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O UNIVERSO POLISSÊMICO E

FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO
LITERÁRIA
Roberta Rego Rodrigues
(Org.)
Obra publicada pela Universidade Federal de Pelotas
Reitor: Mauro Augusto Burkert Del Pino
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Impresso no Brasil
Edição: 2014/2
ISSN 0102-9576 (impressa) / 2358-1409 (online)
Dados de Catalogação na Fonte Internacional:

CADERNO DE LETRAS / Centro de Letras e Comunicação. Universidade


Federal de Pelotas. Pelotas: Editora UFPel 2014. n. 23, Jul-Jan (p. 001-165)
Nº 01 ao nº 21 versão somente impressa; a partir do nº 23 versão impressa e
online.
ISSN 0102-9576 (impressa)
ISSN 2358-1409 (online)
Disponível também:
<http://wp.ufpel.edu.br/cadernodeletras/>
<http://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/cadernodeletras>

Título da capa: O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA


TRADUÇÃO LITERÁRIA. Org. por Roberta Rego Rodrigues

1. Letras – Periódicos. 2. Literatura. 3. Tradução.


I. Rodrigues, Roberta Rego
O UNIVERSO POLISSÊMICO E
FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO
LITERÁRIA
Roberta Rego Rodrigues
(Org.)
Caderno de Letras
Revista do Centro de Letras e Comunicação – Universidade Fedral de Pelotas
Rua Gomes Carneiro, número 1 • Centro • CEP 96001-970 • Pelotas/RS

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Sergio Romanelli (UFSC)
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Revisão
Carlos Ossanes
Lua Gill da Cruz
Roberta Rego Rodrigues

Editoração:
Carlos Ossanes
Roberta Rego Rodrigues

Diagramação e preparação dos originais:


Carlos Ossanes
Roberta Rego Rodrigues

Imagem da capa: Livro Aberto, de Paul Klee, 1930.


Impressão: Editora e Gráfica da UFPel
SUMÁRIO

Apresentação.............................................................................................11

O papel dos poetas-tradutores na formação do cânone da poesia


traduzida no Brasil (1960-2009)
Marlova Gonsales Aseff.............................................................................17

Experiência de leitura, recepção e tradução: O romance A Ilha do dia


Anterior, de Umberto Eco, no Brasil
Elizamari Rodrigues Becker
Patrizia Cavallo ................…......................................................................37

O Imperador do Brasil e suas traduções: uma nova leitura (ou a


primeira?)
Sergio Romanelli…………….........................................................................69

Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de


tradução e o problema de tradução como uma questão homérica
Roberto Mário Schramm Júnior................................................................81

Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O


olho mais azul, de Toni Morrison, e Ponciá Vicencio, de Conceição
Evaristo
Luciana de Mesquita Silva
Marcela Iochem Valente..........................................................................109

Questões de terminologia na tradução de literatura: os casos de Edith


Wharton e William Blake
Juliana Steil......………………………………………………………………................139

Entrevista com Renato Rezende concedida a Vanessa Lopes Lourenço


Hanes
Vanessa Lopes Lourenço Hanes..............................................................151
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APRESENTAÇÃO

O UNIVERSO POLISSÊMICO E
FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA

Roberta Rego Rodrigues (UFPel)


Organizadora

Esta edição da Revista Caderno de Letras, número 23, segundo


semestre de 2014, trata do universo polissêmico e fronteiriço da tradução
literária. Em um primeiro momento, o universo polissêmico pode ser
entendido como uma rede de significados que se entrelaçam, significados
esses que não são somente linguísticos, mas também ideológicos e
poetológicos (LEFEVERE, 1992). Além disso, Magalhães (2000), ao citar
os teóricos Mark Shuttleworth e Moira Cowie, afirma que a polissemia
faz-se presente em conceitos dos Estudos da Tradução, como, por
exemplo, no conceito de equivalência. Segundo Magalhães (2000), o
caráter polissêmico desse conceito diz respeito às várias acepções que ele
pode apresentar. A autora menciona a equivalência conforme Catford e
consoante Vinay e Darbelnet. O primeiro teórico enxerga a equivalência a
partir de uma noção matemática ao passo que os segundos teóricos veem
a equivalência a partir de uma noção idiomática (MAGALHÃES, 2000).
O universo fronteiriço pode ser entendido como a ampliação das
fronteiras que a tradução literária oferece, fornecendo acesso a culturas
diversas (LEFEVERE, 1992). Segundo o autor, tal ampliação leva em
conta as relações de poder no mundo tradutório e seleciona de certa
forma, conforme Venuti (2008), os textos literários que devem ser
traduzidos, seja por intermédio de projetos domesticadores ou de projetos
estrangeirizadores. Ademais, segundo Esqueda (1999), a subserviência
do(a) tradutor(a) ao texto fonte é uma fronteira a ser transposta, uma vez
que ele ou ela pode ter sua própria interpretação do original assim como
sua própria intenção ao traduzir um texto.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


12 Roberta Rego Rodrigues

O artigo de Marlova Gonsales Aseff, intitulado O papel dos poetas-


tradutores na formação do cânone da poesia traduzida no Brasil (1960-2009),
mostra a interferência da tradução na criação de cânones literários, além
de apontar a relevância das tarefas tradutórias de poetas brasileiros no
delineamento do cânone da poesia traduzida no Brasil no período
supracitado. Citando Lefevere (2007), a autora ressalta que a tradução é
uma das atividades mais importantes para inclusão de obras no cânone.
Com base em Venuti (2008), Aseff reitera que a seleção criteriosa do texto
estrangeiro e da estratégia tradutória pode modificar ou estabelecer
cânones literários. Ao tratar mais especificamente da influência dos
poetas-tradutores na criação do referido cânone, a autora faz menção aos
concretistas que, a partir da década de 1960, propuseram traduções e
criticaram a suposta “inferioridade” do texto traduzido em comparação ao
texto original. Além disso, Aseff considera que o poeta-tradutor pode ou
não adaptar suas traduções à poética vigente em seu meio literário. Por
fim, a autora afirma que a intensa atividade tradutória dos poetas-
tradutores desde os anos 1960 foi em parte inspirada nos poetas
concretos, que motivaram a difusão de traduções enquanto atos
intervencionistas com impacto no cânone da poesia.

O artigo de Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo


intitula-se Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A ilha do dia
anterior, de Umberto Eco, no Brasil e trata de como esse romance pode ser
lido de um ponto de vista “comum” ou “especializado”; como esse
romance foi recebido no Brasil mediante a análise de artigos de jornais,
resenhas, blogs, dentre outros; e como esse romance foi traduzido por
Marco Lucchesi a partir de depoimentos autobiográficos do tradutor, por
exemplo. Conforme as autoras, a leitura, a recepção e a tradução
encontram-se relacionadas, ou seja, para traduzir um texto tem de haver
uma interpretação feita por intermédio da leitura e por sua vez o produto
tradutório apresenta um público-alvo, que o consumirá. De acordo com
as autoras, a leitura do romance mencionado depende da perícia do(a)
leitor(a) que em maior ou menor grau conseguirá decifrar as analogias e o
não dito. Os depoimentos de blogs citados por Becker e por Cavallo
demonstram a boa recepção do romance no Brasil, mas apontam para

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


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uma diversidade de interpretações e impressões. Consoante Becker e
Cavallo, o tradutor Marco Lucchesi esclarece que a tarefa tradutória foi
árdua, mas prazerosa, sendo até mesmo elogiada pelo autor, Umberto
Eco. As autoras defendem que a investigação das três esferas tenha novo
vigor a fim de que a pesquisa da leitura, da recepção e da tradução de
obras literárias possa ser aprofundada.

Dando continuidade ao conteúdo desta edição da Revista


Caderno de Letras, Sergio Romanelli expõe uma faceta não muito
conhecida do Imperador Dom Pedro II no artigo O Imperador do Brasil e
suas traduções: uma nova leitura (ou a primeira?). Segundo o autor, o
Imperador Dom Pedro II podia ser considerado por alguns como um
indivíduo entediado. No entanto, conforme aponta Romanelli,
manuscritos conservados no Arquivo Histórico no Museu de Petrópolis
mostram que o Imperador apresentava uma profícua atividade tradutória,
trabalhando com várias línguas de partida. Conforme o autor, o
Imperador mantinha um diário, no qual anotava sua agenda de tradução
e traduções per se. Romanelli enfoca a tradução de uma ode de Alessandro
Manzoni feita para o português por Dom Pedro II, o que possibilitou uma
contínua troca de correspondências entre os dois. A tradução dessa ode
foi elogiada e coloca o Imperador como um tradutor que tendia mais para
a estrangeirização, como conclui Romanelli.

Em seu ensaio Homero – prós e contras: a questão homérica como um


problema de tradução e o problema da tradução como uma questão homérica,
Roberto Mário Schramm Júnior aborda “a questão homérica” a partir das
versões de Homero feitas por Matthew Arnold e Jorge Luis Borges,
procurando amalgamar tal questão a alguma teoria da tradução. Assim, o
ensaísta defende a questão homérica como um problema de tradução bem
como a situação inversa deste argumento. Para tanto, Schramm Júnior
compara alguns trechos das traduções para a Odisseia de Homero de
Manuel Odorico Mendes e Donaldo Schüler. Entre elucubrações e
argumentações, o ensaísta mostra como os textos homéricos e a tradução
per se foram responsáveis pela inauguração da literatura ocidental.
Ademais, segundo Schramm Júnior, as traduções dos textos homéricos

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para várias línguas são ao mesmo tempo autônomas e complementares
entre si. O ensaísta é a favor de Homero, afirmando que as traduções dos
textos homéricos chegam a ofuscar o texto original, no caso, a Odisseia.

O artigo de Luciana de Mesquita Silva e Marcela Iochem


Valente, Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O
olho mais azul, de Toni Morrison, e Ponciá Vicencio, de Conceição Evaristo,
busca investigar o modo pelo qual The bluest eye (MORRISON, 1970) e O
olho mais azul (MORRISON, 2003) assim como Ponciá Vicêncio
(EVARISTO, 2003), foram recebidos e quais foram os efeitos produzidos
nos polissistemas das culturas de partida e das culturas de chegada com o
intuito de ampliar as pesquisas "sobre a recepção da literatura afro-
descendente traduzida". Segundo as autoras, tal recepção é distinta para as
duas escritoras sob escrutínio. Por um lado, The Bluest Eye foi traduzido
para o português do Brasil muitos anos mais tarde após a publicação de
sua primeira edição nos Estados Unidos e, de certa maneira, não foi
possível observar de forma explícita o levantamento de questões afro-
americanas na cultura de chegada, apesar de Toni Morrison destacar tais
questões no referido romance. Por outro lado, a tradução de Ponciá
Vicêncio para o inglês estadunidense possibilitou de certo modo
reconhecer a visibilidade da autora, mesmo que em um âmbito mais
restrito. Tal tradução faz pensar as relações entre o movimento afro-
americano nos Estados Unidos e o movimento negro no Brasil, como
arrematam Silva e Valente.

Em seu artigo, Questões de Terminologia na Tradução de Literatura:


os Casos de Edith Wharton e William Blake, Juliana Steil defende que, apesar
de a relação entre a Terminologia e os Estudos da Tradução considerar
em sua maioria termos e fraseologias advindos de textos técnico-
científicos e tecnológicos, tal relação também é viável no caso da tradução
literária, visto que os textos literários podem apresentar léxico
especializado. A autora cita o romance Age of Innocence, de Edith
Wharton, o qual textualiza por exemplo muitos aspectos relativos a
termos de moda da época em que foi escrito. Cita também o poema épico
Milton de William Blake, em que diferentes atividades de artesanato são

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introduzidas. Para a tradução de tais textos literários, conforme Steil
explica, torna-se imprescindível utilizar com frequência dicionários
específicos. Segundo Steil, o diálogo entre a Terminologia e a Tradução
Literária é bem-vindo e necessário, posto que um tradutor literário em
formação tem de estar consciente também das questões terminológicas.

O autor, tradutor e artista brasileiro Renato Rezende concedeu


uma entrevista à pesquisadora Vanessa Lopes Lourenço Hanes acerca do
ato de traduzir. A primeira parte da entrevista diz respeito principalmente
ao ofício da tradução. A segunda parte da entrevista concentra-se no
aprendizado adquirido a partir da vivência de traduzir Agatha Christie.
No que tange ao ofício da tradução, Rezende afirma que, além de ter um
compromisso ético com o autor, ele preocupa-se com o leitor. Segundo o
tradutor, o leitor merece textos traduzidos que soem bem em português.
Ademais, Rezende opina que traduzir literalmente faz que o produto
empobreça. No que concerne aos romances policiais, como os de Agatha
Christie, Rezende diz a Hanes que torna-se importante tomar cuidado
com a tradução das palavras para que ela não interfira na trama. Parece
que Renato Rezende é um tradutor que tende mais para a domesticação.
Como o português ainda não é uma língua “de ponta”, o projeto
tradutório de Renato Rezende prima pela valorização do nosso idioma,
apesar de tornar o tradutor mais invisível (VENUTI, 2008).

Os textos da edição número 23 da Revista Caderno de Letras


mostram como o universo da tradução literária apresenta uma miríade de
significados distintos, como, por exemplo, a questão da recepção de textos
literários traduzidos e as estratégias de tradução de textos de literatura. Tal
universo abrange fronteiras a serem transpostas, mas também demonstra
como elas podem tornar as culturas mais fluidas e interativas por
intermédio da tradução. Enfim, esperamos que os leitores possam
aprofundar e refletir sobre as questões da polissemia e do ato de ser/estar
fronteiriço com a possibilidade e/ou probabilidade de lançar luz sobre os
diversos questionamentos que permeiam o universo da tradução literária,
universo esse que une diversas culturas e que propaga o conhecimento.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


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Desejamos a todos então uma leitura proveitosa e suscitadora de
esclarecimentos.

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O papel dos poetas-tradutores na formação do cânone da poesia traduzida no brasil (1960-
2009)| 17

O PAPEL DOS POETAS-TRADUTORES NA


FORMAÇÃO DO CÂNONE DA POESIA
TRADUZIDA NO BRASIL (1960-2009)

Marlova Gonsales Aseff

RESUMO: Este artigo analisa como a tradução interfere na formação dos


cânones literários e aprecia a importância do trabalho tradutório de
poetas brasileiros na configuração do cânone da poesia traduzida no
Brasil entre 1960 e 2009.
Palavras-chave: Poetas-tradutores. Cânone. Tradução de Poesia. História
da Tradução.

ABSTRACT: This paper analyses how translation could take part in the
creation of the literary canon. It also looks at the poets who translated
poetry over five decades (1960-2009) and considers their influence on the
creation of the translated poetry canon in Brazil.
Keywords: Poet-translators. Canon. Poetry Translation. Translation
History.

Introdução

Costumamos pensar que obras são traduzidas porque já


alcançaram o estatuto de canônicas, ou seja, porque atingiram certa fama
na sua cultura de origem. Dificilmente invertemos esse raciocínio para
lembrar que se não fosse devido à tradução, o acesso às mesmas seria
restrito aos leitores da língua do original. A obra de Homero poderia
perpetuar-se sendo lida apenas pelos gregos? Teriam as suas histórias
sobrevivido se não fossem inúmeros tradutores as reescrevendo ao longo
dos séculos? Walter Benjamin afirma que é a tradução que, ao renovar a
vida do original, torna-se responsável pela “fama” das obras, e não o
contrário (BENJAMIN, 2001, p. 193). A proposição de Benjamin reforça
a ideia de não há texto considerado clássico ou canônico que não tenha

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


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sido alvo de retraduções.1 Por isso, a tradução, enquanto reescritura, seria
uma força-motriz por trás da evolução literária.
A tradução, acredita André Lefevere, é o principal meio pelo qual uma
literatura influencia a outra. Para o teórico, ao lado da historiografia, das
antologias e da crítica literária, a tradução é uma atividade que prepara as
obras para serem incluídas no cânone. (LEFEVERE, 2007, p.24).
Lawrence Venuti, por sua vez, ressalta a importância da escolha dos textos
a serem traduzidos para a formação do cânone. Afirma que “a escolha
calculada de um texto estrangeiro e da estratégia tradutória pode mudar
ou consolidar cânones literários e paradigmas conceituais [...] na cultura
doméstica” (VENUTI 2002, p. 131, grifo meu). Levando em conta tais
proposições e tendo como base alguns dados compilados para a minha
pesquisa de doutorado em Estudos da Tradução (ASEFF, 2012), tratarei
do papel desempenhado por poetas brasileiros que se puseram a traduzir
poesia e que, assim, influenciaram a constituição dos cânones da
literatura brasileira na segunda metade do século 20 e primeira década
deste século.

1. Cânone e Tradução

Os papéis desempenhados pela tradução nos sistemas literários


são vários. Lefevere, por exemplo, acredita que dentre todas as formas de
reescritura, a tradução é potencialmente a mais influente porque teria a
capacidade de projetar a imagem de um autor ou de uma série de obras
em outra cultura (LEFEVERE, 2007, p. 24). Além disso, a tradução
também é vista como uma forma de medir o reconhecimento literário de
uma dada literatura (CASANOVA, 2002, p.169). E para as línguas "alvo"
qualificadas por Casanova como “mais desprovidas”, a tradução seria uma
maneira de agrupar recursos literários, de importar grandes textos
universais para uma língua “dominada”.
Mas, quais seriam, afinal, os mecanismos que podem levar um
texto traduzido a integrar ou interferir no cânone de determinada
literatura? Ou, ainda, como um determinado inventário de recursos
literários importados conquista status ou admiração em um dado estrato
do sistema literário? Para responder tais questões, é necessário retomar
algumas abordagens sobre o cânone, sobre como pode se dar o

1
No entanto, é preciso lembrar que apenas o fato de ter sido alvo de retraduções não é por
si só suficiente para a inclusão de determinada obra no cânone.

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O papel dos poetas-tradutores na formação do cânone da poesia traduzida no brasil (1960-
2009)| 19
estabelecimento do mesmo e, em seguida, analisar as possíveis funções
desempenhados pela tradução e pelos tradutores nesse processo.
A palavra cânone, como é sabido, vem do grego kanon,
significando régua, regra, medida, norma; ou seja, a sua própria
etimologia indica um caráter normativo e delimitador. No âmbito da
Igreja Católica, os livros considerados canônicos eram aqueles
reconhecidos como “inspirados e dignos de autoridade”
(COMPAGNON, 2001, p. 226). Norma, valor e autoridade são,
portanto, três conceitos que costumam gravitar em torno da questão do
cânone. Harold Bloom, que dedicou vários estudos à questão, acredita
que o verdadeiro sentido do cânone seja o de indicar os livros que o
indivíduo deve escolher para ler, pois uma vida humana é curta demais
para dar conta de tudo o que já foi produzido pela cultura ocidental
(BLOOM, 2010, p. 27). Para ele, o cânone designa

Uma escolha entre textos que lutam uns com os


outros pela sobrevivência, quer se interprete
escolha como sendo feita por grupos sociais
dominantes, instituições de educação, tradições
de crítica, ou, como eu faço, por autores que
vieram depois e se sentem escolhidos por
determinadas figuras ancestrais (IBIDEM, p. 33).

De forma mais ampla, para a literatura, o cânone costuma


designar a lista de obras consideradas indispensáveis à formação dos
estudantes, bem como os postulados ou princípios doutrinários que
norteiam uma corrente literária (MOISÉS, 2004, p. 65). O cânone,
portanto, pode ser entendido como uma lista de obras e também como
um tipo de código, um modelo que deve ser seguido para que
determinada obra seja considerada literatura em determinado espaço
histórico. No primeiro sentido (de lista), Alastair Fowler aponta três
formas ou níveis de cânone: a) o potencial, que abrangeria toda a
extensão da literatura, tudo que o leitor pode potencialmente ler; b) o
cânone acessível, aquela parte do universo potencial a qual os leitores têm
acesso relativamente fácil na forma de reedições, edições econômicas ou
antologias (e, por que não, traduções); e c) o seletivo, que englobaria as
obras acessíveis que os leitores profissionais selecionaram como sendo
dignas de maior atenção (FOWLER, 1982, pp. 213-216).
Even-Zohar delimitou dois usos do para o termo “cânone”.
Também para ele, há uma canonicidade que se refere a textos (obras), e

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


20 | Marlova Gonsales Aseff
outra a modelos. Afirma que “uma coisa é introduzir um texto no cânone
literário, outra é introduzi-lo através de seu modelo em um repertório”2
(EVEN-ZOHAR, 1990, p.19). No segundo caso, certo modelo literário
consegue se estabelecer como princípio produtivo por meio de seu
repertório. Ou seja, a poética de determinada literatura, que vem a ser o
seu inventário de recursos literários, gêneros, motivos, símbolos etc., é
modificada. Portanto, quando a canonização se dá pelo modelo, e não
por textos isolados, teríamos um tipo de canonização mais relevante para
a dinâmica do sistema literário3 (IBIDEM, p. 19). Nesse caso, pode
ocorrer uma progressiva influência dos valores do grupo que o introduziu,
uma vez que, em toda sociedade, em grau maior ou menor, existem
sempre tensões entre a cultura canonizada e a não canonizada. Esse
processo ficou muito evidente no Brasil no caso dos poetas concretos.
O estabelecimento do cânone também está ligado à questão do
julgamento de valor, seara na qual as discussões estéticas misturam-se e
confundem-se com as relações de poder. Nesse sentido, Lefevere lembra
que o valor intrínseco de uma obra literária possui um papel muito
menor no processo de recepção e sobrevivência das mesmas do que
normalmente se pressupõe (LEFEVERE, 2007, p. 13). Na verdade, o
próprio julgamento do que é ou não um texto literário é extremamente
instável, e os juízos de valor, conforme Eagleton, “têm uma estreita
relação com as ideologias sociais” (EAGLETON 1994, p. 17). Para
Eagleton, sempre interpretamos as obras literárias “à luz de nossos
próprios interesses” e essa “poderia ser uma das razões pelas quais certas
obras literárias parecem conservar seu valor através dos séculos”(IBIDEM,
p. 13, grifo meu). Diz ele:

Pode acontecer, é claro, que ainda conservemos


muitas preocupações inerentes à da própria obra,
mas pode ocorrer também que não estejamos
valorizando a ‘mesma’ obra, embora assim nos
pareça. O “nosso” Homero não é igual ao
Homero da Idade Média, nem o “nosso”
Shakespeare é igual ao dos contemporâneos desse

2
“It therefore seems imperative to clearly distinguish between two different uses of the term
“canocity”. For it is one thing to introduce a text into the literary canon, and another to
introduce it through its model into some repertoire.”
3
Diz Even-Zohar: “In the second case, wich may be called dynamic canocity, a certain
literary model manages to establish itself as a productive principle in the system through the
latter´s repertoire. It is the latter kind of canonozation wich is the most crucial for the
system´s dynamics”.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


O papel dos poetas-tradutores na formação do cânone da poesia traduzida no brasil (1960-
2009)| 21
autor. [...] Todas as obras literárias, em outras
palavras, são “reescritas”, mesmo que
inconscientemente pelas sociedades que as lêem;
na verdade, não há releitura de uma obra que não
seja também uma “reescritura” (IBIDEM).

No conto “Pierre Menard, autor del Quijote”, Jorge Luis Borges


demonstra com propriedade que o tempo altera substancialmente a
recepção das obras, e que um mesmo texto assume significados bem
diversos de acordo com o momento histórico em que é lido. Mesmo as
obras que se mantêm no centro do cânone ocidental são ressignificadas
de tempos em tempos por meio da crítica e também têm a sua linguagem
atualizada por meio da tradução. Outro aspecto a se ter em mente é que
um mesmo poeta pode ser traduzido com objetivos diferentes em épocas
distintas ou na mesma época por poetas seguidores de diferentes poéticas.
Por exemplo: o Rilke de Dora Ferreira da Silva não é o mesmo de
Augusto de Campos; o Byron em tradução dos poetas românticos não é o
mesmo do poeta-tradutor Paulo Henriques Britto.
Lefevere enumera alguns fatores que influenciariam na
canonização ou na não canonização dos trabalhos literários. Para ele,
muito mais que o valor em si, trabalhariam para a inclusão de
obras/modelos no cânone o poder, a ideologia, a instituição e a
manipulação. Ele explica que

Produzindo traduções, histórias da literatura ou


suas próprias compilações mais compactas, obras
de referências, antologias, críticas ou edições,
reescritores adaptam, manipulam até um certo
ponto os originais com os quais eles trabalham,
normalmente para adequá-los à corrente, ou a uma das
correntes ideológica ou poetológica dominante de sua
época (IBIDEM, p. 23, grifo meu).

Por isso é relevante a informação de que muitos dos poetas-


tradutores cujas escolhas apreciei em minha pesquisa atuem ou tenham
atuado também como professores em instituições de ensino superior,
como críticos, editores e organizadores de antologias, papéis esses que
reforçam a sua posição no campo literário, somando às suas escolhas a
força ideológica da instituição a que pertencem (ora como professores da
Universidade, ora como membros da Academia Brasileira de Letras ou
poetas agraciados por prêmios diversos de certas instituições).

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


22 | Marlova Gonsales Aseff

2. Disputas pelo centro do cânone

Se observarmos a evolução literária, veremos que periodicamente


ocorrem mudanças. Octavio Paz nota que “a história da arte e da
literatura se desdobra como uma série de movimentos antagônicos:
romantismo, realismo, naturalismo, simbolismo”. Paz diz que na arte
moderna, tradição significa ruptura e não mais continuidade. Estaríamos
diante da “tradição da ruptura” (PAZ, 1996, p133-134). A arte
contemporânea parece ter se tornado ainda mais provisória. Conforme
Haroldo de Campos, essa arte produzida numa civilização em constante
transformação “parece ter incorporado o relativo e o transitório como
dimensão mesma do ser” (1976, p. 15). Lefevere tenta descrever esse
processo de mudança no interior do sistema literário da seguinte forma:

Uma vez estabelecido um sistema literário, ele


tenta alcançar e manter um “estado estável” [...],
um estado em que todos os elementos estejam em
equilíbrio. [...] Porém há dois fatores no sistema
literário [...] que tendem a agir contra esse
desenvolvimento. Os sistemas se desenvolvem de
acordo com o princípio da polaridade, que
sustenta que todo sistema em algum momento
desenvolve seu próprio contra-sistema, como a
poética romântica, por exemplo, alguma vez virou
a poética neoclássica de ponta cabeça, conforme o
princípio da periodicidade, que sustenta que
todos os sistemas estão sujeitos à mudança
(LEFEVERE, 2007, p. 67).

Estando inserido nesse contexto de rupturas periódicas, temos,


portanto, que a autoridade do cânone passa por contestações de tempos
em tempos, fazendo com que esse conjunto de obras e/ou modelos seja
questionado e revisado. Afinal, como vimos, a canonicidade não é algo
inerente à obra. Acontece então de obras desconsideradas em um
determinado período histórico passarem a ser valorizadas. A poesia de
John Donne, por exemplo, foi “relativamente desconhecida e pouco lida
[...] até o seu redescobrimento por T.S. Eliot e outros modernistas” ( H.
de CAMPOS, 1976, p. 13). No Brasil podemos citar o exemplo da obra
de Sousândrade e de Gregório de Matos, o Boca do Inferno, ambas
revalorizadas a partir da leitura de H. de Campos. Portanto, o canônico

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


O papel dos poetas-tradutores na formação do cânone da poesia traduzida no brasil (1960-
2009)| 23
passa a ser simplesmente o conjunto de obras ou de normas aceitas em
determinados períodos por determinados grupos.
Fica evidente que também no campo literário existem as disputas
pelo “poder”, em busca da ocupação de certo “centro”. Ocorre o
fenômeno de diferentes escolas críticas, conforme explica Lefevere,
tentarem elaborar cânones próprios para firmar o seu próprio cânone
como único (LEFEVERE, 2007, p. 55). Também podem ocorrer disputas
entre centro e periferia, ou melhor, entre centros e periferias, entre
literaturas diferentes e também no interior de uma mesma literatura.
Casanova sublinhou esse viés de conflito no espaço literário em A
república mundial das letras (2002). Nessa obra, ela esboça um princípio de
história mundial da literatura na qual concebe o “universo literário”
como palco assimétrico de disputas pela hegemonia intelectual, onde não
faltam rivalidades, rebeldes e revoluções. Para Casanova, a luta pelo poder
na “política literária” não segue os instáveis mapas geopolíticos, mas um
mapa intelectual (IBIDEM, p. 24).
No Brasil dos anos 1950, isso ficou bem marcado pelas duas
linhas críticas que se estabeleceram, representadas pelo grupo Clima
(formado por jovens críticos literários procedentes da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da USP) e pelo Noigandres (formado
inicialmente pelos Irmãos Campos e por Décio Pignatari), oferecendo
diferentes interpretações sobre a literatura brasileira, elegendo ao mesmo
tempo as suas referências. Para Motta, “duas correntes críticas
prestigiosas, uma histórico-evolutiva, sensível à ideia de ‘formação’, a
outra apoiada numa ‘historia sincrônica’, ou num ‘tempo longo [...],
avessa à questão das origens primeiras, embora não à da originalidade
(MOTTA, 2002, p. 44). Como sabemos, o grupo Noigandres foi o
fundador do movimento da poesia concreta no Brasil. Esses poetas se
rebelaram contra os preceitos estéticos da Geração de 45, formada por
poetas que tinham como ponto de encontro o Clube de Poesia, em São
Paulo.
“Não nos afinávamos com o conservadorismo da Geração de
45”, justifica Augusto de Campos ao falar do rompimento com o modelo
poético vigente (PRIOSTE, 2004, p.13). Mais especificamente, o
movimento da poesia concreta foi uma reação a um tipo de poesia de
caráter sentimental ou confessional. Após a rebeldia representada pelo
modernismo da Semana de 1922, houve uma reacomodação e um
retorno aos valores mais tradicionais do verso. Os concretistas, então,
propuseram uma retomada dos valores do primeiro modernismo. O

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


24 | Marlova Gonsales Aseff
manifesto “Plano-piloto para a poesia concreta”, publicado em 1958,
afirmava que o ciclo histórico do verso enquanto unidade rítmico-formal
estava acabado. Ao mesmo tempo, a partir dos anos 1960, começam a
traduzir e a publicar as suas referências, ou seja, obras que compunham o
cânone ou o “paideuma” do grupo, escolhidas no repertório da literatura
mundial. Não foi por acaso, também, que as categorias de criação, crítica
e do combate à suposta “inferioridade” da tradução frente ao original
estiveram no centro do esforço teórico dos irmãos Campos.
No ensaio “Da tradução como criação e como crítica”, Haroldo
de Campos, apoiado em Ezra Pound, defende que os motivos primeiros
do tradutor que seja também poeta ou prosador deve ser a configuração
de uma tradição ativa. Afirma que o escritor-tradutor, ao configurar
determinada tradição por meio da tradução, faz um exercício de
compreensão e também uma operação de crítica “ao vivo” (H. CAMPOS,
1976, pp. 31-32, grifos meus). Por isso, a escolha de textos por eles
traduzidos não foi de modo algum aleatória, mas revelou quais os
elementos da tradição que eles consideravam que permaneciam “matéria
viva” para configurar o “presente poético”. Mais tarde, também iriam
questionar, pelo lápis de Haroldo de Campos, o cânone literário de obras
nacionais incluído na Formação da literatura brasileira, de Antonio
Candido, alegando que o período Barroco de nossa literatura,
representado pelo poeta Gregório de Matos, havia sido injustamente
“sequestrado” da Formação.4
Moriconi afirma que “a pedagogia concretista foi contraditória
na exata medida em que conjugou práticas de guerrilha anticanônica ao
discurso da imposição canônica” (MORICONI, 1996, p.304). Não vejo
contradição, uma vez que esse grupo de poetas tentou enfraquecer ou
invalidar certo cânone para colocar outro em seu lugar, o seu próprio. Na
realidade, eram dois estratos do sistema literário brasileiro em disputa
pela hegemonia. Even-Zohar deu o nome de estratificação dinâmica ao
fenômeno das tensões entre estratos de um sistema, assim como a luta
permanente entre vários estratos:

As tensões entre a cultura canonizada e a não-


canonizada são universais. Estão presentes em
todas as culturas, uma vez que uma sociedade
humana não-estratificada simplesmente não
existe, nem mesmo utopicamente. Não há

4
Ver O sequestro do barroco.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


O papel dos poetas-tradutores na formação do cânone da poesia traduzida no brasil (1960-
2009)| 25
linguagem não-estratificada, mesmo quando a
ideologia dominante que gere as normas do
sistema não permite uma explícita consideração
de qualquer outro estrato além do canonizado. O
mesmo é verdade para a estrutura da sociedade e
para tudo envolvido nesse complexo fenômeno
(EVEN-ZOHAR, 1990, p.16)5.

Para Even-Zohar, as mudanças ocorrem quando um estrato


vence o outro, fazendo com que alguns fenômenos sejam arrastados do
centro para a periferia, abrindo caminho para outros ocuparem o centro.
No entanto, para Even-Zohar, um polissistema nunca tem apenas um
centro e uma só periferia, o que torna as análises mais complexas. Tais
leituras enfatizam a multiplicidade de interseções possíveis e as tensões
entre o centro do sistema e a sua margem ou periferia, entre os estratos
canonizados e os não-canonizados. Attwater lembra que o cânone nunca
se limita a uma única cultura: “toda a cultura tem o seu próprio cânone,
sendo que o mesmo inclui textos traduzidos de várias outras culturas” 6
(ATTWATER, 2011, p. 28). Portanto, fica claro que o ato de escolher
traduzir a obra de um poeta e não de outro pode assumir vários
significados no interior de determinado sistema literário.

3. O papel dos tradutores

Anthony Pym admite que embora seja evidente que os


tradutores tenham importância na história da tradução (e, por
conseguinte, na história literária), é difícil dizer exatamente qual é o seu
papel em termos coletivos ou individuais. Uma de suas hipóteses é de que
os tradutores são “active effective causes” [literalmente, causas ativas
efetivas], ou seja, sujeitos que intervêm na história e exercem um tipo de
poder (PYM, 1998, p.161). Mas quais seriam as formas pelas quais os

5
“The tensions between canonized and non-canonized culture are universal. They are
present in every human culture, because a non-stratified human society simply does not
exist, not even in Utopia. There is no un-stratified language upon earth, even if the
dominant ideology governing the norms of the system does not allow for an explicit
consideration of any other than the canonized strata. The same holds true for the structure
of society and everything involved in that complex phenomenon.”
6
“ Nor is canon limited to a single culture; each culture has its own and in any one culture
the canon will
include texts translated from several.”

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


26 | Marlova Gonsales Aseff
tradutores costumam intervir na história e exercer tal poder? Uma das
possibilidades seria, é claro, quando os mesmos escolhem o que irão
traduzir. Susana Kampff Lages afirma que “é preciso lembrar que por trás
das motivações pelas quais certas obras adquirem importância em certas
culturas, está a opção de certos escritores ou tradutores por traduzir
determinadas obras” (LAGES, 2007, p. 88). É também como sustenta
Leyla Perrone-Moisés ao estudar os escritores-críticos: “ao escolher falar de
certos escritores do passado e não de outros, os escritores-críticos efetuam
um primeiro julgamento. Assim fazendo, cada um deles estabelece a sua
própria tradição e, de certa maneira, reescreve a história literária”
(PERRONE-MOISÉS 2009, p.11). O mesmo pode-se dizer das escolhas
tradutórias de poetas que vêm exercitando a tradução com certa
regularidade no Brasil.
Poder-se-ia objetar que o tradutor nem sempre tem autonomia
de escolha. Porém, mesmo quando não é ele quem escolhe a obra a ser
traduzida, poderá talvez decidir de que forma irá traduzir (o repertório
empregado, a estratégia tradutória, o projeto de tradução). Por certo, essas
escolhas estarão geralmente condicionadas à poética vigente. Conforme
Lefevere, “a luta entre poéticas rivais é quase sempre iniciada por
escritores, mas quem ganha ou perde a batalha são os reescritores”
(LEFEVERE, 2007, P. 67).
O tradutor, como queria Goethe, atua como um promotor desse
“intercâmbio espiritual” entre as literaturas, e movimenta-se num espaço
de intersecção entre culturas e línguas. E o tradutor que também atua
como poeta ou escritor assume dois papéis: o de importador de textos e o
de produtor em seu sistema literário. Por isso, saber se um tradutor de
poesia é também poeta transforma-se em um fator relevante de análise,
pois esse fato trará consequências ao sistema literário em questão. Como
a tradução de poesia se processa numa operação profunda no interior da
linguagem, que se materializa na operação de “desmontar” e “remontar”
um poema, é possível sugerir que nessas circunstâncias (quando um poeta
traduz outro) seja bem maior a chance de novos modelos serem inseridos
com sucesso em um dado sistema literário. O contrário também é
verdadeiro: o poeta-tradutor poderá também adaptar a poética do autor
estrangeiro aos modelos predominantes em seu meio literário.
Em ambos os casos, o escritor ou poeta, ao incursionar pela
tradução, atua na seleção do bem estrangeiro que passará a fazer parte do
espaço nacional e empresta uma marcação a esse texto. Outro aspecto é o
interesse de quem “se apropria” de um autor por meio da tradução. Ou,
como disse Bourdieu, “publicar o que gosto é reforçar minha posição no

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


O papel dos poetas-tradutores na formação do cânone da poesia traduzida no brasil (1960-
2009)| 27
campo [literário]” (BORDIEU, 2002, p. 4). O poeta-tradutor relaciona o
seu nome ao do autor traduzido, fortalecendo a sua persona poética e
ligando a sua imagem à do autor traduzido. Como resume Valery
Larbaud, o tradutor “ao mesmo tempo em que amplia a sua riqueza
intelectual, enriquece a literatura nacional e honra seu próprio nome”
(LARBAUD, 2001, p. 73). Também as editoras, por vezes, procuram ligar
o nome de um determinado escritor ou poeta à obra traduzida, por
acreditar que o público o identifica com um dado gênero ou estilo
literário.
Não quero dizer com isso que considere as escolhas tradutórias
dos poetas uma mera questão de “marketing” literário. Elas representam,
em grande parte dos casos, uma maneira que os mesmos encontram para
aproximarem-se de determinada tradição, através da qual buscam o
significado do seu fazer artístico. Para T.S. Eliot:

Nenhum poeta, nenhum artista de área alguma


tem seu completo significado sozinho. O seu
significado, a sua apreciação é a apreciação da sua
relação com os artistas e os poetas mortos. Não se
pode avaliá-lo sozinho; deve-se posicioná-lo, por
contraste e comparação, entre os mortos. Digo
isso como um princípio de crítica estética, não
meramente histórica (ELIOT, 1950, p. 49).7

Assim, traduzir pode ser uma forma eficiente de se filiar a uma tradição, a
uma estética ou a uma família poética.

4. Poetas-Tradutores e a tradução de poesia no Brasil entre 1960 e


2009

Para o levantamento realizado para a pesquisa de doutorado em


Estudos da Tradução “Poetas-tradutores e o cânone da poesia traduzida
no Brasil (1960-2009)” computei um universo de 314 tradutores de poesia
atuando no Brasil num período de cinco décadas (1960-2009), sendo que,

7
“No poet, no artist of any art, has his complete meaning alone. His significance, his
appreciation is the appreciation of his relation to the dead poets and artists. You cannot
value him alone; you must set him, for contrast and comparison, among the dead. I mean
this as a principle of æsthetic, not merely historical, criticism.”

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


28 | Marlova Gonsales Aseff
desses, 145 foram identificados como poetas. O critério para ser
considerado um poeta foi o de ter reconhecimento no meio literário e
pelo menos um livro de poemas publicado.

Gráfico 1:
Poetas entre os tradutores de poesia no Brasil (1960-2009)

Mas para quê tentar quantificar os tradutores de poesia e, entre


eles, os poetas-tradutores atuantes em um determinado período no Brasil?
Pensando nos tipos de cânone propostos por Even-Zohar, temos que os
poetas-tradutores, além de incluir a obra traduzida no sistema literário
nacional, também tendem a introduzir um novo repertório aprendido e
exercitado no processo de tradução no seu trabalho poético autoral. Já a
identificação dos tradutores em geral serve como mais um dado para o
mapeamento do nosso sistema literário e cultural, e que deve ser
analisado em conjunto com os demais. Casanova, por exemplo, sustenta
que o número de tradutores literários e de “poliglotas” que atuam num
dado sistema literário é um aspecto relevante a ser destacado, pois, para
ela, a presença desses “intermediários transnacionais” é um fator que dá a
medida do poder e do prestígio de determinada literatura (CASANOVA,
2002, p.37).
A pesquisa indicou que, mesmo em menor número, os
tradutores que também são/eram poetas assinaram um número maior de
traduções no período estudado. Do total de 452 obras poéticas de autores

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


O papel dos poetas-tradutores na formação do cânone da poesia traduzida no brasil (1960-
2009)| 29
individuais8 traduzidas e editadas e que aparecem no levantamento
bibliográfico, 309 delas tiveram a sua tradução assinada por pelo menos
um poeta (por vezes, a tradução é assinada por vários tradutores) e apenas
143 por não-poetas. Isso pode ser verificado no Gráfico 2:

Gráfico 2
Poetas e a tradução poética no Brasil (de autores individuais, 1960-2009)

Assim, conforme o levantamento bibliográfico, os poetas-


tradutores foram responsáveis por quase sete entre dez traduções poéticas
publicadas no Brasil no período estudado.
A influência dos poetas-tradutores é ainda maior no segmento
das antologias. Constatou-se que das 104 antologias mistas de poesia
estrangeira publicadas entre 1960-2009, 76 delas, o equivalente a 73%,
foram organizadas e/ou traduzidas por poetas, 27 foram organizadas e/ou
traduzidas por não-poetas e de apenas uma não se encontrou referências
do tradutor.

8
Chamo de obras de autores individuais aquelas traduções cujo original é de autoria de
apenas um poeta, ou seja, que não se configuram como antologias com poemas de vários
poetas.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


30 | Marlova Gonsales Aseff
Gráfico 3:
Poetas-tradutores e a antologização

A antologização é um relevante fator para a canonização de uma


obra ou modelo literário, uma vez que ao selecionar e organizar os textos,
editores e tradutores procedem a uma manipulação que interfere em sua
recepção. Elas também teriam o poder de refletir, expandir ou
redirecionar o cânone de determinado período (GOLDING, 1984, p.
279).
A disponibilidade de textos traduzidos reunidos em antologias
também traz consequências nas instituições de ensino, visto que as
antologias costumam ser bastante usadas para fins didáticos. E, do ponto
de vista editorial, é por meio desse tipo de publicação que os editores têm
um instrumento para captar a atenção de determinado público e testar a
aceitação de novos autores e mercados. Portanto, o protagonismo dos
poetas-tradutores na organização e/ou tradução de antologias é mais um
forte indicativo da sua interferência no sistema literário brasileiro.
O gráfico a seguir traz o número total de antologias publicadas por década
e demonstra a parcela que foi traduzida e/ou organizada por poetas-
tradutores.

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O papel dos poetas-tradutores na formação do cânone da poesia traduzida no brasil (1960-
2009)| 31
Gráfico 4:
Total de antologias por década versus antologias traduzidas e/ou
organizadas por poetas:

Pode-se observar que em todas as décadas estudadas é muita alta


a proporção de antologias em cujos projetos estavam envolvidos poetas-
tradutores, não baixando de 60%, na década de 1960, e alcançando o
nível máximo de 88% na década de 1980. Na década de 1970, a
proporção foi de 60% e nas décadas de 1990 e 2000, 75% e 70%
respectivamente. Se a antologização, como vimos, é um fator relevante de
inclusão no cânone, é preciso admitir que os poetas-tradutores exerceram
o seu poder.

5. Conclusões

A intensa atividade tradutória dos poetas no Brasil nos últimos


cinquenta anos ampliou o contato das letras brasileiras com diversas
literaturas estrangeiras. Pode-se dizer que tal relação intensificou-se a
partir do projeto dos poetas concretos, por isso a sua experiência e o seu
paideuma são um referencial para se analisar a poesia traduzida no Brasil
a partir dos anos de 1960. Assim como para Ezra Pound, para os irmãos
Campos, a escolha tradutória foi vista como o fruto de uma “militância”

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


32 | Marlova Gonsales Aseff
em prol de um projeto estético para o presente. O aparentemente simples
ato de escolha de um título e da maneira como se iria traduzi-lo começou
a ser encarado como uma forma de intervenção e de poder exercida pelo
tradutor, além um ato de crítica.
Ao escolher certas obras para traduzir, os poetas trabalharam
pela continuidade ou pelo rompimento de determinado cânone e, ao
mesmo tempo, buscaram as suas filiações poéticas e caminhos para a sua
produção autoral. As escolhas dos poetas-tradutores contribuíram para a
configuração dos atuais cânones poéticos no Brasil, não somente do
cânone da poesia traduzida, mas também de novas formas e/ou dicções
poéticas da própria poesia brasileira. Conforme vimos anteriormente com
Even-Zohar, quando um modelo é inserido no repertório de recursos
poéticos de uma língua, ocorre um tipo de canonização de maior
relevância para o sistema literário do que a simples presença de um texto
traduzido. Por isso mesmo, quando o tradutor é também poeta, são
maiores as chances da assimilação de novos recursos estilísticos no
repertório poético local. Ao usar a tradução como forma de exercício
poético, o poeta quase sempre levará algo dessa experiência para a sua
produção autoral. Além disso, boa parte dos poetas, além da tradução,
estiveram, em geral, envolvidos em outras atividades que preparam as
obras para a canonização, como a antologização ou a crítica exercida nos
prefácios das traduções.
Por meio do levantamento das traduções realizadas pelos poetas-
tradutores foi possível medir a intensidade da prática da tradução entre
eles tradutores e o peso de suas escolhas tradutórias no universo da
tradução de poesia no Brasil entre 1960 e 2009. Chegou-se a um número
de 314 tradutores de poesia com traduções publicadas em livro no Brasil,
sendo que 145 deles foram identificados como poetas. Ou seja, os poetas
representaram 46% do universo pesquisado, enquanto os tradutores de
poesia que não são/eram poetas constituíram a maioria: 54%. No
entanto, surpreendeu o fato de que, mesmo em minoria numérica, os
poetas-tradutores foram responsáveis por 68% dos títulos de poesia
traduzida publicados (autores individuais) no período pesquisado. Esse é
um indicativo quantitativo da produtividade e do engajamento dos poetas
na tarefa da tradução de poesia no Brasil. No caso das antologias mistas,
os poetas-tradutores estiveram envolvidos em 72% dessas publicações,
uma mostra da sua ascendência no sistema literário e na canonização de
obras e modelos. Em todas as décadas estudadas, foi expressiva a
participação dos poetas-tradutores como organizadores e tradutores de

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2009)| 33
antologias de poesia traduzida, variando entre 56% na década de 1960 até
88% na década de 1980.
O levantamento bibliográfico de tradução de poesia que serviu
de base para este estudo também acabou por revelar variados aspectos
dessa área da cultura no Brasil, tanto em termos quantitativos como
qualitativos. A partir do conjunto dos dados colhidos, chegou-se a uma
clara percepção do espaço conquistado não somente pelos poetas-
tradutores, mas também pela própria tradução de poesia no sistema
literário brasileiro.

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Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 37

EXPERIÊNCIA DE LEITURA, RECEPÇÃO E


TRADUÇÃO: O ROMANCE A ILHA DO DIA
ANTERIOR, DE UMBERTO ECO, NO BRASIL
Elizamari Rodrigues Becker
Patrizia Cavallo

RESUMO: Três experiências que para o leitor são de vital importância –


a de leitura, tradução e recepção – representam o foco deste trabalho, cuja
primeira parte oferece uma reflexão teórica sobre esses momentos,
complexos e interconectados desde sempre. Esse preâmbulo teórico é
necessário para a análise destes fenômenos na prática, graças à avaliação
da leitura, tradução e recepção do terceiro romance escrito por Umberto
Eco e traduzido em português por Marco Lucchesi. A obra foi publicada
no Brasil em 1995, sob o título A Ilha do Dia Anterior, alcançando grande
sucesso de público, o mesmo público cujas experiências de leitura e
recepção serão aqui comentadas, graças a um corpus de resenhas, artigos e
comentários extraídos tanto de blogs quanto de jornais, revistas e livros.
Por último, mas não menos importante, a experiência do tradutor Marco
Lucchesi será descrita e comentada a partir de textos autobiográficos e
entrevistas por ele concedidas aos jornais da época. Através da análise
desses materiais, foi possível nos aproximarmos da experiência de leitores
“comuns” e “especializados” e aprofundarmos o estudo da tarefa e dos
desafios impostos ao tradutor: isso representa uma oportunidade de
refletirmos sobre a belíssima experiência humana da leitura, tradução e
acolhimento de um romance de grande impacto e erudição, escrito pelo
célebre Umberto Eco.
Palavras-chave: Leitura. Tradução. Recepção.

ABSTRACT: Three experiences that are of utmost importance for the


reader – reading, translation and reception – are the core driving forces of
this work, whose first part offers a theoretical overview over these
moments, which have always been complex and interconnected. This
theoretical preamble is necessary to analyse the three phenomena in
practice, by means of assessing the reading, translation and reception of
the third novel written by Umberto Eco and translated into Portuguese by
Marco Lucchesi. The novel was published in Brazil in 1995, under the

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


38 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo

title A Ilha do Dia Anterior, and was hailed as great success by the public,
the same public whose experiences of reading and reception are herein
commented, using a corpus of reviews, articles and commentaries taken
from blogs, newspapers, magazines and books. Last but not least, the
experience of the translator Marco Lucchesi is described and commented
through autobiographical texts and interviews he granted to the
newspapers of that time. The analysis of these materials has deepened our
understanding over the experience of “common” and “specialized”
readers, and added the study of the task and challenges imposed to the
translator: this represents an opportunity to reflect upon the beautiful
human experience of reading, translating and receiving into a specific
foreign literary system a novel of great scope and erudition written by the
famous Umberto Eco.
Keywords: Reading. Translation. Reception.

Introdução

Há três palavras que compõem o universo literário que são de vital


importância para o leitor, e é com base nestas que este trabalho se
constrói: leitura, recepção e tradução. Muitos estudos, livros, debates foram
consagrados a esses fenômenos que trazem em si infinitas nuances e
universos a serem descobertos. Apesar de essas reflexões poderem ser
consideradas já amplamente lidas e debatidas, acreditamos que cada
oportunidade de aprofundamento e crítica deva ser aproveitada para que
sempre mais leitores e profissionais da área possam delas se beneficiar e
criar, por sua vez, outras oportunidades de debate e reflexão crítica.
Portanto, este trabalho tem o duplo objetivo de, por um lado,
comentar brevemente o significado na história e prática literária dos
termos leitura, recepção e tradução, para criar uma ponte com o segundo
objetivo, ou seja, a análise de um exemplo prático dessas experiências,
conhecidas da maioria dos habitantes do planeta que leem, em um
recorte específico de leitores que serão aqui referidos. Um romance
italiano, escrito por Umberto Eco, traduzido por Marco Lucchesi e
publicado no Brasil em 1995, sob o título A Ilha do Dia Anterior, será o
foco de nossa análise, também realizada com base no conjunto de
materiais e documentos enviados pelo mesmo tradutor Marco Lucchesi.
Através da análise desses preciosos recursos, será possível aproximarmo-
nos mais do complexo e tão debatido fenômeno da leitura, acompanhada
pelo estudo da recepção do mencionado romance no Brasil, e

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 39
concentrarmo-nos no seu desdobramento final, com a belíssima
experiência de tradução vivenciada pelo professor, filósofo, poeta e
tradutor Marco Lucchesi.
Porque a leitura e a tradução receberam, desde sempre, uma
atenção privilegiada, apesar de os estudiosos nunca terem chegado a uma
opinião unânime sobre a íntima essência dessas atividades? Talvez porque
façam parte do universo mais reservado de uma pessoa, o assim-chamado
“leitor”, que às vezes assume o papel de tradutor, apesar de todo tradutor
sempre ser primeiramente um leitor; ou ainda porque, como diria
Antoine Compagnon:

A literatura nos ensina a melhor sentir, e como


nossos sentidos não têm limites, ela jamais
conclui, mas fica aberta como um ensaio de
Montaigne, depois de nos ter feito ver, respirar ou
tocar as incertezas e as indecisões, as complicações
e os paradoxos que se escondem atrás das ações
(COMPAGNON, 2009, p. 51).

Assim, concluímos que o ato de leitura é sempre inacabado, ainda que


para um mesmo indivíduo leitor e a despeito de uma nova leitura. A
reelaboração interpretativa é fruto da reflexão e da nossa constante busca
pela compreensão do mundo em que vivemos.

1. Leitura, recepção, tradução e suas múltiplas facetas

Os termos leitura, recepção e tradução são intimamente imbricados e


já sugerem, à primeira vista, sua relação com a área da literatura, na qual
essas três experiências caminham muitas vezes pari passu. De fato, também
Tânia Carvalhal afirma que as teorias da estética da recepção “conjugam o
estético com o histórico e, em lugar de uma história das formas, propõem
uma história de efeitos” e que “torna-se impossível dissociar tradução de
disseminação e de recepção de uma obra” (CARVALHAL, 2003, p. 235).
Ainda, é possível afirmar que todo tradutor é, primeiramente, um leitor,
como confirmado pelo tradutor Marco Lucchesi, o qual escreve que “a
tradução representou para mim aquela ânsia pós-babélica. Não bastava,
contudo, conhecer as línguas originais. Da leitura à tradução, foi um
passo” (LUCCHESI, 1997, p. 104). Nesse livro, que representa quase
uma coleção de confissões, memórias e ansiedades em relação à vida e ao
trabalho de leitor e tradutor, ele explica como foi fácil passar da

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


40 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo
voracidade de leitura de textos às tentativas de tradução dos mesmos.
Citamos aqui novamente Tânia Carvalhal, ao pronunciar-se sobre as
possibilidades da tradução, afirmando que a tradução é “uma das leituras
possíveis do texto, a realização de suas potencialidades” (CARVALHAL,
2003, p. 227). Antes de nos focarmos sobre cada uma dessas experiências,
é importante destacar que também Antoine Compagnon refletiu sobre a
intensa imbricação desses três momentos, afirmando que os estudos da
recepção se consagram “à análise mais atenta da leitura como reação,
individual ou coletiva, ao texto literário” 9 (COMPAGNON, 1998, p.
173). A tradução é, portanto, um ato de leitura escrutinizador e crítico,
que se apropria do texto lido e lhe presta devolução em outra língua. E a
leitura, por sua vez, nas suas operações interpretativas, já se constitui no
primeiro estágio da tradução.

1.1 Leitura: ontem e hoje

Nosso conceito sobre leitor evoluiu ao longo da história, seja ele


culto ou não. Lendo uma das primeiras Bíblias em língua vernácula ou
um romance em formato eletrônico com seu tablet na mão, todos foram,
antes ou depois, pelo menos uma vez em sua vida, leitores de algum texto,
romance, receita, bula etc. Porém, é só a partir dos anos 60 que o
“fantasma do leitor” (ECO, 1990, p. 2) começa insistentemente a ser
incluído nas reflexões e debates em torno do valor e do significado da
obra literária. Durante o período formalista e estruturalista da história
literária, o texto em si representava suficiência, com escassa atenção dada
ao seu autor, e menos ainda a seu leitor. Será graças à Estética da
Recepção, à Hermenêutica, à Semiótica e à Desconstrução que essas
tendências tomarão um rumo diferente, tornando o leitor um dos focos
de estudo e pesquisa. O leitor se transforma em figura digna de receber
atenção e, consequentemente, passa a ser objeto de infinitas
categorizações, por exemplo: “leitores virtuais, leitores ideais, leitores-
modelo, superleitores, leitores projetados, leitores informados,
arquileitores, leitores implícitos, metaleitores” (ECO, 2012, p. 1). O
mesmo Umberto Eco tem dedicado muitos trabalhos aos estudos sobre
comunicação, leitura, obra de arte e interpretação, em obras como Os
Limites da Interpretação, Apocalípticos e Integrados, Obra Aberta10, entre

9
Trad. nossa. No texto original : « à l’analyse plus étroite de la lecture comme réaction, individuelle
ou collective, au texte littéraire ».
10
Títulos incluídos nas referências bibliográficas.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 41
outras. Ele se concentrou sobre o conceito de interpretação e de seus
limites, além de tentar definir os papéis e os tipos de leitores com os quais
uma obra se relaciona. Em Obra Aberta, ele afirma que:

O leitor do texto sabe que cada frase, cada figura


se abre para uma multiformidade de significados
que ele deverá descobrir; inclusive, conforme seu
estado de ânimo, ele escolherá a chave de leitura
que julgar exemplar, e usará a obra na significação
desejada (fazendo-a reviver, de certo modo, diversa
de como possivelmente ela se lhe apresentara
numa leitura anterior). Mas nesse caso "abertura"
não significa absolutamente "indefinição" da
comunicação, "infinitas" possibilidades da forma,
liberdade da fruição; há somente um feixe de
resultados fruitivos rigidamente prefixados e
condicionados, de maneira que a reação
interpretativa do leitor não escape jamais ao
controle do autor (ECO, 1991, p. 43).

Esse trecho revela-se fundamental para entender as posições do Eco em


relação ao leitor e à interpretação de uma obra, distinguindo o termo
“abertura” de “infinita interpretação” e ressaltando, em obras póstumas,
que as conjecturas que o leitor finalmente faz sobre um texto “deverão ser
testadas sobre a coerência do texto e à coerência textual só restará
desaprovar as conjecturas levianas” (ECO, 2012, p. 15). Portanto, um
cuidado especial deve ser tomado na hora de supor que um texto concede
a seu leitor interpretações ilimitadas porque, de acordo com Eco, tudo
sempre voltará de forma circular ao texto, pilar de toda e qualquer
interpretação e conjectura.
De acordo com Compagnon, todos os debates e tentativas de
definir o fenômeno da leitura voltam sempre ao problema crucial da
liberdade e da restrição. É o leitor que controla o texto, ou o contrário?
Qual é o preço da liberdade de interpretação?11 Estas e muitas outras
perguntas se sucederam ao longo de décadas, e o capítulo sobre o Leitor,
no trabalho citado de Antoine Compagnon, resume bem as diferentes
correntes de pensamento sobre o fenômeno da leitura, passando pela
exclusão da figura do leitor, até à afirmação de sua consciência graças à
hermenêutica fenomenológica, à noção de leitor implícito elaborada por

11
Ver COMPAGNON, 1998, p. 172.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


42 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo

Iser e de leitor modelo de Eco, afirmando, no fim, que “as teorias sobre
leitura [...] após terem dado toda sua liberdade ao leitor, a têm de fato
retirado dele, como se esta liberdade fosse uma última ilusão idealista e
humanista da qual se precisava desfazer” 12 (COMPAGNON, 1998, p.
187). Obviamente, resulta impossível comentar e analisar as infinitas
teorias sobre leitura formuladas ao longo dos anos, mas para concluir esta
parte consideramos importante citar Luiz Costa Lima que, na introdução
de A literatura e o Leitor – um texto que oferece um estimulante panorama
construído pelas contribuições de célebres autores sobre as várias teorias
mencionadas – destaca a importância da estética da recepção pelo “realce
do leitor”, pelo caminho em direção a uma “mudança pragmática”
(COSTA LIMA, 1979, p. 13) e pelo foco na experiência estética.

1.2 Recepção: ontem e hoje

O texto de introdução de Luiz Costa Lima para o seu A literatura e o


Leitor: textos de estética da recepção, anteriormente referido, apresenta,
com muita propriedade, as teorias que, nos anos 60 e 70, revolucionaram
a ideia de leitor e de seu papel, até então negligenciada ou
insuficientemente valorizada. Igualmente, nas palavras de Umberto Eco, a
Estética da Recepção:

[...] faz seu o princípio hermenêutico segundo o


qual a obra se enriquece ao longo dos séculos com
as interpretações que delas são dadas; tem
presente a relação entre efeito social da obra e
horizonte de expectativa dos destinatários
historicamente situados (ECO, 2012, p. 9).

Até onde se sabe, quem inicialmente cunhou a expressão


“horizonte de expectativa(s)” foi Hans Robert Jauss, importante
contribuinte da teoria da recepção, o qual distingue entre o efeito,
momento trazido pelo texto, e a recepção que concretizaria o sentido
“como duplo horizonte – o interno ao literário, implicado pela obra, e o
mundivivencial, trazido pelo leitor de uma determinada sociedade”
(JAUSS, 1979, p. 50). Jauss aprofundou também a noção de “prazer

12
Trad. nossa. Texto original: “les théories de la lecture [...] après avoir donné toute sa liberté au
lecteur, elles la lui ont en effet reprise, comme si cette liberté était une ultime illusion idéaliste et
humaniste dont il fallait se défaire”.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 43
estético” que, segundo ele, se distingue dos outros prazeres simples
porque “exige um momento adicional, ou seja, uma tomada de posição,
que exclui a existência do objeto e, deste modo, o converte em objeto
estético” (JAUSS, 1979, p. 75). Claramente, a estética da recepção tem
outros representantes célebres, como Wolfgang Iser, o qual se dedicou a
estudar, dentre outras coisas, a interação entre o texto e o leitor, e sua
assimetria fundamental, devido aos vazios que só o leitor pode preencher.
Um dos conceitos principais das teorias de Iser é a noção de leitor
implícito, que representaria uma estrutura textual pela qual o leitor real é
guiado.
Sem entrar nos detalhes destas teorias, é importante reter, para
fins deste trabalho, a ideia de que a palavra “recepção” adquiriu novas
significações graças aos teóricos da Escola de Constança e outros que os
sucederam, tornando o leitor um elemento ativo e decisório no que diz
respeito ao valor e significação da obra de arte. O leitor adquire um papel
dinâmico, cujo ato de leitura coparticipa da sobrevivência da obra. Essas
noções devem ser pensadas e recontextualizadas dentro da sociedade
atual, considerando-se os fatores que poderiam ressignificar a noção de
“recepção”. De fato, se “as teorias da recepção fundamentam-se em um
pressuposto quase tautológico – o de que as obras são objeto de algum
tipo de acolhimento” (ZILBERMAN, 2008, p. 87), o mais comum destes
sendo a leitura, não podem passar despercebidos os recentes progressos
tecnológicos que revolucionaram esse “acolhimento” da obra. Em uma
época em que tudo pode ser obtido, lido, estudado e debatido em
formato eletrônico, também mudaram a recepção e a interação do leitor
com seu texto:

A interatividade como relação recíproca entre


usuários e interfaces computacionais inteligentes,
suscitada pelo artista, permite uma comunicação
criadora fundada nos princípios da sinergia,
colaboração construtiva, crítica e inovadora. A
multisensorialidade trazida pelas tecnologias é
caracterizada pelo uso de múltiplos meios, códigos
e linguagens (hipermídia), que colocam problemas
e novas realidades de ordem perceptiva nas
relações virtual/atual (PLAZA, 1990, p. 17).

Em relação à recepção de textos literários, que será o foco na


segunda parte deste trabalho, é fácil perceber que, podendo o leitor trazer

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


44 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo

sempre consigo, no formato e peso de uma tela de tablet, uma


multiplicidade de obras e textos, sua percepção e emoções vis-à-vis aquele
texto poderão mudar, porque os espaços de leitura mudam, a
sensorialidade muda, além da possibilidade de alteração da (ou de ação
sobre a) obra: “alterar textos, diagramá-los [...], realizar operações de corte
e montagem, executar scripts etc., não faz de ninguém um autor, no
sentido genuíno da expressão” (PLAZA, 1990, p. 25). Trata-se, portanto,
de uma comunhão entre homem e máquina que está já mudando o
inteiro fenômeno de leitura e recepção de um texto, e cujas futuras
consequências ainda são incertas.

1.3 Tradução: ontem e hoje

Como precedentemente anunciado, a intricada relação entre as


experiências de leitura, recepção e tradução coloca-as em uma situação de
interdependência: toda tradução é, in primis, leitura, e toda leitura é
também tradução, se pensarmos no trabalho de extração de significados e
interpretação do texto. De fato, Umberto Eco, em Quase a mesma coisa,
põe em destaque a relação entre leitura, interpretação e tradução,
afirmando que:

[...] a tradução é uma das formas da interpretação


e que deve sempre visar, embora partindo da
sensibilidade e da cultura do leitor, reencontrar
não digo a intenção do autor, mas a intenção do
texto, aquilo que o texto diz ou sugere em relação
à língua em que é expresso e ao contexto cultural
em que nasceu (ECO, 2011, p. 14).

Essa constatação revela a sensibilidade das reflexões pós-modernas sobre a


tradução, segundo as quais a tradução não é mais considerada uma
atividade bilateral de transposição palavra por palavra, mas uma prática
plurissignificativa em que outros elementos, antes ignorados, como
contexto cultural, leitor, intenção etc., assumem um papel fundamental no
processo tradutório. A tradução, cujas raízes remontam aproximadamente
ao século XVIII a.C., utilizada, sobretudo, para fins políticos, militares e
diplomáticos, tornou-se foco de estudo e pesquisa, além de ganhar status
oficial de disciplina ensinada nas universidades, somente a partir dos anos
60-70. Entretanto, tem experimentado, nestas últimas décadas, uma
considerável revitalização relativamente ao estudo de suas funções,

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 45
necessidades, valores, papéis, também na esteira do progresso tecnológico;
essa atividade, ampliada da caneta para o teclado de especialistas e não
especialistas da tradução – como escritores, jornalistas, políticos e outros
profissionais com maiores ou menores competências tradutórias – ganhou
extrema difusão e tornou-se essencial ao mundo globalizado, poliglota e
“pós-humano”, dominado pela tecnologia e pelas tentativas de
automatização da tradução.
Voltando às nossas palavras-chave e ao par tradução-recepção, é
possível afirmar, de acordo com Tânia Carvalhal, que “frequentemente, a
obra traduzida é que diretamente ecoa nos leitores e não o original”
(CARVALHAL, 2003, p.230) e que o estudo de como, porquê, quando e
quem traduziu uma determinada obra impacta diretamente o sistema
literário de um país, como será possível observar concretamente nas
próximas seções, focadas na análise da tradução e recepção do romance de
Umberto Eco, A Ilha do Dia Anterior, para a língua portuguesa. Também
Marcia A. P. Martins afirma que “a literatura traduzida participa
ativamente na configuração do centro do polissistema, no qual introduz
novos gêneros, novos modelos textuais, novas linguagens poéticas, novas
formas métricas” (MARTINS, 2011, p. 115). A tradução garante a
sobrevivência de uma obra no tempo e no espaço, permitindo “ao texto
sempre uma nova versão, um novo destino junto a leitores inicialmente
não previstos, uma transposição no tempo e no espaço que lhe assegura o
prolongamento. O texto traduzido é ainda o mesmo e já é outro”
(CARVALHAL, 2003, p. 229). A tradução tem, portanto, um poder
inovador e de recriação, está fundada na alteridade e ultrapassa todas as
fronteiras físicas e discursivas.

2. O romance A Ilha do Dia Anterior no Brasil: experiências de


leitura, recepção e tradução

O terceiro romance do escritor, semiólogo e linguista Umberto


Eco, L’Isola del Giorno Prima, é de 1994. A obra, traduzida no Brasil sob o
título de A Ilha do Dia Anterior, e em Portugal como A Ilha do Dia Antes,
chega ao Brasil em 1995 traduzida por Marco Lucchesi, pela Editora
Record. Depois dos dois sucessos internacionais, O Nome da Rosa e O
Pêndulo de Foucault, este terceiro romance traz literalmente o leitor para
outras “longitudes”.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


46 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo
Ao falar de recepção e leitura de um romance, vêm à mente os
inúmeros estudos realizados no que diz respeito à categorização, descrição
e análise do romance e de sua estrutura, por exemplo, os trabalhos de
Georg Lukács, Mikhail Bakhtin ou de Wolfgang Iser, inter alia, os quais
tentaram classificar o romance de acordo com sua tipologia e/ou valores
e/ou personagens. Este trabalho não constitui espaço para comentá-los,
porém é importante esclarecer, antes de prosseguir com a leitura e
interpretação do romance, que é impossível definir normas ou leis para
determinar e/ou fechar a interpretação de uma obra de arte, neste caso o
romance, porque uma “obra de arte, forma acabada e fechada em sua
perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é também aberta, isto é,
passível de mil interpretações diferentes, sem que isso redunde em
alteração de sua irreproduzível singularidade” (ECO, 1991, p. 40); seria
uma utopia imaginar que se poderia categorizar, de forma estéril e
unívoca, os tipos de leitores, as possíveis interpretações e os fenômenos de
recepção, “mesmo porque uma obra de arte suscita muitos códigos, e
símbolos ao seu observador, o que, evidentemente, não lhe permitiria
fazer uma única leitura dessa obra” (CALDAS, 2000, p. 62).
Para fins de comentar os processos de leitura, recepção e tradução
envolvidos com o romance em questão, as seções a seguir analisarão, em
específico, cada um deles a partir do caso concreto de A Ilha do Dia
Anterior. Aos comentários sobre leitura, leitores e recepção de textos
ficcionais, seguirá a etapa final, ou seja, um percurso dentro do universo
tradutório do texto, valendo-nos, também, das preciosas palavras do
mesmo tradutor.

2.1 Leitura e recepção do romance

Depois das observações precedentemente apresentadas sobre


leitura e recepção, incluídas na primeira parte deste trabalho, é possível
agora criar uma ponte com a leitura e a recepção “na prática”, com foco
no terceiro romance escrito por Umberto Eco e publicado no Brasil em
1994 pela Editora Record. O tradutor Marco Lucchesi gentilmente
enviou, para análise desses fenômenos, uma pasta com artigos de jornais
da época e três livros que recolhem suas experiências pessoais com o
universo da leitura e da tradução: recursos preciosos para avaliar, de
forma mais rigorosa e detalhada, o impacto do romance traduzido no
Brasil.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 47
Para falar de recepção do romance em tela, é oportuno estabelecer
o que se entende por texto de ficção:

Em sua essência, a ficção não significa identidade


entre materialidade dos fatos e estado dos fatos,
fosse apenas parcial; significa sim diferença. [...] A
função básica da recepção dos textos ficcionais [...]
está na constituição dos estados de fato e em sua
perspectivização (STIERLE, 1979, p. 147).

O texto de ficção se abre, segundo Stierle, a um primeiro


momento de ingênua ilusão, primeira etapa elementar desse tipo de
recepção, até quando o julgamento, as emoções e a tensão do texto se
insinuam e “a inverossimilhança da ficção narrativa torna-se, por efeito da
atividade não consciente do leitor, na verossimilhança da ilusão
produzida pelo próprio leitor” (STIERLE, 1979, p. 150). Os horizontes da
realidade e da ficção estabelecem uma relação de recíproca dependência,
estando a ficção, à primeira vista paradoxalmente, sempre enraizada na
realidade, porque “se tudo na ficção fosse, em princípio, diverso de nossa
experiência da realidade, ela não mais se relacionaria a um conceito de
realidade e assim não seria nem verbalmente articulável, nem constituível
na recepção” (STIERLE, 1979, p. 171). É por estas razões que o leitor
partirá sempre de sua própria experiência na hora de abordar e
interpretar um texto de ficção. Por “experiência” entendemos aqui a
grande esfera que envolve educação, formação, acontecimentos
vivenciados, sistemas cultural e linguístico de origem, inter alia. Portanto,
se pode declarar, tomando de empréstimo a voz de Umberto Eco, que:

A obra realiza-se, assim, na fruição de pessoas


concretas, que não podem transformar-se em seu
templo exclusivo, mas, uma vez tendo-a acolhido
na memória, carregam-na, por assim dizer,
consigo, através das vicissitudes do dia-a-dia,
espremendo-lhe e utilizando-lhe a substância ao
mesclá-la a volições, compreensões, emoções de
outro gênero (ECO, 1993, p. 236).

Quais são, então, os comentários, os números, os fatores que


indicam o tipo de recepção dedicada ao romance de Umberto Eco? Dos
artigos de jornais enviados pelo tradutor, todos publicados entre janeiro e
abril de 1995, leem-se repetitivamente as palavras “livro brilhante” (A

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


48 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo
ilha..., 1995, p. 10), “vendido para trinta países [...] promete ser o grande
fenômeno editorial dos anos noventa” (Os estrondos..., 1995, p. 28).
Apenas na resenha de Jerônimo Teixeira, publicada em 25.02.95, no
Segundo Caderno da Zero Hora, aparecem sinais de escasso sucesso do
romance quando o jornalista escreve que “A Ilha do Dia Anterior não está
repetindo o sucesso dos romances anteriores do Eco – sintoma, quem
sabe, do obscurantismo de uma época em que Paulo Coelho figura nas
listas de mais vendidos” (TEIXEIRA, 1995, p. 29). A exceção deste, todos
os outros jornais não apresentam dúvidas em relação ao sucesso do
romance que se configura como um livro “para quem gosta da palavra, do
jogo livre da inteligência e do cultivo do saber como o mais sólido dos
pretextos para continuarmos vivos” (GARUVA, 1995, p. 19). Em suma, a
grande maioria das referências consultadas aponta para o sucesso de
público e recepção da obra, apesar de que os romances do escritor
italiano, comumente construídos com base no labiríntico jogo da
erudição, não sejam exatamente de fácil acesso ao leitor comum.

2.1.1 O romance e o autor

Não é possível continuar e aprofundar as experiências dos leitores,


nem prosseguir com a análise da recepção, sem nos determos brevemente
sobre a figura do Umberto Eco romancista e sobre o enredo do romance.
Umberto Eco nasce em Alexandria, no norte da Itália, em 15 de
janeiro de 1932. Em 1954, com apenas 22 anos, se forma em filosofia
com um trabalho sobre São Tomás de Aquino, com o título “O problema
estético de São Tomás”, especializando-se e começando a trabalhar com
filosofia e cultura medieval. Trabalha com várias revistas, como “Il Verri”,
e através de um concurso entra na RAI (Radiotelevisione Italiana) para
pensar e criar novos programas televisivos, com outros jovens intelectuais,
mas deixa o encargo depois de um tempo (começa, graças a este, a
observar os mecanismos da comunicação de massa, sobre os quais publica
muitos estudos). Trabalha com muitas editoras e no final da década de 50
se torna codiretor da editora Bompiani, com a qual trabalha durante
muitos anos. Em 1962 publica Obra Aberta, em que começa a desenvolver
suas teorias sobre interpretação e fruição, e nesse início dos anos 60
participa da criação do célebre movimento teórico e literário de
vanguarda, conhecido como Grupo 63, do qual ele é um dos membros
mais ativos. Desenvolve estudos sobre sociologia, semiótica e cultura de
massa e publica, nessa mesma época, Diário Mínimo (1963), Apocalípticos e

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 49
Integrados (1964), A Estrutura Ausente (1968)13, inter alia. Desde 1971 se
torna professor de semiótica da Universidade de Bolonha, e seus
horizontes de reflexão e publicação abrangem desde os mitos da
modernidade até a função do leitor e a traduzibilidade. Ensina durante
um tempo nos Estados Unidos e na França e “sua vida desenvolve-se,
então, numa alternância constante entre as atividades na academia, a
carreira literária e a imprensa – é colunista da revista semanal italiana
L’Espresso, na qual escreve, entre uma infinidade de temas, sobre
Berlusconi e Wikipédia” (LONGMAN, 2010). É importante destacar que
Umberto Eco foi também tradutor, cujas obras mais famosas são os
Exercícios de Estilo, de Queneau, e Sylvie, de Gérard de Nerval, que ele
traduziu do francês para o italiano (1983 e 1999)14.
Colecionador de livros e amante da música, trataremos aqui
estritamente do Umberto Eco romancista, que é apenas uma face de seu
imenso currículo: Umberto Eco é “um dos escritores mais lidos no
mundo” (TAVARES, 2007) talvez porque “é dono de um estilo que
transita das citações eruditas à sutil ironia” (Ibidem). Em uma entrevista
recente para a Revista Época, em dezembro de 2011, Umberto Eco
declara, com 80 anos quase completados:

[...] Sou considerado um autor pós-moderno, e


concordo com isso. Vasculho as formas e artifícios
do romance tradicional. Só que procuro
introduzir temas que possam intrigar o leitor: a
teoria da comédia perdida de Aristóteles em O
nome da rosa; as conspirações maçônicas em O
pêndulo de Foucault; a imaginação medieval em
Baudolino; a memória e os quadrinhos em A
misteriosa chama; a construção do antissemitismo
em O cemitério de Praga. O romance é a realização
maior da narratividade. E a narratividade
conserva o mito arcaico, base de nossa cultura.
Contar uma história que emocione e transforme
quem a absorve é algo que se passa com a mãe e
seu filho, o romancista e seu leitor, o cineasta e
seu espectador (GIRON, 2011).

13
Os anos se referem à data de publicação na Itália.
14
Para aprofundamento de seu currículo, rico em prêmios e títulos honoríficos, ver o
seguinte link: http://umbertoeco.it/CV/CURRICULUM.htm

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


50 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo
Sua carreira como romancista começa em 1980 com a publicação
do romance, internacionalmente célebre e que recebeu adaptação para o
cinema, O Nome da Rosa, seguido em 1988 pelo romance O Pêndulo de
Foucault e, em 1994, pelo romance, comentado a seguir, A Ilha do Dia
Anterior. Desde então, Umberto Eco já publicou outros três romances,
Baudolino (2000), A Misteriosa Chama da Rainha Loana (2004) e O
Cemitério de Praga (2010)15.
No que tange ao romance, seu protagonista se chama Roberto
della Griva e é um jovem piemontês que pertence à família Pozzo di San
Patrizio e vive em pleno século XVII. Depois de ter vivenciado alguns
episódios de guerra, principalmente o cerco da cidade de Casale, mora
alguns anos em Paris, em contato com os filósofos e astrônomos da época,
no meio dos debates sobre as recentes descobertas geográficas e futuras
conquistas, e se apaixona por uma mulher, Lilia, a “Senhora” que
inspirou, ao protagonista, muitas cartas e poesias e deixou-o quase
obcecado por um amor que só imagina e nunca consegue viver. Todos os
acontecimentos e os estados de ânimo do protagonista são narrados por
meio de uma voz externa, um narrador que conta a sucessão dos eventos a
partir das cartas e do diário que Roberto teria escrito durante o naufrágio.
É exatamente um naufrágio o evento central do romance: por
causa da convocação e ameaça do Cardeal Mazarino, Roberto embarca no
navio Amarilli para espionar um inglês que teria descoberto a formula
para determinar os meridianos terrestres – instrumento fundamental e
cobiçado por várias nações naquela época, por causa da expansão
marítima. O começo do romance já define a condição, que aqui
definimos “existencial”, do naufrágio:

E orgulho-me, todavia, de minha humilhação e


por estar condenado a tal privilégio, quase
desfruto de uma salvação odiosa: acredito ser na
memória humana o único exemplar de nossa
espécie a ter naufragado num navio deserto.
(ECO, 2010, p. 9).

De fato, depois de ter começado a viagem no Amarilli, o navio


naufraga e Roberto é o único a salvar-se e refugiar-se sobre um navio
deserto, a Daphne, que também corria aqueles mares pelas mesmas razões

15
Todos os anos de publicação mencionados fazem referência à publicação na Itália, e não
no Brasil, de tais obras.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 51
do Amarilli sendo, depois, abandonada por seus passageiros que são
assassinados na ilha em frente a qual o navio é ancorado. Portanto,
Roberto se encontra sozinho em frente a tal ilha que, em entrevistas,
Umberto Eco identifica como Taveuni, uma das Ilhas Fiji. Por que aquele
lugar? Porque a tal ilha é cruzada pelo 180º meridiano, por convenção o
ponto de mudança de data. Então, depois de várias reflexões e dias
passados imaginando a presença de um Outro, o inventado irmão
Ferrante, e das conversas com Padre Caspar, que se encontrava escondido
no navio, Roberto entende que aquela era a ilha do dia anterior. Uma
ilha definida, por Furio Colombo, o primeiro a recensear o romance de
Eco em 1994 na Itália, como "tanto Paraíso, quanto Terra Prometida;
mas, também, um pedaço de terra real e visível a olho nu; ou, talvez, um
sonho”16 (BIGNARDI, 1994).
Não revelaremos aqui o final do livro, entre as obsessões e
tentativas de sobrevivência física e psicológica do protagonista: o que é
importante ressaltar é que o romance inteiro se configura como uma
metáfora da condição humana em uma época de descobertas, em
suspenso entre passado e futuro, inovação e tradição.

2.1.2 O leitor comum

Como é possível avaliar as diferentes experiências de leitura, uma


vez estabelecido que esta e a recepção de um romance são completamente
subjetivas e dependem do vivido por cada leitor, o qual interpretará a
obra de acordo com seus valores, percepções e padrões culturais? A
respeito disso, é importante reiterar que:

Todo ato de leitura é uma transação difícil entre a


competência do leitor (e conhecimento do mundo
compartilhado pelo leitor) e o tipo de
competência que um dado texto postula para ser
lido de maneira econômica (ECO, 2012, p. 84).

Para tentar analisar essas experiências, dividimos a categoria de


leitores em dois grandes grupos, o leitor “comum” e o leitor
“especializado”, incluindo no primeiro grupo todas aquelas pessoas que
não têm uma específica formação na área de Letras, Comunicação e afins,

16
Trad. nossa. Texto original: “sia Paradiso, sia Terra Promessa; ma anche un pezzo di terra reale e
visibile a occhio nudo; o forse un sogno".

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


52 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo
ou que pelo menos não são especializados no tópico tratado em
determinado texto. É bem oportuna, a resposta, aqui em tradução, do
escritor Malcolm Gladwell:

É preciso entender a diferença entre o leitor


especializado e o leitor comum. Se estou
escrevendo sobre psicologia para psicólogos, não
basta eu contar uma história atraente e apresentar
uma série de ideias acadêmicas interessantes.
Preciso convencê-los [...]. O leitor comum, o
comprador típico de livros, não é assim. Ler não é
o trabalho dele. Ele quer se divertir com as ideias.
Quando está lendo no avião, no fim de semana, à
noite em casa, o leitor comum não quer ser
convencido. Quer ser cativado (GLADWELL
apud PETRY, 2009, p. 22).

Acreditamos que a tarefa mais árdua, para um pesquisador nesta


área, seja aquela de conseguir amostras para a análise de impressões,
experiências e comentários de leitores comuns em relação a um romance:
de fato nossa pesquisa na Internet alcançou poucos resultados relativos a
“leitores comuns” que publicaram seus comentários e resenhas sobre o
livro. Primeiramente, um problema envolve a rastreabilidade (além da
confiabilidade e veracidade das informações prestadas) do perfil de quem
escreve nesses blogs, bem poucos informando detalhadamente sua
formação e tipos de estudos realizados. Em segundo lugar, é a fronteira
mesma entre as definições de leitor “comum” e “especializado” que é
movediça e muito sutil. Isso porque, mesmo um leitor não tendo
adquirido uma educação “formal” naquela área, é sempre possível que o
mesmo venha, através de leituras contínuas e focadas em certos temas, e
após pesquisas pessoais, tornar-se, de fato, um leitor mais “especializado”
do que “comum”.
Seguem quatro das amostras mais significativas, nas quais o perfil
do autor do blog era claramente visível, não denotando um leitor
especializado, e nas quais havia um comentário sobre o livro:

- Amostra nº 1 (Blog Anotações de um Bardo17):

17
http://anotacoesdeumbardo.blogspot.com.br/2012/06/resenha-ilha-do-dia-anterior.html

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 53
A ilha do dia anterior, nos mostra poderosos paradigmas religiosos e científicos da
Era da Expansão Mercantilista e nos prova que para vencer uma guerra, seja ela
uma disputa pessoal ou contra Impérios devemos conhecer muito mais do que as
fraquezas dos inimigos, temos que reconhecer as nossas limitações18.

Perfil do blogueiro: “Nascido em Maranguape, sou formado Técnico


Químico. Trabalhando atualmente na Petrobras, falo mais do que escuto
e escrevo bem menos do que gostaria”19.

- Amostra nº 2 (Blog Janela Colonial20):

Sempre que leio um romance de Umberto Eco, acabo ficando com raiva. Sempre
chego à conclusão de que ele escreve romances apenas para mostrar o tanto que é
erudito e inteligente. Foi assim com todos que eu li (O Nome da Rosa, O Pêndulo
de Foucault, Baudolino e A Misteriosa Chama da Rainha Loana). Como autor
teórico, ele é fantástico e fundamental para a área da Comunicação. Como
romancista, ele é tão bom quanto, mas dá raiva, muita raiva o tanto de erudição
que ele vomita nas páginas, como se houvesse necessidade disso. [...] Enfim, vencer
a erudição do Eco é duro, mas no final, o presente é uma história fantástica. Ou
seja, vale insistir nos livros, sempre há uma grande história neles 21.

Perfil da blogueira: “Nasci em Ouro Preto, cresci em Belo Horizonte e,


desde 2003, voltei à terra natal. Tenho interesse em cultura, artes, mídias
digitais, tradições ouro-pretanas e mineiras, literatura e cinema”22.

- Amostra nº 3 (Blog Owls’ roof23):

De uma forma geral, todos os livros do Eco me fazem lembrar a Régis, porque nós
duas dividimos essa enorme paixão literária. Mas de todos os livros do mestre
italiano... A Ilha do Dia Anterior é o que mais me faz lembrar a Régis. [...] Pela
poeticidade, pelas discussões metafórico-linguísticas, pelos amores platônicos e
desesperançados, pelo barroco, e pela inalcançabilidade da ilha do dia anterior

18
Extrato do blog citado em nota de rodapé nº 17.
19
Ibidem (nota de rodapé nº 17).
20
http://janelacolonial.blogspot.com.br/2011/08/desafio-literario-julhoagosto-ilha-do.html
21
Extrato do blog citado em nota de rodapé nº 20.
22
Ibidem (nota de rodapé nº 20).
23
http://owlsroof.blogspot.com.br/2010/11/meme-literario-dia-12-um-livro-que-te.html

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


54 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo

para um pobre náufrago que delira com um gêmeo possivelmente imaginário... por
tudo isso, esse livro é a cara da Régis. [...] No final das contas, você é quem tem de
decidir se aquele certo fulano existe ou é apenas fruto da imaginação febril do
nosso narrador; se tais e tais fatos aconteceram mesmo ou se tudo não passou de
um desejo do rapaz. [...] Ah, sim, pontos extras pela aparição do Cardeal
Mazarino! Eu só faltei sair procurando D'Artangnan enquanto lia... o que me faz
pensar que esse título vai entrar para a minha lista de releituras... 24

Perfis dos blogueiros: “A Coruja, ou Dona Lulu: Uma Coruja viciada em


livros e trabalho e que acredita firmemente que é uma rainha absolutista
sem coração. O Bode, ou Dé: Um bode que aprendeu a cozinhar para
não ir pra panela. A Gata, ou Dani: Uma gata arisca que gosta de passar o
tempo às voltas com papel e lápis de cor. A Elefanta, ou KaiLi (Ísis): Uma
elefanta que foi parar no Japão: desastre” 25.

- Amostra nº 4 (Blog Bom livro26):

É tempo de férias e por que não, de leitura. Voltando ao passado um pouco


distante, lembro-me da ansiedade por chegar ao fim do ano e poder fazer tudo o
que sonhava ao longo do período escolar. Uma das coisas que mais apreciava era
pegar uma obra na estante e passar a tarde inteira submersa em outros mundos. E
assim, decorreram-se alguns verões entre livros e passatempos. Na época do
vestibular, deparei-me com este livro de Umberto Eco que me parecia um pouco
assustador por não conseguir entender a princípio a narrativa da estória. Trata-se
de um náufrago do século XVII que se vê envolvido em um grande mistério. O
passado retorna constantemente em uma ilha onde encontra-se refugiado. E tal
qual o enredo, lia e relia....rsrsrrs No mais, é considerado um best-seller erudito ao
lado de "O Nome da Rosa". Muito bom mas tem de ler até o fim! rsrs27

Perfil da blogueira: “Cirurgiã-dentista, fã de literatura, poesia, cinema,


música e artes. Paixão por viagens, fotografias e pela vida. Em síntese,
uma eterna aprendiz!!”28

24
Extrato do blog citado em nota de rodapé nº 23.
25
Ibidem (nota de rodapé nº 23).
26
http://bomlivro.blogspot.com.br/2009/01/ilha-do-dia-anterior-umberto-eco.html
27
Extrato do blog citado em nota de rodapé nº 26.
28
Ibidem (nota de rodapé nº 26).

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 55
Como é possível observar das quatro amostras extraídas de quatro
blogs diferentes, os perfis são entre os mais variados, de técnico químico –
blog nº 1 – a cirurgiã-dentista – blog nº 4, até as divertidas descrições com
nomes de animais dos quatro blogueiros do blog nº 3, que, porém, não
fornecem a certeza de que estes não tenham uma formação especializada.
Os comentários e as resenhas, também, variam de interpretações do texto
com direta referência à vida (“devemos conhecer muito mais do que as
fraquezas dos inimigos, temos que reconhecer as nossas limitações” - blog
nº 1) até comentários de raiva contra a erudição que Eco “vomita nas
páginas” (blog nº 2), até a denúncia da dificuldade na leitura e
compreensão da narrativa (blog nº 4). Pelo que é possível entender destas
resenhas, os leitores reconhecem, e às vezes admitem, a erudição e a
intricada construção do romance pelo “mestre italiano” (blog nº 3)
Umberto Eco, assim como preanunciado por Marzia Figueira, em sua
resenha publicada na seção “Livros” de A Gazeta (1995), a qual escreve
que “a erudição do autor torna seu texto tão rico quase inacessível ao
leitor não-iniciado” (FIGUEIRA, 1995, p. 16). Também Borges de
Garuva afirma que A Ilha do Dia Anterior é um romance para adultos,
“não apenas para pessoas crescidas, mas para leitores apaixonados pelo
reconhecimento da experiência humana ao longo de seu processo
histórico” (GARUVA, 1995, p. 19). Por último, importante também citar
as palavras do professor de literatura Gilvan P. Ribeiro, o qual, em sua
resenha em A Tribuna de Minas, de 1995, afirma que:

Eco se diverte, como em seus romances


anteriores, em distribuir pistas que leitores mais
ou menos informados podem encontrar aqui e ali.
A intertextualidade permanente é mais um dos
elementos a exigir a atenção, nesse labirinto em
que tido parece estar disposto para não permitir
que se encontre a saída. E, ainda assim, a própria
intertextualidade exige cuidados (RIBEIRO,
1995, p. 13).

De fato, acreditamos que este romance “é a nova prova de que a


erudição – em se tratando de Umberto Eco – não afasta da obra o leitor”
(SEFFRIN, 1995), mas concluímos esta primeira parte sobre as
experiências dos leitores comuns ao ler este romance, afirmando que o
romance não é de todo acessível a qualquer tipo de leitor para que os

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


56 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo
desafios e as referências eruditos sejam captados ou para que a profunda
reflexão sobre a condição do ser humano seja por ele acompanhada.

2.1.3 O leitor especializado

No segundo grupo, ou seja, no de leitores especializados, estariam


incluídos os críticos literários, estudantes e professores universitários da
área de Letras ou afins, e com certeza os tradutores, que se qualificam
como uma categoria especial de leitores especializados, tendo sua leitura
“specific purposes”, ou seja, a transposição do texto de uma língua e cultura
a outra com vistas a publicações ou outros tipos de veiculações junto a (ou
a serviço de) leitores comuns. Para trazer exemplos de leituras realizadas
por leitores assim-chamados “especializados”, é importante, in primis,
comentar a presença de dois comentários críticos na contracapa da
reedição do romance pela BestBolso (2010), acompanhados por uma
síntese. As duas citações pertencem a The New York Times Book Review e a
San Francisco Chronicle:

Um romance com engenhosidade e arte. Batalhas,


poemas de amor e aventuras marítimas na época
dos descobrimentos (The New York Times Book
Review).

Maravilhosamente exótico. Uma viagem


intelectual (San Francisco Chronicle).

[...] Repleto de alusões às grandes obras do


passado, aos mestres, aos cientistas, este livro é
uma enciclopédia em que o leitor se deixará levar
pelos fascinantes andares dos labirintos que unem
a prosa de Eco (síntese da Editora).

Apesar de os dois comentários críticos e a citação extraída da


síntese não serem muito eloquentes, é possível perceber a propensão à
descrição e à promoção de um romance erudito que o leitor deve
preparar-se a enfrentar. As edições brasileiras objeto deste estudo não
apresentam outros paratextos críticos, a exceção da Nota do Tradutor no
começo que será comentada na seção relativa à experiência do tradutor.
Outros materiais preciosos a serem observados, para avaliação da
experiência dos leitores especializados, são os comentários, resenhas e
artigos de jornais, disponibilizados pelo mesmo tradutor Marco Lucchesi,

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 57
os quais representam um exemplo de leitura especializada realizada por
escritores, jornalistas, educadores e outros profissionais da área. Um
desses é Ivo Barroso, tradutor de O Pêndulo de Foucault e outras obras
importantes que, no Jornal do Brasil de 1995, afirma que:

[...] chega até nós agora seu terceiro romance, A


Ilha do Dia Anterior, seguramente melhor que os
anteriores pela fluência da narrativa, sua riqueza
de acontecimentos [...] e o fato de ser um romance
de aventuras (e não mais um romance policial) em
que a massa da erudição surge em função da
própria trama e não como adendo a ela
(BARROSO, 1995, p. 1).

O tradutor Ivo Barroso, com certeza, representa um leitor


especializado que, especialmente porque foi também tradutor de outra
obra do Eco, nos oferece um julgamento de valor que não pode ser
subestimado.
A jornalista e escritora Elisabeth Orsini, no Segundo Caderno de
O Globo, de 1995, afirma, referindo-se a O Nome da Rosa e O Pêndulo de
Foucault, que este romance “tem todos os ingredientes para superar o
sucesso destes best-sellers” (ORSINI, 1995, p. 1) e relata a experiência de
leitura de outra “leitora especializada”, ou seja, a professora de italiano da
UFF, Fanni d’Andrea Corbo, a qual teria afirmado que este romance é
“um dos melhores trabalhos do escritor italiano” e que “nele, aventura e a
filosofia caminham a passos largos” (Ibidem). Marzia Figueira, já
precedentemente citada, comenta que a trama do romance é “bem tecida
e ardida [...] há mais coisas entre a filosofia e a ficção do que pode supor o
vão leitor” (FIGUEIRA, 1995, p. 16). Outra experiência de leitura
especializada é relatada pelo escritor Borges de Garuva, o qual, em sua
belíssima resenha em A Notícia, de 1995, escreve que:

Algumas das maravilhas deste livro do Eco


passarão despercebidas para a maioria dos leitores,
para os quais a decifração do texto se dá
unicamente no plano dos acontecimentos
relatados. Por não se permitirem o acesso à
intencionalidade do texto como construção
arbitrária do espírito de um outro humano [...] a
esses leitores parecerão irrisórias as manobras que
o autor faz no sentido de surpreender a trajetória

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


58 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo
do pensamento ocidental rumo a uma idealizada
compreensão final do todo [...] (GARUVA, 1995,
p. 19).

Novamente, é possível supor, através destas palavras, que Borges


de Garuva assume que apenas os leitores especializados terão os meios
para alcançar um nível de profundidade da análise e o completo
entendimento da essência do romance.
Para concluirmos esta parte sobre as experiências de alguns leitores
“especializados”, seguem os comentários de Rosane Pavam, jornalista, a
qual destaca ainda uma vez a erudição e complexidade do romance:

Eco exibe-se. Com a justificativa de trabalhar


sobre as porções mortas da língua, constrói um
pesadelo para seus tradutores [...]. Mas os leitores,
os mesmos que fizeram seu O Pêndulo de Foucault,
de 1988, vender espetaculares 200 mil exemplares
no Brasil, saem ilesos das noites de leitura,
inicialmente árduas, posteriormente costumeiras.
Umberto Eco é um facilitador da experiência
erudita (PAVAM, 1995).

Dessa vez, a jornalista não considera, assim como os outros leitores


especializados supracitados, que a erudição do romance torne a leitura
quase impossível, ou não profunda, para o leitor comum, afirmando,
antes, que Umberto Eco facilitaria a experiência erudita e que seus
leitores estão acostumados a este tipo de leitura; segundo a jornalista, o
contrário acontece com os tradutores, em relação aos quais ela fala de
“pesadelo” a que são submetidos.

2.1.4 Recepção “de massa”

Para fins de tornar esta parte sobre leitura e recepção do romance


ainda mais completa, acredita-se necessário fazer referência ao que se
entende por “cultura de massa” e, consequentemente, por “leitura” e
“recepção” de massa; na hora de comentar a recepção de um romance
como o de Umberto Eco, não se pode deixar de lado o contexto em que
sua publicação e lançamento estão inseridos. O Umberto Eco teórico e
pesquisador afirma que:

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 59
A situação conhecida como cultura de massa
verifica-se no momento histórico em que as
massas ingressam como protagonistas na vida
associada, corresponsáveis pela coisa pública [...]
impuseram um ethos próprio [...], puseram em
circulação uma linguagem própria, isto é,
elaboraram propostas saídas de baixo (ECO,
1993, p. 24).

O romance de Umberto Eco traduzido no Brasil não pode ser


definido como produto de “massa” se por este termo indicamos aqueles
produtos “menores” ou “folhetinescos”, às vezes conhecidos como
“paraliteratura”, que há muito circulam nas livrarias e em nossas casas. De
fato, conforme testemunhado pelas resenhas acima comentadas, o
romance apresenta grande erudição e complexidade narrativa, lexical e
temática. Porém, se torna um “produto de massa” na hora de ser
comercializado e vendido em um contexto histórico exatamente
caracterizado e dominado pela “sociedade de massa”. Qual a acepção
deste termo? Com certeza, “essa expressão traz consigo o caráter
depreciativo que herdou do pensamento político conservador da época
(sec. XIX)” sendo o “isolamento, a perda da individualidade e a
atomização do indivíduo, características básicas da sociedade de massa”
(CALDAS, 2000, p. 25 e 23). Esse é apenas um exemplo de como o termo
guarda uma acepção negativa, apontando quase a falta de identidade e a
estereotipização introduzida pela sociedade capitalista; porém, a este
propósito, Eco afirma que “o erro dos apocalípticos-aristocráticos é pensar
que a cultura de massa seja radicalmente má, justamente por ser um fato
industrial, e que hoje se possa ministrar uma cultura subtraída ao
condicionamento industrial” (ECO, 1993, p. 49). Entretanto, o problema
da “cultura de massa” pode ser definido da seguinte forma:

Ela hoje é manobrada por “grupos econômicos”


que miram fins lucrativos, e realizada por
“executores especializados” em fornecer ao cliente
o que julgam mais vendável, sem que se verifique
uma intervenção maciça dos homens de cultura
na produção. A atitude dos homens de cultura é
exatamente a do protesto e da reserva (ECO,
1993, p. 51).

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


60 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo
Ou seja, mesmo os textos ditos mais eruditos estão sujeitos à
apropriação pelos mecanismos de cultura de massa, independentemente
de as manifestações dos leitores especializados prescreverem, nos
paratextos e textos críticos que escrevem, uma circulação mais restrita.

2.2. O tradutor Marco Lucchesi e sua experiência de tradução

Ao final deste percurso de análise das experiências de leitura e


recepção do romance, insere-se a fundamental contribuição do professor,
escritor e poeta Marco Lucchesi, leitor especial(izado) do romance A Ilha
do Dia Anterior, bem como tradutor admirado por todos e elogiado por
seu trabalho, até mesmo pelo escritor italiano.
Consideramos importante apresentar brevemente seu perfil, um
passo essencial para entender a experiência e as qualidades que denotam
quem decidiu se aventurar nesta árdua, desafiadora, mas estimulante
tarefa de tradução. Marco Lucchesi é poeta, ensaísta, escritor, além de
tradutor; de Umberto Eco ele não traduziu apenas A Ilha do Dia Anterior,
mas também Baudolino; é também tradutor de várias outras obras de
outros escritores e línguas29. Marco Lucchesi é, também, professor e
escritor de livros interessantes e muito profundos, além de ensaios sobre a
tradução (como A Memória de Ulisses) nos quais é possível enxergar a
infinita luta entre duas faces em constante oposição, a de tradutor e a de
autor. Essa é a resposta à pergunta “Como você concilia a sua atividade de
tradutor com a de autor?”, oferecida pelo autor em 2000 na Entrevista
para Cadernos de Tradução:

Concilio e desconcilio. Presença visível e invisível.


Dizendo e não dizendo. Às vezes é preciso separar
bem as instâncias. Outras muitas, é preciso
integrá-las. Mas hoje é tudo física quântica. O
observador interfere. O tradutor cria. O autor
traduz... (LUCCHESI, 2000, p.135).

Estudioso e tradutor também de outras línguas, como alemão,


russo, grego, latim, francês, espanhol, inter alia, Marco Lucchesi foi
considerado por muitos um “garoto prodígio”, tendo apenas 31 anos
quando da tradução – senão impecável – de inegável qualidade do
romance de Umberto Eco. Belíssimas são as palavras e os adjetivos

29
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=11342&sid=794

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 61
dedicados a Marco Lucchesi por seu colega, o escritor e tradutor Ivo
Barroso, já precedentemente citado, o qual, no Prefácio ao livro de
Lucchesi Saudades do Paraíso (brilhante sucessão de relatos de experiências
de viagem, leitura, escritura e tradução), assim o descreve:

Espeleólogo da solidão, escafandrista das


profundezas do multiego [...]. Dantesco em
virtude e vísceras [...]. Toxicômano do livro, adicto
terminal da cultura [...]. Amante dos contrastes
[...]. Marco retratista [...]. Marco reincidente [...].
Marco linguista [...]. Fazendo uma tradução
impecável, na qual se entregou às chamas da
pesquisa em seu permanente anseio de perfeição,
Marco, ao final do trabalho, recebeu do autor –
Umberto Eco – duas cartas nas quais comenta
seus [dele, Eco] erros, num torcicolo frasístico que
pode levar o leitor a pensar que tais erros sejam
do tradutor. Faço aqui a ressalva (BARROSO,
1997, p. 7-12).

Como é possível observar pelas palavras de Ivo Barroso, a visão de


Lucchesi é profundamente interdisciplinar e essa é uma das razões pelas
quais ele é um tradutor autorizado a traduzir um romance de tamanha
complexidade.

2.2.1 Dificuldades e desafios da tradução

Na Nota do Tradutor, situada no começo do romance, o tradutor


Lucchesi já explica aqueles que serão os desafios do texto:

Mais um desafio de Umberto Eco. Talvez dos


mais fascinantes [...] Também ao tradutor, este
romance representou um árduo desafio. Jamais
perder de vista a fidelidade àquelas páginas [...],
manter o compromisso dos extremos. Tais os
limites da obra. Aberta (LUCCHESI, 1995, p. 7).

Nesse pequeno trecho é possível observar a consciência do tradutor em


relação ao desafio enfrentado:

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


62 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo
[...] o leitor percebe a medida de suas dificuldades
logo que inicia a leitura desse romance ‘escrito em
barroco’, que coloca lado a lado registros antigos e
modernos, arcaísmos e neologismos, ortografia da
época – o século XVII –, expressões latinas,
regências complicadas, termos pouco familiares da
botânica, da química, da alquimia, da astronomia,
da cartografia, da medicina (FIGUEIRA, 1995, p.
16).

Em relação ao trabalho de tradução da Ilha, o mesmo Marco


Lucchesi afirma, na entrevista para Cadernos de Tradução, que:

Traduzi a Ilha, a partir de suas questões


estruturais, seguindo uma tessitura musical, como
diria mais tarde Luciano Berio. Em termos de
erudição, foi uma de minhas tarefas mais
espinhosas... O que me custou muitas horas no
computador e insônias acumuladas (LUCCHESI,
2000, p. 133).

Para a realização dessa árdua tarefa, Lucchesi ressalta as muitas horas e


meses passados no computador para que o resultado fosse o melhor
possível, na luta permanente para alcançar a perfeição em que todo
verdadeiro tradutor é engajado. Em Saudades do Paraíso, Marco Lucchesi
continua com seu testemunho sobre o trabalho exigido pelo romance:

O trabalho durou seis meses. Todo esse tempo na


Ilha. Olhando-a com amor e desespero.
Enamorado. Encantado. Aprisionado. Mais de
sessenta dicionários. O mundo tornando-se um
navio. As bibliotecas do Rio eram a estiva [...] E
algumas palavras demoravam semanas. Outras,
meses. Era preciso checar as fontes do romance.
Reexaminar as soluções. Transportar para o
português (LUCCHESI, 1997, p. 105).

Também a então gerente editorial da Record, Adélia Marques,


afirmou que “a obra levou seis meses para ser realizada, contra os até
trinta dias usualmente necessários à versão de uma obra ‘corriqueira’ da
editora” (MARQUES apud PAVAM, 1995).

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 63
Para encerrar esta breve reflexão sobre a tradução do romance,
consideramos importante colocar um trecho extraído do livro Saudades do
Paraíso, em que Marco Lucchesi revela, em tradução, o conteúdo de duas
cartas enviadas por Umberto Eco:

Obrigado pelo grande esforço. Pelo que pude


entender de sua carta, o livro foi já publicado.
Desejaria ter revisto a tradução porque percebi
que alguns tradutores não receberam, do editor
italiano, importantes correções (em especial sobre
particularidades astronômicas), que eu fui
incluindo no texto original até a segunda edição
[...] De qualquer modo, estou ansioso para ver a
sua tradução, publicada ou não, que imagino
belíssima. Mais uma vez obrigado e cordiais
saudações de seu, Umberto Eco. (LUCCHESI,
1997, p. 106-107).

E a outra:

Pelo que pude ver, a tradução parece-me bela,


realmente. Além disso, vi como os jornais
brasileiros deram justo e entusiasmado relevo ao
seu trabalho. Por isso, mais uma vez, obrigado.
Verifiquei rapidamente o texto e encontrei alguns
erros que sobreviveram, que eu mesmo encontrei
há pouco e que evidentemente não lhe foram
comunicados. Como espero que ocorra uma nova
edição, assinalo a página e a linha da edição
brasileira [...] Renovo-lhe mais uma vez os meus
agradecimentos e espero poder encontrá-lo um
dia, Umberto Eco. (LUCCHESI, 1997, p. 107-
108).

O dialogismo construído na relação autor/tradutor amadurece a leitura


de ambos e permite que as experiências de leitura, recepção e tradução
ganhem uma nova e mais estimulante perspectiva, a do autor, que
autoriza e valida suas interpretações, impondo alguns limites às do
leitor/tradutor, que as constrói e questiona a cada página. O trabalho da
tradução parte de uma leitura crítica especial, cuidadosa, sempre aberta a
novos olhares e sentidos sobre o mesmo texto.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


64 | Elizamari Rodrigues Becker e Patrizia Cavallo
3. Conclusão

O objetivo deste trabalho foi comentar e refletir, primeiramente


de forma teórica, e depois mais prática, sobre três momentos centrais da
atividade literária: o fenômeno da leitura, tradução e recepção. Ao
ressaltar que essas experiências são fortemente conectadas, uma não
podendo prescindir das outras, comentamos, in primis, importantes
teorias sobre leitura, tradução e recepção, com a contribuição teórica de
estudiosos quais Compagnon, Eco, Carvalhal, inter alia, os quais
consagram muita pesquisa e reflexões a esses assuntos.
Em segundo lugar, uma experiência concreta de tradução,
recepção e leitura foi avaliada: a do romance A Ilha do Dia Anterior por
Marco Lucchesi. Para que as reflexões teóricas pudessem se transformar
em material concreto de debate, uma pesquisa foi efetuada para avaliar as
experiências de leitores comuns e especializados, a qual teria sido
impossível sem os preciosos materiais (cópias de artigos de jornais da
época e livros) enviados pelo tradutor Marco Lucchesi. Graças à análise
desse material, e de outros extraídos pela internet, foi possível observar as
opiniões de vários leitores e profissionais da área e suas experiências de
leitura e, consequentemente, recepção da obra traduzida. Last but not least,
uma breve reflexão sobre a tarefa árdua de tradução vivenciada por Marco
Lucchesi, testemunhada por ele em livros, artigos e entrevistas, foi
desenvolvida. Árdua com certeza, mas também desafiadora e repleta de
estímulos, tomando cerca de seis meses para sua realização.
Acreditamos que a análise desses fenômenos, já vivenciados por
muitos, especialistas ou não, seja fundamental para aprofundar a força e o
valor que a leitura e a tradução têm a adicionar a nossas experiências de
leitura, juntamente ao impacto que um romance traduzido pode ter no
sistema literário do país que o acolhe. Se, como afirma Compagnon, a
experiência da leitura, como qualquer experiência humana, é certamente
uma experiência “dupla, ambígua, dividida: entre compreender e amar,
entre a filologia e a alegoria, entre a liberdade e a restrição, entre a
atenção ao outro e a preocupação consigo mesmo”30 (COMPAGNON,
1998, p. 194), então percebemos que seu estudo e aprofundamento não
podem ser negligenciados, mas sim revigorados.

30
Trad. nossa. Texto original: « double, ambiguë, déchirée: entre comprendre et aimer, entre la
philologie et l’allégorie, entre la liberté et la contrainte, entre l’attention à l’autre et le souci de soi ».

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Experiência de leitura, recepção e tradução: o romance A Ilha do Dia Anterior, de
Umberto Eco, no Brasil| 65

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dia-anterior.html> Acesso em: 15 jul. 2013.

2) Janela Colonial. Disponível em:


<http://janelacolonial.blogspot.com.br/2011/08/desafio-literario-
julhoagosto-ilha-do.html> Acesso em: 15 jul. 2013.

3) Owls’ roof. Disponível em:


<http://owlsroof.blogspot.com.br/2010/11/meme-literario-dia-12-um-
livro-que-te.html> Acesso em: 15 jul. 2013.

4) Bom livro. Disponível em:


<http://bomlivro.blogspot.com.br/2009/01/ilha-do-dia-anterior-umberto-
eco.html>
Acesso em: 15 jul. 2013.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


O imperador do Brasil e suas traduções: uma nova leitura (ou a primeira?) | 69

O IMPERADOR DO BRASIL E SUAS


TRADUÇÕES: UMA NOVA LEITURA (OU A
PRMEIRA?)
Sergio Romanelli

RESUMO: Neste artigo pretendo abordar um dos projetos desenvolvidos


pelo Núcleo de Estudos do Processo Criativo (NUPROC,
www.nuproc.cce.ufsc.br) da UFSC. Os documentos de processo
constituem-se de manuscritos de traduções de várias línguas feitas pelo
Imperador Dom Pedro II e de cartas trocadas ao longo de sua vida com
vários intelectuais europeus e americanos, além de páginas de seus diários
que trazem informações relevantes acerca da atividade tradutória. Ainda
que muitas biografias tragam a informação dessa atividade na vida do
imperador nenhum grupo de pesquisa até hoje tinha se debruçado sobre
a análise minuciosa de seus manuscritos tradutórios guardados junto ao
Arquivo Histórico no Museu de Petrópolis. Esta pesquisa conta com o
apoio do CNPq e tem recebido destaque na imprensa nacional brasileira.
Palavras-chave: Dom Pedro II. Línguas estrangeiras. Estudo de processo
tradutório.

ABSTRACT: In this work I plan to analyze one of the projects developed


by Núcleo de Estudos do Processo Criativo (NUPROC,
www.nuproc.cce.ufsc.br) of UFSC. The process documents are made up
of manuscripts of translations from various languages made by the
Emperor Dom Pedro II, letters exchanged throughout his life with many
European and American intellectuals and pages of his diaries that provide
relevant information about his translational activity. Although many
biographies bring the information of this activity in his life, any research
group to date had been working on a thorough analysis of his
manuscripts, which are now at the Historical Archive in the Petrópolis
Museum. This research has been supported by CNPq and has received
prominence in the Brazilian national press.
Keywords: Emperor Dom Pedro II. Foreign Languages. Translation
process.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


70 | Sergio Romanelli

Introdução

A pesquisa que apresento aqui está sendo desenvolvida por mim


e por um grupo de graduandos, mestrandos e doutorandos da
Universidade Federal de Santa Catarina. O projeto teve seu início em
2009 e redundou em vários artigos publicados em revistas nacionais e
internacionais e no livro Dom Pedro II: um tradutor imperial (2013)
publicado em coautoria com a Profa. Noêmia Guimarães Soares e Rosane
de Souza; além disso, a pesquisa deu origem a várias trabalhos
acadêmicos: trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e
teses de doutorado.31 Todas essas pesquisas visaram, e visam, ilustrar a
importância da tradução na vida do Imperador assim como no Brasil
imperial. Ao lado desse primeiro objetivo, há também a intenção, e diria
quase a necessidade, de resgatar esse material manuscrito esquecido
durante um século e meio; e também revisar, do ponto de vista
historiográfico, esse aspecto do imperador muito superficialmente
tachada de atividade insignificante de um monarca entediado. Talvez pelo
fato de abordar pela primeira vez a análise da atividade tradutória e
intelectual partindo de um estudo sistemático de seus manuscritos,
poderia dizer que se trata de fato da primeira leitura empírica e
abrangente deste aspecto do Imperador.
Ao estudar os manuscritos guardados no Arquivo Histórico de
Petrópolis, alguns manuseáveis e legíveis, outros já não mais analisáveis,
encontrei uma quantidade significativa de textos traduzidos de várias
línguas antigas e modernas (árabe, sânscrito, hebraico, latim, francês,
italiano, alemão, espanhol, provençal, quéchua, etc.) e uma igualmente
grande quantidade de cartas trocadas ao longo da vida com intelectuais e
cientistas do mundo inteiro. O que mais chamou a atenção de imediato
foi a abrangência dessa produção, mas, sobretudo, sua heterogeneidade;
uma heterogeneidade que apontava, porém, para um ponto firme: a
tradução era uma atividade central na vida do Imperador e não somente
uma atividade classificável, conforme os padrões da época, como
ocupação de um diletante da tradução que queria somente aprender
línguas estrangeiras; mas, ao contrário, a ferramenta estratégica para
construir uma rede de contatos e talvez um plano maior de construção de
um Brasil independente moldado nos modelos literários, culturais,

31
Para mais informações consultar a página do grupo: www.nuproc.cce.ufsc.br

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


O imperador do Brasil e suas traduções: uma nova leitura (ou a primeira?) | 71
religiosos e políticos europeus, norte-americanos e do Oriente, mas
antropofagicamente reelaborados numa nova síntese.
De fato, é quanto menos anômalo que no arquivo encontramos
cartas trocadas com católicos liberais como Cesare Cantù, com o francês
Renan, com adeptos da religião unitarista norte-americana do Channing,
etc. Ao lado de escolhas e contatos canônicos, há uma série não pequena
de traduções de textos diria periféricos e amizades com personagens da
heterodoxia tanto intelectual quanto política e religiosa. Esses aspectos de
um plano contra-hegemônico pautado na tradução, foram objeto de minha
pesquisa de pós-doutorado desenvolvida, em 2013-2014, junto à
Faculdade de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de
Antuérpia na Bélgica.
Evidentemente, não poderei esgotar aqui todas as questões
despertadas por esta pesquisa, nem analisar todo o vasto corpus, mas pelo
menos tentarei apresentar algumas recorrências e alguns destes textos
mais significativos de sua produção ainda desconhecidos ao grande
público por serem em sua maioria inéditos.

1. Dom Pedro II: entre política e literatura

D. Pedro II, ou O Magnânimo, nasceu em 02 de dezembro de


1825. Governou o Brasil no período de 1840 a 1889. Tornou-se, como já
mencionado, um esforçado tradutor, guardando em seus diários
traduções de diversas obras, em diversas línguas de nomes como: Dante,
Victor Hugo, Longfellow, Manzoni, Schiller, entre outros. Dedicou-se, de
igual forma, à troca de correspondências e a encontros com inúmeros
intelectuais, poetas e escritores, de diversas partes do mundo. Por meio
das cartas e das conversas obtinha informações, tirava dúvidas sobre
palavras, trocava opiniões, além de receber apoio desses intelectuais que
admiravam sua dedicação à tradução.
Utilizei nesta pesquisa os princípios da Crítica Genética (CG) e
dos Estudos Descritivos da Tradução (EDT) para organizar e transcrever
esses documentos de processo e para analisar sua criação.
Conforme relata De Carvalho “O Imperador escreveu 5.500
páginas de diário, registradas a lápis em 43 cadernos.” (2007, p. 29); essas
páginas se tornam fundamentais para acompanhar o seu processo criativo,
pois frequentes são as anotações acerca de sua atividade tradutória e
acerca de livros, estudos e encontros. Nos seguintes trechos há uma
confirmação da constância com que a atividade tradutória era presente
em sua vida e o papel importante que desenvolvia na sua aprendizagem de

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


72 | Sergio Romanelli
línguas e culturas estrangeiras e para a sua afirmação nos polissistemas
literário e social:

21 de novembro de 1872 5h ¼. Tomei o café e vou


traduzir do hebreu. (Alcântara, 1999, p. 344)
18 de novembro de 1876 Depois do almoço,
enquanto não se seguia traduzi os Atos dos
Apóstolos com o Henning [...]. (Alcântara, p. 435)
8 de julho de 1887 [...] 3h ½ Traduzi desde 2 ½
sânscrito com o Seibold.
12 de julho de 1887 [...] [sic] h ½. Acabei de
traduzir árabe depois de comparar a tradução dos
Lusíadas em alemão com o original e de continuar
a traduzir as Mil e uma Noites no original com o
Seibold. (Alcântara, p. 539 e p. 543)
1 de maio de 1888 [...] 8h ¾ Não pude acabar de
traduzir o Soneto de Manzoni falando de si.
11h 40’ [...] Traduzi o soneto que Manzoni fez a si
[...]. (Alcântara, pp. 678-679)

Em outros diários, após redigir uma primeira versão da tradução,


quase sempre auxiliado por um especialista da língua e da cultura de
origem, mandava transcrever a versão que, às vezes, retrabalhava; e antes
disso, ou depois, conforme os casos, enviava suas traduções para
intelectuais, tanto para presenteá-los com sua criatividade quanto para
receber deles admiração, estima e um retorno acerca da qualidade de seu
trabalho:

27 de novembro de 1890 (5a fa.) [...] 10¾ Hebraico


e Camões. Estou acabando quase a comparação
da tradução alemã dos Lusíadas com o original.
[...] Li a minha tradução do árabe do conto das
Mil e Uma Noites, que está lendo a mulher do
Mota Maia a esta e ao marido seguindo-a ela em
francês, e parecendo a ambos boa a que eu fiz.
Como continuei a minha tradução nesse livro em
branco só lhes deixei o livro da minha tradução
que está todo escrito e vou procurar o anterior
para lhes emprestar também [...]. (Alcântara, p.
878)

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


O imperador do Brasil e suas traduções: uma nova leitura (ou a primeira?) | 73
E ainda encontramos nos diários testemunhos do despertar
súbito do desejo de traduzir determinado poema, o estudo aprofundado
que seguia a esse primeiro momento de estímulo criativo e, em seguida, as
transcrições e o envio para amigos e confiantes em busca de um
julgamento ou de uma atestação de seu trabalho, confirmando certa
regularidade no seu sistema criativo:

17 de maio de 1891 [...] 10h Li pouco de poesia do


Liégeard, estudando-a para traduzi-la. (Alcântara,
p. 981)
28 de julho de 1890 [...] Deu-me vontade de
traduzir a balada de Schiller [...].
6 de agosto de 1890 [...] Vou à tradução do Sino de
Schiller depois de ter copiado o soneto com a data
de hoje para dá-lo à condessa. (Alcântara, p. 819 e
p. 822)
16 de agosto [...] 4h ¾ Acabei de ditar à
Japurazinha a cópia de minha tradução de
Schiller.
17 de agosto [...] 10h 10’ Chegando à minha sala
achei a Japurinha na cópia de minha tradução de
O Sino de Schiller [...]. (Alcântara, p. 828)

2. Dom Pedro II e Alessandro Manzoni

De todas essas traduções citadas nessas páginas do diário, resolvi


abordar aqui a tradução do italiano para o português da ode de
Alessandro Manzoni "Il Cinque Maggio". E foi justamente por causa da
tradução da ode que ele começou a corresponder-se com o poeta e
escritor italiano. Segundo Lyra (1938), as correspondências com Manzoni
se estenderam por cerca de 20 anos. Tendo início com um simples pedido
de autógrafo e algumas estrofes da ode em junho de 1851. As cartas que
se seguiram foram mais próximas e o Imperador já mais familiarizado com
Manzoni permitiu-se comparar, apreciar o poeta e sua poesia.
Encontraram-se pessoalmente em 1871, em Brussaglio.
O prototexto desta pesquisa se constitui de manuscritos
digitalizados adquiridos junto ao Arquivo Histórico do Museu Imperial
de Petrópolis e inclui: cartas de Manzoni a Dom Pedro II e vice-versa (15
no total); um manuscrito em italiano do original de Manzoni, uma versão
autógrafa de tradução da poesia "Il Cinque Maggio" de autoria do
Imperador e outra versão manuscrita de autoria do Barão da Barra.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


74 | Sergio Romanelli
Como dito, é exatamente em 1851 que Dom Pedro II traduz
pela primeira vez a ode “Il Cinque Maggio” que retoma em 1869 e em
1871, mas somente esta última versão foi encontrada no Museu Imperial
de Petrópolis. Das outras versões do Imperador não há ainda os
manuscritos, mas somente transcrições e citações indiretas, encontradas
nos livros de 1932 de Medeiros e Albuquerque (pp. 42-47) e de
Alessandra Vannucci de 2004 (pp. 79-80).
Recentemente, tenho porém encontrado uma publicação de
1885, editada exatamente no dia 5 de maio, no 64 aniversário da morte
de Napoleão ao qual é dedicada a ode, com três traduções publicadas no
Rio de Janeiro: a de José Ramos Coelho, a de Dom Pedro de Alcântara
(como consta no livro) e a do Visconde de Porto Seguro F. A. de
Varnhagen; essa publicação possibilita uma primeira análise descritiva. O
livro intitulado Cinco de Maio. Ode Heroica de Alexander Manzoni e Três
versões em Português traz um proêmio do não identificado M. O.
Tanto no proêmio, quanto nas notas explicativas à tradução do
Imperador há importantes dados sobre a fortuna crítica da tradução de
Dom Pedro, o seu reconhecimento por parte da comunidade
internacional de letrados, da qual almejava fazer parte, e a confirmação do
julgamento absolutamente parcial que dessa atividade e de sua qualidade
os biógrafos fizeram; citando um dentre todos Medeiros e Albuquerque
que prefaciou a reedição de 1932 da primeira e única coletânea de
poemas e traduções do imperador publicada até hoje, em 1888. Nela,
Medeiros (1932, p.7), que não se consegue entender por que resolve
reeditar e escrever o prefácio de algo que tão asperamente julga péssimo,
diz: "Ele sempre foi (podem vê-lo) integralmente péssimo: deficiência de
ideias, imperfeição de técnica". È verdade que Medeiros se refere aos
sonetos e não às traduções de Dom Pedro, mas parece quanto menos
estranho que, por outro lado, intelectuais europeus e norte-americanos
da fama de Manzoni e Longfellow elogiassem a qualidade das traduções
de Dom Pedro; quem não sabe escrever sonetos não sabe nem traduzir
sonetos! O proêmio é uma destruição de tudo o que Dom Pedro fez ao
longo de seu reinado tanto como político quanto como letrado e
tradutor; é tão evidente a finalidade ideológica de Medeiros que esse
prefácio só tem hoje em dia valor historiográfico. Não quero aqui
defender totalmente os feitos de Dom Pedro II, mas julgar sua produção
literária e tradutória e o papel dessa na política imperial fundamentando
essa leitura em dados empíricos e não em pressuposições apriorísticas
injustificadas.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


O imperador do Brasil e suas traduções: uma nova leitura (ou a primeira?) | 75
A ode foi de imediato aclamada pela crítica italiana e europeia e
traduzida por grandes nomes da literatura mundial, como Goethe,
Lamartine, entre outros. Cabe dizer que em já em 1882 o Sr. C. A.
Meschia reuniu em um elegante volume as diferentes versões da ode de
que teve conhecimento, ao qual deu o titulo: Ventisette traduzioni in varie
lingue del Cinque Maggio di Alessandra Manzoni, na qual está incluída a do
Imperador e considerada por ele, em uma carta que trocou com o Dom
Pedro, uma das melhores:

Majestade,
cumpro somente meu dever ao emprestar
à Vossa Majestade um exemplar da coletânea
de 27 traduções em diferentes línguas
do Cinco de Maio de Alessandro Manzoni, por
mim
publicada, pois uma das mais excelentes, e que
enriquece a própria coletânea é,
na opinião de todos
aquela que traz Vosso Augusto Nome.
(Meschia, 1883, fólio 01).32

No seu proêmio, o desconhecido autor (apud Manzoni, 1885,


pp. 17-8), após listar todas as 28, e não 27 traduções como Meschia havia
escrito, em vários idiomas da ode, afirma o seguinte acerca das três em
português:

Das portuguezas, a do Sr. José Ramos Coelho era


já ha muito lida no seu apreciado livro de Novas
Poesias; porém a de S. M. o Imperador do Brazil
cremos ser inteiramente desconhecida de quasi
todos os leitores, tendo sido apenas ouvida de
raros Íntimos nas palestras Litterarias de S.
Christovam. O livro onde se estampou não o
possuem as bibliothecas publicas d'esta capital, e
tão pouco se encontra aqui á venda em casas de
livreiros. Logo é pois uma incontestável novidade

32
Tradução minha. Maestà,/ Non faccio che adempiere un dovere presentando/ alla Maestá Vostra
un esemplare della raccolta/ di ventisette traduzioni in varie lingue/ del Cinque Maggio di Alessandro
Manzoni, da me/pubblicata, poichè una delle più eccellenti, dalle quali/ la raccolta stessa trae pregio
è, a comum giudizio/ quella che porta il Vostro Augusto Nome. Fac-símile de uma carta de Carlo
Attilio Meschia a D. Pedro II (09 agosto 1883). MAÇO 189 DOC. 8599. Arquivio Histórico
de Petrópolis.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


76 | Sergio Romanelli
litteraria, um mimo precioso a regia traducção
com que hoje brindamos, neste breve opusculo, o
público intelligente. Addicionâmos a versão do
fallecido Visconde de Porto-Seguro, (F. A. de
Varnhagen) impressa na 2a serie de Lysia Poética,
edição exhausta e livro já pouco comum.

O autor destaca a preciosidade da publicação da tradução do


Imperador, pois, como mencionado, sua primeira coletânea será somente
publicada em 1888 pelos netos, e até então suas traduções e composições
só circulavam por cartas entre intelectuais com que se correspondia e em
manuscritos autógrafos que emprestava a intelectuais da época, como os
Mota Maia, para que eles pudessem julgar seu valor.
O autor do proêmio, continuando sua apresentação da tradução
imperial, destaca o fato de não ser essa tradução um fato isolado, mas algo
comum na vida do imperador, atestando pelo menos o fato de que se
conhecia seu interesse pela atividade tradutória e que não era somente
uma distração poética, como ele aqui a descreve, e que suas traduções
eram lidas no Paço no Rio e já avaliadas discretamente, ou seja circulavam
e circulava também uma apreciação positiva paralela à que em pouca
consideração colocava essas produções do Imperador:

A traducção do Cinque Maggio não é de certo a


primeira distracção poética em que S. M. tem
empregado os lazeres do seu grave officio de
reinar. Entre esses trabalhos, conta-se uma versão
do grego, nada menos que o Promelheu de Eschylo,
de que o fallecido Dr. Duque-Estrada Teixeira leu
trechos em duas conferências da Glória. Diz-se ter
também trasladado o v canto do Inferno, o
formoso episódio de Francisca de Rimini, versão á
qual gratos rumores segredam discretos applausos.
(Manzoni, 1885, p. 68)

A grande admiração recíproca entre ele e Manzoni e a relação


intelectual e criativa é testemunhada por uma das tantas cartas que
trocaram ao longo de suas vidas. Na seguinte transcrição da carta de
15/04/1853 há por sinal uma confirmação não somente da tradução,
mas da discussão minuciosa que entretinham acerca do processo criativo
de ambos, a saber:

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


O imperador do Brasil e suas traduções: uma nova leitura (ou a primeira?) | 77
Nunca vi as duas variantes de alguns versos da
minha ode que muito gentilmente aceitou e aos
quais faz referência; nem poderia procurar por
elas pois eu mesmo pedi que não fosse permitida
a entrada na Itália das edições estrangeiras dos
meus textos. A única variante que eu conheço é a
do Ferve substituida ao serve. E para não
contradizer o hábito dos poetas, defenderei
fortemente minha variante, tanto por causa da
antitesi, à qual Sua Majestade acenou, quanto
porque o sentimento que seria expressado pelo
Ferve já aparece nas palavras ansia e indocile no
verso anterior. (Tradução nossa)33

A estrofe acerca da qual discutem na carta e que apresenta, em


algumas edições estrangeiras, variantes que tanto Manzoni quanto Dom
Pedro consideravam duvidosas é a que coloco aqui ao lado das outras
duas versões em português para acenar a uma análise descritiva:

Francisco A. de José Ramos Coelho Pedro de Alcântara Alessandro Manzoni


Varnhangen
O procelloso e trepido O procelloso e trepido O procelloso e trepido La procellosa e trepida
Gosar de vastos planos, Prazer d'uma alta Prazer d'um grande Gioia d’un gran disegno,
Do nobre peito as âncias empreza, plano, L’ansia d’un cor che
A um reino entre os A ância de um peito A ância de quem indocile
humanos indomito indomíto Serve, pensando al
Logrou feliz, com Que sonha a realeza, Serve p'ra ser sob'rano, regno,
prêmios E a ganha, e alcança E o é; e ganha um E il giunge, e tiene un
Insanos de idear. um prêmio prêmio, premio
Que era loucura Que era mania esp'rar; Ch’era follia sperar,
esp'rar,

33
[CARTA DE MANZONI A D PEDRO- 15/04/1853] Maço 119 – Doc 5892. Arquivio
Histórico de Petrópolis. a quasi tutte le lezioni differenti d’alcuni versi dell’ode di cui/ ha voluto
gradire con tanta degnazione una mia copia. Le due/ edizioni di cui mi fa cenno, io non le ho mai
viste, e non potrei/ procurarmele, avendo io medesimo fatta istanza perché non fosse/ permessa
l’entrata all’edizioni straniere de’ miei scritti. La sola/ variante che mi sia nota, è quella del Ferve
sostituito al serve./ E, per non mancare all’usanza de’ poeti, difenderò arditamente/ la mia lezione, e
per il merito dell’antitesi, accenata dalla/ Maestà Vostra, e perché il sentimento che sarebbe espresso/
dal Ferve è già toccato implicitamente nelle parole ansia e/ indocile, del verso precedente.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


78 | Sergio Romanelli
No caso de Dom Pedro, a consulta com o autor italiano parece
ter levado a um respeito da versão original. Esse exemplo mostra o
cuidado e o profundo conhecimento dos textos e autores que Dom Pedro
II traduzia. Conforme Teixeira (1917, p. 78):

A verdade, porém, é que D. Pedro II manejava os


versos com a mesma maestria com que burilava a
prosa, em qualquer idioma europeu. De todas as
traduções vernáculas da celebre ode de
MANZONI a NAPOLEÃO, nenhuma se iguala à
do Imperador, que a traduziu literalmente, verso a
verso, na mesma metrificação, mantendo as
onomatopéias do original e até a mesma expressão
– a onda dos cavallos, que pinta ao vivo o estrépido
da cavallaria.

As opções apresentadas indicam a aproximação de Dom Pedro


ao original italiano tanto no plano formal, com o respeito quase total da
morfossintaxe do original, e também uma identificação com o tema
abordado por Manzoni; como não pensar que os versos dessa estrofe não
o tenham tocado: "A ância de quem indomíto/Serve p'ra ser sob'rano / E
o é [...]".

Outra consideração, ainda que não citada ,na troca de


informações entre Manzoni e D. Perdo II, é sobre a ocorrência do termo
procelloso sem nenhuma alteração no texto traduzido. O comportamento
conservador em relação às opções lexicais demonstra uma aproximação às
normas da tradução da sua época que prezava a fidelidade ao original. A
análise dessa ocorrência foi determinada como manutenção de um
latinismo culto de alcance restrito que confirma a tendência, apontada
anteriormente, de D. Pedro II – a de manter sua tradução próxima ao
original mesmo que as opções escolhidas se distanciassem do que seria
mais comum para a língua alvo, ou seja, o português da época;
caracterizando-o então como um tradutor source oriented e mais
estrangeirizador do que domesticador.

Referências Bibliográficas

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


O imperador do Brasil e suas traduções: uma nova leitura (ou a primeira?) | 79

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2007.

LYRA, H. História de Dom Pedro II, 1825-1891. Belo Horizonte, Itatiaia,


São Paulo: EDUSP, 1977.

MANZONI, A. Cinco de Maio. Ode heroica de Alexandre Manzoni e três


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MEDEIROS E ALBUQUERQUE. Poesias completas de Dom Pedro II. Rio


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tradutor imperial. Tubarão: CopyArt/PGET, 2013.

TEIXEIRA, M. O imperador visto de perto. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro &


Maurilio, 1917.

VANNUCCI, A. (org.). Uma amizade revelada. Correspondência entre o


Imperador dom Pedro II e Adelaide Ristori, a maior atriz de seu tempo.
Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2004.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


80 | Roberto Mário Schramm Júnior

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 81

HOMERO – PRÓS E CONTRAS: A QUESTÃO


HOMÉRICA COMO UM PROBLEMA DE
TRADUÇÃO E O PROBLEMA DA
TRADUÇÃO COMO UMA QUESTÃO
HOMÉRICA
Roberto Mário Schramm Júnior

RESUMO: O presente ensaio enfoca a venerável e elusiva 'Questão


homérica'. Meu argumento se inscreve em torno das apologias às versões
homéricas de Matthew Arnold e Jorge Luis Borges, e tem como o objetivo
formular essa pergunta insondável nos termos estritos de alguma teoria da
tradução. Minha proposta: eu quero simplesmente discutir a questão
homérica como uma questão tradutológica, e, por outro lado, discutir
também a tradução como uma espécie de questão homérica. Para apoiar
meu raciocínio, pretendo confrontar alguns fragmentos das traduções de
Manuel Odorico Mendes e Donaldo Schüler para a Odisseia de Homero.
O episódio selecionado consiste na captura de Proteu por Menelau, tal
como descrito no livro quarto do poema.
Palavras-chave: Homero. Tradução Homérica. Questão Homérica.
Manuel Odorico Mendes. Donaldo Schüler.

ABSTRACT: This Essay is very much concerned with the venerable and
elusive ‘Homeric Question’. My argument here, aiming to formulate the
unfathomable question strictly on terms of some translation theory,
follows the apologies ¬– by Matthew Arnold and Jorge Luis Borges¬ – to
Homeric Versions. My proposal stands, however, as quite humble: I
simply want to discuss the Homeric Question as translation-related; and
on the other hand, Translation itself as some kind of Homeric Question.
In support of my reasoning, I shall be confronting some fragments of
both Manuel Odorico Mendes’ and Donaldo Schüler’s own renderings
from Homer’s Odyssey. The selected episode consists on the capture of
Protheus by Menelaus, which is depicted in the fourth book of the poem.
Keywords: Homer. Homeric Translation. The Homeric Question.
Manuel Odorico Mendes. Donaldo Schüler.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


82 | Roberto Mário Schramm Júnior

Contra ‘Homero’

Como todas as velhas questões, aquela que se diz


Homérica vem desde sempre se dirigindo ao
problema de proferir aquilo que ela está
perguntando. Uma das vezes em que foi melhor
formulada, deu-se, possivelmente, quando se a
perguntou nos termos mais simples possíveis: ‘esse
eterno problema: o que fazer de Homero?’ (..) A
questão se declara com enorme precisão na
medida em que entendida como referindo-se não
a Homero enquanto autor individual, mas a
própria noção de ‘Homero’, no sentido de suas
transposições retóricas. O termo pode se referir ao
poeta ou aedo da Grécia pré clássica. A questão
então seria: Homero existiu como indivíduo – e o
que se fará dele enquanto autor ou cantor de
poemas como a Ilíada e a Odisseia? O termo pode
também designar um construto escritural, que
reproduz ou transmite um corpus poético. A
questão aí se torna: sob quais condições os
poemas correspondentes foram inicialmente
transcritos, e como ficam as versões sobreviventes
quando confrontadas a tais versões primitivas,
escritas ou orais. Uma nova transposição torna
Homero ícone de uma era historicamente
precedente e intimamente conectada à Grécia
clássica. Teremos assim a questão: qual o valor e a
relevância da poesia Homérica no panorama geral
da tradição literária da modernidade ocidental?
(VARSOS. 2002. p. 31)34

34
“Like all old questions the Homeric one has always mainly been about the problem of
what it is about. One of its best general formulations is, perhaps its most simple one: “this
eternal problem, what are we to make of Homer” (…). The statement is very precise, to the
degree that we read it as referring not to Homer as an individual author, but to the very
notion of Homer, in its rhetorical transpositions. The term can be a reference to a presumed
poet or aoidos of pre-classical Greek times. The question would be: has Homer existed as a

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 83

‘Homero’ é um feixe de questões contradizentes. Muitas delas


dizem contra ‘Homero’, e, por isso mesmo, favoráveis ao Homérico: e.g.,
ao romantismo da hipótese dos Prolegomena ad Homerum (1795) de F.
Wolf35, que sugerem um coletivismo e um corporativismo de aedos (os

distinct individual– and what exactly are we to make of him as the author or singer of poems
such as the Iliad and the Odyssey? The term can also designate a scribal construct
reproducing or transmitting a body of poetry. The question becomes: under what conditions
were the corresponding poems initially written down, and how do their extant versions
stand with respect to earlier ones, written or oral? A further transposition makes Homer into
the figure of a whole era, historically preceding and immediately connected to classical
Greece. We thus have the question: what is the value and significance of Homeric poetry
within the overall setting of the literary tradition of Western modernity?” (VARSOS. 2002.
p. 31)

35
Walter ONG apresenta um sumário das disputas Homéricas até Milman Parry e o século
XX: “O século XIX viu o desenvolvimento das teorias Homéricas dos assim chamados
‘Analistas’ iniciadas por Friedrich August Wolf (1759 – 1824), nos Prolegomena de 1795.
Os analistas encaravam os textos da Ilíada e da Odisseia como combinações de poemas mais
antigos ou fragmentos, e pretendiam aplicar o método analítico para determinar quais eram
esses pedaços e de que modo eles se foram sedimentando em camadas. Todavia, como
aponta Adam Parry (1971, pp. xiv–xvii) os analistas partiram da suposição de que os pedaços
que iam sendo combinados eram simplesmente textos, nenhuma alternativa vindo-lhes à
mente. Inevitavelmente os Analistas seriam sucedidos pelos Unitaristas no começo do século
XX. Os partidários do Unitarismo, muitas vezes pietistas literários e cultistas inseguros,
mantinham que a Ilíada e a Odisseia eram tão bem estruturadas, tão consistentes em suas
caracterizações e, de modo geral, tamanhas obras de arte, que elas não poderiam ter sido
produzidas por uma sucessão desorganizada de redatores, mas deveriam ser a criação
individual de um único homem.” [The nineteenth century saw the development of the
Homeric theories of the so-called Analysts, initiated by Friedrich August Wolf (1759– 1824),
in his 1795 Prolegomena. The Analysts saw the texts of the Iliad and the Odyssey as
combinations of earlier poems or fragments, and set out to determine by analysis what the
bits were and how they had been layered together. But, as Adam Parry notes (1971, pp. xiv–
xvii), the Analysts assumed that the bits being put together were simply texts, no alternative
having suggested itself to their minds. Inevitably, the Analysts were succeeded in the early
twentieth century by the Unitarians, often literary pietists, insecure cultists grasping at
straws, who maintained that the Iliad and the Odyssey were so well structured, so consistent
in characterization, and in general such high art that they could not be the work of an
unorganized succession of redactors but must be the creation of one man.] (1982, p.20)

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


84 | Roberto Mário Schramm Júnior

homéridas) como produtores do homérico, dos poemas homéricos. Muitas


dizem contra Wolf, contra o seu contra-unitarismo, seu alegado niilismo
anti-homérico, sua negação de Homero, e o seu ‘homericídio’. Muitas
dizem contra-mas-a-favor de Wolf – na medida em que o erudito alemão
introduzia o tema de uma rede de oralidades homéricas, constituídas e
constituintes do ‘homérico’. Umas contra as outras. Analistas 36 e Neo-
Analistas37 contra e a favor da visão Unitária do Homérico: um Homero,

36
Aproveitamos como epígrafe dessa secção uma passagem da tese de doutorado de Georges
Jean VARSOS, intitulada, muito apropriadamente The Persistence of the Homeric Question.
VARSOS apresenta uma releitura benjaminiana da questão homérica, e suas considerações
são inspiradoras para qualquer programa de aproximação da questão homérica e da questão
da tradução. VARSOS também nos oferece uma breve genealogia das disputas homéricas:
“O paradigma de Wolf estabeleceu o campo sobre o qual a questão Homérica vem sido
debatida na academia pela moderna disciplina da Filologia. O debate se concentrou em uma
série de problemas particulares que Wolf destacara como mais pertinentes. Até que ponto
os escritos transmitidos concordavam com princípios de coerência narrativa e conformidade
expressiva? Caso verificados como aberrantes, deveriam esses escritos serem drasticamente
emendados ou reformados, na medida em que sua qualidade aberrante esteja associada com
mecanismos defectivos de transmissão? Ou se deveria, pelo contrário, ressituar o momento
do cultus vitae homérico ou mitigar os princípios da formação textual, de modo que aos
elementos aberrantes se pudesse escusar ou justificar, de acordo com as condições da
emergência inicial dos poemas? O debate foi invariavelmente visto como organizado em
volta de dois polos: o polo dos analistas e o polo dos Unitaristas. Os Analistas costumam ser
considerados uma expressão da nova ortodoxia da tradução filológica alemã, e são mais
críticos com relação a legibilidade da vulgata que nos foi legada. Os Unitaristas estão, em sua
maior parte, afiliados à tradições situadas fora do campo de influência do historicismo
germânico (como os estudos clássicos Britânicos e comunidades extra-acadêmicas de
eruditos), e resistem à revolução de Wolf.” (2002, p. 95) [“The Wolfian paradigm
established the grounds on which the Homeric Question has been debated by the modern
academic discipline of philology. The debate concentrated on a series of particular problems
that Wolf highlighted as most pertinent. How far do the transmitted scripta comply with
principles such as those of narrative coherence and expressive conformity? If they are found
to deviate, should one attribute the deviance to defective mechanisms of transmission and
proceed to drastic emendation or reformation? Should one, on the contrary, resituate the
moment of the Homeric cultus vitae or mitigate principles of textual formness, so that the
deviance maybe excused or justified, according to the conditions of the initial emergence of
the poems? The debate has been invariably seen as organized around two poles: the pole of
the analysts and the pole of the unitarians. Analysts, often considered as expressing the new
orthodoxy of the German philological tradition, are most critical with respect to the
readability of the received vulgate. Unitarians, mostly affiliated to traditions situated outside
the field of German historicism (such as British classical studies or extra-academic
erudition), are resistant to the Wolfian breakthrough.”]
37
Os dois polos, que VARSOS associa às modernas tradições acadêmicas, parecem convergir
entre os estudiosos mais recentes: “Neo Análise é uma metodologia que emprega a técnica
dos analistas para obter uma interpretação unitária da Ilíada. Ela assume a influência do

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 85
uma Ilíada, uma Odisseia e miríades de interpolações que se interponham
entre o texto estabelecido por Pisístrato na Atenas do século V e aquele
laborado pelo velho poeta micênico. Um espesso emaranhado de uns e
outros, de antigos e modernos. Interpolações que se interpõem entre
Homero e nós outros, portanto, e que deveriam ser, senão expurgadas, ao
menos expostas como espúrias. Contra esse expurgo. Contra todos, apesar
de tudo: os Neo-Analistas, fundamentados pelos sólidos argumentos de
um núcleo poético primitivo; Milman Parry38 e os mais recentes grupos de
proponentes da hipótese das fórmulas orais (cf. JENSEN, 1980, passim) –
aqueles que partindo das fórmulas discursivas e da oralidade do
polissistema homérico, indagaram a questão decisiva (e de Sísifo) da
literatura ocidental. A questão mesma do Ocidente, da sua literatura, sua
origem e permanência. Uma questão Homérica, uma questão que se
contra-diz, uma questão que não quer calar.

material pré homérico sobre a poesia Homérica e busca descobrir indícios dessa influência.”
(BURGESS, J. 2008, p. 150) [“Neoanalysis is a methodology that employs analyst
technique in pursuit of a unitarian interpretation of the Iliad. It assumes the influence of
pre-Homeric material on Homeric poetry and attempts to discover indications of this
influence wthin Homeric poetry.”] Se os novos analistas se aproximam do unitarismo que os
velhos analistas rejeitavam, o que estará em jogo? A questão mesma da autoria, de modo
geral, ao invés da mera atribuição da autoria dos poemas homéricos?

38
Parry foi o principal proponente da Teoria das Fórmulas Orais (Oral-Formulaic Theory), que
vem sido cortejada por unitaristas e contra-unitaristas. ONG oferece um sumário de sua
contribuição: ”A descoberta de Parry pode ser descrita da seguinte maneira: virtualmente
todos os atributos distintivos da poesia Homérica são devidos à economia determinada pelos
métodos orais de composição. Tais métodos podem ser reconstruídos por meio do estudo
cuidadoso dos próprios versos, na medida em que se deixa de lado os pressupostos acerca da
expressão e dos processos de pensamentos arraigados por sucessivas gerações da cultura
literária. Esta descoberta mostrou-se revolucionária nos círculos literários e viria a causar
tremenda repercussão na história da cultura e da psique.” (1982, p.21) [“Parry’s discovery
might be put this way: virtually every distinctive feature of Homeric poetry is due to the
economy enforced on it by oral methods of composition. These can be reconstructed by
careful study of the verse itself, once one puts aside the assumptions about expression and
thought processes engrained in the psyche by generations of literate culture. This discovery
was revolutionary in literary circles and would have tremendous repercussions elsewhere in
cultural and psychic history.”]

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


86 | Roberto Mário Schramm Júnior

‘Contra’, disse a questão Homérica. Contra sua indefinição


intrínseca, contra a quase impossibilidade de sua formulação.
Impossibilidade de se fazer homérica em uma só uma pergunta –
impossibilidade de que, numa só pergunta, a questão esteja toda posta. (Se
a questão homérica se expressasse numa pergunta singular, a pergunta
“que horas são?” expressaria toda a dimensão e o alcance da questão do
tempo?) Por outro lado – se a questão homérica não se exaure numa
única pergunta – o que afinal, perguntam as questões homéricas? A
identidade de Homero? A autoria da Odisseia? Da Ilíada? O estatuto das
demais atribuições (os hinos, margites, os batráquios, etc.) Haverá um
‘núcleo homérico’ nestes poemas? Dois núcleos? Dois Homeros? Um aedo
espontâneo reescrito posteriormente por um editor-poeta, um bearbeiter?
Ou a questão homérica se refere, circularmente, a própria impossibilidade
de sua formulação – sendo que aquilo que ela pergunta será justamente
‘no que consiste aquilo que indago?’ A questão homérica não será
também algo proteica – no sentido de Proteu39? Algo muito antigo, em
constante transformação, que já é outro quando mesmo tentamos tocar-
lhe – assim como na narrativa de Menelau acerca de seu encontro com a
divindade marítima, no livro IV da Odisseia. Se for assim, antes mesmo
de tentarmos respondê-la, a questão se reformula, se ‘metamorfaz’
contrária ao anseio de fixá-la numa solução definitiva. Novamente: a
questão homérica, no que se decide formular de um jeito simples,
pergunta a si mesma: “o que sou eu?”

Contra Matthew Arnold

Contra a questão Homérica, a favor do adjetivo ‘homérico’.


Fazemos uso dele nas situações em que precisamos expressar algo de
hiperbolicamente intenso ou desmedido, quando tomamos um ‘porre

39
Perceba-se que ‘Proteu’ produz uma terminologia etimologicamente ambígua. O nome do
deus vale como ‘proto’ – primitivo, antigo, (como em proto-zoo-ario). Proteu é portanto o
deus primitivo, o deus antigo (não ‘original’ contudo). Mas Proteu é também o mestre da
forma, aquele que assume outras formas, conforme seus atributos. O adjetivo ‘proteico’, em
nosso uso específico nesse ensaio, aludirá a essas duas acepções simultaneamente.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 87
homérico’ seguido de uma ‘ressaca homérica’. Um trabalho homérico
pela frente vale por doze trabalhos ‘hercúleos’? Nessas acepções, o valor de
‘homérico’ estará muito próximo do valor de ‘épico’ (ou mesmo ‘heroico’)
– um porre homérico é um porre épico, pois, resulta na mesmíssima dor
de cabeça hercúlea, e exige uma disposição ‘heroica’ para se ir trabalhar
no dia seguinte.

Experimentemos colocar antes de ‘homérico’, não ainda a


palavra ‘poema’, mas, por outro lado, expressões como ‘questão’, ‘dúvida’
ou ‘pergunta’. Verificaremos, nesse caso, ainda uma predominante alusão
à intensidade, a intenção de exagerar uma intensão, uma hegemonia da
proporção? Eu diria que sim, num certo sentido de que exagerar a
dimensão da questão homérica expressa algo como: ‘o tamanho de uma
questão traduz sua complexidade’ – como se uma questão muito
complexa fosse uma questão muito grande – como se uma questão muito
grande devesse ser expressa em muitas perguntas. Eu também contradiria:
se procurarmos, justamente, substituir, neste caso, ‘épico’, ou ‘heroico’
por ‘homérico’, não encontraremos a mesma equivalência dos casos
anteriores. Um porre homérico é o mesmo que um ‘porre épico’ mas uma
‘questão épica’ tem o sentido muito diferente de uma ‘questão homérica’,
porque ‘uma questão homérica’ alude sempre a ‘A Questão Homérica’.
Questão Homérica é a que pergunta por Homero, e que pergunta por si
mesma.

Matthew Arnold, num parágrafo de On Translating Homer (1861,


s./p.), tomado aqui, propositalmente, fora do contexto:

Eu aconselho o tradutor a evitar qualquer contato


com questões tais como: se tenha mesmo Homero
existido; se o poeta da Ilíada era um só ou muitos;
se a Ilíada é um único poema ou uma Aquileia e
uma Ilíada interpoladas; se a doutrina cristã da
Expiação se reflete na mitologia Homérica; se a
deusa Latona prefigura a virgem Maria; e assim
por diante. Tais questões foram discutidas com

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


88 | Roberto Mário Schramm Júnior
erudição, com engenho, ou melhor, com gênio;
mas elas tem duas inconveniências: uma geral,
para todos que as abordam, e outra particular
para o tradutor. A inconveniência geral é que não
existem, na verdade, dados suficientes para
decidir qualquer uma dessas questões. A
inconveniência particular é que a solução dessas
questões pelo tradutor, ainda que fosse possível,
não traria consigo nenhum benefício para a
tradução40.

O que se diz contra o parágrafo de Arnold? Agora que o citamos,


o fizemos com uma certa contrariedade algo favorável, ou francamente
favorável – o ‘contra-mas-a favor’ do poema de Augusto de Campos que
homenageava João Cabral41. Só que, pelo contrário, a-favor-mas-contra. A
favor de Arnold, no que se refere a seu pragmatismo, a sua atitude frente
ao abandono do tradutor à tradução. Mas será esse abandono possível?
Que o tradutor cerre a vista no texto original - nesse caso o texto
homérico – e ignore as condições de sua produção e o estatuto de sua
originalidade, bem como a origem do original que tem diante de si? Cego,
como Homero, para o proto-homérico? Decerto que pode o tradutor
mergulhar no texto sem o ‘oxigênio suplementar’ da erudição acadêmica,
será talvez, até aconselhável que o faça, num certo momento. Mas na
medida em que produz a tradução, esse texto traduzido não apontará para
fora de si, não refletirá de alguma forma as questões homéricas suscitadas
pelo texto homérico?

40
“I advise the translator to have nothing to do with the questions, whether Homer ever
existed; whether the poet of the Iliad be one or many; whether the Iliad be one poem or an
Achilleis and an Iliad stuck together; whether the Christian doctrine of the Atonement is
shadowed forth in the Homeric mythology; whether the Goddess Latona in any way
prefigures the Virgin Mary, and so on. These are questions which have been discussed with
learning, with ingenuity, nay, with genius; but they have two inconveniences; one general for
all who approach them, one particular for the translator. The general inconvenience is, that
there really exist no data for determining them. The particular inconvenience is, that their
solution by the translator, even were it possible, could be of no benefit to his translation.”

41
O poema consta do volume despoesia (1994). Ver referências.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 89

Contra Matthew Arnold, ademais, porque a própria tradução


(literária, ocidental) é, ela mesma, uma questão homérica. É homérica a
questão de sua aderência ao original que pretende traduzir, é homérica a
questão de sua fraternidade às demais traduções disponíveis. Homérica a
questão da tradução, pois ela originou – como Homero – a literatura
ocidental. Homérico o enigma da tradução, porque – muito embora se
mostre claramente no produto traduzido – a tradução se mostrará evasiva
no processo tradutivo.

Tal ‘evasão’, por sua vez, consiste nos inúmeros pretextos para
retextualizar um texto, nas inúmeras soluções possíveis para cada
hexâmetro em cada novo idioma, para o mesmo verso em cada versão. A
questão da tradução é uma questão homérica e, portanto, como disse
Arnold, uma questão inconveniente. Sabemos que existe uma resposta,
que deve haver uma resposta, mas que provavelmente nunca chegaremos
a ela.
O ‘homérico’ dessas questões, talvez se refira simplesmente a
isso: temos Homero e temos suas traduções, mas não saberemos jamais
como chegamos a elas – nunca teremos dados suficientes, e se os
tivéssemos, eles seriam inúteis.

Primeira entre pares

Contra o pragmatismo homérico de Arnold, portanto mas a


favor do pragmatismo homérico de Borges. A favor das versões homéricas,
que reencenam no mesmo palco a questão da tradução como uma
questão homérica e a questão homérica como um problema da tradução.
Fala Borges em seu ensaio:

Os feitos da Ilíada e da Odisseia sobrevivem em


sua plenitude, mas desapareceram Aquiles e
Ulisses, assim como aquilo que Homero queria

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


90 | Roberto Mário Schramm Júnior
representar ao nomeá-los, e aquilo que, na
realidade, pensou deles.”42 (1996, p. 241)

A favor de Homero – de Homero personagem de Borges em El


Inmortal. ‘Que sabes da Odisseia’, pergunta o peregrino de Tebas
Hekatómpilos. Responde, Homero personagem de Borges, que dá-se ao
reconhecimento: “Muito pouco. (...) Menos do que o rapsodo mais
humilde. Já se passaram cem mil anos desde que eu a inventei.” 43 (1996,
p. 540). O mesmo Borges que “criou” Homero, todavia, é também
criatura de Homero enquanto leitor desses poemas homéricos que
engendraram a literatura ocidental. Mas o Borges leitor de Homero é o
leitor das traduções homéricas – e essas traduções assemelham-se aos
cantares dos aedos errantes de outrora, pelo menos no aspecto desse
renascimento da canção na boca de cada novo cantador. Os tradutores
modernos – afirma o Borges criatura – carregam a tocha dos aedos antigos,
fazem por meio da escrita interlingual o que faziam “via oral’ e
‘interdialetal’, há mais de “mil cien años”, os homéridas de antanho.
Afinal, estamos diante do Homero de Borges, que afirma desconhecer
boa parte da Odisseia e, sendo assim:

(…) desafirma com essa resposta sua própria


autoria, sua autoridade sobre aquele texto que
percorreu mais de um milênio e, ao mesmo
tempo, lança parte da responsabilidade dessa
autoria para aqueles rapsodos, leitores-narradores-
tradutores de um texto que circula de boca em
boca ao longo do tempo. (MOREIRA, 2009, p.
254)

A favor, portanto, da tradução enquanto questão homérica. A


favor, sobretudo, da questão da tradução homérica enquanto um

42
“Los hechos de la Ilíada y la Odisea sobreviven con plenitud, pero han desaparecido
Aquiles y Ulises, lo que Homero se representaba al nombrarlos, y lo que en realidad pensó
de ellos.”
43
“Muy poco. (…) Menos que el rapsoda más pobre. Ya habrán pasado mil cien años desde
que la inventé.”

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 91
confronto e uma acomodação das versões de Homero entre si próprias,
antes do que entre cada uma delas isoladas em combate direto com o
texto grego. A proposta de Borges, parte da proposta de Matthew Arnold,
mas em muito a supera, em termos de sua ‘originalidade’. Com Borges é
que nos damos conta de que os textos gregos de Pisístrato, que se nos
interpõem como os originais de Homero, nada mais são do que versões
de Homero. A versão grega de um original desconhecido – apenas outra
versão. Borges extrapola o argumento de Arnold – que se dirigia contra a
questão homérica sob a perspectiva do tradutor de Homero – para a
negação mesma da relevância do texto grego. O original, assim, reduzido
– se não apenas a ‘uma versão como outra qualquer’ – a, quando muito,
uma dúbia e quase impotente posição de primeira entre pares. A versão
de Pisístrato, a pacificadora, a pedra de toque das demais versões
homéricas também é, por outro lado, uma velha rainha em um sistema
feudal. Seu poder é ofuscado pelos seus pares poderosos, que lhe
suplantam, em seu conjunto, muito de sua majestade. Nenhum deles
pode desafiá-la individualmente, mas seu poder monárquico terá que se
submeter ao conjunto de seus pares reunidos.

Poder de Polícia

Não queremos injuriar nem diminuir nossa soberana. Nossa


versão homérica dos poemas de Homero, é tudo o que dizem por aí: o
texto ancião em grego, a codificação de Pisístrato, a proeza de Sólon, o
texto profano beatificado pela escritura, para ser lido no aniversário da
polis. Esse texto, que nos legou a tradição, é o par que policia todas as
demais versões. Aquele texto, a versão grega que lá está, nas edições
bilíngues da Ilíada e da Odisseia, à esquerda das incontáveis versões em
inúmeros idiomas vivos e mortos: é esse texto que assume a função de
pedra-de-toque diante da qual se costuma valorar a tradução. Diante do
texto que acreditamos resultar de Pisístrato, ajoelham-se e se submetem
grandes textos e autores da literatura ocidental. Diante dele em confronto
individual, cada tradutor de Homero, cada tradução da Ilíada e da
Odisseia, confessam suas infidelidades. Suas deformações, suas licenças

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


92 | Roberto Mário Schramm Júnior
prosaicas, suas incompreensões e ignorâncias. O Homero de Pisístrato (a
versão homérica, a tradução policial) se faz juiz das demais versões. Mas
quem vigia o vigilante, quem se faz de polícia da versão homérica, de juiz
da versão de Pisístrato? Escólios e papiros, em pequeníssima proporção?
Teremos que citar Polifemo, pois a resposta para essa pergunta é a mesma
que ele deu para seus irmãos Ciclopes quando eles perguntavam “quem te
cegou Polifemo” e ele respondia, pateticamente, “Ninguém”. Ninguém
cegou Polifemo. Ninguém escreveu a Odisseia. Ninguém policia a polícia.

Nada contra o texto grego: sabemos que esse ninguém é alguém,


e acreditamos que este alguém são muitos. Muitos aedos, muitos poetas
muitos tradutores. Apreciamos o texto em grego, sinistramente à esquerda
em nossas edições bilíngues, ainda que não o possamos ler, ainda que
sequer possamos avaliar se o texto que o poeta traduziu corresponde
mesmo ao texto grego que o editor publicou. Nosso professor Teodoro
Rennó Assunção advertiu-nos desse particular – e aponta para algumas
incoerências constrangedoras: “Ver o exemplo do verso 5 da Ilíada na
tradução de Haroldo de Campos, que adota o texto de Zenódoto, dai'ta, e
não pa'si, que é a variante do texto grego reproduzido na página ao lado”
(2012, p. 02).

Polícia é para quem precisa, e certamente que o tradutor de


Homero precisa de um poema para traduzir; de uma polis para habitar.
Note-se, todavia, que a versão homérica de Pisístrato não chegou até nós
em seu esplendor original e originante – admite-se que temos a versão de
Pisístrato em nossas mãos apenas na medida em que são muito pequenas
as variações existentes entre os numerosos códices que nos foram legados
(AUBRETON, 1968, p. 20 - 23), os quais se encontram, por sua vez, sob a
jurisdição dos papiros (1968, p. 23 - 25) e Escólios. (1968, p. 25 - 28), os
quais oferecem pequenos trechos com os quais se é possível determinar a
antiguidade e acuidade do texto que emana da edição de Pisístrato, a
versão homérica por excelência: “Digamos simplesmente que consta ter
aparecido um texto único, em Atenas, por volta do século VI”. (1968, p.
16). Admitamos também que apenas as denominações de alguns desses

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 93
códices já contam como verdadeiros poemas: o Venetus Marcianus do
século X, descoberto em 1779, o Londinensis Burneianus44 do ano de 1059.
As histórias desses volumes, de suas descobertas, elaborações e
disseminações continuam a render nas mão de eruditos e ficcionistas –
como o próprio Borges o atesta. A atenção do tradutor de Homero, terá
que estar, segundo as normas vigentes, apta a inquerir o texto em grego
que resulta desses códices. Neste sentido portanto deve estar atento para o
fato de que:

O primeiro e importante procedimento é o da


escolha da edição do texto grego original a ser
usado, pois este texto contém muitas variantes
que (quando não escolhidas, constando ao menos
no aparato crítico) poderiam eventualmente ser
utilizadas ou admitidas em um texto múltiplo
(mais próximo talvez da multiplicidade das
performances orais), donde a importância de um
aparato crítico bem feito e, na necessidade de uma
única escolha (o que não ocorreria em um texto
múltiplo), da plausibilidade ou acerto das
escolhas. (ASSUNÇÃO, 2012, p. 02)

Todavia, há que se contradizer qualquer abuso do poder de


polícia por parte da versão homérica; que posicionar-se contra o
estabelecimento de um estado policial, uma ditadura de Pisístrato. Contra
a coerção gratuita, o bulling da versão grega sobre as demais versões. O
espaço de manobra do tradutor não será menor do que o espaço de
manobra dos antigos aedos. Ou não variavam os aedos enquanto cantavam
Homero? Quem sabe não inventassem Homero enquanto cantavam as
rapsódias? De qualquer maneira, quem canta um Canto, aumenta um
tanto. Os ensaios de Borges e Arnold são apenas dois dos mais célebres

44
Estaria esse último, satanicamente, a profetizar o grande fogo na Londres de 1666, época
em que os londrinos puderam dizer com toda propriedade e toda literalidade que “London’s
Burning/Before us now”? Bem, o nome Bunrneianus se refere a Caroli Burnei. Nada deve ao
verbo ‘to burn’ , mas se Deus está, como dizem, nos detalhes, o diabo deve estar no quadro
inteiro.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


94 | Roberto Mário Schramm Júnior
exemplos de um reconhecimento tardio, mas necessário do papel desse
notável ecossistema homérico composto pelas incontáveis versões de
Homero. Essas traduções fizeram a literatura ocidental tanto quanto os
poemas micênicos que as originaram. Essas traduções foram, de certo
modo, mais influentes, pois influíram de maneira direta sobre um
número muito maior de leitores. A maioria esmagadora dos leitores de
Homero, leu Homero apenas em versões não-gregas, nas traduções para o
vernáculo. E fez muito bem.

Novos Homéridas

Não é verdade que tenha sido Homero a inaugurar a literatura


latina. (AUBRETON, 1968, p. 320) Foi, outrossim, o ‘Homero’ traduzido
por Lívio Andrônico o verdadeiro pai da criança. Homero engendra o
classicismo latino por procuração, por controle remoto, à distância e
alheio ao fato. No seu ABCdário da leitura, Ezra Pound dizia que
Homero era o exemplo máximo da música verbal do verso antigo, o
maioral da melopeia. Por outro lado, a formação de Pound era,
efetivamente, em letras românicas, e ele leu a Odisseia, como nos recorda
Augusto de Campos, por meio da “versão latina (1538) de Andreas Divus
Justinopolitanus” (1993, p. 36) – versão da qual Pound retraduz trechos
do livro XI da Odisseia de Andreas para o Canto I de seus Cantares.

Keats escreveu um famosíssimo soneto em homenagem ao


Homero de Chapman. Eu mesmo, andei traduzindo, livremente, esse
soneto – de uma forma que nos pode interessar. Que me seja permitido
citar dessa minha tradução, ao invés daquela outra (bem melhor) de
Péricles Eugênio da Silva Ramos (2010), apenas para que eu possa seguir
esse raciocínio:

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 95

[À primeira vista do Homero de Chapman.]45

Já havendo pisado nesse áureo solo


E os reinos de ouro já os tendo visto...
As ilhas do Oriente? – Pelos nomes as listo –
Onde há bardos fiéis à alcunha de Apolo.
Por vezes diversas, de polo a polo,
Disseram-me: ‘Homero é o monarca benquisto’;

De cuja rapsódia eu apenas conquisto,


tradita por Chapman – que eu trago a tiracolo.

45
O soneto de Keats:

Much have I travell'd in the realms of gold,

And many goodly states and kingdoms seen;

Round many western islands have I been

Which bards in fealty to Apollo hold.

Oft of one wide expanse had I been told

That deep-brow'd Homer ruled as his demesne;

Yet did I never breathe its pure serene

Till I heard Chapman speak out loud and bold:

Then felt I like some watcher of the skies

When a new planet swims into his ken;

Or like stout Cortez when with eagle eyes

He star'd at the Pacific—and all his men

Look'd at each other with a wild surmise—

Silent, upon a peak in Darien.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


96 | Roberto Mário Schramm Júnior
Achei-me descobrindo um novo planeta
Desde que o li pela vez primeira:
Senti-me Cortéz, baixando baioneta;
Estarrecido – sobre a companhia inteira.
Encarando ao Pacífico, pasmado à faceta,
silente, do pico do Balboa, à beira.

Quem conhece Keats estranhará principalmente o último verso.


No poema de Keats, a símile alude a Cortéz maravilhado com a vista do
pacífico, Keats escreve: “and all his men/Look'd at each other with a wild
surmise—/Silent, upon a peak in Darien” (2011, p. 102), e Péricles traduz “O
pacífico havia divisado além/Seus homens a se olhar supondo com
aflição/E ficou sem falar num pico em Darien” (2011, p. 103). Não
importa tanto, aqui, que eu tenha feito um pequeno jogo anacrônico
aludindo ao não ter sido, na verdade, Cortéz o primeiro a olhar o Pacífico
sobre a colina em Darien. A honra, como apontara o poeta vitoriano
Lord Alfred Tennyson, coubera a Vasco Núñez de Balboa (1475 – 1519),
que por causa disso, deu seu nome a esse pico em Darien – que Keats fez
Cortéz subir. O que nos importa aqui será por um lado, ilustrar o espaço
de manobra de que dispõe o tradutor – espaço conquistado em grande
parte pelos autores de versões dos poemas de Homero, pelos tradutores
homéricos.

Sobretudo, nos importará também, aqui, marcar que o inusitado


na sintaxe do verso “silente, do pico do Balboa, à beira.” remete
especificamente ao autor das mais polêmicas e relevantes versões de
Homero na língua portuguesa. Meu verso parodia e homenageia o
latinismo libertário das traduções de Homero propostas pelo poeta
maranhense Odorico Mendes, tido por Haroldo de Campos como o
pioneiro da transcriação poética – havendo lançado:

(…) um projeto poético maior de latinização (e


não helenização) do português, que leva – tanto
no plano do vocabulário e da construção frasal
quanto no da narrativa (por exemplo, com a
supressão de blocos formulares “repetidos”) – a

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 97
uma concisão que pode certamente parecer
própria à poesia segundo uma certa concepção
moderna (…) (ASSUNÇÃO, 2012, p.05-06).

Meu verso, assim obliquamente traduzido, com sua sintaxe


rococó à Odorico, saúda o tradutor maranhense de Homero – no espírito
em que o poema de Keats que eu traduzi saudava e homenageava as
traduções de Homero propostas por Chapman.

Doravante eu gostaria de retomar minha argumentação, já quase


apologética, a favor da autonomia do polissistema das traduções de
Homero, e de sua independência (relativa) com relação ao poder de
polícia da versão canônica, o Homero de Pisístrato. Pretendo fazê-lo por
meio do cotejo de certos episódios nas traduções de Homero, procurando
empreender tal análise comparativa sem fazer qualquer menção à ‘versão
homérica de Homero’, ao texto grego que se impõe como original e fato
gerador de suas contrapartes.

A captura de Proteu

Quero, portanto discutir agora essas traduções como textos


autônomos e complementares, que estabelecem sua relação de paridade
sem qualquer relação de apriorística desigualdade de uma frente à outra.
Trata-se, pois, de confrontar tradução contra tradução, abdicando assim
de uma marcada relação de poder – sem que um texto se estabeleça com o
policial do outro. Levo isso adiante retomando também minha
homenagem e saudação a Odorico Mendes – que foi, para todos os
efeitos, Chapman para o meu Keats. Dessa forma elejo as duas traduções
homéricas de Odorico, primeiras integrais na língua portuguesa, e
confronto elas com traduções mais recentes de Homero publicadas no
Brasil: A Ilíada de Haroldo de Campos – a qual, infelizmente, não
poderemos tratar diretamente nesse ensaio, pois já nos alongamos demais
– e a Odisseia de Donaldo Schüller.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


98 | Roberto Mário Schramm Júnior
Quero começar essa comparação retomando também aquela
discussão da questão homérica como uma questão tradutológica (i), e da
questão da tradução como uma questão homérica (ii). Nada melhor para
tanto, do que eleger o episódio da narrativa de Menelau acerca de seu
encontro com Proteu, no livro IV da Odisseia, e consultá-lo nas traduções
de Schüler e Odorico. Pretendo compará-las, eu insisto, como versões
homéricas autônomas sem fazer menção ao texto grego – texto que
entretanto, subjaz e policia as traduções brasileiras, fato que se mostra na
simples comparação das traduções, no reconhecimento de sua origem
comum pela via das coincidências, pelo “supratexto dessas obras” que
adivinhamos no confronto das “variantes possíveis” (COSTA, 2005, p.
170), das variantes que dispomos. Creio que essa análise supra textual do
Homero que emerge de Schüller vs. Odorico nos fornecerá alguns
indícios para a primeira questão (i). A questão seguinte (ii), por outro
lado, se manifestará nas metáforas e preceitos que emergem, de ambas as
traduções, às quais, sabendo reconhece-los, poderão nos oferecer
elementos para esclarecer o próprio processo tradutório – daí a escolha
desse episódio de Proteu, mestre das transformações. Trataremos ambas
as questões de forma simultânea, mas chamamos a atenção do leitor que
nossa abordagem de (i) implica num gesto de confronto entre as versões,
enquanto nosso tratamento de (ii) sugere, por outro lado, tentar perceber
em quais pontos relevantes as versões se complementam.

Proteu, antiga divindade dos mares inconstantes é como a


própria tradução: um “monstro sucessivo”, assim como o seu duplo, o
Baldanders, que é descrito por Borges e Guerreiro no Livro dos seres
imaginários como “um monstro sucessivo, um monstro no tempo (...) No
cinto leva uma espada e nas mãos um livro aberto” 46 (1998, p.45). Borges
não oculta suas fontes, e tão pouco ocultaremos nós que o próprio Borges
nos tenha sugerido essa passagem de Proteu para análise:

46
“un monstruo sucesivo, un monstruo en el tiempo (…) En el cinto lleva una espada, y en
las manos un libro abierto (…)”

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 99

Baldanders (cujo nome podemos traduzir por ‘já


diferente’ ou ‘já outro’) foi sugerido (…) por
aquela passagem da Odisseia em que Menelau
persegue o deus egípcio Proteu, que se transforma
em leão, em serpente, em pantera, em um
desmedido javali, em uma árvore e em água.47
(1998, p. 44)

Concebemos também a tradução como um Baldanders – um


monstro sucessivo e uma sucessão de monstruosidades através do tempo –
um monstro metamórfico que se transmuta a cada vez que o tentamos
tocar, e cujo vínculo para com a monstruosidade original que pretende
traduzir se mostra tão nítido ao olhar quanto escorregadio ao toque.

Sem mais delongas, ao contexto do episódio. Ele ocorre no livro


IV da Odisseia. Telêmaco, filho de Ulisses, busca o pai (Odisseu na versão
de Schüler, que preserva a grafia grega para o nome do herói da Odisseia).
O rapaz vai dar em Esparta, vai perguntar ao rei Menelau sobre o
paradeiro paterno. O rei de Esparta lamenta não ter notícias concretas do
paradeiro de Ulisses/Odisseu, mas alega saber que o herói Ítaco estava
vivo e aprisionado na ilha de Calipso. Menelau diz ter ouvido isso em
suas viagens, da boca de Proteu – e narra para Telêmaco a história de seu
encontro com o velho do mar.

Estava Menelau, naquele tempo, ele próprio perdido no pélago,


e amargava com os sócios o exílio involuntário numa ilha desconhecida,
quando ouve a voz de alguma deusa. Menelau a percebe compadecida de
suas penas. Ele interpela a deusa, que revela ser Idotéa, a filha do velho
Proteu. Schüler propõe um Menelau intempestivo e aflito:

47
“Baldanders (cuyo nombre podemos traducir por 'Ya diferente’ o 'Ya otro') fue sugerido (…)
por aquel pasaje de la Odisea en que Menelao persigue al dios egipcio Proteo, que se
transforma en león, en serpiente, en pantera, en un desmesurado jabalí, en un árbol y en
agua.”

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


100 | Roberto Mário Schramm Júnior
Responde-me, os deuses não sabem de tudo?
Quem me ferrou? Quem dos divinos retarda meu
retorno? Como atravessar essas águas povoadas de
peixes?' Minhas aflições não ficaram sem resposta:
[fala agora Idotéa] 'Terás de mim estrangeiro,
palavra honesta. Vem a este lugar o Velho do
Mar. Ele não mente. Falo de Proteu, o egípcio. De
águas sabe tudo, qualquer recanto. Consideram-
no companheiro de Posidon. Admira, consta que
sou filha dele. Se com truques conseguires prendê-
lo ele te indicará o caminho e a distancia que
ainda tens a percorrer para vencer esse território
de peixes, o mar salgado. Digo-te mais, caso
queiras saber o que aconteceu em tua casa, de
bom ou mau, durante tua longa e penosa
ausência, a um pedido teu ele o relatará
(SCHÜLER, 2007, p. 111 - 113)

Odorico canta a mesma rapsódia numa tonalidade muito outra:

Ó deusa, contestei, seja qual fores,/Por meu gosto


o não faço, mas suponho/A celícula algum ter
ofendido./Ora dize, a imortais é claro
tudo,/Quem assim me proíbe o mar piscoso./Ela
ingênua me foi: 'Do Egito o velho,/de Netuno
ministro aqui se aloja,/Proteu meu pai, que as
húmidas entranhas/Tem sondado e conhece. Há
de ensinar-te,/Se obténs prendê-lo, como a rota
sigas,/E, se o queres também, de Jove aluno,/Os
maus ou bons domésticos sucessos/Durante
errores teus no instável pego. (MENDES, 1996, p.
112)

Quase tudo que houver para se dizer, em termos estritamente


estilísticos, das diferentes escolhas desses tradutores, se deveria manifestar
em quaisquer fragmentos que tomássemos aleatoriamente. Esses, que
escolhemos, não nos desapontam. Está bastante manifesto o latinismo de

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 101
Odorico Mendes – sua vontade de arcaísmo, de reverter a linha evolutiva
das línguas românicas – ainda mais quando em franco contraste com o
tom coloquial do texto de Schüler. A versão de Odorico persegue o
arcaico, tem em vistas a arché dessa Odisseia que traduz, mas como
corretamente aponta Teodoro Assunção, essa arché é latina: o projeto de
Odorico é antes latinizante do que helenizante. Essa arché já virou
origem48, já virou antiguidade. A principal qualidade que faz
transcriativistas como Haroldo de Campos consagrarem Odorico
enquanto ‘padroeiro’ da tradução criativa, emana do compromisso de
Odorico em seu esforço de recriar o idioma do original no idioma do
traduzido por meio da tradução. Acontece que no caso de Odorico o
idioma recriado não é o grego, mas o latim da Eneida que ele mesmo
traduzira antes – e onde pôde desenvolver o estilo barroco e conciso, as
estratégias de compressão dos pés hexâmetros (gregos ou latinos, pouco
importa) para o sistema silábico do decassílabo heroico. Note-se que o
processo latinizante de Odorico já está bastante evidente no que se refere
a sua predileção pelos nomes latinos de seu Herói (Ulisses) e de seu
antagonista divino (Netuno). Schüler retém os nomes gregos de suas
personagens (Odisseu, Posseidon), assim como opta pela tradução em
prosa – rejeitando, por conseguinte a sujeição do texto a um sistema
métrico autóctone. Se supomos que o faz para dar conta do texto
homérico com mais fidelidade, e para evitar a perda de certas frequências
poéticas nos filtros de compressão do decassílabo de Odorico, poderíamos
dizer que, dos dois, seria Schüler o que mais se ressente do poder de
polícia, do poderoso fantasma do texto grego, da versão Homérica. Por
outro lado, se levamos em consideração a ruptura de Schüler para com o
estilo elevado da tradição Homérica, seu apelo para o coloquialismo, e
para os recurso dos falares contemporâneos da língua de chegada, teremos
, talvez, uma opinião diferente sobre o assunto. Verifiquemos o fragmento
seguinte de Schüler: “Tendo ouvido essas generosas palavras, insisti:
'Gostaria de saber com que armadilha prender esse velho prodigioso.

48
“Origem” é uma palavra que vem do latim – origo – que pode traduzir o ἀρχή (arché) dos
gregos.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


102 | Roberto Mário Schramm Júnior
Temo que, ao me ver, sabendo quem sou, trate de evadir-se. Dominar um
imortal não é sopa” (SCHÜLER, 2007, p. 111 - 113).

Lembremos que é Menelau quem responde à exortação da


deusa: que capturasse Proteu, para que soubesse a qual deus devia o seu
exílio, como sair da lista negra e quais os eventos presentes que ignorava.
Schüler novamente faz explícita sua opção por um registro absolutamente
coloquial, por meio da reincidência da gíria moderna na boca de
Menelau. No fragmento anterior era ‘quem me ferrou’, no atual ‘não é
sopa’. Schüler estará muito provavelmente – no que emprega um registro
e um estilo casual, e no que enfatiza alguma comicidade e ligeireza na
narrativa (Menelau, é afinal, o corno do recital) – buscando comunicar-se
com o jovem leitor homérico, de fazer a Odisseia aceitável para o leitor
casual. Tal atitude, por princípio, já o torna antipático a certo setor de
tradutólogos que prezam a recriação do ‘estrangeiro’ no projeto
tradutológico – um setor que talvez não visse tantos problemas em certas
domesticações que Donaldo operou enquanto ‘trad(a)utor’ do seu Finícius
Revém. A objeção virá por que o estilo é claro e sem percalços,
vanguardismos, neologismos ou canibalismos. O texto mais antigo, de
Odorico, por outro lado, apresenta (se bem que de modo embrionário)
todas essas características, muito embora ainda quase estivesse ao gosto
médio do público rococó ancião e árcade tardio para o qual Odorico
traduziu. Atentemos para sua versão dessa mesma passagem: “Eu
[Menelau], porém: 'Com que insídias surpreendê-lo/Poderei, sem que fuja
ao pressentir-me?/Não é para mortais vencer a Numes.” (MENDES, 1996,
p.112)
Capturar um monstro sucessivo, resolver as questões homéricas
da tradução e a questão da tradução homérica – nada disso ‘é sopa’. Com
que insídias surpreender o sentido oculto nos dois projetos legítimos de
recriação do Homero, ademais quando renunciamos às facilidades do
poder policial que a menção ao texto grego nos possibilitaria? (Quer dizer,
se soubéssemos grego...) Lançamos nossas redes ao salgado mar piscoso,
águas de Netuno e/ou Poseidon. As águas do velho do mar. Proteu é
Homero – esse Homero supratextual que se transforma a cada versão, e

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 103
que nunca deixa de reter a sua história. Dois textos, de tempos e espaços
diversos – monstro sucessivo, monstro temporal, – e no entanto, o
mesmo texto, o mesmo discurso, a mesma narrativa – simetrias
espantosas. Pastor de focas que tudo sabe, que tudo sonda. Será que
algum de nossos contendores terá, na captura de Proteu, capturado
também Homero? Verifiquemos, novamente, os textos:

(SCHÜLER, 2007, P. 115) (MENDES, 1996, p. 113)

Ao meio-dia emergiu das águas o Merídio vem Proteu; conta,


Velho. Passou em revista os corpos examina,/Por nós principiando, o
nutridos. Inspecionou todas, gado obeso/E sem dar pelo
confirmando o número. A inspeção engano ali se estende./
começou por nós. O ardil nem lhe
passou pela cabeça. Deitou-se, por A vozearmos súbito o
fim. Erguemo-nos aos gritos. agarramos:/Sem lhe esquecer o
Tentamos prendê-lo nos braços. Ao ardil, muda-se o velho/Em jubado
velho não faltaram virtudes nem leão, drago, pantera,/Cerdo,
reservas de artimanhas. Apareceram riacho, ou tronco de alta copa;/
as jubas de leão. Vieram depois, os
anéis de dragão, veio a pantera, veio Mas com tenacidade ungido o
o javali, dos grandes. Transformou- astuto/
se em água corrente, árvore copada. Lasso vociferou:
Mas nós, de férrea determinação,
não o largamos. Por fim o velho 'Que deus, Átrida/A forçar-me
versado em truques, cansou. instruiu-te? Que pretendes?'/
Encarou-me, e perguntou: 'Quem, Mas eu: 'Por que me enganas tu
filho de Atreu, foi entre os deuses que sabes?/ Que ansioso estou
teu conselheiro? O que queres?' Não sem termo aqui detido?/
deixei sem resposta a pergunta:
'Nada Ignoras, velho. Por que me
vens com esse palavrório? Estou preso Ora dize, a imortais é claro tudo!/
nessa porcaria de ilha um motão de dias.
[grifo meu, marcando outra gíria] Não

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


104 | Roberto Mário Schramm Júnior
encontro saída. Meu coração começa
a fraquejar. Quero saber de ti – os Quem assim me proíbe o mar
deuses não sabem tudo? – isto: Qual piscoso?'
dos divinos se pôs no meu caminho?
Quem embaraçou meu regresso? Por
que não consigo atravessar este mar
empanzinado de peixes.

O confronto direto das duas amostras chama nossa atenção para


a força implacável de concisão que exibe o verso do poeta maranhense, ou
para a natural tendência a expansão de uma versão em prosa, como a que
propôs Donaldo? O verso comprime enquanto a prosa glosa. Odorico,
parafraseando Borges e Guerreiro, tem um livro aberto nas mãos e uma
navalha (de Occam) no cinto. Haverão casos em que o corte será
profundo demais, a ponto de dificultar a compreensão do texto,
obscurecendo Homero. A virtude do decassílabo enxuto de Odorico é
que a narrativa da captura e das metamorfoses de Proteu nos será exposta
com veemência na marcação rítmica. Por outro lado, a prosa de Donaldo
não deixa de marcar pontos também neste quesito. A sequência em
staccato de períodos curtos, com os quais Schüler descreve a captura e as
metamorfoses de Proteu, emprestam à prosa o dinamismo dos versos.
Mais importante – esse dinamismo alude a ação da captura, e captura a
urgência do momento.
O modelo que procurei propor, da tradução homérica como
atividade proteica baseado na análise de traduções sucessivas,
despreocupado com o estabelecimento de hierarquias entre as versões
conflitadas, não tem vocação prescritiva. Dificilmente se prestará a dizer
qual das traduções é a melhor, não tem nada a dizer sobre qual a maneira
correta de abordar o texto homérico e não tem o menor interesse em
revelar qual das versões é mais fiel ao texto canônico da Odisseia.
Entretanto, o confronto pontual de versões elaboradas dentro de uma
determinada tradição, historiografia ou polissistema literário, é uma
ferramenta poderosa para estabelecer relações insuspeitadas dentro dessa
tradução. As propostas muito diferentes dos projetos de Schüler e
Odorico Mendes, são um grande exemplo disso. Através desse confronto

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 105
podemos traçar uma linha sinuosa que compreende toda uma escola de
tradução, profundamente enraizada na cultura literária brasileira.

Metamorfoses ambulantes

Uma monstruosidade sucessiva. Começa no projeto de


transcriação latinizante da epopeia clássica de Odorico. Segue na
influência desse projeto sobre a ruptura de Sousândrade em o Guesa
Errante, onde se chama Odorico de ‘papai rococó’. Renasce no projeto
concretista, da tradução criativa, que estabelece uma paridade das
influências dos maranhenses Odorico Mendes e Sousândrade, junto com
o Make it New de Ezra Pound. Incidentalmente, o programa tradutório
homérico de Pound no Canto XI da Odisseia, embora pautado no verso
livre, é tão latinizante quanto o de Eurico, como já o mencionamos. Mas
tomemos agora um desvio: o programa renovador do concretismo e suas
teorias de tradução criativa, levaram os irmãos Campos a trabalhar na
tradução dos primeiros fragmentos do Finnegan’s Wake.
Foi esse Panorama do Finnegan’s Wake, por sua vez, que inspirou a
transcriação integral do Finn – levada pelo próprio Donaldo Schüler, que
manteve o título sugerido pelos Campos (Finícius Revém) –– cuja edição
ostenta uma dedicatória ao mestre Haroldo. Eis que a tradução de
Donaldo da Odisseia fecha um ciclo de transformações proteicas iniciado
com as epopeias traduzidas de Odorico, cujos trechos da Odisseia estão
aqui confrontados à tradução de Schüler. Proteu transforma-se em leão
jubado; em pantera; em cerdo/javali; em drago/dragão; em riacho e
árvore copada; em água corrente; e em tronco de alta copa. Proteu é ora
Homero, ora Odorico, ora Sousândrade; ora Décio, Augusto e Haroldo;
ora Donaldo Schüler. Nessa sucessão de metamorfoses surge toda uma
cultura literária.
Contra Homero? Qual, nada. A favor, isso sim, de sua
multiplicidade recombinante, de sua proteica metamorfose ambulante –
que se exprime em suas traduções. “Qual dessas muitas traduções é fiel,

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


106 | Roberto Mário Schramm Júnior
talvez queira saber o meu leitor, Repito que todas ou nenhuma.”49
(BORGES, 1996, p. 240) O colégio invisível dos tradutores homéricos
chega a eclipsar o texto original – o que não implica em desconsideração
para com o texto grego que nos foi legado. Pelo contrário, se torna cada
vez mais relevante a disponibilização de traduções especializadas, voltadas
para o estudo do texto original, e que tornem a versão homérica ‘original’,
de Pisístrato, acessível a um número cada vez maior de interessados.
Assim garantimos a continuidade desse fluxo tradutório. Que cada
geração tenha os seus Aedos, o seu Homero.

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_____________ El Inmortal. In: BORGES. J. L. Obras Completas, 1923-


1949. Barcelona: Emecé, 1996.

49
“¿Cuál de esas muchas traducciones es fiel?, querrá saber tal vez mi lector. Repito que
ninguna o que todas.”

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Homero – prós e contras: a questão homérica como um problema de tradução e o
problema da tradução como uma questão homérica | 107
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O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


108 | Roberto Mário Schramm Júnior

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O Olho Mais Azul, de Toni
Morrison, e Ponciá Vivencio, de Conceição Evaristo | 109

NARRATIVAS NO ESPELHO: ALGUMAS


CONSIDERAÇÕES SOBRE A RECEPÇÃO DE
O OLHO MAIS AZUL, DE TONI MORRISON, E
PONCIÁ VICENCIO, DE CONCEIÇÃO
EVARISTO
Luciana de Mesquita Silva
Marcela Iochem Valente

RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar as imagens culturais


criadas a partir da tradução literária. Para tanto, serão abordados os
romances The Bluest Eye (1970), da escritora estadunidense Toni
Morrison, lançado no Brasil com o título O olho mais azul em 2003, e
Ponciá Vicêncio (2003), da autora brasileira Conceição Evaristo, publicado
nos Estados Unidos em 2007 como Ponciá Vicencio. Além disso, pretende-
se investigar as posições ocupadas pelas respectivas escritoras e suas obras
nos polissistemas literários de origem e de recepção, considerando-se os
pensamentos de teóricos como Even-Zohar (1997), Lefevere (1990) e
Venuti (2002).
Palavras-chave: Estudos Descritivos da Tradução. Toni Morrison.
Conceição Evaristo.

ABSTRACT: This article aims to analyze the cultural images created


from literary translation. Bearing this in mind, it will focus on the novels
The Bluest Eye (1970), by the American female writer Toni Morrison,
released in Brazil under the title O olho mais azul in 2003, and Ponciá
Vicêncio (2003), by the Brazilian female writer Conceição Evaristo,
published in the United States in 2007 as Ponciá Vicencio. Moreover, it
intends to investigate the positions held by the respective writers and
their works in the source and target literary polysystems, taking into
consideration the thoughts of theorists such as Even-Zohar (1997),
Lefevere (1990) and Venuti (2002).
Keywords: Descriptive Translation Studies. Toni Morrison. Conceição
Evaristo.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


110 | Luciana de Mesquita Silva e Marcela Iochem Valente

A teoria dos polissistemas, desenvolvida por Itamar Even-Zohar


na década de 1970, traz à luz a cultura como um grande polissistema
estruturado por sistemas variados que se relacionam entre si e são
organizados hierarquicamente. No que diz respeito à literatura traduzida,
ela é concebida pelo autor “não só como um sistema que integra qualquer
polissistema literário, mas como um dos seus sistemas mais ativos” (EVEN
ZOHAR, 1997, p. 46)50. Dessa forma, a literatura traduzida, fazendo parte
do polissistema literário e este, por sua vez, inserido no polissistema
cultural, passa a ser vista como um fenômeno social que integra as
atividades humanas.
De acordo com Even-Zohar, levando-se em consideração as
configurações existentes na literatura-meta em determinado momento
histórico, a literatura traduzida pode ocupar o centro ou a periferia e
abranger repertórios conservadores ou inovadores. Ao sustentar uma
posição central, a literatura traduzida auxilia na composição do centro do
polissistema, atuando como força inovadora e abrindo espaço para a
criação de novos repertórios, modelos, linguagens e estilos na literatura-
meta a partir do texto-fonte. Por outro lado, a literatura traduzida está
situada na periferia de um polissistema literário quando geralmente é
caracterizada pelo conservadorismo e se compõe de modelos secundários,
ou seja, aqueles que não exercem grande influência no polo receptor e são
delineados segundo as normas previamente estabelecidas pelo referido
contexto. Nessa circunstância, a tradução se torna um meio de
preservação do gosto tradicional, comportando-se como um sistema
petrificado e desfavorável a mudanças de grande porte.
Com base no modelo polissistêmico, os Estudos Descritivos da
Tradução foram trazidos a público nos anos de 1970 por estudiosos como
Gideon Toury, Theo Hermans, André Lefevere e José Lambert e têm
como base a inserção da tradução num dado ambiente sociocultural.
Entre seus pressupostos estão a visão da literatura como um sistema
dinâmico e complexo, a tradução literária observada por um viés

50
Texto original: “not only as an integral system within any literary polysystem, but as a most
active system within it”.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O Olho Mais Azul, de Toni
Morrison, e Ponciá Vivencio, de Conceição Evaristo | 111
descritivo e voltada para o polo receptor e o interesse nas normas e
coerções que governam a produção e a recepção da tradução. Além disso,
a função da literatura traduzida tanto em um determinado polissistema
literário, quanto na sua interação com outras literaturas está diretamente
relacionada à forma do produto final.
Segundo Lefevere, a posição de uma tradução no contexto
receptor está vinculada a questões de poder, isto é, a mecanismos de
controle internos ou externos que atuam no sistema literário. Os
mecanismos de controle internos são representados por reescritores –
tradutores, críticos, professores de literatura e revisores – os quais podem
manipular as obras literárias de acordo com a poética e a ideologia
dominantes em determinada cultura, em certo momento histórico. Em
contrapartida, os mecanismos de controle externos estão ligados à
patronagem – indivíduos ou instituições com autoridade para auxiliar ou
refutar a produção, a leitura e a reescrita da literatura. Diante desse
cenário, nas palavras de Lefevere, “a tradução é uma das formas mais
óbvias de construção de imagem, de manipulação que nós temos”
(LEFEVERE, 1990, p. 26)51.
As ideias de Even-Zohar, Toury e Lefevere acerca das
complexidades envolvidas na atividade tradutória são complementadas
pela proposta de Lawrence Venuti a respeito da geração e manipulação de
imagens culturais que podem ocorrer por meio da tradução. No capítulo
“A formação de identidades culturais”, em seu livro Escândalos da
Tradução (2002), Venuti argumenta que a tradução é uma prática cultural
que pode levar à formação de identidades culturais, devendo, portanto,
respeitar uma ética da diferença (VENUTI, 2002, p. 157). Segundo o
autor, a tradução é, muitas vezes, vista como suspeita por domesticar
textos estrangeiros, inserindo neles valores linguísticos e culturais de
comunidades domésticas específicas. Desde a escolha do texto a ser
traduzido, sua produção, circulação até a recepção da tradução, há
seleções sendo feitas. Essas seleções podem ser responsáveis por
estabelecer cânones a partir de admissões e exclusões, criando centros e

51
Texto original: “Translation is one of the most obvious forms of image making, of
manipulation, that we have”.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


112 | Luciana de Mesquita Silva e Marcela Iochem Valente
periferias. A tradução também pode criar estereótipos para culturas
estrangeiras, levando grupos étnicos, raciais ou nacionais específicos a
serem respeitados ou estigmatizados (VENUTI, 2002, p. 130).
Partindo então dos pressupostos teóricos aqui apresentados, este
artigo buscará compreender as imagens culturais criadas por meio da
tradução, utilizando, para tanto, os romances The Bluest Eye (1970), da
estadunidense Toni Morrison, lançado no Brasil com o título O olho mais
azul em 2003, e Ponciá Vicêncio (2003), da brasileira Conceição Evaristo,
publicado nos Estados Unidos em 2007, também recebendo como título
o nome da protagonista, porém com uma diferença na acentuação, já que
o sobrenome Vicêncio perdeu o seu acento circunflexo. É importante
ficar claro, logo de início, que não pretendemos fazer uma comparação
entre os romances de Morrison e Evaristo, já que temos consciência de
que ambos foram produzidos em contextos muito distintos. O nosso
objetivo é analisar como as autoras e as traduções de suas obras em
questão foram recebidas e quais foram os seus possíveis impactos nos
polissistemas de origem e de chegada, contribuindo, portanto, para a
ampliação dos estudos sobre a recepção da literatura afrodescendente
traduzida.

1. Toni Morrison e The Bluest Eye no polissistema literário


estadunidense

Nascida em Lorain, Ohio, no ano de 1931, Morrison é


considerada um dos maiores expoentes contemporâneos da literatura
afro-americana, ou seja, da literatura referente aos estadunidenses de
descendência africana, cujas origens remontam à segunda metade do
século XVIII. De acordo com Henry Louis Gates, renomado intelectual
afro-americano, essa vertente do polissistema literário em questão
apresenta as seguintes peculiaridades: “[e]mbora os autores negros revisem
muito certamente textos da tradição ocidental, eles procuram fazer isso
frequentemente ‘de maneira autêntica’, ou seja, com uma diferença negra,

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O Olho Mais Azul, de Toni
Morrison, e Ponciá Vivencio, de Conceição Evaristo | 113
um senso persuasivo de diferença baseado no vernáculo negro” (GATES,
1988, p. 22)52.
Tais características são evidenciadas na produção de Morrison,
que inclui diferentes gêneros: romances – The Bluest Eye (1970), Sula
(1974), Song of Solomon (1977), Tar Baby (1981), Beloved (1987), Jazz
(1992), Paradise (1998), Love (2003), A Mercy (2008) e Home (2012);
literatura infantil – The Big Box (1999), The Book of Mean People (2002),
Who’s Got Game? (2007), Peeny Butter Fudge (2009), Little Cloud and Lady
Wind (2010) e The Tortoise or the Hare (2010); conto – Recitatif (1983);
crítica literária – Playing in the Dark: Essays on Whiteness and the Literary
Imagination (1992) e What Moves at the Margin: Selected Nonfiction (2008); e
organização de coletâneas de artigos – Race-ing Justice, En-gendering Power:
Essays on Anita Hill, Clarence Thomas, and the Construction of Social
Reality (1992), Birth of a Nation’hood: Gaze, Script, and Spectacle in the O.J.
Simpson Case (1997) e Burn This Book: PEN Writers Speak Out on the Power
of the Word (2009).
Com relação aos seus romances, eles apresentam uma forma
peculiar de narrativa, a partir de técnicas de fluxo de consciência,
múltiplas perspectivas e fragmentação. Os personagens são, em grande
parte, negros e, através deles, Morrison revela as lutas individuais e
coletivas dos afro-americanos para serem reconhecidos como membros de
uma sociedade majoritariamente branca, utilizando, para isso, uma
linguagem que engloba características relativas ao African American English,
entre outros aspectos.
É importante ressaltar que, antes da década de 1970, a literatura
afro-americana estava relegada à periferia do polissistema literário
estadunidense, já que poucos autores ligados a esse contexto tinham
espaço no mercado editorial (DICKSON-CARR, 2005, p. 1). Esse cenário
começou a mudar gradativamente com o advento dos anos de 1970,
época marcada por movimentos como a reivindicação dos direitos civis

52
Texto original: “Whereas Black writers most certainly revise texts in the Western
tradition, they often seek to do so ‘authentically’, with a black difference, a compelling sense
of difference based on the black vernacular”.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


114 | Luciana de Mesquita Silva e Marcela Iochem Valente
dos negros e o feminismo. Nesse período, escritoras negras como Maya
Angelou, Nikki Giovanni e Toni Morrison buscaram trazer à luz
discussões acerca das relações raciais em seu país, demonstrando, assim,
como a literatura produzida por mulheres pode ir além de questões
ligadas ao universo feminino. Logo, no campo da autobiografia, destaca-se
I Know Why the Caged Bird Sings (1970), livro em que Angelou, ao se
apresentar como uma adolescente de dezesseis anos, descreve como é ser
mulher e negra no sul. No tocante à poesia, Giovanni publicou Black
Feeling, Black Talk, Black Judgement no ano de 1971. Trata-se de um
conjunto de poemas que desvela o ódio e a frustração sentidos pela
comunidade negra ao ser discriminada por uma sociedade hegemônica,
dominada por brancos. No que diz respeito aos romances, Toni Morrison
lançou The Bluest Eye em 1970, contribuindo, juntamente com Angelou e
Giovanni, para a ampliação da visibilidade da literatura afro-americana e,
acima de tudo, abrindo caminhos para a produção literária de outros
escritores vinculados a esse contexto.
Com o passar dos anos, Morrison passou a ganhar destaque não
só em seu país, como também ao redor do mundo. Prova disso são os
diversos prêmios recebidos por ela ao longo de sua carreira literária, entre
os quais se destaca o Prêmio Nobel de Literatura em 1993, ano em que
Morrison se tornou a primeira escritora negra a ser agraciada com a
referida honra, além das traduções de suas obras para variadas línguas,
tais como o árabe, o espanhol, o francês e o português, e dos comentários
realizados pela crítica.
Na introdução a uma coletânea de artigos sobre Morrison,
organizada por Harold Bloom, esse renomado crítico literário enaltece a
postura engajada da autora no questionamento das tradições da ficção
narrativa nos Estados Unidos: “[c]omo uma líder da cultura literária afro-
americana, Morrison é particularmente enfática ao questionar
caracterizações críticas as quais ela acredita que representem mal suas
próprias lealdades, suas fidelidades políticas e sociais à complexa causa de
seu povo” (BLOOM, 2005, p. 3)53. Tais palavras de Bloom demonstram o

53
Texto original: “Like any potentially strong novelist, battles against being subsumed by the
traditions of narrative fiction. As a leader of African-American literary culture, Morrison is

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O Olho Mais Azul, de Toni
Morrison, e Ponciá Vivencio, de Conceição Evaristo | 115
empenho de Morrison em dar voz a uma parcela da população nacional
historicamente silenciada e suprimida. Outros intelectuais enxergam na
literatura de Morrison elementos que suplantam questões raciais. Thomas
B. Hove, por exemplo, no livro Postmodernism: The Key Figures (2002), em
que Morrison é vista como uma das maiores representantes do
movimento pós-modernista, ao lado de nomes como Mikhail Bakhtin,
Roland Barthes e Jean Baudrillard, faz esta observação:

As obras de ficção de Morrison repetidamente


desafiam tradições culturais definidas por padrões
patriarcais, assimilacionistas e totalizantes [...].
[Morrison] enfatiza a centralidade da linguagem
não só como repositório de cultura, mas como o
principal meio de interação social. (HOVE, 2002,
p. 254-5)54

Essa centralidade da linguagem pode ser claramente observada


em The Bluest Eye a começar pelo título, já que o adjetivo “blue” se
caracteriza por uma ambiguidade. Isso porque, além de se referir à cor
azul, pode sugerir um sentimento de tristeza ou melancolia.
Nesse livro, a protagonista Pecola Breedlove é uma garota negra
de onze anos de idade que vive no sul dos Estados Unidos na década de
1940. Ela alimenta um grande e impossível sonho: ter olhos azuis. Tal
desejo está ligado ao fato de Pecola ser considerada uma menina feia e
essa característica, somada à cor de sua pele, fazer com que ela seja
segregada e humilhada. Vários são os momentos em que isso acontece.
Na escola, é vítima de piadas e brincadeiras preconceituosas. No seio de
sua família, é inferiorizada e estuprada pelo próprio pai.

particularly intense in resisting critical characterizations that she believes misrepresent her
own loyalties, her social and political fealties to the complex cause of her people”.
54
Texto original: “Morrison’s fictions repeatedly challenge cultural traditions defined by
patriarchal, assimilationist and totalizing standards [...]. [Morrison] emphasizes the centrality
of language not only as repository of culture but as the primary medium of social
interaction”.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


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Embora The Bluest Eye seja considerada uma obra significante no


surgimento de uma fase de maior visibilidade da literatura afro-americana,
ela foi pouco reconhecida pela crítica no período de sua publicação,
sendo que suas observações geralmente se centravam no estilo da autora e
no seu olhar para a vida dos negros. John Leonard, na edição de 3 de
novembro de 1970, do jornal The New York Times, destaca as
particularidades da escrita de Morrison: “uma prosa tão precisa, tão fiel à
fala e tão carregada de dor e encantamento que o romance se torna
poesia” (LEONARD, 1970, s.n.p.)55. L. E. Sissman, por sua vez, ao opinar
sobre a obra em questão no The New Yorker, enfatiza sua temática relativa
aos negros: “[u]m olhar inovador e atento sobre as vidas de terror e
decoro daqueles negros que querem progredir em um mundo pertencente
ao homem branco... Um retrato emocionante e inquietante da juventude
condenada da raça [da autora]” (SISSMAN, 1971, s.n.p.) 56.
Críticas como as de Sissman, que chegam a reforçar a ideia de
que os afro-americanos estariam relegados a uma condição de
inferioridade, causaram descontentamento a Morrison. Isso pode ser
observado no posfácio escrito por ela e acrescentado à nova edição de The
Bluest Eye, lançada em 1993: “[c]om pouquíssimas exceções, a publicação
inicial de O olho mais azul foi como a vida de Pecola: desprezada,
trivializada, mal interpretada” (MORRISON, 2003, p. 216).
Posteriormente, quando Morrison já havia se tornado uma escritora
renomada nacional e internacionalmente, houve alterações nos modos de
recepção do romance nos Estados Unidos, haja vista a publicação de
diferentes edições após 1993, o estudo da obra em diversas escolas
estadunidenses e sua inserção no Clube do Livro da apresentadora Oprah
Winfrey em 2000, entre outros fatores.
Dessa forma, no decorrer de sua trajetória profissional não só
como escritora, mas também como editora, professora, escritora e
palestrante, Morrison vem desestabilizando a hegemonia branca no

55
Texto original: “a prose so precise, so faithful to speech and so charged with pain and
wonder that the novel becomes poetry”.
56
Texto original: “A fresh, close look at the lives of terror and decorum of those Negroes
who want to get on in a white man's world...A touching and disturbing picture of the
doomed youth of [the author's] race”.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O Olho Mais Azul, de Toni
Morrison, e Ponciá Vivencio, de Conceição Evaristo | 117
polissistema literário de seu país. Seu objetivo de trazer ao público o
universo afro-americano com suas especificidades musicais, artísticas e
linguísticas contribuiu de forma efetiva para que a história dos negros nos
Estados Unidos, ao contrário do que ocorreu durante um longo período,
não fosse esquecida. Muitos foram os desafios presentes na carreira de
Morrison, tais como o fato de ela ser afro-americana e mulher, para que
hoje a primeira escritora negra a receber o Prêmio Nobel de Literatura
ocupe uma posição de destaque que não se restringe ao sistema literário
afro-americano. Morrison conquistou seu espaço no cânone do
polissistema literário estadunidense e, ao mesmo tempo, atingiu uma
considerável popularidade, tendo seu trabalho reconhecido e promovido
em diversos lugares do mundo.

2. Conceição Evaristo e Ponciá Vicêncio no polissistema literário


brasileiro

Embora o polissistema de literatura afro-brasileira não seja tão


reconhecido e consolidado como o de literatura afro-americana, o estudo
de produções literárias que buscam dar voz a esse grupo historicamente
excluído, questionando os relatos históricos oficiais, vem crescendo dia
após dia. Nesse contexto, a escritora afro-brasileira Conceição Evaristo
vem ganhando espaço e reconhecimento, tendo a sua obra estudada em
diversos trabalhos acadêmicos no Brasil e no exterior.
Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo
Horizonte, em 29 de novembro de 1946, em uma família humilde,
vivendo em uma favela na zona sul da capital mineira. Apesar de ter
produções publicadas desde 1990, apenas recentemente Conceição
Evaristo começou a ser reconhecida dentro e fora do Brasil. Evaristo
publica constantemente na série Cadernos Negros – coletânea de poemas e
contos que surgiu em 1978 e é hoje a principal antologia publicada
regularmente com textos de autores afro-brasileiros, sendo um importante
veículo para dar visibilidade à literatura negra – e foi através da
publicação de seus poemas e contos nessa série que a escritora começou a
ser conhecida no sistema de literatura afro-brasileira.

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Além de ter poemas, contos e trabalhos acadêmicos publicados,
Evaristo é autora de dois romances – Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da
Memória (2006) – tendo sido o primeiro traduzido para o inglês em 2007,
e dos livros Poemas da recordação e outros movimentos (2008), que reúne uma
série de poemas anteriormente publicados nos Cadernos Negros e que foi
recentemente vertido para o inglês por Maria Aparecida Salgueiro e
Antonio Tillis, porém, ainda no prelo, e Insubmissas lágrimas de mulheres
(2011), uma coletânea de contos. Também é de grande relevância o blog
lançado pela escritora em 30 de novembro de 2012 chamado “Nossa
Escrevivência”, hospedado em
http://nossaescrevivencia.blogspot.com.br/, onde podemos encontrar,
além da tese de doutorado da escritora, informações sobre os livros já
publicados por Evaristo, textos da escritora, entrevistas, depoimentos,
vídeos, artigos publicados sobre sua obra e material sobre a literatura afro-
brasileira de um modo mais amplo.
A obra literária de Conceição Evaristo narra, sob a ótica
feminina e afro-descendente, problemas do cotidiano das mulheres negras
e da pobreza, em formato repleto de poesia e cheio de referências
culturais. Sua obra se projeta nos dias de hoje como reflexo identitário de
um grupo até então excluído e questiona os cânones brasileiros, que
tendem a priorizar a visibilidade de grupos pertencentes às supostas
maiorias ou, ainda, à sociedade hegemônica, tida como padrão. Embora o
polissistema de literatura afro-brasileira ainda seja muito questionado e
até mesmo desconhecido para muitos,

[n]o Brasil, assim como nos Estados Unidos –


consideradas as diferenças culturais – as mulheres
afro-brasileiras vêm escrevendo e publicando de
forma organizada há alguns anos, representando
um grupo com traços próprios. No entanto,
devido a características culturais nacionais
específicas, embora boa parte de seu trabalho já
tenha sido traduzido e se transformado em objeto
de debate com agraciamento em alguns setores no
exterior, no Brasil, um pleno reconhecimento de

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O Olho Mais Azul, de Toni
Morrison, e Ponciá Vivencio, de Conceição Evaristo | 119
sua produção e valor literário ainda não chegou.
(SALGUEIRO, 2008, p. 144)

Assim, diferenças culturais, ideológicas e fatores como o mito da


democracia racial contribuíram consideravelmente para que o movimento
negro no Brasil se desse de forma bastante diferente daquele nos Estados
Unidos, sendo esse um movimento que vem ganhando seu espaço aqui
décadas depois da consolidação do mesmo em terras estadunidenses,
apenas na contemporaneidade. Do mesmo modo, o sistema de “literatura
afro-brasileira no âmbito acadêmico brasileiro ainda tem se apresentado
como território de polêmicas conceituais” (ALVES, 2010, p. 42), como
aponta a escritora afro-brasileira Miriam Alves e, por isso, ainda não é um
sistema com pleno reconhecimento e valor literário no polissistema
brasileiro. Ainda assim, Conceição Evaristo vem conquistando cada dia
mais reconhecimento, já tendo tido inclusive o seu romance Ponciá
Vicêncio indicado como leitura obrigatória para vestibulares de grandes
instituições como o CEFET/MG e a UFMG, apenas para citar algumas.
Assim, podemos dizer que a escritora Conceição Evaristo é uma
autora conhecida na academia por pesquisadores que trabalham com
literaturas da diáspora negra, porém ainda não é familiar ao público em
geral, mesmo com a utilização de Ponciá Vicêncio em vestibulares, como
mencionamos. Sua obra vem sendo muito estudada nos últimos anos,
gerando um grande número de artigos, teses e dissertações, e
consolidando o lugar ocupado pela escritora na academia e no sistema de
literatura afro-brasileira. Porém, o prestígio no polissistema de literatura
brasileira ainda não foi alcançado. Como aponta Eduardo de Assis
Duarte em entrevista concedida a Valente em março de 2013,

Conceição, de todas as escritoras negras


brasileiras, é a que mais visibilidade tem. Não
estou dizendo que ela está sendo canonizada, não
é isso, mas eu penso que ela conseguiu realmente
furar um bloqueio muito forte. Sua obra não está
publicada ainda por nenhuma grande editora, ela
vem publicando em editoras menores, e vem

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


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tendo muito sucesso apesar disso, e dos problemas
com a divulgação e a distribuição de seus livros,
problemas característicos de editoras pequenas
que não têm capital para investir na divulgação,
propaganda, distribuição, coisas desse tipo.
Mesmo assim, Evaristo vem conseguindo ampliar o seu círculo
de leitores dia após dia e o interesse da academia em suas produções tem
se mostrado crescente. Em troca de e-mails com Valente, a editora Mazza
afirma que até o final de 2013 Ponciá Vicêncio vendeu cerca de 16 mil
exemplares no Brasil, tendo duas edições.
Além dos diversos estudos que vêm sendo realizados a seu
respeito, Evaristo também tem publicado vários artigos sobre questões de
gênero e raça em periódicos respeitados na academia, além de suas
constantes palestras e participações em eventos aqui e no exterior, nos
quais Evaristo busca evidenciar sua escrita marcada pela condição de
mulher e negra. Em sua palestra “Poética da dissonância: vivência e escrita
de mulheres negras brasileiras”, apresentada na universidade de Brown
em 2012, Evaristo, logo de início, faz questão de evidenciar o seu lugar de
enunciação: “[g]ostaria também de afirmar que toda a minha produção,
tanto literária como a produção crítica, é extremamente marcada,
atravessada, pela minha posição de mulher negra na sociedade brasileira”.
Assim, podemos afirmar que, se por um lado, a obra de Evaristo não é
muito conhecida dentro do polissistema de literatura brasileira, em
contrapartida, ela já é uma autora consagrada entre os escritores que
compartilham uma identidade literária afro-brasileira e que integram um
sistema literário afro-brasileiro ainda em fase de consolidação.

3. Morrison e Evaristo nos contextos de recepção via tradução

Ao longo dos anos, pode ser observada uma crescente


visibilidade de Morrison no polissistema literário brasileiro. Até o
momento foram publicadas as traduções dos seguintes romances para o
português do Brasil: The Bluest Eye (O olho mais azul, 2003); Song of
Solomon (A canção de Solomon, 1977); Tar Baby (Pérola negra, 1981); Beloved
(Amada, 1989/1993/2007/2011); Jazz (Jazz, 1992/2009); Paradise

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(Paraíso, 1998); Love (Amor, 2005); A Mercy (Compaixão, 2009) – entre as
quais apenas a de Sula ainda não foi realizada. Sua obra Who’s Got Game
(2007), vinculada à literatura infantil, também foi traduzida no Brasil,
com o título de Quem leva a melhor? (2008).
Especificamente com relação ao romance O olho mais azul,
tradução feita por Manuel Paulo Ferreira e publicada pela editora
Companhia das Letras, no âmbito da coleção Prêmio Nobel, ele chegou
às livrarias do Brasil vinte e três anos depois de seu lançamento no
polissistema literário estadunidense. Segundo Toury (1995), “não há
como uma tradução ocupar o mesmo lugar sistêmico de seu original; nem
mesmo quando os dois estão fisicamente presentes lado a lado” (TOURY,
1995, p. 26)57. Dessa forma, ao apresentar uma linguagem que remete
constantemente à variedade padrão, embora em seu posfácio o tradutor
afirme que procurou “manter o tom ‘oral, sonoro e coloquial’, sobretudo
nos diálogos” (MORRISON, 2003, p. 216), O olho mais azul exerce a
função de conservar uma estética literária tradicional, a partir de escolhas
tradutórias predominantemente domesticadoras. Além disso, Morrison é
apresentada como uma escritora que ganhou o Prêmio Nobel de
Literatura em 1993. Tais fatores sugerem, entre outros aspectos, uma
busca pela invisibilidade de elementos relativos à cultura negra
estadunidense, especialmente no que diz respeito ao African American
English. Isso acaba reforçando o silenciamento também imposto aos afro-
brasileiros, barreira que aos poucos tem sido rompida pelo trabalho de
escritores como Cuti, Miriam Alves e Conceição Evaristo, conforme
podemos observar ao longo deste artigo.
Quanto à recepção de O olho mais azul no polissistema literário
brasileiro, poucos comentários de leitores puderam ser encontrados. No
site da editora Companhia das Letras, há apenas a opinião da leitora
Lilian Cibelle: “Não é um livro apenas. É uma obra de arte. Magnífico!”.
Essa visão se contrapõe à seguinte afirmação do leitor Marcos, disponível

57
Texto original: “There is no way a translation could share the same systemic space with its
original; not even when the two are physically present side by side”.

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122 | Luciana de Mesquita Silva e Marcela Iochem Valente

no site da Livraria Cultura: “O tema do livro é interessante abordando o


preconceito, mas a forma como a autora escreve deixou o enredo confuso
e entediante, a narrativa não prende a atenção, fica uma coisa solta e sem
sentido, sem conexão. Esperava bem mais deste livro”. Nesse caso, é
importante ressaltar que a forma de escrita da autora está relacionada às
escolhas tradutórias presentes na edição em português brasileiro. No
âmbito acadêmico, Salgueiro se posiciona acerca do romance ao declarar,
no artigo “A mediação de culturas nas traduções de obras de escritoras de
origem afro” (2006), que “apesar da preocupação do tradutor muito do
potencial cultural e poético do título se perdeu” (SALGUEIRO, 2006, p.
173).
O fato de as obras de Morrison terem sido traduzidas no Brasil
no decorrer dos anos levou a autora a ser convidada para visitar o nosso
país em pelo menos duas diferentes ocasiões. Uma delas ocorreu na
década de 1990 e acabou reunindo Morrison a um grupo de escritores
afro-brasileiros, incluindo Cuti, Esmeralda Ribeiro e Miriam Alves, a qual
comenta sobre o encontro em entrevista concedida à revista Geni, em
2013:

Quando vem a negra estrangeira, a Toni


Morrison, ela vai aos jornais, vai aos coquetéis e
vai não sei mais aonde, até que chega uma santa
hora em que Toni Morrison pergunta se não tem
negro escritor no Brasil. O que acontece? A
editora ligou para a [atriz e militante] Thereza
Santos, que, dentro da Secretaria da Cultura de
São Paulo, realizou três perfis de literatura negra,
três encontros internacionais grandes. E, a pedido
da Toni Morrison, a editora entrou em contato
com a gente.

Esse depoimento de Alves reforça a visibilidade de Morrison no


Brasil como uma escritora estadunidense que ganhou o Prêmio Nobel de
literatura em contraposição à invisibilidade do trabalho de autores afro-
brasileiros.

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Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O Olho Mais Azul, de Toni
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Alguns anos mais tarde, em 2006, Morrison foi um dos nomes
de destaque na Feira Literária Internacional de Paraty. A Folha de São
Paulo, por exemplo, na seção “Ilustrada”, trouxe uma matéria intitulada
“Toni Morrison faz a palestra mais concorrida do dia” (2006), na qual
está presente a informação de que a escritora “é a campeã de audiência na
Flip até o momento. Segundo a organização do evento, ela lotou ontem à
noite a Tenda dos Autores, auditório que teve 740 lugares ocupados (40
além da lotação normal)”. Já no artigo “Em Paraty, o Fashion Week das
Letras” (2008), publicado na Revista Época, o autor Rafael Pereira destaca
a presença da “romancista americana” e “Nobel de Literatura” no evento
literário em questão, sem fazer referência a aspectos raciais e de gênero.
No contexto acadêmico, há um considerável número de
pesquisadores interessados na literatura de Morrison, o que contribui
para a consolidação de sua presença no polissistema literário brasileiro.
Em pesquisa realizada em 2013 no banco de teses do portal da Capes,
foram encontradas trinta e três dissertações e teses de 1992 a 2011 sobre a
produção literária da escritora. Entre elas se encontram as de autoria de
Clélia Reis Geha – Um olhar feminista em busca de Sula e Da canção de
Solomon (UFPE – 1999); Danielle de Luna e Silva – Representações de
gênero e etnia em Amada, de Toni Morrison, e Ninguém para me
acompanhar, de Nadine Gordimer (UnB – 2007); Mirna Leisi Coelho
Lopes – À margem em The Bluest Eye, de Toni Morrison: negritude, identidade
e crítica social (UFSM – 2009) e Clara Alencar Villaça Pimentel – “Eu vim
de lá pequenininho, alguém me avisou pra pisar neste chão devagarinho”: diálogos
diaspóricos entre Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves e Beloved, de
Toni Morrison (UFJF – 2011).
Na maioria dos trabalhos sobre Morrison no Brasil, há uma
recorrência de discussões em torno de assuntos como gênero, raça e
diáspora. No tocante à temática da tradução, pôde ser encontrada apenas
a dissertação de mestrado Tradução e Estudos Culturais: estudo da tradução
brasileira de The Bluest Eye, de Toni Morrison, de Lucília Teodora Villela
Leitgeb (UEMS – 2006), cujo foco se detém em uma abordagem
prescritiva dos aspectos linguísticos da obra citada. Dessa forma, tornam-
se relevantes estudos mais abrangentes, que focalizem questões de poder

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na tradução literária, as quais estão diretamente relacionadas às obras que
serão traduzidas em determinado polissistema literário, bem como às
estratégias tradutórias que serão utilizadas.
No que diz respeito à escritora brasileira Conceição Evaristo, ela
vem conquistando cada dia mais leitores no polissistema literário
estadunidense. Ao mesmo tempo, o interesse pela tradução de sua obra
vem crescendo paulatinamente nos Estados Unidos, embora esse seja um
país bastante resistente à literatura estrangeira. Ao ter sua obra traduzida
para o inglês e estudada nos Estados Unidos, Evaristo acaba sendo
apresentada no contexto de recepção como uma autora altamente
engajada no movimento negro, tal como as afro-americanas são. Isso
acontece porque, ao chegar ao polissistema receptor, a obra traduzida é
vista sob uma nova perspectiva, partindo de outros pressupostos e com
um olhar muito influenciado por questões da cultura de recepção.
Segundo Salgueiro, em entrevista concedida a Valente em 2013,

Lá [nos Estados Unidos] há uma grande


preocupação em focar, em visualizar, em
compreender, a diáspora negra ao longo de
diferentes países do atlântico, e aqui eu cito como
fonte de referência especial a obra de Paul Gilroy.
Eles buscam compreender as diferentes visões que
essa diáspora negra ao longo do Atlântico
apresenta de si própria.

Com isso, obras produzidas por escritores pertencentes a essa


diáspora em outros países acabam recebendo especial interesse.
Nos Estados Unidos, Evaristo tem aparecido em muitas
publicações sobre diáspora, estudos de gênero e etnia. Isso porque, como
aponta Stephen M. Hart, professor da University College London – UCL
e responsável pelo departamento de estudos hispânicos e latino-
americanos dessa universidade, Conceição Evaristo vem sendo vista como
“uma das mais importantes escritoras afro-brasileiras contemporâneas”
(HART, 2007, p. 279). Algumas antologias e coletâneas de artigos
recentes onde encontramos a obra de Evaristo como objeto de estudo são:

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Fourteen Female Voices from Brazil: Interviews and Works, coletânea
organizada por Elzbieta Szoka (2002) e lançada pela Host, mesma editora
que publicou a tradução de Ponciá. Nesse livro, há um capítulo sobre a
obra de Evaristo rico em dados biográficos e o conto “Ana Davenga”, de
sua autoria, traduzido para o inglês. Outra publicação muito relevante é o
capítulo escrito pela reconhecida pesquisadora afro-americana Carole
Boyce Davies intitulado “Women and Literature in African Diaspora”,
como parte da Encyclopedia of Diasporas, Immigrant and Refugee Cultures
Around the World, organizada por Melvin Ember, Carol Ember e Ian
Skoggard, da Yale University (2005). Davies, crítica e teórica dos estudos
da diáspora africana, vem trabalhando há alguns anos com a literatura
afro-latino-americana, dando atenção especial à literatura afro-brasileira.
Em suas produções mais recentes, a estudiosa fala sobre a obra de
Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro e atenta para a importância
dessas produções comprometidas provenientes das escritoras da diáspora.
Outra produção de Davies em que Evaristo recebe atenção é Moving
Beyond Boundaries: International Dimensions of Black Women’s Writing,
publicada em 1995.
Conceição Evaristo também vem sendo tema de teses de
doutorado nos Estados Unidos, tanto de estudantes brasileiros que levam
as suas pesquisas para universidades estadunidenses, como de estudantes
estadunidenses interessados na produção de escritoras afro-descendentes
na América latina. Alguns estudos recentes desenvolvidos nos Estados
Unidos são a tese de doutorado de Sarah Soarina Ohmer, intitulada Re-
Membering Trauma in the Flesh: Literary and performative representations of
race and gender in the Americas, defendida em 2012, na Universidade de
Pittsburgh, onde a pesquisadora estadunidense trabalha com os traumas
causados pela escravidão, pela discriminação e marginalização social em
diferentes gerações de mulheres de cor, analisando, de forma
comparativa, Beloved de Toni Morrison, Ponciá Vicencio de Conceição
Evaristo, e I, Tituba, Black Witch of Salem de Maryse Condé; e a tese de
Flávia Santos de Araújo, que está sendo desenvolvida na Universidade de
Massachusetts Amherst, com o título The Diasporic Black Female Body in
Contemporary Afro-Brazilian and African American Literary Representations.

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Além de diversas pesquisas e publicações a seu respeito por
pesquisadores renomados nos estudos afro-americanos/latino-
americanos/afro-brasileiros, como Boyce Davies e Hart, Evaristo tem sido
convidada para diversos eventos nos Estados Unidos, e sua obra tem sido
utilizada até mesmo em cursos de pós-graduação em universidades
estadunidenses, como o Dartmouth College. No site da Universidade do
Tennessee, ao falar sobre o lançamento de Ponciá Vicêncio em inglês em
2007, Evaristo já é apontada como uma líder afro-brasileira:

Maria da Conceição Evaristo é escritora líder afro-


brasileira e colabora com a ONG Criola, primeira
ONG de mulheres negras no Rio de Janeiro.
Professora por profissão, sua militância é mais
evidente em associações comunitárias,
orientações, ensino e publicações. Está
trabalhando em seu Doutorado em Literatura
Comparada da Universidade Federal Fluminense,
no Rio de Janeiro e está nos Estados Unidos
como convidada da Host Publications para lançar
a versão em inglês do seu primeiro romance,
Poncia Vicêncio.

Além da recepção crítica de Ponciá Vicêncio, também cabe


tecermos alguns breves comentários sobre a recepção geral do romance.
Durante nossa pesquisa de doutorado (2010–2013), pouco foi
encontrado na mídia impressa e/ou eletrônica sobre Ponciá Vicêncio no
contexto estadunidense fora da academia. Porém, mais recentemente,
surgiram algumas resenhas do romance em alguns sites, o que mostra que
a obra vem alcançando leitores, mesmo que poucos, fora da academia
também. É bastante relevante falarmos sobre essas resenhas que aparecem
na internet, já que sites como Amazon, Good Reads, MyShelf, dentre outros
– onde é possível postar resenhas de livros lidos e onde, algumas vezes, há
leitores especializados escolhidos para postarem resenhas – acabam
funcionando como formadores de opinião.
No caso de Evaristo, o leitor que buscar referências na web sobre
o romance Ponciá Vicêncio encontrará em inglês uma avaliação bastante

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positiva. No site Good Reads a obra recebeu 18 avaliações e, de cinco
estrelas possíveis, foi avaliada com quatro estrelas, o que mostra uma
recepção positiva por parte dos leitores.
No site Myshelf há uma resenha profissional escrita por Laura
Strathman Hulka, da Califórnia, onde a resenhista diz que Ponciá é “um
fascinante romance de estreia da escritora afro-brasileira Conceição
Evaristo” (HULKA, 2007) 58. Hulka acrescenta ainda que Evaristo oferece
um olhar admirável sobre o negro latino-americano, escrevendo de forma
bela e despojada. Por fim, a resenhista afirma que “a tradutora, Paloma
Martinez-Cruz, fez um trabalho notável dando ao leitor ocidental o sabor
e o significado da obra original, sem tornar o livro muito estranho ou
difícil de ler” (HULKA, 2007) 59, o que mostra uma avaliação positiva não
apenas do romance de Evaristo, mas também da tradução de Martinez-
Cruz.
Por fim, um site bastante importante na formação de opinião de
leitores é o da livraria virtual Amazon. No site da Amazon, além de ser
possível comprar a tradução de Ponciá Vicêncio, até o momento em que
encerramos a presente pesquisa, em 01 de setembro de 2013,
encontramos disponíveis uma descrição do livro, a apresentação da
autora, uma resenha editorial e uma resenha de um cliente leitor, que
inclui uma avaliação que vai de zero a cinco estrelas. No caso da avaliação,
o livro foi avaliado por apenas uma pessoa e recebeu as cinco estrelas
possíveis. A leitora que avaliou o romance escreveu que amou o livro e
que a leitura foi muito interessante. “[Ponciá] é, agora, um dos meus livros
favoritos. Essa foi a primeira vez que li um romance de alguém que não é
nascido nos Estados Unidos”. A resenha editorial apresentada é da
famosa revista de resenhas Rain Taxi, que publica uma edição impressa
com suas resenhas a cada quarto meses, além de disponibilizar conteúdo
online. Na apresentação da autora, encontramos o mesmo texto que está
disponível na orelha da tradução de Ponciá, escrito pela editora Host, e a

58
Texto original: “A fascinating debut novel by Afro-Brazilian writer Conceicao Evaristo”.
59
Texto original: “The translator, Paloma Martinez-Cruz has done a remarkable job of giving
the Western reader the flavor and meaning of the original work, without making the book
too awkward or difficult to read”.

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descrição do livro apresentada na Amazon também é proveniente da


própria edição estadunidense, estando na contracapa da tradução.
Com base nos dados apresentados e nas articulações efetuadas
até o presente momento, podemos dizer que a escritora Conceição
Evaristo é ainda pouco conhecida nos Estados Unidos, porém vem
ganhando visibilidade e reconhecimento nos estudos de gênero, etnia e
diáspora. Sua obra tem sido objeto de estudo de pesquisadores que
trabalham com literatura afro-americana, afro-brasileira e latino-
americana, e ela tem sido apresentada por esses pesquisadores como uma
escritora ativista que luta contra preconceitos raciais e de gênero através
de sua produção literária. No que diz respeito à recepção pelo público em
geral, embora o romance ainda seja pouco lido, constatamos que a
acolhida vem sendo bastante positiva entre os leitores. A editora Host nos
informou por e-mail que até o final de 2013 Ponciá Vicencio teve duas
impressões nos Estados Unidos, já que a primeira impressão foi esgotada
rapidamente, e vendeu ao todo 1.500 exemplares, o que é um número
considerável em um polissistema que tende a rejeitar literatura estrangeira
e literatura traduzida.
Embora seja notável o esforço de Evaristo, assim como o dos
escritores afro-descendentes de um modo mais amplo, o do movimento
negro no Brasil e dos pesquisadores da área, para que a literatura afro-
brasileira alcance visibilidade e reconhecimento de mérito, assim como,
eventualmente, opere como instrumento de revolução e
questionamentos, como acontece nos Estados Unidos, argumentamos ao
longo deste trabalho que tal movimento ainda é bastante recente no
Brasil e, portanto, acontece de forma consideravelmente diferente nesse
contexto. Percebemos que nos Estados Unidos a produção de Conceição
Evaristo e também de outras escritoras afro-brasileiras vem sendo
analisada à luz do legado da literatura afro-americana. Isso porque, como
aponta a própria escritora Conceição Evaristo (2013), a descoberta da
existência dessa literatura nos Estados Unidos se dá por pesquisadores das
literaturas da diáspora negra, geralmente ligados aos departamentos de
estudos africanos e afro-americanos. Desta maneira, o lugar ocupado por

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Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O Olho Mais Azul, de Toni
Morrison, e Ponciá Vivencio, de Conceição Evaristo | 129
Conceição Evaristo e Ponciá Vicêncio nos contextos de origem e recepção
da tradução se mostram consideravelmente diferentes.

4. Considerações finais

A seleção de The Bluest Eye para ser traduzido no contexto


brasileiro, mesmo que muitos anos após sua publicação nos Estados
Unidos, revela a abertura do polissistema literário nacional para
produções de uma escritora mulher, negra e que faz da linguagem um
instrumento para marcar a diferença do discurso afro-americano. Todavia,
como pano de fundo desse cenário, existem questões econômicas,
mercadológicas, culturais, sociais e históricas determinantes para o lugar
sistêmico ocupado por Morrison e O olho mais azul, bem como para
construção das imagens da autora e de seu romance no polo receptor em
análise.
Dessa forma, há uma ênfase no fato de a escritora ter sido
agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura, bem como a utilização de
uma linguagem neutra, com momentos de informalidade, que não causa
qualquer impacto ao leitor brasileiro, mesmo que esse impacto seja
provocado por meio do emprego de formas que desafiem o português
padrão. Tal configuração aponta para um determinado conservadorismo
por parte da tradução, delineada segundo as normas previamente
estabelecidas pelo polo receptor.
As imagens de Morrison e de sua obra no contexto nacional via
tradução parecem se distanciar daquelas relativas ao polissistema literário
de origem: Morrison não é apresentada como uma das maiores
representantes da literatura afro-americana contemporânea, bem como O
olho mais azul não evidencia recursos linguísticos que, de alguma forma,
façam alusão a uma característica relevante na cultura afro-americana. É
importante ressaltar, novamente, que isso não significa uma deformidade.
Trata-se, apenas, da representação de uma autora e de sua produção que
esteja de acordo com valores dominantes no contexto de recepção em
dado momento histórico e que atenda a determinados interesses
domésticos.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


130 | Luciana de Mesquita Silva e Marcela Iochem Valente
No que diz respeito a Evaristo, mais uma vez confirmando a
afirmação de Gideon Toury de que a tradução não pode ocupar o mesmo
lugar sistêmico de seu original (TOURY, 1995, p. 26), fica claro que a
escritora também ocupa diferentes lugares sistêmicos se compararmos as
imagens construídas nos polissistemas brasileiro e estadunidense. Através
dos metatextos selecionados e das articulações propostas no presente
artigo, percebemos que a imagem da autora aqui no Brasil vem, pouco a
pouco, sendo modificada através do tempo por influência de diversos
fatores, entre eles, a repercussão da sua imagem no polissistema de
literatura estadunidense, embora essa repercussão ainda seja bastante
pequena, e o crescimento do movimento negro no Brasil.
Em linhas gerais, Conceição Evaristo tem sido apresentada no
Brasil como uma escritora que defende a valorização da cultura
africana/afro-descendente através de sua escrevivência de mulher negra,
buscando dar voz às mulheres afro-descendentes há muito ignoradas por
nossa sociedade. Já no contexto estadunidense, sua obra é vista como uma
espécie de luta em prol das questões sociais, raciais e de gênero, parte de
um contundente movimento negro, assim como acontece com as obras de
escritoras afro-americanas. Isso porque, como afirma a própria escritora
Conceição Evaristo em entrevista a Valente em maio de 2013, “[o] estudo
da autoria negra americana acaba por suscitar, nas pesquisadoras, a
pergunta se no Brasil não haveria algo semelhante”, e isso as leva a buscar
características comuns entre a literatura produzida em ambos os países em
questão.
Portanto, independentemente das questões de patronagem que
orientam os projetos tradutórios relativos às obras de Morrison e Evaristo,
o acesso de um público leitor mais amplo à literatura produzida por elas
revela uma busca pela visibilidade de grupos historicamente relegados a
uma posição marginal, como os afro-americanos e afro-brasileiros. Com
isso, abre-se a possibilidade para que suas histórias, por muito tempo
encobertas, venham a ser conhecidas internacionalmente, questionando
valores hegemônicos e desestabilizando os polissistemas literários dos
quais fazem parte.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O Olho Mais Azul, de Toni
Morrison, e Ponciá Vivencio, de Conceição Evaristo | 131
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Narrativas no espelho: algumas considerações sobre a recepção de O Olho Mais Azul, de Toni
Morrison, e Ponciá Vivencio, de Conceição Evaristo | 139

QUESTÕES DE TERMINOLOGIA NA
TRADUÇÃO DE LITERATURA:
OS CASOS DE EDITH WHARTON E WILLIAM
BLAKE
Juliana Steil

RESUMO: Este artigo explora pontos de contato entre a tradução e a


Terminologia, desenvolvendo o argumento de que a tradução literária
também envolve preocupações e necessidades terminológicas, apesar de a
teoria terminológica em geral considerar que o conhecimento sobre o
léxico especializado é necessário apenas para a tradução de textos
científicos, tecnológicos e profissionais. O problema é abordado a partir
do exame da tradução de textos literários de dois autores de tradições
diferentes, especificamente a narrativa longa da escritora estadunidense
Edith Wharton (1862-1937) e o texto poético do gravurista, pintor e
poeta inglês William Blake (1757-1827).

Palavras-chave: Terminologia e tradução literária, Edith Wharton,


William Blake

ABSTRACT: This article examines the points of contact between


translation and terminology, and argues that literary translation also
includes issues of terminology, despite the fact that terminological theory
tends to consider that a knowledge of specialised lexicon is only necessary
when translating scientific, technological and professional texts. The
subject is approached by looking at the translations of two literary texts by
authors from different backgrounds and traditions; the long narratives by
the North-American writer Edith Wharton (1862-1937), and the poetic
texts of the English printer, painter and poet William Blake (1757-1827).

Keywords: Terminology and literary translation, Edith Wharton, William


Blake

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


140 | Juliana Steil

A teorização realizada no âmbito da disciplina de Terminologia, de


modo geral, costuma apontar a presença de terminologias em um perfil
textual bastante específico. Os textos dos quais se ocupa a Terminologia
são essencialmente os textos produzidos nos contextos científicos,
tecnológicos e profissionais: textos produzidos além destes contextos, em
princípio, não apresentariam léxico especializado. Assim, o ponto de
contato da Terminologia com a tradução estaria relacionado
exclusivamente à tradução de textos das áreas científicas, tecnológicas e
profissionais.
Sob a perspectiva da tradução de textos literários, o presente artigo
argumentará em favor da ideia de que a tradução de literatura também
envolve preocupações e necessidades terminológicas. Para isso,
apresentará o ponto de vista do discurso tradicional da teoria
terminológica; em seguida, examinará dois casos de tradução literária,
especificamente da narrativa longa da escritora estadunidense Edith
Wharton (1862-1937) e do texto poético do gravurista, pintor e poeta
inglês William Blake (1757-1827).
Para situar a posição da Terminologia, vale lembrar que, em seu
desenvolvimento histórico, conforme sumarizado por Lidia A. Barros
(2004, p. 32), sua afirmação

como disciplina científica que estuda os termos de


uma área de especialidade se dá (...) pela
contribuição de especialistas em outras matérias,
como Eugen Wüster (1898-1977), engenheiro
austríaco que, nos anos de 1930, estabeleceu as
bases da Escola Terminológica de Viena e mais
tarde elaborou sua Teoria Geral da Terminologia
(TGT).

Desde o início da disciplina, com a Teoria Geral da Terminologia


de Wünster, entre outros esforços teóricos, o foco da Terminologia é,
como não poderia deixar de ser, o discurso especializado. Sua base inicial,
além disso, está voltada para o favorecimento da comunicação científica
no plano internacional (KRIEGER e FINATTO, 2004, p. 30). Pode-se
dizer que o viés aplicado da Terminologia, acompanhando seu
desenvolvimento teórico, mantém ao longo de sua história a proposta de
contribuir para a solução de problemas de informação e comunicação

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Questões de terminologia na tradução de literatura : os casos de Edith Wharton e William
Blake | 141
técnica, em princípio concentrando-se exclusivamente às modalidades
textuais relacionadas às diferentes áreas do saber técnico e científico.
Para a Teoria Comunicativa da Terminologia, principal vertente
da Terminologia contemporânea, um dos fatores que caracterizam a
situação especializada é o fato de a produção e a transmissão do
conhecimento ocorrer em contextos profissionais nos quais tal
conhecimento é produzido por especialistas e dirigido a um público
também especialista ou semi-especialista (CABRÉ e ESTOPÁ, 2005, p.
02). Segundo Cabré e Estopá (2005), é uma exceção a esta regra o caso da
divulgação científica e técnica (em veículos como o jornalismo, por
exemplo), que também fazem parte da comunicação especializada porque
a estrutura de transmissão de especialista para especialista se preserva,
embora um mediador e um leigo possam estar desempenhando estes
papeis.
A relação entre Terminologia e tradução costuma ser estabelecida
justamente quando se discute a comunicação interlingual do
conhecimento especializado. De acordo com esta ideia, Cabré afirma que

se a organização do pensamento e a
conceitualização representam a dimensão
cognitiva da terminologia, a transferência do
conhecimento constitui sua dimensão
comunicativa. A terminologia é a base da
comunicação entre especialistas, e o tradutor
especializado, no papel de mediador, transforma-
se de fato em uma espécie de especialista, e deve
atuar como tal na seleção dos termos60 (CABRÉ,
2004, p. 11).

O tradutor será, portanto, um mediador falando em nome do especialista,


e essa mediação ocorrerá especificamente na tradução do texto técnico ou
científico. Quanto a isso, o posicionamento teórico de Cabré é bastante
claro:

60
“Si la ordenación del pensamiento y la conceptualización representan la dimensión
cognitiva de la terminología, la transferencia del conocimiento constituye su dimensión
comunicativa. La terminología es la base de la comunicación entre los especialistas, y el
traductor especializado, actuando de mediador, se convierte de hecho en una especie de
especialista, y debe actuar como tal en la selección de los términos”. A tradução dos excertos
de CABRÉ (2004) é de minha autoria.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


142 | Juliana Steil
Para estabelecê-la [a relação entre tradução e
terminologia] devemos nos perguntar, em
primeiro lugar, se a terminologia é necessária em
todo tipo de tradução. A resposta parece óbvia. A
terminologia, com exceção de casos muito
particulares, só é necessária para a tradução
especializada61 (CABRÉ, 2004, p. 11).

Contudo, há subsídios que indicam que os casos particulares em questão


sejam na verdade bem mais numerosos do que a própria Terminologia
supõe. A análise da tradução de duas obras literárias de naturezas
diferentes pode ajudar a demonstrar isso.
Um breve exame da tradução do romance The Age of Innocence de
Edith Wharton é capaz de revelar a presença de diferentes eixos de
unidades lexicais com um “conteúdo específico dentro de um domínio
específico” (BARROS, 2004, p. 40), em suma, de termos e fraseologias de
determinadas áreas especializadas.
The Age of Innocence foi publicado em 1920 e tem como cenário a
cidade de Nova York por volta de 1870. A história acontece em torno de
um triângulo amoroso em que Newland Archer, jovem de uma família
tradicional e respeitada, tem de decidir entre manter as aparências se
casando com a bela e obediente May Welland ou fugir com a prima de
sua noiva, Ellen Olenska, seu verdadeiro amor, cujas atitudes em suas
relações sociais são rejeitadas na alta sociedade nova-iorquina.
Um elemento muito importante nessa narrativa é a descrição dos
ambientes sociais, como teatros e clubes, das carruagens, das casas e das
roupas, pois ela ajuda a compor as personagens, apresentando sua posição
na sociedade e produzindo um efeito marcante de verossimilhança, que se
refere aos hábitos da elite da costa leste dos Estados Unidos de 1870.
Os termos de moda destacam-se nas obras desta romancista de
costumes, conforme amplamente discutido em Edith Wharton and the
Making of Fashion (Joslin, 2009). São frequentes as passagens em que o
narrador oferece detalhes sobre os trajes das mulheres. O episódio do
casamento de Newland Archer com May Welland, por exemplo, os trajes
são descritos de forma a informar sobre os padrões existentes em relação à
moda para esse tipo de ocasião, o senso de elegância das damas e sua
adequação ou não às regras do grupo:

61
“Para establecerla debemos preguntarnos en primer lugar si la terminología es necesaria en
todo tipo de traducción. La respuesta parece obvia. La terminología, con excepción de casos
muy particulares, solo es necesaria para la traducción especializada”.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Questões de terminologia na tradução de literatura : os casos de Edith Wharton e William
Blake | 143

Archer’s eyes lingered a moment on the left-hand


pew, where his mother, who had entered the
church on Mr. Henry van der Luyden’s arm, sat
weeping softly under her Chantilly veil, her hands
in her grandmother’s ermine muff (WHARTON,
2008)

Os olhos de Archer demoraram-se um instante no


banco da esquerda, onde sua mãe, que entrara na
igreja acompanhada do Sr. Henry van der Luyden,
chorava discretamente sob o seu véu de renda
Chantilly, com as mãos no pesado regalo de arminho
que fora de sua avó (WHARTON, 2011, p. 179)

O “véu de renda Chantilly” e o “regalo de arminho” da Sra.


Archer são termos específicos relevantes para informar o leitor sobre o
estilo e as condições financeiras da mãe do noivo, além de seu apego à
tradição.
No encontro de Archer e Ellen Ollenska anos mais tarde, a
condessa usa um luxuoso casaco de pele de foca:

As she stood there, in her long sealskin coat, her


hands thrust in a small round muff, her veil drawn
down like a transparent mask to the tip of her
nose (…) (WHARTON, 2008)

Enquanto ficava ali, com seu longo casaco de pele


de foca e as mãos em um pequeno regalo
arredondado, o véu parecendo uma máscara
transparente até a ponta do nariz, (...)
(WHARTON, 2011, p. 300)

Naturalmente, as descrições dos hábitos de vestir não se restringem às


mulheres. No jantar oferecido à condessa, o narrador faz questão de
mostrar a decepção com que é recebido o traje do convidado mais
esperado da noite, o Duque de St. Austrey, alheio aos costumes da elite
americana:

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


144 | Juliana Steil

Being a well-bred man he had not (like another


recent ducal visitor) come to the dinner in a
shooting-jacket; but his evening clothes were so
shabby and baggy, and he wore them with such an
air (…) (WHARTON, 2008).

Educado, não veio (a exemplo de outro recente


visitante ducal) para o jantar com um casaco de
caça; seu traje de noite, contudo, era velho e largo,
e ele o usava com um ar tal (...) (WHARTON,
2011, p. 64)

Está igualmente presente ao longo do livro a terminologia da área


de arquitetura, área à qual a autora dedicou um grande interesse pessoal,
ao lado do design de interiores e do paisagismo, e na qual pode ser
considerada uma legítima especialista62. Em The Age of Innocence, os
termos de arquitetura cumprem uma função parecida à da terminologia
de moda. Na cena romântica em que Archer observa Ellen Olenska ao
longe, apresenta-se a descrição do amplo terreno da casa da matriarca da
família de Ellen e May:

From the willow walk projected a slight wooden


pier ending in a sort of pagoda-like summer-house;
and in the pagoda a lady stood, leaning against the
rail, her back to the shore (WHARTON, 2008).

Do caminho de salgueiros projetava-se um


delicado trapiche de madeira que terminava em
uma espécie de gazebo em forma de pagode; e no
pagode estava uma dama, de pé e recostada contra
o parapeito, de costas para a praia (WHARTON,
2011, p. 212)

Já a residência do jovem casal Archer é descrita como uma casa suntuosa


ao mesmo tempo tradicional e sintonizada às novidades arquitetônicas:

62
Entre seus livros de não ficção estão The Decoration of Houses (1897) e Italian villas and their
gardens (1904).

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Questões de terminologia na tradução de literatura : os casos de Edith Wharton e William
Blake | 145
(…) and the house was built in a ghastly greenish-
yellow stone that the younger architects were
beginning to employ as a protest against the
brownstone of which the uniform hue coated New
York like a cold chocolate sauce; but the
plumbing was perfect. (…) The young man felt
that his fate was sealed: for the rest of his life he
would go up every evening between the cast-iron
railings of that greenish-yellow doorstep, and pass
through a Pompeian vestibule into a hall with a
wainscoting of varnished yellow wood. (…) He
knew the drawing-room above had a bay window,
but he could not fancy how May would deal with
it (WHARTON, 2008).

(...) a casa estava construída em uma horrível


pedra amarelo-esverdeada que os jovens arquitetos
estavam começando a usar como reação contra o
arenito pardo da qual o tom uniforme cobria Nova
York como uma calda fria de chocolate; mas a
parte hidráulica era ótima. (...) O jovem sentia
que seu destino estava determinado: pelo resto da
vida subiria toda noite entre os corrimãos de ferro
fundido daquela escada amarelo-esverdeada, e
atravessaria um vestíbulo pompeiano para um
corredor com lambril de madeira amarela
envernizada. (...) Sabia que a sala de cima tinha
uma janela de sacada, mas não conseguia saber
como May a organizaria (WHARTON, 2011, p.
72)

Do tratamento ficcional da atmosfera da alta sociedade nova-


iorquina do fim do século XIX, passemos à análise de outro tipo de texto
literário, ainda no âmbito da literatura em língua inglesa: a escrita
profética de William Blake. De fato, em dois estilos tão diferentes, existe
algo em comum no que se refere à Terminologia, pois Blake também faz
uso de léxico especializado.
Em Milton, para mencionar apenas um de seus livros proféticos,
Blake utiliza termos de diferentes atividades artesanais ligadas à criação de
algo novo: a tecelagem que dá forma a tecidos para diversas utilidades; a
metalurgia, que molda a matéria prima em uma variedade de objetos e
instrumentos; a agricultura, que dá vida a elementos imprescindíveis para

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


146 | Juliana Steil
a manutenção do ser humano. Uma diferença notável no tratamento
terminológico operado por Blake é que, enquanto Edith Wharton utiliza
termos no sentido histórico, o poeta inglês acrescenta uma dimensão
simbólica.
Assim, a terminologia metalúrgica aparece relacionada à
personagem Los, representado na figura do ferreiro:

Loud sounds the Hammer of Los, & loud his


Bellows is heard
(…) loud groans Thames beneath the iron Forge
(…), to forge the instruments
Of Harvest: the Plow & Harrow to pass over the
Nations
(BLAKE, 1988, p. 99)

Alto soa o Martelo de Los, & alto se ouve o seu


Fole
(...) alto geme o Tâmisa sob a Forja férrea
(...) a moldar os implementos
Da Colheita: o Arado & a Grade de lavrar as
Nações
(BLAKE, 2011, p. 111)

Los é a “Poesia, a expressão da Imaginação Criativa neste mundo”;


ele é associado ao Sol espiritual, sendo de fato o criador diário do sol
material e de tudo o que existe na terra vegetal (DAMON, 1984, p. 246-
247)63. Este sol aparece simbolizado nas imagens de fogo durante a
atividade do ferreiro. O Martelo, que representa a Justiça, a Misericórdia
e o Perdão, conforme os versos na lâmina 88 do livro Jerusalem, e os
demais instrumentos – a bigorna, o fole, a fornalha etc – também aludem
aos utensílios de trabalho de Blake em sua profissão de gravurista em
metal: desse modo, ele próprio, como artista, trabalha em favor da
Imaginação e também desempenha o papel de Los como criador de
mundos. A estrutura desta dimensão simbólica, portanto, depende
diretamente do léxico temático. Os termos de metalurgia, por exemplo,
além de estarem interligados no livro Milton, integram uma simbologia
recorrente ao longo da obra de Blake, de modo que o tradutor fica

63
Alguns críticos têm considerado a abordagem das relações simbólicas da obra de Blake
realizada por Damon excessivamente sistemática em relação à organização poética dos textos
aos quais se refere; aqui ela é suficiente, no entanto, para ressaltar os traços gerais da
simbologia criada pelo artista londrino.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Questões de terminologia na tradução de literatura : os casos de Edith Wharton e William
Blake | 147
impossibilitado de considerá-los mais livremente, uma vez que a ruptura
do eixo terminológico faz as relações metafóricas perderem o sentido.

Conforme visto no excerto anterior, as terminologias de metalurgia e de


agricultura estão relacionadas, pois o ferreiro molda os implementos a
serem utilizados no cultivo da terra. Desse modo, os filhos de Los têm a
responsabilidade de preparar a terra para uma Nova Era: Rintrah (ira) é
responsável pelo Arado de ferro e Palamabron (piedade), pela Grade de
ouro, indicando simbolicamente que a última colheita, isto é, o despertar
da humanidade para a Unidade Espiritual, não acontecerá sem conflito,
assim como a tarefa de semear pressupõe também ferir o solo.
Talvez seja precipitado afirmar que toda literatura trabalha com
léxico especializado. Esses dois exemplos, no entanto – Wharton e Blake
–, cujas obras pertencem a tradições tão diferentes entre si, ilustram o
emprego frequente de terminologias em textos literários. Barros (2006, p.
26) reconhece que

De fato, as investigações científicas sobre o léxico


de obras literárias têm observado a presença
marcante, nessas obras, de termos pertencentes a
campos temáticos e especializados. Assim, a
terminologia dá passos no sentido de estabelecer
relações de cooperação com a literatura, o que
não se concebia até recentemente e ainda não se
concebe para a maior parte dos terminólogos,
visto que se considera que o texto literário se
oponha ao texto técnico e científico em suas
características fundamentais.

A tradução é uma tarefa que evidencia esta relação importante entre o


léxico especializado e a literatura. Conforme indicam os excertos
selecionados, a tradução dos termos e fraseologias de moda e de
arquitetura, no caso de Wharton, bem como os de metalurgia e de
agricultura, no caso de Blake, tem um impacto bastante relevante em seus
respectivos contextos: a Sra. Archer usava, no casamento de seu filho, um
Chantilly veil, isto é, um “véu de renda Chantilly”, e não qualquer véu,
além de um ermine muff, ou seja, um “regalo de arminho”, e não um par
de luvas, ou um regalo de outro tipo de pele ou material – não são
detalhes de léxico geral, mas de características específicas que contam a
história da personagem; o som que se ouve por toda Londres na passagem

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


148 | Juliana Steil

de Milton é o movimento do Fole especificamente, parte dos instrumentos


na oficina do ferreiro – que serão mencionados em outros pontos do
poema e da obra mais ampla da qual faz parte –, onde atua a simbólica
personagem Los.
É possível que a “invisibilidade terminológica” do tradutor
literário – expressão utilizada por Braga (2009) – não represente um
prejuízo real para o desenvolvimento da Terminologia; a tradução
literária, ao contrário, tem muito a ganhar no contato com a
Terminologia, especialmente em seu viés aplicado. Não por acaso, a
tradução literária tem buscado essa aproximação, o que pode ser visto em
iniciativas recentes como o trabalho de Braga (2009), que estuda o
tratamento literário da terminologia náutica em Joseph Conrad a partir
de sua tradução. Outra importante referência recente que aborda o tema
da Terminologia na tradução literária é a pesquisa de Zavaglia et al
(2010).
A contribuição terminológica para a tradução literária parece
apontar em duas direções principais: a formação do tradutor literário,
para o qual é cada vez mais incontornável o conhecimento em pesquisa
terminológica bilíngue ou multilíngue, bem como o domínio de
instrumentos terminológicos úteis na prática de seu ofício. Nesse sentido,
a ampliação do diálogo entre Terminologia e tradução literária é tão bem-
vinda quanto necessária.

Referências Bibliográficas

BARROS, Lídia Almeida. Aspectos epistemológicos e perspectivas


científicas da terminologia. Ciência e Cultura, 2006, vol. 58, nº 2, p. 22-26.

_____. Curso básico de Terminologia. São Paulo: EDUSP, 2004.

BLAKE, William. Milton. In: ERDMAN, David V. The Complete Poetry &
Prose of William Blake. Newly revised edition. New York, London,
Toronto, Sydney and Auckland: Anchor Books, 1988.

_____. Milton. In: STEIL, Juliana. Tradução comentada de Milton de


William Blake. 2011. Tese de doutorado. Florianópolis: PGET/UFSC.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Questões de terminologia na tradução de literatura : os casos de Edith Wharton e William
Blake | 149
BRAGA, Guilherme da Silva. O tratamento literário da terminologia náutica
em uma nova tradução de The Shadowy Line, de Joseph Conrad. 2009.
Trabalho de Conclusão de Curso. Porto Alegre: UFRGS.

CABRÉ, Maria Teresa. La termininología en la traducción especializada.


In: GONZALO GARCÍA, Consuelo; GARCÍA Yebra, Valentín. (Eds.)
Manual de documentación y terminología para la traducción especializada.
Madrid: Arco Libros, 2004.

CABRÉ, Maria Teresa; ESTOPÁ, Rosa. Unidades de conocimiento


especializado: caracterización y tipología. In: CABRÉ, Maria Teresa;
MARTORELL, Carmen Bach. (Eds.) Coneixement, llenguatge i discurs
especialitzat. Barcelona: Universitat Pompeu Fabra, Institut Universitari de
Lingüística Aplicada, 2005.

DAMON, Samuel Foster. A Blake Dictionary – The Ideas and Symbols of


William Blake. Revised Edition with a new foreword and annotated
bibliography by Morris Eaves. Hanover and London: University Press of
New England, 1988.

KRIEGER, Maria da Graça. Do ensino da terminologia para


tradutores: diretrizes básicas. Cadernos de tradução, v.1 (17), 2006, p. 189-
206.

KRIEGER, Maria da Graça; FINATTO, Maria José. Introdução à


Terminologia – teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2004.

JOSLIN, Katherine. Edith Wharton and the Making of Fashion. Durham:


University of New Hampshire Press, 2009.

WHARTON, Edith. A época da inocência. Tradução de Jonas Tenfen e


Juliana Steil. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011.

_____. The Age of Innocence. Disponível em


<http://www.gutenberg.org/>. Ano da publicação eletrônica: 2008.
Acesso em: 13 abr 2014.

ZAVAGLIA, Adriana; POPPI, Carolina; MADRUGA, Carolina


Fernandez; CRUZ, Aina Cunha. Terminologia e Tradução: o caso dos

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


150 | Juliana Steil
textos literários. In: ALVES, Ieda Maria; JESUS, Ana Maria Ribeiro de;
OLIVEIRA, Luciana Pissolato de; PEREIRA, Eliane Simões. (Orgs.) Os
estudos lexicais em diferentes perspectivas. Volume II. São Paulo: USP, 2010,
pp. 17-34.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Entrevista com Renato Rezende concedida a Vanessa Lopes Lourenço Hanes | 151

ENTREVISTA COM RENATO REZENDE


CONCEDIDA A VANESSA LOPES LOURENÇO
HANES
Renato Rezende é um autor, tradutor e artista visual brasileiro,
diplomado como Bachelor of Arts na área de Hispanic Studies pela
Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos. Enquanto autor
escreveu livros em prosa e em verso, e suas obras poéticas têm recebido
considerável destaque no cenário literário do país. O livro Ímpar,
publicado pela Editora Lamparina em 2005, foi o vencedor do Prêmio
Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional como melhor livro de
poesia daquele ano. Rezende tem também apresentado trabalhos de artes
visuais em diferentes eventos no Brasil e no exterior. Porém, o foco maior
desta entrevista é a sua atuação como tradutor. Sua experiência nesta área
é bastante vasta, com dezenas de livros e artigos traduzidos nas mais
diversas áreas, incluindo ficção, filosofia, história e arte, bem como poesia
inglesa e espanhola. Rezende foi ainda o responsável pela re-tradução de
um dos maiores clássicos escritos pela autora de romances policiais
Agatha Christie, The Murder of Roger Ackroyd, A pesquisadora a quem esta
entrevista foi concedida a conduziu como parte de sua pesquisa de
doutorado, na qual tem como foco a tradução de obras de Agatha
Christie no Brasil. A entrevista, portanto, divide-se em dois momentos: na
primeira parte Rezende discorre sobre questões relativas ao seu fazer
profissional, principalmente como tradutor; na segunda, sobre sua
experiência ao traduzir Agatha Christie.

Vanessa Lopes Lourenço Hanes – Universidade Federal de Santa


Catarina/University of Antwerp

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


152 | Vanessa Lopes Lourenço Hanes

Sobre a profissão

Caderno de Letras (UFPEL): Seu nome aparece na internet vinculado a vários


livros de sua autoria. Quais tipos de materiais você escreve ou já escreveu?

Renato Rezende (RR): Tenho já uma obra razoável como escritor,


principalmente nas áreas de poesia, romance e crítica literária. São
diversos livros de poesia, alguns deles recipientes de prêmios importantes,
dois romances (o terceiro será publicado ainda este ano), quatro livros de
encomenda sobre a cidade do Rio de Janeiro, livros sobre arte e teoria da
arte; além de resenhas, ensaios e críticas publicadas aqui e ali. Tenho
também um trabalho como artista visual.

Caderno de Letras (UFPEL): Com relação à sua competência linguística, como


e quando aprendeu inglês? É proficiente em outros idiomas além de inglês e
português? Tem o hábito de ler em outras línguas? Que tipo de textos?

RR: Aprendi o inglês durante minha estadia nos EUA, que durou doze
anos. Formei-me numa universidade americana, e iniciei minha pós-
graduação em Harvard. Tenho um livro de poemas escritos em inglês, do
qual gosto muito. Além do inglês, sou razoavelmente proficiente no
francês e no espanhol e sim, tenho o hábito de ler em outras línguas.
Hoje em dia, principalmente teoria da arte e filosofia.

Caderno de Letras (UFPEL): Quando/onde a tradução se tornou parte de sua


vida? Você planejou se tornar tradutor? Foi impulsionado por algum evento
específico?

RR: Tornei-me tradutor exclusivamente devido às circunstâncias da vida,


pois precisava trabalhar ao voltar para o Brasil depois de anos no exterior,
e o trabalho freelance como tradutor logo surgiu como uma possibilidade.
Devo muito, nesse momento, ao auxílio do amigo Paulo Henriques
Britto, que generosamente foi me indicando para seus clientes. Não foi
planejado, foi pura necessidade de sobrevivência.

Caderno de Letras (UFPEL): Você tem tradutores que considera como


exemplos/modelos? O que aprecia no trabalho deles? Que tipo de textos traduzidos
tem o hábito de ler?

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Entrevista com Renato Rezende concedida a Vanessa Lopes Lourenço Hanes | 153
RR: O Paulo Henriques Britto é sem dúvida um modelo. Cheguei a fazer
um curso com ele, sobre prosódia inglesa, voltado para a tradução de
poesia, na PUC-Rio. Aprendi muito com o Paulo. Além dele, os irmãos
Campos são modelos, mas só até certo ponto. Outro excelente tradutor
foi o Manuel Bandeira. Li muitos romances traduzidos, e todos os textos
de filosofia e psicanálise alemães eu leio em tradução.

Caderno de Letras (UFPEL): Você participa de alguma associação/grupo de


tradutores? Caso a resposta seja positiva, o que costumam discutir nos encontros?

RR: Não, sou um tradutor solitário.

Caderno de Letras (UFPEL): Você acredita que o seu trabalho como escritor
tem influência no seu trabalho como tradutor? Como?

RR: Sim, como escritor eu me sinto de igual para igual com um outro
escritor e, ao traduzi-lo, sinto-me mais à vontade para “traí-lo”, se for
preciso, para melhor transferir suas palavras para a língua meta, o
português. Claro que tenho um compromisso ético com o autor, mas
também tenho com o leitor, e penso que o texto deve soar como
português, e não como algo traduzido. Percebo em tradutores iniciantes
muito receio de distanciar-se de uma tradução literal, que muitas vezes
acaba sendo a mais pobre.

Caderno de Letras (UFPEL): Em sua opinião o fato de haver vivido e estudado


fora do Brasil afeta o resultado final das suas traduções? Em que sentido?

RR: Sim, pois ao viver cotidianamente uma língua estrangeira você


aprende as nuances e conotações de cada palavra, as ironias e sutilezas
embutidas em certos termos. Além do mais, um bom tradutor, para além
de um bom vocabulário e conhecimento gramatical (dicionários podem
suprir essas faltas) precisa ter cultura e inteligência. Eu posso perdoar
num tradutor o emprego de uma palavra menos feliz, menos precisa, mas
incompreensão do texto, ou seja, erro de leitura, é imperdoável, e isso
frequentemente acontece por mera falta de conhecimento geral.

Sobre a tradução de Agatha Christie

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


154 | Vanessa Lopes Lourenço Hanes

Caderno de Letras (UFPEL): Qual sua opinião sobre a relevância de traduzir


Agatha Christie para o português brasileiro? Há algum outro texto desta autora
que gostaria de ter a oportunidade de traduzir? Por quê?

RR: Tenho enorme simpatia por Agatha Christie, porque quando garoto
eu devorei alguns dos seus livros. É uma autora instigante, uma forte
referência dentro do gênero policial, e essas são razões suficientes para
continuarmos traduzindo-a. Agatha Christie incita o prazer da leitura em
jovens, e isso é importante. Teria prazer em traduzir qualquer outro livro
dela.

Caderno de Letras (UFPEL): Você já traduziu outros livros do gênero romance


policial? Adotou alguma abordagem específica para este tipo de tradução?

RR: Sim, traduzi alguns outros. Minha preocupação específica para esse
tipo de romance é não produzir nenhuma palavra, nenhuma frase ou
construção verbal que possa atrapalhar o ritmo da leitura e fazer com que
o leitor se distancie da trama. Além disso, há de se tomar cuidado para
sem querer não revelar algum detalhe que não deve ser revelado, ou
deixar de revelar algum detalhe que precisa ser revelado de forma sutil.
Isso com o inglês às vezes fica complicado, devido ao nosso uso confuso
dos pronomes possessivos, e ao it, neutro.

Caderno de Letras (UFPEL): Qual sua opinião sobre o inglês usado por Agatha
Christie em seus livros?

RR: É um inglês muito gostoso de ler.

Caderno de Letras (UFPEL): A tradução de O Assassinato de Roger


Ackroyd foi feita para uma grande e tradicional editora. Isto interferiu de
alguma forma na sua tradução?

RR: Não. Nem me lembro qual foi a editora.

Caderno de Letras (UFPEL): Como se deu sua interação com a editora


responsável pela publicação de sua tradução de Agatha Christie? Como foi seu
contato inicial – eles procuraram você ou você os procurou?

RR: Eles me procuraram.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Entrevista com Renato Rezende concedida a Vanessa Lopes Lourenço Hanes | 155

Caderno de Letras (UFPEL): Os responsáveis técnicos da editora estabeleceram


critérios a serem seguidos na sua tradução de Agatha Christie (com relação ao uso
de vocabulário, pontuação, nível de formalidade, etc)? Quais tipos de critérios?
Você se ateve a todos eles?

RR: Não me lembro, mas acredito que não. Geralmente, tais diretrizes,
quando existem, dizem respeito a padronizações ortográficas, ou
espaçamento, fonte, etc. Creio que jamais recebi orientações em relação a
estilo ou vocabulário.

Caderno de Letras (UFPEL): Houve mudanças pós-tradução (feitas por


revisores) com as quais você não concordou? Elas foram publicadas sem o seu aval?

RR: Geralmente, eu concordo com os revisores. Às vezes eu implico com


algumas mudanças que eu considero desnecessárias. Já aconteceu de
mudarem coisas sem o meu consentimento, e eu me aborrecer. Mas esse
não foi o caso do livro da Agatha Christie. Lembro que o revisor enviou
uma serie de pequenas sugestões, algumas relativas ao uso de travessões, e
eu concordei com tudo – era uma questão de estilo adotado pela editora.

Caderno de Letras (UFPEL): Quais as principais dificuldades que enfrentou


para traduzir Agatha Christie? Em sua opinião, qual o grau de dificuldade desta
tradução? Você acredita que o romance O Assassinato de Roger Ackroyd
apresenta dificuldades específicas quando comparado com outras obras literárias
que traduziu?

RR: Não considero Agatha Christie especialmente difícil de traduzir, pelo


contrário, a tradução flui em bom ritmo, a gente para pouco para
compreender ou pesquisar, e acaba sendo um processo bastante
prazeroso. Os cuidados são aqueles que eu citei acima.

Caderno de Letras (UFPEL): Você recebeu feedback de amigos ou leitores em


geral sobre sua tradução de Agatha Christie? E sobre outras traduções?

RR: Raramente eu recebo feedback pela tradução. Em geral, as pessoas não


prestam atenção em quem traduziu, e é claro que eu considero isso uma
pena. Muitas vezes um conhecido cita um livro que leu e gostou, e eu
digo, fui eu quem traduziu, e a pessoa não havia notado. Em citações

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


156 | Vanessa Lopes Lourenço Hanes
bibliográficas, frequentemente o nome do tradutor é omitido, e eu
considero isso um erro grave. Não me lembro de ter recebido feedback
desta tradução em específico. Mas nenhum comentário é geralmente um
bom sinal, significa que o tradutor não se fez notar. Nota-se o tradutor
quando ele erra. E às vezes ele é condenado injustamente. Já recebi
elogios em resenhas de jornal, mas recentemente recebi uma severa
censura. Houve de fato, um erro crasso (não adianta dizer aqui, ou ter
dito antes, que o erro foi dos revisores), mas um erro de vocabulário, que
é o mais raso em uma tradução. Todo um trabalho pode ser condenado
por conta de alguns erros de nomenclatura, sem se atentar ao ritmo,
construção gramatical, etc. Em geral, não há crítica de tradução e, quando
há, é mal informada. Todos pensam que o ofício do tradutor é uma coisa
fácil, basta saber bem uma outra língua...

Entrevista concedida a Vanessa Lopes Lourenço Hanes

ANEXO

LIVROS

Aura. Rio de Janeiro, 2AB, 1997.

Asa. Rio de Janeiro: Velocípede, 1999.

Passeio. Rio de Janeiro: Record, 2001,

Ímpar. Rio de Janeiro: Lamparina, 2005.

Noiva. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.

Memórias e Curiosidades do Bairro de Laranjeiras. Rio de Janeiro: Eco Rio,


1999.

Avenida Rio Branco – um Projeto de Futuro: 100 Anos. Rio de Janeiro: Usina
das Artes, 2002.

Praça Tiradentes: do Império às Origens da Cultura Popular. Rio de


Janeiro:Usina das Artes, 2003.

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Entrevista com Renato Rezende concedida a Vanessa Lopes Lourenço Hanes | 157

Guilherme Zavros por Renato Rezende. Rio de Janeiro:EDUERJ, 2010.

PRINCIPAIS TRADUÇÕES (PROSA)


As Duas Culturas e uma segunda leitura (C.P. Snow). São Paulo: EDUSP,
1995.
Mediatamente! – Televisão, Cultura e Educação (Jesús Martín-Barbero,
Francisco Martinez Sánchez). Brasília: Ministério da Educação, 1999.
TAZ - Zona Autônoma Temporária (Hakim Bey). São Paulo: Conrad, 2001.
O livro de ouro da Mitologia Erótica (Shahruku Husai). Rio de Janeiro:
Ediouro, 2002.
13 dos melhores contos de vampiros da literatura universal. (Mary Elizabeth
Braddon). Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. Org. por Flávio Moreira da
Costa.
Duveen—o marchand das vaidades (S. N. Behrman). São Paulo: BEI, 2002.
Caos – Terrorismo Poético & Outros Crimes (Hakim Bey). São Paulo:
Conrad, 2003.
Declarações de Paz em Tempos de Guerra (Kofi Annan, MSF, René Cassin,
Unicef e Willy Brandt). Ed. por Emir Sader e Cláudia Mattos. Rio de
Janeiro: Bom Texto, 2003.
História da Primeira Guerra Mundial (John Keegan). Rio de Janeiro:
Ediouro, 2003
Sobre a História e outros ensaios (Michael Oakeshott). Rio de Janeiro:
Topbooks, 2003.
Crença e Imaginação (Ronald Britton) (tradução dos poemas: Milton,
Wordsworth, Blake, Shakespeare, Rilke, Brönte, Coleridge, Keynes,
Browning). Rio de Janeiro: Imago, 2003.
Cartas (Jacob Burckhardt), Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
13 dos melhores contos da mitologia da literatura universal. (Mark Twain). Rio
de Janeiro: Ediouro, 2004. Org. por Flávio Moreira da Costa.
Mar de Glória—viagem americana de descobrimento (Nathaniel Philbrick), São
Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Brasil experimental: arte/vida: proposições e paradoxos. (Guy Brett, org. de
Kátia Maciel), Rio de Janeiro: Contracapa, 2005.
Crimes de Guerra—culpa e negação no século XX (Omer Bartov, Atina
Grossman, Mary Nolan), Rio de Janeiro: Difel, 2005.
Uma questão de vida e sexo (Oscar Moore), Rio de Janeiro: José Olympio,
2006.
Sadhana do coração (Gurumayi Chidvilasananda), Rio de Janeiro: Siddha
Yoga Dham Brasil, 2007.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


158 | Vanessa Lopes Lourenço Hanes

Devorando o vizinho (Daniel Diehl e Mark P. Donnelly), São Paulo: Globo,


2007.
A dádiva maior – a vida e a morte corajosas da irmã Dorothy Stang (Binka Le
Breton), São Paulo: Globo, 2008.
Maio de 68. Coleção Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.
Satã – uma biografia (Henry Ansgar Kelly). São Paulo: Globo, 2008.
Atlas Mundial do Vinho (Hugh Johnson e Jancis Robinson). Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2008.
1001 vinhos para beber antes de morrer (Neil Beckett, ed.). Rio de Janeiro:
Sextante, 2008.
O assassinato de Roger Ackroyd (Agatha Christie). São Paulo: Globo, 2009.
Transcinemas (Kátia Maciel, org.). Rio de Janeiro: Contracapa, 2009.
Hélio Oiticica. Coleção Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2009.
Olhe outra vez (Lisa Scottoline). São Paulo: Globo, 2009.
Quando haverá boas notícias? (Kate Athinson). São Paulo: Globo, 2009.
Geração Beat Coleção Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2010.
100 maneiras de criar riqueza (Steve Chandler e Sam Beckford). Rio de
Janeiro: Sextante, 2010.
O livro do whisky. (Charles Maclean, org). São Paulo: Globo, 2010.

Vida (Keith Richards). Rio de Janeiro: Globo, 2010.


Under their thumb (Bill German). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
Assim mataram Adonis (Sarah Caudwell). São Paulo: Tordesilhas, 2011.
Fragmentos (Marilyn Monroe). São Paulo: Tordesilhas, 2011.
La Doce (Gustavo Grabia). São Paulo: Panda Books, 2012.
Guerra Santa – como as viagens de Vasco da Gama transformaram o
mundo (Nigel Cliff). São Paulo: Globo livros, 2012.
Neil Young – a autobiografia. São Paulo: Globo Livros, 2012.
PRINCIPAIS TRADUÇÕES E VERSÕES (POESIA)
Twentieth-Century Latin American Poetry (Ferreira Gullar, Raul Bopp).
University of Texas Press, 1996. Ed. por Stephen Tapscott.
Poesia Sempre n. 9 (C. Day Lewis, W. B. Yeats). Fundação Biblioteca
Nacional, março, 1998.
Life Beats (Ferreira Gullar). Wilton Manors, FL, USA: Impsat, 1999.
Crença e Imaginação (poemas de Milton, Wordsworth, Blake, Shakespeare,
Rilke, Brönte, Coleridge, Keynes, Browning). Rio de Janeiro: Imago,
2003.
Puentes/ Pontes – Poesia Argentina e Brasileira Contemporânea (Amelia
Biagioni, Juana Bignozzi, Joaquín Gianuzzi, Roberto Juarroz, Leónidas

Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


Entrevista com Renato Rezende concedida a Vanessa Lopes Lourenço Hanes | 159
Lamborghini, Francisco Madariaga). Buenos Aires: Fondo de Cultura
Econômica, 2003. Ed. por Heloísa Buarque de Hollanda e Jorge
Monteleone; bilíngue.
Rebelião em silêncio (Rebecca Horn). Magnetocópio/CCBB: São Paulo,
2010.
I in U / Eu em você (Laurie Anderson). Magnetocópio/CCBB: São Paulo,
2010.

O UNIVERSO POLISSÊMICO E FRONTEIRIÇO DA TRADUÇÃO LITERÁRIA


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Caderno de Letras, nº 23, Jul-Jan - 2014 - ISSN 0102-9576


DADOS DOS AUTORES| 161

DADOS DOS AUTORES

Marlova Gonsales Aseff

Doutora em Estudos da Tradução (2012) e em Literatura (2007) pela


UFSC. Atuou no curso de formação de professores de tradução literária
na modalidade a distância nessa mesma universidade. Atualmente é
bolsista de pós-doutorado pelo PNPD/Capes na Universidade de Brasília
(UnB). É tradutora freelance desde 2008. Publicou, entre outros, Três
escritores-tradutores no cenário literário brasileiro contemporâneo (In:
Protocolos críticos. Iluminuras, 2008) e Maduración de la crítica y el
proceso de traducción (In: Translation and interculturality. Peter Lang,
2008, v.1); organizou O nome do jogo, de Ruy Carlos Ostermann,
crônicas sobre esporte e literatura (Sagra Luzzato/Palmarinca, 1998) e
Memória de tradutora, de Rosa Freire D’Aguiar (Escritório do Livro,
2004). Entre as suas traduções estão O império jesuítico, de Leopoldo
Lugones (inédito), Memória infiel, sonetos de Jules Supervielle (Revista
CEBRAP, 2006); Traduzir o Brasil literário: paratexto e discurso de
acompanhamento, de Marie-Hélène Torres (Copiart, 2011) e os artigos de
Antoine Berman Da translação à tradução (Revista Scientia Traductionis,
2011) e A tradução e seus discursos (Revista Alea - Estudos Neolatinos,
2009). Foi selecionada para o programa Rumos Literatura do Instituto
Itaú Cultural 2007-2008. Email: marlova.aseff@gmail.com

Elizamari Rodrigues Becker

Doutora em Letras, com ênfase em Estudos de Literatura e Literatura


Comparada (UFRGS, 2006); Mestre em Letras, com ênfase em Estudos
de Literatura e Literatura Comparada (UFRGS, 2001); Bacharel em
Letras, habilitada como Tradutora em português/inglês (UFRGS, 1996).
Professora Adjunta em atividade no Programa de Pós-Graduação em
Letras e no Departamento de Línguas Modernas da UFRGS. Tradutora
Pública e Comercial (Junta Comercial do Rio Grande do Sul). E-mail:
elizamari.rodrigues@ufrgs.br.

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162 | DADOS DOS AUTORES

Patrizia Cavallo

Mestranda em Literatura Comparada (UFRGS), com graduação e


especialização em Tradução e Interpretação de Conferências, obtidas na
Itália pela Escola de Línguas Modernas para Intérpretes e Tradutores,
Universidade de Bolonha. De língua mãe italiana, especializada nas
línguas francesa e inglesa, é pesquisadora nas áreas de Literatura
Comparada, Estudos de Tradução e Interpretação de Conferências
(bolsista CNPq). E-mail: patriziacavallo.ita@gmail.com.

Sergio Romanelli

Professor Pós-Doutor da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista


produtividade em pesquisa PQ 2 do CNPq. Possui graduação em Letras e
Filosofia - Università Degli Studi di Milano (Itália - 1997), Mestrado e
Doutorado em Linguística Aplicada pela UFBA (2003 e 2006), Pós-
doutorado em Antropologia da tradução pela Antwerp University (Bélgica
- 2014). Tem experiência na área de Linguística aplicada ao
ensino/aprendizagem de LE e tradução e em Crítica Genética. Presidente
da APCG (Associação dos Pesquisadores em Crítica Genética do Brasil).
Editor-Chefe das revistas MANUSCRÍTICA (QUALIS A2) e IN-
TRADUÇÕES (QUALIS B3). Coordenador do NUPROC - Núcleo de
Estudo de Processos Criativos (www.nuproc.cce.ufsc.br). Tradutor
(Virgillito, Alberti, Twain) e poeta, já publicou inúmeros livros: Libere
Fenici. Como: Lieto Colle, 2009; La metafisica di un fauno. Roma: Aracne
Editrice, 2011; Antologia Bilíngue – Clássicos da Língua Italiana, vol. I e II.
Tubarão: CopyArt, 2012-2013; Da arte de construir. São Paulo: Hedra,
2012; Gênese do processo tradutório. Vinhedo: Horizonte, 2013; Dom Pedro
II: Um tradutor imperial. Tubarão: CopyArt, 2013; Venere in esilio. Roma:
Aracne Editrice, 2014; O Diário de Adão e Eva. São Paulo: Hedra, 2014;
Estudos Italianistas. Chapecó: Argos, 2014. E-mail:
sergioroma70@gmail.com.

Roberto Mário Schramm Júnior

é doutorando junto ao Programa de Estudos da Tradução


(www.pget.ufsc.br) da Universidade Federal de Santa Catarina, e se dedica
à tradução portuguesa, em oitava rima, da epopeia cômica de Byron, o

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DADOS DOS AUTORES| 163

Don Juan. Publicou alguns trabalhos sobre literatura e tradução;


traduções em verso de Byron e Shelley; e um poema intitulado O Quartzo
Crescente. Do espanhol, traduziu o conto Vicissitudes del Vício, do costa-
riquenho Gillermo Barquero. E-mail: robertoschramm@yahoo.com
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4388213T6

Luciana de Mesquita Silva

é professora de Português e Inglês no CEFET/RJ (Campus Petrópolis) e


doutora em Estudos da Linguagem na PUC-Rio. Atua principalmente nas
áreas de Estudos da Tradução e Estudos Literários, com ênfase em
Literatura Afro-Americana, e participa da linha de pesquisa "Linguagem,
Sentido e Tradução". É autora de vários artigos e capítulos de livro, tais
como "The Bluest Eye X O olho mais azul: o African American Vernacular
English em tradução" (2005), "A linguagem no romance Paraíso, de Toni
Morrison: descortinando suas especificidades" (2010) e "Diaspora and
identity construction in Tar Baby and Caucasia" (2012). E-mail:
luciana.cefetrj@gmail.com.

Marcela Iochem Valente

é professora adjunta de Língua Inglesa na Universidade do Estado do Rio


de Janeiro (UERJ). É doutora em Estudos da Linguagem e autora de
diversos artigos e capítulos de livros como “A tradução da negritude e as
variáveis reconstruções do outro através de línguas e culturas: Ponciá
Vicêncio, de Conceição Evaristo, e sua tradução para o inglês” (2011) e “A
Tradução na Contemporaneidade: uma forma de mediar relações
interculturais e questionar valores hegemônicos” (2010). Também é
autora dos livros Subversive Voices Breaking Silences: questions of identity and
otherness in English Language Literatures (2012) e Lorraine Hansberry & A
Raisin in the Sun: challenges and trends presented by an African-American play
(2010). Faz parte das linhas de pesquisa "África, diáspora africana e
estudos de tradução" e "A voz e o olhar do outro: questões de gênero e
etnia nas Literaturas de Língua Inglesa". E-mail: marcellaiv@ig.com.br.

Juliana Steil

Professora da Área de Tradução da Universidade Federal de Pelotas.


Atualmente, desenvolve pesquisa sobre tradução de poesia e é

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colaboradora do grupo de pesquisa "William Blake: interpretação,
tradução e crítica" (UNESP, UFSM, UFPEL). Traduziu, com Jonas
Tenfen, o romance The Age of Innocence, de Edith Wharton (Record,
2011). E-mail: julianasteil@gmail.com.

Vanessa Lopes Lourenço Hanes

é Mestre em Estudos da Tradução pela Pós-Graduação em Estudos da


Tradução (PGET) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
Brasil (2011), e doutoranda na mesma área numa cooperação entre a
UFSC e a University of Antwerp (UA), Bélgica. Interessa-se em especial
pela tradução da oralidade em diferentes mídias, e atualmente investiga a
tradução do discurso oral em literatura traduzida no Brasil. Suas
principais publicações incluem os artigos A tradução de variantes orais da
língua inglesa no português do Brasil: uma aproximação inicial (Scientia
Traductionis, 2013) e As traduções de Agatha Christie no Brasil: considerações
sobre a representação da oralidade e o pós-colonialismo (Mutatis Mutandis,
2014). E-mail: vanessahanes@gmail.com.

DADOS DA ORGANIZADORA

Roberta Rego Rodrigues

Licenciada em Letras – Inglês (2003) pela Universidade Federal de Minas


Gerais; Mestre (2005) e Doutora (2010) em Linguística Aplicada pela
mesma instituição. Tem experiência nos Estudos da Tradução, atuando
principalmente na Linguística Sistêmico-Funcional e na Estilística
Tradutória baseada em corpus. Atualmente é professora adjunta do Curso
de Bacharelado em Letras – Tradução (Inglês-Português) do Centro de
Letras e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas. E-mail:
roberta.rego@ufpel.edu.br.

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