ e x u a l ^ educação puDnca^â e s T S ^ ú b l i c a civil não vio- avaliar a cultura política e a produção subjetiva neoliberais,
lenta foram todos levados a cabo~em nome da liberdãdeV e não somente as condições econômicas e os racismos per-
da^oralidade. Não compreende como a racionalidade neo- sistentes que a geraram. Significa avaliar que a ascensão das
liberal desorientou radicalmente a esquerda ao moldar um formações políticas nacionalistas autoritárias brancas se
discurso corriqueiro no qual a justiça social é de uma só vez deve à raiva instrumentalizada dos indivíduos abandonados
banalizada e demonizada como "politicamente correta" ou economicamente e ressentidos racialmente, mas também
caracterizada como uma Kulturkampfáa esquerda gramscia-
delineada por mais de três décadas de assaltos neoliberais
na que visa depor a liberdade e a moralidade e que é assegu-
à democracia, à igualdade e à sociedade. O sofrimento eco-
rada por um estatismo blasfemo."
nômico e o rancor racial das classes trabalhadora e média
Este livro trata dessas questões por meio da teorização brancas, longe de se distinguir desses assaltos, adquire voz
de como a racionalidade neoliberal preparou o terreno para e forma a partir deles. Esses ataques também abastecem
mobilizar e legitimar forças ferozmente antidemocráticas (mesmo que por si mesmos não sejam sua causa) a ambição
na segunda década do século xxi. O argumento não é que nacionalista cristã de (re)conquistar o Ocidente. Eles tam-
o neoliberalismo por si só causou a insurgência da extrema bém se misturam com um niilismo intenso que se manifesta
direita no Ocidente de hoje, ou que toda a dimensão do pre- como perda da fé na verdade, na facticidade e em valores
sente, das catástrofes que produzem grandes fluxos de refu- fundamentais.
giados para a Europa e América do Norte até a setorização e Para construir estes argumentos, Nas ruínas do neolibera-
a polarização políticas geradas pelas mídias digitais, possa lismo revisita aspectos específicos do pensamento daqueles
ser reduzida ao neoliberalismo." Meu argumento é que nada que se reuniram na Sociedade Mont Pèlerin em 1947. ado-
taram o nome "neoliberalismo" e propuseram o esquema
Nikhil Singh, Race and America's Long War. fundador para aquilo que Michel Foucault chamaria de a
10 Cf., p. ex., Jonah Goldberg, Liberal Fascism, pp. 361-67.
11 Os eventos que ajudam a crescer e a animar o que antes era educação pública e do acesso ao ensino superior por famílias
uma formação marginal nos Estados Unidos e na Europa trabalhadoras e de classe média, e, acima de tudo, o desenvol-
incluem as consequências do colapso do capital financeiro, vimento da internet. A globalização neoliberal também é res-
o surgimento de uma mídia altamente setorizada e isolada, ponsável por grande parte do descontentamento das classes
inclusive as mídias sociais, as várias crises políticas e eco- brancas trabalhadora e média no Norte global, cujas fortunas
nômicas - da guerra civil na Síria à guerra de gangues na e futuros colapsavam à medida que o capital manufaturei-
Guatemala, gerando uma onda de refugiados e migrantes ro buscava mão de obra barata no Sul global, que o capital
para a Europa e a América do Norte - , o Estado Islâmico e financeiro transformou a necessidade humana de moradia e
outras fontes de terror, dois mandatos de um presidente afro- a provisão para a velhice em fonte de megalucros pela espe-
-americano nos Estados Unidos, a promoção pela esquerda de culação e que a idéia da tributação como forma de custeio da
justiça e cidadania multiculturais, o declínio da qualidade da civilização desapareceu.
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T 19

dramática "reprogramação do liberalismo" que hoje conhe- to o poder oligárquico internacional gerado pelas finanças
cemos como neoliberalismo. Novamente, isso não significa, que hoje segura as rédeas dos Estados." Buscando colocar
entretanto, que nem os intelectuais neoliberais originais - a politica para fora dos mercados e a concentração de inte-
Friedrich Hayek, Milton Friedman e os seus meios-irmãos, resses econômicos para fora da elaboração das politicas, eles /
os ordoliberais alemães - e nem mesmo os próprios formu- teriam deplorado a manipulação das politicas públicas por
ladores das politicas neoliberais mirassem o presente poli-
setores dominantes da indústria e do capital e teriam odia-
tico e econômico. Ao contrário, o entusiasmo popular com
do a politização das empresas. Acima de tudo, eles temiam
os regimes autocráticos, nacionalistas e em alguns casos
a mobilização politica de cidadãos ignorantes e excitados e
neofascistas, abastecidos pela disseminação de mitos e
buscavam no mercado, na disciplina moral e numa demo-
pela demagogia, afasta-se tão radicalmente dos ideais neo-
cracia severamente cerceada as formas de pacificá-los e con-
liberais quanto os regimes comunistas estatais repressivos
tê-los. Eles teriam ficado horrorizados diante do fenômeno
afastavam-se de Marx e de outros intelectuais socialistas,
contemporâneo do surgimento de lideres ao mesmo tempo
mesmo que, em ambos os casos, a planta disforme tenha
autoritários e imprudentes surfando nessa maré rumo ao
crescido do solo fertilizado por aquelas ideias. Forjado no
poder. Em suma, embora este livro argumente que a conste-
cadinho do fascismo europeu, o neoliberalismo visou uma
lação de principios, politicas, práticas e formas de governar
imunização permanente das ordens de mercado contra o
a razão que pode ser reunida sob o signo de neoliberalismo
rebrotar de sentimentos fascistas e poderes totalitários."^
constituiu de modo importante o presente catastrófico, não ^
Ávidos por apartar a politica dos mercados, os neoliberais
foi esse o rebento deseiado oelo neoliberalismo. mas sua
originais teriam detestado tanto o crony capitalism"^" quan-
criação frankensteiniana. Compreender como essa criação
veio a ser requer o exame das falhas e oclusões iminentes
12 Alguns ordoliberais chegaram perto de endossar o fascismo, e
dos principios e politicas neoliberais, bem como sua mescla
para nenhum deles estabelecer barreiras entre os mercados e
com outros poderes e forças, tais como racismo, niilismo,
a política era o único objetivo. Cf. Quinn Slobodian, Globalists:
The Birth of Neoliberalism and the End of Empire, que oferece
fatalismo e ressentimento."®
um relato convincente da ordem mundial que eles procuraram
construir. Além disso, embora eu cite a datação convencional
14 Para os relatos de como e por que bancos e instituições finan-
das origens do neoliberalismo, a partir do encontro de 1947 da
ceiras enfraquecem cada vez mais a autonomia política na
Sociedade Mont Pèlerin, William Callison traz um argumento
tomada de decisões, cf Thomas Biebricher, "The Biopolitics of
convincente ao remontar suas origens até o período entre as
Ordoliberalism", pp. 171-91; Claus Offe, Europe Entrapped. Wol-
guerras mundiais. Cf William Callison, Politicai Deficits: The
fgang Streeck, Buying Time: The Delayed Crisis of Democratic
Dawn ofNeoliberal Rationality and the Eclipse of Critical Theory.
Capitalism. Yanis Varoufakis, And the Weak Suffer What They
13 A expressão "crony capitalism", que pode ser traduzida como Must: Europe's Crisis and America's Economic Future.
"capitalismo de compadrio" ou "capitalismo clientelista", refe-
15 Muitos acadêmicos estudiosos de economia política analisa-
re-se a uma discussão travada na sociologia e na teoria políti-
ram criticamente as contradições econômicas e as limitações
ca após as experiências do Estado de bem-estar social nos paí-
da economia neoliberal. Além disso, em Politicai Deficits, Wil-
ses centrais e as modernizações "retardatárias" na periferia
liam Callison oferece uma explicação genealógica e analítica
a respeito das relações promíscuas entre o Estado e grupos
dos pontos cegos internos do neoliberalismo vis-à-vis do "polí-
econômicos monopolistas e oligopolistas. [N.T.]
tico". Thomas Biebricher escreveu sobre suas contradições e
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/ Este livro não afirma que o neoliberalismo visou a con- subjetividade." Ele também revisa argumentos de um ensaio
juntura atual de princípios, políticas, práticas e formas de anterior, American Nightmare, em que analisei as raciona-
racionalidade, nem advoga que os fascismos dos anos 1930 lidades neoliberal e neoconservadora como distintas em
estão "retornando", nem que a civilização Ocidental, outrora suas origens e características.'» Esses dois trabalhos ante-
no caminho do progresso, encontra-se agora num período riores falharam em apreender as características cruciais
de regressão." Ao invés disso, ele teoriza a atual formação da revolução neoliberal de Thatcher-Reagan, as quais têm
como relativamente inédita, divergindo dos autoritaris- suas coordenadas naquilo que P^ilio Mirowski chamou de
mos, fascismos, despotismos ou tiranias de outras épocas e Coletivo do PensamenJxuNaoliheral e Daniel_Stedman Jones
! lugares e diferindo também dos conservadorismos conven- descreveu como "uma espécie de Internacional neoliberal",
\ cionais ou conhecidos. Por conseguinte, rejeitamos aqui a uma rede transatlântica de acadêmicos, empresários, jorna-
linguagem que boa parte da esquerda usa para repreender listas e ativistas." Essa revolução visava habilitar o mercado
a direita, bem como a que a direita usa para descrever a e a moral para governar e disciplinar indivíduos, ao mesmo
si mesma, me fnca em^njao as fornnüagões n e o l i b e r a i s ^ tempo maximizando a liberdade, e assim o fez por meio ^
liberdade inspiram e legitimam a^extrema direita e como da demonização do social e da versão democrática da vida_i
adireitajnobiliza um discurso de liberdade para justificar política. A razão neoliberal, especialmente como Friedrich
^ ^ s u a s exclusões e violações às vezes violentas e aue Hayek a formulou, coloca o mercado e a moral como formas
^ r e a s s e g u r ^ a hegemonia branca. masculina e cristã, e singulares de provisão de recursos para as necessidades
não apenas expandir o poder do caEÍtal. Também discuti- humanas, compartilhando princípios e dinâmicas ontológi-
mos como essa formulação de liberdade pinta a esquerda, cos. Enraizados na liberdade [liberty] e gerando uma ordem
incluindo a esquerda moderada ou liberal, como tirânica ou' e evolução espontâneas, seus opostos radicais são qualquer
mesmo "fascista" em sua preocupação com justiça social e,
ao mesmo tempo, como responsável pelo esgarçamento do
17 Wendy Brown, Undoing the Demos: Neoliberalism's Stealth Revo-
tecido moral, pelas fronteiras desprotegidas e por premiar
lution.
quem não merece.
18 Wendy Brown, "American Nightmare: Neoliberalism, Neocon-
O projeto deste livro requer pensar para além dos argu- servatism and De-Democratization".
mentos (e mesmo revisá-los] de Undoing the Demos: Neoli- 19 Cf. Philip Mirowski, "Neoliberalism: The Political Movement
beralisms Stealth Revolution, meu trabalho anterior sobre That Dared Not Speak Its Name". Id., "This Is Water (or Is It
o neoliberalismo e a democracia, no qual eu caracterizava Neoliberalism?}". Mirowski escolheu a denominação "Coleti-
a racionalidade neoliberal que cria um mundo como foca- vo do Pensamento Neoliberal" ["Neoliberal Thought Collective"]
para captar até que ponto as ideias centrais do neoliberalis-
da exclusivamente no impulso de economicizar todos os
mo não eram as de um indivíduo ou de uma só época, pois a
aspectos da existência, das instituições democráticas à
própria Sociedade Mont Pèlerin compreendia um grupo de
pessoas relativamente diverso e mutável que redefiniu suas
ideias ao longo do tempo. Aqueles que eram periféricos numa
época se tornaram centrais noutra. A s diferentes escolas das
^aporias vis-à-vis da neutralidade política e da soberania em
quais a sociedade foi composta nunca alcançaram uma uni-
"Sovereignty, Norms, and Exception in Neoliberalism".
dade intelectual, mesmo quando compartilhavam e desenvol-
16 Cf. Rahel Jaeggi, Fortschritt und Regression.
viam um projeto político, econômico e moral comum.
34T 22

tipo de política, planejamento e justiça sociais deliberados e que desafia a reprodução social das hierarquias de gênero,
administrados pelo Estado.
raça e sexo, ou as políticas que promovem tímidas correções
É lugar-comum afirmar que o mercado tem esse papel no das diferenças extremas entre classes. P a i ^ a y e k , o mer-
\í' neoliberalismo - mas o mesmo não pode ser afirmado sobre cado e a moral, juntos, são o f u n d ^ n t o da liberdadejfree-
a moralidade tradicional, embora esta apareça com desta- Jom], d a " õ r c [ ê n r e d Õ d ê s e n ^ ^ dadvili-^cão. Ambos
que na declaração de fundação da Sociedade Mont Pèlerin-^"» são organizados espontaneamente e transmitidos por meio
O papel da família na revolução neoliberaí americana é tema da tradição e não pelo poder político. Os mercados só podem \
do rico livro de MelindaXooper de 2016, Family Values, que funcionar impedindo-se o Estado de neles se imiscuir ou
revela como reassegurar as normas familiares patriarcais intervir. A moral tradicional só pode funcionar quando se
não é algo secundário, mas profundamente enraizado na
impede igualmente que o Estado intervenha nesse domínio
reforma neoliberaí do bem-estar social e da educação. Coo-
e quando a expansão daquilo que Hayek chama de "esfera
per examina e vincula uma série de políticas nas quais a
pessoal protegida" confere à moralidade mais poder, ampli-
família tradicional foi explicitamente aduzida para substi-
tude e legitimidade do que as democracias sociais seculares J
tuir múltiplos aspectos do Estado social. Em sua narrativa,
racionais propiciam. Assim, mais que um projeto de amplia-
a privatizacfln mpmFidplógica da seguridade social, da saúde'
ção da esfera da competição e valoração de mercado ("eco-
e do ensino superior envolveu a r e s p o i ^ S i ^ Z ^ ^ l ^ d i -
nomicizando tudo", como argumentei em Undoing the Demos),
víduos masculinos, em vez do.Estgdo, nos
o neoliberalismo hayekiano é um projeto político-moral que
na. adolescência; dos pais, em vez do Estado, pelos custos da
visa proteger as hierarquias tradicionais negando a própria
educação superior; e das famílias, em vez Hpjistado. npTa
ideia do social e restringindo radicalmente o alcance do
provisão_dequ^^ r^iidadaj3ara_^s d^enden-
poder político democrático nos Estados-nação.
tes - ^Piam rriannaQ _deíicientes ou ídn.snQ.^' O ataque contemporâneo à sociedade e à justiça social em [I
0 livro de Cooper é brilhante. No entanto, somente voltan- nome da liberdade de mercado e do tradicionalismo moral 1
do às idéias neoliberais fundadoras, em particular a Hayek, é, portanto, uma emanação direta da racionalidade neolibe-
será possível pôr em relevo a arquitetura da razão que liga' raí, e não se limita aos assim chamados "conservadores". Se -
a moralidade tradicional ao neoliberahsmo e que anima as a reforma clintoniana do Estado de bem-estar é o exemplo
campanhas da direita hoje. Essas campanhas classificam mais óbvio do "neoliberalismo progressista", ela também
como assaltos à liberdade e à moralidade toda política social delineou a campanha pela igualdade de casamento, que
construiu a defesa do casamento entre pessoas do mesmo
20 i N a "Declaração de Objetivos" de 1 9 4 7 da Sociedade Mont sexo sobre a dupla base da singularidade moral-religiosa do
iPèlerin, o primeiro item listado como matéria a ser objeto de casamento e da singularidade econômica das famílias em
l e s t u d o s adicionais foi "a análise e exploração da natureza da
prover saúde, educação e bem-estar, assim como a transmis-
í crise atual, de modo a trazer para os outros as origens morais
são de riqueza entre gerações. As forças conservadoras, no
e econômicas essenciais" (grifo nosso). A declaração também
identificou uma "visão da história que nega todos os padrões
entanto, fizeram apelos mais diretos à moralidade tradicio-
1 morais absolutos" como um dos riscos para "os valores cen- nal e homílias ao livre-mercado, embrulhando tudo isso com
t trais da civilização" e da liberdade. patriotismo, nativismo e cristandade. Nos Estados Unidos,
21 Melinda Cooper, Family Values. uma maioria na Suprema Corte encorajou esses apelos por
10424

meio de uma série de pareceres que revogou as restrições à contra a brutalidade policial racializada, considerados des-
produção e ao comércio, repeliu estatutos antidiscriminação respeitosos às tropas americanas. Kaepernick nunca men-
e expandiu o significado e o alcance da liberdade religiosa.^^ cionou os soldados nem dirigiu seu protesto às empreitadas
Os textos fundadores raramente mencionaram isso, mas militares americanas. No entanto, mais do que metonímias
a superordenação branca e masculina é facilmente inserida ligam o hino nacional, o futebol americano e as forças arma-
no projeto neoliberal mercado-e-moral. Por um lado, os mer- das - mais ainda que a objeção racista aos atletas negros
cados desregulamentados tendem a reprõdííiiírennffiz^e de que seu trabalho é tocar e dançar para os brancos, e não
ajiienizar^_o£poderes e a_eslEaüfiuacãa,5üçjais p r o d u z i a s reivindicar um lugar à mesa com eles. A lógica que considera
historicamente. Divisões raciais e sexuais do t r a b a l h o S o seu protesto antipatriótico é organizada por uma imagem da
embutidas neles: o trabalho doméstico, por exemplo, em que nação que compreende as tradições como imunes a crítica,
predomina um gênero, não é remunerado, e sua versão de incluindo tradições de policiamento e de racismo. Os milita-
mercado lamentavelmente sub-remunerada (cuidado infan- res, identificados como a "defesa de nosso modo de vida", até
til, limpeza doméstica, cuidado domiciliar de saúde, traba- mesmo ou talvez especialmente quando lutam em guerras
lho na cozinha) é executada de modo desproporcional por impopulares, são o emblema mais brilhante dessa imagem.
não brancos e imigrantes. Profundas desigualdades tanto na
educação pública quanto na privada (do jardim de infância à
pós-graduação) compõem essa estratificação, assim como as A A S C E N S Ã O DA P O L Í T I C A A N T I D E M O C R Á T I C A
culturas de classe, raça e gênero que estruturam práticas de
contratação, promoções e sucesso. Por outro lado, a morali- Talvez os opositores da social-democracia devam saudá-la por
dade tradicional serve, por exemplo, para repelir o combate seus efeitos conservadores. A social-democracia traz contribui-
às desigualdades como, por exemplo, assegurar a liberda- ções para a sociedade em geral e para o sistema político que
de reprodutiva das mulheres ou desmantelar a iconografia servem para suavizar o radicalismo potencial da democracia
pública que celebra um passado escravocrata. A moralidade política. Todos contribuem, todos se beneficiam e todos partici-
t r a d i c i o n a U a m ^ liga a preservação do passado ao patrio- pam. Ao promover a educação pública, a seguridade social e os
tismo, promovendo-o não^genas como_amor ao país, mas cuidados ampliados com a saúde, a social-democracia ajuda a
como amor ao modo como as nnic:a<; eram. o que tacha de anti- mitigar os efeitos divisivos da riqueza, da raça, da etnicidade e
patrióticas as..Qb)eçõfíS.à injustiça racial e de^gênern. Daí a de outras identidades potencialmente explosivas. Ela promove
reprimenda aos protestos "take a knee"^' de Colin Kaepernick u m a c o m u n a l i d a d e de contribuições e benefícios compartilha-
dos que encorajam uma forma moderada, e não enfurecida, de
governo da maioria.
22 Embora esses questionamentos se baseiem em vários elemen-
Sheldon Wolin, Fugitive Democracy and OtherEssays
tos da Constituição dos Estados Unidos, nenhum desses ele-
mentos foi mais importante do que as liberdades propiciadas
pela Primeira Emenda. É o assunto dos capítulos 3 0 4 . à brutalidade policial e à desigualdade racial nos Estados Uni-
23 A l g u n s jogadores da liga NFL estadunidense, como Colin dos. Mas tal gesto tem sido interpretado por alguns (especial-
Kaepernick, passaram a se ajoelhar durante a execução do mente pela direita) como um ato desrespeitoso, de insulto à
hino nacional como forma de protesto para chamar a atenção bandeira americana e aos valores que ela representa, [N.T.]
27

26

de uma ordem global competitiva, zelada por - s t i t u i ç o e s A -i


O presente livro argumenta que a ascensão da política anti- supranacionais^ um lado, e viabilizada por Estados plena-
democrática foi promovida por meio de ataques à socieda- m e r i i v r e s dos interesses e das manipulações economistas
de — compreendida como algo experimentado e zelado de de ^utro.- Em terceiro, t e ^ o s os modos como o mercado e
forma comum - e à legitimidade e à prática da vida políti- moral se distorceram à c e d i d a que foram submetidos a
ca democrática. O capítulo i inicia esta análise do projeto gramáticas e ao espírito um do out.o - isto é. à - e d da que
mercado-e-moral do neoliberalismo examinando a crítica i S í d ^ f o i mercantilizada ^os m e r c ^ o r a l i z a d o .
do neoliberalismo à sociedade e seu objetivo de desmantelá- PoTmeio desse processo, ambos foram politizados como c r e ^ , .
-la. O capítulo 2 explora o ataque à democracia compreen- do l g m á t i c o s ' [ ^ 9 ^ . n , cre^s], perdendo assim o carat ^
dida como soberania popular e poder político compartilha- O / e o modo " o r g â n i ^ S ^ p o n t â n e o " de organizar a conduta ^_
do. O capítulo 3 delineia o projeto neoliberal de expandir o

I alcance da moralidade tradicional para além das esferas do


culto familiar e privado para a vida pública e comercial. Nos
Estados Unidos, essa expansão foi poderosamente encoraja-
pelo"quaislfe^seuscolegasosestimavam.Finalmente,
o t e o l ^ r a l i s m o intensificou o niilismo, o fatalismo e o res ^
e n t í ^ n t o rancoroso já presentes na cultura moderna tar-
d a untos, esses desenvolvimentos e efeitos geraram algo
da pela Suprema Corte. O capítulo 4 faz uma leitura de dois
di^alme^te diferente da utopia neoliberal de uma or m
vereditos recentes da Corte sob esse prisma. O capítulo 5
liberal desigualitária em que indivíduos e famílias seriam
explora o embricamento do projeto neoliberal mercado-e-
p S a d o s politicamente pelo mercado e pela moral e sub-
-moral com o niilismo, o fatalismo e a supremacia masculi-
tendTos por um Estado autônomo e com autoridade mas
na branca ferida.
d e s p o l i t i - d o . Em vez disso, o neoliberalismo produziu um
O quinto capítulo também desenvolve um leitmotiv que
monstro que seus fundadores abominariam.
percorre os outros: conforme já observei, o neoliberalis-
mo produziu efeitos muito diferentes daqueles imaginados
e visados por seus arquitetos. Há várias razões para isso.
Primeiramente, há uma espécie de retorno do recalcado na
razão neoliberal — uma erupção feroz das forças sociais e
políticas a que os neoliberais de uma só vez se opuseram,
Cf Wolfgang Streeck, Buying Time: The Delayed Crisis oPemo-
subestimaram e deformaram com seu projeto desdemocra- 24
J Z f c a p L s r n , sobretudo os capítulos a e 3- C ^ O f f e .
'tizador. Isso significa que o neoliberalismo realmente exis-
tente apresenta agora o que Sheldon Wolin caracteriza como Europe Entrapped. Greta Krippner, o"
Political Origins of the Rise of Finance, bem como a crítica de
uma forma "enfurecida" de governo da maioria (frequente-
S a n t d g T a Krippner em sua dissertação. Com a financein-
mente denominada "populismo" por especialistas) que surge ' ão NTO apenas OS Estados e mesmo as instituições supra-
da sociedade que os neoliberais pretendiam desintegrar, Z Z 2 estão subordinados aos poderes e vicissitudes dos
mas não conseguiram derrotar, e que assim foi deixada sem T a d T s financeiros, mas tambémaproduçãos^^^^^^^^^^^^^
' normas civis nem compromissos comuns. Em segundo lugar, subietividade mudam: risco, crédito e especulaçao. em vez de
X a disciplinada produtiva ou e - P - n ^ ^ ^ ^
temos o fato de o neoliberalismo ter acidentalmente soltado
não apenas a vida econômica, mas a vida polít ca Cf. Uicnei
as rédeas do setor financeiro e os modos pelos quais a finan-
ZZatedAgency:InuesteePomicsinaSpeculat.eAge.
ceirização solapou profundamente os sonhos neoliberais
10 4
29

N E O L I B E R A L I S M O ? O QUÊ!? comumente associado a um conjunto de políticas que priva-


tizam a propriedade e os serviços públicos, reduzem radical-
Concluo esta introdução com uma breve consideração sobre
mente o Estado social, amordaçam o trabalho, desregulam
como o termo "neoliberalismo" é empregado neste trabalho.
o capital e produzem um clima de impostos e tarifas amigá-
O neoliberalismo não tem uma definição estabelecida. Existe
vel para investidores estrangeiros. Tais eram precisamente
atualmente uma literatura acadêmica substancial debatendo
as políticas impostas ao Chile por Augusto Pinochet e seus
suas características constitutivas. Alguns chegaram a ponto
assessores, os "Chicago Boys", em 1973 e logo depois levadas
de sugerir que seu caráter amorfo, proteiforme e polêmico
para outras partes do Sul global, muitas vezes impostas pelo
lança dúvidas sobre sua própria existência." No entanto,
Fundo Monetário Internacional na forma de mandatos de
assim como ocorre com outras formações que alteram o
"ajuste e s t r u t u r a l " vinculados à reestruturação dos emprés-
mundo, como o capitahsmo, sociaUsmo, liberalismo, feuda-
timos e da dívida.^® O que começou no Hemisfério Sul logo
lismo, cristianismo, islamismo e fascismo, os debates inte-
fluiu para o Norte, mesmo que com poderes executivos bem
lectuais em curso sobre seus princípios, elementos, unidade,
diferentes. Por volta do final dos anos 1970, explorando uma
lógica e dinâmicas subjacentes não invalidam seu poder de'
criar mundos. O neoliberalismo - as ideias, as instituições, crise de lucratividade e estagflação, os programas neoliberais
as políticas, a racionalidade política - , juntamente com sua' foram implementados por Margaret Thatcher e Ronald Reagan,
cria, a financeirização, provavelmente moldaram a histó- novamente focados na desregulação do capital, no combate ao
ria mundial recente tão profundamente quanto qualquer trabalho organizado, na privatização de bens e serviços públi-
outro fenômeno que possa ser situado no mesmo período, cos, na redução da tributação progressiva e no encolhimento
mesmo que acadêmicos continuem a debater o que ambos' do Estado social. Tais políticas se espalharam rapidamente
são precisamente. por toda a Europa Ocidental, e o colapso do Bloco Soviético no
final dos anos 1980 significou que boa parte da Europa Orien-
O termo "neoliberalismo" foi cunhado no Colóquio Walter
tal realizou uma transição do comunismo de Estado para o
Lippmann em 1938, uma reunião de acadêmicos que lançou
capitalismo neoliberal em menos de meia década.
as bases político-intelectuais daquilo que uma década depois
Esta análise, talhada por uma abordagem neomarxis-
se tornaria a Sociedade Mont Pèlerin. O neoliberalismo é mais
ta, concebe o neoliberalismo como um ataque oportunista
dos capitalistas e seus lacaios políticos aos Estados de bem-
25 A afirmação de que o significado incerto do neoliberalismo -estar keynesianos, às sociais-democracias e ao socialismo
lança dúvidas sobre sua existência é tão estranha quanto ale- de Estado. Em Glohalists: The End of Empire and the Birth of
gar que o sentido contestado de capitalismo, liberalismo ou Neoliberalism, Quinn Slobodian acrescenta uma camada
cristandade significa que eles não existam. George Monbiot
de sofisticação a esse quadro, enfatizando até que ponto o
também notou que a negação de sua existência é um tremendo
neoliberalismo foi concebido intelectualmente e desvelado
benefício para seu poder. Cf. George Monbiot, "Neoliberalism:
The Ideology at the Root of All Our Problems". De modo similar, praticamente como um projeto global no qual a soberania
cf Philip Mirowski, "This is Water (or Is It Neoliberalism?)". Id.', econômica do Estado-nação seria suplantada pelas regras e
"The Political Movement that Dared Not Speak Its Own Name".'
Cf tb. "Introdução". In: William Callison e Zachary Manfredi 26 Cf Juan Gabriel Valdês, Pinochet's Economists: The Chicago
(ed.), Mutant Neoliberalism: Market Rule and Political Rupture.
School of Economics in Chile.
T
34 30

acordos estabelecidos por instituições supranacionais como se tornam princípios de governo aplicados pelo e no Estado,
a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o mas também que circulam através de instituições e entida-
Fundo Monetário Internacional." Na narrativa de Slobodian, des em toda a sociedade - escolas, locais de trabalho, clíni-
o neoliberalismo visava desmantelar as b^^rreiras aos fluxos' cas etc. Esses princípios torr«m-se princípios de realidade que.
de capital (e, portanto, à acumulação de capital) r e ^ i ^ t a - saturam e governam c_ada esfera da e x i ^ n c i a e reorientam o
das pelos Estados-nação e neutralizar simultaneamente as própri'0 homn£g<-nnomtcusJ:ransformando-o de um suieito da
demandas redistributivas do Sul recentemente descoloniza- troca e_JâsaÜSÍacão d e j ^ c e s s i d a d e s j l i b e r a l i s m ^ ^
do, tais como aquelas incorporadas na Nova Ordem Econô- em u m ^ i t o da competirâo elJo^ãprimõrãmê^^
mica Internacional. A análise de Slobodian também ressalta humano (neoliberalismo). Ao mesmo tempo, afirma Foucault,
até que ponto a revolução neoliberaí foi projetada para anu- na formulação dos neoliberais, os mercados competitivos
lar as expectativas da classe trabalhadora, tanto no mundo necessitam de suporte político e, portanto, de uma nova forma
desenvolvido quanto nas regiões pós-coloniais em desenvol- do que ele chama de "governamentalização" do Estado. Na
vimento, ao produzir um nivelamento por baixo global dos nova racionalidade governamental, por um lado, todo gover- I
salários e das condições de trabalho. Em outras palavras, no é para os mercados e orientado por princípios de mercado, V
^ liberar o capital para caçar mão de obra barata, recursos' e, por outro, os mercados devem ser construídos, viabilizados, (
e paraisos fiscais em todo o mundo inevitavelmente gerou
amparados e ocasionalmente até mesmo resgatados por i n s - J
padrões de vida mais baixos para as populações da classe
tituições políticas. Os mercados competitivos são bons, mas
K trabalhadora e da classe média no Norte global, exploração
não exatamente naturais nem autossuficientes. Para Foucault,
I contínua e limitações ã soberania, acompanhadas por um
essas duas características da racionalidade neoliberaí - a ela-
^desenvolvimento (desigual) no Sul global.^»
boração de princípios de mercado como princípios de gover-
Em contraste com a análise neomarxista, ao conceituar o no onipresentes e o próprio governo reformatado para servir
neoliberalismo como "reprogramação do liberalismo", Michel aos mercados - estão entre aquelas que separam a raciona-
Foucault oferece uma caracterização substancialmente dife- lidade neoliberaí daquela do liberalismo econômico clássico,
rente do neoliberalismo em seu significado, objetivo e propó- e não apenas da democracia keynesiana ou da social-demo-
sito. Em seu curso no Collège de France de 1978-79, Foucault cracia. Elas constituem a "reprogramação da governamenta-
enfatizou a significância do neoliberalismo como uma nova lidade liberal" que podia e ia se instalar em todos os lugares,
racionalidade política, cujo alcance e implicações vão muito e m p r e e n d e d o r i z a n d o o sujeito, convertendo trabalho em capi-
além da política econômica e do fortalecimento do capital.^» tal humano e reposicionando e reorganizando o Estado. Para ,
Ao contrário, nessa racionalidade os princípios do mercado os foucaultianos, então, mais importante do que a reinicializa-1
ção do capitalismo pelo neoliberalismo é sua alteração radical
dos valores, coordenadas e princípios de realidade que gover-
27 Quinn Slobodian, Globalists. Especialmente a introdução e o
capítulo 1.
nam, ou "conduzem a conduta"'"' nas ordens liberais. ^

28 O livro de Guido Brera e Edoardo Nesi, Everything Is Broken


Up and Dances: The Crushing of the Middle Class, é um relato 30 Exemplos dessa posição incluem meu trabalho anterior Undo-
brilhante, lírico e comovente deste processo. ing the Demos, o livro de Michel Feher, Rated Agency e o de
2 Michel Foucault, The Birth ofBiopolitics. Pierre Dardot e Christian Laval, The New Way of the World.
100 32

Este livro se baseia tanto na abordagem neomarxista


quanto na foucaultiana do neoliberalismo, e também expan-
de ambas para saldar sua negligência mútua do aspecto
moral do projeto neoliberal. Não trata essas duas aborda-
gens como opostas ou redutíveis à compreensão materialista
versus ideacional do poder e da mudança histórica, mas as
emprega por apresentarem diferentes dimensões das trans-
formações neoliberais que têm ocorrido em todo o mundo nas
^últimas quatro décadas. A abordagem neomarxista tende a
se concentrar nas instituições, políticas, relações e efeitos
econômicos, negligenciando os efeitos de longo alcance do
DEMOCRACIA, IGUALDADE E O SOCIAL
neoliberalismo como forma de governar a razão política e a
produção de sujeitos. A abordagem foucaultiana enfoca os
A palavra "democracia" deriva de termos gregos antigos,
princípios que orientam, orquestram e relacionam o Estado,
demos (o povo) e kratos (poder ou governo). Em contraste
a sociedade e os sujeitos, e acima de tudo, o novo registro
com a oligarquia, monarquia, aristocracia, plutocracia,
de valor e valores do neoliberalismo, mas pouco atenta aos
tirania e governo colonial, democracia significa os arranjos
novos e espetaculares poderes do capital global que o neo-
políticos por meio dos quais um povo governa a si mesmo.
i^liberalismo anuncia e edifica. Aquela coloca o neoliberalis-
A igualdade política é a base da democracia. Todo o resto
mo como o que inaugura um novo capítulo do capitalismo e
é opcional - das constituições à liberdade pessoal, de deter-
gera novas forças, contradições e crises. Esta revela como
minadas formas econômicas às instituições políticas espe-
governos, sujeitos e subjetividades são transformados pela
cíficas. Somente a igualdade política assegura que a com-
remodelação neoliberal da razão liberal; considera o neolibe-
posição e o exercício do poder político sejam autorizados
ralismo como revelador de como o capitalismo não é singular
pelo todo e sejam de responsabilidade do todo. Quando a
e não segue sua própria lógica, mas é sempre organizado
igualdade política está ausente, seja por exclusões ou pri-
por formas de racionalidade política. Ambas as abordagens
vilégios políticos explícitos, pelas disparidades sociais ou
contribuem para a compreensão das características do neo-
econômicas extremas, pelo acesso desigual ou controlado
liberalismo realmente existente e de nossa atual conjuntu-
ao conhecimento, ou pela manipulação do sistema eleitoral,
ra. Dito isso, este livro está preocupado principalmente em
o poder será inevitavelmente exercido por e para uma parte,
repensar os elementos e efeitos da racionalidade neoliberal
em vez do todo. Q demos deixa de governar.
e em ampliar nossa compreensão dessa racionalidade para
contemplar seu ataque multifacetado à democracia e sua pro-
moção da moralidade tradicional em detrimento da justiça
social legislada. Há uma polêmica entre os intelectuais de hoje em torno do
significado de demos para os atenienses antigos. Cf., p. ex.,
Tosiah Ober, "The Original Meaning of Democracy" e a crítica
de Daniela Cammack a Ober em "The Dêmos in Dêmokratia .
34

A importância da igualdade política para a democracia


T 35

saber, a de que ele aja deliberadamente para reduzir as desi-


é a razão pela qual Rousseau insistiu que as diferenças de gualdades de poder entre os cidadãos. Só então é possível
poder em um povo democrata não devem "ser tão grandes se aproximar da igualdade política; só então a vida política
que possam ser exercidas como violência" e que ninguém poderia servir ao todo, ao invés de à elite.^ Para enfatizar seu
pode "ser tão rico que possa comprar outro nem tão pobre argumento sobre a paradoxal exigência democrática de que
que seja obrigado a se vender".^ O argumento de Rousseau os Estados construam a igualdade política, Wolin cita com
é que, mais do que uma questão de injustiça ou sofrimen- aprovação a crítica de Marx à Filosofia do Direito de Hegel:
to, a sistematização da violência ou da miséria coletiva leva "É evidente que todas as formas" do Estado moderno "tomam
ao fim da democracia. A importância da igualdade política a democracia como sua verdade, e por essa razão são falsas
para a democracia é a razão pela qual Alexis de Tocqueville na medida em que não são democracia".® Wolin assume que
identificou a emergência moderna da democracia como "uma
Marx quer dizer que a legitimidade do Estado moderno está
revolução na matéria da sociedade" - uma transformação
assentada na reivindicação do governar para o bem de toda
social que destruiu as posições hierárquicas, ou o que ele
a sociedade, para prover o bem comum, em vez de ser o ins-
chamou de "desigualdade de condições".^ A importância da
trumento das elites. Ele considera que Marx reconhece que
igualdade política para a democracia é também a razão pela
a democracia é "um tipo distinto de associação que visa o
qual os antigos democratas atenienses, mais sábios acerca
bem de todos" e que "depende das contribuições, sacrifícios
do tema do poder do que a maioria dos modernos, identifica-
e lealdade de todos".® Ao mesmo tempo, Wolin caracteriza
ram os três pilares da democracia: a isegoria, o direito igual
a exigência de que o Estado empregue seu próprio poder
de cada cidadão de falar e ser ouvido pela assembleia em
para produzir uma cidadania democrática como algo que se |
assuntos de política pública; a isonomia, igualdade sob a lei;
move contra o curso natural do poder politico.' Esse curso
^- e isopoliteia, votos igualmente ponderados e igual oportuni-
natural, como deixou claro Tocqueville ao discutir a questão,
dade de assumir cargos políticos. Os atenienses podem ter
vai na direção da concentração e da centralização; o poder
valorizado a liberdade, mas entenderam que a democracia
político e especialmente o poder do Estado não se diluem
^ s t á ancorada na igualdade.
naturalmente ao se disseminar, mesmo que um governo efe-
Segundo o critério da igualdade política, aquilo que se tivo possa operar por esses mesmos meios.
costuma chamar, de modo variado, de democracias liberais,
burguesas ou capitalistas nunca foram democracias plenas, 4 Sheldon Wolin, Fugitive Democracy and Other Essays.
e quaisquer que sejam suas disposições democráticas, elas 5 Id., "Democracy and the Political," in Fugitive Democracy, p.
vêm sendo constantemente enfraquecidas nas últimas déca- 247. Wolin usa Marx para afirmar que a legitimidade do Esta-
das. De fato, como seria sequer possível garantir a igualdade do moderno repousa na pretensão de governar pelo bem de
política em grandes Estados-nação com economias capitalis- toda a sociedade, para entregar o bem comum, em vez de ser
tas? Sheldon Wolin afirma que cultivar a democracia em tais o instrumento das elites. De Hegel, Marx aceita a aspiração
ou a concepção do Estado moderno ser "universal" e depois
circunstâncias implica uma demanda específica ao Estado, a
revela a famosa "revolução na vida material" que deve ocorrer
para que tal aspiração se realize.
2 Jean-Jacques Rousseau, The Social Contract, L. 2, cap 1 1 , p. 96. i. Ibid., p. 247.
3 Alexis de Tocqueville, Democracy in America, pp. 2-7. 7 hoc. cit.
34T 36

A democracia, então, é o mais fraco dos trigêmeos em mesmo que votem.'" Em suma, uma orientação no sentido
guerra nascidos no início da modernidade europeia, ao lado da democracia no contexto de Estados-nação e capitalismo
dos Estados-nação e do capitalismo." De acordo com Wolin, requer apoio estatal para promover bens públicos, que vão
algo como um Estado democrático não existe, já que os Esta- desde cuidados com a saúde até a educação de quahdade,
dos seqüestram, institucionalizam e exercem o "poder exce- redistribuições econômicas e profilaxias vigorosas contra a
dente" [surpluspower] gerado pelo povo; a democracia sempre corrupção pela riqueza. Para a democracia prevalecer, não se"
j i v e em lugares que não o Estado, mesmo nas democracias.® deve permitir que nem os próprios mercados e nem os vence-
O capitalismo democratizado é também um oximoro, e demo- dores em seu âmbito governem; ambos devem ser contidos no
cratas radicais têm boas razões para promover formas eco- interesse da igualdade política, o fundamento da democracia.
nômicas alternativas. Dito isto, o capitalismo pode ser modu- Para deixar claro, a alegação não é de que as democracias
lado em direções mais ou menos democráticas, e os Estados devam lidar com o que, desde o século xix, foi chamado de "a
podem fazer mais ou menos para nutrir ou anular a igualdade questão social", que se refere à questão de saber se e como
{ política da qual depende a democracia. deve-se mitigar o empobrecimento de muitos, inerente ao capi-
O que, além de louvores gerais, promove e protege a igual- tahsmo na medida em que gera riqueza sem precedentes para
dade política nesse contexto? Ações estatais afirmativas para poucos. "A questão social" tende a ser enquadrada em termos
garantir condições adequadas de existência (renda, moradia, de compaixão pelos pobres, justiça ou preocupação com a con-
saúde) são cruciais para prevenir a privação de direitos devido vulsão social. O ponto aqui é outro, a saber, que a democracia
ao desespero. É vital também o apoio do Estado ao acesso à exige esforços explícitos para criar um povo capaz de se enga-
educação cívica de qualidade, ao voto e ao exercício de cargos jar em formas modestas de autogoverno [self-rule], esforços que
para aqueles que, de outra forma, seriam efetivamente impe- se dirigem às formas pelas quais as desigualdades sociais e
didos de compartilhar o poder político. A democracia também econômicas comprometem a igualdade política.
exige vigilância constante para impedir que a riqueza con-
centrada assuma o controle das alavancas do poder político.
A riqueza - corporativa, consolidada ou individual - nunca 10 Embora frequentemente reflexivos, esses esforços às vezes
deixará de tentar alcançar essas alavancas e, uma vez que as tomam forma como o tipo de projetos cuidadosamente ela-

tenha agarrado significativamente, não há limite para suas borados por James Buchanan, os irmãos Koch e o Instituto
Cato, segundo os quais o objetivo deliberado é substituir a
práticas em benefício próprio, que podem incluir esforços para
democracia por um governo de brancos ricos e capturar insti-
impedir que as pessoas comuns, os pobres e os historicamente
tuições políticas e o discurso político para este fim. Cf Nancy
marginalizadas participem de reivindicações políticas e até MacLean, Democracy in Chains: The Deep History of the Radical
Right's Stealth Plan for America. A manipulação das zonas dis-
tritais de voto e a supressão de eleitores tornaram-se táticas
abertas e diretas para o Partido Republicano nos últimos anos
8 Sobre os tempos atuais, Wolin diz que "a contenção da demo- e foram vividamente expostas nas eleições de meio de man-
cracia política está [...] intimamente conectada ao ânimo
dato em 2 0 1 8 . Cf S a s c h a Meinrath, " T w o Big Problems with
contra a social-democracia". Cf. "Preface". In: Fugitive Demo-
American Voting that Have Nothing to Do with Russian Hac-
cracy, p. IX.
king" e German Lopez, "Voter Suppression Really May Have
9 Loc. cit. Made the Difference for Republicans in Georgia".
10 4 39

A democracia também exige um cultivo robusto da socie- social" [social justice warriors ou siws] por minar a liberdade
dade como o local em que experimentamos um destino com uma agenda tirânica de igualdade social, de direitos
comum em meio às nossas diferenças e distâncias. Situado civis, de ação afirmativa e até mesmo de educação pública.
conceituai e praticamente entre o Estado e a vida pessoal, O neoliberalismo tinha o franco objetivo de desmantelar
o social é o local em que cidadãos de origens e recursos o Estado social, seja privatizando-o (a revolução Reagan-
amplamente desiguais são potencialmente reunidos e pen- -Thatcher), seja delegando suas tarefas (a "Grande Sociedade"
sados como um conjunto. É o local em que somos admitidos do Reino Unido e os "mil pontos de luz" de Bush), seja elimi-
como cidadãos com direitos políticos [enfranchised] e reu- nando completamente tudo o que resta de bem-estar social
nidos politicamente (não meramente cuidados) por meio ou " d e s c o n s t r u i n d o o Estado administrativo" (o objetivo de
da provisão de bens públicos, e em que as desigualdades Steve Bannon para a presidência de Trump). Em cada caso,
historicamente produzidas se manifestam como acesso, voz não é apenas a regulação e a redistribuição sociais que são
e tratamento políticos diferenciados, bem como o local em rejeitadas como interferência inapropriada nos mercados ou
que essas desigualdades podem ser parcialmente corrigidas. como assaltos à liberdade. A dependência da democracia em
A justiça social é o antídoto essencial para as estratificações, relação à igualdade política também é alijada."
exclusões, abjeções e desigualdades outrora despolitizadas O ataque neoliberaí ao social, que e s t a m o ^ j e r e s ^ a
que servem ao privatismo liberal nas ordens capitalistas e examinaLmais^^ para gerar uma cul
é, em si mesma, uma réplica modesta à impossibilidade da tllí^^^idemocrática desde baixo, ao mesmo temoo em aue
democracia direta em grandes Estados-nação ou em seus constrói_e legitima formas antidemocrática^devod.,^s^l
sucessores pós-nacionais, como a União Europeia. Mais do d S d r ^ ^ ^ A s m e r g i a entre os dois é profunda: uma cidada-
que uma convicção ideológica, a justiça social — a modula- nia cada vez mais não democrática e antidemocrática está
ção dos poderes do capitalismo, colonialismo, raça, gênero mais e mais disposta a autorizar um Estado crescentemente
e outros — é tudo o que se põe entre manter a promessa antidemocrático. À medida que o ataque ao social derrota a
(sempre não cumprida) da democracia e o abandono genera- compreensão democrática de sociedade zelada por um povo
lizado dessa promessa. O social é o local em que somos mais caracterizado pela diversidade e habilitado a governar a si
do que indivíduos ou famílias, mais do que produtores, con- de forma igualitária e compartilhada, a política se torna
sumidores ou investidores econômicos e mais do que meros um campo de posicionamento extremo e intransigente, e a
membros da nação. liberdade se torna um direito de apropriação, ruptura e atéV
É sintomático que são precisamente a existência da socie- mesmo destruição do social - seu inimigo declarado. í
dade e a ideia do social - sua inteligibilidade, seu refúgio O assalto à sociedade e à justiça social nas décadas
de poderes estratificantes e, acima de tudo, sua adequação neoliberais é mais comumente identificado no projeto de
como um local de justiça e do bem comum — o que o neo- desmantelar e depreciar o Estado social em nome de indi-
liberalismo se propôs a destruir conceituai, normativa e víduos livres e responsibilizáveis. Ele atingiu um crescendo
praticamente. Denunciada como um termo sem sentido por institucionalizado no regime de Trump, no qual os órgãos
Hayek e notoriamente declarada inexistente por Thatcher
'|\("não existe tal coisa..."), "sociedade" é um termo pejorativo 11 Wolfgang Streeck chama isso de deseconomicizar a democra-
^ara a direita hoje, que denuncia os "guerreiros da justiça cia. Cf Wolfgang Streeck, Buying Time.
34 T 41

governamentais destinados a conduzir o bem-estar social A SOCIEDADE DEVE SER D E S M A N T E L A D A


nos domínios da saúde, serviço social, educação, moradia,
trabalho, desenvolvimento urbano e meio ambiente são De todos os intelectuais neoliberais, foi Friedrich Hayek
chefiados por pessoas comprometidas com a comercializa- quem criticou de forma mais sistemática a noção de social e
ção ou eliminação desses bens, e não com sua proteção ou de sociedade e ofereceu a crítica mais sólida da social-demo-
administração/^ E há também o Office ofAmerican Innovation cracia. A hostilidade de Hayek em relação ao social é sobre-
[Escritório para a Inovação Americana], recém-criado pelo determinada, poder-se-ia dizer até mesmo exacerbada, na
regime e liderado pelo genro de Trump, Jared Kushner. A medida em que busca fundamentos epistemológicos, ontoló-
/apresentação do escritório feita pela Casa Branca como uma gicos, políticos, econômicos e até mesmo morais. Ele consi-
//"equipe da SWAT destinada a consertar o governo por meio de dera a própria noção de social falsa e perigosa, sem sentido e
I idéias oriundas dos negócios" capturou nesta única frase o oca, destrutiva e desonesta, uma "fraude semântica". A preo-
deslocamento do governo democrático pelo policiamento e cupação com o social é a assinatura de todas as tentativas
pela gestão, juntamente com a desintegração da sociedade mal concebidas de controle da existência coletiva, o símbolo
em unidades de produção e consumo." Assumindo a nova da tirania. Hayek considera a "sociedade" uma "frase impro-
posição, Kushner disse: "O governo deveria ser administra- visada", a "nova deidade à qual nos queixamos [...] se não _
do como uma grande empresa americana. Nossa esperança satisfizer as expectativas que criou".^® Na melhor das hipó-
é que possamos alcançar sucesso e eficiência para nossos teses, diz ele, o termo carrega a nostalgia de mundos antigos ^
clientes, que são os cidadãos"." No entanto, são as empresas, de associações pequenas e íntimas e pressupõe falsamente 1
e não os clientes, que buscam "sucesso e eficiência" - os "uma busca comum de fins compartilhados". Na pior, é um
clientes são os destinatários de suas estratégias de marke- disfarce para o poder coercitivo do governo." A justiça social
ting e de relações públicas. Assim, mais do que simplesmen- é uma "miragem" e a atração por ela é "a mais grave ameaça j
te revelar sua falta de conhecimento e experiência política e à maioria dos outros valores de uma civilização livre"."
sua incapacidade de entender a democracia, Kushner pode
Como a sociedade e a justiça social podem ser todas essas
ter confessado inconscientemente que quando o governo
coisas? E qual é a raiz principal da hostilidade de Hayek
é administrado como um negócio, especialmente os tipos
em relação à sociedade e à justiça social? A primeira pista
de negócios pertencentes a seu pai e a seu sogro, os cida-
repousa na frustração de Hayek com a ambiguidade do
dãos-clientes tornam-se seus objetos de lucro desprotegidos,
significado moderno de "sociedade". O fato de que a pala-
exploráveis e manipuláveis.
vra denota tantos tipos diferentes de conexões humanas
"sugere falsamente que todos esses sistemas são do mesmo
tipo", e Hayek vê mais do que mero desleixo no deslizamento
12 Trump assim expHcou afavelmente a seus partidários por
semântico da sociedade de pequenos grupos seletos para
que ele colocou uma "pessoa rica no comando da economia" e
povoou seu gabinete com ultrarricos, transformando a pluto-
cracia numa forma política de senso comum, e não subversiva. 15 Friedrich Hayek, Law, Legislation, and Liberty, vol. 2: The Mira-
13 Ashley Parker; Philip Rucker, "Trump Taps Kushner to Lead ge of Social Justice, p. 69.
a SWAT Team to Fix Government with Business Ideas". 16 Id., The Fatal Conceit: The Errors of Socialism, pp. 1 1 2 - 1 3 .
14 Ibid. 17 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, pp. 66-68.
4
3
T 43

Estados-nação/» Notando que a origem latina do termo estendido e poder coercitivo), coisas que só podem ser valori-
[societas, de soctus] implica um par ou companheiro que se
zadas por indivíduos ou grupos." Personificação e animismo^
conhece pessoalmente, Hayek detecta um romance perigo-
também levam à crença de que a sociedade é mais do que
so com um passado perdido em seu uso contemporâneo, no
os efeitos de processos espontâneos e que pode portanto
qual o termo "sociedade" é inadequadamente usado para
ser manipulada ou mobilizada como um todo; esta é a base
denotar uma cooperação humana impessoal, não inten-
do totalitarismo." E levam à crença de que a sociedade é o
cional e não planejada em larga escala. Ainterdegendên-
produto de um projeto [design], passível de substituição por
cia complexa na modernidade, afirma Hayek, não surge do
outro mais racional, um projeto que obstrui as tradições e
sentimento c o m u n u j ^ a busca comum organizada, mas de
liberdades evoluídas, que são a verdadeira base da ordem,
indivíduos Que segúeni regras de conduta que emananTd^
da inovação e do progresso.^^
mercados e das tradições morais."» Chamar isso de "socie-
Acima de tudo, personificação e animismo falsos caracte-
dade" eqüivale a misturar erroneamente "formações com-
rizam erroneamente a sociedade como um palco da justiça.
pletamente diferentes como a companhia [companionship]
Se a sociedade é imaginada como algo que existe ã parte dos
de indivíduos em constante contato pessoal e a estrutura
indivíduos, e se sua ordem é pensada como o efeito de uma
formada por milhões que estão conectados apenas por sinais
construção deliberada, segue-se que ela deve ser projetada
resultantes de cadeias de troca longas e infinitamente rami-
com a idéia de justiça em mente. Isso abre a porta para uma
ficadas".^" Mais do que meramente errada, no entanto, essa
intervenção estatal ilimitada tanto nos mercados quanto nos
mistura revela o "desejo oculto" de defensores da justiça ou
do planejamento sociais de modelar ordens modernas com códigos morais, a qual, argumenta Hayek, tem "uma tendên-
base em uma noção intencional e organizada do bem - o cia peculiar de autoaceleração":
estofo do totalitarismo.
Quanto m a i s se vê que a posição de indivíduos ou g r u p o s tor-
HayêFvIsIúmbi^uma segunda ilusão perigosa na idéia na-se dependente de a ç õ e s do governo, m a i s eles insistirão
e na idealização da sociedade. Esse conceito, diz Hayek, é em que os g o v e r n o s v i s e m a l g u m e s q u e m a r e c o n h e c í v e l de
baseado numa falsa personificação de uma coleção de indiví- j u s t i ç a distributiva; e quanto m a i s os g o v e r n o s t e n t a m rea-
duos e num falso animismo segundo o qual "o que foi trazido lizar a l g u m p a d r ã o preconcebido de distribuição desejável,
pelos processos impessoais e espontâneos da ordem amplia- m a i s eles devem sujeitar a posição dos diferentes indivíduos
da" é imaginado como "o resultado da criação humana deli- e grupos ao seu controle. Enquanto a crença na "justiça social"
berada"." Tanto a personificação como o animismo geram a g o v e r n a r a ação política, esse processo deverá se ap r o x i m a r
ilusão de que certas coisas são "valiosas para a sociedade" e m a i s e m a i s de u m sistema totalitário.^®
devem ser fomentadas pelo Estado (legitimando seu alcance

22 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, pp. 76-78.


18 Id., The Fatal Conceit, p. 1 1 2 .
23 Id., The Fatal Conceit, p. 1 1 3 .
19 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, p. 67.
24 Hayek atribui cada uma dessas crenças a Marx, o que é uma
20 Id., The Fatal Conceit, p. 1 1 3 .
leitura equivocada da teoria de Marx do poder social, da his-
21 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, pp. 75-76. The Fatal Con-
tória e mesmo das possibilidades do comunismo.
ceit, p. 116.
25 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, p. 68.

II
34
T 45

A alternativa de Hayek ao planejamento ou à justiça O mercado e a moral, para Hayek, também revelam a^
administrados pelo Estado não é, como se diz comumente, verdadeira natureza da justiça - sua preocupação exclu
o capitalismo de livre mercado. Em vez disso, como o capí- giva com a conduta, e não com efeitos ou resultadosJXjüs-
tulo 3 elaborará mais detalhadamente, a moral e o mercado tiça se refere apenas a princípios corretos, aplicados uni-
juntos geram a conduta evoluída e d i s c i ^ ^ ^ ^ r a "criar ê versalmente, e não a condições ou ao estado das coisas."«
sustentar nrdem ampliada". A conduta evoluída "encontra- A justiça também não tem nada a ver com recompensar o
-se entre o instinto e a razão" e não pode ser submetida à jus- esforço ou os merecedores. Hayek considera equivocados
tificativa racional, mesmo que possa ser reconstruída racio- até mesmo os utilitaristas a esse respeito, especialmente
nalmente.^« Embora possamos articular retrospectivamente John Stuart Mill, a quem critica por ter escrito que uma
a função tanto do mercado quanto da moral, eles não são o "sociedade" justa "deveria tratar igualmente bem todos os
produto de um projeto funcionalista; de fato, seu surgimento que merecem o mesmo dela".'" O mais significativo é que
evolutivo e sua operação rudimentar são fundamentais para ele ataque Horatio Alger por ter popularizado a idéia de que
Hayek: "Se parássemos de fazer tudo aquilo cuja razão não a melhor defesa do capitalismo é sua recompensa para os
conhecemos, ou para o que não podemos fornecer uma jus- que trabalham arduamente." Na verdade, declara Hayek
tificativa [...] provavelmente logo estaríamos mortos"." repetidamente, os mercados re^gmpgnsamjiontrihmSQesT
O mercado e a moral, jgortanto, não são nem nrimnatíveis nada mais." Tais contribuições, como riqueza ou inovação,
com nem opostos à^azãjo, não são racionais nem irracionais. podem ouTnão ser fruto de grande esforço e, inversamente,
Eles perduram e são válidos porque surgem "espontanea- trabalhos longos e intensos podem trazer pouco." Hayek
mente", evoluem e se adaptam "organicamente", unem os sabe que isso pode ser decepcionante, mas alega que não é
seres humanos independentemente das intenções e esta- injusto - a mistura de um com o outro é o grande erro dos
belecem regras de conduta sem depender da coerção ou social-democratas.
/_^2unição estatais. Tanto o mercado quanto a tradição moral Os sistemas morais tradicionais assemelham-se aos mer-
geram uma ordem dinâmica, e não estática, e criam novos 'cados de muitas maneiras, acrescenta Hayek, especialmente
"poderes humanos que de outra forma não existiriam".^« ao estabelecerem uma ordem desprovida de projeto prévio e j
Ambos propagam uma conduta propícia [felicüous] em gran- ^ao situarem a in^^tina nas reerac; não nos resultados, h s tra-
des populações sem depender dos excessos da intenção
dições morais geram um "sistema herdado de valor", que é
humana ou das falácias da razão humana e sem empregar
os poderes do Estado. 29 pp. 31-36.
30 p. 63.
31 p. 74-
32 A disparidade entre contribuições e recompensas é inevitável
26 Na verdade, nenhum código moral pode ser submetido à jus- e inevitavelmente desapontadora, mas não injusta. Cf lá., The
tificativa racional porque ele evolui e traz consigo significa- Fatal Conceit, p. 1 1 8 .
dos e valores que estão para além do alcance da intencionali-
33 Hayek reconhece que a inveja e a f r u s t r a ç ã o resultantes
dade e da compreensão. Cf. Ibid., pp. 68-70.
podem gerar atitudes anticapitalistas, mas essas atitudes não
27 p. 68.
compreendem o modo como o capitalismo funciona e o que é
28 p. 79.
ajustiça. C/: ibid., p. 199-
34
T 47

"um dispositivo para lidar com nossa ignorância constitucio- moralmente correto ou que t r a b a l h a a r d u a m e n t e pode não
nal", uma ignorância que abrange tanto a vasta incognosci- ser r e c o m p e n s a d o por s u a virtude p a r a então declarar que
bihdade do mundo quanto todas as consequências de nos-
'a d e s i g u a l d a d e é e s s e n c i a l p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o " e q u e " a
sas ações.- Se soubéssemos tudo, se pudéssemos antecipar
evolução não pode ser justa" no sentido popular da palavra.'«
todos os efeitos da ação e concordar "quanto à importância
A verdadeira justiça e x ^ e que as r e g r a s d o j o g o sejam conhe-
relativa dos [...] fins", diz Hayek, "não haveria necessidade de
cidas e aplicadas universalmente, m a s todo loeo tem vence-
regras", incluindo as da conduta moral.^^ As regras morais
d o r e s e p e r d e d o r e s , e a c i v i l i z a ç ã o ^ ã o p o d e e v o l u i r s e m dei-
são. então, valores definitivos, não ooraue r^^iih^^^^T^T;;;^,
x a r p a r a t r a s os eieitos üa í r a a u e z a e do fracasso, b e m ^ o m o
ma dos fatos . dos fins não c o m p ^ I h a d o s
descreve o "jogo" que fará avançar a
mas Doraue fornecem códiRos p_ara a a ç ã o a d e í p ^ í ^ ^ ^ e
civilização, satisfará necessidades [ujants], dispersará infor-
problema - elas são um tipo peculiar de deferência â incog-
noscibilidade. Como tal, no entanto, elas só podem orientar a mações, terá a liberdade [íiberty] como característica e que
conduta moral; não podem por si mesmas gerar uma ordem será totalmente "não projetado", ao mesmo tempo que pode
moral. Da mesma forma que o esforço pode não condizer com ser aperfeiçoado:
sua recompensa no domínio econômico, "a conduta moral
Ele procede, c o m o todos os jogos, de acordo c o m r e g r a s que
nao gratificará necessariamente os desejos morais" por cer-
g u i a m a s a ç õ e s de p a r t i c i p a n t e s individuais cujos objetivos,
tos resultados.3« Isso pode parecer lamentavelmente injusto
habilidades e conhecimentos são diferentes, com a conse-
e ate mesmo não razoável, assim como perder repetidamen-
quência de que o resultado será imprevisível e que h a v e r á
te em um jogo de azar.
r e g u l a r m e n t e v e n c e d o r e s e p e r d e d o r e s . C o m o e m u m jogo,
- "Compreensivelmente, nós detestamos resultados moral- e m b o r a e s t e j a m o s c e r t o s e m i n s i s t i r q u e ele s e j a j u s t o e q u e
I mente cegos", escreve Hayek sobre arranjos morais e econô- n i n g u é m t r a p a c e i e , s e r i a a b s u r d o e x i g i r q u e os r e s u l t a d o s
micos gerados por uma ordem espontânea e protegidos da p a r a os diferentes jogadores sejam justos. Eles serão n e c e s s a - g « /
interferência política, mas eles são a dura verdade da histó- riamente determinados em parte pela habilidade e em parte
ria humana livre e progressiva em um mundo onde somos pelajorte.^®
Ignorantes demais para planejar resultados coletivos pre-
l^isíveis ou estar de acordo acerca de valores comuns Além Agora estamos em condições de entender o que Hayek
disso, "a tentativa infrutífera de tornar justa uma situação considera tão perigoso nos "guerreiros da justiça social" que
CUJO resultado, por sua natureza, não pode ser determinado recriariam o mundo de acordo com um plano racional ou
por aquilo que ninguém sabe ou pode saber, apenas preju- com um grande cálculo moral. Eles recorrem à "ilusão fatal"
dica o funcionamento do próprio processo-.^«- E então Hayek da sociedade e ao princípio equivocado da igualdade para
passa rapidamente pela alegação de que o indivíduo atacar os piiai:es_gênieos da civilização: a moralidade tradi- >
clonal e mercados competitivos. Eles são animados por uma
34 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, p p . 5 0 8 . forma de primitivismo social e intelectual que imagina um
35 Ibid., p. 8 .
36 Id., The Fatal Conceit, p. 74.
38 Ibid., pp. 74 e 1 1 8 .
37 Loc. cit.
39 Id., Law, Legislation, and Liberty, vol. 2, p. 7 1 -
34 T 49

diretor por trás de "todos os processos de auto-ordenação" versão do que os ordoliberais chamaram de "desmassifica-
e não têm maturidade para compreender a evolução histó- ção", escorando os indivíduos e famílias contra as forças do
riça.e a cooperação social que excedem a intencionalidade capitalismo que os ameaçam.
do projeto.^" São igualmente pueris ao demandar igualdade Esse último giro, pouco familiar especialmente para os
nos resultados. E ^ submetem inadequadamente^a mora- americanos, requer uma breve elaboração. O ordoliberalis-
lidade a padrões racionais e associam iustica no mercado mo, conhecido por suas raízes na Escola de Friburgo, apre-
moral a resultados, e não a regras. Eles intervêm nos
sentava um construtivismo mais manifesto - do Estado, da
mercados de maneiras que prejudicam a inovação, o desen-
economia e do sujeito - do que qualquer outra variedade de
volvimento e a ordem espontânea." Mais do que meramente
neoliberalismo. A desmassificação estava entre esses proje-
desorientada, a justiça social ataca a justiça, a liberdade e
tos construtivistas: o objetivo era contrapor-se ao processo,
o desenvolvimento civilizacional garantidos pelo mercado e
considerado pelos ordoliberais como sendo inerente ao capi-
pela moral. Se a crença na direção social e política da socie-
talismo, por meio do qual se engendra uma população que
dade é o que nos leva por esse caminho, então a sociedade
mais e mais pensa e age como massa. Eles denominavam
deve ser desmantelada.
esse processo "proletarização", aceitando grande parte da
No neoliberalismo realmente existente, esse desmante- análise histórica de Marx, mas se opondo aos seus valores
lamento ocorre em muitas frentes. Epistemologicamente, o e esperanças políticos; viam o capitalismo como gerador de
desmantelamento da sociedade envolve a negação de sua uma força social desindividualizada e até mesmo dester-
existência, como Thatcher fez nos anos 1980, ou a rejeição ritorializada, propensa a se revoltar contra ele brandindo
da preocupação com a desigualdade como "política da inve- demandas por um Estado social ou uma revolução socialista.
ja", uma linha que o candidato ã presidência Mitt Romney A desmassificação ordoliberal visava combater a^prol^ari-
adotou 30 anos depois e agora é uma réplica cotidiana con- zação por meio da empreendedoriza^ãoJlogoTda reindivi-
tra propostas de taxação da riqueza.^^ Politicamente, envol- dualizãçaoj aos t r ã b i i l i i ^ r e s , por um lado, e da realocacão
ve o desmantelamento ou a privatização do Estado social - dos trabalhadores em práticas de autoprovisão famniai:..por
seguridade social, educação, parques, saúde e serviços de outro. O reenraizamento e a autoprovisão, como Wilhelm
todos os tipos. Legalmente, envolve o manejo de reivindi- ¥ ö p k e se referia a estas práticas e às políticas que as via-
cações de liberdade para contestar a igualdade e o secu- bilizaram, desenvolveriam um novo "quadro antropológico"
larismo, bem como as proteções ambientais, de saúde, de para tornar os trabalhadores "mais resilientes em face das
segurança, laborais e ao consumidor. E t i g a m e n j p envolve recessões econômicas"." "Ancorados na comunidade e na
a contestação da justiça social por meio da autoridade natu- família", eles seriam capazes de resistir ao que o colega de
ral dos valores tradicionais. Culturalmente, implica uma Röpke, Alexander Rüstow, chamou de "fria sociedade" do

40 Md., pp. 62-63.


41 "A curiosa tarefa da economia é demonstrar aos homens o
pouco que eles realmente sabem sobre o que eles imaginam
43 Wilhelm Röpke, The Moral Foundation of Civil Society, p. 32. Cit.
que podem projetar". Id., The Fatal Conceit, p. 76.
in: Werner Bonefeld, "Human Economy and Social Policy: On
42 Michael White, "Nick Clegg's 'Politics of Envy': A Brief History". Ordo-Liberalism and Political Authority", p. 114-
34 T 50

preço econômico e da competitividade dos fatores." Essa Arrendando quartos no Airbnb, dirigindo para o Lyft )u
âncora também impediria que os trabalhadores "se tornas- Uber, trabalhando para o Task Rabbit como freelancers,
sem presa da mania proletária que demanda 'o fruto podre compartilhando bicicletas, ferramentas e carros ou simples-
do Estado de bem-estar'".^® mente gerenciando uma variedade de fontes de renda de
, No final do século xx, a "desmassificação" foi substitui- tempo parcial e de curto prazo ("bicos"), indivíduos e famí-
í da pela "empreendedorização" neoliberal e pela "capitaliza- lias visam sobreviver aos cortes e às recessões econômicos.
í ção humana" dos sujeitos, ao passo que reformas políticas Em terceiro lugar, enquanto os investimentos sociais na
visavam transferir quase tudo o que era proporcionado pelo educação, habitação, saúde, cuidado infantil e seguridade
Estado social para os indivíduos e famílias, fortalecendo-os social são reduzidos, delega-se novamente à família a tare-
ao longo do caminho.^® Três coisas importantes decorrem fa de prover para todos os tipos de dependentes - jovens,
dessas estratégias. Primeiramente, a emoreendedorizacão - velhos, enfermos, desempregados, estudantes endividados y
ou o que os franceses e britânicos chamaram de "respon- ou adultos deprimidos ou viciados.^"
sabilização" - produz um suieito aue Founault denominou Dessas três maneiras, o neoliberalismo não só trouxe o
"uma multidão de emnresas" ou o j u e Michel Feher chama de capitalismo de volta do abismo quando este estava em crise
um "portfolio de autoinvestimentos" concebido para manter nos anos 1970, como também salvou tanto o sujeito quanto
ou incrementar o va^lorjo capital humano.^' Esse portfolio a família das forças em desintegração da modernidade tar-
inclui o cuidado com os filhos, educação, saúde, aparência e dia. De fato, dentre as realizações neoliberaigjnais im^res
a provisão para a velhice. Em segundo lugar - substituindo sionantes estão o desmantelamento epistemológico^ políti
as estratégias pastorais de Röpke para construir resiliên- côTeconômico e cultural da sociedade rie massa^em capital]
cia, segundo as quais os lares urbanos plantariam hortas e humano e unidades familiares econômico-morai.sjuntamen-^
criariam galinhas - , os trabalhadores desproletarizados e tè"conrõ^sRate"tântÔTrcrindiví3uõ q ^ n t o ^ ^ f a m í ^ n o
dessindicalizados de hoje entram na economia do "compar-
rncmentoêxatõ^ sua aparente extinção. Desnaturalizadas
tilhamento" e da terceirização, na qual transformam suas
até seu núcleo, as versões neoliberais das unidades indivi-
posses, tempo, conexões e eus em fontes de capitalização.
duais e familiares podem acabar se mostrando mais fortes
do que quaisquer iterações anteriores.
44 Alexander Rüstow, Die Religion der Marktwirtschaft, p. 65. Id.,
Freiheit und Herrschaft: Eine Kritik der Zivilisation, p. 365, cit.
in: Bonefeld, "Human Economy and Social Policy", p. 1 1 4 . Cf tb. H A Y E K HOJE: A L I B E R D A D E E O S O C I A L
Rüstowf, "Social Policy or Vitalpolitik". In: The Birth of Auste-
rity: German Ordoliberalism and Contemporary Neoliberalism,
Se a crítica de Hayek à justiça social era iconoclasta nas
pp. 1 6 3 - 7 5 .
décadas do pós-guerra, hoje em dia tornou-se o senso
45 Werner Bonefeld, "Human Economy and Social Policy", p. 1 1 4 .
comum de um conservadorismo neoliberal robusto. Em abril
46 Mglinda Cooper chama isto de retorno da Lei dos Pobres bri-
tânica. Cf Family Values: Between Neoliberalism and the New
Social Conservatism, capítulo 3. 48 Melinda Cooper, Family Values. Cf tb. Janet Halley; Libby Adler,
47 Michel Feher, Rated Agency, pp. 1 8 0 - 8 1 . Cf tb. Id., "Self-Appre- "You Play, You Pay: Feminists and Child Support Enforcement
ciation; or. The Aspirations of Human Capital", pp. 27-28. in the U.S.". In: Governance Feminism: Notes from the Field.
34
T 53

de 2018, o secretário norte-americano de Habitação e Desen- 0 assalto neoliberal ao social, juntamente com sua iden-
volvimento Urbano Ben Carson recusou-se a aplicar a Fair tificação do poder exclusivamente com coerção, promul-
Housing Act [Lei de Moradia Justa] de 1968, condenando-a gou como consequência uma reformatação do liberalismo.
como "engenharia social". Em seu projeto original, essa lei À medida que saturava o discurso estatal e popular, o ataque
de fato procurou remediar décadas de redlining*^ imposta neoliberal à justiça social, à reforma social e aos serviços
por credores, bem como outras formas de discriminação e
sociais desafiava a igualdade, reformulava as guerras cultu-
segregação racial nas vendas de casas, aluguéis e financia-
rais e produzia uma desorientação geral da esquerda. Se não
mento público e privado.®" Na mesma primavera, o primei-
existe tal coisa como a sociedade, mas apenas indivíduos e
ro-ministro canadense Justin Trudeau também foi repreen-
famílias orientados pelo mercado e pela moral, então não
dido por praticar "engenharia social", neste caso por exigir
existe tal coisa como um poder social que gera hierarquias,
que a policia e os militares eliminassem os obstáculos ao
exclusão e violência, tampouco há subjetividade nas condi-
alistamento de mulheres e que os órgãos governamentais
ções de classe, gênero ou raça. Fora de um quadro neoliberal,||
usassem linguagem neutra em termos de gênero para lidar
é claro, a linRuagem do social é o que torna manifestas as
•com seus clientes." Os ataques aos "guerreiros da justiça
desigualdades: o domínio do social é o local em que sujei • - ^
' social" - isto é, qualquer um que desafie normas excluden-
a b j e ^ e s e exclusões são vivfdas, identificadas, contestadas
tes e distribuições estratificadas - , onipresentes na direita
e potencialmente retificadas. Fora de um quadro neolibe-
hoje, servem para reforçar as alegações nativistas, suprema-
ral, os poderes sociais se assentam no que Marx identificou
I cistas e nacionalistas sobre "quem.ço^rniu o Ocidente" e
como relações de exploração e dominação, no que Foucault
a quem ele pertence.®^
identificou como forças de subjetivação e construção social
ou no que teóricos críticos da raça, feministas e queer iden-
tificam como gramáticas de subordinação e abjeção. Como
qualquer estudante sério de desigualdade sabe, o social é
49 "Redlining" refere-se à prática por meio da qual bancos e ins-
tituições financeiras se recusam a oferecer hipotecas e ofere- um domínio vital da justiça, porque é nele que as histórias e
cem taxas menos vantajosas para clientes de determinados hierarquias consolidadas de uma determinada região, nação
bairros, com base em sua composição racial e étnica, alega- ou civilização são reproduzidas. O reconhecimento dos pode-
damente por apresentarem maior risco financeiro, [N.T.] res sociais é a única maneira de entender o protesto do take
50 Aparentemente, o que qualificou parcialmente Carson para a knee ou a afirmação de que vidas negras importam, as
o cargo de secretário de HUD foi seu discurso de 2 0 1 5 contra
altas taxas de suicídio entre adolescentes queer ou as mulhe-
um regulamento da época do presidente Obama exigindo que
res que trabalham mais por menos. Além disso, o social é oj
uma parcela designada de moradias subsidiadas pelo governo
fosse construída em bairros com acesso a transporte público,
que nos conecta de maneiras que excedem os laços pessoais,'
^empregos decentes e escolas. Isso também, lamentou ele, é
a troca de mercado ou a cidadania abstrata. É lá que nós,
"engenharia social". The New York Times, "Ben Carson's War- como indivíduos ou uma nação, praticamos ou falhamos em
ped View of Housing". praticar a justiça, a decência, a civilidade e o cuidado, para
51 Christie Blatchford, "Trudeau Government's Needless Obses- além dos códigos do instrumentalismo e do familialismo de
sion with Gender Is Exhausting". mercado. E é aí que a igualdade política, essencial à demo-J
52 Michael Taube, "No Boys Allowed, and No Girls Either". cracia, é feita ou desfeita.
34 T 55

Quando a racionalidade neoliberaí tem êxito em fazer exercida legitimamente sem preocupação com o contexto
desaparecer os poderes sociais, as reivindicações críticas ou as consequências sociais, sem restrição, civilidade ou
enraizadas neles não são nada mais do que as lamúrias cuidado com a sociedade como um todo ou com os indiví-
infundadas de "flocos de neve"." Ao mesmo tempo, a redu- duos dentro dela. Quando a alegação de que "a sociedade
Çã£neoliberal^^ liberdade à coerção põe não existe" se torna senso comum, ela torna invisíveis as
os princípios (e as leis decorrentes deles] de igualdade, e normas e as desigualdades sociais geradas pelos legados da
inclusão como tirania do politicamente correto. Assim, hoje escravidão, do colonialismo e do patriarcado. Isso autoriza!
temos um liberalismo que repudia os pòdires estruturais a privação efetiva de direitos (e não apenas o sofrimento)
da dominação - "se as mulheres querem ser engenheiras e produzida pela falta de moradia, de assistência médica e de
os latinos querem ser filósofos, nada nem ninguém os impe- educação. E permite ataques em nome da liberdade ao que
dirá!" - e sublinha todos os esforços para gerar ambientes quer que tenha sobrado do tecido social.
equitativos e inclusivos como distorções do funcionamento Esse é o raciocínio neoliberaí que emoldura o ataque
espontâneo do mercado e da moral. A consistência lógica pela direita contemporânea às universidades americanas
assenta-se na suposição de que o poder é limitado ã coer- em relação a palestrantes, códigos de expressão, currículos,
ção e que a liberdade é equivalente ã ausência de lei e de
i seus ditames.
contratações e admissões, códigos de conduta e muito mais.
Enquanto a esquerda luta para articular os vários poderes
Em suma, com a ascensão da razão neoliberaí, o ataque que geram sujeitos sociais construídos e posicionados de
ao social - à sua própria existência e ã sua adequabilidade modos diferentes, a direita esmaga essa luta com um dis-
como uma província de justiça - tem sido tão significativo curso que reduz a liberdade à censura e à coerção. À medida
quanto as facetas mais familiares do neoliberahsmo (por que a esquerda busca tornar visíveis as complexas histórias
exemplo, o antiestatismo] para edificar o poder corporativo, e forças sociais que reproduzem a superordenação e a hege-
legitimar a desigualdade e desencadear um novo e desinibi- monia masculina branca, a direita zomba da engenharia
do ataque aos membros mais vulneráveis da sociedade. Por social, da mentalidade de bando e da injeção de justiça social ^
p u m lado, ^eslegitimação das preocupações com_a igualdã- em um espaço propriamente organizado pela seleção (pre-

/
' de^exceto a igualdade legal formal, e das preocupações com sumidamente livre de normas) da excelência, por um lado, e
o poder, exceto a coerção explícita, forneceiTesse novo signi- pela "diversidade de pontos de vista", por outro." J
ficado e prática da liberdade sob o manto exclusivo do direito. A universidade está longe de ser o único lugar em que a
Essa liberdade não supera simplesmente outros princípiijs direita ganha uma vantagem estratégica por meio da des-
políücflsijgla é tudp^gue exisíe. Por outro lado, a liberdade, legitimação implacável dos conceitos do social e da socie-
arrancada do social, não se torna apenas ilimitada, mas' dade pela razão neoliberaí. Consideremos a controvérsia
que irrompeu no outono de 2017 depois que o engenheiro de
software da Google, James Damore, divulgou um memorando
53 "Snowflake", nos EUA, é uma referência depreciativa, empre-
gada normalmente pela direita, às pessoas que se creem úni-
cas, especiais e demasiadamente sensíveis aos problemas do 54 Toni Airaksinen, "'Social Justice Warriors' Are Ruining Engi-
mundo. Um equivalente brasileiro é a figura, pintada pela neering, Prof Warns". George Leef, "Social Justice Has Invaded
nova direita, das pessoas que só fazem "mimimi". [N.T.] Engineering".
34
T 57

argumentando que "diferenças de personalidade" explicam "pílula v e r m e ^ " da alt-rightf em sua forma mais moderada,
'por que tão poucas mulheres ocupavam cargos em engenha- ~é a convicção"^ que a v i ^ g ^ d e t e r m i n a ^ p e l a j e n é t i c a , ^ ^
^ - n a e na liderança da empresa.®® Dadas as diferenças imu- responsabUidade^p^^ Den-
tf^ táveis que emanam do sexo biológico "em todas as partes tro deste senso comum, o social é o inimigo da liberdade,
do mundo", escreveu Damore, os esforços da Google para enquanto os "siws" são os inimigos de um povo livre. No
recrutar e promover mais mulheres nesses campos eram entanto, como vimos, o ataque ao social - sua existência
equivocados - "injustos, divisivos e ruins para os negócios".®® e sua adequabilidade como provedor de justiça - também
Imediatamente demitido pela Google por violar as regras desinibe a liberdade identificada com o neoliberalismo,
da empresa relativas a "promover estereótipos de gênero", convertendo-a de mero libertarianismo moral a um ataque
Damore processou a empresa e também se tornou uma cause agressivo à democracia. Ele franqueia o exercício da liberda-
célebre da direita - mas não apenas pelo que escreveu ou de sem preocupação com o contexto ou com as consequên-
pelo preço que pagou por isso. Ao contrário, a alegação_de cias sociais, sem se importar com a sociedade, a civilidade
/j Iter sido primeiro enverRonhado e depois demitido oor suas ou os laços sociais e, acima de tudo, sem se preocupar com o
i v i s õ e s j ^ d e l e um^cone da liberdade em uma "cultura feita cultivo político de um bem comum. Desse modo, a alegação
para suprimi-la".®^ A direita aplaudiu sua rejeição das expli- de que "não existe tal coisa como a sociedade" faz muito mais
.^cações sociais da desigualdade; celebrou sua insistência do que contestar a social-democracia e os Estados de bem-
de que a prevalência de homens no setor de tecnologia e -estar como formas de interferência no mercado que criam
nos altos escalões dos negócios é enraizada na natureza e "dependência" e "arrogação" [entitZement] equivocadas. Faz
confirmada pelo mercado; promoveu sua crença de que poli- mais do que propagar a noção de que impostos são roubo, ao
• ticas igualitárias prejudicam a justiça, a coesão social e o invés de matéria pela qual a vida comum e as coisas públicas
,>H*'desenvolvimento econômico; e amplificou seu testemunho são sustentadas.®' Faz mais do que culpar os pobres por sua
de vida sobre uma esquerda supostamente totalitária que condição ou a "natureza" das minorias e mulheres de todas
força visões e políticas conformistas, coercitivas e censoras. as raças por sua presença minúscula nas profissões e posi-
Em suma, a crítica neoliberal da sociedade e da justiça ções de elite. A liberdade sem a ^ c i e d a d e destrói o l^xico^
social em nome da liberdade e das normas morais tradicio- pelo qual a uberdade torna-^ dmüC' i j c a , combinada com
nais tornou-se hoje em dia o senso comum de uma cultura
neoliberal robusta. Em seu extremo, trata-se da ideologia da
58 Do inglês alternative right. Refere-se justamente a esse pen-
samento ligado ao mercado e à moral que Wendy Brown está
descrevendo. Corresponde também à f r a ç ã o da e x t r e m a
direita que se caracteriza pela rejeição do conservadorismo
55 Daisuke Wakabayashi, "Contentious Memo Strikes Nerve
"clássico". Um de seus nomes mais proeminentes é o supre-
Inside Google and Out". Paul Lewis, "'I See Things Differently':
macista branco Richard Spencer. No entanto, conforme mos-
James Damore on His Autism and the Google Memo".
tra Brown logo na primeira página da introdução do livro, a
56 Kate Conger, "Exclusive: Here's the Full lo-Page Anti-Diver-
alt-right partilha diversas características com a ascensão da
sity Screed Circulating Internally at Google".
extrema direita pelo globo. No Brasil, este grupo tem sido
57 Aja Romano, "Google's Fired 'Politically Incorrect' Engineer chamado de "nova direita", [N.T.]

í
Has Sparked a Broad Ideological Debate".
59 Bonnie Honig, Public Things: Democracy in Disrepair.
59
58

a consciência social e aninhada na igualdade política^iber- iustiça social seja degradada. Expressões brutas e provoca-
dade sem soc^dade é puro instrumento de poder, desgida_de tivas de supremacismo se tornam expressões da liberdade
preocupação com os outros, o mundo ou o futuro. que a Primeira Emenda da Constituição Norte-americana foi
o s t e n s i v a m e n t e escrita para proteger - exceto que nao foi. A
A redução da liberdade à licença pessoal não regulada
no contexto de repúdio ao social e do desmantelamento Primeira Emenda era uma promessa aos cidadãos democráti-
da sociedade faz ainda outra coisa: consagra como livre cos de que eles não seriam perturbados pelo Estado em sua
expressão todo sentimento histórica e politicamente gera- consciência, fé e voz política individuais. Não era uma pro-'
do de arrogação (perdida) baseada na branquitude, mascu- messa de proteger ataques perversos contra outros seres ou
linidade ou nativismo, enquanto nega que estes sejam pro- grupos humanos e tampouco uma promessa de submeter a
duzidos socialmente, desatrelando-os de qualquer conexão nação a uma corporocracia ou a uma teocracia cristã. Como
com a consciência, compromisso ou consequência sociais. os capítulos 4 e 5 discutirão com mais detalhes, uma cultura
A arrogação perdida dos privilégios da branquitude, mascu- neoliberal de liberdade associai abre o caminho para ambas
linidade e nativismo é então facilmente convertida em ira
justificada contra a inclusão social e a igualdade política dos
historicamente excluídos. Essa raiva, por sua vez, torna-se a H A N N A H A R E N D T NÃO AJUDOU

expressão consumada da liberdade e americanidade, ou da


liberdade e europeidade, ou da liberdade e o Ocidente. Com Críticas ao conceito de sociedade e ao social vieram de qua-
a igualdade e a solidariedade social desacreditadas e com a drantes diferentes de Hayek e dos neoliberais; nenhuma
negação da existência de poderes que reproduzem as desi- delas é mais notória na teoria política do que a de Hannah
gualdades, abjeções e exclusões históricas, o supremacismo Arendt. Vamos nos deter aqui apenas brevemente, porque
i masculino branco ganha assim nova voz e legitimidade no nossa preocupação não é com esse problema na teoria poli-
século XXI. tica, mas com as coordenadas dos poderes e discursos políti-
Agora estamos em posição de entender como os nazis- cos c o n t e m p o r â n e o s . Vivemos em tempos neohayekianos, e
tas, membros da Ku Klux Klan e outros nacionalistas bran- nunca vivemos em arendtianos. Mesmo assim, vale a pena
cos se reúnem publicamente em "comícios de liberdade de uma nota sobre Arendt, tanto por sua influência peculiar-
expressão", por que um supremacista masculino, branco mente ampla sobre os filósofos políticos da esquerda quanto
e autoritário na Casa Branca é identificado com a liberda- porque a antipatia de Arendt pelo social equivale em intensi-
de por seus apoiadores por ser "politicamente incorreto" e dade, se não em conteúdo, ã de Hayek. Para Hayek, o social
como décadas de políticas e princípios de inclusão social, de não existe; para Arendt, seu desenvolvimento moderno
combate ã discriminação e de igualdade racial, sexual e de inchado destruiu as quintessenciais capacidades humanas
gênero vêm a ser tachadas como normas e regras tirânicas de liberdade e ação na esfera pública.
impostas por bandos de esquerda. O que acontece quando A diatribe de Arendt contra o social em A condição huma-
a liberdade é reduzida a asserções nuas de poder e arro- na é bem conhecida: nem privado, nem público, argumenta
gações, enquanto a própria ideia de sociedade é repudia- ela, a ascensão e a valorização do social na modermdade
da, a igualdade é menosprezada e a democracia é reduzida reduzem a política a preocupações com o bem-estar [wel-
ao privatismo liberal? Não se trata simplesmente de que a fare] e produzem regimes políticos com base no modelo de
fiO £1

uma família gigante que supre as necessidades humanas. miséria das massas".®^ A Revolução Francesa, ao contrário,
Na social-democracia e no socialismo, os seres humanos foi destruída quando o grito por liberdade foi substituído
são reduzidos a trabalhadores e consumidores, criaturas da pelas demandas dos pobres por pão, demandas que inunda-
necessidade, e não da liberdade. A vítima não é apenas uma ram o domínio político com os corpos e suas necessidades e
forma mais nobre de vida política e uma esfera protegida que provocaram o Terror.
de privacidade, mas a própria peculiaridade de nossa espé-
cie como seres de ação e intelecção. Em A condição humana, Quando eles [a multidão] s u r g i r a m n a c e n a da política, com
quase tudo o que há de errado com a modernidade é, para eles s u r g i u a n e c e s s i d a d e [necessity], e o resultado foi que o
Arendt, causado pela ubiquidade do social: inautenticidade e poder do Antigo Regime tornou-se impotente e a nova repúbli-
conformismo; ação substituída por comportamento e narra- c a n a s c e u morta; a liberdade teve de render-se à necessidade,
tiva épica substituída por estatística;®" desaparecimento de à urgência do próprio p r o c e s s o vital [...] Foi a necessidade, a s
um reino cujas coordenadas eram risco e distinção em favor u r g e n t e s c a r ê n c i a s do povo, que desencadeou o terror e lan-
de um reino de igualdade e mediocridade;" o governo políti- ç a r a m a r e v o l u ç ã o à s u a ruína. [...] a revolução m u d a r a s u a
co como uma forma singular de realização humana, obstruí- direção; não b u s c a v a mais a liberdade; seu objetivo agora era
do pelo surgimento do "governo por ninguém" em mercados a felicidade do povo.®®
e burocracias; a vida pública como domínio de arête e virtü
substituída pela sociedade centrada no trabalho [work], "a Por que a luta contra a carência [want] é hostil ao desejo
única atividade necessária para sustentar a vida", antes revolucionário por emancipação? Por que as necessidades
escondida no lar por ser considerada vergonhosa;®^ e cidada- [needs] anulam a liberdade? Arendt escreve:
nia alocada apenas para os livres e orientada inteiramente
para o autogoverno, desaparecendo em multidões escravas Pobreza é m a i s do que privação, é u m e s t a d o de c o n s t a n t e
carregando "um irresistível instinto para o despotismo".®' c a r ê n c i a e a g u d a m i s é r i a , cuja i g n o m í n i a c o n s i s t e em s u a
Apesar de todo o seu opróbrio dirigido ao social em força desumanizadora; a pobreza é abjeta porque submete os
A condição humana, no entanto, a condenação mais severa homens ao império absoluto de seus corpos, isto é, ao império
de Arendt às características destrutivas da liberdade e da absoluto da necessidade, como todos os homens a conhecem a
política pelo social aparece em Sobre a revolução. Dentre as p a r t i r de sua experiência mais íntima independente de todas
revoluções políticas que inauguram a modernidade, argu- a s e s p e c u l a ç õ e s . Foi sob o ditame d e s s a n e c e s s i d a d e que a
menta ela, só a Revolução Americana realizou sua promessa multidão atendeu ao apelo da Revolução F r a n c e s a , inspirou-a,
emancipatória. Por quê? Pois somente ela evitou caracteri- impulsionou-a p a r a a frente e, finalmente, levou-a à destrui-
zar "a questão social, na forma das condições alarmantes de ção, pois esta e r a a multidão dos pobres.®®

60 Hannah Arendt, The Human Condition, pp. 40-41.


61 Ibid., p. 40.
64 Id., On Revolution, p. 17.
62 p. 46.
65 Ibid., pp. 59-60.
63 p. 43. 66 p. 60. Cf. tb. Seyla Benhabib, "The Personal Is Not the Political"
100 6 3

I— A crítica de Arendt ao social difere significativamente da das massas em enxame, exigências que veem como ameaça
de Hayek. O legado da modernidade mais prejudicial à vida à liberdade e até mesmo à civilização. Acima de tudo, ambos
política, a sociedade é o teatro da produção, do bem-estar, das rejeitam o entendimento crítico da esquerda do social como o
necessidades e das satisfações, e não da ação, do feito e da lugar moderno essencial da emancipação, da justiça e da demo-
.imortalidade. Para Hayek, a sociedade é produto de benfeitores, cracia. Para ambos, a liberdade tem na ascensão do social seu
racionalistas e déspotas presunçosos, daqueles com ambições' leito de morte. Assim, a social-democracia e o comunismo de
de projetar e dirigir a sociedade, em vez de honrar a liberdade Estado são apenas pontos num espectro do que Tocqueville
e a tradição que permitem sua ordem e evolução espontâneas. denominou a "servidão regulada, branda e pacífica" resultante
Arendt quer salvar a vida política da intrusão dos corpos e de um estatismo administrativo que zela pelas necessidades
necessidades, economia e behaviorismo, o que está a quilôme- e esculpe os objetivos de um povo. Embora Hayek proclame
tros de distância do desejo de Hayek de salvar o mercado e a o individualismo ontológico e o privatismo liberal, e Arendt
moral dos esquemas de justiça social. Arendt idealiza a ação sonhe com cidadãos "agindo em concerto" para criar um
d e l i b e r a ^ W e r a m í b l i c a : Havekideahzah^ivi^uos moral- mundo em comum, eles compartilham a convicção de que a
mente disciQhnariosj[uezelam^ seus p r ó p r i o s T n t e r e s s e s . questão social tomou a vida política moderna e que a socieda-
Arendt teme que a liberdade tenha sido perdida para o compor- de tomou o indivíduo. A liberdade está em demonizar e, final
tamento condicionado; Hayek teme sua restrição pelo poder do mente, derrotar o social. A sociedade deve ser desmantelada.
Estado e sua dissolução em culturas políticas de dependência.
Para Hayek, o social é uma ficção tóxica que anima o monstro
destruidor de liberdade de um Estado invasivo. Para Arendt,
o próprio social é a força devoradora, que Hanna Pitkin com- PERDENDO O I M A G I N Á R I O POLÍTICO DO S O C I A L

para à figura de "um monstro maligno [...] com a intenção de


nos debilitar, absorver e por fim nos destruir, deglutindo nossa Este capítulo começou refletindo sobre o social como o fun-
distinta individualidade e nos transformando em robôs que damento da democracia, sobre a centralidade da igualdade
servem mecanicamente aos seus propósitos".®^ para qualquer conceito ou prática de política democrática, e
sobre por que a justiça social é, portanto, importante para
E ainda assim, apesar de todas as suas diferenças, algo gerar e proteger práticas e instituições democráticas. Conclui
conecta o ódio ao social compartilhado por Arendt e Hayek, refletindo sobre por que o social é importante para gerar e
algo além de seu estado de alerta para a emergência do fas- proteger um imaginário democrático.
cismo a partir dos projetos de nacional-socialismo e dos regi- Em Terra e mar, Carl Schmitt escreve que "todo ordena-
mes de Estado repressivos das revoluções proletárias. Tanto mento das questões humanas também se materializa em um
Arendt quanto Hayek execram o Estado dedicado a suprir as ordenamento do espaço. Consequentemente, as revoluções
necessidades humanas e execram a vida política - incluindo a das sociedades humanas sempre envolvem também a altera-
i democracia - quando devotada ao bem-estar humano. Ambos ção de nossas concepções de espaço"."" Schmitt desenvolve
temem a conquista ou a ocupação do político por demandas

68 Um artigo fascinante de A l e x a n d e r Somek chamou minha


67 Hanna Pitkin, The Attack of the Blob: Hannah Arendt's Concept atenção sobre esse argumento em Schmitt: "The Social Ques-
of the Social, p. 4.
tion in a Transnational Context". Veja pp. 47-48.
34T 64

este ponto de modo diferente em O nomos da Terra, em que A l e x a n d e r Somek extrai um segundo insight de Terra e
diz: "cada nova era e cada nova época na coexistência dos mar, de Schmitt. Trata-se da ligação que Schmitt estabelece
povos [...] e nas formações de poder de todos os tipos são entre as ordens espaciais e as visões escatológicas. Somek
fundadas em novas divisões espaciais, novos cercamentos e escreve: "Schmitt nos faz perceber [...] que as alterações da
novas ordens espaciais da Terra".«» Em ambos os textos, Sch- o r d e m do espaço também implicam [...] a dimensão espacial
mitt está se referindo ao espaço físico e geopohtico - anexa- ao longo da qual imaginamos mundos melhores surgindo no
ções, subdivisões, perda de linhas costeiras ou até mesmo futuro".'" Simplificando, nós vislumbramos futuros p o s s í v e i s " ' ^
dissoluções de nações ou invenções de nações novas - , os a partir e em termos das ordens espaciais de nosso presente,
tipos de reorganização que frequentemente precipitam as especialmente em termos de suas divisões e coordenadas."
guerras e seguem-se a elas. No entanto, seu argumento apli- Esse insight é significativo para considerarmos as implica-
ca-se à espacialização não literal e até mesmo desterrito- ções do desmantelamento da sociedade e a produção, em seu ,
riahzada, tal como o desmantelamento e a desintegração
lugar, de uma ingurgitada esfera de moralidade tradicional _ J
neoliberais do social.
e de uma operação expandida dos mercados. À medida que
Schmitt nos lembra que o espaço não é apenas uma o social desaparece de nossas ideias, discurso e experiência,
arquitetura para o poder, mas a cena da imaginação e dos ele desaparece de nossas visões do futuro, tanto utópicas
imaginários políticos. Ordenamentos humanos do espaço quanto distópicas. Imaginamos futuros nacionalistas auto-
e os significados atribuídos a esses ordenamentos moldam ritários, futuros virtualmente ligados em rede, futuros tec-
nossas conceituações de quem e do que somos, especial- nocráticos, futuros anarquistas, futuros cosmopolitas trans-
mente na vida com os outros. Esses ordenamentos podem nacionais e futuros fascistas. M a m o s em termos vagos da
pôr em primeiro plano localidades hemisféricas ou caracte- "miiltidãn" nu "dos rrimnng" QPm a democratízacão concreta
rísticas topográficas: uma nação perde seu mar em acordos dõTpoderes que eles abrieam e pelos auais eles seriam euia-
de pós-guerra, uma represa transforma um rio em lago, um dos. Nenhum deles visa inventar possibilidades do governo
bairro é cindido pela construção de uma rodovia ou de um democrático para o século xxi, alcançado e apoiado em
muro. Mas eles também apresentam designações do espaço parte pela democratização do poder social. Nenhum opera
público e privado, de espaço de gênero, de espaço racializa- no âm bito do poder social, mesmo que esse poder continue a
do e muito mais. Sabemos disso a partir de protestos que gerar dominação, es^tratihcação, exploração, exclusão e abje-
vão desde Little Rock até Gezi Park, da privatização de ter-
ção. E nenhunTnõs reúne^enquanto sociedade para deliberar
ras públicas às lutas contra a gentrificação e pela criação
de banheiros de gênero neutro. Nós não apenas vivemos
em territórios marcados, mas também desenvolvemos ima-
70 Alexander Somek, "The Social Question", p. 48.
ginários políticos do comum (ou da falta dele) a partir da 71 Sabemos disso por seu inverso, o que Baudrillard chamou
semiótica espacial. de "espelho da produção" na visão de Marx para a sociedade,
em que (apesar de sua apreciação passageira da liberdade
tomando forma para além da produção) ele fundamentou a
vida e a liberdade na gigantesca organização industrial das
69 Carl Schmitt, The Nomas of the Earth in the International Law massas trabalhadoras que povoavam seu próprio mundo. Cf
of the Jus Publicum Europceum, p. 79. Jean Baudrillard, The Mirror of Production.
sobre ela e governá-la em comum. A linguagem precisa é
fungível - "o social" e "sociedade" dificilmente são os únicos
termos que podem capturar esses poderes e essa reunião.
No entanto, algo deve aproximá-los para construir a igual-
dade política exigida pelas aspirações democráticas. É um
sinal do triunfo da razão neoliberal o fato de que, nas déca-
das recentes, a gramática do social, incluindo sua importân-
^^ cia para a democracia, tenha desaparecido largamente das
visões da esquerda (e não apenas da direita) para o futuro.
Nos Estados Unidos, pode-se creditar ao Occupy Wall Street
o mérito de tê-la forçado de volta ao debate público. Mais
recentemente, novas noções de socialismo e projetos como o
Hoje, os únicos detentores de poder, sem controle legal que os
Green New Deal" têm sido mobilizados para exigir uma dire-
ate e movidos pelas necessidades políticas de uma máquina obs-
ção política do bem-estar social, concebida de modo amplo.
tinada, são os assim chamados legisladores. Mas essa forma
A relação do social com o governo democrático ainda está
predominante de democracia é, em última análise, autodestruti-
interrompida e ausente desses importantes discursos de
va, pois impõe aos governos tarefas sobre as quais uma opinião
reMi|p_contra o objetivo do neoliberalismo de derrotar a
acordada da maioria não existe e nem pode existir. Portanto, é
sociedade e o social.
necessário restringir esses poderes para proteger a democracia
contra si mesma.
Friedrich Hayek, "The Dethronement of Politics"^

"o POLÍTICO" é um termo cunhado no século xx sob impulso do


trabalho de Max Weber e que sofreu diferentes inflexões em
Carl Schmitt, Hannah Arendt, Claude Lefort, Paul Ricoeur,
Sheldon Wolin, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe." Essas dife-
renças não serão examinadas aqui, nem nos deteremos na

Friedrich Hayek, Law, Legislation, and Liberty, vol. 3: The Poli-


tical Order of a Free People, p. 149-
James Wiley faz uma história intelectual de "o político" em
Politics and the Concept of the Political: The Political Imagination.
Nas pp. 3-4, ele nota que "o conceito do 'político' foi cunhado
em 1 9 2 7 por Carl Schmitt", mas que o "conceito" é diferente
72 Trata-se de uma proposta de legislação nos Estados Unidos no que diz respeito ao uso do termo "o político" que Willey
visando combater as mudanças climáticas e a desigualdade
encontra em uma carta de M a x Weber referindo-se a "das
econômica, [N.T.]
Politische" como seu antigo e "secreto amor".

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