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Capítulo 4

QUESTÕES DOS PARTICIPANTES DA AULA

Q U E S T Ã O — Na última discussão, apareceu essa questão de


altura, superfície e profundidade com Donzelot. Quando ele fala sobre
o método no livro Polícia das Famílias, discute a partir das alturas e
pretende trabalhar desde a profundidade e a superfície para ver como
se organizam os corpos. Seria isso?

L U I Z F U G A N T I — Parece-me que o problema que Donzelot co-


loca, em relação ao método, é o modo de libertar a pesquisa históri-
ca de dois equívocos. Um é o discurso transcendente da história clás-
sica — que pretende explicar as transformações pela história das
idéias, dos códigos e das organizações, a partir de sentidos e valores
grandiosos e últimos — como a narrativa que se instala nas alturas
do Estado, sobrevoa o mundo individual sem dele poder dar conta.
O outro equívoco é o dos que procuram explicar as transformações
pela história das mentalidades — explicação psicológica dos acon-
tecimentos sociais e políticos que se apóia num modelo falso de in-
consciente, numa falsa profundidade. Nesse sentido, Donzelot des-
titui tanto a altura — história das idéias — como também essa falsa

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profundidade — história das mentalidades — e elabora um método
capaz de apreender as singularidades próprias ao que acontece na
superfície das relações ou dos agenciamentos — práticas discursivas
e corporais — e que explicam as emergências de novas instituições
(como o nascimento do setor social, que no caso é a polícia das fa-
mílias) e de novas tecnologias de regulação. Na realidade, parece-
me que Donzelot destitui dois tipos de altura: uma que permanece
como altura transcendente aos corpos; outra que é projetada para o
interior do indivíduo e, introjetada por este, constitui uma falsa pro-
fundidade, a da mente psicológica.

Q U E S T Ã O — Platão e Aristóteles utilizam a via das alturas. Qual


a sua relação com a profundidade?

L U I Z F U G A N T I — Eles querem recalcar a profundidade mais e


mais e organizar uma superfície inteiramente submetida à ordem
dos modelos, através da parte boa da matéria, isto é, da parte dócil da
matéria que se deixa regular e limitar para tornar-se boa imagem ou
cópia. Platão concebe a profundidade como uma matéria louca e re-
belde — a parte má da matéria ou das imagens —, um devir enlou-
quecido que nega tanto o modelo das alturas como a cópia das su-
perfícies reguladas; a profundidade é um fluxo desmesurado, a hybris,
que quer insinuar-se na superfície em forma de simulacro, amea-
çando dissolver a ordem das cópias, os limites, as regulações harmô-
nicas da superfície organizada e voltada para o Bem. É por isso que
ele quer recalcar a profundidade e acorrentá-la nos confins das caver-

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nas da terra e dos oceanos, tal como os Titãs — encarnação do caos e
do mal — o foram. Nietzsche dirá, ao contrário, que nunca se pene-
tra o suficiente, pois atrás de uma caverna existem infinitas outras e o
que se descobre nesse mergulho não é a desordem, a ilusão, a
irrealidade como quer Platão, mas a exuberante riqueza e a fantástica
realidade deste mundo, reino do acaso e do imprevisível.
Diferente de Platão, os pré-socráticos se ligam apaixonadamente
aos elementos puros e corpóreos — o fogo, o ar, a terra, a água etc. Os
estóicos se inspiram neles, descartam o outro mundo do além e afir-
mam que só os corpos existem no presente cósmico. Para eles não há
um outro mundo real-Ideal das alturas na forma de modelo e este mun-
do da matéria, não há o além superior e o aquém defeituoso, como
acontece com Sócrates, Platão e Aristóteles. Só os corpos existem.
Mas vamos entender o que os estóicos chamam corpo. Os nos-
sos órgãos, nosso corpo organizado e individuado, são já efetuação
de outros corpos elementares ou afetivos, corpos sem órgãos. Os cor-
pos elementares são distribuídos em dois grandes princípios: maté-
ria passiva — que resiste — e qualidades ativas — que agem sobre a
matéria. O corpo, portanto, é definido como lugar de duas potên-
cias: paixão e ação. É similar ao que Spinoza, no século XVII, dirá
do corpo, compreendendo-o como potência de afetar e potência de
ser afetado. Ou Nietzsche, no século XIX, quando afirma que para
haver um corpo é preciso pelo menos uma composição de força ati-
va e força reativa.
Qual seria, nesse caso, a essência de um corpo? Para os estóicos
a essência será uma qualidade ativa, mas essa qualidade não é uma

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estrutura formal ou lógica, não é um modelo matemático universal
e sem vida, que possa existir separado da matéria — como Crisipo
denuncia com relação às Idéias platônicas e aos conceitos aristo-
télicos. Os estóicos pensarão a filosofia e a vida em termos biológi-
cos ou vitais e não em termos matemáticos e mecânicos, como Pla-
tão e Aristóteles. A essência de um corpo é definida como uma po-
tência, uma tensão ou, servindo-se do exemplo biológico da semente
e do ovo, ela é definida como um germe. Ora, todo germe quer ger-
minar, expandir-se, efetuar-se, produzir frutos (seres) no devir. Todo
corpo possui a sua própria essência, única, singular, nunca genérica
ou específica, mas diferente de todas as outras e até diferente de si
mesma, na medida em que se desenvolve no tempo — nos dois sen-
tidos simultâneos do tempo, passado e futuro. É por isso que a filo-
sofia estóica privilegia as diferenças e destitui as Idéias universais
ou as Identidades dos objetos gerais. Assim, se todo corpo possui
sua própria essência individual, não há lugar para os modelos ge-
néricos que viriam de fora dar-lhe um limite. O limite do corpo é
sempre exterior a ele, mas como efeito móvel ou flutuante de uma
potência produtiva interna que se quer cada vez mais longe de seu
começo. O que essa potência quer é sempre agir nas fronteiras, ul-
trapassar seus próprios limites, suas próprias formas, inventando no-
vas multiplicidades, novas maneiras de ser numa superfície em devir,
distendendo sempre mais o arco tenso do passado-futuro. Assim o
ser anômalo de que nos fala Canguilhem1 — nem normal, nem

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G. Canguilhem. O normal e o patológico.

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anormal, mas que escapa a toda referência normativa — vive sem-
pre na extremidade (formas extremas) de sua espécie (formas mé-
dias), vive na margem cuja travessia conduz à invenção de uma nova
forma de vida. Assim também o peixe de Leroi-Gourhan,2 que deri-
va das águas e salta para os pântanos, produzindo os anfíbios e rép-
teis. Do mesmo modo o Zaratustra de Nietzsche, que transmuta to-
dos os valores humanos e conduz o niilismo de sua espécie ao ex-
tremo, tornando-se prenúncio e ponte para o super-homem. Ou o
homo sapiens de Bergson, que ultrapassa a inteligência orgânica do
homo faber e devém intuição pura, pensamento sem órgão, liberto
do cérebro e da abstração sensível.

Q U E S T Ã O — Como os estóicos pensam o homem?

L U I Z F U G A N T I — Platão, Aristóteles e o Ocidente inteiro


humanizam a natureza e divinizam o homem. Louvam um homem
separado da natureza que habita as alturas superiores da representa-
ção. Em contrapartida, os estóicos desumanizam a natureza e natu-
ralizam o homem divinizado. Assim o homem também é a nature-
za. Sua essência deixa de ser uma forma divina para tornar-se uma
força da natureza. Entre a natureza e o homem não há mais distân-
cia. Para os estóicos, o homem, do ponto de vista do ser, não é supe-
rior a outros animais — por exemplo, não tem uma vida mais per-
feita do que a de uma ameba, não é mais ou menos perfeito ou real

2
A. Leroi-Gourhan. O gesto e a palavra, vol. 1.

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do que uma pulga ou uma gota d’água. Acontece que sempre se
imaginou o homem como a ‘fina-flor’ da criação! Uma fina-flor que
gosta muito de defecar e que tem espalhado muita merda na natu-
reza! Pior ainda, o homem é o único animal dentre todos que está
separado do que pode, o único que não efetua plenamente suas po-
tências porque criou para si muros e barreiras através de sua rede
de valores negativos e de sentidos reativos. Nessa via, e pelo respeito
que temos aos animais, é preciso dizer que o homem impotente se
revela o mais miserável e inferior dentre os seres vivos. Qualquer
carrapato leva suas potências ao máximo. É fácil constatar que o
homem médio conserva sua vida nos graus mais baixos de inten-
sidade, atrelado a valores vis que impõe a si próprio, prisioneiro
de um círculo vicioso gerado pelo movimento estéril de sua impo-
tência. A grande máscara do impotente se instala nele sob a forma
de juiz, quando se refugia na razão representativa para justificar sua
moralina.

Q U E S T Ã O — No caso de Aristóteles os desejos de abstração, de re-


presentação e de moralização seriam produção de uma linha, de um
tipo econômico de vida, de um tipo de organização política. No caso
estóico, como eles pensam a relação entre a moral e a natureza?

L U I Z F U G A N T I — Para os estóicos gregos, a natureza não é mo-


ral, nem regida por lei alguma, nem tampouco governada por um
plano divino, transcendente, nem por modelo algum. Se há uma
lei, esta lei é imanente à própria natureza. Tudo o que se pode falar

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é que a natureza movimenta-se produzindo misturas. Só os corpos
existem, mas existem em mistura contínua. E se os corpos se mis-
turam e se penetram mutuamente, eles estão em relação perma-
nente, estão sempre produzindo encontros. Tudo que existe, por-
tanto, são corpos compostos de qualidades ativas e matéria passiva,
ou seja, potência de afetar outros corpos (qualidades ativas) e po-
tência de ser afetado, de receber ação de outros corpos (matéria pas-
siva). Estas potências são em devir, estão em encontros, estão sendo
afetadas e afetando. O afeto é o encontro, ou melhor, se efetua no
encontro. Assim o fogo quando penetra o ferro: o primeiro avermelha
o segundo, mas sem haver perda de natureza de cada um — eles
permanecem fogo e ferro, irredutíveis. Ou como a água colocada e
depois retirada de um vaso. Ou ainda como uma gota de azeite co-
locada e depois retirada de um oceano. Desse modo, cada parte dos
corpos em mistura coexiste, sem que uma parte destrua a natureza
do outro corpo. Estas são as chamadas, pelos estóicos, boas mistu-
ras, nas quais os corpos não perdem a sua natureza, não se desinte-
gram. As más misturas são os encontros que nos envenenam, nos
decompõem, destroem a nossa natureza. Desse modo, só há encon-
tros que nos alimentam ou compõem com nossa natureza e en-
contros que nos envenenam ou decompõem. Isso funda uma ética
do ponto de vista das partes da natureza, mas não uma moral. A
diferença entre ética e moral é que a moral prescreve o que se deve
crer, pensar e fazer, sob um modelo ideal e perfeito do Bem; a ética,
diversamente, convida a agir e a pensar segundo o que um corpo
pode, de acordo com a potência da natureza que o atravessa. Mas se

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do ponto de vista das partes da natureza podemos falar em ética, do
ponto de vista exclusivamente da natureza não existe nenhuma par-
cialização do acaso que se possa considerar melhor ou pior, isto é,
não há bom ou mau encontro. Qualquer mistura é perfeita e expressa
a composição plenamente adequada do processo de encadeamento
universal das causas. Por exemplo: o incesto, o crime, o canibalis-
mo ou a antropofagia — tudo isso é admissível na natureza, ou me-
lhor, para a natureza isso não existe. Temos um quadro vivo dessas
misturas infernais nas tragédias de Sêneca. O sábio estóico é amoral
e impassível diante das tragédias humanas. Ele sabe que tudo o que
ocorre na profundidade da natureza é absolutamente perfeito.
Resumindo, a moral acredita que existe o bem e o mal em si: o
Bem e o Mal. Logo, se algo o envenena, é considerado mal em si; se
algo o alimenta, é bom em si mesmo. Os estóicos, ao contrário, afir-
mam que nenhuma coisa é boa ou má em si mesma. É boa ou má
unicamente do ponto de vista das partes que estão em jogo num
encontro. Um veneno para uma parte pode ser alimento para outra
e isso varia também de acordo com o momento e o lugar, isto é,
num determinado momento algo pode ser venenoso para um cor-
po, noutro tempo torna-se alimento para esse mesmo corpo. Bom e
mau dependem sempre da relação (onde não existe objeto geral ou
lei absoluta), e a relação se desenha na superfície — é o lugar dos
acontecimentos. Daí a necessidade da ética como potência de sele-
cionar os encontros que nos fortalecem e evitar os que podem nos
enfraquecer. A ética é seleção de superfície para melhor expandir a
profundidade.

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A ética para os estóicos é uma potência ativa que emerge no
corpo, para administrar a própria vida de dentro, e não um conjun-
to de proibições e deveres introjetados pelo indivíduo, a partir dos
modelos e prescrições produzidos por instâncias externas como um
Deus severo, um Estado sisudo ou um pai prepotente. A ética é um
saber das práticas ou das condutas que está colada à potência ou ao
germe que se desenvolve em nós. Ela é uma dimensão individual
que se instala entre a profundidade das misturas corpóreas e a su-
perfície dos acontecimentos incorporais e que governa ou adminis-
tra os afetos através dos encontros com os outros corpos. Um en-
contro, portanto, pode ser bom ou mau na medida em que nos for-
talece ou enfraquece.

Q U E S T Ã O — E os encontros que nos alimentam e também nos en-


venenam?

L U I Z F U G A N T I — Esta é uma grande questão e, para tratá-la


devidamente, precisaríamos de mais tempo. Mas você poderá en-
tender este problema lendo o livro IV da Ética de Spinoza,3 no qual
ele define a servidão humana mais ou menos assim: sou servo na
medida em que sei o que quero mas sempre faço o que não quero.
Esta dualidade interior entre o querer e os atos, que caracteriza a
servidão, se manifesta na ausência de uma ética, isto é, na impotên-
cia do homem para governar seus sentimentos. É que o homem sub-

3
B. Spinoza. Oeuvres complètes (Éthique).

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metido aos sentimentos não depende de si mesmo, mas da sorte dos
encontros. Está ao sabor do acaso, cujo poder sobre ele o constrange
freqüentemente a fazer o pior, mesmo quando ele quer o melhor.
Como diz Spinoza, a servidão se instala no homem quando sua alma
flutua ao sabor da fortuna.

Q U E S T Ã O — Os estóicos dizem que a ética vai administrar a vida?

L U I Z F U G A N T I — A ética é uma força interna que se duplica,


ou melhor, constitui-se num combate interno de forças que forjam
uma dobra, uma volta para si mesmo, um domínio de si; é uma
potência interna que conquista uma dimensão autônoma e que se
instala como uma dobra ligando superfície e profundidade. Esta di-
mensão interna é produto da própria potência e do pensamento de
um corpo. E é nesse sentido que a ética vai administrar e orientar
os afetos do corpo. É a nossa natureza profunda e desdobrada que
administrará a si mesma, que saberá avaliar e selecionar os encon-
tros que a fortalecem ou não nas relações consigo e com os outros.
Mas para constituir uma ética e tornar-se capaz de selecionar
os encontros é preciso pensar. E pensar não é imaginar. Não se com-
preende pela imaginação. É preciso ultrapassar a imaginação, a cons-
ciência e os órgãos, porque as próprias imagens já são nossa cons-
ciência como produto, e nossos órgãos são produtos dos afetos pro-
fundos. Aqui — como diz Artaud — o corpo não tem órgãos e não
se submete a eles, e o pensamento não se submete à consciência ou
à imaginação. As imagens são a nossa própria consciência, mas elas

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não entendem nada, são apenas marcas que recebemos em nossos
encontros. Quando não ultrapassamos a imagem ou a marca — afir-
ma Spinoza — não entendemos a natureza do outro corpo que nos
marcou nem a do nosso próprio corpo. Como diz Nietzsche, a cons-
ciência é inteiramente ignorante para avaliar ou interpretar, ela não
pensa, pois é apenas um sintoma do estado das relações de forças. A
única coisa que a imagem ou a consciência revela é o estado em
que o corpo está e nada mais. Se permanecermos na imaginação, o
sentimento de um encontro poderá ser bom ou ruim ao sabor do
delírio e, dependendo desse parecer, vai ocorrer a aceitação ou não
do encontro, mas sem termos potência e liberdade para decidir de
fato, uma vez que não há entendimento real. É desse modo, enquanto
prisioneiros da imaginação, que somos constrangidos a agir pelo que
o acaso nos impõe. Como são freqüentes entre os homens as ‘deci-
sões’ precipitadas! ‘Pensa-se’ um encontro como sendo bom, mas o
tempo subitamente o desmascara, mostrando o quanto era nocivo.
Ou vice-versa.

Q U E S T Ã O — As marcas vão surgir de um encontro. De onde vem


o entendimento, se não vem disso?

L U I Z F U G A N T I — O entendimento vem da nossa potência de


avaliar e interpretar as relações que efetuam e exteriorizam nossa
profundidade. Pensar é pensar as causas e estas são quantidades de
energia, graus de potência que produzem e se expressam nos mo-
dos de efetuação. A profundidade das causas ou dos afetos se ex-

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pressa na superfície e ilumina os acontecimentos que se produzem
nela. A superfície é tecida pelas relações e povoada pelos aconteci-
mentos. O entendimento tem por objeto o modo de ser, isto é, a
maneira como um afeto virtual pode se atualizar. Pensar é proble-
matizar as relações afetivas ou o modo de ser dos afetos e selecionar
a forma ou a máscara que o efetua com maior sucesso, que o con-
duz mais longe, ao máximo de sua potência de expansão. O enten-
dimento jamais vem das marcas — estas constituem, no máximo,
índices ou pistas que conduzem aos estados de corpo —, mas vem
da luminosidade própria da profundidade que brilha com toda in-
tensidade na superfície dos encontros. A potência seletiva — a ca-
pacidade de selecionar os encontros que nos fortalecem e de evitar
os que nos enfraquecem — constitui uma economia de energia ou
uma autêntica economia do desejo, comandada pelo pensamento
afirmativo. A impecabilidade de um guerreiro — diz Don Juan, nas
obras de Castañeda — consiste em não desperdiçar energia, mas
canalizá-la para investi-la nas coisas mais nobres da vida. Isso se
consegue, não por uma linguagem de idéias abstratas, não por um
juízo da razão que sobrevoe os acontecimentos, mas por uma von-
tade que quer o acontecimento, que quer algo no que acontece, a
intensidade que duplica e multiplica um corpo aumentando sua
potência de afetar e ser afetado. Essa capacidade de seleção vem do
pensamento real do corpo como multiplicidade de afetos virtuais
(causas ativas) e dos encontros que ele faz como maneiras de atua-
lizar e realizar esses afetos. Nietzsche dá um critério prático de se-
leção: ao querer um acontecimento, queira-o de modo a desejar

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que ele se repita infinitas vezes, queira o seu eterno retorno. Este
desejo é o desejo de um corpo sem órgãos — puro campo afetivo de
intensidades — e de um pensamento sem marcas, livre da cons-
ciência.

Q U E S T Ã O — O que é o desejo?

L U I Z F U G A N T I — O desejo é causa ativa. Ele é encontro das


causas, é aliança das qualidades ativas. Só há desejo quando aconte-
ce o agenciamento dessas potências afetivas. O desejo é o próprio
agenciamento ou relação. É por isso que você pode afirmar que ao
desejo nada falta, seus objetos não são fantasmas, nem tampouco
ele os produz. O desejo não é uma consciência da falta marcada por
um signo, que revelaria a presença da ausência do objeto desejado.
O desejo não é Édipo, não é uma asma infinita, uma sofreguidão
sem fim que emerge no nada da falta. Ao desejo nada falta, ele é
pleno de si mesmo, pois não existe previamente ao seu objeto, mas
nasce simultaneamente com seu duplo objeto. O desejo emerge no
meio; é um elemento relacional, uma liga de fluxos. Se ele tem ob-
jeto, este é o próprio fluxo. O desejo não se aloja na ‘substância’ de
qualquer dos termos ligados por ele.

Q U E S T Ã O — Na medida em que você agencia um encontro bom. . .

L U I Z F U G A N T I — . . . então tem desejo. Se você não faz agen-


ciamento, não há desejo. Essa potência dos corpos para agenciar e

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para se efetuar é o que os torna livres. Ela quer ligar-se à pluralidade
do mundo, tem paixão por multiplicidades, pois é isso que a enri-
quece, a diferencia, a multiplica. A liberdade de um corpo revela-se
na potência que tem para atualizar seus afetos, para ser a causa e a
fonte deles. A liberdade não consiste em evitar o mal e ligar-se ao
bem, pois — como nota Spinoza — não nos ligamos a alguma coi-
sa porque é boa, mas alguma coisa é boa porque nos ligamos a ela,
desde que estejamos no entendimento. A liberdade tampouco con-
siste em uma idéia abstrata como aquela contida nos ideais que a
Revolução Francesa proclamou no final do século XVIII — liber-
dade, igualdade e fraternidade. Tais ideais não passam de mecanis-
mos de dominação e captura do desejo e das diferenças. Sade e tam-
bém Klossowsky, referindo-se aos valores da Revolução Francesa,
observam que se pretende submeter o desejo e o pensamento a uma
vontade geral de lei que quer limitar e proibir as potências indivi-
duais. Não é a ascensão do indivíduo que se institui aí, mas o res-
sentimento e a vingança contra sua possível soberania efetiva.
Os homens não são iguais. O que os torna admiráveis e interes-
santes são suas diferenças. A fraternidade é um sentimento huma-
nista, piedoso, um amor pelas fraquezas e impotências do próximo,
o que revela, no fundo, a piedade que sentimos por nossas próprias
debilidades. Ela mascara a vontade de um contágio geral para fazer
triunfar a fraqueza, porque no atual estado de civilização já não se
pode suportar um indivíduo ativo, livre, forte e soberano. O Estado
soube interromper o processo da cultura pré-histórica. E o Estado
dito democrático não é exceção. A liberdade que proclama é uma

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idéia que procura esconder, em sua abstração, o veneno que carre-
ga. Os liberais apregoam que ela é inseparável do direito à proprie-
dade. E os juristas e moralistas pretendem que a liberdade de um
homem termine onde comece a de outro. Que engodo! A liberdade
não tem nada a ver com outrem, ela remete a um campo de
imanência das potências do próprio corpo. E para completar, vem
Kant nos dizer que só somos livres quando nos identificamos a uma
pura forma de lei, isto é, quando nos tornamos sujeitos legislado-
res. Mas que sujeito é esse que precisa interiorizar um imperativo
categórico e tornar suas ações desinteressadas? Não vemos aí mais
que um escravo miserável da moral, uma bela alma assujeitada em
seus desejos e pensamentos, que acredita que a natureza e seu pró-
prio corpo são puro caos e que a razão que traz na alma deve orde-
ná-los. A questão da propriedade reputada como essencial à liber-
dade nos indica o sintoma de alguém que está separado de seu po-
der e busca uma escora na segurança da posse exterior, já que o in-
terior está encerrado e neutralizado pela moral.
Segundo os estóicos, a liberdade se concretiza quando um cor-
po efetua sua potência ou suas qualidades e se mantém impassível
diante do que acontece. Em Platão, essas qualidades eram proprie-
dades dos modelos. As Idéias — modelos em si — têm algo que a
elas é atribuído a priori. Elas possuem as qualidades puras em pri-
meiro lugar. Os estóicos, diversamente, afirmam que essas qualida-
des são potências primeiras, livres, que atravessam nosso próprio cor-
po — forças desprovidas de modelo ou de pai —, são nosso próprio
corpo e não pertencem a nenhuma Idéia ou a um modelo genérico.

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São qualidades microfísicas e não metafísicas. Os estóicos fundam
uma microfísica e uma ética, em contraposição ao pensamento da
metafísica, da representação e da moral. Não há mais uma moral do
dever, mas uma ética do poder. Um corpo não deve imitar um mo-
delo ou obedecer a um fim, ele faz aquilo que pode e que o torna
alegre, aquilo que aumenta sua capacidade de agir e pensar. Esta se-
ria uma ética do desejo e do pensamento nômades.

Q U E S T Ã O — E a propriedade?

L U I Z F U G A N T I — A propriedade significa, nesse caso, você ter


a sua vida nas próprias mãos; a vida e não um objeto material ou
uma qualidade copiada. Então deixa de ser propriedade no sentido
ordinário, uma vez que a posse é posse da sua natureza; se você não
é essa natureza, se você não se colar a ela e não tomá-la em suas
próprias mãos, você não existe por si, mas acaba assujeitado e so-
bredeterminado por outras potências mortíferas. Os estóicos não
concebem essas qualidades ativas separadas da matéria passiva. Ao
contrário de Platão e Aristóteles, para os quais a alma está separada
do corpo, os estóicos sabem que uma essência não pode se efetuar
se não estiver ligada a uma matéria. Como observa Bergson, o espí-
rito vive na matéria. Mas tal matéria não é uma possibilidade para
receber formas como em Aristóteles, mas uma potência de resis-
tência e de composição.
Voltando ao dinamismo dos corpos, dizíamos que eles se mis-
turam, se encontram. Esses encontros deixam marcas. É preciso en-

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tender melhor esse processo e para isso seria bom falarmos alguma
coisa sobre a concepção estóica da alma e do conhecimento. Aquilo
que dizíamos da essência do corpo, na verdade é a própria alma para
os estóicos. Eles a definem como um sopro vital, um pneuma, um
elã, uma tensão do fogo primordial, mas de modo algum estaria se-
parada do corpo. A alma é corpo — eis a transmutação radical a
que os estóicos submetem a filosofia. Todas as virtudes da alma tam-
bém passam a ser vividas e compreendidas como corpo. Antíste-
nes, o cínico, já se deliciava encolerizando Platão, ao afirmar que a
virtude era um corpo. Um argumento de Crisipo, para reforçar tal
atitude, dizia que a vergonha é corpo, pois o homem que a sente en-
rubesce; do mesmo modo o medo, pois o homem tomado pelo te-
mor empalidece e treme. E contra as doutrinas de Platão e Aris-
tóteles, afirmava que a alma — o pneuma — é um corpo, caso
contrário, não teria nenhuma influência sobre ele e as virtudes nada
poderiam, pois o corpo só pode ser movido por algo da mesma na-
tureza que ele, isto é, outro corpo.
Aquilo que é marcado no corpo é a própria alma ou pneuma.
Num encontro de corpos, a alma de um sofre a impressão da ação
do outro e vice-versa, assim como um sulco produzido na cera
aquecida. Essa impressão ou marca é o que os estóicos chamarão de
representação sensível das imagens. Esta representação é inteiramen-
te corpórea e trará, a cada impressão, uma imagem compreensiva.
Noutros termos, a aparência deixa de ser puramente negativa, como
em Platão, para trazer consigo uma certa sabedoria, um tipo de co-
nhecimento. É que alguma coisa se revela nessa aparência, algum

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sentido que emana da profundidade do corpo que dela é causa. Se-
ria uma primeira instância de conhecimento — conhecimento do
corpo sensível. Uma outra distinção é pensada por eles com relação
à razão. Esta é concebida também como corpo e diz respeito às no-
ções comuns que criamos na posse da representação racional. Tais
noções referem-se à síntese das experiências vividas que produzi-
mos. São frutos de uma razão da experiência que se repete e da qual
tiramos ensinamentos, noções comuns.
Mas os estóicos não param aí; eles descobrirão uma nova fron-
teira, a superfície, e encontrarão o objeto próprio do pensamento
para essa nova dimensão: a ciência dos acontecimentos. Aí está seu
grande gênio e originalidade. Os estóicos vão fundar a superfície não
mais física, mas metafísica que, porém, não se confunde com a al-
tura. Quando dizem que os corpos se encontram, dizem também
que eles são causas — não causas uns dos outros, mas causas de
efeitos de outra natureza que os corpos, efeitos incorporais. Os se-
res, quando se encontram, geram uma centelha, fazem emergir um
extra-ser, algo que não existe — porque só o que existe são os cor-
pos — mas que não deixa de ser real; algo que se atribui aos corpos
mas que não se confunde com as qualidades corpóreas ou estados
de corpos; algo que não se pode tocar mas que o pensamento é ca-
paz de apreender; algo que não é 1inguagem mas que, como diz
Deleuze, funda a expressão e vive através dela.
Tais entidades sem existência são atributos ou acontecimentos
incorporais, são realidades virtuais que atravessam o tempo inatual,
avançando sempre em direção ao passado e ao futuro, simultanea-

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mente; um tempo que sempre se esquiva ao presente e que os estói-
cos denominam Aion. Para termos uma breve noção do atributo
incorporal, diremos que ele tem duas faces: uma que se atribui ao
corpo como acontecimento e outra que se expressa na linguagem
como sentido. Vejamos um exemplo com relação à linguagem: su-
ponhamos que um brasileiro se encontre na Alemanha e, não com-
preendendo a língua alemã, ouça a palavra stuhl (cadeira); ele tem a
representação sensível ou a imagem visual da cadeira, sabe o que é
uma cadeira, mas nada compreende da palavra que ouviu além do
seu som cadenciado, porque o som também é um corpo; então ele
tem também a representação sensível da palavra, mas apenas como
um som corpóreo, uma imagem sonora ou significante; o que falta
a ele é o significado, ou seja, algo que não se confunde com o signi-
ficante sonoro corporal, mas que o torna compreensível; e o que
constitui o significado é o sentido incorporal, que difere em nature-
za tanto em relação ao corpo, como em relação à linguagem. É este
atributo incorporal que permite compreendermos, por exemplo,
uma palavra. Ele é sempre aquilo que acontece ao corpo e torna-se
expresso na linguagem. Se eu digo: “Malaquias está correndo”, e al-
guém diz “peguem o Malaquias!”; reparem bem, esse alguém não
disse “peguem o correndo!”, mas “peguem o Malaquias”, que está
correndo. O que seria o correndo? Seria uma ‘entidade’ incorpórea,
um extra-ser; não um ser, mas uma maneira de ser, um aconteci-
mento que se atribui ao ser e lhe dá sentido. Esta diferença de na-
tureza entre o corpo e o acontecimento que se atribui a ele será
condição de todo pensamento que mantém a irredutibilidade das

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diferenças puras e das multiplicidades qualitativas. Esta diferença
constitui a realidade da distinção formal. Os corpos são dotados de
múltiplos atributos incorporais. Mas essencialmente são dois os
incorporais puros: o vazio e o tempo. O vazio é infinito e circunda
eternamente os corpos. Um dos argumentos estóicos para provar a
realidade do vazio é o de que, se não fosse real, os corpos não se
moveriam; e no entanto afirmam que, apesar do vazio ser real, ele
não existe. Do mesmo modo, o tempo que eles chamam Aion não
existe, mas é real. O tempo é uma linha infinita nas duas extremi-
dades do passado e do futuro e se atribui eternamente aos corpos.
Só o presente existe no tempo, porque é o presente dos corpos. Só
os corpos ocupam um lugar no vazio e existem no tempo presente
— no Cronos. Na relação do corpo com o vazio — incorporal puro
— vai emergir um efeito incorporal: o lugar. Na relação do corpo
com o tempo — incorporal puro — vai emergir outro efeito in-
corporal: o acontecimento. Lugar e acontecimento são eternos atri-
butos dos corpos. Não há sequer um só corpo nesse universo que
não seja envolvido por esses dois atributos incorporais, isto é, que
não esteja ocupando um lugar (aqui) e que não esteja acontecendo
(agora) — hic et nunc. São as duas maneiras de ser fundamentais de
um corpo. Esses incorporais sofrem uma multiplicação, uma par-
cialização, quando são atravessados pela multiplicidade de forças e
tensões que compõem o universo corpóreo. É fácil compreender isso
quando se pensa nos infinitivos: amar, andar, dormir, brincar, can-
tar, dançar, cair, saltar etc. Todas estas expressões são maneiras de
ser, acontecimentos incorporais que se atribuem aos corpos e que

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atravessam a linguagem como sentidos expressos. São as parcia-
lizações ou os múltiplos sentidos do único acontecimento que é o
tempo.
Assim, os efeitos incorporais não são seres, são maneiras de ser.
Então um corpo pode, por ser dotado de uma infinidade de atribu-
tos incorporais, viver e efetuar a sua natureza de diversas maneiras.
Não se pode dizer que um funcionário público, para dar um exem-
plo banal, tenha uma vocação inata para a função que exerce. Na
verdade, isso é apenas um atributo incorporal fixado nele, um códi-
go e um sentido de mundo produzidos e cristalizados em seu corpo
por um outro corpo, o corpo do Estado.
Os estóicos vão dizer que só os corpos agem e padecem. Se os
atributos incorporais não são obviamente corpos, eles nem agem
nem padecem, ou seja, são impassíveis. Logo, os incorporais não são
modelos capazes de prescrever o que um corpo deve ou não fazer.
Podemos ver o tombo das Idéias platônicas e das formas aris-
totélicas. Elas caem das alturas para a superfície e se tornam esté-
reis. São engolidas pelo devir do tempo que as embaralha na dupla
abertura de sua linha, destituindo o bom senso e elegendo o para-
doxo como paixão do pensamento. Assim elas perdem a eminência
de modelos juntamente com sua função de ditar o que um corpo
deve fazer. Perdem, sobretudo, a função de representar e substituir
as coisas assim como seu estatuto de causas da ordem e essência
dos seres. Qualquer idéia ou forma é apenas uma maneira de um
corpo ser, um modo de expressão da potência do corpo. Tudo para
os estóicos acontece entre forças. São as forças que se apoderam de

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outras nos encontros que fazem e impõem um sentido de efetuação
para as forças dominadas.

Q U E S T Ã O — Poderíamos dizer que os atributos seriam uma pos-


sibilidade dos corpos?

L U I Z F U G A N T I — Esta questão é um pouco complicada, pois


Aristóteles também fala em possibilidade. Na verdade, os estóicos
liberam outra coisa: a virtualidade. Esta é real, não possível. Para
Aristóteles — que confunde existência e realidade — o real existe e
o possível é um não-existente, eles estão em planos distintos. Os
estóicos, diversamente, afirmam que o virtual — que também não
existe atualmente — não é menos real do que a realidade atual do
corpo. Mas se a noção de possibilidade facilitar o entendimento pode-
se usá-la, desde que seu uso seja limitado ao campo do existente.

Q U E S T Ã O — O sentido do poder ser não necessariamente é?

L U I Z F U G A N T I — Se você o entende como possibilidade do ser,


ele não é necessário, é um possível que pode se realizar ou não. Mas
se você o entende como uma potência virtual do ser, então ele é
necessário como realidade. Essa realidade, contudo, não implica sua
atualidade, sua efetuação no presente dos corpos, uma vez que pode
permanecer como realidade virtual. O sentido virtual ou uma de-
terminada maneira de ser só ganha atualidade se ocorrer um agen-
ciamento de corpos, isto é, se emergir o desejo. Sem agenciamento,

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a virtualidade não passa à existência. Toda produção de realidade
vem da invenção que agencia desejo e pensamento. Como diz
Bergson, se não inventamos, estamos fadados à reprodução. A pro-
dução só acontece com agenciamentos inéditos.

Q U E S T Ã O — Sejam eles bons agenciamentos ou não?

L U I Z F U G A N T I — Haverá produção — do ponto de vista das


partes — somente nos bons agenciamentos, pois neles ocorre um
acoplamento, uma composição e não uma decomposição. Sob a pers-
pectiva das partes a composição produz seres e a decomposição pro-
duz deveres (não-seres). Nesse sentido, só há composição na me-
dida em que você fizer bons encontros, encontros alegres. Em ou-
tros termos, ligue-se às paixões alegres e não às tristes, porque são
elas que vão liberar a ação em nós, tornando-nos ativos e criado-
res. Entidades como o Estado, a família, as igrejas, as instituições
moralistas de um modo geral, despertam em nós paixões tristes, que-
rem-nos impotentes, dependentes e obedientes, para servirmos vo-
luntariamente aos seus interesses. É a finalidade mesma destas es-
truturas. Um homem livre, potente e alegre não serve a nenhuma
entidade externa e, sobretudo, torna-se o inimigo mais poderoso de
tais instituições. Nenhum atributo incorporal é fixado nele para
assujeitá-lo. Ele é artista e por isso mesmo cria seus próprios atri-
butos como maneiras alegres e intensas de viver.
Um mundo próprio não existe antes de ser inventado. Tais atri-
butos emergem e desaparecem como brinquedos na efemeridade

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da passagem, do devir. Nenhum atributo incorporal pode narrar a
natureza de um corpo. A identidade do sujeito é destroçada. E esse
é, como diz Deleuze comentando Nietzsche, o mais inocente dos
crimes, a mais alegre das destruições. As Idéias não narram mais a
nossa natureza, elas tornam-se modos de o ser realizar-se, uma vez
que o corpo é atravessado por uma multiplicidade de atributos in-
corporais capazes de efetuar a sua natureza. Por exemplo: fui crian-
ça, adolescente, sou adulto agora e vou me tornar velho, mas ne-
nhum destes estados ou passagens caracterizam uma identidade da
minha natureza, pois eles são apenas extra-seres, puras maneiras de
efetuação do corpo, e não se confundem com o ser profundo do
corpo. O corpo cria suas próprias maneiras de se atualizar como re-
gras singulares de passagem, para falar ao modo de Hume, e não
como leis imutáveis e universais. O Estado, a razão ou a ciência, a
moral ou a lei, pretendem sempre definir e limitar a essência de
alguma coisa por idéias modelares e fixação de atributos — o cará-
ter — e essa coisa deve ser conduzida a obedecer a tal definição para
que funcione segundo os interesses de quem a classificou. Se a coi-
sa agir contrariamente à definição, transgredindo os limites impos-
tos por ela, vai acabar caindo na maldição. Assim acontece quando
ouvimos atribuições tais como fora da lei, imoral, criminoso, lou-
co, ladrão, irracional, doente mental, perverso, marginal, excêntri-
co, desajustado, incestuoso, adúltero e tantas outras conhecidas. São
as práticas do poder instituído numa sociedade que pretendem fi-
xar o corpo a um atributo incorporal, congelá-lo numa máscara que
melhor sirva aos interesses dominantes, capturando assim a vida,

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separando-a do que ela pode. Aquele que acreditar está perdido! E
os homens freqüentemente acreditam, porque eles não ultrapassam
o domínio da consciência, da imaginação e dos órgãos, não entram
num real entendimento. Os homens que se submetem e acreditam
nisso definitivamente não pensam. Talvez, no máximo, eles tenham
razão, mas a razão é uma instituição fundada na imaginação e que
só funciona porque está ancorada e assegurada por forças políticas
reativas, por uma máquina de morte montada para produzir os cor-
pos que a fazem funcionar desse modo. E enquanto funcionar as-
sim, o homem estará num beco sem saída. Diz D. H. Lawrence: o
espírito santo da vida o terá abandonado para investir em seres me-
nos contaminados e com mais futuro sobre a terra.

Q U E S T Ã O — A esperança é uma paixão triste?

L U I Z F U G A N T I — Sim. Segundo Spinoza, as duas paixões mais


estimuladas pelo Estado são a esperança e o medo. A esperança nas-
ce de uma crença inconstante na emergência de um futuro favorá-
vel mas duvidoso. É evidente que o indivíduo que espera não age.
Ele é impotente para produzir o próprio futuro. A esperança e o
medo são, sem dúvida, paixões tristes. E se constituem nas piores
paixões, na medida em que são estimuladas e provocadas pelo Esta-
do como mecanismos de captura e controle do desejo, na articula-
ção com a recompensa e o castigo. O Estado ameaça: se você não
obedecer, tudo se desorganizará, vão ocorrer catástrofes, advirão a
fome, as pestes e o caos, enfim, o medo dos castigos o invadirá, e, de

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fato, você deve temê-los; se você obedecer, pode ter esperança que
as recompensas virão. O temor dos castigos e a esperança das
recompensas — são essas as paixões tristes que mais servem aos Es-
tados e às religiões. O Estado determina os prêmios para os submis-
sos e os castigos para os transgressores. Esse mecanismo funciona
montado no reconhecimento. Logo, todo homem que está subme-
tido ao reconhecimento, que suplica elogios para viver, é prisionei-
ro das recompensas e dos castigos. E quão nossa ainda é essa es-
trutura!
Nietzsche irá se insurgir contra outra paixão que ele acredita
ser ainda mais sórdida e triste: a piedade, o sentimento que mais
produz doença, que mais enfraquece e, além disso, mata. Assim
morreu Deus, sufocado pelo seu amor piedoso para com os homens
fracos. Até um ser como Zaratustra, anunciador do super-homem,
hesita e corre o maior de todos os perigos quando é tomado de pie-
dade pela debilidade dos homens superiores que o assediam em sua
caverna. É que, para Nietzsche, o humano em nós deve morrer, deve
ser destruído, para que a vida ativa e afirmativa triunfe. E a piedade,
que é o contrário da crueldade tão exaltada em sua obra, quer pre-
servar a doença, a miséria, a fraqueza, prolongando as existências
moribundas sobre a terra. O que caracteriza o homem são seus va-
lores negativos e sua vida reativa, prisioneira da conservação e so-
bretudo da culpa. A natureza humana, exaustivamente definida por
filósofos e teólogos, para Nietzsche não passa de um mal-enten-
dido, uma grande fraude, um erro demasiado longo. Tal natureza
humana é uma ficção que ganhou corpo pela concretude do res-

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sentimento e da má consciência. Foi uma vontade de negar que in-
ventou um Deus-pessoa e foram as forças reativas que antropomor-
fizaram a natureza, depreciando-a e aniquilando a vida. Quando
Nietzsche diz que é preciso destruir o homem, um amontoado de
mal-entendidos é evocado numa tagarelice sem fim. Mas é sempre
o mesmo sintoma — o da piedade que se agarra à fraqueza para
salvá-lo. Destruir o homem não significa dar um tiro na cabeça, mas
combater o que há de reativo e negativo em nós, transmutar os va-
lores humanos para libertar a natureza em nós, libertar o nosso in-
consciente do ressentimento (“a culpa é tua”) e da má consciência
(“minha máxima culpa”), Édipo moderno. As três figuras que cons-
tituem os vários momentos do niilismo humano são, para Nietzsche,
o ressentimento, a má consciência e o ideal ascético, seus inimigos
definitivos.

Q U E S T Ã O — E as crianças?

L U I Z F U G A N T I — A criança é pura potência de afetar e ser afe-


tada. Ela está aberta para as multiplicidades do mundo. Mas em nos-
sa sociedade, a criança está, desde o nascimento, prisioneira do cír-
culo papai-mamãe-Édipo da família nuclear burguesa. A primeira
doença que se inocula na criança é Édipo. Seu pecado original? Sen-
timentos parricidas e incestuosos.
Além disso, há o que Donzelot chamou de polícia das famílias,
o setor social com suas assistentes, seus conselheiros, seus notáveis
filantropos, que estão em conexão direta com a máquina política

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do Estado, da escola, das creches, da Igreja, da medicina, da institui-
ção jurídica. Toda essa parafernália procura envolver a criança numa
rede de produção de subjetividade introjetando valores, fixando nela
atributos incorporais, determinando funções, com o objetivo de
construir uma alma submissa e um corpo docilizado a serviço dos
interesses em jogo. De fato, é próprio da sociedade moderna a in-
venção de dispositivos os mais sutis com a função de produzirem
almas e corpos disciplinados e controláveis. O próprio conceito de
criança, sua ‘definição’, sua ‘essência’ — como nota Philippe Ariès
—, é uma invenção recente que tem uma função precisa: conduzi-
la ao status de homem com vontade livre e senso de responsabilida-
de pelos seus atos, sem perder de vista o atributo que lhe foi fixado e
ao qual está ‘predestinado’.

Q U E S T Ã O — E a educação da criança?

L U I Z F U G A N T I — Seria um grande avanço se perdêssemos a


ilusão com a educação, pelo menos com o tipo de práticas pedagó-
gicas instituídas em nossa sociedade. Parece evidente que a educa-
ção é uma peça-chave na máquina de morte montada pelo conjun-
to de saberes do Ocidente. Porque se a educação fosse uma prática
para tornar os espíritos livres, não estaria centrada na obediência,
mas no pensamento. Na escola não se ensina e nem se informa coi-
sa alguma, passam-se apenas palavras de ordem que, como diz Ca-
netti, trazem consigo uma sentença de morte.

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Q U E S T Ã O — É o que Canetti diz dos aguilhões que a mãe passa
para o filho. . .

L U I Z F U G A N T I — Sim, também. Porque a educação já começa


com a mãe que, nesse caso, é cúmplice do sistema de regras sociais.
Ocorre então que um ser ainda indefeso, que está aberto a toda
multiplicidade de afetos, que quer mergulhar no universo que o en-
volve, que tem sede de aventuras e descobertas, vai começar a se fe-
char em uma forma absolutamente morta, através da qual ele atra-
vessará e esmagará sua vida para que a máquina funcione.

Q U E S T Ã O — E uma educação feita via pensamento?

L U I Z F U G A N T I — Uma educação centrada no pensamento não


prescreve regras absolutas nem proibições definitivas. Ela orienta e
desperta a vida, estimula as multiplicidades, não para esmagá-las,
mas para exercitar o corpo e o pensamento a vivenciar os seus limi-
tes e ultrapassá-los. Uma tal educação deseja que a vida seja forte,
que o corpo e o pensamento aumentem suas potências de agir e
pensar e aprendam o quanto antes a conviver com os perigos e de-
sejar o desconhecido. Ela lapida as potências da vida para expandi-
las. Exercita o corpo e o pensamento para conhecer cada vez mais o
que podem e superar o que ainda não podem. Tal prática pedagógi-
ca — se é que ainda a podemos chamar assim, já que em nada se
assemelha à prática educacional estabelecida — procura afirmar as
diferenças, criando o desejo e o amor pelo distante, amor pelo devir,

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amor pelas aventuras, pela viagem nômade que se faz não no espa-
ço, mas no tempo. Ela prepara o corpo e o espírito para enfrentar as
turbulências do acaso e os riscos do imprevisível, coisas que só as
vidas nômades conhecem e têm força para enfrentar, porque são ca-
pazes de respeitar e admirar tudo que é estranho, as diferenças e as
intensidades livres, os mistérios e as maravilhas da vida.
Uma educação centrada no pensamento afirmativo da vida é
sobretudo cruel, ao contrário da pedagogia piedosa e vingativa. É
cruel com o corpo e com o espírito, não porque quer arruiná-los
mas, ao contrário, porque quer vê-los fortes, ousados e poderosos,
deseja vê-los capazes de enfrentar qualquer acontecimento e de ca-
minhar livres, com a sabedoria alegre do riso. Talvez tudo o que tal
educação deseje seja preparar vidas que se tornem capazes de rir. Só
as vidas corajosas riem de fato e jamais se arrependem ou se ressen-
tem do seu passado — porque não temem o acaso, tampouco o acu-
sam, não querem dividi-lo covardemente entre o Bem e o Mal. É
possível que um homem de tal calibre se encontre com a loucura,
mas não deixaria de ser uma ‘grande loucura’ ou, para usar as pala-
vras de Nietzsche, uma ‘grande saúde’. Tentar ligar outra vez o desejo
e o pensamento, não com piedade, mas com crueldade.
Essa educação ainda está por ser inventada. É preciso restabe-
lecer a fabulação. Não a esperança. Fabular! Ousar uma vida dife-
rente, arriscar novas maneiras de viver e de pensar. Fabular nada
tem a ver com fabricar ilusões. A concretude da vida, sobretudo das
vidas alegres, começa pela potência simulacro. É preciso começar a
habitar realmente este universo. É preciso que os homens acordem.

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Não todos, é claro, mas pelo menos alguns, porque sabemos que
muitos — talvez a maioria — vão continuar dormindo, pior, dese-
jam continuar dormindo; e com relação a estes, não os perturbe-
mos, desejemos que seu sono seja leve, porém definitivo. Mas para
quem experimenta, em vigília, o fantástico no real, sim, estes com-
preendem a palavra invenção. Sabem que não há mundo pronto. O
mundo que os homens chamam real não existe. A realidade não é
algo acabado cujo peso devemos carregar. Mundo real? É preciso que
o inventemos. A realidade é produção desejante, não acomodação
resignante. A adaptação a uma suposta realidade já configurada é
uma tendência própria daqueles que gostam de se conservar, de se
preservar, de se proteger; é a inércia preferida pelos corpos impoten-
tes cujo desejo faliu e que precisam se garantir contra o devir, na
estupidez do modo de vida burguês. As vidas ativas, ao contrário,
não acreditam na adaptação a uma suposta unidade ou substância
do real, mas na criação de multiplicidades singulares moventes,
onde nenhum fundamento paralisador subsiste. Elas se movem no
seio da metamorfose eterna, enquanto artistas sem identidade. O
indivíduo deixa de ter uma substância — o eu pessoal é demoli-
do, o nome próprio emerge para designar intensidades nômades.
Eu não sou eu, sou nós, sou uma natureza múltipla, sou uma plurali-
dade de forças, uma composição de afetos diversos que tecem o cor-
po. Nessas condições, dissolvem-se a identidade do eu e a semelhan-
ça ao tu.
Não somos iguais perante qualquer lei nem tampouco seme-
lhantes uns aos outros. Tudo o que nos cabe como artistas é afirmar

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nossa própria diferença e as diferenças de tudo o que nos cerca ou
nos afeta. Não há uma lei transcendente à vida que ordene nosso
ser ou nossa maneira de agir à qual devemos obedecer. Tudo o que
a vida e o acaso exigem de nós é que sejamos fortes, isto é, que
saibamos selecionar nossos encontros e produzir, a partir de nós
mesmos, os agenciamentos que nos fortaleçam para que sejamos
dignos da beleza desse universo, para que possamos jogar com de-
senvoltura e liberdade e criar novas constelações, novos calidoscó-
pios, novas diferenças, novos brinquedos.

Q U E S T Ã O — Se o desejo não tem identidade, ele tem essência?

L U I Z F U G A N T I — Sem dúvida. A essência de alguma coisa é


sempre um grau de potência, nas palavras de Spinoza. E esta potên-
cia se repete nos encontros — a cada encontro que ela faz, manifes-
ta sua intensidade, dando um brilho próprio e singular a cada acon-
tecimento, produzindo a diferença na superfície das relações. Essa
potência de repetição da essência lhe confere uma certa eternidade.
Tanto para os estóicos como para Spinoza, os afetos são eternos. As
diferenças manifestam-se no modo como os afetos virtuais se atua-
lizam. Bergson dirá o mesmo ao conceber as potências virtuais como
complicadas e imbricadas umas nas outras, só se diferenciando e
explicitando suas linhas divergentes nos movimentos de atualiza-
ção do devir. Então a diferença se revela no modo ou no grau de
intensidade com que o ser atravessa uma matéria, acontecimento
que altera a distribuição — a dominação, as convergências e as di-

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vergências — das linhas de forças dos corpos. Tudo o que revela uma
mudança nas relações de forças chama-se acontecimento. Do modo
como um corpo se encontra com outro emerge uma maneira de
ser, uma diferença brilha com realidade nova. A natureza ou essên-
cia de um corpo, sua profundidade, permanece a mesma ao longo
de sua duração — mas ela não é mais uma forma matemática ou
um conceito abstrato das alturas, e sim um grau de potência da pro-
fundidade. O que difere sempre é o modo de efetuação na superfí-
cie, que transforma a própria visão da profundidade e que faz com
que eu me apreenda cada vez mais diferente do que era: é o parado-
xo da distância e da identidade infinita entre o meu passado e o meu
futuro. A essência é um germe, um ovo que repete sua profundida-
de nas diferenças da superfície, no devir do tempo.

Q U E S T Ã O — A incorporação das semelhanças na maneira de ver


os corpos é causada pela educação?

L U I Z F U G A N T I — É causada por toda uma instituição de práti-


cas e saberes inaugurada pelos gregos e que fez tradição no Ociden-
te. Nós imaginamos que a identidade na idéia e a semelhança na
percepção são naturais. Olhamos para uma árvore e para outra e
acreditamos que são semelhantes a uma ‘árvore genérica’ — des-
prezamos como simples acidentes suas diferenças, as singularida-
des que as constituem e que as tornam seres absolutamente únicos.
Familiarizamo-nos tanto com o pensamento por identidade e por
semelhança que vemos esses elementos como dados naturais da

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alma e da percepção. Esse modo de pensar e perceber as coisas é o
mesmo que nos leva a considerá-las substituíveis, pois facilmente
encontramos equivalentes que as tornam passíveis de trocas gené-
ricas. Esses traços são próprios do sistema da representação; tão
próprios e concretos que os encontramos nas diversas formas polí-
ticas que o Estado assume. Para quem racionaliza desse modo é per-
feitamente natural que alguém possa falar em nome de outros,
representá-los por delegação de poderes. Assim também a psica-
nálise — quando substitui o desejo por trocas simbó1icas subli-
madas quer falar em nome do inconsciente. Mas a verdade é que a
semelhança, a identidade, a equivalência e a troca são invenções e
não dados naturais da alma, são artifícios que uma máquina polí-
tica produziu para constituir os extratos próprios ao bom funcio-
namento de suas relações internas. São mecanismos de regulação e
de codificação das relações entre os homens, os quais determinam
os modos de agir e pensar. São recortes da superfície que um tipo
de sociedade desenha para regular a si própria, para conter-se nos
limites que ela pode suportar. Os Estados — essas máquinas de
morte — fixam, com esses artifícios, atributos incorporais, conge-
lam agenciamentos, recortam o espaço e o tempo dos corpos, es-
quadrinham o inconsciente e o desejo, obrigam-lhes a tomar cons-
ciência dos seus lugares, dos seus tempos, dos seus limites, deveres
e obrigações, encerrando-os numa cadeia de marcas simbó1icas e
sensíveis — cadeias que a psicanálise tanto admira — que esma-
gam os devires alegres da vida.

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Q U E S T Ã O — Como situar a psicanálise nisso tudo?

L U I Z F U G A N T I — Do ponto de vista estritamente capitalista,


para ser breve, a psicanálise é um sistema de sobrecodificação do
desejo, um sistema que veio para abocanhar o pedaço escorregadio
de mercado que a psiquiatria deixava escapar por não conseguir fi-
xar uma relação de contrato entre o médico — ‘homem lúcido e
responsável’ — e o paciente — ‘animal delirante e incoerente’ —,
transformando a relação entre terapeuta e paciente numa operação
lucrativa bem-sucedida. Sob a perspectiva do Estado, a psicanálise é
um composto de dois regimes de signos: o que Deleuze e Guattari
chamam de paranóico-interpretativo (Mito) e passional-reivindica-
tivo (Lei). Esse é um aspecto que exigiria uma exposição muito mais
prolongada. Mas o que posso dizer rapidamente é que é preciso fa-
zer um investimento no campo histórico para melhor compreen-
der esse aspecto. George Dumézil produziu uma obra grandiosa e
de extremo rigor sobre as formações e o dinamismo dos mitos, deu-
ses e heróis indo-europeus. Compreendendo suas estruturas e fun-
ções múltiplas, este autor destaca invariavelmente três funções que
sintetizam a formação de um povo indo-europeu: a função de fecun-
didade e abundância (deuses dos frutos da terra); a função de guer-
ra (deuses e heróis guerreiros); e a função de soberania (mitos de
fundação).
Ele encontrará essas três funções de base repetindo-se nos mi-
tos e heróis de todos os povos indo-europeus. Mas é particularmen-
te na função de soberania que duas potências complementares se

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manifestam, as quais vão formar as duas cabeças do Estado: o poder
violento de fundação (mitos de fundação para os tempos de con-
quistas) e a ordenação pacífica da lei ou do contrato (potências de
regulação para os tempos de paz). Podemos captar esses dois pó1os
complementares do Estado implicados também na filosofia platô-
nica: o mito (narrativa de fundação) e a dialética (regulação 1ógica).
No Ocidente sempre se pretendeu que o mito e a razão se opuses-
sem. Deleuze demole de vez essa tolice. Mito e razão formam os
dois pó1os do Estado: despótico e democrático. Eles atravessaram e
se introduziram naquilo que se convencionou chamar no Ocidente
de razão e moral. E foi neste sentido também que Nietzsche afir-
mou que os filósofos que o Ocidente sempre venerou foram buro-
cratas ou funcionários do Estado.
Mas é bem mais surpreendente constatar que a própria psica-
nálise trará também, no bojo de suas concepções e práticas, esses
dois pó1os do Estado, nossos velhos conhecidos. Só que agora fazen-
do-os operar de forma bem mais sutil. O Estado moderno reinven-
tado pelo capitalismo não é, como bem demonstrou Foucault, uma
entidade exterior à sociedade e aos corpos que a compõem. O Esta-
do está dentro de nós, habita microterritórios, habita nosso próprio
corpo. Ele interiorizou-se na forma de cógito do desejo, capturando
nosso inconsciente e dividindo-o em sujeito de enunciação e sujei-
to de enunciado. Quando digo Eu, é o Estado que fala em mim. Há
um texto de Deleuze — acredito que pouco conhecido até entre os
seus leitores — no qual ele fez a crítica à psicanálise a partir de uma
perspectiva completamente diferente da crítica tradicional, onde afir-

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ma que, para impedir que alguém fale em seu próprio nome, basta
que o façamos dizer ‘eu’.4 Onde havia inconsciente, lá deve-se insta-
lar o Eu consciente, sujeito adestrado e legislador do desejo: assim
reza o psicanalista. A psicanálise é um sistema de burocratização,
só que desta vez privado — burocracia do espírito. Um mito de fun-
dação da falta e uma lei de pacificação e submissão eterna: Édipo
(mágico-religioso) e a superação do complexo (o ego, a lei) — a
besta e o homem, o inconsciente culpado e a consciência redentora
e legisladora. O déspota e o democrata em nós, ou ainda o paranói-
co e a histérica. Que belo par! O que quer então a psicanálise? Ela
quer introjetar o Estado em nós — o Édipo incestuoso e parricida
(representante do desejo inconsciente) e o Ego consciente redentor
e redimido (superação do complexo pela lei). Um mito e uma lei,
tudo pela abolição do desejo, tudo pelo suicídio coletivo.

Q U E S T Ã O — E o que se passa quando se pensa o inconsciente?

L U I Z F U G A N T I — É justamente o que estou dizendo. A psica-


nálise, pelo menos a que leva a sério suas fórmulas ortodoxas, odeia
o inconsciente, odeia o desejo. Ela desqualifica e acaba por destruir
— como diz Deleuze — os agenciamentos maquínicos do desejo e
os agenciamentos coletivos de enunciação. O inconsciente só se
produz por agenciamentos, porém essa produção é sempre a de uma
realidade nova, criando jogos revolucionários — e não fantasmas
4
Refere-se ao texto “Quatro proposições sobre a Psicanálise”, in SaúdeLoucu-
ra, n.o 2.

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alucinados a partir de um suposto complexo já vivido e não-supe-
rado. A psicanálise só pensa o inconsciente como produtor de fan-
tasmas, atos falhos, conflitos idiotas. Ela tem como inimigo o dese-
jo, este perversor polimorfo das estruturas totalizantes. Ela roga para
que entremos na cultura, abandonemos ou sublimemos (o que dá
no mesmo) esse desejo ‘criminoso’ e introjetemos a Lei, a Falta,
tornemo-nos castrados. Joga o Édipo e a Lei para estruturar o in-
consciente; afirma que os verdadeiros conteúdos do desejo são
pulsões parciais infantis que se repetem disfarçadas de inocentes,
mas sua expressão verdadeira só acontece no Édipo. O inconsciente
é o desejo, mas o desejo, diz a psicanálise, é Édipo que quer matar o
pai e comer a mãe. Ele é acusado como incestuoso e parricida, re-
putado criminoso, declarado culpado. Então, para fazer o animal
tornar-se humano e entrar na Cultura, é preciso fazê-lo reconhe-
cer seu Édipo, aceitar a castração e submeter-se ao domínio da Lei.
Essa tentativa é ainda mais estúpida e infame quando se procura —
como no livro Édipo Africano — enfiar o Édipo à força entre os
selvagens, mesmo à custa da substituição do pai pelo tio, avô ou
irmão mais velho, mesmo que seja na forma eufemizada de estru-
tura virtual.
Como tudo isso cheira a sordidez e vilania! Porém — contra-
argumentam alguns psicanalistas —, isso é uma metáfora, uma es-
trutura imaginária e simbó1ica, papai-mamãe-Édipo é uma estru-
tura significante. Acontece que suas práticas não são metafóricas.
Quando elas fazem aceitar o Édipo culpado, o desejo de fato já foi
banido, abolido, decepado.

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Não há como esconder: a psicanálise tem como inimigo nú-
mero um o próprio desejo. As interpretações arbitrárias de Freud,
que revelam sempre o mesmo propósito edipianizante, ou as de
Melanie Klein, com seus trenzinhos fálicos e estações vaginais, en-
tre outros, são testemunhos incontestes. Há uma grande dose de co-
vardia em todas essas atitudes diante da riqueza e da grandiosidade
do inconsciente. Freud acreditava que era preciso impor uma or-
dem ao inconsciente, uma organização vinda de fora. Não aceitava
a idéia de que o desejo pudesse ter ou produzir sua própria ordem
imanente.
Mas a vida não deseja como Édipo, nem a Cultura o supera pelo
regime da Lei ou pela proibição do incesto, pois não há, no fundo
da natureza humana, qualquer Édipo para ser superado e o incesto
só existe como artifício de expansão de uma raça — a não ser para
os prisioneiros da consciência e dos órgãos. Será que Freud apenas
se equivocou com alguns conceitos, tendo criado outros muito pro-
veitosos, do mesmo modo que Hegel (como é pensado por alguns
marxistas) com sua filosofia da morte? O Édipo universal é inven-
tado como expressão da natureza do desejo, como se ele narrasse a
história de todos os desejos. Deleuze pergunta: “Vocês não têm ver-
gonha de construírem assim a criança? E de utilizarem desse modo
o Édipo?”. O desejo é revolucionário, quer sempre mais conexões,
isto é, produções de realidades novas. E o que quer a psicanálise?
Quer impedi-lo! Quanto menos agenciamentos de desejo houver,
mais a psicanálise se alegra e torna-se bem-sucedida.

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Q U E S T Ã O — Jung fala de Édipo?

L U I Z F U G A N T I — Jung se liga às alturas místicas, aos modelos


cósmicos, assim como Freud se liga às falsas profundidades para
estruturar o inconsciente. Jung busca arquétipos cósmicos nas al-
turas platônicas. Não é menos decepcionante. Talvez Reich (para não
falar de Otto Rank) seja um dos poucos psicanalistas cuja nobre-
za não o abandonou, pois ele procura formular uma economia
desejante produtora e fundar uma psiquiatria materialista. Não dá
conta — uma vez que lhe faltam algumas noções fundamentais —,
mas ao menos avança de modo significativo no sentido da liberta-
ção do inconsciente.

Q U E S T Ã O — E Lacan?

L U I Z F U G A N T I — Com todo o respeito que possamos ter por


sua obra, ele é ainda mais pretensioso, mais burocrata. É Lacan quem
pretende dar uma estrutura absolutamente científica para a psica-
nálise, com o objetivo de torná-la uma ciência oficial capaz de ope-
rar a serviço do Estado. Isso não havia ocorrido antes, pelo menos
não de modo tão explícito.

Q U E S T Ã O — Como situar, neste contexto, o materialismo histórico


não-economicista — estou pensando no marxismo que não tem uma
leitura economicista do materialismo histórico.

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L U I Z F U G A N T I — Não podemos situá-lo em bloco. Se este
materialismo pensa a economia e a história como movimentos
imanentes ao desejo, então pode ser uma maneira de pensar mui-
to interessante. Mas não acredito que haja nele esta preocupação.
Marx liberou para nós noções extremamente ricas — por exemplo
os conceitos de produção e de processo —, ferramentas preciosas
para pensarmos a história, a natureza e a sociedade. No entanto, o
marxismo é atravessado por uma série de conceitos bastante rea-
cionários — não só os herdados de Kant e Hegel, como também os
que ele mesmo produziu, constituindo um sistema de sobrecodifi-
cação, uma nova arapuca para o desejo e o pensamento. Isso é
particularmente claro quando se pensa no método dialético. Se o
materialismo histórico segue um movimento dialético, ele é neces-
sariamente, em sua essência, um processo niilista e reativo, pois a
dialética pressupõe que a negação e a afirmação constituam dois
pólos de um mesmo plano. Não há dialética se o negativo não esti-
ver no interior do espírito ou de um processo histórico, isto é, se a
morte não for constitutiva do movimento do devir. Pode-se pensar
sobre o parentesco entre essa concepção e o instinto de morte de
Freud, ou entre ela e a teoria termodinâmica da entropia na quí-
mica e na física.
Na verdade o marxismo e a psicanálise tornaram-se as duas gran-
des burocracias da modernidade — pouco importa que uma seja
pública e a outra privada. Mas quando se compreende que o negati-
vo é apenas uma maneira de ser da afirmação mais profunda, é ape-
nas uma das infinitas maneiras de ser da afirmação, a dialética de-

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saparece como a noite desaparece com a aurora solar. Nietzsche dirá
que a essência daquilo que os homens denominam História só
emerge e se realiza com o aparecimento do homem reativo e niilista.
O motor da História para ele é o niilismo, não a luta de classes. En-
tão o objetivo da História e do processo dialético não é o de atingir
um indivíduo superior, livre e soberano, como produto maduro da
atividade da cultura. A História não é o aparecimento da cultura,
mas a sua interrupção. Ela jogou o processo ativo do passado pré-
histórico e sua vontade afirmativa de futuro numa noite escura,
recalcou-os como sombras projetadas por sua falsa luz, por sua fal-
sa atividade e sua falsa afirmação. Na realidade o objetivo da Histó-
ria — ou pelo menos aquilo que ela vai atingir efetivamente — não
é a autonomia dos indivíduos livres, fortes e soberanos, mas a cres-
cente dependência de um homem fraco tornado reativo, sem von-
tade de futuro, um homem entediado e aniquilado (como persona-
gens dos filmes de Fassbinder). Essa coleção de homens constitui o
nosso mundo atual, o mundo dos nadas de vontade. Homens como
esses não sabem mais onde se encontram a fonte da vida, as usinas
de energia, não sabem o que os fortalece; são incapazes de evitar e
conjurar o que os enfraquece, estão em um beco sem saída, resig-
nados com sua impotência e com os rumos decadentes e estúpidos
que toma a sua civilização.
Só começaremos a nos fortalecer quando começarmos a pen-
sar, quando formos capazes de nos tornar seletivos. Qualquer um
que produzir seus processos com o seu ser inteiro, sem meios-que-
reres, estará fatalmente no pensamento afirmativo e nos devires ati-

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vos da vida. Uma cozinheira pode fazer os manjares mais saboro-
sos quando se entrega plenamente à sua ocupação, com pensamen-
to e intensidade, doando vida e contagiando os convivas, como no
belo filme A Festa de Babette. Ou como a lavadeira da qual nos fala
D. H. Lawrence, que se alegra com a brancura de um lenço bem
lavado. São atos simples, puras afirmações, sem a mácula do negati-
vo na essência.
Não importa o que se faça, importa que este fazer seja atraves-
sado pelo pleno pensamento, isto é, que nos tornemos o próprio
tempo — o tempo próprio dos processos —, ao invés de apenas
termos tempo para gastar. Desse modo aumenta-se a potência de
agir, intensifica-se a vida. Assim desejo e pensamento realizam suas
bodas para potencializar a vida, não para aniquilá-la.
A mesma coisa acontece quando se trata de estudar. Temos mui-
tos temas que levantamos aqui sem desenvolvê-los como seria pre-
ciso, devido às limitações que um encontro como este nos impõe e
também às nossas próprias limitações ainda não superadas. É maté-
ria para a vida. Se com isso conseguimos, ao menos por um breve
momento, afetar, produzir deslocamentos e estranhamentos, arran-
car o pensamento dos lugares comuns, balançar as crenças que já
têm raízes podres, sensibilizar para os caminhos da arte, despertar o
desejo de estudar e pensar, temos motivos para nos alegrar. A única
forma digna de estudar é fazê-lo com afeto e com entendimento
das causas. Quando você entende, encontrando o problema e colo-
cando-o no campo de imanência do qual emerge, nem Aristóteles
— por exemplo — é chato ou inacessível, porque pode-se fazer do

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encontro com suas motivações um jogo, de onde se extrai humor, o
riso próprio que cada acontecimento nos oferece. Eis um modo pro-
priamente alegre de transmutar e compor com o passado. Não é um
eu que ri, mas sempre uma quarta pessoa do singular. Nada melhor
do que libertar-se de Aristóteles entendendo-o e obrigando-o a des-
montar a máquina que ele próprio construiu a partir de uma pers-
pectiva que acreditava privilegiada, fazê-lo falar de vários outros pon-
tos de vista e experimentá-lo numa prova, ver o quanto suas verda-
des podem suportar sem serem destruídas.
O entendimento é a fonte privilegiada da alegria e a alegria é a
fonte propulsora da ação: tal é o jogo lúdico daqueles que pensam e
experimentam. Pode-se multiplicar os bons encontros sem sair do
lugar. Então ler ou estudar deixa de ser uma carga, uma obrigação.
Lembremo-nos mais uma vez dos ensinamentos de Nietzsche: o ver-
dadeiro afirmador, diz ele, não é aquele que pronuncia um sim a
qualquer realidade, dispondo-se a carregá-la sem ao menos selecio-
ná-la ou avaliar seu peso. Este só pode ser o sim do asno, um sim
indiferente e resignado. O sim dionisíaco, ao contrário, traz consigo
um não destruidor, um não capaz de anular o poder de uma reali-
dade que é simples produto do negativo e obstáculo à criação e de
abrir caminho para que a realidade positiva se produza, dando lugar
aos devires ativos.
No seu Zaratustra, Nietzsche nos apresenta três metamorfoses
do espírito: como o espírito se transforma em camelo, como o ca-
melo se transforma em leão e como o leão se transforma em crian-
ça. Antes de mais nada, o camelo é Cristo, pois Cristo é aquele que

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diz sim a todo poder do negativo que impera, ele não opõe resistên-
cia a nada. Suporta humildemente tudo como dever ou obrigação,
quer-se como a natureza mais virtuosa e passiva para carregar os
valores em direção ao outro mundo de Deus, ‘o mundo verdadeiro’.
Mas assim se acabará num deserto, vazio de vida, com a natureza
afirmativa abolida, faminto e sedento. É então que o camelo vira
leão, aquele que diz não a todos os senhores e ao último deus, o
sagrado Não que destrói todos os ‘nãos’ que a negação já fez, que
acaba com todos os velhos valores humanos e divinos e abre cami-
nho para a criação do novo. Nesse ponto acontece a metamorfose
do leão em criança — é o momento do advento do grande sim, o
Sim sagrado de um ser que vive sob o signo da inocência e do es-
quecimento, por isso pode criar. “Um novo começo, um jogo, uma
roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado
dizer sim” é a criança. “Aquele que está perdido para o mundo con-
quista seu mundo”.5
Quem acredita nos “nãos” que estão sempre nos rondando, na
Moral, no Édipo, na Lei, no Estado? Somente os tolos, os espíritos
de suportação que gostam de carregar os valores estabelecidos, di-
zem sim a todos esses “nãos”. Quem pode libertar e efetuar suas
próprias potências? Aquele que for capaz de entender, desmontar e
destruir os valores estabelecidos como superiores à vida. Nenhum
valor pode ser superior à vida; é ela que inventa todos os valores.
Pode-se chamar a isso reversão do platonismo, reversão do cristia-
5
F. Nietzsche. Assim falou Zaratustra, livro I. Trad. Mário Silva Brito. Civili-
zação Brasileira.

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nismo, mas também reversão de nós mesmos. Só desse modo pode-
mos conquistar a autêntica afirmação imanente à própria vida, a
afirmação seletiva que nos torna inventores. A invenção nada tem a
ver com o trabalho do negativo do qual nos fala Hegel — trabalho
carrancudo, pesado e triste. A invenção é necessariamente um mo-
vimento de leveza, um jogo alegre, uma explosão de riso. Todo mo-
ralista espera melhorar o mundo pela virtude, deseja fazer triunfar
a parte controlável do acaso submissa à razão. Porém o artista, este
já perdeu toda esperança. Ele não espera, ele produz o novo, ele in-
venta com rigor o seu próprio mundo sem dividir o acaso, afirman-
do-o por inteiro, assim como afirma o devir e a multiplicidade como
única substância.

Q U E S T Ã O — Isso pode ser ligado aos textos de Canguilhem sobre o


anômalo, sobre os valores de saúde?

L U I Z F U G A N T I — Sem dúvida. O anômalo traça uma linha de


fuga com relação a todas essas estruturas que encarnam o ‘não’ à
vida e um modelo de saúde. Ele vive no limiar da forma específica,
abandonou as formas médias da espécie para viver no limite extre-
mo onde a potência cresce pelas bordas, ultrapassa sua própria na-
tureza e inventa um novo modo de viver e de pensar.
Qual o ensinamento profundo que o anômalo nos dá? O de que
podemos inventar linhas de fuga em vez de dar o sangue para fazer
funcionar uma máquina de morte ou aprisionar o desejo nas redes
dos códigos normatizadores. É preciso perder as ilusões que ainda

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temos em relação às instituições. Talvez tenhamos que nos tornar
pessimistas ao extremo para que uma positividade autêntica possa
nascer. No Ecce Homo, Nietzsche afirma que toda vez que deixou de
ser pessimista sua energia atingiu os graus mais baixos de vitalida-
de. Tal afirmação é paradoxal, mas apenas na aparência. Quando
nos tornamos pessimistas apenas deixamos de investir no que já está
velho e caduco. Economizamos energia para investi-la na invenção
e na produção de novos mundos, o que tem como conseqüência a
destruição dos signos instituídos, o assassinato dos valores estabe-
lecidos.
Sejamos dignos da vida, tornemo-nos traidores e assassinos dos
valores caros a esta sociedade atual. Se compreendermos e afirmar-
mos realmente a vida, seremos naturalmente traidores da família,
do Édipo, do Estado, do Eu e de Deus. É preciso sobretudo trair o
Eu, porque este é um vaidoso trapaceiro que quer se apoderar de
nós. A mais alta trapaça é a que o Eu faz com o nosso corpo, com
o nosso desejo. É ele o grande embusteiro, a grande mentira à qual
os homens ainda se apegam como se fosse a coisa mais preciosa des-
se mundo. É ele que impede que encontremos a nossa verdadeira
singularidade, o nosso verdadeiro nome próprio, a nossa verdadei-
ra diferença, aquilo que nos faz únicos, aquilo que pensa e age em
nós. Só seremos livres quando colocarmos o Eu de joelhos e de-
pusermos a consciência e os órgãos dos seus postos usurpados de
comando.

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