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(*) Esta peça foi vertida para o italiano pelo Eng.° Virgílio Biondi sob
o título de La Figlia del Vice-Ré, e representada, no Teatro
Municipal do Funchal, pela Companhia Vitaliani-Duse (1914).
Senhor Presidente,
Ilustres Confrades:
MAIS uma vez trago ante Vossas Excelências uma curiosa tradição
da minha terra.
A voz do povo madeirense desde há muito afirmou - agora anda a
lenda em parte alterada e diluída -que, nos primeiros tempos da
colonização da Ilha, aqui se estabeleceu um estrangeiro de estirpe real e
vulto histórico de renome, renome derivado, ao mesmo passo, de suas
qualidades pessoais, entre elas a Fé, a magnanimidade e a coragem, e
dos trágicos sucessos militares, religiosos e políticos em que se achou
envolvido.
Esse homem, jovem ainda quando apareceu na Madeira, foi,
nesta, senhor dos domínios vastos que formam hoje a infeliz região
da Madalena - tão torturada pela fúria das torrentes - aqui
constituindo família e morrendo, desastradamente, sob uma quebrada
abatida do Cabo Girão, quando do Funchal se dirigia para as terras da
sua sesmaria.
Apresentou-se com o nome de Henrique Alemão, nome em que
os habitantes sempre viram um disfarce da sua identidade, pois a
todos ocultava sua origem, crendo-se que só talvez o donatário então,
Gonçalves Zarco que o tratava com «mui particular respeito»,
conheceria tal mistério.
Os Nobiliários da Ilha dão-no, vagamente, como «um príncipe
polaco milagrosamente salvo da Batalha de Varna»; mas a tradição
oral, séculos antes formada, apontou-o desde logo como o próprio
Ladislau III, o infausto rei da Polónia que, em 1444, se defrontou com
Amurate II, da Turquia, e fora por este derrotado nessa memorável
batalha, aí desaparecendo - ou morrendo como a história escreveu e
propagou. Não o creu assim o povo polaco que durante muitos anos
esperou o seu regresso, buscando-o por toda a parte, nem a gente
madeirense que, ao tempo, conheceu os factos, de largo eco, que lhe
disseram respeito, combinando-os em seu espírito, porventura,
impressionável.
Expressamente, o digo: não venho trazer-vos uma
documentação histórica, mas explicar apenas, como se formou a
insistente tradição a que os nobiliaristas, muito depois, deram um ar
menos concreto que não altera, na essência, o que até eles se disse e,
com convicção, se acreditou.
É de notar que a lenda - chamemos-lhe assim - não podia
gerar-se na alma da gente inculta, pois esta conservava-se, muito
naturalmente, ignorante dos sucessos históricos, pormenorizados, em
que a mesma se baseia. Com toda a evidência, ela manou de espíritos
doutos; e de vozes doutas a ouviria o povo que, pelo tempo fora, a
nutriu e lhe deu corpo.
A guerra em que à data se encontrou Ladislau III, tem, pelas
suas origens político-religiosas, acentuada semelhança com a
catástrofe de Alcácer-Quibir. Como nesta, há o desaparecimento dum
rei audacioso e moço impulsionado para a luta - acima de tudo - por
cega e ardente fé religiosa.
Ora, os Nobiliários Madeirenses são dos séculos XVIII e XIX; e
os seus autores, talvez, por pudor intelectual, não querendo, nem de
longe, parecer «sebastianistas», alteraram a tradição - bem que num
único ponto - substituindo a figura de Ladislau pela de um incerto
príncipe, salvo da cruenta batalha justamente como dela poderia ter
saído o heróico e infausto rei - que ninguém, seguramente, viu morrer
ou encontrou morto na refrega.
Crendo-se doutos, e com os prejuízos que, não raro,
acompanham certos pruridos de cultura, tiveram por prudente afastar-
se da crença popular - na sua época, tão mal vista, por insubsistente e
grotesca quanto à sobrevivência do monarca português - sem
atenderem a que, se os polacos foram de algum modo
«sebastianistas», esperando, demasiado tempo, a volta do seu rei, - o
povo madeirense, esse, deu-lhe como termo de vida, iniludível, o
desastre do Cabo Girão...
O texto deste trabalho explica - não digo: justifica - como,
conjugando os factos históricos de 1444, na Polónia, com as singulares
circunstâncias que cercaram, na Madeira, o senhor da Madalena, nasceu
a tradição a que me reporto aqui, tradição que, repito, só pôde partir de
pessoas ilustradas com o conhecimento minucioso desses factos.
O respeito, tão particular e tão profundo, que Zarco dispensava a
Henrique Alemão; a sua baixela à parte, em casa do donatário - que era
quase um vice-rei; as suas relações secretas com o monarca português,
que lhe mandou barco especial para o conduzir à Corte; a vinda à
Madeira, expressamente, dos monges polacos que lhe reconheceram a
identidade; a reserva do Infante D. Henrique e de D. Afonso V, ao
evitarem, ambos, o nome dele na Carta de sesmaria e na confirmação
respectiva, tratando-o, apenas, por Cavaleiro de Santa Catarina - o
que tudo atestam os Nobiliários - são, entre outros, particulares que
se não ajustam bem à condição dum simples e inominado príncipe.
Doutra parte, não é fácil compreender-se o motivo por que este
príncipe, que peregrinou, apenas, «em acção de Caraças por se haver
salvo da catástrofe de Varna» - e, portanto, sem quaisquer razões de
ordem política ou moral para esconder a sua pessoa e o seu nome - se
obstinou, sempre, em negar a sua qualidade, tratando por «loucos» os
que o reconheceram na Madeira, ocultando-se tão longe e
renunciando a tudo que se ligasse com a sua vida e posição na
Polónia, como se tivesse vergonha ou remorso de condenável acção
praticada contra Deus ou contra a Pátria.
Isto que não é natural num simples combatente - fosse ele
plebeu ou príncipe - salvo duma derrota, é de todo o ponto verosímil,
quando à sua figura se substitua no quadro o vulto de Ladislau III, o
que ao diante se mostra sob a clara luz da História.
A lenda, incerta embora, estabeleceu-se como se verá sobre
presunções e paralelos lógicos, e em factos que seguiram de perto a
informação histórica
Senhor Presidente,
Ilustres Confrades:
Quinta Esmeraldo
S. Martinho
Madeira-Outubro-1940
J. REIS GOMES
PRIMEIRA PARTE
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO PRIMEIRO
O TRATADO DE PAZ
NA BATALHA DE VARNA
CAPÍTULO PRIMEIRO
0 SESMEIRO DA MADALENA
DOIS ANÁTEMAS
SEGUNDA PARTE
(1) - «Saudades da Terra, do Dr. Gaspar Frutuoso - pág. 514 (2.° col.).
O «Elucidário Madeirense, dos eruditos escritores Padre Fernando
Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Menezes, de mais fácil
consulta, insere a pág. 314 (2.ª col.) o que, sob o título «Alemão»,
dizem as Notas, de Álvaro de Azevedo, às Saudades da Terra.