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O Teatro e o Actor

Esboço filosófico da arte de representar. 2.ª Edição - Esgotada


Histórias Simples
Livro de contos - Esgotado.
A Filha de Tristão das Damas
Novela madeirense - Esgotada.
Guiomar Teixeira *
Peça histórica-3.ª Edição.
A Música e o Teatro
Esboço filosófico - Esgotado.
Acústica fisiológica
A Voz e o Ouvido Musical
Portugal -Brasil
Alocução e mensagem - Esgotado.
Forças psíquicas
Ensaio filosófico - Esgotado.
O Belo Natural e Artístico
Definição da Obra de Arte
Comunicação à Academia das Ciências
Figuras de Teatro
Colectânea.
Através da França, Suíça e Itália
Diário de viagem.
Três capitais de Espanha
Burgos -Toledo -Sevilha
O Anel do Imperador
Memória apresentada à Academia das Ciências.
Natais
Contos e narrativas.
O Vinho da Madeira
Monografia
Casas Madeirenses
Com a colaboração artística do Arquitecto Edmundo Tavares
O Cavaleiro de Santa Catarina
Memória apresentada à Academia das Ciências.

(*) Esta peça foi vertida para o italiano pelo Eng.° Virgílio Biondi sob
o título de La Figlia del Vice-Ré, e representada, no Teatro
Municipal do Funchal, pela Companhia Vitaliani-Duse (1914).
Senhor Presidente,

Ilustres Confrades:

MAIS uma vez trago ante Vossas Excelências uma curiosa tradição
da minha terra.
A voz do povo madeirense desde há muito afirmou - agora anda a
lenda em parte alterada e diluída -que, nos primeiros tempos da
colonização da Ilha, aqui se estabeleceu um estrangeiro de estirpe real e
vulto histórico de renome, renome derivado, ao mesmo passo, de suas
qualidades pessoais, entre elas a Fé, a magnanimidade e a coragem, e
dos trágicos sucessos militares, religiosos e políticos em que se achou
envolvido.
Esse homem, jovem ainda quando apareceu na Madeira, foi,
nesta, senhor dos domínios vastos que formam hoje a infeliz região
da Madalena - tão torturada pela fúria das torrentes - aqui
constituindo família e morrendo, desastradamente, sob uma quebrada
abatida do Cabo Girão, quando do Funchal se dirigia para as terras da
sua sesmaria.
Apresentou-se com o nome de Henrique Alemão, nome em que
os habitantes sempre viram um disfarce da sua identidade, pois a
todos ocultava sua origem, crendo-se que só talvez o donatário então,
Gonçalves Zarco que o tratava com «mui particular respeito»,
conheceria tal mistério.
Os Nobiliários da Ilha dão-no, vagamente, como «um príncipe
polaco milagrosamente salvo da Batalha de Varna»; mas a tradição
oral, séculos antes formada, apontou-o desde logo como o próprio
Ladislau III, o infausto rei da Polónia que, em 1444, se defrontou com
Amurate II, da Turquia, e fora por este derrotado nessa memorável
batalha, aí desaparecendo - ou morrendo como a história escreveu e
propagou. Não o creu assim o povo polaco que durante muitos anos
esperou o seu regresso, buscando-o por toda a parte, nem a gente
madeirense que, ao tempo, conheceu os factos, de largo eco, que lhe
disseram respeito, combinando-os em seu espírito, porventura,
impressionável.
Expressamente, o digo: não venho trazer-vos uma
documentação histórica, mas explicar apenas, como se formou a
insistente tradição a que os nobiliaristas, muito depois, deram um ar
menos concreto que não altera, na essência, o que até eles se disse e,
com convicção, se acreditou.
É de notar que a lenda - chamemos-lhe assim - não podia
gerar-se na alma da gente inculta, pois esta conservava-se, muito
naturalmente, ignorante dos sucessos históricos, pormenorizados, em
que a mesma se baseia. Com toda a evidência, ela manou de espíritos
doutos; e de vozes doutas a ouviria o povo que, pelo tempo fora, a
nutriu e lhe deu corpo.
A guerra em que à data se encontrou Ladislau III, tem, pelas
suas origens político-religiosas, acentuada semelhança com a
catástrofe de Alcácer-Quibir. Como nesta, há o desaparecimento dum
rei audacioso e moço impulsionado para a luta - acima de tudo - por
cega e ardente fé religiosa.
Ora, os Nobiliários Madeirenses são dos séculos XVIII e XIX; e
os seus autores, talvez, por pudor intelectual, não querendo, nem de
longe, parecer «sebastianistas», alteraram a tradição - bem que num
único ponto - substituindo a figura de Ladislau pela de um incerto
príncipe, salvo da cruenta batalha justamente como dela poderia ter
saído o heróico e infausto rei - que ninguém, seguramente, viu morrer
ou encontrou morto na refrega.
Crendo-se doutos, e com os prejuízos que, não raro,
acompanham certos pruridos de cultura, tiveram por prudente afastar-
se da crença popular - na sua época, tão mal vista, por insubsistente e
grotesca quanto à sobrevivência do monarca português - sem
atenderem a que, se os polacos foram de algum modo
«sebastianistas», esperando, demasiado tempo, a volta do seu rei, - o
povo madeirense, esse, deu-lhe como termo de vida, iniludível, o
desastre do Cabo Girão...
O texto deste trabalho explica - não digo: justifica - como,
conjugando os factos históricos de 1444, na Polónia, com as singulares
circunstâncias que cercaram, na Madeira, o senhor da Madalena, nasceu
a tradição a que me reporto aqui, tradição que, repito, só pôde partir de
pessoas ilustradas com o conhecimento minucioso desses factos.
O respeito, tão particular e tão profundo, que Zarco dispensava a
Henrique Alemão; a sua baixela à parte, em casa do donatário - que era
quase um vice-rei; as suas relações secretas com o monarca português,
que lhe mandou barco especial para o conduzir à Corte; a vinda à
Madeira, expressamente, dos monges polacos que lhe reconheceram a
identidade; a reserva do Infante D. Henrique e de D. Afonso V, ao
evitarem, ambos, o nome dele na Carta de sesmaria e na confirmação
respectiva, tratando-o, apenas, por Cavaleiro de Santa Catarina - o
que tudo atestam os Nobiliários - são, entre outros, particulares que
se não ajustam bem à condição dum simples e inominado príncipe.
Doutra parte, não é fácil compreender-se o motivo por que este
príncipe, que peregrinou, apenas, «em acção de Caraças por se haver
salvo da catástrofe de Varna» - e, portanto, sem quaisquer razões de
ordem política ou moral para esconder a sua pessoa e o seu nome - se
obstinou, sempre, em negar a sua qualidade, tratando por «loucos» os
que o reconheceram na Madeira, ocultando-se tão longe e
renunciando a tudo que se ligasse com a sua vida e posição na
Polónia, como se tivesse vergonha ou remorso de condenável acção
praticada contra Deus ou contra a Pátria.
Isto que não é natural num simples combatente - fosse ele
plebeu ou príncipe - salvo duma derrota, é de todo o ponto verosímil,
quando à sua figura se substitua no quadro o vulto de Ladislau III, o
que ao diante se mostra sob a clara luz da História.
A lenda, incerta embora, estabeleceu-se como se verá sobre
presunções e paralelos lógicos, e em factos que seguiram de perto a
informação histórica

Senhor Presidente,

Ilustres Confrades:

Poderá parecer por demais desenvolvida em relação ao todo, a


primeira parte deste singelo trabalho.
Mas para bem compreender-se, neste ponto, a minha prática,
será preciso atentar que a lenda dá a Madeira como a pátria adoptiva
desse rei, infortunado mas célebre por suas acções e até por sua
própria desgraça, terra que ele elegeu para o seu exílio, onde criou
família e uma vida nova, e onde tão lamentavelmente faleceu. Trata-
se de personagem do mais interessante psiquismo -cheio de claro-
escuro, é certo, - dum monarca poderoso que cingiu duas coroas e em
cujos feitos há lances da mais épica grandeza - e, eu, sou
madeirense...
Mas outra razão mais forte, por menos sentimental, me impeliu
a ir tão longe. Considerei - mal talvez - que essa lenda deixaria de
explicar-se, inteiramente, se eu não desse do infeliz monarca
suficientes anotações do seu carácter, da sua posição política, das
circunstâncias que precederam a Batalha de Varna e a determinaram,
dos episódios ocorridos nela e, ainda, dos que se seguiram ao famoso
esmagamento das armas polaco-húngaras. Demais, muitos desses
episódios-factos, coincidências, vaticínios - são indispensáveis para
cotejo com o conteúdo de toda a segunda parte, que tanto é dizer:
para a inteligência da formação da mesma lenda.
Entre as obras que consultei, escolhi, por mais minuciosa, no
período que me interessava, «LA POLOGNE - Historique, Littéraire,
Monumentale et Pittoresque», redigida por uma Sociedade de Escritores
Polacos, edição de Paris (1836-1837), e que vai referida, a par e passo
do texto, nas minhas Notas finais. Segui-a, de preferência, não só por
sua particular autoridade, mas por ser o livro de História que mais e
melhores elementos me oferecia para o fim a que eu visava.
Em toda a segunda parte, fazendo-me eco da tradição oral,
apoiei-me aos elementos, que fundamentalmente a seguem,
constituídos pelos Nobiliários que nas aludidas Notas vão citados.
O pouco de ficção ou de arranjo que há neste trabalho, serviu
apenas para dar certa sequência à narrativa, esclarecer, logicamente,
alguns lugares obscuros e pôr em evidência - para melhor explicar a
tradição vários pontos de especial interesse que, doutro modo,
ficariam apagados.
Ainda que não me propusesse, insisto, fixar um facto
histórico, - como Vossas Excelências verão, procurei, sempre,
respeitar a história e, interpretando-a, cingir-me à letra da tradição
escrita.

Quinta Esmeraldo
S. Martinho
Madeira-Outubro-1940

J. REIS GOMES
PRIMEIRA PARTE

LADISLAU III, DA POLÓNIA

0 Cavaleiro de Santa Catarina

PRIMEIRA PARTE

LADISLAU III, DA POLÓNIA

CAPÍTULO PRIMEIRO

O TRATADO DE PAZ

O ano de 1444, era rei da Polónia Ladislau III, primogénito de


Ladislau Jagello segundo monarca desta nobre dinastia. Tinha apenas
dez anos, à morte de seu pai, e, logo aos quinze, atingindo a
maioridade, recebeu da clerezia e da nobreza o árduo encargo de
reinar neste país de tão agitada e complexa política.
Como se à sua fronte adolescente não bastasse o peso duma
coroa, outra lhe estava reservada ainda, dentro dum futuro muito
próximo.
Por morte do imperador Alberto, a Hungria, ameaçada pelos
turcos, aspirava a uma íntima e forte aliança com a Polónia. Mas,
entre os húngaros, havia indecisões; desfê-las, porém, o aparecimento
dum homem chamado João Corvin, conhecido, depois, por Huniade -
alcunha tirada do forte, do mesmo nome, nos confins da Transilvânia
- e filho natural de Segismundo, da Hungria.
Espírito, a um tempo, prudente e enérgico, corajoso e de altos
dotes estratégicos, Huniade parecia destinado a ser a alma da
defensam da sua pátria. E logo compreendeu que a salvação da
Hungria estava na assistência militar, sólida e efectiva, que lhe
prestasse a Polónia: assistência só viável pela fusão dos dois reinos.
Por sua iniciativa, uma brilhante embaixada veio a Cracóvia
oferecer a coroa húngara ao jovem rei polaco. Entre os magiares,
contudo, davam-se mais tarde dissensões provocadas pelo partido de
Isabel, a imperatriz viúva, que, grávida à morte do marido, não
desistia de ver na cabeça do filho recém-nado a coroa de Santo
Estevão. Neste passo, Huniade colocou todo o seu prestígio do lado
de Ladislau que, a despeito dessas lutas, foi coroado rei dos
húngaros.
Mas, nem por isso serenaram os ânimos.
Interveio então, conciliando, o Cardial Cesarini, legado do
Papa Eugénio IV. Cesarini, hábil diplomata, que já captara as boas
graças do rei, conseguiu, entre este e a imperatriz-mãe, um encontro
para a conclusão da paz interna, sendo uma das condições - a
primeira - o casamento da primogénita de Isabel com Ladislau III. O
enlace ficou justo - bem que os noivos nem sequer se conhecessem,
nem o casamento viesse a realizar-se. E o monarca da Polónia tornou-
se assim, de facto e de direito, o indiscutível rei da Hungria.
Este país, porém, continuava cada vez mais ameaçado por
Amurato II que, recentemente, invadira a Transilvânia e a Sérvia.
Os turcos estavam já na posse de algumas regiões do império
grego, tanto na Ásia como na própria Europa. Constantinopla bradava
por socorro; e o legado de Eugénio IV procurava opor aos progressos
do grão-turco as forças coligadas dos dois países cristãos.
Ladislau III, grave, acolhedor, justo, activo e profundamente
amado do seu povo - no que o ajudava, até a esbelteza
natural e seu porte majestoso -, tinha então vinte e um anos e possuía
ao máximo inclinações guerreiras, a par da mais ardente fé religiosa.
Facilmente se penetrou da ideia de combater a Turquia. E foi decidida
a guerra.
Huniade, ao tempo, palatino da Transilvânia e chefe do exército
húngaro, posse resolutamente ao lado de Ladislau e avançou de
encontro aos otomanos, infringindo-lhes, por superiores dotes
militares, formidáveis e consecutivas derrotas. O rei, que com suas
forças lhe seguia os passos, reúne-se ao caudilho e, ambos, junto ao
monte Conobiza, numa última batalha em que o irmão de Amurate
ficou morto, bateram totalmente as forças turcas.
Ladislau, temerário, ia tendo a sorte deste chefe maometano.
Salvou-o, João Huniade - o seu Segismundo, como na intimidade lhe
chamava-o que ainda uniu mais os corações destes dois homens.
Fez-se então, entre os dois adversários, um Tratado de Paz a
pedido de Amurate, com pesadas condições para os otomanos.
Este tratado, que duraria dez anos, foi ratificado em Szeged, a
15 de Julho de 1444, e escrito nas duas línguas, sendo confirmado
solenemente pela fé do juramento. O rei da Polónia jurou sobre os
Santos Evangelhos, e o sultão da Turquia jurou sobre o alcorão.
Amurate, confiante, foi descansar para a Ásia das fadigas e
preocupações da guerra.
Mas Ladislau logo se arrependeu deste convénio que aceitara
apenas pela falta ou impossibilidade de auxílio das outras potências
cristãs.
E, dez dias após esse solene compromisso, mais exaltada sua
Fé por sugestões de muitos que o cercavam, o rei de terminava
invalidar o pacto com o sultão. Outros conselhos tinham vindo já
neste sentido. A carta do imperador grego, João Paleólogo, essa, dava
o retiro de Amurate na Ásia, como a circunstância mais oportuna e
decisiva, a aproveitar, para a aniquilação do poder turco na Europa.
Convencido da inanidade dum juramento prestado ante infiéis,
Ladislau, - depois de magno Conselho em que Cesarini tomou parte -
resolveu a nova guerra.
Huniade que sempre induzira o rei a respeitar seu santo
compromisso, deixou-se vencer, contudo, pelo ardor entusiástico do
monarca, jovem, como ele, seu amigo e irmão no fervor religioso.
E tudo, entre os dois, ficou assente a defesa da cristandade e a
segurança de seus próprios países impeliam-nos a de novo avançar
contra a Turquia.
Era duns dez mil homens o exército polaco-húngaro a que se lhe
juntaram cinco mil soldados sob o comando de Drakul, hábil guerreiro
e Príncipe da Valáquia.
Drakul, bem que sabedor e ousado, não vinha de ânimo seguro:
não tanto pela grande superioridade das forças do sultão, mas,
sobretudo, pela predição funesta duma pitonisa búlgara que dava esta
guerra como fatal para os cristãos, fundando-se no violento abalo de
terra que, no próprio dia em que o convénio foi rasgado às mãos de
Ladislau, sacudira toda a Hungria, (1) como se o orbe se revoltasse,
até o íntimo de seu seio, contra a falta a um juramento feito, ao
mundo e aos Céus, no santo nome de Deus.
E a vidente concluía:
- «Esse príncipe, se escapa à guerra, morrerá, violentamente,
de morte inglória!» A profecia correu, célere, entre os exércitos da
Cruz, ensombrando por momentos, o claro e vivo olhar do rei cristão.
Mas lá estava Cesarini, para varrer-lhe do espírito o resto da
superstição nele deixada pela voz da velha bruxa.
Os exércitos cristãos, levando Huniade em sua guarda
avançada e Ladislau no grosso da coluna, atravessaram as planícies
da Bulgária, em rota longa, mas muito mais segura, para a Turquia
europeia. De caminho, foram tomadas muitas vilas, praças e cidades,
entre estas, Varna – a «Constantia», dos antigos - ao tempo, praça
turca no principado da Bulgária.
O rei chegava a Varna, justamente, quando soube a terrível e
inesperada nova: o sultão tinha saído da Ásia e já passara à Europa à
frente de quarenta mil homens, desembarcando no Bósforo. As tropas
de Amurate, transportadas por barcos genoveses, acudiam em
marchas forçadas, e estabeleciam-se a cerca de três quilómetros do
acampamento cristão.
Huniade propôs, em Conselho de Guerra, que o exército
polónio-húngaro tomasse a iniciativa do ataque em campo raso,
proposta logo aceita pelo moço e heróico rei.
Rápido, se dispõem as forças para a batalha.
Flutuava, entre os magiares, o estandarte negro da Hungria,
enquanto os polacos se uniam sob o antigo pavilhão de São Ladislau.
Ao centro estava o rei ladeado por cinquenta brilhantes cavaleiros, na
maior parte príncipes polacos e húngaros, todos esbeltos e jovens
como ele. Junto de Ladislau ficava Estevão de Bathor com a bandeira
de São Jorge. O bastardo de Segismundo trotava ou corria por toda a
parte a dar ordens, na sua missão de general em chefe.
À frente do campo de Amurate, seguia um fosso, defendido por
paliçadas, em cujo bordo se erguia uma alta lança com o Tratado de
Paz violado pelos cristãos. Amurate impunha-o, assim, aos seus
soldados, como documento da perfídia do inimigo, implorando a
protecção de Deus para a punição do perjúrio. (2)
Pouco depois de fixada a haste com o símbolo da traição,
levanta-se um repentino e furioso vendaval que despedaça os
estandartes húngaros e polacos, poupando apenas o de Ladislau III. (3)
O Tratado de Paz, esse, continuava a oscilar no campo turco.
Deste lado, o facto foi considerado de mau presságio para o exército
cristão.
Mas a bandeira de São Jorge também estava intacta, junto de
Ladislau...- é Prenúncio - cogitavam muitos - de que da batalha se
salvaria o rei?...
CAPÍTULO SEGUNDO

NA BATALHA DE VARNA

A i n d a o pó, revolto, turvava a limpidez do ar, quando


Huniade deu ordem para o ataque.
Prepararam-no os besteiros que inundam o campo adverso
com um aluvião de setas, arremesso em que húngaros e polacos são
particularmente destros. Os turcos respondem logo; e a seguir dá-
se o assalto à arma branca, confundindo-se os dois adversários na
refrega.
Carnificina horrível em que, morto Karadja, bei de Anatólia,
as tropas otomanas, abatidas, entraram em viva debandada. O
pânico apoderou-se, irresistivelmente, dos filhos de Mafoma.
Em volta do sultão ficara, apenas, a sua guarda de janízaros,
além de alguns beis velhos, mais fanáticos. Os outros, achavam-se
ocultos ou dispersos.
Parecia que ainda desta vez o crescente seria vencido pela
Cruz. Mas Amurate, pálido, embora, estava firme e confiante. De
olhos fitos no Tratado, rogava a Allah, com fervor, o seu justiceiro
auxílio.

A cavalaria polónio-húngara, composta de atléticos


guerreiros cobertos de armaduras que soltam, das espaldas, fortes e
estranhas asas, esperava insofrido o momento da sua intervenção.
Os cavalos relincham inquietos.
Súbito, ressoa um brado: - «Por São Jorge!...» É a voz do
rei. Estêvão de Bathor, num gesto alto, levanta o estandarte.
No mesmo instante, Ladislau cercado dos seus príncipes de
ferro-como ele, ambiciosos de glória - rompe a galope, de começo,
curto, preparando a arremetida heróica: um desses épicos lances
em que se celebrizaram, sempre, os esquadrões polacos.
Amurate, sereno, mas com o olhar chispante de ódio, ordena
à sua guarda - Isolai-o dos companheiros. Ele virá sobre nós, como
um javali ferido. Afastai-vos e, num relâmpago, envolvei-o em
vosso círculo. i Matai-o - rugiu com voz cava -e praticareis uma
santa acção, perante Deus e o seu profeta!» (4) E um velho bei
remata, comungando na sanha do sultão
- Que o castigo do traidor vá, se a tem, até a sua
descendência !. . .
Declina o sol.
O rei vai à frente, agora, em toda a beleza da sua figura de
moço e de guerreiro.
A distância encurta, e acelera-se o galope. A um gesto seu, a
bandeira de São Jorge dá o sinal, e a carga é desferida...
Os cavalos somem-se, roçando o solo arroxado à luz
sanguínea do poente. Só se vê, na investida impetuosa, a faixa
ondulante daqueles monstros de aço que projectam as asas, hirtas,
no cinzento - rubro do horizonte.
As polidas armaduras, chispando e refulgindo, isolam-nos do
chão pulverizado em rolos de nuvens pardacentas. É uma legião,
mítica, de dragões, que corta o ar na direcção do campo turco.
A certo espaço do fosso, Ladislau dobra-se mais na sela,
acicata o seu corcel alado que transpõe trincheira e sebes, e,
enristando a lança, arremessa-se num voo sobre a tenda do sultão.
Outros e outros cavaleiros se lhe seguem... E a violenta erupção
polaca não permite aos turcos o projectado isolamento.
Contudo, a ordem de Amurate foi cumprida.
Um janízaro conhecido, entre os seus, por Akteché - homem
de pele e cabelos claros -abaixando-se dum salto, fere fundo, a
machado, uma perna do cavalo do rei. O animal baqueia, e Ladislau
é lançado longe, entre turcos, húngaros e polacos mortos e feridos
na peleja. Akteché, atento, seguiu-o com a vista como a fixar o sítio
onde ficara; mas pouco se moveu do seu lugar.
Caíam em torno dele, quase sobre ele, corpos de cristãos e de
soldados turcos, bem que, naquele ponto, a maior parte fossem da
nobreza polaca que seguira Ladislau na vertiginosa carga.
0 janízaro, delgado e ágil, defende-se destes choques; e,
aproveitando um instante demais calma na confusão sangrenta,
aproxima-se do cadáver dum cavaleiro da Cruz que jaz próximo do
corcel real, bate-lhe com a acha, de prancha, o rosto já contuso, e
despoja-o, rápido, da armadura, como para tornar mais leve o fardo.
Nisto, chega-se-lhe um velho janízaro, de nome Khodja-
Khazer, (5) que, bruscamente, o sacode pelos ombros
- Que estás a fariscar aí, sangue de perro, filho de cristãos?
- Filho de cristãos, como todos da nossa guarda, (6) menos tu e
poucos mais... Fui eu que o abati - e apontava para o cadáver já
desnudo -ferindo-lhe o cavalo; acabo de matá-lo, conforme a ordem
de Amurate, e quero levar a cabeça do traidor aos pés de nosso amo.
- Não a levarás, que tomo conta dela. E, dum golpe, separou do
tronco a cabeça do cavaleiro polaco, segurando-a pelos cabelos
longos de tom loiro-cendrado.
-Toma e cala-te! - volve Khodja-Khazer, enrugando a testa sob
cujas arcadas luzem os olhos negros, levemente oblíquos, de genuíno
oriental. E atirou-lhe uma bolsa com dinheiro.
- Não falarás! Sabes bem que te conheço... e que se soltasses
uma palavra sobre o caso, essa seria a última - acrescentou,
fitando-o com desdém.
Afastado da sua tenda destruída pela invasão cristã, o grão-
turco que vira cair o rei, não pôde seguir tais incidentes passados
em instantes.
Akteché apanhou a bolsa, contraindo os lábios num sorriso
equívoco. E, apenas se viu longe das vistas de Khazer, deitou -se
entre a massa jacente dos cavalos e dos corpos de turcos e cristãos.
O velho janizaro meteu uma lança na base da cabeça
gotejante ainda e correu a levá-la à presença de Amurate.
O sultão mandou fixar a haste com o macabro troféu ao lado
da outra em que se via o Tratado de Paz traído pelo rei polaco. E,
olhando-o com devoto júbilo, agradecia a vingança do seu Deus e o
castigo do próprio Deus cristão pela execrável perfídia. (7)
Ladislau III, aquele jovem belo, generoso e heróico que era o
ídolo do seu povo e o galvanizador dos seus exércitos, desaparecera
da luta, caindo pouco além da tenda de Amurate.
O desânimo logo se apoderou das tropas húngaras, não sendo já
possível ordená-las. Os polacos ainda feriram alguns combates
singulares; mas depressa se desmoralizaram por igual.
A batalha de Varna tristemente célebre na história da Polónia,
terminara ali com a trágica derrota dos exércitos cristãos.
Huniade, que voltava da perseguição do inimigo, após a
primeira fase da luta que lhe fora favorável, nada vira da catástrofe.
Informado de que, do lado turco, se expunha uma face cristã, tida,
pelo adversário, como a do seu rei e amigo, o caudilho fez prodígios
de coragem para arrancá-la da posse de Amurate. Mas a noite já caia;
e, desesperado da sorte da batalha, abandonou o campo,
acompanhado dos valáquios (8).
Lá para trás, através das sombras desta noite de São Martinho,
de 1444, um observador, mesmo atento e suspeitoso, mal poderia
divisar dois vultos que, rastejando, se escoavam peias dobras do
terreno, nessa hora, enevoado.
No dia seguinte, os turcos encontraram, entre os que caíram
sob a fúria de seus golpes, os prelados de Eger e de Grosswardein. O
Cardial Cesarini, que combatera com fé e intrepidez junto a Estêvão
de Bathor, lá estava com este ainda na mesma união da morte.
Entre os valiosíssimos despojos, descobriram-se os arquivos da
Coroa da Polónia nas equipagens de Ladislau III - mas nada foi
achado da sua fortuna pessoal.
Amurate enviou «a cabeça do vencido» conservada em mel, (9)
ao governador de Broussa, ao tempo, capital da Turquia. Lavada nas
águas do Niloufer, pelo próprio enviado do sultão, o troféu foi
passeado pelas ruas, na extremidade dum chuço, entre vaias e does
tos da multidão fanática.
Polacos e húngaros recusavam-se a crer na morte do soberano.
Uns, diziam que, feito prisioneiro, seguira para Constantinopla;
outros, que o rei errava pela Itália, e, ainda outros, que passara, a
ocultas, para a Espanha. (10)
O próprio Huniade que se aproximara do humano despojo
exposto no campo turco, tentando subtraí-lo ao inimigo, não
reconheceu nele a cabeça do monarca.
O bastardo de Segismundo, por seu prestígio e pelo sangue,
podia bem, nesta hora, aspirar à coroa húngara visto que Casimiro,
considerando o irmão vivo, se recusava a aceitá-la; afirmava, porém,
não crer na morte de Ladislau. (11) Testemunho insuspeito, que, por
todos os motivos, foi considerado irrefutável...
Morto ou ausente, sempre lhe sucedeu Casimiro IV na coroa
da Polónia, mas depois dum interregno de três anos - alegando-se
como razão da escolha a circunstância de, com ela, nenhuma
mudança interna se operar quando um dia Ladislau voltasse... (12)
Tal era, ao tempo, e muito depois ainda, (13) o estado de
espírito dos polacos, acerca do desaparecimento do seu rei.
SEGUNDA PARTE

QUEM ERA HENRIQUE ALEMÃO?...

CAPÍTULO PRIMEIRO

0 SESMEIRO DA MADALENA

Haveria uns trinta anos que a Ilha da Madeira começara a ser


povoada, quando, aí por 1454, sendo donatário do Funchal João
Gonçalves Zarco, chegou a esta Ilha uma «misteriosa figura» que se
nomeava por Henrique Alemão, também conhecido pelo Cavaleiro de
Santa Catarina.
O apelido Alemão - murmurava-se seria apenas disfarce
tendente a ocultar a origem desta «legendária personagem» como lhe
chama Álvaro de Azevedo nas suas Notas à 1.ª edição das «Saudades
da Terra», do P. Gaspar Frutuoso. (l)
Era homem ainda moço - pouco mais de trinta anos - alto, de
cabelo loiro já entremeado de cans, barba longa arredondada na ponta,
olhos rasgados e azuis. Sua tez branca e emaciada, vincava-se de rugas
que bem pareciam precoces.
Tinha aspecto de quem sofrera muito e, mais, de quem padecia
ainda profunda dor oculta. Vestia severamente, sem excluir, no traje e
em seu porte, natural elegância e distinção. Acompanhava-o,
geralmente, um mordomo ou escudeiro pouco mais velho do que ele, e
também de cabelo, pele e olhos claros.
Quem seriam, e qual a sua procedência?...
Estava-se, ainda, nos primeiros tempos da colonização da Ilha, e
pouco se indagava da identidade dos forasteiros que, de vários cantos
do mundo, a ela constantemente aportavam - sobretudo se tinham
meios de fortuna ou se traziam qualquer, concreta ou vaga,
recomendação da corte.
Aqui acorriam, à mistura, nacionais e estrangeiros: pilotos,
mercadores, fidalgos, operários, simples colonos, gente sem profissão
e, até, criminosos de delito comum fugidos à acção das justiças de El-
Rei.
Era preciso desbastar e arrotear as terras e, por todos modos,
fundando lares e povoações, valorizar este primeiro marco dos
descobrimentos portugueses.
Contudo, o aparecimento dos dois homens não deixou de ferir
bem fundamente as atenções gerais.
O donatário do Funchal recebia Henrique Alemão com «mui
particular respeito, e concedeu-lhe, jogo após a sua vinda, a sesmaria
de grandes terras na costa sul da Madeira, a cerca de seis léguas da
sede da capitania, concessão de que lhe passou carta o Infante D.
Henrique, em 29 de Abril de 1457, confirmada por El-Rei em 8 de
Maio do mesmo ano. Nestes documentos, Infante e Rei tratam o
sesmeiro, apenas, por Cavaleiro de Santa Catarina.
O desconhecido, dizia-se, apresentara a Zarco, como
«credencial», uma missiva de D. Afonso V. Jantava o Cavaleiro em
casa do Capitão; mas, como notam os Nobiliários da Ilha, em especial
lugar de honra e servido em baixela aparte, (2) restringida a pessoas
de classe superior à do próprio donatário. Corria que este uso
derivava de discreta mas formal recomendação de El-Rei.
Foi nos Paços do Capitão, ao Alto das cruzes, numa de suas
aparatosas recepções de quase vice-rei, que Henrique Alemão
conheceu Senhorinha Anes, donzela de nobre estirpe algarvia e,
então, uma morena alegre e buliçosa a constituir fundo contraste com
o loiro e melancólico recem-vindo...
Solicitado pela atraente Senhorinha, Zarco apresentara-a ao seu
distinto hóspede, conversando, ambos, uma tarde inteira,
sensivelmente afastados da restante companhia. E, ao cabo - reparou-
se a viva e formosa moça conseguira animar aquela face triste, e dar-
lhe luz ao olhar, até ali, quase apagado.
À saída, bosquejava-se já que se achavam enamorados. O
meio, bem que fidalgo, era estreito de mais para que não fosse alfobre
de curiosidades indiscretas.
Depois de outros colóquios, sempre em casa de Zarco, visto o
Cavaleiro esquivar-se a quaisquer novas relações, propalava-se que
os dois estavam noivos, comentando-se, agora, que a donzela se
tornara muito menos expansiva, pois fugia claramente às perguntas
das amigas sobre a pessoa e vida do seu «Príncipe Encantado»...
Designação maliciosa e corrente entre as damas quando queriam
referir-se a Henrique Alemão.
De posse dos terrenos, vastos e férteis, que lhe foram
outorgados, o Cavaleiro estabeleceu-se na sua sesmaria, ali erguendo
Capela sob a invocação de Santa Maria Madalena, donde o nome de
Madalena ou Madalena do Mar, dado, depois, a este domínio do
litoral da Ilha. E o idílio, de um ano atrás -não se iludiram as
«comadres»- terminava em casamento Henrique Alemão desposara
Senhorinha Anes, (3) apadrinhado, em nome de EI-Rei, por João
Gonçalves Zarco.
Era rico o sesmeiro da Madalena. Bem que frequentando com as
esposa os Paços do Funchal, não descuidava o cultivo e amanho de
suas terras que depressa prosperaram à custa de diligente esforço e de
copiosos capitais. Quando saia, ficava na direcção da casa o seu
homem de confiança, esse amigo que, embora de inferior categoria, era
para ele como um segundo eu. «Prende-os, algum segredo»,
bisbilhotou-se, entre dentes, desde os primeiros dias
A «Capela do Alemão» era rica de paramentos e alfaias, sendo
obra de arte, mandada vir de fora, o grandioso altar-mor onde a
imagem do orago, de estilo bizantino, constituía para o fundador
objecto de ardente devoção. Os altares laterais eram dedicados, um, a
Santo Estêvão, e, o outro, a São Jorge, ardendo aqui noite e dia uma
lâmpada votiva.
Entre as casas da Madeira, a de Henrique Alemão passava por a
de mais luxo e atavio, sobretudo em alcatifas e baixela, excedendo, em
muito, a do próprio donatário. Tapeçarias e móveis, de cunho e arte
orientais, impunham-se como excepção, ao tempo, em terras de
Portugal.
Apesar de certo fausto que indicava hábitos e predilecções de
casta, o Cavaleiro dispensava a todos grande e natural afabilidade.
Piedoso, liberal e justo, vivia adorado por seus servos e colonos.
Nas festas religiosas e nas recepções em sua casa ou na do
Capitão, o impenetrável sesmeiro ostentava, sempre, «a roda de
navalhas» - símbolo da primeira tortura infligida à heróica e sábia
virgem alexandrina -, insígnia de sua Cavalaria como membro da
Ordem de Santa Catarina do Monte Sinai. (4) Parecia ter em alta
conta o emblema da selecta confraria que, neste monte bíblico,
alguns príncipes cristãos fundaram, no ano mil, junto ao túmulo da
Santa.
Passaram alguns anos.
Certa manhã de verão, ancorava no porto do Funchal um
navio procedente do Reino. Entre os desembarcados, viam-se alguns
frades que, apôs breve troca de palavras com gente acudida à: praia,
se dirigiram para o cenóbio de São João da Ribeira.
Eram novos franciscanos, porventura, que vinham aumentar o
número de religiosos necessários ao bem espiritual da crescente
população do burgo...
Na tarde desse mesmo dia, dava-se, em seguida ao pospasto,
festa de pompa no Alto das Cruzes.
Fazia anos a Capitão, e Zarco reunia nos seus Paços a flor da
nobreza das duas capitanias. Galanteava-se e jogava-se o xadrez pelas
salas e jardins, esperando-se com ansiedade o serão em que se
ouviriam os motes e glosas, além doutros, de dois dos mais notáveis
poetas-cavaleiros Tristão Teixeira ou das Damas, herdeiro da
Capitania de Machico, e João Gonçalves da Câmara, filho herdeiro do
Capitão do Funchal.
Veio a noite e, com ela, foram-se acendendo as grossas velas
murais e os lustres de ferro suspensos por cadeias.
Bailavam no salão ao som de castanhetas e adufes, duas
escravas moiras, ondulantes e airosas, quando o mestre-sala, avisado
por um servo, procurou o donatário com quem comunicou em voz
baixa.
Zarco, hesitando por momentos, deu-lhe uma ordem, fez sinal
para sustar-se a dança, e esperou próximo da larga porta que deita para
a ante-sala. Os cavaleiros levantaram-se, entreolhando-se; e as damas
estabeleceram sussurro de vozes cujo tom oscilava entre a curiosidade
e o susto.
Logo entrou um franciscano que, cumprimentando
reverentemente o Capitão, lhe disse com humildade ao que vinha, - já
no meio do silêncio da assistência mais sossegada, agora, à vista do
burel monástico: - Senhor! Seis freires que se dizem polónios,
chegados esta manhã, desejam falar, de urgência, ao Cavaleiro de
Santa Catarina que sabem estar nestes Paços.
O donatário, contrafeito, dirigiu-se a Henrique Alemão,
prevenindo-o de que o buscavam alguns frades estrangeiros.
O sesmeiro da Madalena seguiu o Capitão em direcção à porta,
ainda mais pálido do que habitualmente, mas denotando decisão.
Um velho monge, saído do grupo que aguardava fora, avançou
até ele, fixou-o, e, curvando-se com fundo e particular respeito, quis
beijar-lhe a mão que o Cavaleiro vivamente retirou. O religioso,
erguendo-se, proferiu então com firmeza algumas frases que ninguém
ali pôde entender, e a que Henrique Alemão opôs a mais formal
estranheza.
Mas o polaco, levantando a cabeça e apontando a «roda de
navalhas colada ao peito do sesmeiro, redarguiu, em castelhano,
volvendo-se para a assembleia
- Reconheço-o. Irmãos nossos hão-se informado de seus passos e
sei, sob sigilo, como chegou ao local onde foi armado Cavaleiro, como
sei desde quando se encontra oculto nesta afastada Ilha.
E, porque o sesmeiro tentasse desdizê-lo, acrescentou com voz
sonora e firme:
- Este homem não se chama Henrique Alemão. Seu nome é
Ladislau, 2.º Jagellon, rei da Polónia onde, há anos, com preces e votos
o esperam. Trago ordem de Casimiro, seu irmão, para levá-lo
connosco. Em nome de Deus, que o salvou da catástrofe de Varna,
não o detenhais longe da Pátria...
- É um louco! (6) -bradou o Cavaleiro, abafando com o seu
grito a voz do frade que, à intimação de Zarco, foi retirado
bruscamente da sala, protestando e debatendo-se.
Senhorinha fitou discretamente o marido, mas não pareceu partilhar
da turbação em que o via.
Fora, os restantes freires confirmavam que aquele era o seu rei,
unindo suas vozes, mais timidamente embora, aos clamores do que
fora expulso do salão.
O brado do sesmeiro, bem que enérgico, não teve, para muitos
que o ouviram, esse tom de funda e cortante sinceridade que a
situação impunha. Não o manifestaram, contudo.
- É um louco! É um louco diziam, também sem segurança,
repetindo a frase ouvida e que julgavam a mais oportuna neste lance.
Bem que o Capitão voltasse a tranquilizar seus convidados,
afirmando que o frade doido ficaria guardado a bom recato até que,
com seus companheiros, saísse da Madeira, a calma desapareceu
nessa noite do serão do Paço das Cruzes.
Aquele monge, mentecapto ou não, aguara com a sua visita
esta festa que se prometia tão brilhante.
Dias depois, os religiosos polacos - Zarco cumpria a sua
promessa voltavam para Lisboa no mesmo barco que os trouxera ao
Funchal...
Alguns Nobiliários informam que aos frades passaram a
Portugal e foram ao Algarve onde estava D. João II e lhe pediram
mandasse ir o dito Cavaleiro (Henrique Alemão) e fizesse com que
ele tornasse para o seu reino, o que se fez. Porém, ele sempre negou,
e El-Rei o deixou tornar para a Ilha, e os polacos para a sua Pátria».
(7)
A suspeita, porém, da régia estirpe do sesmeiro, essa, ficou na
Ilha e recrudesceu, lá fora, adquirindo visos de certeza.
CAPÍTULO SEGUNDO

DOIS ANÁTEMAS

Rodara o tempo sobre o estranho caso.


Na Casa da Madalena, Henrique Alemão, acabrunhado,
conversava com a esposa que, debalde, pretendia erguer-lhe o ânimo.
Procuremos, em linguagem de hoje e de acordo com a tradição
oral, (8) reconstituir, ou melhor, interpretar este diálogo íntimo. Nele
se erguem pontas do nebuloso véu que envolveu na Ilha o vulto do
misterioso Cavaleiro.
Henrique, havia um mês, recebera Carta de El-Rei de Portugal,
pedindo a sua presença na Corte para o que lhe enviaria embarcação
dentro de dias. Tinha de partir... e atormentava-o esta ideia.
- Mas não vejo motivo para a tua inquietação. Fizeste-me jurar,
Henrique, pela Hóstia Consagrada e, depois, pela vida de nosso
querido filho, que nada procuraria indagar do teu passado. Como
vês, tenho cumprido o juramento. Escondes-me, porém, alguma
coisa que eu talvez deva saber, principalmente, como mãe de
Segismundo...
- Senhorinha! Vou falar-te, hoje, até onde me permita a
consciência. Ao ser armado Cavaleiro, tomei para com Deus o
compromisso de nunca revelar quem sou... e de não voltar mais ao
que fui. Tenho de o cumprir, a ver se resgato outro a que faltei –
com que vergonha e remorso o digo! - supondo fazer obra grata aos
olhos do Senhor e de alto mérito para a minha própria Pátria. Mas
temo que venham a descobrir o que, empenhando a minha alma,
tomei a decisão de ocultar... para todo o sempre.
Parte do que dizes mo referiste já, quando foi da edificação da
nossa igreja. Quiseste-lhe para orago a bem-aventurada Madalena, a
pobre - pecadora que em peregrinações e penitências alcançou a
santidade. Sei que, como ela, também peregrinaste longos anos para
remissão de culpa grave da tua juventude. Não te pergunto qual
contendo a minha curiosidade de mulher - embora pressinta que, por
ela, correste grandes riscos...
Senhorinha desejava conhecer a causa próxima do abatimento
do marido; não querendo, contudo, perturbar-lhe a consciência, nem a
sua, prosseguia subtilmente o seu inquérito. Ele debatia-se em
evidente luta íntima: avançando, para desoprimir-se; mas contendo-
se, a tornear logo o próprio impulso.
Henrique, preocupadíssimo, nem atingiu a discreta insinuação
da esposa.
- Sim. Depois dum transe horrível o primeiro castigo de
perjúrio - em que o nosso mordomo me livrou de morte certa, passei
com ele muitas terras em jejuns e expiações, sempre incógnito, e
cheguei à Palestina, como sabes... E, após breve hesitação o resto, o
que não devo desvendar, poderás inferir, talvez, mas nunca ouvi-lo da
minha própria boca. Guardarás, quanto concluíres, bem no fundo de
teu peito, juras-mo?
-No Santo nome de Deus o afirmo, meu Henrique. E,
insistindo: - Não me falas, porém, nos teus receios de agora.
Corremos algum perigo?...
- Como te hei-de dizer?! Assalta-me o terror de que, lá fora,
dêem crédito ás palavras daquele velho frade lembras-te? - e me
coajam a alguma situação... para mim, insustentável.
A fórmula era vaga, mas Senhorinha não deixou de captar-lhe
a intenção. Era dona tão leal, como inteligente e arguta.
No seu olhar passou um relâmpago de júbilo. Antes de tudo, era
mãe. E, das palavras do monge, tinha-lhe ficado a sus peita-
desvanecedora, para ela - de que gerara em seu seio... um belo príncipe
de sangue.
No entanto, retomou a antiga calma. - Ora, quem porá fé nas
vozes dum pobre doido?!
O Cavaleiro calou-se; mas o rosto ficou-lhe ainda mais turbado.
- Deixemos isso que nada vale, Henrique. Há só uma coisa
que eu poderia saber e que nunca me explicaste bem. Porque
insististe tanto - até contra a vontade de meu pai - em que o nosso
filho se chamasse Segismundo, nome estranho a toda a nossa
ascendência ?
- Pus-lhe esse grande nome, em lembrança de alguém que, na
intimidade, eu tratava assim e que foi o meu maior e mais fiel
amigo. Alguém cujos conselhos não ouvi, perdendo-me e perdendo-
o, porventura...
Pela face de Henrique corriam, agora, duas lágrimas. E
acrescentou:
- Segismundo – tal o castigo que pende sobre mim! - não
deve enquanto eu vivo for - compreendes bem ? - saber nada da
antiga vida de seu pai. Nem mesmo o que já conheças...
Senhorinha não ficara tão esclarecida, quanto esperava. Mas,
à intimação do marido, acudiu prontamente;
- Já que assim o entendes, prometo-o, pela sua felicidade.
- Obrigado, meu amor. Deixaste-me o coração menos apresso.
Perdoa se liguei o teu destino ao dum homem sobre quem pesa
traição a um sagrado juramento. E pressinto - prosseguiu num
murmúrio - que a despeito de meus votos e renúncias ainda não está
expiada a minha culpa.
A entrada de Segismundo - rapaz de dezoito anos, que herdara
com a estatura e a distinção de Henrique a vivacidade, o espírito e os
olhos negros da mãi - pôs termo a esta truncada e embaraçosa
confidência.
Segismundo chegou-se ao pai para dizer-lhe que o escudeiro o
avisava da aproximação duma nave portuguesa que, em largos
bordos, demandava a baía do Funchal. O sesmeiro saiu logo,
excitado, a encontrar-se com o mordomo.
Com sorriso de mal contido orgulho, Senhorinha encarou o
filho, fitando-o por instantes; e, atraindo-o a si, abraçou-o
longamente num esto de efusão e terno enlevo.

Estava-se em fins de Setembro.


Na costa sul da Ilha havia caído chuva miúda, mas contínua,
por mais duma semana.
Henrique Alemão fora obrigado a vir à sede da Capitania onde
falou com João Gonçalves da Câmara, então já donatário, antes de
seguir para Portugal a avistar-se com o monarca, como este lhe
rogava. O barco, que só esperava monção, deveria largar em breve.
Fundamente angustiado, o Cavaleiro envelhecera dez anos.
Confessou-se e comungou na Igreja da Conceição de - Baixo.
E, a seguir, encaminhou-se para o porto onde tomou o seu pequeno
barenel coberto, à ré, e comodamente alcatifado.
Como serenasse o mar, lá partiu, junto à terra, com rumo à
Madalena, afim de despedir-se de sua esposa e de seu filho.
Na costa, as terras achavam-se encharcadas, aterrando-se os
«diques» e as betas argilosas. O ar, porém, estava calmo, ainda que
quente para a estação que decorria.
Não se ouviam trovões. Mas, ao passar Câmara de Lobos, um
remador fez notar aos companheiros certas lucilações que subiam na
atmosfera. Ficaram apreensivos. Contudo, calaram-se e seguiram, não
sem retesarem mais a rija musculatura de seus braços.
Chegados ao Cabo Girão, ouviu-se um rouco ruído
subterrâneo acompanhado de forte abalo de terra, que intumesceu e
sacudiu as águas.
Tudo oscilou em torno. Imediatamente, despenha-se uma
quebrada do alteroso Cabo que se apruma sobre o mar. Um penedo,
solto da rocha desmoronada, atinge em cheio a popa do luxuoso batel,
e mata fulminante mente o sesmeiro cujo corpo ficou ali esfacelado.
(10)
Ninguém mais fora vítima da catástrofe: a tripulação,
projectada pelo abalo, salvou-se a nado depois de breve luta com as
ondas agitadas e convulsas pelo choque da quebrada. Livres do
turbilhão, as próprias vagas arrojaram, à costa, sobreviventes, tábuas,
remos e o cadáver do infortunado Cavaleiro de que foram
piedosamente recolhidos os despojos.
Àquele fragor sinistro, sucedeu a noite, silenciosa e negra,
quase sem crepúsculo. O sol, esbraseado na hora da tragédia, sumira-
se, logo, frio e apagado, nos abismos do oceano.
A tradição escrita acrescenta, apenas, que alguns restos do
corpo de Henrique Alemão foram sepultados na Igreja da Madalena.
O lúgubre sucesso consternou e fez cismar.
Os que conheciam e relacionavam os factos, lembraram-se do
que correra, havia anos, sobre a predição de certa bruxa, na véspera
da Batalha de Varna, quando súbito terramoto abalava toda a
Hungria: «-Esse príncipe, se escapa à guerra, morrerá, violentamente,
de morte inglória!» é Com o mesmo tremor de terra, a predição
cumprira-se?.
A verdade é que assim acabou esse homem sua vida
atormentada, bem que de alma, finalmente, redimida...
Recordavam ainda, na Madeira, a reforçarem seu conceito,
que, momentos antes da Batalho, repentino vendaval varrera os
pendões cristãos, ficando indemne, apenas, o balsão de Ladislau. E
sabia-se como, depois da luta, se compreendera este fenómeno, na
Hungria e na Polónia: «o rei - o sinal fora bem claro - sairá salvo da
catástrofe!»
Salvo, sim, - diriam na Ilha, ao tempo - não para governar mais
os seus reinos, mas para acolher-se, viver, penar, morrer aqui, como
predisse a búlgara, obscura e sinistramente.
E, ante todos estes factos e estranhas circunstâncias, é como
não havia de gerar-se a lenda de que o infausto Cavaleiro era o
próprio Ladislau III, da Polónia, o mesmo a quem o monge polaco
falara na Madeira, e que o seu povo, durante largos anos, julgou
oculto e disfarçado em qualquer remota parte?

Mas, a maldição fora mais longe: ia atingir-lhe o próprio filho.


Morto o sesmeiro, Senhorinha estava livre, por estas palavras
do marido: - «enquanto eu vivo for» - do compromisso que
tomara de nada referir a Segismundo sobre o passado de seu pai.
Ter-se-ia ela servido, agora, de tal liberdade, para revelar ao
jovem o que sabia ou supunha saber da antiga existência do esposo? é
Tê-lo-ia, mesmo, aconselhado à revindicação do que julgaria seus
legítimos direitos? O escudeiro, íntimo do ousado e esbelto moço, e
influiria nele, também, com seus relatos ou, pelo menos, com suas
autorizadas sugestões?...
O certo é que Segismundo, findo o luto, «se dirigiu a Lisboa na
intenção de passar à Polónia.» (11)
Na viagem, porém, sobrevindo temporal, um dos mastros do
navio, cortado, cerce, pelo vento, caiu sobre ele, matando-o (12) e ao
mordomo que, no transe, se encontrava à sua beira.
E ali findou, sem prole, o único filho varão do Cavaleiro de
Santa Catarina. (13)
O espírito geral não podia alhear-se, neste passo, daquele
anátema do Rei que, ainda na Batalha de Varna, após a exortação de
Amurate à sua guarda, rouquejara com todo o rancor da alma turca:
Que o castigo do traidor vã, se a tem, até a sua descendência!...
Realmente tudo se cumprira e conjugara para a tradição que se
firmou.
O povo, na observação da natureza, dos acontecimentos e dos
homens, procede de modo análogo à ciência na dedução de suas leis:
regista os factos, compara-os, nota-lhes, através do tempo, as
repetições e as coincidências, e formula, então, os seus provérbios ou
compõe, pouco a pouco, as suas lendas.
Os provérbios constituem a ciência popular, que raro falha.
A tradição é a História feita pelo povo. Como a dos doutos,
pode enfermar de erros e de falsas ilações; mas o perfume de poesia
que ela evola, o intenso clangor heróico que desfere, ou a doce nota
de sensibilidade em que ressoa, ajudam-nos a ver melhor o cunho
peculiar de certa época ou a penetrar mais fundo no íntimo dos
homens e dos factos.
Um alto e nobre espírito, Francisco Coppé, ao falar desse
«rumor dos tempos» em face das contradições irredutíveis
manifestadas, em qualquer ponto, pela actual crítica histórica, diz-
nos com convicção animadora: «A verdade - perdoe-se isto a um
poeta - creio-o bem, está na lenda. (14)
NOTAS
PRIMEIRA PARTE

(1) LA POLOGNE-Historique Littéraire, Monumentale et


Pittoresque», por uma Sociedade de Escritores Polacos, - Paris (1836-
1837) - tomo 2.º pág. 118, (2.ª col.)

(2) e (3) Obra e tomo citados-pág. 119 (1.ª col.)

(4) Obra e tomo citados - pág. 119 (2.ª col.)

(5) Este nome é, de facto, na história da Polónia, o do janízaro que,


na Batalha de Varna, decepou a cabeça de pois ostentada por
Amurate II, no seu campo, como sendo a de Lasdislau III. Obra e
tomo referidos, pág. 119 (2.ª col.). Desta citação se conclui que esse
não foi o mesmo janízaro que abateu o cavalo em que carregava o
infausto rei polaco. Designei, no texto, este outro soldado por
Akteché.

(6) Os janízaros constituíam, como se sabe, uma espécie de guarda


pretoriana do sultão. A-fim-desta poder ser empregada contra o
povo, em caso de necessidade, era composta, quase exclusivamente, por
filhos de cristãos, roubados a suas famílias e convertidos ao islamismo,
nem sempre com todo o êxito...

(7) e (8) Obra e tomo citados - pág. 119 (2.ª col.)

(9) Obra e tomo citados - pág. 120 (1 ° col.)

(10), (11) e (12)-Obra e tomo citados - pág. 120 (2.ª col.)

(13) Em 1465, vinte e um anos depois da Batalha de Varna,


numerosos boémios e polacos que viajavam pela Europa, entre eles,
dois, muito instruídos (Alexandre Sasek e Gabriel Tetzel)
afirmaram, nas suas narrativas de viagem, ter encontrado em
Cantalapiedra (Espanha), o rei Ladislau III, da Polónia, feito
eremita. Á frente desta embaixada, dumas quarenta figuras, vinha
Léo, Barão de Rozmital, cunhado do rei da Boémia. Estes viajantes
chegaram a Portugal, entrando por Freixo de-Espada à-Cinta. A tal
afirmação - que só mostra como perdurou a descrença sôbre a morte
de Ladislau, para muito além da Batalha de Varna - se referem, entre
outros, os autores da obra «LA POLOGNE» que vimos citando (pág.
126 –1.ª col.) e, mais minuciosamente, o ilustre Académico Sr.
Coronel de Artilharia Henrique de Campos Ferreira Lima, em seu
erudito trabalho «Relações entre Portugal e a Tchecoeslováquia». A
história diz-nos que, entre os polacos, a fé na sobrevivência do seu rei,
que nenhum realmente vira morrer na célebre batalha, se conservou
ainda muitíssimo depois de 1465.

SEGUNDA PARTE

(1) - «Saudades da Terra, do Dr. Gaspar Frutuoso - pág. 514 (2.° col.).
O «Elucidário Madeirense, dos eruditos escritores Padre Fernando
Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Menezes, de mais fácil
consulta, insere a pág. 314 (2.ª col.) o que, sob o título «Alemão»,
dizem as Notas, de Álvaro de Azevedo, às Saudades da Terra.

(2) Nobiliário de Castelo Branco», na posse do douto escritor


madeirense Sr. Tenente-Coronel Alberto Artur Sarmento. Segui-o de
perto, por ser, entre os Nobiliários da Ilha que conheço, um dos mais
autorizados e o mais minucioso.

(3) Nota, já citada, de Álvaro de Azevedo, às Saudades da Terra, e


Nobiliários madeirenses.

(4) - «Nobiliário de Henrique Henriques de Noronha, existente na


Biblioteca da Câmara Municipal do Funchal. Neste ponto, o mesmo
diz a Nota de A. de Azevedo, atrás referida, e vários Nobiliários
madeirenses.

(5), (6) e (7) -«Nobiliário de Castelo Branco, citado acima, e outros.

(8) A tradição escrita, através dos Nobiliários, está de acordo com a


tradição oral nos pontos essenciais da reconstituição que vem no texto.
Henrique Alemão ocultou sempre a sua estirpe e o seu passado, afora,
quanto a este, as peregrinações que fez pelos lugares santos como
promessa ou como expiação indo até a Palestina onde foi armado
Cavaleiro de Santa Catarina, no Monte Sinai. Todos os Nobiliários
que se lhe referem, o dão como um vago «príncipe polaco
milagrosamente salvo da Batalha de Varna», mas nunca apontam
esta informação como saída da sua boca, insistindo, até, sobre a
categórica negativa do sesmeiro a toda a insinuação neste sentido.
Henrique Henriques de Noronha afirma, no seu Nobiliário, ter visto
a justificação da origem principesca de H. Alemão, justificação feita
segundo esse autor, em 1584, isto é, 130 anos depois de ele surgir
na Madeira onde chegou com cerca de 30 anos de idade -e, portanto,
obtida certamente muito depois da sua morte.
Nunca alcancei ver esse documento, a que nenhum outro autor se
refere, ignorando por isso o nome com que aí figuraria o misterioso
senhor da Madalena - tratado apenas, como já está dito, por
Cavaleiro de Santa Catarina na Carta da sua sesmaria, passada pelo
Infante D. Henrique, e na confirmação desta, dada por D. Afonso V
(Nobiliários), o que leva a crer que a própria Casa Real portuguesa
tinha cuidado em não identificar completamente aquela personagem.

(9) Nobiliário de Castelo Branco».

(10) Nota de A. de Azevedo às «Saudades da Terra, «Elucidário


Madeirense» e todos os Nobiliários que se referem a Henrique
Alemão.

(11) «Nobiliário de Castelo Branco».

(12) e (13) -Nobiliários de Castelo Branco e de Henrique Henriques de


Noronha.
(14) «Estudo sobre o livro «Napoleão Íntimo», de Artur Lévy.

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