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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ - UFPI

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO - PRPPG


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS - CCHL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DO BRASIL -
PPGHB

A ESCRITA DA DEMOCRACIA ATENIENSE NOS COMPÊNDIOS


DE HISTÓRIA UNIVERSAL DO BRASIL DE 1854 A 1878

GIZELI DA CONCEIÇÃO LIMA

TERESINA
2020
GIZELI DA CONCEIÇÃO LIMA

A ESCRITA DA DEMOCRACIA ATENIENSE NOS COMPÊNDIOS


DE HISTÓRIA UNIVERSAL DO BRASIL DE 1854 A 1878

Texto de dissertação apresentado ao Programa


de Pós-Graduação em História do Brasil, do
Centro de Ciências Humanas e Letras da
Universidade Federal do Piauí, com vistas à
aprovação do Mestrado em História do Brasil.

Orientador: Prof. Dr. José Petrúcio de Farias


Junior.

TERESINA
2020
GIZELI DA CONCEIÇÃO LIMA

A ESCRITA DA DEMOCRACIA ATENIENSE NOS COMPÊNDIOS DE


HISTÓRIA UNIVERSAL DO BRASIL DE 1854 A 1878

Texto dissertativo apresentado no mestrado em


História do Brasil do programa de Pós-Graduação
em História do Brasil na Universidade Federal do
Piauí – UFPI.

Aprovado em ____/____/______

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________
Prof. Dr. José Petrúcio, de Farias Junior – UFPI
Presidente

______________________________________________________
Prof. Dra. Ana Lívia Bomfim Vieira- UEMA
Membro Externo

_______________________________________________________
Prof. Dra. Cláudia Cristina da Silva Fontineles – UFPI
Membro Interno

_______________________________________________________
Prof. Dr. Gleison da Costa Monteiro – UFPI
Membro Interno (Suplente)

TERESINA
2020
AGRADECIMENTOS

Este trabalho de qualificação intitulado “A escrita da democracia ateniense nos


compêndios de História Universal do Brasil de 1854 a 1878” foi um grande desafio de
mais uma etapa da minha caminhada acadêmica. Ao mesmo tempo em que me
ocasionou um grande prazer por se tratar de obras e autores que enriqueceram a minha
percepção de como lemos os escritos do passado.

Ao longo de minha trajetória tenho alguns agradecimentos especiais a fazer:

Agradeço primeiramente a Deus por ser TUDO para mim. Agradeço por seu
amor, por sua ajuda, pelas vezes em que as provações me consumiram. O seu amor e
sabedoria me ajudaram a manter a calma, fazendo com que eu não perdesse a esperança
em um futuro melhor. Agradeço ao Espirito Santo por me guiar nos momentos de
indecisão me levando sempre pelo caminho que eu deveria andar e me protegendo de
todo o mal. Toda honra e glória seja dada a Deus por essa conquista.

Em segundo lugar, agradeço meu pai Joaquim Antônio de Lima e a minha mãe
Josefa Júlia de Araújo Lima pela vida, educação, amor e carinho com que fui criada e
por aceitarem de livre e espontânea vontade abrir mão de seus sonhos para que eu
tivesse a oportunidade de realizar os meus. Agradeço pelo apoio que me deram desde
quando eu passei no vestibular, por cada sacrifício que eu vi ambos fazerem para que eu
somente estudasse e fizesse o curso de História com qualidade. Também sou grata por
tudo que fizeram por mim ao longo da seleção para o mestrado e principalmente pelos
sacrifícios que tiveram de fazer para que não me faltasse nada quando vim morar aqui
em Teresina após ser aprovada no PPGHB. Agradeço pelas orações que vocês fizeram
por mim todas as vezes que eu tinha que tomar alguma decisão importante. Agradeço a
Deus por vocês existirem e pela honra que é ser filha de vocês dois. Essa conquista é
nossa, pois eu não conseguiria sem a dedicação, o apoio, o amor e a confiança que foi
depositado em mim.

Agradeço aos meus irmãos Gilson e Gilberto por toda a ajuda, pelo apoio e
compreensão que tiveram comigo ao longo desse percurso. Agradeço também as minhas
cunhadas Cíntia e Ana Lisnete pelo apoio incondicional. Aos meus sobrinhos
Cindyellen, Leandro, Rafael, Ana Beatriz e Alana por existirem em minha vida, assim
como as minhas afilhadas Luciane e Valentina. Amo todos vocês, meus pequenos, e
agradeço a Deus por cada um que ele me deu. E já que estou agradecendo aos irmãos,
compartilho a gratidão aos meus amigos-irmãos Gilciene, Remédios, Gildênia, Antônio
Santiago, Ari Mendes, Aylon e Erivaldo. Aos amigos que dividiram essa etapa do
mestrado comigo: Simoní, Lanna, Júlio Eduardo, Anderson Miúra, Kelyel, Jackson,
Joaquim, Thiago, Viviam, Kezia, Júlio Cezar, Thayse, Yasmin, Mariele, Daniela,
Elisnauro, Rafaela, Débora, Jardiane, Lincoln e João de Deus.

Aos meus amigos do Flat Nazareth Noleto: Márcio Carlomagno, Marli, Milena,
Rose, Raquel, Tom, Lívia, Maírton, Sunamita, Sanya, Wesley e Stefany por toda ajuda
prestada, pela torcida, pelas boas vibrações e pela demonstração de felicidade ao ver dar
certo cada etapa do mestrado.

Agradeço também a todos que fazem parte do grupo de oração Filhos de Abraão
do Shalom de Teresina: Denise, Neto, Luana, Raíssa, Melissa, Mariana, Niedja, Thalita,
Mércia, Mikaele, Gorethe e a todos os amigos em geral.

Deixo registrado também o meu agradecimento a Rairana e Dona Eliete que


tanto se mostraram amáveis e disponíveis sempre que eu precisei de alguma ajuda.

Aos meus avós paternos Antônio e Francisca, a minha avó Antônia (In
memoriam) e aos meus avós maternos João José e Júlia Helena de Araújo (In
memoriam) por todo amor, apoio e compreensão. A todos os meus queridos tios e
primos que foram sempre presentes na minha caminhada, em especial a Lusineide
(Lulu), Rosimar, tio Manoel e Marielsom por abraçarem a causa e me incentivarem
todas as vezes que precisei.

Ao professor orientador de meu trabalho, Professor Doutor José Petrúcio de


Farias Júnior, por aceitar o desafio de orientação de minha caminhada e pela
disponibilidade em me guiar ao longo da pesquisa e escrita. Agradeço por toda a ajuda
incondicional, pelos puxões de orelha na hora certa, pelo incentivo e por ter me
dedicado seu tempo e sua compreensão quando eu mais precisei. Agradeço por ter
confiado a mim sua amizade - sempre muito valiosa -, por insistir em minha pesquisa
todas as vezes que eu estava prestes a desistir. Por incentivar a me profissionalizar e
demonstrar que eu tenho condições de além com meus estudos - desde que me dedique
ainda mais a aprofundar a pesquisa.
Agradeço a banca examinadora, composta pela Professora Ana Lívia Bonfim
Vieira (UEMA), pela professora Cláudia Cristina da Silva Fontineles (UFPI) e pelo
professor Gleison da Costa Monteiro (UFPI).

Agradeço aos professores do quadro docente do Programa de Pós-Graduação em


História do Brasil (PPGHB), de forma especial aos professores Fábio Leonardo Brito,
Edwar Castelo Branco (coordenador do PPGHB), Jhony Santana, Francisco Alcides
Nascimento, Túlio Henrique Pereira e Francisco Nascimento por todo aprendizado que
adquiri ao longo das disciplinas e pela ajuda que me foi dada ao longo de minha
trajetória.

Agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior


(CAPES) pela bolsa de estudos que recebo e que ocasionalmente me permite comprar
livros, participar de congressos científicos e me tornar uma profissional mais capacitada
para o mercado de trabalho.

A todos que contribuíram direta ou indiretamente para a realização deste


trabalho: muito obrigada!
RESUMO
O estudo se insere no âmbito de investigações sobre os usos do passado clássico, na
condição de dispositivo discursivo útil à reflexão de questões contemporâneas. No caso
em apreço, preocupamo-nos em compreender em que medida as escolhas feitas por
pensadores contemporâneos contribui para forjar projetos de nação e de sociedade ao
longo da História. Esse trabalho faz parte da pesquisa, ainda em curso, desenvolvida no
mestrado em História. Ao longo dessa primeira fase de escrita pretendemos, em sentido
geral, averiguar as apropriações da antiguidade por pensadores contemporâneos, em que
examino os usos do passado como aporte teórico para pensar o presente. Em nossa
investigação, buscaremos entender porque a Grécia Antiga instiga os pensadores
oitocentistas a fazerem uma releitura dos grandes clássicos com a intenção de adequá-
los aos interesses do projeto de nação, que estava sendo planejado para o Brasil no
período Imperial brasileiro. Dessa maneira, a pesquisa justifica-se pela necessidade de
aprofundarmos a discussão sobre os usos do passado clássico pela historiografia
contemporânea. A partir dessa perspectiva, faz-se necessário, ao longo de nossas
reflexões, pontuar a relevância de nossa pesquisa na construção de um olhar sobre a
concepção de democracia entre os atenienses, que permita indagar o cenário político na
qual estavam inseridos os autores dos compêndios de História Universal, objetos no
desenvolvimento da nossa narrativa. As fontes analisadas são os compêndios de
História Universal escritos por Justiniano Jose da Rocha (1860), Pedro Parley (1869) e
Victor Duruy (1865). No que se refere aos resultados convém pontuar que a pesquisa e a
escrita da dissertação estão em fase de desenvolvimento. Nesse sentido, o que será
apresentado é as quatro primeiras seções escritas para essa etapa.

Palavras-chave: Compêndios de História Universal, Pensadores oitocentistas,


Ensino de História Antiga no Brasil.
ABSTRACT
The study presented here falls within the scope of investigations on the uses of the
classical past, as a useful discursive device for the reflection of contemporary issues. In
the present case, we are concerned with understanding the extent to which the choices
made by contemporary thinkers contribute to forging projects of nation and society
throughout history. This work is part of the research, still ongoing, which is being
developed during the Master's in History. Throughout this first phase of writing, we
intend, in a general sense, to investigate the appropriations of antiquity by contemporary
thinkers working within the scope of the uses of the past as a theoretical contribution to
think the present. In our investigation, we will try to understand why Ancient Greece
instigates 19th century thinkers to reinterpret the great classics with the intention of
adapting them to the interests of the nation project that was being planned for Brazil in
the Brazilian Imperial period. Therefore, the research is justified by the need to deepen
the discussion on the uses of the classical past by contemporary historiography. From
this perspective, it is necessary, throughout our reflections, to point out the relevance of
our research with regard to the construction of a look at the concept of democracy
among the Athenians, which allows to inquire the political scenario in which they were
inserted the authors of the Universal History compendiums that are being worked on in
the development of our narrative. The sources to be analyzed in our work are the
compendiums of Universal History written by Justiniano Jose da Rocha (1860), Pedro
Parley (1869) and Victor Duruy (1865). Regarding the conclusive results, it should be
noted that the research and writing of the dissertation are under development. In this
sense, what will be presented appears in the result of the first four sections written for
stage.

Keywords: Compendiums of Universal History, 19th century thinkers, Teaching


Ancient History in Brazil
LISTA DE IMAGENS
IMAGEM 1 – PROGRAMA DE ENSINO DA ESCOLA SECUNDÁRIA
BRASILEIRA: 1850-1951 (1998).................................................................................105

IMAGEM 2 – PROGRAMA DE ENSINO DA ESCOLA SECUNDÁRIA


BRASILEIRA: 1850- 1951 (1998) (Continuação)........................................................106

IMAGEM 3 – ÓRGÃOS DA DEMOCRACIA ATENIENSE....................................126


LISTA DE QUADROS
QUADRO I: A ESCRITA SOBRE O CONTEÚDO DE GRÉCIA NO COMPÊNDIO
DE HISTÓRIA UNIVERSAL DE JUSTINIANO JOSE DA ROCHA (1860)
.......................................................................................................................................163

QUADRO II: A ESCRITA SOBRE O CONTEÚDO DE GRÉCIA NOS


COMPÊNDIOS DE HISTÓRIA UNIVERSAL RESUMIDA DE PEDRO PARLEY
(1869)
.......................................................................................................................................169

QUADRO III: A ESCRITA SOBRE O CONTEÚDO DE GRÉCIA NOS


COMPÊNDIOS DE HISTÓRIA UNIVERSAL DE VICTOR DURUY (1865)
.......................................................................................................................................174
Sumário
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 13
1. USOS DO PASSADO: debates sobre a recepção dos clássicos e a concepção de
história antiga no século XIX pelos historiadores do IHGB .......................................... 20
1.1 A RECEPÇÃO DOS TEXTOS ANTIGOS NA CONTEMPORANEIDADE:
possíveis abordagens ................................................................................................... 22
1.2 Usos, limites e interesses da escrita da História Antiga nos compêndios de
História Universal ....................................................................................................... 31
1.3. A escrita da História Antiga no século XIX e a influência do IHGB para o ideário
de construção da identidade nacional ......................................................................... 46
2. A ESCRITA DA HISTÓRIA ESCOLAR NO SÉCULO XIX: reflexões em torno do
papel da escrita da escrita escolar produzida no IHGB e suas representações no ideário
de Brasil a ser alcançado pela elite ................................................................................. 65
2.1. A CONSTRUÇÃO DO IDEÁRIO DE BRASIL NO SÉCULO XIX: reflexões em
torno das concepções de nação, memória, civilização e identidade nacional ............. 67
2.2. AS REFORMAS E A ESCRITA DA HISTÓRIA ESCOLAR DE 1854 A 1878:
algumas reflexões sobre o ensino secundário nos oitocentos ..................................... 86
2.3. A ESCRITA DA HISTÓRIA ESCOLAR NO SÉCULO XIX: análise sobre os
manuais oitocentistas; produção, circulação e recepção ............................................. 98
3. A NARRATIVA ESCOLAR NOS COMPÊNDIOS DE JUSTINIANO JOSE DA
ROCHA (1860) PEDRO PARLEY (1869) E VICTOR DURUY (1865): ANÁLISE
SOBRE A DEMOCRACIA ATENIENSE NO BRASIL OITOCENTISTA ............... 116
3.1. A DEMOCRACIA ATENIENSE: estudo sobre a sociedade e o processo
democrático na antiguidade ...................................................................................... 117
3.2. A DEMOCRACIA EM ATENAS: discussões historiográficas no século XIX
.................................................................................................................................. 138
3.3. A DEMOCRACIA ATENIENSE NOS COMPÊNDIOS DE HISTÓRIA
UNIVERSAL: análise sobre esse conteúdo nos compêndios de Justiniano Jose da
Rocha (1860) Pedro Parley (1869) e Victor Duruy (1865) ...................................... 163
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 184
REFERÈNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 187
13

INTRODUÇÃO

O interesse pela narrativa escolar do conteúdo de história antiga nasce do


itinerário acadêmico realizado em nossa atividade de pesquisa, que tem início com a
nossa entrada e participação no grupo de pesquisa “Laboratório de História Antiga e
Medieval” (LABHAM/UFPI) no decorrer da Graduação, entre os anos de 2016 e 2017,
onde encontramos na temática um campo aberto para novas possibilidades de
investigação do meio acadêmico. O tema aqui desenvolvido se insere em investigações
sobre os usos do passado clássico, na condição de dispositivo discursivo útil à reflexão
de questões contemporâneas. Preocupamo-nos em compreender em que medida as
escolhas feitas por pensadores contemporâneos contribui para forjar projetos de nação e
de sociedade ao longo da História.

Esse trabalho é resultado da pesquisa desenvolvida no decorrer do mestrado em


História pelo Programa de Pós-graduação em História do Brasil (PPGHB/UFPI). Ao
longo de nossa escrita, o intuito, em sentido geral, foi averiguar as apropriações da
antiguidade por pensadores contemporâneos, analisando os usos do passado como
aporte teórico para pensar o presente. Em nossa investigação, buscaremos entender por
que a Grécia Antiga instiga os pensadores oitocentistas a fazerem uma releitura dos
grandes clássicos com a intenção de adequá-los aos interesses do projeto de nação que
estava sendo planejado para o Brasil no período Imperial brasileiro.

Em relação à relevância do tema desenvolvido nessa dissertação, podemos


relatar que nossa pesquisa se justifica pela necessidade de compreender melhor o uso de
versões instrumentalizadas da História Antiga, com maior destaque a democracia
ateniense, presente no conteúdo referente à Grécia Antiga, nos compêndios de História
Universal, escritos por Justiniano Jose da Rocha (1860), Victor Duruy (1865) e Pedro
Parley (1869). Esse era um período em que o saber escolar passava por um processo de
transformação, onde é perceptível notar, na proposta curricular, a forte presença de
elementos associados à tradição clássica, influenciando, de certa forma, um momento
em que a história nacional passava a ocupar certa centralidade na escola secundária.

A configuração da História Escolar será analisada por meio dos compêndios


citados anteriormente, onde investigaremos suas implicações para a construção de novas
representações da memória nacional. E a ênfase sobre os conteúdos de História Antiga
14

se explica, a nosso ver, porque o currículo adotado nas escolas secundárias brasileiras
baseava-se em manuais didáticos das nações europeias, em especial da França. A
História do Brasil ainda começava a ser construída pelos membros do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) com o propósito de produzir uma história
nacional validada pelo governo imperial.

O objetivo geral é a analisar por meio dos compêndios escolares de Justiniano


José da Rocha (1860), Victor Duruy (1865) e Pedro Parley (1869), adotados no Brasil
no período oitocentista, como essa narrativa sobre o passado clássico, de maneira
especial sobre a democracia ateniense, era inserida no ideal de construção de novas
representações da memória nacional e da formação de uma elite intelectual que em geral
se preparava, por intermédio dos cursos secundários, para assumir cargos político-
administrativos ou militares no Estado.

O objetivo específico é investigar, através da análise desses compêndios


didáticos de História, como esses conteúdos, especialmente os de História Antiga, eram
traduzidos e adaptados de forma proposital para defender as políticas públicas
endereçadas à educação, com o intuito de legitimar o projeto político nacional.
Sobretudo quando consideramos o fato de que o público-alvo eram as famílias
abastadas.

Nesse percurso, procuramos evidenciar, a partir da análise documental, o uso de


alegorias e topoi literários utilizados em grande medida para forjar a construção da
identidade nacional. Essas são entendidas numa acepção plural, pois foram construída e
reconstruída, intencionalmente, para atender a expectativas políticas dos grupos que
ocupavam os espaços de poder. Destacamos, em particular, a forma como a civilização
grega, sua geografia, suas guerras, sua experiência democrática e suas demais
particularidades são caracterizadas nesses compêndios de História Universal, tendo em
vista a orientação política do país no período.

O itinerário de nossa análise documental considera dois aspectos fundamentais:


de um lado, o exame crítico dos conteúdos dos discursos, os quais se apoiam em uma
versão instrumentalizada da História Antiga, que atende a nosso ver os objetivos e
interesses particulares do momento da escrita; e, de outro, os artifícios retóricos a partir
15

dos quais elucidamos de que maneira os conteúdos de História Antiga se relacionam


com os projetos políticos de nação que se forjavam no início do século XIX.

As fontes analisadas são: O compendio de História Universal de Justiniano Jose


da Rocha (1860); O compendio de História Universal de Vistor Duruy (1865); e, O
compendio de História Universal Resumida de Pedro Parley (1869). Para tanto, nosso
problema de pesquisa é entender de que maneira os autores desses manuais didáticos,
utilizados no Brasil, reproduziam-se como verdade histórica - como restituição do
passado clássico e, retórico, ou seja, como um produto da manipulação de
acontecimentos históricos com a finalidade de referendar determinados posicionamentos
político-culturais do presente.

A metodologia para a realização desta proposta é a análise documental e a


análise dos discursos presentes e ausentes nessas fontes. Além disso, fez-se necessário
observar em caráter complementar as implicações políticas presentes nestas narrativas
escolares, onde analisamos em que medida os conteúdos escolares contribuem para a
construção da ideia de ‘nação’; quem eram estes professores de história, como eram
escolhidos para os cargos e como se dava esse processo de seleção, confecção e
distribuição dos compêndios escolares. Sob esse aspecto, o trabalho contribui para
indagar a presença da História Antiga nos manuais didáticos das escolas secundárias, a
qual se faz presente até os dias de hoje nas propostas curriculares federais, estaduais e
municipais.

Partimos do pressuposto de que a narrativa histórica, presente nos compêndios


de História Universal do século XIX, deve ser concebida como construto literário
entremeado de artifícios retóricos, inerentes à organização da narrativa. Assim,
concebemos a retórica como um importante mecanismo de análise documental, já que a
interpretação ocorre pela escrita das fontes históricas. Atentos aos artifícios retóricos,
elucidamos de que maneira os conteúdos de História Antiga se relacionam com os
projetos políticos de nação que se forjavam no início do século XIX, a despeito das
dissensões políticas provinciais brasileiras e suas implicações na condução de políticas
públicas educacionais.

Dito de outro modo, a História Antiga, ressignificada ou revisitada por


historiadores do século XIX, era compreendida no interior dos desdobramentos da
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história das nações. Uma nação, sob as categorias de pensamento da historiografia


anglo-americana e germânica do século XIX, respaldada pelos adeptos da arqueologia
histórico-cultural, era concebida como um conjunto formado por um povo, uma língua,
uma só ancestralidade e uma cultura comum e para a maioria dos pesquisadores
europeus, a História das Civilizações Ocidentais começava na Grécia Antiga. Sob essa
ótica, participar da cultura destinada aos mais abastados, proveniente das sociedades
antigas clássicas, legitimava a superioridade político-cultural das elites, tanto na Europa,
quanto no Brasil.

A historiografia europeia do século XIX esforçou-se para produzir uma memória


do ‘Ocidente’ que explicava e justificava, por exemplo, o domínio dos países
capitalistas mais desenvolvidos tecnologicamente sobre o restante do globo, haja vista o
processo de colonização europeia sobre os países do continente africano, asiático e as
estratégias para influenciar a economia e a cultura em países do continente americano.

Assim, inferimos que, no pós-independência, o principal objetivo da proposta de


ensino brasileiro continuava a ser a formação das elites dirigentes e a questão
predominante da narrativa histórica, nos compêndios de História, versava sobre a
identidade nacional e em reflexões sobre a construção da nação brasileira. Ainda que o
caráter da instrução pública nos Oitocentos tenha sido profundamente elitista ou ainda
que os objetivos educacionais carregassem consigo o pendor de um Estado ‘para
poucos’, convém salientar que tal perspectiva produz uma imagem sobre os setores
sociais subalternizados que pode ser mais bem explorada, tendo em vista as
circunstâncias históricas e as condições de produção da narrativa histórica escolar.

No que se refere ao recorte temporal de 1854 a 1878, a escolha ocorrer por se


tratar de um período com duas importantes reformas no ensino brasileiro: a reforma de
Couto Ferraz (1854) e a Reforma de Leôncio de Carvalho (1878), que serão
aprofundadas no decorrer dessa pesquisa. Esse recorte tem como justificativa a
necessidade de compreendermos, durante o período dessas duas reformas, as
implicações político-culturais que afetam a escrita da história escolar no século XIX e o
papel de estudos clássicos na formação de jovens durante o Segundo Reinado.

No que diz respeito à sociedade brasileira dos Oitocentos, defendemos que a


tradição clássica veiculada no Brasil, por meio do ensino, reproduzia uma perspectiva
17

eurocêntrica e com ela, um conjunto de valores e princípios político-culturais que


conferia inteligibilidade ao que se entendia por processo civilizacional. Assim, tratava-
se de uma narrativa que as famílias abastadas deveriam se identificar, para justificar o
status de membros pertencentes a uma nação civilizada.

De acordo com Guarinello (2018) nós fomos educados sob a ótica eurocêntrica
no que se refere ao estudo das sociedades antigas. Por esse motivo nos enxergamos
como ocidentais, obtendo mais familiaridade com Egito, Mesopotâmia, Grécia, Roma
com os povos de Israel. Os demais povos da antiguidade nos parecem distantes por não
fazerem parte cotidiano do nosso ensino brasileiro. Isso ocorre porque no século XIX,
período de criação da identidade nacional, houve em grande medida, um discurso que
forjava um ideal de pertencimento ao Ocidente deixando de lado as demais civilizações.

A historiografia do século XIX não veiculava uma ótica inteiramente


tendenciosa sobre a influência da herança clássica no Brasil. Afinal, falamos uma língua
latina, em que nossa cultura e escrita devem muito à tradição greco-romana: nossas leis,
o regime político, o calendário, o sistema numérico, entre outros, inspiraram-se nos
textos do ‘mundo antigo’ e o cristianismo, que nasceu no Império Romano, é nossa
religião dominante (HARTOG, 2003).

No interior desse contexto, os conhecimentos conectados à tradição clássica


constituíam um ideal de erudição e cultura muito valorizadas pelos países que
perseguiram uma concepção de civilização advinda da Europa, a partir do início do
século XIX, como o próprio Brasil. Nesse sentido, torna-se indispensável discutir, em
caráter complementar, mas não menos importante, em que medida as obras de
historiadores dos oitocentos e suas concepções de trabalho historiográfico dialogam
com a escrita da História nos compêndios didáticos utilizados pelas escolas secundárias
brasileiras e com a concepção de História adotada pelos intelectuais membros do IHGB.

Essa valorização da herança cultural da Antiguidade no Brasil teve um reflexo


direto nas políticas públicas endereçadas à educação, que deveriam difundir o ideal de
civilização através do ensino, contemplando predominantemente às famílias abastadas.
Desse modo, destaca-se o papel do IHGB na construção de uma identidade nacional, no
contar de sua história e, também, no ensino dela.
18

Por isso, julgamos oportuno dialogar com outros pesquisadores, que nos
auxiliaram a compreender de que modo a Antiguidade foi instrumentalizada por
escritores ligados ao IHGB para satisfazer interesses e objetivos políticos,
contemporâneos da escrita dos compêndios escolares. Esses pesquisadores são
elencados de acordo com cada seção aqui apresentada, onde é possível perceber sua
importância para o desenvolvimento dessa dissertação.

A construção do texto será desenvolvida em três capítulos, e cada um deles


possui um referencial teórico e historiográfico que nos possibilita trabalhar em nossa
investigação.

No primeiro capítulo pretendemos, em sentido geral, averiguar as apropriações


da antiguidade por pensadores contemporâneos trabalhando nos usos do passado como
aporte teórico para pensar a recepção da literatura antiga na contemporaneidade.
Buscaremos ao longo dessa análise entender por que a Antiguidade instiga pensadores
contemporâneos a fazerem uma releitura dos grandes clássicos. Para depois
compreender como os pensadores do período oitocentista também se utilizavam da
literatura sobre o mundo antigo com a intenção de adequá-las aos interesses do projeto
de nação que era planejado para o Brasil no período Imperial brasileiro.

No segundo capítulo buscaremos analisar o ideário de país e os projetos de


nação cogitados para o Brasil, no período oitocentista, que tinham como escopo os
modelos europeus dos séculos XVIII e XIX. Propomos uma reflexão sobre alguns
conceitos chave que permeiam a nossa narrativa: nação, memória, civilização e
identidade nacional. Em seguida, buscamos problematizar a narrativa histórica escolar
no século XIX, dado que partimos do pressuposto de que nenhum discurso é neutro ou
desinteressado. A nossa narrativa irá concentrar esforços para entender os usos do
passado na construção do saber escolar, levando em consideração os estudos de história
e historiografia no Brasil entre os anos de 1850-1870 e sua contribuição para a criação
de um ideário nacional em território brasileiro.

No terceiro e último capítulo demonstramos, a luz de pensadores sobre a


antiguidade clássica, como se concebeu a democracia ateniense na Grécia Antiga. Isto é
necessário para compreende as diferentes interpretações sobre a democracia ateniense e
em que medida elas estão comprometidas com as circunstâncias históricas e com as
19

condições político-culturais em que foram produzidas. A partir dessa análise,


analisamos as fontes de pesquisa histórica: os compêndios de História Universal de
Justiniano Jose da Rocha (1860), Victor Duruy (1865) e Pedro Parley (1869), onde
examinamos como a história da Grécia é narrada e como a democracia ateniense é
abordada nesses compêndios. Essa análise nos levará a reflexão sobre a narrativa
escolar proposta para o ensino secundário no período Imperial brasileiro, que se faz
necessário para compreender o olhar desses pensadores sobre essa sociedade e os
silenciamentos existentes na narrativa escolar sobre a democracia proposta nesses
autores.
20

1. USOS DO PASSADO: debates sobre a recepção dos clássicos e a


concepção de história antiga no século XIX pelos historiadores do
IHGB

A escrita da História Antiga aqui trabalhada produz um entendimento sobre o


passado, que ocorre porque somos seres de nosso tempo e nossos olhares são marcados
pela cadeia de sentidos que construímos ao longo de nossa existência. Entendemos que
a história da Antiguidade não pode ser escrita sem que se considerem as circunstâncias
históricas e as condições político-culturais do historiador (PAYEN, 2009). A interface
entre passado e presente é onde este recorre para impor o seu novo paradigma no campo
da historiografia.

Estudar a Grécia e as Civilizações Antigas é um fator importante na


contemporaneidade, uma vez que o conhecimento sobre o modo de viver e sobre a
cultura a qual tomamos referência sofre grande influência dessas civilizações. É preciso,
nesse primeiro momento de escrita, propor reflexões sobre a relação dos
contemporâneos com a Antiguidade. Com essa finalidade desejamos brevemente
mostrar como, a nosso ver, os usos do passado podem ser observados de forma muito
rica através da educação histórica.

Nesse sentido, gostaríamos de salientar que entendemos como usos do passado o


contexto das mais diversas apropriações que são feitas do passado, sejam elas
conscientemente ou não; ora chamados de legados, ora de usos por autores posteriores
aos acontecimentos. Tal temática, que aqui problematizamos, vincula-se com a grande
necessidade humana de se relacionar com o passado, tornando-o de diversas formas
presente, seja por meio de usos variados, apropriações e (re)significações que devem ser
discutidos.

Nessa primeira etapa da pesquisa, pretendemos, em sentido geral, averiguar as


apropriações da antiguidade por pensadores contemporâneos, trabalhando os usos do
passado como aporte teórico para pensar a recepção da literatura antiga na
contemporaneidade. Procuramos ao longo dessa análise entender por que a Antiguidade
instiga pensadores contemporâneos a promover uma releitura dos grandes clássicos.
Logo em seguida, buscamos compreender como os pensadores do período oitocentista
também se utilizavam da literatura sobre o mundo antigo com a intenção de adequá-la
21

aos interesses do projeto de nação planejado para o Brasil no período Imperial


brasileiro.

Nesse sentido, a pesquisa propõe reflexões sobre o relacionamento entre o


investigador e as fontes antigas com a intensão de promover uma compreensão maior
sobre o papel dessa temática na historiografia e, consequentemente, na construção de
nossa narrativa. Assim, ao investigarmos a maneira como é caracterizada essa relação,
podemos analisar os usos do passado na escrita dos compêndios de História Universal
de Pedro Parley (1869), Victor Duruy (1865) e Justiniano José da Rocha (1860). O que
nos levará a entender como os autores se apropriam do conhecimento sobre o mundo
antigo para reafirmar modelos de civilização pensados para a elite brasileira e na
construção de uma espécie de “nova sociedade” no período dos oitocentos. Esses traços
ainda podem ser vistos ao verificar que a valorização da história e da literatura clássica
nas propostas curriculares voltadas à instrução pública secundária não eram fortuitas.
22

1.1 A RECEPÇÃO DOS TEXTOS ANTIGOS NA


CONTEMPORANEIDADE: possíveis abordagens

Para analisarmos a relação entre as fontes antigas e seus usos na contemporaneidade


trazemos como primeiro exemplo à obra de Leandro Hecko (2013) Usos do passado e
educação histórica: temas sobre a antiguidade em evidência. Nessa obra o autor traz
exemplos da aproximação da literatura antiga com o cotidiano da vida prática das
pessoas, onde esses exemplos tomam como base as considerações sobre ideias de Jörn
Rüsen no sentido de guiar o pensamento sobre as relações entre educação histórica e
usos do passado.

Segundo Hecko (2013, p. 144), a relação entre um passado distante, (re) significado
na vida prática das pessoas, permeia os elementos mais diversos do cotidiano, como a
literatura, a arte, a arquitetura, os jogos eletrônicos, o misticismo, desenhos animados, o
cinema, música, histórias em quadrinhos, museus, a propaganda, joias e a indústria da
estética.

Os dois primeiros exemplos abordados pelo autor em sua pesquisa referem-se a


assim denominada por ele egiptomania1 como recurso para o aprendizado escolar na
contemporaneidade – onde o autor mostra que os professores já há muito tempo se
utilizam de imagens da Antiguidade em suas aulas da disciplina de Antiguidade
Oriental no curso de História, mostrando a evidente relação que estabelecemos no
presente com a civilização egípcia antiga, deixando claro, no entanto, que se trata de
usos diversificados de temas e de imagens. No âmbito das imagens exemplificadas por
ele, rapidamente identificamos signos que nos remetem ao Antigo Egito, como a
presença de uma pirâmide, esfinges, estátuas, hieróglifos e cores, entre os elementos
mais comuns. Ou recorrendo a imagens referentes aos ornamentos que nos remetem ao
Antigo Egito, cores, arquitetura, as máscaras de felinos e à figura feminina – que se
pode associar à figura de Cleópatra VII e uma face de Ísis. Essas personagens são
utilizadas pelo autor com um ponto inicial para discussão do feminino na sociedade
egípcia a partir de ícones de beleza, sensualidade ou poder. Esses exemplos trazem as
formas de apropriação da cultura Egípcia com a finalidade de dar sentido ao ensino da
disciplina escolar.

1
Ver Hecko, 2013, p. 145-146.
23

Ao exemplificar as apropriações sobre a cultura greco-romana2 - terceiro e


quarto exemplos –, Hecko traz o mito da Medusa de Ney Sayão e imagens sobre o
poder Romano através da imagem de Júlio Cezar e suas apropriações por parte de
líderes de estado como, por exemplo, Benito Mussolini e Adolf Hitler.

No primeiro exemplo, ele se utiliza do mito para promover uma releitura sobre o
papel da mulher na sociedade grega, onde este tema pode ser problematizado diante das
atuais discussões de gênero ou feminismo. Aqui também a própria cultura grega e sua
mitologia são objetos em evidência, os quais permeiam a própria história da arte,
riquíssima em releituras. O autor nos diz que ainda poderiam ser declinadas outras
formas de usos, ampliando os horizontes. Não basta que trouxessem à memória uma
tradição que fala do legado de um passado grego onde aparecem formas de herança
cultural no âmbito da literatura, política, filosofia, direito, arquitetura e linguagem, mas
também aspectos da religião, que chamam atenção ainda hoje de todos que voltam seu
olhar para os gregos antigos.

No que se refere ao último exemplo, Hecko nos diz que a imagem de grandeza
do Império Romano, assim como de seus líderes, tem como finalidade demonstrar a
ideia do poder nessa sociedade, mostrando uma espécie de modelo de líder de estado a
ser seguido. Para o autor, há também outros itens sobre Roma Antiga que ecoam em
usos contemporâneos no âmbito do Direito, da literatura, da política, da sexualidade e
da linguagem. Eles trazem à tona um passado distante tornando-o, de certa forma,
presente e atuante na vida prática das pessoas, sendo de grande valia como objetos de
estudos e problematizador do ensino da História Antiga (HECKO, 2013, p. 148-149).

Podemos perceber que ao longo de sua obra, Hecko traz exemplos de


aproximação da literatura antiga com o cotidiano da vida prática. Esses exemplos
tomam como base as considerações sobre ideias de Jörn Rüsen no sentido de guiar o
pensamento sobre as relações entre educação histórica e usos do passado. Segundo o
autor, a relação entre um passado distante (re) significado na vida prática dos indivíduos
permeia os elementos mais diversos do cotidiano. Para Rüsen:

O melhor ponto de partida parece ser aquele que, na vida corrente, surge
como consciência histórica ou pensamento histórico (no âmbito do qual o que
chamamos ‘história’ constitui-se como ciência). Esse ponto de partida

2
Ver Hecko, 2013, p. 147-149.
24

instaura-se na carência humana de orientação do agir e do sofrer os efeitos


das ações no tempo. A partir dessa carência é possível constituir a ciência da
história, ou seja, torná-la inteligível como resposta a uma questão, como
solução de um problema, como satisfação (intelectual) de uma carência (de
orientação) (RÜSEN, 2001, p. 29-30 apud HECKO, 2013, p. 141).

Ao percebermos a visão de Rüsen (2013) sobre a História como ponto de partida


instaurada na carência humana de orientação do agir e do sofrer os efeitos das ações no
tempo, notamos que essa concepção se assemelha à visão de História como magistra
vitae (mestre da vida), conceito abordado por Reinhart Koselleck (2006), que nos ajuda
na reflexão sobre a criação da filosofia da História, onde o autor busca apreender o
passado, o presente e o futuro em uma totalidade dotada de sentido.

Ao demostrar a visão de Rüsen, Hecko (2013), nota-se que o pensamento


histórico pode ser apreendido entre interesses gerados por carências de orientação no
tempo. Estas carências são constituidoras de ideias perspectivadas da experiência do
passado e levam à construção de métodos e regras de pesquisa empírica que serão
organizadas em formas de apresentação e que atuarão com funções na vida prática, num
retorno, a partir da narrativa, à necessidade prática de orientação existencial.

Essa perspectiva surge, então, como uma volta partindo de carências de


orientação no tempo interpretadas. É por essas interdependências no processo do
pensamento histórico que ressaltamos as reflexões de Rüsen (2013) neste trabalho.
Conhecer o passado, apropriar-se dele, significá-lo e ressignificá-lo, estabelecendo usos
para o mesmo, faz parte de nossa própria vida na contemporaneidade.

Sobre a relação existente na historiografia referente ao relacionamento entre


pesquisador e fonte, Jörn Rüsen (2001), em sua obra denominada História viva, nos
permite perceber a relação existente entre pesquisa e historiografia, quando nos diz que:

Por mais que a pesquisa e a historiografia se entrelacem ou sejam lados de


uma mesma coisa, é perfeitamente plausível distingui-las (mesmo que de
forma abstrata) como duas faces do processo histórico de conhecimento. Essa
distinção se baseia nos dois princípios já mencionados: no princípio da
relação à experiência (que o conhecimento histórico mantém na pesquisa) e
no princípio da relação ao público-alvo (na apresentação histórica). Ambos
os princípios determinam os aspectos formais do conhecimento histórico
(RÜSEN, 2001, p. 22).
25

Podemos perceber que na concepção do autor, a relação existente entre pesquisa


e historiografia tem como princípio a relação entre a experiência histórica de quem
escreve e suas intenções tendo em vista o seu público alvo. Essa afirmação nos é cara
por que nos faz refletir sobre a forma como estes dois princípios, já mencionados
anteriormente - o princípio da relação com a experiência (que o conhecimento histórico
mantém na pesquisa) e o princípio da relação com público-alvo (na apresentação
Histórica) - determinam os aspectos formais do conhecimento histórico.

Isso tudo nos permite refletir sobre o nosso objeto de pesquisa, que gira em torno
da análise dos conteúdos sobre a Grécia antiga nos compêndios de História Universal.
Esse conhecimento possibilita entender a configuração da História escolar que será
analisada em nossa pesquisa. Seguindo o pensamento de Rüsen (2013) , destacamos
também a importância da narrativa no referido processo de nossa pesquisa. O autor nos
diz que:

Para se entender o que a narrativa realiza, é necessário caracterizar melhor a


categoria de sentido. A constituição de sentido produzida pela narrativa
histórica a partir da experiência no tempo opera-se em quatro planos: a) no da
percepção de contingência e diferença no tempo; b) no da interpretação do
percebido mediante a articulação narrativa; c) no da orientação da vida
prática atual mediante os modelos de interpretação das mudanças temporais
plenos do passado e, por fim, d) no da motivação do agir que resulta dessa
orientação. ‘Sentido’ articula percepção, interpretação, orientação e
motivação, de maneira que a relação do homem consigo e com o mundo
possa ser pensada e realizada na perspectiva do tempo. Sentido histórico na
relação com o mundo significa uma representação da evolução temporal do
mundo humano tanto baseada na experiência quanto orientadora e
motivadora do agir. Também na relação do homem com si mesmo, o tempo é
interpretado em consecução, de modo que seja alcançado um mínimo de
consciência do ‘eu’: identidade histórica” (RÜSEN, 2001, p. 155-156).

Desta maneira, podemos verificar que a constituição do pensamento histórico


perpassa a própria narrativa e a busca de dar sentido ao passado. Portanto, há que
ressaltar os itens levantados por Rüsen na referência acima. Eles afirmam os seguintes
princípios: há que existir a consciência de que estabelecemos uma relação com o
passado; de que sempre narramos esse passado e o interpretamos (conscientes ou não de
que o narramos ou interpretamos); a ideia de que esse passado orienta nossa vida prática
atual; e a percepção de que o passado nos dá algum tipo de motivação. A constituição
do pensamento histórico perpassa a própria narrativa e busca dar sentido ao passado
para propor algum tipo de motivação que nos leve a interrogá-lo, interpretá-lo e
26

refletirmos sobre ele a fim de buscarmos transformar a realidade no qual estamos


inseridos no presente.

Rüsen também coloca que “a pesquisa é o processo de constituição narrativa de


sentido, no qual a experiência, presente em todo pensamento histórico, se exprime de
maneira a que essa constituição de sentido adquira determinada relevância cognitiva”
(2001, p. 28). Para o autor:

Essas operações básicas precisam ser explicitadas de forma que a dimensão


comunicativa do saber histórico fique clara. A historiografia pode ser
caracterizada, como um processo de constituição narrativa de sentido, na qual
o saber histórico é inserido (mediante narrativa) nos processos narrativos da
vida humana prática. É nesses processos que o agir humano e a auto
compreensão dos sujeitos se orientam pelas representações das mudanças
temporais significativas (RÜSEN, 2001, p. 43).

Nesse caso, para o autor, as operações básicas precisam ser explicitadas de


forma que a dimensão comunicativa do saber histórico fique clara. Para ele, a
historiografia pode ser qualificada como um processo de constituição narrativa de
sentido na qual o saber histórico é inserido nos processos narrativos da vida humana
prática. Essa carência de orientação nos levará a sempre buscar na História mestra da
vida subsídios que nos permitam entender acontecimentos, temporalidades e os
caminhos e descaminhos que levam a humanidade até onde chegamos.

De acordo com o autor, é nesses processos que o agir humano e a auto-


compreensão dos sujeitos se orientam pelas representações das mudanças temporais. A
obra de Rüsen (2001) nos ajuda a entender a maneira como a História Antiga é
revisitada por autores do século XIX, na construção de um saber historiográfico sobre a
própria Grécia Antiga. E também como a Grécia Antiga era abordada por meio dos
compêndios adotados pelas escolas secundárias oitocentistas.

Para o autor, devemos dar sentido à nossa pesquisa através do nosso itinerário de
análise documental, considerando dois aspectos fundamentais: de um lado, o exame
crítico dos conteúdos dos discursos, os quais se apoiam em uma versão
instrumentalizada da História Antiga que atende, a nosso ver, a objetivos e interesses
particulares do momento da escrita; e, de outro, os artifícios retóricos a partir dos quais
elucidamos de que maneira os conteúdos de História Antiga se relacionam com os
projetos políticos de Nação que se forjavam no início do século XIX – a despeito das
27

dissensões políticas provinciais brasileiras e suas implicações na condução de políticas


públicas educacionais.

Na posição de historiadores, cabe-nos investigar as relações existentes entre o


mundo moderno e o mundo antigo, buscando nos estudiosos um possível caminho que
possa ser percorrido e, de certa maneira, aprofundado. Esses pensadores buscam
repensar a relação entre o mundo moderno e o mundo antigo, analisando a Antiguidade
a partir de sua realidade. Isso nos permite refletir sobre a relação dialética entre o
passado e o presente. Trabalhar a relação existente entre o historiador e as fontes
históricas se faz necessário para entender como funciona a apropriação de textos
clássicos por contemporâneos (e o quanto isso contribui para o desenvolvimento do
conhecimento humano como forma de compor novas pesquisas).

A teoria da recepção rejeita a existência de um texto único, original, objetivo e


fixo que tem de ser examinado como uma forma de arte pura. Em vez disso, na recepção
nós falamos em ‘textos’, no plural, porque, a cada vez que um texto é lido, ele está
sendo recebido e interpretado de uma nova maneira. Isso tem se mostrado de especial
valor para o estudo dos clássicos, em que os textos e a cultura material do mundo antigo
sobrevivem apenas de forma fragmentária. Textos clássicos são em geral incompletos,
controversos, recuperados de uma variedade de fontes e reinterpretados por cada
geração de estudiosos de clássicos.

A recepção dos clássicos concentra-se na forma como o mundo clássico é


recebido nos séculos subsequentes e, em particular, nos aspectos das fontes clássicas
que são alteradas, marginalizadas ou negligenciadas. A diferença entre a recepção e o
estudo da tradição clássica é que a recepção oferece um modelo mais completo do
estudo desse fenômeno, que não prioriza uma leitura canônica do modelo clássico em
detrimento de sua recepção. A recepção é o nosso diálogo com o passado clássico,
independentemente da forma que ele assuma. É como uma conversa de via dupla em
vez de um monólogo priorizando um ou outro lado.

Nessa perspectiva, Anastasia Bakogianni (2016), ao apresentar seu estudo, nos


mostra que uma das direções mais interessantes para onde a discussão sobre a teoria tem
avançado é a de que estamos começando a questionar a relação mais fundamental em
estudos de recepção dos clássicos. Por exemplo, a relação entre texto-fonte A e texto de
28

recepção B. Segundo a autora, anteriormente, a academia tinha se concentrado em


examinar os casos em que a recepção contemporânea reivindicava texto(s) antigo(s)
específico(s) ou artefatos geralmente tidos como modelos.

Ao tratar da questão conturbada existente entre a fidelidade e autenticidade da


fonte após sua apropriação e ressignificação em outras temporalidades, a autora nos diz
que artistas pós-clássicos que reivindicam um texto-fonte têm, muitas vezes, noções
idiossincráticas, distorcidas ou impuras desse texto, enquanto que a fidelidade postula
textos A e B objetivos, que podem ser cientificamente e quantitativamente medidos uns
contra os outros.

Para a autora, devemos trabalhar no sentido de complicar a noção de um texto


fonte “puro” e dissolver os limites rígidos entre texto, recepção, tradição e comunidades
interpretativas. Tais hierarquias platônicas postulam um texto “original” infinitamente
rico, autossuficiente e idêntico a si mesmo, que se reflete, forte ou fracamente, em
trabalhos posteriormente dele derivados. Em vez disso, poderíamos adotar alternativas
pós-estruturalistas, opções como a justaposição (em que textos coexistem lado a lado,
no mesmo plano, e não em relações de prioridade ou dominância, pelo menos na mente
do leitor) ou simulacros (negação de originalidade e autenticidade de Baudrillard em
favor de um sistema em que tudo é igualmente imitativo).

Para a autora, devemos dialogar com os conceitos da disciplina de literatura


comparada, sobre o que o ato da comparação realmente implica, se desejarmos mais do
que simplesmente seguir linhas de influência artística. Temos de problematizar noções
de influência historicista e a necessidade de descobrir as estruturas universais
subjacentes a fim de fundamentar as comparações entre obras antigas e modernas.
Também é importante notar que estamos, atualmente, ampliando nossos interesses em
pesquisa de recepção dos clássicos cada vez mais (BAKOGIANNI, 2016, p. 118-120).

Nesse sentido, a leitura do texto de Bakogianni (2016) colabora para que


aprimoramos nossa reflexão sobre a relação dos textos-fonte – em nosso caso, os textos
relativos à Grécia Antiga, com a forma de apropriação desses escritos por Justiniano
Jose da Rocha, Pedro Parley e Victor Duruy. Ao examinar os casos em que a recepção
contemporânea reivindicava texto(s) antigo(s) específico(s), ou artefatos, geralmente
como modelos abordados em sua pesquisa, a autora mostra que temos de problematizar
29

noções de influência que o leitor exerce sobre determinada fonte e a necessidade de


descobrir as estruturas universais subjacentes a fim de fundamentar as comparações
entre obras antigas e modernas.

Nesse caso, também é importante notar que estamos atualmente ampliando


nossos interesses em pesquisa de recepção dos clássicos cada vez mais. Com isso, a
autora nos possibilita lançar luz sobre os modelos de ensino que estavam sendo
pensados para a elite brasileira no período oitocentista através da análise do conteúdo de
história antiga que era abordado nesses compêndios (e dos conteúdos que, por sua vez,
eram negligenciados nos mesmos).

Para Bakogianni (2016), a crítica tradicional, baseada predominantemente na


materialidade do texto, estimulava estudos que simplesmente verificassem em que
medida textos contemporâneos aludiam ou dialogavam com textos antigos, ou seja,
preocupavam-se em avaliar se havia uma correspondência real ou quão próximo ou
“fiel” o texto de recepção conseguia ser. Como se observa, a pesquisadora busca
explorar em seu texto as diferentes abordagens sobre as questões fundamentais acerca
do estudo da recepção dos clássicos.

Para exemplificar suas escolhas teórico-metodológicas, Bakogianni (2016) nos


apresenta seu estudo sobre as recepções cinematográficas da História Antiga a partir de
Electra. Nas palavras da autora:

Com o meu estudo de caso para ilustrar o meu pensamento teórico e


metodológico atual sobre o que há de tão ‘clássico’ na recepção dos
clássicos, eu escolhi investigar uma recepção cinematográfica mascarada da
antiga história de Electra: O Thiasos (1975), de Theo Angelopoulos. Esta
recepção indireta se compara a outra que está mais intimamente baseada num
texto-fonte antigo: Electra (1962), de Michael Cacoyannis, moldada sobre a
tragédia epônima de Eurípedes. Minha abordagem reflete minha opinião de
que a teoria deve refletir a prática e não o contrário. Eu não acredito em
tentar espremer um estudo de caso na camisa de força de uma teoria; em vez
disso, a teoria e a metodologia devem surgir de considerações práticas que
enfrentamos no estudo de um caso particular de recepção. Deixem-me, em
primeiro lugar, concluir esta parte da minha fala, parafraseando James Porter,
que escreveu que a recepção é “tudo o que existe” (2008, p. 469). Eu diria,
em vez disso, que a recepção é “tudo”: quando estudamos os clássicos, nós
nos tornamos parte do processo contínuo de sua recepção (BAKOGIANNI,
2016, p. 121).

Através da análise do seu objeto de pesquisa, a autora nos apresenta as conexões


com o passado clássico e a apropriação altamente seletiva de mito clássico e de drama
30

ao trazer as formas pelas quais a história de Electra foi adaptada na contemporaneidade.


Isso nos oferece precisamente a visão dos tipos de recepções ‘indiretas’ que são mais
úteis para aqueles que desejam revisitar o problema sobre o que há de tão clássico na
recepção dos clássicos.

Os problemas enfrentados por estudiosos que desejam se envolver mais com tais
recepções disfarçadas levam a importantes escolhas teóricas e metodológicas. Entender
a teoria da recepção é importante por nos permitir perceber que todas as vezes em que
os textos clássicos são lidos, eles são recebidos e reinterpretados de uma nova maneira,
ou seja, eles são lidos de maneira diferenciada por cada autor, tendo em vista suas
influências culturais e categorias de pensamento que se conectam ao espaço e tempo em
que o sujeito histórico está inserido.

Assim, os textos-fonte podem ser alterados, mutilados ou ter seus objetivos


iniciais negligenciados para satisfazer a necessidades daquele que se apropria dessas
fontes. Além disso, de acordo com Bakogianni (2016), a crítica da estética da recepção
concentra-se no protagonismo desempenhado pelo leitor na formulação de significado.
Cada leitor ‘recebe’ um texto de maneira única, dependendo de sua educação,
experiências de vida e interesses pessoais.

Nesse sentido, reconhecemos que a releitura dos textos antigos por Justiniano
Jose da Rocha, Pedro Parley e Victor Duruy passam por ‘filtros de leitura’ que
delineiam a singularidade de seu olhar sobre o passado, tendo em vista as influências
político-culturais do presente deles. É por meio de seu campo de experiências que os
autores projetam suas reflexões sobre a Grécia Antiga e sua escolha sobre os conteúdos
a receberem destaque ou não.

Nesse caso, para fazer uma análise coerente acerca da escrita da História Antiga
nos compêndios de História Universal de Justiniano Jose Rocha (1860), Pedro Parley
(1869) e Victor Duruy (1865), sobretudo no que se refere ao conteúdo destinado à
Grécia Antiga, é importante reconhecermos essa singularidade advinda de cada autor ao
escrever sua obra, assim como também atentarmos para os tradutores dessas obras para
a língua pátria. Dessa forma podemos perceber os interesses por trás dos conteúdos
considerados de maior destaque por nossas fontes em detrimento de outros que são
negligenciados, como no caso o conteúdo referente à democracia ateniense.
31

1.2 Usos, limites e interesses da escrita da História Antiga nos


compêndios de História Universal

Para iniciar essa discussão sobre os usos do conhecimento do passado como


formas justificadoras e legitimadoras de poder, Glaydson José da Silva ajuda-nos a
pensar sobre esta temática ao analisar os usos dos estudos sobre o mundo antigo pelas
extremas direitas francesas como forma de estabelecer compreensões do mundo
contemporâneo visando a legitimação de direitos advindos da ideia de origem. O autor
propõe uma reflexão acerca do papel do passado nos jogos de estratégia e afirmações
indentitárias com base na instrumentalização levada a termo pelos grupos analisados em
sua pesquisa.

Sua obra gira em torno de investigar como, na atualidade, acontece a utilização


da História do Mundo Antigo como instrumento legitimador do ideário de círculos
como a GRECE3, de grupos políticos, especialmente os de extrema direita, como o
Front National4 e de grupículos em torno da revista Terre de People, trazendo o caso da
França, um país de longa tradição nos estudos sobre a antiguidade, onde o ensino de
História durante um longo período era baseado em um ideário de Estado Nação e onde
sua historiografia sempre manteve presente o estudo acerca do Mundo Antigo, dando
espaço para que este estudo pudesse desempenhar um importante papel nos jogos
políticos. Para Silva:

Essa instrumentalidade do Mundo Antigo é um dos grandes pilares da


sustentação das propostas xenófobas e racistas dos grupos em questão.
Compreender essas apropriações e instrumentalidades requer pensar esses
grupos no seio de sua formação percebendo-os e ligando-os à sua origem à
matriz direitista do Pós segunda Guerra mundial na França (SILVA, 2007, p.
100).

Ao analisar os usos do passado pelas extremas-direitas francesas como forma de


estabelecer ligações entre o conhecimento do Mundo Antigo e as compreensões do

3
O Groupement de recherche et d’études pour la civilisation européenne (agrupamento de pesquisa e
estudos para a civilização europeia) é também conhecido pela denominação midiática Novelle Droite. E,
é na visão de seus fundadores, uma sociedade de pensamento com vocação intelectual, que foi fundada
em 1969 e seus membros são ligados nacionalismo europeu.
4
A Front National é um partido político francês de extrema direita e de caráter protecionista, conservador
e nacionalista que foi fundado em 1972 com o intuito de unificar correntes nacionalistas da época.
32

mundo contemporâneo, o autor nos possibilita refletir sobre a maneira como a


instrumentalização do passado pode se tornar uma arma de grande valia para uma
determinada classe ou grupo político.

De acordo com o autor, os estudos sobre o presente, que tiveram como escopo o
mundo antigo, evidenciaram e evidenciam um caráter marcadamente discursivo a
respeito da Antiguidade, que, por vezes, foi inventada para atender aos interesses
daqueles que reivindicavam certa herança antiga, os seus beneficiários.

Segundo o autor, de Renascença em Renascença a Europa inventou todas as


sortes de Antiguidade. Tendo como recorte temático o universo político direitista na
França das últimas décadas, tem-se por objetivo nesse texto analisar a presença da
Antiguidade no discurso político das extremas-direitas como forma de legitimação de
direitos (políticos), advindos dos direitos (étnicos) de origem.

A ascensão dos grupos políticos de extrema direita na Europa é um fenômeno


político de desenvolvimento marcado, principalmente, pelo contexto do pós-Guerra,
intensificado pela década de 1980 e pela queda do Comunismo. De designações
diversas, esses grupos de radicalização política comumente aproximaram-se e se
aproximam, em suas propostas, de vertentes nacionalistas (e, mesmo, europeístas) e
xenófobas (SILVA, 2007, p. 98-99).

No desenvolver de sua pesquisa, o autor nos mostra que a Antiguidade Clássica


(mas não só ela), não raro esteve na origem das justificativas dessas propostas racistas e
xenófobas. No caso da França, objeto de seu estudo, os usos do passado indo-europeu,
grego, romano e gaulês atenderam e atendem a uma certa instrumentalidade política por
parte de círculos como o GRECE, dos partidos nacionalistas como o Front National e
grupúsculos direitistas como o articulado em torno da revista Terre et Peuple. Segundo
ele, na atualidade, a utilização da História do mundo Antigo como instrumento
legitimador do ideário de grupos políticos, particularmente grupos políticos conhecidos
como de extrema-direita, é algo recorrente e que dispõe, ainda, de poucas produções
científicas especializadas a respeito.

Na França, país de longa tradição na área dos estudos da Antiguidade, onde o


ensino de História foi fortemente determinado pelo ideário do Estado Nação, a produção
historiográfica acerca do mundo antigo sempre esteve presente e desempenhou grande
33

papel nos jogos políticos. Isso em parte pelo lugar privilegiado que os estudos do
mundo antigo ocupam nas sociedades ocidentais, de modo geral, mas, também, devido
às possibilidades de paralelos que a História da Antiguidade pôde e pode oferecer às
sociedades modernas, hoje.

Silva (2005) propõe uma reflexão acerca do papel do passado nos jogos de
estratégias e afirmações indentitárias, à medida que percebe os estudos sobre
antiguidade muito próxima das representações coletivas na contemporaneidade. Com
isso, o autor nos possibilita refletir sobre essa relação entre antiguidade e
contemporaneidade ao estabelecer algumas considerações teóricas acerca das relações
existentes entre a antiguidade e o mundo moderno, entre o passado e o presente na
escrita do Mundo Antigo.

Em sua obra o autor traz como exemplo o Império Romano, que muitas vezes é
trabalhado com o objetivo de construir um ideal de pertencimento a um determinado
território ou nação. Ao se referir ao Império Romano, o autor nos mostra que:

Justificador dos impérios modernos, o Império Romano ajuda a construir os


pertencimentos, as identidades, as nacionalidades, em universo de
empréstimos simbólicos, sentidos construídos e interpretações falseadas, em
muitas tentativas das nações europeias de estabelecer ‘passados apropriados’
[...] Ao perpetuarem algumas recriações como se sempre tivessem existido na
memória nacional, os grupos sociais têm sempre por objetivo estabelecer
uma continuidade em relação ao passado histórico, tanto étnica como,
também, de algumas instituições. A ideia de valores transmitidos liga-se,
assim à evocação de uma certa ancestralidade, de uma antiguidade da nação e
de seus valores, perpetuada nas imagens da vida nacional com o objetivo de
forjar identidades, pelo uso da ideia de permanência (SILVA, 2007, p. 36).

Isto é, os modernos, ao perpetuarem algumas recriações do mundo antigo como


os exemplos do Império Romano para justificar seus impérios buscam perpetuar
algumas definições como se estas definições ou formas de se conceber o mundo sempre
tivessem existido na história da humanidade, produzindo assim uma continuidade entre
o passado histórico e o presente. A ideia de valores está amplamente ligada à de uma
ancestralidade, perpetuada nas imagens da vida nacional com o objetivo de forjar
identidades pelo uso da ideia de permanência.

Para Martin Bernal (2005), as interpretações do mundo grego foram


fundamentais para a construção de discursos de poder da Europa sobre outras partes do
mundo na virada do século XIX para o XX. Segundo ele, estes discursos contribuíram
34

para questionar a ideia de neutralidade dos estudos do mundo Antigo, noção muitas
vezes reforçada pela distância temporal entre Modernidade e Antiguidade. Ao retirar os
estudos clássicos da “torre de observação” e de seu suposto isolamento, o autor nos
mostra como esse pretenso afastamento é uma atitude política, pois os estudos clássicos
nunca foram isentos dos momentos históricos nos quais foram produzidos, constituindo,
portanto, parte de discursos de dominação.

Ao refletirmos sobre essa questão, podemos dizer que este pensamento nos ajuda
em nosso estudo, pois nos permite compreender a exaltação de alguns conteúdos de
História Antiga e os critérios para a seleção destes conteúdos escolares que compunham
os compêndios de História Universal para a educação secundária no Brasil no período
oitocentista. A seleção do conhecimento referente à Antiguidade não é, como se nota,
um procedimento neutro e arbitrário. Pelo contrário, a memória histórica fabricada por
tais narrativas exercem um papel político significativo como instrumento legitimador da
ordem social vigente no interior da qual o passado é domesticado para satisfazer a
interesses e objetivos do presente. De acordo com o autor:

O mundo Antigo facilmente é representado e lido em meio às características


dos regimes autocráticos europeus. Autorizando e desautorizando práticas.
Legitimando. Enfim, servindo como espelho da honra, poder e glória das
nações e da megalomania de seus líderes (SILVA, 2005, p. 69).

O autor nos faz refletir em que medida o passado clássico pode ser
‘domesticado’ por historiadores contemporâneos a fim de satisfazer interesses e
objetivos de grupos sociais no poder. O estudo destaca a importância das apropriações
do passado clássico na construção de um ideário de nação e de sociedade, onde os
discursos sobre o passado ou suas representações se tornam instrumentos de
fundamentação de práticas políticas por parte de grupos no poder. O estudo das relações
entre a Antiguidade e o mundo contemporâneo, entre o passado e o presente na escrita
da História do mundo antigo tem sido, desde então, objeto de inúmeros estudos, e tem
contribuído para o desenvolvimento de uma História Antiga que se pretende mais
problematizado.

Sendo assim, deve-se destacar o que nos diz Bonfá (2016), quando fala que
consecutivamente no tempo presente utilizamos de conceitos que remetem à
Antiguidade para batizar objetos novos, com o intuito de lhes dar grandeza por meio de
35

uma construção ideológica do Ocidente. O mais comum neste processo de busca do


passado são as reivindicações do passado correspondente à Antiguidade Clássica, com a
ideia de pertencimento ou legado da Grécia e Roma Antigas.

É preciso destacar que os próprios “antigos” também manifestavam admiração


pelo seu passado. Na mitologia, reproduzida também de forma oral, os antigos gregos
contavam as histórias sobre o passado que lhes interessava que fosse passada as
gerações seguintes. Essas histórias, num primeiro momento, eram transmitidas levando
em conta, dentre outros aspectos, as próprias funções da tragédia.

Os helenos tomavam como exemplos os heróis Homéricos como Aquiles,


Agamenon, Menelau, Odisseu, Heitor, Páris, Enéias (presentes nas obras Ilíada e
Odisseia). E, muito embora haja, no campo da história, inúmeros debates sobre a autoria
dos textos5, as narrativas Homéricas sobre o passado trazem consigo pistas sobre o que
era de interesse de ser contada sobre essa importante civilização. Isso nos leva a
perceber a existência de um interesse em conhecer o passado como forma de integração
entre passado e presente.

Para Norberto Luiz Guarinello6, a história chamada Antiga faz parte do


repertório cultural dos brasileiros. Por esse motivo, a História Antiga não deveria ser
ensinada apenas nas escolas, nos ensinos fundamental, médio e superior, representada
por muitos brasileiros como uma espécie de História das nossas origens como cultura e
civilização. Ela deveria ser vista, com maior ou menor conhecimento, como um ponto
inicial de uma jornada que, através da História Medieval, da História Moderna e da
História contemporânea produz sentido ao processo de colonização europeia que nos
formou e nos transformaram em descendentes da Europa, em membros do Ocidente,
participantes da civilização Ocidental.

Para o autor, de modo geral, vemo-nos como ocidentais e o Egito, a


Mesopotâmia, Grécia e Roma parecem-nos mais próximos que as Histórias de outras
sociedades antigas, tais como China, Índia, sociedades nilóticas da África Central e do
5
Com base nos indícios ora disponíveis, podemos concluir que a poesia de Homero devia estar ligada a
uma tradição de poesia oral existente na era micênica. Porém a Ilíada representa aquilo que ele achava
que tina sido o mundo heroico: em outras palavras, Homero tomou o que a tradição oferecia e plasmou na
Forma da Ilíada de acordo com as suas próprias suposições culturais e prioridades de narrativa épica oral.
(Ver de forma mais aprofundada em HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço: SP: PENGUIN, 2013.
Canto I).
6
Ver GUARINELLO, Norberto Luiz. A História Antiga. 2008, p. 7.
36

Sul, entre outras. Por isso asseveramos que a construção da identidade cultural
ocidental, no interior da qual a elite brasileira pretendia figurar no século XIX, fora, em
grande medida, forjada por um discurso que, no âmbito literário, vincular-nos-ia à
chamada “herança clássica” (FARIAS JÚNIOR & LIMA, 2019).

Cabe destacar que, sob a ótica eurocêntrica, a História Antiga nos ocidentaliza,
isto é, insere-nos numa linha do tempo que nos torna, de certa forma, herdeiros da
Grécia, de Roma e do chamado Oriente Próximo, que se tornou um campo de
investigações arqueológicas no transcorrer do século XIX. É com base nesta divisão
tripartite da História Antiga, reproduzida ainda hoje em cursos de graduação e pós-
graduação, que nos tornaríamos sucessores da História Medieval, porquanto a História
do Brasil, particularmente sob a ótica de grande parte dos historiadores do século XIX,
torna-se um ramo da História europeia nos tempos modernos, uma vez que nosso
território foi colonizado pelos portugueses a partir do século XVI (GUARINELLO,
2003).

Podemos ver reflexos desse processo de colonização e de escrita da história no


compêndio de História de Justiniano José da Rocha quando o autor nos fala que:

O homem não foi lançado neste mundo como os animaes que nelle nascem,
pastam, morrem, sem outras preocupações além das do presente, sem outros
cuidados que não os do obedecer aos instinetos materiaes que os pungem.
Ente moral e intelleclual, herda elle todo o passado, procura assenhoreiar-se
pela conjectura de todo o porvir, aprende na sorte dos que o precederam,
procura modificar a condição dos que lhe suecederem. Nos poucos dias que
tem de passar neste valle de expiação, o homem como que vive tríplice vida,
a dos tempos que são, a dos que foram, a dos que hão de ser, e nessa tríplice
vida absorta a sua individualidade, desapparece elle homem; substitue-se-lhe
a humanidade. E' essa a nossa condição gloriosa; na familia, na nação, nos
impulsos do nosso coração, nas aspirações de nossa intelligencia, achamos
essa lei, aprendêmol-a, applicamol-a, e por isso a historia da humanidade tão
activamente desperta a nossa curiosidade, preoecupa a nossa attenção. Nesse
pó das gerações que foram, queremos saber dos seus erros, dos seus
soffrimenlos, de suas virtudes, de suas glorias; é patrimônio nosso a que não
renunciamos; se lhe renunciássemos, não seriamos homens (ROCHA, 1860,
p. 15).

No fragmento anterior, podemos perceber essa ideia de pertencimento à cultura


ocidental e o cuidado do autor em construir uma ideia de pertencimento a um passado
ligado ao presente e, ainda, a possível influência do passado na formação de uma
sociedade a ser construída no porvir. Essa ideia, reproduzida no compêndio de
Justiniano Jose da Rocha, nos mostra o interesse do autor sobre a escrita da história da
37

humanidade. Notamos também que o autor, ao tratar da História Antiga, nos diz que ela,
“apesar de seus erros”, oferece guias para o conhecimento da história da humanidade.
Seus sofrimentos, suas virtudes e suas glórias são legados aos quais os homens não
devem renunciar.

De certa forma, a própria concepção de História Antiga traz consigo uma visão
europeia da História, apresentada pelo autor num modo de ver a História do ponto de
vista do olhar do europeu que influencia a escrita da história no Brasil. Isso traz uma
visão muito particular da História. O ponto de vista do europeu, nesse caso sobre a
História Antiga, é o que mais se destaca como natural e universal. Para Goody:

O problema do eurocentrismo é ampliado pelo fato de uma visão particular


de mundo produzida na Antiguidade europeia, cuja autoridade foi reforçada
pelo uso extensivo do sistema de escrita grego, ter sido apropriada e
absolvida pelo discurso historiográfico europeu, produzindo uma cobertura
aparentemente cientifica de uma variante comum (GOODY, 2008, p. 116).

Devemos atentar que essa autoridade reforçada através do discurso


historiográfico europeu, através da legitimação de sua forma de ver o mundo, não é
inocente. Ela traz consigo marcas de poder e objetivos a serem alcançados. A
historiografia europeia do século XIX esforçou-se para produzir uma memória do
‘Ocidente’ que explicava e justificava, por exemplo, o domínio dos países capitalistas,
mais desenvolvidos tecnologicamente, sobre o restante do globo (haja visto o processo
de colonização europeia por sobre países do continente africano, asiático e mecanismos
de influência econômica e cultural em países do continente americano (GOODY,
2008).).

O importante exercício desse debate sobre as formas de apropriação do saber


clássico na contemporaneidade requer que nos dirijamos para o papel ideológico
desempenhado pela História Antiga ao longo de toda a Era Moderna. Assim sendo,
podemos dizer que o apelo ao passado teria sido uma tentativa de legitimar atos
políticos dos dominadores perante os povos que eles denominaram e subjugaram como
bárbaros. Desse modo, o conhecimento acabava, por sua vez, servindo aos interesses
dos impérios europeus do século XIX.

Nesse período, o passado greco-romano foi retomado, recriado, reinterpretado,


sempre visando o poder sobre as populações nativas. O exercício do conhecimento
38

sobre a História Antiga, feito nos moldes tradicionalistas, como Histórias separadas
abordadas em sucessão, atuava de forma conjunta para a contemplação e compreensão
dos textos considerados ‘clássicos’ escritos em língua latina e grega. Nas palavras de
Guarinello7, participar dessa cultura ilustre, de difícil aprendizado, legitimava a
superioridade das elites na Europa e no Brasil. Além disso, a construção da memória do
“Ocidente”, comprometida com formação de uma suposta identidade ocidental, serviria
para explicar e justificar o domínio dos países capitalistas sobre os outros países.

De acordo com Goody (2008), na escrita do século XIX a Antiguidade teve de


ser apartada de seus predecessores na Idade do Bronze, que caracterizou Grécia e Roma
como algumas das cidades asiáticas mais importantes. Para ele, alguns aspectos da
Antiguidade, de forma especial, os aspectos econômicos como comercio e mercado, que
ao longo do tempo marcariam o capitalismo, são subestimados para marcar uma grande
distinção entre as diferentes fases que conduzem ao presente. Em suas palavras o autor
defende que:

A economia (ou sociedade antiga) deve ser entendida como parte de uma
grande cadeia de intercâmbio econômico e político centrada no Mediterrâneo
[...] essa economia não constituiu um tipo puro e distinto como muitos
historiadores europeus pensam; fatos históricos foram adaptados para caber
em um molde teleológico e eurocêntrico (GOODY, 2008, p. 37).

O que entendemos na contemporaneidade por Antiguidade tem suas origens em


Grécia e Roma; esta é, em grande medida, a narrativa mais sustentada pela maioria dos
historiadores do chamado período clássico. Contudo, podemos perceber através do
fragmento anterior que houve adaptações relativas a esse período que tinham o intuito
de adequar a escrita da História Antiga aos moldes teleológicos e europeus.

De acordo com Pedro Paulo A. Funari e Renata Senna Garraffoni, o século XIX
é considerado, por muitos pesquisadores, como um século de fundamental importância
no processo de criação de diferentes maneiras para representar a relação do homem com
o passado. Em seu escrito, Funari & Garrafoni (2004) citam como exemplo de análise a
difusão do romance, da pintura histórica e a criação de museus que se constituem como
elementos fundamentais na concepção das identidades nacionais. Além disso, nesse
processo, a História e a Arqueologia desempenharam um importante papel em um

7
Ver GUARINELLO, Norberto Luiz. A História Antiga. 2008 pág. 27.
39

contexto de expansão europeia, onde os intelectuais buscavam nos romanos e nos


gregos as referências para a criação do conceito de cultura Ocidental e estabeleceram o
Egito e a Mesopotâmia como base de conceito para a cultura Oriental.

Atualmente existem vertentes interpretativas que questionam essa forma


tradicional de concepção do mundo antigo. É de fundamental importância rever esses
ideais e libertar o helenismo desta imagem de superioridade ocidental e agressão
justificada. Esta revisão de conceitos e interpretações tem produzido outras e novas
interpretações das relações estabelecidas entre os povos que viveram nesse momento e
as manifestações culturais que se formaram (FUNARI & GARRAFFONI, 2004).

Para Goody (2008), durante a Idade do Bronze, há cerca de 3.000 a. C, a Eurásia


viu o desenvolvimento de inúmeras “civilizações” novas, no sentido técnico de culturas
urbanas baseadas no avanço da agricultura de arado, na roda, e às vezes, na irrigação.
Essas civilizações desenvolveram uma vida urbana e uma atividade artesanal
particularizada, incluindo formas de escrita, começando assim uma ‘revolução’ nos
modos de comunicação e nos modos de produção.

Essas sociedades muito estratificadas produziram formas culturais


hierarquicamente diferenciadas no vale vermelho da China, na cultura harappan no
norte da Índia, na Mesopotâmia e no Egito e, mais tarde, em outras partes do crescente
fértil do Oriente Médio, assim como no leste europeu. Nas palavras do autor, houve
desenvolvimento paralelo por toda parte dessa vasta região e houve alguma
comunicação. As civilizações antigas desenvolveram-se paralelamente e mantinham
pontos de contato e relações que, por sua vez, influenciavam o desenvolvimento da
cultura e do comercio entre os diferentes povos. Além disso, existia o intercâmbio
cultural provocado pelas guerras entre essas diferentes regiões.

Através da narração das guerras de conquista, os historiadores antigos estudam


a melhor maneira de arquitetar uma relação entre o eu e o outro que está posto a um só
tempo como objeto de conhecimento e sujeito sobre o qual se pode exercer influência.
A conquista de territórios pela guerra no mundo antigo sem dúvida ganha bastante
destaque na escrita da história do século XIX. O autor Pascal Payen nos mostra que:

Para os antigos e para os modernos, o esforço de conquista, sua natureza, sua


amplitude, seus meios, sobretudo suas consequências, constituem um
problema em relação ao qual – como se vê em Heródoto – o historiador se
40

engaja e toma a palavra em primeira pessoa (hèmin ho logos, grapsô). Essa


tradição historiográfica, como podemos observar, na antiguidade em outros
grandes historiadores da conquista – Polibio, Tito Lívio ou Arriano –, não
desaparece quando a História é construída e pensada como ciência na Europa
do século XIX (PAYEN, 2008, p. 12).

Podemos perceber, através do fragmento anterior, que tanto para os antigos


quanto para os modernos, a literatura antiga que tratava do esforço de conquista, sua
natureza, amplitude, meios e consequências relatadas por historiadores da antiguidade,
não desapareceram quando a história foi construída e pensada no século XIX.
Percebemos que um problema no percurso da historiografia dos antigos e modernos, a
respeito de como narrar a história dos povos antigos ou determinados fatos históricos,
consiste no fato de o historiador, percebendo ou não, entrar em algumas armadilhas
perigosas da analogia e do anacronismo. Notamos um exemplo dessa prática quando
Justiniano Jose da Rocha escreve:

Ainda bem, quanto á história antiga: Tito Livio e Tácito, Herodoto e


Thucydides, ainda nos seus erros, otferecem a compensação do seu estylo,
das suas longas vistas, e do conhecimento do coração humano. Mas para os
períodos mais recentes, onde nos faltam esses guias, que compensam os seus
erros com as suas bellezas litterarias, as difficuldades recrescem, a confusão é
insuperável. O trabalho da critica deve, pois, aqui ser indefesso; cumpre-lhe a
todo testemunho oppôr a mais seria discussão, sob pena de expôr-se a dar os
foros de verdade á mentira, nem sempre innocente (ROCHA, 1860, p. I- V).

É possível perceber de forma clara, no fragmento anterior, a visão de mundo do


autor marcada pela singularidade de seu olhar, assim como também sua concepção
sobre as formas de pensar a antiguidade marcada por uma visão nesse momento
marcada pelo anacronismo. Esses caminhos perigosos marcados pelo anacronismo e
pela analogia, muitas vezes levam o historiador a explorar o jogo da troca de problemas
em seu objeto de estudo como questões cruzadas entre o passado e o presente. Podemos
perceber isso de forma clara no fragmento anterior. Essa relação entre passado e
presente muitas vezes carrega distorções referentes ao olhar do historiador sobre as
fontes.

Na busca por averiguar a escrita da história antiga nos compêndios brasileiros no


período oitocentista, podemos dizer que os direcionamentos indicados por Payen (2009)
nos possibilita um maior entendimento sobre nossa investigação – que gira em torno de
analisar a escrita da História Antiga nos compêndios de História Universal. Ao longo de
nossa investigação buscamos mapear a singularidade do olhar de Justiniano Jose da
41

Rocha, Pedro Parley e Victor Duruy sobre o mundo antigo e, de forma mais objetiva,
sobre a democracia ateniense, tomando como ponto de referência os direcionamentos
que os autores nos oferecem e os moldes de escrita que ganhavam cada vez mais espaço
no século XIX.

Buscando refletir sobre esses limites rígidos entre texto, recepção e comunidades
interpretativas, podemos dizer que o nosso estudo se insere no âmbito da investigação
sobre os usos do passado por meio de reflexões que perpassam a noção de textos-fonte
puro e “verdadeiro” através da tradução e adaptação referente ao conteúdo de Grécia
Antiga e, por meio da análise dos discursos presentes/ausentes sobre a democracia
ateniense nos compêndios de História Universal já citados anteriormente, sobre a
relação entre o passado e o presente, o que torna possível interrogar os efeitos e as
fortunas dessa tradição, os modos pelos quais foi recebida, apropriada e reproduzida,
possibilitando um outro olhar sobre os diferentes projetos letrados e políticos.

Em nossa pesquisa - que gira em torno perceber como a antiguidade, mais


especificamente o conteúdo de Grécia Antiga, referente a democracia ateniense século
V a. C é ressignificada nos compêndios de História Universal de Justiniano Jose da
Rocha (1860), Pedro Parley (1869) e Victor Duruy (1865) analisados em um momento
de construção de projetos políticos em que o governo Imperial buscava unificar o país
em torno de um ideário de nação - a presença do termo “clássico”, longe de ser gratuita,
é uma forma de remeter o leitor, logo de início, a uma série de valores que o definiam
aos olhos de parte da sociedade do final do século XIX: delicadeza, nobreza,
durabilidade, distinção. Valores que são sintetizados em nomes e obras oriundos da
tradição greco-romana, cujo domínio era uma condição para pertencer à “fidalguia” e
aos espaços sociais a ela inerentes (TURIN, 2015).

Na educação pública brasileira, estudar as civilizações antigas sob a influência


dos postulados culturais e políticos europeus, sobretudo franceses, se fez sentir com
força e intensidade ao longo do período Imperial. Esse fato é facilmente constatado
quando se trata do ensino secundário. Apesar de outros modelos, como o norte-
americano, também influenciarem a organização legislativa da educação brasileira, a
França era a principal referência inspiradora para aqueles envolvidos na definição dos
pormenores da rede de instrução pública. De acordo com André Luiz C. Tavares:
42

De forma geral, entre a metade do século XIX e as primeiras décadas do


século XX, a estrutura e conteúdo dos manuais e compêndios didáticos das
redes de instrução pública dos países europeus ocidentais eram norteados não
só por certos princípios políticos (democráticos e republicanos) e
pedagógicos, mas seus textos também são fortemente influenciados pelas
“tradições inventadas”, principalmente aquelas elaboradas por Estados ou
grupos e movimentos sociais organizados (as chamadas tradições inventadas
“oficiais”) (TAVARES, 2012, p. 44).

O aparecimento e desenvolvimento dessas “tradições inventadas” estão


fortemente vinculados às rápidas e significativas transformações políticas e sociais que
essas nações vivenciaram a partir do século XIX. Essas transformações motivaram, por
sua vez, a elaboração de novos mecanismos e valores que assegurassem uma nova
identidade e a coesão social diante do surgimento desses novos quadros de relações
sociais da época não mais sustentados pelas formas tradicionais de governo ou pelas
determinações das antigas hierarquias sociais e políticas específicas de épocas
anteriores.

Nas chamadas tradições inventadas “oficiais”, o conteúdo referente ao estudo da


antiguidade em território brasileiro carregava consigo as intencionalidades no projeto de
governo pensado para a elite que viria a galgar cargos públicos no Estado. A
Antiguidade Clássica, no período oitocentista, tornou-se um dos mais importantes
“núcleos” desse novo universo descrito nos compêndios didáticos históricos do Ensino
Secundário, com uma função e importância ímpar nas narrativas dos povos do Mundo
Antigo.

A disciplina escolar passou a ser entendida como uma ciência fundamental para
o desenvolvimento de qualquer nação e de seu corpo de cidadãos. Mas, essencialmente
voltada para a análise das ações coletivas, essa “ciência do passado” apresentava uma
conotação muito específica e particular, pois deveria evidenciar, num sentido
marcadamente positivista, o conjunto de “verdades” ou “leis” universais, imutáveis e
indiscutíveis presentes no desenvolvimento político, econômico e social de cada
civilização do passado. Essas “leis históricas”, consolidadas ao longo da trajetória
histórica de cada civilização, eram entendidas como marcas indeléveis de cada povo e
inquestionáveis fontes de ensinamentos que, geralmente, edificaram e deveriam
continuar edificando todo o mundo ocidental contemporâneo (TAVARES, 2012).
43

Em outras palavras, havia a convicção de que o passado era regido por leis e
movimentos civilizatórios amplos, que acabariam por definir, ao longo dos séculos, as
particularidades do mundo ocidental. Dessa forma, segundo Tavares (2012), não
devemos perceber a produção do conhecimento histórico dessa conjuntura como um
mero registro do que aconteceu no passado, mas sim como uma disciplina (ou ciência)
que contraiu um elevado grau de instrumentalização, adaptada e subordinada aos
interesses e anseios de seus idealizadores, permeada pelas ressignificações do passado e,
muitas vezes, corroborada na crença de que os documentos e fontes textuais eram uma
mera transparência do passado, um meio de acesso direto aos acontecimentos e
personagens escolhidos e estudados. Nas palavras do autor:

Dentro desse léxico, a busca das “leis do passado” deveria indicar o caminho
para o “progresso” e para a “modernidade”, fundamentos e conceitos
formadores da pedagogia iluminista e do conceito de desenvolvimento social
positivista de “civilização”. Essa forma de se entender a função e o papel da
ciência/disciplina História acabou condicionando toda a produção histórica
do período, em especial a elaboração dos textos históricos didáticos, e
provocou a formação e propagação de uma “História da Civilização” nos
compêndios didáticos que tinha como objetivo principal a demonstração da
existência de processos históricos de longo prazo que resultaram, segundo
seus autores, nos estágios contemporâneos de “atraso” ou de “modernidade”
apresentados por certos países ocidentais (TAVARES, 2012, p. 49).

As contradições entre os discursos predominantes sobre o que seria considerado


“atraso” e “modernidade” no período em questão considera, a nosso ver, um modelo de
escrita da História que traz consigo o objetivo de legitimar a superioridade das
civilizações ocidentais, sobretudo Grécia e Roma na escrita da história europeia.

No Brasil, esse discurso é ligado ao projeto de desenvolvimento acelerado que


seduzia o país a construir uma “nação moderna” e que por sua vez atraiu um
contingente expressivo de letrados brasileiros que pregavam uma ampla reforma
cultural e educativa – condição indispensável para que o país pudesse alcançar o
‘primeiro mundo’. Isso ocasionou uma distorção das fontes antigas que passavam a ser
utilizadas para exaltar pontos da cultura de determinados territórios e a inferiorizar as
demais culturas que permeavam o mundo antigo no mesmo período e dialogavam com
as culturas consideradas superiores, a saber, Grécia e Roma.

Essa discussão sobre os usos do passado como instrumento legitimador para


escolhas do conteúdo referente à Antiguidade na busca de modernizar o Brasil nos
44

auxilia a compreender melhor o nosso objeto de investigação. Sobre essa questão a obra
de Cortez & Souza (2004) nos ajuda em nossa reflexão sobre o ensino brasileiro no
século XIX quando nos diz:

Aqui no Brasil, a ideia de sociedade futura foi especialmente acentuada; só


que ao contrário do movimento francês, em que essa utopia estava calcada de
alguma forma mais abstrata ou normativa de progresso, as políticas
educacionais procuraram, como é sabido, adequar a escola brasileira a
imagens concretas e recorrentes que espelhavam o presente de países que,
assim se acreditava, tinham conseguido simultaneamente civilização e
riqueza (CORTEZ & SOUZA, 2004, p. 26).

É possível perceber que a escola brasileira moderna deveria ser espelhada nas
civilizações que fossem consideradas desenvolvidas e detentoras de riqueza, de onde
tomamos como exemplo as civilizações europeias. O ensino secundário do país nos
oitocentos, que era predominantemente voltado para a elite, estava comprometido com a
formação de uma elite letrada cuja característica distintiva versava sobre uma formação
humanística inicialmente nos moldes do modelo francês, que concebia a Europa como
referência ao processo civilizacional.

Nesse sentido, partimos do pressuposto de que os autores de manuais didáticos


europeus, sobretudo franceses, que foram traduzidos e adaptados por historiadores
brasileiros, membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, reproduziam como
verdade histórica, isto é, como restituição do passado clássico, aquilo que é, a nosso ver,
retórico, ou seja, produto da manipulação de acontecimentos históricos com a finalidade
de referendar determinados posicionamentos político-culturais do presente.

Nesse caso, para nós, compreender qual o papel da história antiga e como ela era
ressignificada na construção desse ideário de nação e de sociedade, nos permite um
melhor entendimento sobre como eram construídos os compêndios escolares que
deveriam ser utilizados por alunos que em seguida se tornariam a massa pensante do
país, apta a galgar cargos públicos do Estado.

O mundo antigo era ressignificado por esses autores que traziam a singularidade
de seu olhar sobre as fontes antigas e a relação existente entre o passado e o que se
pretende deixar como memória sobre a antiguidade para o presente. Isso nos faz
perceber que a escrita sobre Grécia Antiga é marcada por discursos referentes a
45

posicionamentos político-ideológicos que no decorrer do período oitocentista atendem


aos grupos políticos que estão no poder.
46

1.3. A escrita da História Antiga no século XIX e a influência do IHGB


para o ideário de construção da identidade nacional

Para aprimorar nossa discussão sobre a escrita da História Antiga no século XIX
e seus usos e interpretações pelos historiadores do período, em grande medida membros
do IHGB, precisamos trazer à tona pontos considerados importantes para entender como
a escrita da história Antiga no Brasil nos oitocentos era construída e legitimada por um
grupo de letrados pertencentes ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que tinham
como função recriar um passado glorioso para a nação e buscar no mundo antigo o
escopo necessário para validar suas predileções.

Perceber como era concebida a escrita da história do Brasil nos oitocentos, nos
faz refletir sobre a construção dessa narrativa realizada por autores que traziam em seus
textos uma escrita que tinha como base de análise os modelos Positivistas e
Historicistas. O modelo positivista que nasceu na França, no século XIX, deriva do
pensamento Iluminista francês e tem como principal fundador Auguste Comte. É uma
corrente filosófica inspirada no ideal de progresso contínuo da humanidade.

O historicismo, de maneira geral, é a prática de uma escrita da história que tem


suas raízes nos escritos de Hegel, um dos mais influentes filósofos do século XIX.
Costuma-se relacionar o termo historicismo com o apogeu atingido pela história
cientificista do século XIX, da qual muitos dos membros do IHGB tomam como base
para fundamentar seu pensamento.

Essas duas correntes influenciaram os pensadores do Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro que acreditavam na ciência como principal meio para se chegar
ao progresso. Entre esses pensadores acreditava-se que através de uma “correta”
interpretação do passado poderia ser alcançada uma espécie de segurança a respeito dos
acontecimentos que estavam em curso e, portanto, corrigir e interferir sobre eles. Isto é,
a escrita da história marcada pelo viés positivista e historicista traz a busca pela
“verdade” na escrita da história.
47

Pascal Payen em sua obra Conquete et influences culturelles. Ecrire l’histoire de


lepoque hellenistique au XIX e siecle (Allemagne, Angleterre, France)8 discute a
influência das narrativas de conquista do mundo helenístico no século XIX tomando
como exemplo de investigação as principais guerras do mundo antigo, seus heróis
(vencedores), estratégias de guerra, causas e consequências que foram abordados pelos
historiadores da antiguidade e as possíveis interpretações dessa escrita da história por
historiadores dos países europeus Alemanha, Inglaterra e França ao longo do XIX.

Sobre a forma de conceber a escrita da história, Payen (2008) ao trazer as


narrativas de conquista, aborda as concepções de escrita da história no mundo antigo
que ocasionalmente serviram de marco para os seus sucessores e para a escrita da
história europeia no século XIX. Segundo ele:

Chez les Anciens comme chez les Modernes, l'entreprise de conquete, sa


nature, son ampleur, ses moyens, ses consequences surtout, constituent un
probleme a propos duquel l'historien, on le voit avec Herodote, s'engage et
prend la parole a la premiere personne. Cette tradition historiographique, que
l’on peut suivre, dans l'Antiquite, chez d'autres historiens de la conquete,
Polybe, Tite-live ou Arrien, ne disparait pas, lorsque l'histoire est construite
et pensee comme science, dans l'Europe du XIXe siecle (PAYEN, 2008, p.
106)9.

Ao demonstrar o pensamento referente à escrita da história entre antigos e


modernos, o autor nos mostra que o historiador ao se comprometer com o problema
histórico e inferir-se na escrita da história através de uma “correta” interpretação do
passado. Esta tradição historiográfica, iniciada na antiguidade, desde Heródoto e
seguida por Políbio, Tito-Livo, Arriano, produz uma história comprometida com a
“verdade”, cuja influência não desaparece quando a história é construída e pensada
como ciência na Europa do século XIX.

Nesse sentido, para os historiadores dos oitocentos, que tinham como base de
seu pensamento os escritos dos historiadores europeus, tomar como base estes ideais

8
Ver PAYEN, Pascal. Conquête et influences culturelles. Écrire l'histoire de l'époque hellénistique au
XIXe siècle (Allemagne, Angleterre, France), Dialogues d'histoire ancienne 2008/1 (34/1), p. 105-131.
9
Nós antigos e modernos, pensamos a escrita da história sobre a conquista, sua natureza, seu tamanho,
seus meios, suas consequências como constituidores de um problema histórico sobre o qual o historiador,
como vemos em Heródoto, se compromete e fala na primeira pessoa. Essa tradição historiográfica,
iniciada na antiguidade, por Políbio, Tito-Livo, Arriano, não desaparece quando a história é construída e
pensada como ciência na Europa do século XIX. (PAYEN, 2008, p.106 - tradução livre).
48

permitiam-lhes promover uma “correta” interpretação dos fatos do passado, corrigindo e


interferindo na escrita sobre estes acontecimentos para adequá-los ao projeto político
pensado para o ideário de escrita da história nacional objetivado para o país no presente.

Esse modo de pensar, fundamentado por essas duas correntes historiográficas,


levou os historiadores do IHGB a reproduzir uma forma de escrita da história que foi
largamente difundida e serviu de base para legitimar as traduções de obras estrangeiras
sobre a antiguidade e para produção da escrita da história nacional que serviam de
modelo para as narrativas escolares presentes no ensino secundário brasileiro ao longo
desse período.

A escrita da história nacional no século XIX traz à tona debates sobre as


possíveis formas de construção do saber historiográfico. Ao refletirmos sobre isso,
percebemos que é urgente e crucial nos debruçarmos sobre a problemática histórica que
emerge do emprego dos instrumentos conceituais e da técnica da narrativa combinadas
às categorias que Arno Wehling (1992) exemplifica em sua obra Fundamentos e
virtualidades da epistemologia da história: algumas questões, do qual retiramos o
fragmento a baixo:

a. é necessário traçar um território de objetividade (ou objetivação) do


conhecimento histórico, capaz de fazê-lo lógico (internamente articulado) e
coerente (compatibilizando premissas, meios e produtos), para ampliar o grau
de precisão e intersubjetividade, na comunidade científica, deste
conhecimento;
b. a explanação histórica exerce-se sobre um objeto, que é o processo
histórico entendido como uma rede relacional, ou séries de
acontecimentos/fenômenos entrecruzados e que admitem uma variedade de
significados, dados pela perspectiva epistemológica-metodológica do
historiador, conforme esses se refira a tempos curtos, médios e longos, as
relações de poder, de produção, de trocas sociais e de valores ou, ainda, a
Estados/manifestações conscientes ou inconscientes, individuais ou coletivas,
efetivas ou simbólicas;
c. a explanação histórica comporta dois planos complementares de
exteriorização, articulados pela problemática: o da conceptualização, que
consiste na aplicação de conceitos já existentes às situações já consideradas,
ou a invenção de novos, e o da narração, que encadeia conceitos e dados
numa estrutura explanatória objetiva, isto é, lógica e coerente, cuja precisão
permite atingir aquele território da objetividade, ainda que se refira a objetos
cuja percepção, por estar fora da zona de consciência de nossa psiquê, no
argumento de Veyne, pareça imprecisa e impressionista (WEHLING, 1992,
p. 162-163).
49

Como podemos perceber através do exemplo das categorias destacadas por


Wehling (1992), se faz necessário alguns procedimentos científicos que diferenciem o
fazer historiográfico dos demais modos de fazer ciência referentes a outras áreas do
conhecimento. No século XIX, a busca por objetividade na escrita da história, aliada aos
processos que o autor destaca no fragmento anterior, nos permite refletir sobre as
relações teórico-metodológicas do fazer historiográfico e também nos faz pensar sobre
as relações de poder que permeavam a escrita da história nesse contexto.

Ao longo de nossa pesquisa, buscamos compreender o papel do historiador do


IHGB no período oitocentista e como seu compromisso com a escrita da história
“verdade”, embasada em categorias e métodos científicos de análise, dava credibilidade
à obra desses historiadores, fazendo com que seu trabalho ganhasse destaque na escrita
da história nacional.

Nesse sentido, esse uso, consciente ou inconsciente de conceitos históricos ou


categorias mais abrangentes para o papel do historiador, são, por assim dizer, atributos
que podem enriquecer o trabalho desempenhado pelo historiador na busca pelo fazer
histórico. O exemplo de categorias cientificistas sobre o fazer historiográfico permite
perceber as categorias que são abordadas como modelos a serem seguidos na produção
da história cientifica produzida no IHGB e que ocasionalmente chegaria ao ensino das
escolas secundárias brasileiras.

Para o Wehling (1992), essa interação entre a prática e a pesquisa baseia-se cada
vez mais no suposto epistemológico que define o objeto histórico como o fenômeno e
não mais o fato; o método histórico como equação do problema e não mais a
formulação da lei; e o produto como sendo o conceito e não mais a descrição. Portanto,
compreender como eram produzidas as narrativas históricas ao longo do século XIX se
faz importante por nos ajudar a entender os discursos, a formação e as possíveis
intencionalidades da escrita da história nacional aos moldes do IHGB, o que nos
permite obter reflexões sobre o nosso próprio ato do fazer histográfico.

Nesse caso, ao buscarmos entender a escrita da história no século XIX, isso nos
dará luz para compreender como a democracia ateniense era abordada nos compêndios
escolares do ensino secundário adotados no Brasil, no período Imperial brasileiro, em
concomitância com as implicações para a construção de novas representações da
50

memória nacional para a formação de uma elite intelectual que se preparava, por
intermédio dos cursos secundários, para assumir cargos na burocracia do Estado,
investigando, assim, de que maneira os autores de manuais didáticos utilizados no
Brasil, reproduziam como verdade histórica, isto é, como restituição do passado clássico
como um produto da manipulação de acontecimentos históricos com a finalidade de
referendar determinados posicionamentos político-culturais que atendessem às
necessidades do regime Imperial. Isso promove então o que Wehling coloca como uma
interação entre a teoria e a prática de pesquisa.

Esses critérios orientam o enunciado das questões que se dirigem ao passado a


partir da experiência do presente, assim como os mecanismos que agregam valor às
informações e aos dados do passado que, localizada, testada e investigada, passam a
integrar a reconstrução que decifra e explica o presente. Essa relação entre expectativa
do presente e realidade do passado produz a estrutura prévia que envolve a formulação
precisa de uma pergunta histórica e organiza a qualificação de ocorrências como fontes,
sua coleta e sua interpretação. Pode-se dizer que o modo de perguntar e o modo de
responder, do pensamento histórico em geral e do pensamento histórico em sua forma
especializada na historiografia, diferem apenas em grau.

A despeito da fabricação de um saber específico, a atividade historiográfica


abarcava uma diversidade de deveres e desafios a serem cumpridos com a consciência
do desempenho de uma missão. Concomitantemente, a autoridade daquele que assumia
os encargos de historiador deixava de ser apenas questão de engenho literário para se
fundar em uma série de operações que passariam a conferir credibilidade “científica” ao
conhecimento do passado.

Em suma, por sua dupla condição de homens de letras e de ciência, aos


escritores da história competia exercer o que o presidente do IHGB, Olegário Herculano
de Aquino e Castro, designava como “gênero de literatura tão elevado, tão útil” visando
enriquecer o futuro com as experiências do passado através do registro, “com
imparcialidade conscienciosa”, dos fatos mais notáveis da vida das nações e dos feitos
dos homens mais influentes (OLIVEIRA, 2010).

Ainda de acordo com Oliveira (2010), não seria fortuito que, no Brasil
oitocentista, os homens de letras e de ciência compartilhassem os espaços institucionais
51

dedicados à tarefa de inquirir o passado nacional. Nesse contexto, nas palavras de


Temístocles Cezar (2004), nem sempre ser poeta ou romancista era incompatível com
ser historiador; e ir de um gênero ao outro era uma opção, não uma “impossibilidade
intelectual”. No entanto, na contramão desse pensamento, tornava-se evidente a
consolidação de um ethos que, de modo mais específico, definia aqueles que se
dedicavam à escrita da história.

Nesse caso, deveria ser constituída uma tríade de atributos característicos da


figura do historiador – a sinceridade, a cientificidade e a utilidade – que delineavam a
prática historiográfica em seus vínculos mais diretos com o projeto da nação que se
buscava instaurar. Ainda segundo o autor:

Nestas considerações ecoam advertências expressas contra as intromissões da


retórica literária, do patriotismo e das “fábulas” destituídas de qualquer
fundamento de verdade histórica, na escrita do historiador. As condições para
uma apreensão historiográfica mais imparcial e verdadeira dos fatos seriam
dadas por um distanciamento que somente a sucessão temporal (os “dilatados
anos”) e o fluxo próprio da história poderiam estabelecer. Nesse caso, o
avanço do tempo seria considerado menos por seu potencial corrosivo do que
pelo acréscimo de sentido e compreensão que faria incidir sobre os
acontecimentos pretéritos. Como premissa para a elaboração do
conhecimento histórico, o afastamento temporal circunscreveria a posição
epistemológica privilegiada do historiador frente à do cronista, o que
acentuava a demanda por documentos com que o primeiro passaria a inquirir
crítica e indiretamente o passado (OLIVEIRA, 2010, p. 44)..

Podemos notar, através do excerto anterior, que no século XIX a constituição de


um regime historiográfico (ao molde historicista), com pretensões científicas, tornaria
incontornável a questão da intromissão da retórica literária nas condições para a escrita
da história nacional. Uma indagação não menos premente sobre como deveria ser o
relacionamento entre o historiador e seu objeto de pesquisa também fomentava o debate
nesse período. Em resposta a essa indagação, Michel de Certeau, em seu livro A escrita
da História, nos faz refletir sobre os procedimentos operacionais referentes à construção
da escrita – o autor nos permite entender que a história é a arte de encenação que
compreende a relação entre o lugar do discurso, os procedimentos de análise e a
construção de um texto.

Por tanto, a narrativa da história torna-se a combinação de um lugar social, de


práticas cientificas e de uma escrita. Sua particularidade está no lugar de onde fala o
historiador e do domínio com o qual ele realiza sua investigação. A operação de fazer
52

passar da prática da investigação à escrita da história acontece sob o olhar do historiador


a seu objeto de estudo no decorrer de suas observações, do que se conclui que ainda
hoje a escrita da história permanece controlada por essas práticas, sendo ela própria uma
prática social.

Nesse sentido, apresentar o debate referente à escrita da história “ciência” aos


moldes oitocentistas e o papel do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro na
construção da identidade nacional, nos permite entender aspectos da maneira como era
concebida a escrita da história. O intuito dessa reflexão é pensar sobre os principais
debates ocorridos no campo da historiografia em um período que se buscava construir
projetos de nação que atendesse às demandas político-culturais da sociedade imperial
para posteriormente entender a função da narrativa histórica sobre a antiguidade – e sua
função de legitimar determinados posicionamentos políticos nos manuais de ensino de
história desse período.

Nossa investigação pretende considerar o papel do Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro (IHGB) durante o processo de construção de uma narrativa sobre
a nação que ambicionava, entre outros objetivos, fundamentar ou justificar a ordem
social vigente. Uma tendência geral e significativa da historiografia produzida ao longo
do século XIX estava intimamente relacionada à construção do Estado nacional.

Realizava-se, nesse sentido, uma história oficial, patrocinada pelo poder político
e fiel a ele. Durante a fase imperial da história do Brasil, especialmente no que tange ao
II Reinado, a historiografia que começava a ser produzida era aquela vinculada,
portanto, ao IHGB, responsável por criar um passado histórico para o jovem país. “Não
deixar mais ao gênio especulador dos estrangeiros a tarefa de escrever nossa história
(...)” (JUNIOR, 2010, p. 38), eis nas palavras de Januário da Cunha Barbosa a meta
dessa instituição, que pretendia estabelecer uma cronologia contínua e única, como
parte da empresa que visava à própria fundação da nacionalidade.

Podemos perceber através do excerto abaixo que o Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro (IHGB) principal responsável pela escrita da história em território
nacional, organizava as obras que serviriam de base de estudo para essa elite pois
considerava o estudo das letras de fundamental importância para a construção da
sociedade desse período:
53

Sendo inegável que as letras, além de concorrerem para o adorno da


sociedade, influem poderosamente na firmeza de seus alicerces, ou seja pelo
esclarecimento de seus membros, ou pelo adoçamento dos costumes
públicos, é evidente que em uma monarquia constitucional, onde os méritos e
os talentos devem abrir as portas aos empregos, e em que a maior soma de
luzes deve formar o maior grau de felicidade pública, são as letras de uma
absoluta e indispensável necessidade, principalmente aquelas que, versando
sobre a história e geografia do país, devem ministrar grandes auxílios à
pública administração e ao esclarecimento de todos os brasileiros (REVISTA
DO IHGB, 1839, p. 5 apud SANTOS, 2018, p. 255).

Na busca por trazer um conhecimento que abrisse as portas aos empregos e


trouxesse um maior grau de felicidade pública, o diálogo com a história “ciência” foi
um assunto relevante para a construção do Estado imperial no Brasil pós-independência,
a importância tornou-se mais marcante quando a sua escrita resulta do investimento para
a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), esforço da então
recente instituição, no ano de 1838. Sem esquecer registros acadêmicos emergentes
ainda no período em que o Brasil era a mais importante colônia portuguesa e todas as
produções esparsas, contemporâneas ou não ao IHGB, o que se processou a partir da
fundação desse órgão foi um projeto sistemático e resistente, de caráter propriamente
nacionalista e centralizador, que atravessou os anos oitocentos.

Nesse sentido, é importante ter como fator em destaque as decisões políticas que
fizeram do segundo reinado ambiente propício para a implementação do órgão dedicado
à história e à memória nacional. No que se refere a geografia nacional assim como a
singularidade existente em cada território percebemos na narrativa do IHGB uma
predileção aos estados considerados mais desenvolvidos para as atividades econômicas.
Ao olharmos economia, as botânicas entre outros campos do conhecimento, que estão
presentes na construção da história do Brasil, encontraram um discurso que visa
demonstrar as riquezas das terras brasileiras a fim de valorizar o território e dar ao povo
uma visão de unidade e de pertencimento ao território nacional.

Podemos verificar que para além da preocupação com a pesquisa e a escrita da


história do Brasil, cuja finalidade era, até certo modo, exaltar a nação e unir o povo em
torno do discurso de unidade nacional, existiam dentro do IHGB outros fins que
perpassavam daqueles que se colocavam como puramente desinteressados. Esses fins
ocasionalmente iam ao encontro da busca pelo “esclarecimento da sociedade” o que
54

levaria o IHGB a promover uma escrita da história de modo a atender às expectativas


político-culturais, de maneira diferenciada, a elite brasileira.

Nesse caso, o acesso a esse ensino atenderia aos interesses de uma classe social
que pregava o desenvolvimento da cultura letrada e a perpetuação de sua linhagem no
poder. Preparando os filhos das elites para um possível aprimoramento das relações
sociais, em que um grupo político estava sendo preparado para ocupar não somente as
vagas do IHGB, mas também os cargos públicos do Estado. Fato que nos leva a
perceber o que já foi mencionado anteriormente, que as relações existentes entre os
sócios fundadores do IHGB e os representantes do Governo Imperial eram mantidas, até
certo ponto, mediante interesses políticos, já que o fragmento a seguir nos mostra que:

O status sócio-profissional de todos os sócios fundadores e a importância


política de pelo menos 9 deles (senadores, ministros, conselheiros de estado)
atesta a integração do instituto ao establishment Imperial. Funcionalmente
eram magistrados, advogados, funcionários públicos, administrativos,
eclesiásticos e negociantes, quase todos pertencentes assim, à alta burguesia do
império. Em 1839 o número de sócios efetivos subiu para 46, mais 12
honorários. Nos efetivos predominava a formação jurídica (41,3%) e a
atividade profissional no serviço público (71,7%), sendo 21,7% magistratura,
28,3% no ensino, 6,5% de militares e 15,2% em outros ramos da administração
pública. Eram parlamentares 19,6% dos sócios efetivos, enquanto entre os
sócios efetivos predominava a alta burocracia, o quadro de sócios honorários
brasileiros era nitidamente político predominando justamente ex representantes
regressistas que fundariam o partido conservador (WEHLING, 1983, p. 8-9).

É preciso que se esclareça de imediato que mais que um espaço dedicado à


cultura da lembrança, o IHGB fora concebido como um lugar de estudo e trabalho
político como podemos perceber através do fragmento anterior ao constatarmos a
grande quantidade de figuras públicas ocupando cargos nesse órgão. De acordo com
Santos (2010) o discurso historiográfico emerge no século XIX e a história busca se
ocupar de questões que vão além das distâncias entre as noções antigas e modernas do
conceito de História.

Nesse sentido, a História resulta de movimentos mútuos entre a “ciência”


produzida pelo historiador e as conjunturas políticas daquele período. Podemos pegar
como exemplo os discursos nacionalistas ocorridos na Alemanha e na França no século
XVIII, países que professavam fortemente, cada um em sua especificidade, o discurso
nacionalista no interior da História em vias de institucionalização e serviram de modelo
para o Brasil.
55

Nesse sentido, a presente investigação se justifica pela necessidade de


entendermos os interesses e objetivos inerentes à produção historiográfica nacional do
período em questão, para posteriormente no decorrer de nossa analise,
compreendermos, em particular, o uso da escrita da história Antiga nos manuais de
História Universal escritos por Justiniano José da Rocha (1860), Pedro Parley (1869) e
Victor Duruy (1865), para melhor investigar os recursos discursivos sobre essa temática
que resultaram da construção de uma ideia de nação que culmina, por sua vez, com o
que chamamos de ‘identidade nacional’.

Partimos da hipótese de que tais narrativas sobre a antiguidade foram escritas


pela elite brasileira, ou melhor, por grupos sociais que ocupavam os espaços de poder
com o objetivo de legitimar um projeto de nação que atendesse aos anseios políticos do
regime de governo Imperial brasileiro, sobretudo a manutenção da unidade político-
cultural e administrativa.

No Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) os homens que se


dedicavam ao levantamento de nomes, eventos, objetos, obras de arte e de ciência que
resistiram ao tempo eram figuras plenamente ligadas à diminuta burocracia da empresa
imperial brasileira do final dos anos 1830. Do mesmo modo que as chamadas academias
letradas da Europa no século XVIII que encontravam suas bases na subvenção das
monarquias, o cuidado e o controle do acervo do passado estavam paralelamente
submetidos à dimensão político-administrativa de cada Coroa (SANTOS, 2018).

De acordo com Eduardo Wright Cardoso (2015) a escrita da história nacional


estaria dividida em dois grandes períodos: antigo e moderno. Cada uma dessas etapas,
por sua vez, deveria ainda concluir outros ramos e épocas. Três hipóteses seriam
possíveis para a história do império: ação religiosa (missionários), ação guerreira
(colonizadores) e situação natural (riquezas e prodigalidade). Dois marcos temporais,
portanto, são humanos, enquanto o outro é natural.

É possível perceber nesse sentido, a importância que a natureza assume para a


história do Brasil concebida como uma possibilidade de princípio onde o historiador, se
resolvesse adotar tal alternativa, deveria encetar a sua história destacando a composição
natural da nação, ou seja, descrevendo a paisagem que a compõe. Desta forma, se
percebe aqui a associação, já apontada, entre o tempo e o espaço. Trata-se de conceber
56

uma dimensão como inerente à outra e, consequentemente, a própria paisagem passa a


ser historicizada, na medida em que atua como um marco temporal.

No Brasil, segundo Santos (2010) foram com a fundação em 1838, do Instituto


Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e, sobremaneira, com a obra de Francisco
Adolfo Varnhagen (1816-1878) que os esforços de disciplinarização sobre o que
convinha ser adotado como versão oficial sobre a história do “descobrimento” das terras
brasileiras, levaram o IHGB a buscar pensadores que produzissem escritos que
agregassem valor ao território nacional e apresentassem o colonizador português como
uma espécie de herói da nação.

Para isso, foram implementados modelos de projeto de nação que tinham como
finalidade elencar ao ensino da história nacional uma literatura que descrevesse a beleza
da fauna, flora e recursos naturais existentes em solo brasileiro. Dito de outro modo, era
preciso criar um ideário de valorização do território brasileiro afim de,
consequentemente, construir um ideário de pertencimento que passasse uma retórica da
nacionalidade operando no sentido de convencer os brasileiros de que compartilhavam
um passado em comum, com o qual podiam se identificar.

De acordo com Guimarães (1988), a criação do Instituto Histórico e Geográfico


Brasileiro (IHGB) aponta em direção à materialização de um empreendimento que
mantém profundas relações com a ideologia política de implantação no Brasil de um
ideal de nação, indispensável, a nosso ver, à coesão social, porquanto se objetivava
conferir aos cidadãos uma identidade própria capaz de atuar tanto externa quanto
internamente, no interior de um movimento que definiria o Império do Brasil na esteira
do processo europeu de constituição e desenvolvimento dos Estados nacionais.

A escrita da história brasileira teria como base o modelo de escrita europeu, mas
seria construída a partir de um movimento muito próprio ao caso brasileiro onde não se
pretendia estabelecer uma oposição entre a antiga metrópole portuguesa e a nação
brasileira. No âmbito da escrita da história oitocentista, notamos que os historiadores
em geral esforçavam-se por apresentar a civilização brasileira como continuadora da
tarefa civilizadora iniciada pela coroa portuguesa. Para isso, o império brasileiro
mobilizaria de forma habilidosa o IHGB e alguns outros setores brasileiros que se
57

encarregariam de organizar e sistematizar a construção discursiva e imagética desse


período como podemos ver no fragmento a seguir:

Os artífices do império brasileiro, especialmente no final do período


regencial e ao longo do segundo reinado, foram muito hábeis e eloquentes na
construção discursiva — escritas e imagéticas – que acabaram por forjar um
tipo de memória oficial para a nação. Nessa tarefa de bem elaborar essa
memória, por meio de uma costura de retalhos documentais, para dentro e
para fora das divisas do país, destacou-se a atuação do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) que, em associação com a Academia Imperial
de Belas Artes, O Museu Nacional, O Arquivo Público do Império e as
Faculdades de Direito e Medicina e o Colégio Imperial Pedro II, daria à
monarquia uma nova narrativa histórica, retratada em literatura épica,
iconografia grandiosa, artefatos e monumentos, saberes institucionalizados
que ministrariam uma pedagogia da nação, um corpo de leis e uma
nacionalidade sadia desde os bancos escolares até as faculdades — lócus de
formação das elites (SCHWARCZ apud RIBEIRO, 2011, p. 87).

Podemos perceber que para esse novo projeto de governo era necessária, de
acordo com o interesse do governo Imperial, a criação de uma identidade nacional que
fosse ao encontro do interesse da elite brasileira. O que se pretendia fazer era uma
História do Brasil que exaltasse os grandes feitos pela coroa portuguesa no processo
“civilizacional” do país. Da mesma forma deveria ser criado um projeto de nação que
atendesse às demandas políticas que permeavam em torno desse período.

A escrita da História deveria assim, reunir através de documentos oficiais, dados


que comprovassem a esplendorosa e exótica beleza natural e os grandes feitos da coroa
portuguesa desde a sua chegada ao solo nacional. Para isso, a criação do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro teve um papel muito importante na construção dos
escritos históricos, suas visões e interpretações em relação à busca pela formação do
sentimento nacional do Brasil no século XIX. Isso acontece porque é dada ao IHGB a
tarefa de pensar o Brasil segundo os postulados próprios de uma história comprometida
com o desenvolvimento de uma fisionomia própria para a nação brasileira que tinha
como objetivo reforçar a homogeneização da visão de Brasil pelas elites do país. Como
podemos ver a seguir:

É, portanto, à tarefa de pensar o Brasil segundo os postulados próprios de


uma história comprometida com o desenvolvimento do processo gênese da
Nação que se entregam os letrados reunidos em torno do IHGB. A fisionomia
esboçada para a nação brasileira e que a historiografia do IHGB cuidará de
reforçar, visa a produzir uma homogeneização da visão de Brasil no interior
das elites brasileiras. (GUIMARÃES, 1988, p. 6).
58

Formalmente, a principal finalidade do IHGB era desenvolver estudos que


levassem a um maior conhecimento sobre a geografia e a história do Brasil com base no
estimulo a pesquisas feitas nas províncias brasileiras e também no exterior através de
trabalhos gerais e monográficos que permitissem um maior conhecimento sobre o
território nacional.

Esse trabalho muitas vezes era feito por historiadores que viajavam pelo
território nacional e relatavam os achados de suas viagens. Esses achados poderiam se
referir a fauna, flora, geografia e até mesmo aos povos que habitavam os diferentes
estados nacionais. A escrita da história brasileira feita através dos relatos dos viajantes
ganha um perfil aos moldes do IHGB de um modelo de fazer história que utiliza como
método de narrativa uma escrita da história feita de maneira mais geral, que detalha as
particularidades do território, mas que busca unificar esses territórios.

Isto é, o modelo de escrita da história feito através dos relatos dos viajantes e dos
membros do IHGB apresenta o território nacional de maneira mais abrangente com a
finalidade de produzir conhecimento sobre diversos campos do território, sem perder a
totalidade do conjunto, o que ocorrerá também com a escrita sobre a antiguidade.

Ao estudar a diversidade brasileira buscando como exemplo a mistura das raças,


percebemos que a narrativa histórica é produzida de maneira a elevar o papel do branco
colonizador. Notamos, porém, que o mesmo não acontece quando a escrita se refere a
chegada dos negros ou a figura do índio; intuímos que ambos são inseridos na narrativa
como personagens de menor destaque por não irem ao encontro dos interesses da elite.
Isto acontece por que nas palavras Eduardo Rouston Junior:

Este passado certamente teria de ser um passado do qual este Império


pudesse se identificar e se vangloriar e, destarte, a história estaria cumprindo
a função para o qual ela havia sido fundada, isto é, a de auxiliar
decisivamente para o projeto de centralização monárquica que previa um
modelo de constituição do Estado com base no fortalecimento do poder
executivo, uma estrutura política centralizada compatibilizada com a
descentralização administrativa, a manutenção da unidade territorial e a
continuidade da ordem social interna fundamentada, especialmente, no
sistema escravista e na grande propriedade (JUNIOR, 2010, p. 38).

Sendo assim, é notório perceber que existiam interesses que perpassavam o


objetivo de escrever uma história nacionalizante que despertasse o pertencimento dos
cidadãos brasileiros a seu território. Os espaços da escrita da história nacional eram
59

espaços de poder e seus ocupantes tinham um determinado papel a cumprir. Este papel
era fortalecer o poder executivo, manter a estrutura política centralizada, compatibilizar
com a descentralização administrativa e a manutenção da unidade territorial, para
proporcionar dessa forma a manutenção da ordem social interna que era fundamentada
pelo sistema da grande propriedade e pelo sistema escravista como retratado na citação
anterior.

Os espaços de produção de conhecimento como no caso do IHGB davam maior


destaque a trajetória heroica da realeza portuguesa e as imagens que faziam do Brasil
um lugar de belezas paradisíacas, ao passo que a história do negro e o índio era deixada
à margem da narrativa. Percebemos que, ao conceber a nação brasileira sob a ótica da
ideia de civilização no novo mundo (europeu), a historiografia estava definindo aqueles
que internamente ficariam excluídos desse projeto por não se adequarem a essa nova
concepção de civilização.

A construção de um ideário de nação por parte do governo Imperial era


construída em um campo limitado da academia de letrados, e a escrita da história
brasileira trazia consigo marcas excludentes, que por sua vez projetaram um imaginário
depreciativo sobre a visão do negro e do Índio em território Nacional.

No que se refere ao fator da miscigenação ocorrida em relação ao cruzamento


dos grupos étnicos indígenas, brancos e negros no Brasil, essas questões são abordadas
na escrita da história do Brasil, de forma menos destacada, não obtendo o mesmo valor
de impacto referente aos escritos que descrevem as aventuras e desventuras do
colonizador português.

Ou seja, o branco colonizador e detentor do poder no período Imperial é sempre


colocado como superior e por isso beneficiário dos privilégios, regalias e maior
destaque na escrita da história produzida em solo nacional. Percebemos com isso, que a
escrita da história promovida pelo IHGB se encontra numa postura iluminista que busca
“esclarecer” e enaltecer aqueles que ocupam o primeiro legar na pirâmide social (a elite)
que por sua vez, irá em seguida se encarregar de presidir o que deve ser levado como
conhecimento ao restante da sociedade (o povo).

Entretanto, surgem na escrita da história nacional pensamentos divergentes sobre


a forma de se descrever o povo Brasileiro. Nesse senário o nome do pensador
60

Capistrano de Abreu ganha bastante destaque. Em sua obra denominada Capítulos de


História Colonial: 1500-1800 que fará do autor um dos iniciadores da corrente do
pensamento histórico brasileiro que “redescobrirá” o país, ao colocar o povo de maneira
mais valorizada e dar destaque a suas lutas, seus costumes, a forma de descrever a
miscigenação, o clima tropical do Brasil e a natureza nativa desse solo.

Estes temas que ocasionalmente receberão novas roupagens fazendo com que a
historiografia lance novos olhares sobre a história nacional que influenciará na
construção de uma nova forma de concepção de história do Brasil, trará influência sobre
os pensadores do instituto levando-os a produzir uma nova forma de escrita da história
nacional que ganhará destaque no IHGB e servirá de modelo para os próximos
historiadores do Instituto que produzirão narrativas que darão continuidade a essa nova
forma de concepção da história nacional, ao passo que elevarão as figuras que antes
eram marginalizadas da escrita da história nacional a serem pertencentes agora a esse
ideal de “povo brasileiro” através dos processos de miscigenação. Nas palavras de Jose
Carlos Reis (1998) Capistrano:

Atribuirá a este povo a condição de sujeito de sua própria história, que não
deveria vir mais nem de cima e nem de fora, mas dele próprio. O futuro do
Brasil torna-se tarefa do povo brasileiro e, para melhor vislumbrá-lo,
Capistrano recupera o passado desse povo em suas lutas e vitórias.
Capistrano foi o pioneiro na procura das identidades do povo brasileiro,
contra o português e o Estado Imperial e as elites luso-brasileiras (REIS,
1998, p. 69).

Como podemos perceber no fragmento acima, para Jose Carlos Reis foi com
Capistrano de Abreu que se iniciou uma nova fase na construção da narrativa histórica
brasileira, uma vez que esse autor buscava elevar o povo brasileiro à condição de sujeito
agente na história.

Esse discurso em relação à problematização sobre um novo modo de se fazer a


história nacional inserindo a população brasileira como atores principais e não meros
coadjuvantes na história do Brasil, sem dúvida, chamou atenção de grupos de
pensadores do século XIX, que se debruçaram em suas pesquisas para fazer com que
novas reflexões pairassem sobre a questão da identidade nacional brasileira.
61

Na obra de Evandro dos Santos (2018) Mattos também abre caminho para nos
fazer refletir sobre o papel da História enquanto ramo de conhecimento humano, o autor
nos possibilita entender o papel determinado pela história quando nos diz que:

A história abrange todos os ramos do conhecimento humano: pode ser geral


ou particular, e divide-se em seções principais, que são subdivididas em
particulares ou especiais. Ela tem a matéria, ordem, e estilo e deve ser escrita
por um modo harmonioso, agradável, conciso, decente, exato e o mais claro
que for possível; e o fim principal da história política e civil, é encaminhar os
homens à prática das virtudes e ao aborrecimento dos vícios para que daí
resulte o bem-estar das sociedades (MATTOS, 1863, p. 137 apud SANTOS
2018, p. 269).

Para Santos (2018) essa ocupação generalizada da história, responsável por


“todos os ramos do conhecimento”, fazia com que seus critérios tivessem como base
uma escrita feita para levar os homens a praticarem a virtude que resultaria assim no
bem da sociedade. É notório perceber que este discurso sobre a formação intelectual
atrelado a construção de um ideal de sujeito civilizado se faz presente nas obras
produzidas pelos intelectuais do IHGB o que reflete, por sua vez, os interesses políticos
em torno do que seria uma sociedade civilizada aos moldes europeus.

É mais do que notório, que ao longo do século XIX e início do XX a


historiografia brasileira - especialmente seus grupos sociais mais ilustrados e
favorecidos economicamente pertencentes ao IHGB – estabeleceu uma sólida relação de
admiração pelos padrões e valores culturais e políticos da Europa, especialmente no que
diz respeito aos modelos franceses e ingleses de escrita da história, dos quais
percebemos uma apropriação desses valores em diferentes aspectos do cotidiano da
população. Nesse aspecto, podemos perceber a apropriação dos valores europeus em
detrimento dos outros povos do mundo antigo na obra de Pedro Parley (1969) quando o
autor nos fala que:

12.Entre os reinos, que ficão ao Sul da Europa, contão-se Portugal,


Hespanha, a Italia, a Grecia e a Turquia. Nesses paizes o sólo é geralmente
fértil e produz em abundancias uvas, azeitonas, laranjas, limões, melões e
outras frutas deliciosas. [...] 13. Aqui também sem grades custos a terra
fornece ao homem os produtos necessários para o seu sustento. [...] 16. Se
meus leitores fossem à Europa, sentirião, é verdade uma diferença muito
grande entre esta parte do mundo e a America; todavia muitas cousas
lhe trarião a memoria nossa cara pátria. Se porém visitassem a Asia ou a
Africa, então as casas os campos, o vestuário dos habitantes, todos os
usos e costumes lhes fazião impressão que eles se considerarião n’uma
terra inteiramente estranha, longe, muito longe de nosso paiz natal
(PARLEY, 1969, p. 143-144 grifos nosso).
62

Esse modelo de escrita presente na obra de Pedro Parley, deveria ser seguido
para que o país pudesse (ou pelo menos aparentemente) alcançar a tão sonhada
modernidade há algum tempo vivenciada pelas nações europeias. Na educação pública
Brasileira, essa influência dos postulados culturais e políticos franceses e ingleses se faz
sentir com força e intensidade exemplar no período imperial, fato que podemos
constatar principalmente quando se trata do ensino secundário.

Como podemos perceber, o IHGB foi fundado por uma elite vinculada à
monarquia. Os membros, homens letrados, no sentido lato do termo, eram em sua
maioria administradores, burocratas, coronéis, generais, marechais, cônegos, poetas que,
juntos, formavam a elite letrada imperial empenhada na formulação e constituição de
um saber histórico e geográfico sobre o Brasil.

Por meio dos financiamentos, dos incentivos, ou ainda de sua participação


efetiva nas reuniões do IHGB, sobretudo a partir de 1840, a instituição monárquica
compreendeu a manutenção de um Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro como
uma possibilidade de fortalecimento e centralização política do Império. E nesse sentido
que fundamentar as bases da sua corte investindo na produção letrada, como uma
espécie de mecenas, levando às províncias o modelo de cultura e civilização, afigurou-
se à corte brasileira como uma importante estratégia política com vistas à estabilização
do poder central da monarquia.

O IHGB era, portanto, a sede dessa elite letrada imperial que procurava dirigir o
país nos domínios intelectual, político e administrativo, revelando assim as suas
pretensões em manter correspondência com instituições semelhantes, nacionais ou
internacionais.

Para entender a importância dos estudos humanistas para o projeto de nação


instituído pelo governo à luz da cultura política e da cultura escolar e compreendermos
como se processou a estruturação oficial (formal) da instrução secundária no XIX e o
projeto de nação que se pretendia implementar para a jovem nação. É necessário
promover uma análise sobre o papel dos membros do IHGB na escolha dos conteúdos
referentes a antiguidade para o ensino secundário brasileiro nesse período. Desta forma,
procuramos identificar como foram tecidas as práticas instrucionais caracterizadas pela
63

organização do tempo escolar além das preocupações dos gestores públicos com a
escrita da história universal no ensino secundário.

Para Antonio Carlos Ferreira Pinheiro & Cláudia Engler Cury (2004) os gestores
públicos, portanto, tinham um duplo desafio no século dezenove: configurar o Estado
que fora criado a partir de 1822 e inventar um ideal de nação para o território brasileiro.
Na busca por resolver esses desafios a normatização que engendrou a instrução pública
nas províncias foi simultaneamente o processo de instauração da ordem pelo estado
monárquico sobre as localidades. Talvez por isso, a preocupação em criar instituições
educacionais que atendessem aos anseios da formação daqueles que desejassem fazer
seus estudos superiores.

Para isso, os homens públicos e homens das letras, consideravam a escola como
um lugar social privilegiado. A partir da publicação do Ato Adicional de 12 de agosto
1834, ficou determinado que às Províncias caberiam os encargos relativos à instrução
primária e secundária, fato que levou a uma descentralização, que acarretou prejuízos
para a educação popular.

Em meio a descentralização dos encargos relativos as instituições públicas e do


caos referente a instrução no Império, para Mariotto Haidar (1972) o aparecimento de
Lyceus provinciais a partir de 1835, e a criação do Colégio Pedro II na Corte, em 1837 e
da cadeira de História no mesmo ano, representam, no campo do ensino público, os
primeiros esforços no sentido de imprimir alguma organicidade a esse ramo do ensino
que se destinava precipuamente a preparar para o ingresso [de estudantes] nas
Faculdades.

O ingresso nos cursos superiores era a meta visada por todos os jovens que
buscavam os estudos secundários, e o estudo parcelado dos preparatórios exigidos para
a matrícula nas Academias. Criado o Colégio e instituída a organização dos conteúdos
em oito séries, ficou marcante nos programas da instituição o predomínio dos estudos
humanistas clássicos.

Todavia, é preciso destacar que a instrução secundária assumiu a especificidade


de contribuir para a formação de uma elite dirigente que tanto poderia encaminhar-se
para os estudos superiores, no sentido de formar um conjunto de profissionais
(bacharéis, médicos, literatos e jornalistas) que atenderiam às demandas específicas do
64

setor instrucional bem como atenderiam às demandas dos cargos públicos para a
composição dos quadros administrativos do Estado. Ambos os seguimentos
profissionais também exerciam a atividade de professor, tanto no nível primário quanto
no secundário. Essas questões serão discutidas a seguir quanto tratamos da escrita da
história escolar e das reformas para constituição dessa modalidade de ensino.
65

2. A ESCRITA DA HISTÓRIA ESCOLAR NO SÉCULO XIX:


reflexões em torno do papel da escrita da escrita escolar produzida no
IHGB e suas representações no ideário de Brasil a ser alcançado pela
elite

Nesse capítulo buscamos investigar o ideário de país e os projetos de nação


cogitados para o Brasil, no período oitocentista, que tinham como escopo os modelos
europeus dos séculos XVIII e XIX. Propomos uma reflexão sobre alguns conceitos
chave que permeiam a nossa narrativa, sendo eles: nação, memória, civilização e
identidade nacional.

Para nós entender esses conceitos chave é de grande valia pois nos possibilitam
perceber que as criações das nacionalidades trazem consigo relações de poder que
permitem ao vencedor determinar o que será deixado como modelo para as gerações
vindouras.

Em seguida, buscamos problematizar a narrativa histórica escolar no século


XIX, já que partimos do pressuposto de que nenhum discurso é neutro ou
desinteressado. A nossa narrativa irá concentrar esforços para buscar entender os usos
do passado na construção do saber escolar levando em consideração os estudos de
história e historiografia no Brasil entre os anos de 1850-1870 e sua contribuição para a
criação de um ideário nacional em território brasileiro.

O intuito desse capítulo será analisar os principais debates ocorridos no campo


da historiografia em um período que se buscava construir projetos de nação que
atendesse às demandas político-culturais da sociedade imperial. Nossa investigação
pretende considerar o papel do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)
durante o processo de construção de uma narrativa sobre a nação que ambicionava,
entre outros objetivos, legitimar a ordem social vigente.

Essa reflexão é necessária para desenvolver uma investigação sobre a escrita da


história escolar no século XIX. Onde propomos uma narrativa que versa sobre a
tentativa de responder a algumas questões, como por exemplo: o papel do livro didático
como fonte de pesquisa histórica e a autoria, escolha, produção, circulação e difusão dos
compêndios de História Universal no período imperial brasileiro.
66

Sobre a criação de um ideário de memória, civilização, e identidade nacional que


fez parte do projeto de sociedade ideal pensado para o Brasil e que ocasionalmente
influenciou na escrita da história oitocentista, trabalhamos a seguir sobre essa temática
onde apresentamos os principais debates promovidos por autores contemporâneos sobre
esse assunto o que nos possibilitará compreender a influência dessa concepção de
sociedade a ser seguida para a construção do saber escolar sobre a Grécia Antiga
reservada ao ensino secundário do país nesse período.
67

2.1. A CONSTRUÇÃO DO IDEÁRIO DE BRASIL NO SÉCULO XIX:


reflexões em torno das concepções de nação, memória, civilização e
identidade nacional

De acordo com Junior (2010) uma das principais características que marcou a
história ocidental no século XIX, em termos políticos, foi a questão das nacionalidades.
Para o autor a independência e a fundação do Império implicaram em uma tentativa de
acentuação da ruptura entre a civilização brasileira e a metrópole sem que, no entanto,
isto implicasse na negação de sua matriz europeia. Ao contrário, tratava-se de enfatizar
a qualidade de nossa civilização, por um lado, diante dos padrões europeus e, por outro,
pela demonstração de superioridade em relação aos países vizinhos do subcontinente.

Nessa perspectiva, cabe lembrar que o desenvolvimento dos povos em nações


constituía uma fase inevitável da evolução humana, que levava no entender do
historiador inglês Eric Hobsbawm à ideia da “nação como progresso”. E incluía não só
a construção de um Estado, como sua expressão política, mas também a escolha de
critérios para a definição da cidadania dos indivíduos que a compunham.

No entanto, quanto ao surgimento das nações, sabemos hoje, que este decorre de
vários elementos. Se, por um lado, exige uma base cultural comum, em geral oferecida
por sociedades com certa semelhança étnica ou religiosa, por outro, depende igualmente
de um esforço de identificação, divulgação e introjeção dessas características
partilhadas, de modo a gerar um sentimento de comunhão entre as pessoas (JUNIOR,
2010, p. 34-35).

Estudar as memórias coletivas fortemente constituídas, como a memória


nacional, implica preliminarmente a análise de sua função. A memória, essa operação
coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar,
se integra, como vemos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de
reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de
diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc.

No Período Imperial, o ensino primário e o secundário – equivalentes ao ensino


fundamental e ao ensino médio atuais – preservaram os valores pedagógicos jesuíticos
no que tange à formação humanística do indivíduo em conformidade com os padrões de
civilidade e civilização europeus da época. Essa filosofia humanística voltava-se à
68

educação de homens eruditos que pudessem estar preparados para suas atividades nos
círculos sociais e culturais (MELO, 2015).

Partindo dessa premissa, podemos assim dizer que esse estudo se justifica pela
necessidade de compreendermos os interesses presentes nos discursos nacionalistas
sobre o ideal de civilização a ser preterido para a sociedade brasileira nos oitocentos,
uma vez que esse ideário de Brasil seria construído e fixado na memória nacional
através do ensino e da perpetuação da superioridade da cultura europeia trazida, a nosso
ver, como modelo de civilidade para o território nacional.

Essa discussão sobre a escrita da história nacional e a memória coletiva


concebida como memória oficial da nação, nos ajuda a compreender o uso de versões
instrumentalizadas da História Antiga, sobretudo no que se refere ao conteúdo de
democracia ateniense, nos compêndios de História, adotados pelas escolas secundárias,
no período Imperial brasileiro, uma vez que a história do Brasil é construída a partir de
uma ótica eurocêntrica que traz como modelo civilizador parâmetros da Europa
Ocidental, que adotam como ponto de partida a Antiguidade Grega e o Império
Romano, para forjar o que muitos estudiosos chamam de ‘identidade cultural do
Ocidente’.

Como podemos perceber o conteúdo sobre a história da antiguidade e uso de


autores gregos e latinos trazia o objetivo de levar o alunado à identificação com uma
referência moral e religiosa que era considerada importante aos homens de letras,
moralistas e políticos que faziam parte da elite pensante do Brasil.

A construção desse ideário de nação e civilização para o povo brasileiro, por


parte do governo Imperial e dos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
era arquitetada em um campo limitado da academia de letrados e a escrita da história
brasileira trazia consigo, a singularidade da visão de mundo desses pensadores, que por
sua vez, projetam um enaltecimento da cultura europeia cristã e um imaginário
depreciativo sobre a figura do indígena e do negro oriundo de matriz africana,
descendente de povos da História Antiga da América que não fazem parte da concepção
de sujeito civilizado projetada para o nosso país. Como podemos perceber na escrita
escolar do compendio de História Universal Resumida de Pedro Parley (1869):
69

Em todas as partes da Europa, exceptuando a Turquia, prevalece a


religião Christã. Se viajásseis pela Asia ou Africa, apenas encontraríeis
uma ou outra igreja, onde se adore o verdadeiro Deos; porém veríeis
grande numeroso de mesquitas dedicadas a falsa religião de Mamohet e
muitos templos, em que se venerão ídolos feitos de madeira, pedra ou metal.
Na Europa pelo contrario encontra o viajante por toda parte igrejas, que
mostrão ser o povo Christão. Encontrão-se também muitos collegios,
academias e escolas, prova evidentedo alto preço, que se dá à educação. É
um fato muito notável e para o qual chamo a atenção a meus leitores,
que em toda parte do mundo, onde existem igrejas, o povo se ache mais
ou menos adiantado em civilização e nas artes que concorrem para o
bem estar do gênero humano (PARLEY, 1869, p. 141, grifos nosso).

O enaltecimento do catolicismo ligando o cristão a figura de um sujeito moderno


e civilizado era bastante difundido no ensino brasileiro. Podemos perceber na fala de
Lourenço Jose Ribeiro, tradutor da obra de Pedro Parley (1869), que para ele chama
atenção atrelar a imagem de sujeito civilizado a ser construído no Brasil à imagem já
propagada de sujeito civilizado europeu. Criando uma identidade coletiva onde o povo
pudesse se identificar.

Essa busca por forjar uma identidade coletiva e fomentar o sentimento de


pertencimento em território nacional pode ser percebida no Brasil a partir da chegada da
família real portuguesa no Brasil em 1808, seguida de desdobramentos, como a criação
do Império Brasileiro.

A criação de algumas instituições importantes, tais como, a Academia Imperial


das Belas Artes (fundada em 1926), a Biblioteca Nacional (fundada em 1810, muito
embora só tenha sido franqueada ao público em 1814), o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (fundado em 1838) e o Imperial Colégio de Pedro II (fundado em
1837), fazem parte desse processo.

A partir da abdicação de Pedro I, diante do perigo representado pelas inúmeras


rebeliões, motins e levantes ocorridos no período regencial, a lógica das nacionalidades
do século XIX impôs à Regência a tarefa de tomar algumas iniciativas tendentes a criar
uma identidade nacional.

Buscava-se construir a nacionalidade brasileira para garantir a integridade do


Império e preservar a ordem escravista. É nesse contexto que se pode compreender a
criação dessas instituições, citadas anteriormente, assim como a composição das
primeiras obras históricas, artísticas e literárias, que deviam servir para moldar a
70

personalidade do Estado-nação no Brasil. No tocante à importância da construção de tal


projeto, afirma Ricardo Salles:

O Estado era o grande promotor da construção política da nação, identificada


como um projeto, como uma criação sua. A unidade territorial – essencial na
definição da nacionalidade – e a preservação das riquezas e potencialidades
naturais era sua grande obra. O Estado monárquico se construía como projeto
civilizatório que dominava e incorporava o meio e a natureza, simbolizando a
identificação entre Estado-civilização e espaço físico-natural. A experiência
republicana era associada ao barbarismo caudilhesco e à dispersão territorial
das demais nações latino-americanas. A monarquia fora capaz de não apenas
assegurar a unidade territorial, mas exercer um papel hegemônico no
subcontinente (SALLES, 1996, p. 100).

O Estado brasileiro era o grande promotor da construção política da nação,


identificada como um projeto, que buscava assegurar a unidade territorial e a
preservação das riquezas e potencialidades naturais de todo território. O Estado
monárquico se construía como projeto civilizatório que dominava e incorporava o meio
e a natureza, simbolizando a identificação entre Estado-civilização e espaço físico-
natural.

Nessa conjuntura, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tinha como


principal objetivo difundir o conhecimento do país e, assim, contribuir para precisar a
sua identidade. O IHGB se afirmaria como um centro de estudos bastante ativa,
favorecendo a pesquisa literária, estimulando a vida intelectual e funcionando como um
elo entre esta e os meios oficiais. Revelava-se, claramente, a intenção formativa da
consciência nacional, entendida como “missão” de tal instituição.

No interior desse espaço marcado por uma teia de relações pessoais, outro
aspecto comum se sobressaía: o papel central do Estado e sua vinculação ao círculo
ilustrado imperial. Ao analisar o perfil dos sócios fundadores, notamos que, entre eles,
22 ocupavam posições de destaque na hierarquia interna do Estado. Vários são os casos
que exemplificam tal constatação, a começar pelo primeiro presidente do IHGB, José
Feliciano Fernandes Pinheiro (Visconde de São Leopoldo), que acumulava os cargos de
conselheiro e senador do Estado, ou o cônego Januário da Cunha Barbosa, primeiro
secretário do instituto e um dos responsáveis por sua idealização.

Como esses, outros casos poderiam ser elencados entre os membros do Supremo
Tribunal, procuradores, desembargadores e chefes da Secretaria dos Negócios do
71

Império. Faziam parte dessa lista do Instituto nada menos que dez conselheiros de
estado, seis destes ainda senadores. As marcas de um saber oficial vão estar, portanto,
bastante presentes, a despeito da definição formal do IHGB enquanto “entidade
científico-cultural” (JUNIOR, 2010, p. 37-38).

Nesse processo de criação de saber oficial para o país percebemos que a forma
de se ler e escrever a História do Brasil passa por uma perspectiva europocêntrica, com
Antiguidade Grega, Império Romano, Idade Média e Época Moderno constituindo-se
como passado para a nação brasileira. Isso implica dizer que o passado brasileiro se
tornou europeu, sendo sinônimo de uma população branca e civilizada. Nele não há
lugar para dar destaque a índios e negros. Salvo onde esses dois grupos são tidos como
“não civilizados”, tendo serventia apenas como criados e escravos (CHEVITARESE &
SOUSA, 2008).

A concepção de sujeito civilizado aos moldes da Europa é tomada como um


programa de reforma que iria culminar, no século XIX, na autoimagem dos países
europeus em relação a outras sociedades, que lhes cabia civilizar. As elites políticas e
intelectuais brasileiras, em geral, ao apropriarem-se do termo civilização, ao longo do
século XIX, não o tomaram para se referir a uma nação, mas como forma de produzir a
sua autoimagem. Na tradição intelectual brasileira do século XIX e início do século XX,
a representação de um Brasil não se fez com base no conceito de uma nação civilizada
que se auto reconhece como tal, mas constituiu-se pela permanente dúvida em relação
às condições de possibilidade de tornarem seus habitantes civilizados (VEIGA, 2002).

Nesse processo de significação do indivíduo enquanto sujeito social civilizado e


do “outro” como modelo de “não civilidade”, Tomamos como ponto de referência a
obra de Tomaz Tadeu da Silva (2007) para refletir sobre identidade e diferença na
construção desse ideário de nação e de pertencimento a um determinado grupo ou
território.

Através dessa obra percebemos que o autor levanta questionamentos sobre


identidade e diferença apontando que estas questões são abordadas como conceitos
empregados em sentido binário. Isto é, só podemos nos identificar com algo a partir da
não identificação com seu oposto. Segundo Silva “a afirmação da identidade e a
marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir” o autor
72

mostra que dizer "o que somos" significa também dizer "o que não somos" (2007, p.
81).

Nesse sentido, o autor mostra que os papéis da identidade e da diferença se


traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence a um
determinado grupo ou sociedade, sobre quem está incluído e quem está excluído. Ainda
nessa mesma linha de pensamento, Silva afirma que “a identidade significa demarcar
fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora" (2007, p.
81).

A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre "nós" e "eles". Essa
demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo,
afirmam e reafirmam relações de poder. Nas palavras do autor:

Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros
recursos simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a
enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais,
assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais.
A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de
poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser
separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não
são, nunca, inocentes (SILVA, 2007, p. 81).

De acordo com esse pensamento, podemos notar que os conceitos de identidade


e diferença não são neutros. Isto é, devem agregar-se ao discurso que seria considerado
o discurso padrão. Nesse caso as oposições binarias abordadas na criação de um ideário
nacional “não expressam uma simples divisão do mundo em duas classes simétricas”,
em outras palavras, em uma oposição binária existe um termo que deve ser sempre
privilegiado, com valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa e
normalmente é colocado à margem a depender dos grupos sociais que ocupam os
espaços de poder e, muitas vezes, influenciam a manutenção do discurso ‘vencedor’.
Essas relações de poder que influenciam as formações discursivas em determinado
tempo e lugar contribuem para a categorização dos sujeitos ao definir valores, princípios
e papeis sociais legítimos (ou não) (SILVA, 2007).

No que se refere ao que seria a Nação diante de um processo separatório da


metrópole tão singular como o foi o brasileiro, podemos dizer que a construção de um
73

projeto de nação próprio ao caso brasileiro foi sem dúvida um motivo de preocupação
entre os historiadores do século XIX.

Nas palavras de José Murilo de Carvalho (2007) o historiador brasileiro, como


cidadão e como pesquisador, não tem escapado à preocupação com o tema da
nacionalidade brasileira. Entre os muitos que se tem dedicado ao estudo do século XIX,
particularmente do período Imperial, um grupo mais interessado na dimensão política
da formação social do país decidiu coordenar esforços e concentrar a análise em torno
do tema da formação da cidadania e da nação.

A coincidência entre nação e cidadania é parcial, uma vez que algumas


concepções de cidadania produzidas pela tradição ocidental coincidem exatamente com
a de identidade coletiva, com a do sentimento de comunidade entre os habitantes de
uma cidade ou de um Estado, isto é, com a de nação que se pretendia construir em solo
nacional.

Ao analisamos os debates referentes a crise de constituir um fazer historiográfico


que desce conta de abarcar os inúmeros fatores problemáticos sobre a possível criação
de uma identidade nacional, e consequentemente, um modelo de civilização
simplificado como era o plano do IHGB em acordo com a monarquia brasileira que
ocupava o governo imperial, no Brasil. Percebemos que esta busca por melhor
apresentar a história nacional ao ensino da elite levou a historiografia brasileira a lançar
um novo olhar sobre o papel da memória individual e coletiva nesse senário e buscar a
melhor maneira se fixar esse conteúdo para o alunado nos oitocentos.

De acordo com Melo (2015) o aprimoramento da eloquência, o domínio da


oratória, as formas de versificação, entre outros temas estudados nos manuais, eram
saberes do passado que se tornaram reconhecidos no presente, como modelos e/ou
regras a serem seguidos. Os usos de linguagem de um determinado grupo e época
passaram a pertencer a outro (e caracterizaram sua identidade) em outro tempo e lugar.
Os manuais podem ser entendidos como “lugares de memórias” (NORA, 1993), os
quais representam esse entrecruzamento entre o passado e o presente na formação da
mentalidade brasileira do século XIX dentro dos padrões retóricos e poéticos
tradicionais.
74

Considerando as nuances da formação do leitor e das etapas de escolarização da


educação imperial, infere-se que os compêndios de retórica e poética foram objetos
pedagógicos de formatação de uma memória coletiva – e por extensão nacional -,
especificamente da classe dominante, correspondente às estratégias políticas do Estado
e da Igreja. Os modos de civilidade e de civilização, relacionados à eloquência e à arte
literária, definidos, esquematizados e uniformizados nos instrumentos didáticos,
refletiam-se nas práticas sociais, públicas e privadas da elite intelectual brasileira e
formavam suas memórias:

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações


do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas
mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de
pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes:
partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A
referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das
instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo,
sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis (POLLAK,
1989, p. 9).

Tomando como base o pensamento de Michael Pollak podemos dizer que é


através da memória coletiva sobre os acontecimentos do passado e suas interpretações
que são criados os ideais de pertencimento entre indivíduos que ocasionalmente ajudam
a manter a coesão sobre determinados grupos que compõe a sociedade. Esse ideal de
pertencimento busca definir o lugar respectivo desses indivíduos assim também como as
oposições entre um grupo social e outro.

Como espécie de poder disciplinador e controlador, a partir da prática do


discurso escolar, os manuais de boas maneiras traziam os modos de conduta
normatizadores de como se deveria falar, escrever e pensar o grupo nas suas práticas
sociais, políticas e culturais, dentro e fora do contexto escolar. Considerando-se, pois,
tais postulados direcionados à formação de uma conduta moral e dita civilizada dos
alunos, deve-se acrescentar que eles estavam condicionados ao método retórico de
memorização, ou seja, à atividade mnemônica, uma vez que, à época, as posturas
pedagógicas de ensino-aprendizagem estavam muito longe de ser fundamentadas dentro
da perspectiva contemporânea de construção autônoma e reflexiva do sujeito em sua
prática social.
75

A memória entrava na categoria da eloquência, da qual o indivíduo precisava


para a execução de sua fala durante a performance discursiva. Nota-se que ela
representa uma atividade limitadora do pensamento e mecanicista em relação à
interação do leitor com o texto, afastando qualquer possibilidade de interferência
subjetiva e emocional. Essa prática condizia com a postura do Estado e da Igreja de
induzir o aluno à assimilação das regras morais e políticas, fortalecendo uma memória
coletiva, composta pelas lembranças que lhe foram repassadas, muitas vezes,
impregnadas ainda hoje como marcas imperiais, coloniais e europeias (MELO, 2015).

No que se refere a esse suposto ideal de método civilizador pensado para as


sociedades nos oitocentos, recorremos a Norbert Elias (2007), e sua obra O Processo
Civilizador, por se tratar de uma obra que nos permite, através da análise de outros
modelos de civilização, compreender quais os exemplos de civilização que serviam de
padrão para as nações no século XIX.

Ao trabalhar os processos de civilidade para construção das sociedades, o autor


busca elencar o estudo do processo de identificação do homem “educado” com a cultura
das “boas maneiras” oriundas das sociedades europeias consideradas modernas e
civilizadas, para demonstrar que a história das boas maneiras está diretamente
relacionada às regras de comportamento social.

Com o intuito de desenvolver suas questões, Elias (2007) utiliza-se de alguns


termos básicos, tais como: configuração, interdependência e equilíbrio das tensões. O
termo configuração, o mais importante e abrangente em sua obra, é utilizado para
traduzir uma formação social com base na relação de interdependência entre os
indivíduos. Dessa maneira, cada ação individual depende de uma série de outras, que
por sua vez modificam a própria figura do grupo social, tanto na dimensão macro
quanto no micro.

A reprodução das configurações supõe um equilíbrio flutuante de tensões;


portanto, o seu rompimento produz necessariamente uma nova configuração, que supõe
outro equilíbrio de forças. Nessa obra sua intenção é captar as diferentes configurações
sociais. E é dessa maneira que Elias interpreta aquilo que ele denominou de processo de
civilização, como uma dinâmica que pressupõe alterações nas relações de poder e
76

controle dos indivíduos, alterando as relações de interdependência o que possibilitaria a


consolidação dos controles estatais.

Nesse sentido, o objetivo de Elias ao escrever o processo civilizador, não é


descrever uma transformação puramente cultural ou mental das configurações sociais,
mas demonstrar sua hipótese de interação entre as transformações das estruturas de
poder estatal e das estruturas mentais; dessa forma, o autor reintroduz a política e
reabilita o indivíduo, articulando-o ao movimento da história. É evidente que a
universalização da instrução elementar e a extensão social das formas de
comportamento civilizado constituíram um aprofundamento do controle das normas de
conduta, e isto esteve relacionado à produção de novas formas de sociabilidade e de
distinção social, engendradas pela escolarização. Podemos afirmar, portanto, que a
difusão da escolarização como categoria de atividade social foi fundamental para os
processos de alteração da sociabilidade em curso, ao longo do século XIX e no início do
século XX, bem como para as mudanças dos mecanismos de produção das distinções
sociais que significaram alterações expressivas nas relações de gênero, geração, etnia e
classe social (VEIGA, 2002).

Nesse caso, ao tratar do modelo padrão de indivíduo civilizado que estava sendo
pensado para o Brasil, notamos que essa obra se refere não apenas a questão da etiqueta,
mas também diz respeito à moral, à ética, ao valor interno dos indivíduos e aos aspectos
externos que se revelam nas suas relações com os outros.

De acordo com o pensamento do autor todas as sociedades, ao longo da história,


criaram normas e princípios com a finalidade de orientar as relações entre grupos e
pessoas. Apesar de nem sempre procederem do Estado, alguns desses princípios
impunham regras que se não fossem seguidas, implicariam em penalidades, que iam da
desaprovação à exclusão daqueles que não as respeitassem. Dessa maneira, Elias discute
as formas diferenciadas das alterações dos comportamentos sociais aceitáveis e a
materialização das estruturas mentais e emocionais em códigos e regras de
comportamento, mediante estágios diferenciados.

A nosso ver, a obra de Elias apresenta questões pertinentes à educação com a


intencionalidade de civilizar os indivíduos e marca como esse modelo educacional pode
ser construído pelos homens em determinado momento histórico. Esse é o ponto
77

fundamental da obra de Elias, qual seja, o de apresentar que determinados costumes não
podem ser naturalizados. É preciso compreender que as relações sociais são elaboradas
para e pelos homens, e visam atender às demandas do momento histórico em que estão
vivendo. Nas palavras do autor:

O estudo desses mecanismos de integração, porém, também é relevante, de


modo mais geral, para a compreensão do processo civilizador. Só assim
percebermos a força irresistível com a qual uma estrutura social determinada,
uma forma particular de entrelaçamento social, orienta-se, impelida por suas
tensões, para uma mudança específica e, assim, para outras formas de
entrelaçamento, é que poderemos compreender como essas mudanças surgem
na mentalidade humana, na modelação do maleável aparato psicológico,
como se pode observar repetidas vezes na história humana, desde os tempos
mais remotos até o presente (NORBERT, 2007, p. 81).

O estudo desses mecanismos de integração entre as sociedades nos permite


compreender o chamado processo civilizador. A construção das civilizações ao longo da
história é orientada e impelida por tensões, mudanças e outras formas de entrelaçamento
entre as sociedades. A civilização não é razoável, nem racional, nem irracional.

Para o autor, a civilização é posta e mantida em movimento pela dinâmica


autônoma de uma rede de relacionamentos, de mudanças específicas na maneira como
as pessoas se veem obrigadas a conviver em determinados períodos históricos. Dessa
forma, o modelo de autocontrole, explanado por Elias e considerado modelo padrão
pelo qual são moldadas as paixões, os comportamentos, certamente varia muito de
acordo com a função e a posição do indivíduo, mesmo na contemporaneidade, em
diferentes setores do mundo ocidental.

Na busca por entender esse processo padrão de modelo de civilização Ocidental


abordado por Norbert Elias, a autora Maria Cecilia Barreto Amorim Pilla em seu artigo
intitulado: Manuais de civilidade, modelos de civilização, busca construir através da
trajetória de alguns dos principais manuais da civilidade da história do mundo
Ocidental, esse percurso e relacionar os códigos de boas maneiras aos modelos
civilizatórios desejados pelo Ocidente do século XVI ao XIX.

De acordo com a autora a história das boas maneiras está diretamente ligada as
regras de comportamento social. Para ela, essa história envolve não somente a questão
da etiqueta, mas também diz respeito à moral, à ética, ao valor interno dos indivíduos e
aos aspectos externos que se revelam nas suas relações com os outros. Isto é, as regras
78

para transformar um sujeito em “civilizado” envolve questões que perpassam os


protocolos de boas condutas, influenciando na inserção de valores internos a serem
adquiridos por esses sujeitos.

A autora argumenta que com a lenta extinção da nobreza guerreira ao longo da


história e a formação de uma nova aristocracia ao longo dos séculos XVI e XVII. Ou
com a consolidação da monarquia absolutista francesa, o conceito de cortesia cai em
desuso, assim como também o conceito de civilidade cai de moda, com o lento
aburguesamento da sociedade da corte francesa no século XVIII, perdendo espaço para
o conceito de civilização, que segundo ela afirma-se na França, na segunda metade do
século XVIII. Pilla nos diz que o termo civilização surge como uma crítica social e
também como um reflexo do movimento Iluminista.

Segundo a autora, no século XVIII, os reformistas acreditavam que os povos não


estavam suficientemente civilizados. Para os líderes do movimento reformista, o
processo civilizacional não era um estado e sim um processo continuo que deveria
prosseguir. Em outras palavras, os Iluministas acreditavam que os povos, considerados
bárbaros ou não, ainda careciam de ser civilizados aos moldes do chamado mundo
moderno e que esse processo de modernização e construção das novas civilizações
deveria acontecer de forma continua não deixando espaço para possíveis
descontinuidades.

O conceito de civilização absolveu muito do sentido que lhe era dado na corte no
que se refere a padrão, moral, costumes, tato social, consideração ao próximo, dentre
outros. Nas mãos da classe média em ascensão é aplicada a ideia sobre o que é
necessário para tornar civilizada uma sociedade. O processo de civilização do Estado,
da Constituição, da educação, tudo deveria eliminar o que era considerado bárbaro e
irracional.

Esse processo deveria seguir-se ao refinamento das boas maneiras e à


pacificação interna do país pelos reis. Isto é, a classe média que estava cada vez mais
ganhando espaço na sociedade francesa, buscando refinar a sociedade com o apoio dos
reis, começa a aplicar a ideia de novos modelos de sociedade, buscando promover
padrões de sociedade que ocasionalmente influenciariam o Estado, a constituição e a
79

educação dos chamados povos civilizados na busca por eliminar os povos que fossem
considerados bárbaros por não seguirem modelo o padrão proposto.

Nesse molde europeu o passado com resquícios bárbaros deve ser esquecido,
dando espaço a uma sociedade mais civilizada. Por isso, na Europa, mesmo nas
sociedades democráticas que se consolidavam, ainda era tão importante refinar as
maneiras e os comportamentos. Refinar as maneiras, controlar gestos, dominar as
pulsões são atitudes diretamente ligadas aos desejos da diferenciação e da distinção
social ainda nas sociedades chamadas igualitárias.

De acordo com a autora as regras de boas maneiras têm como principal função
tornar o homem distinto, elas se referem a um determinado lugar na sociedade. Os
ideais “civilizatórios” serviram de embasamento para o pensamento reformista que
inspirava as grandes metrópoles ao longo do século XIX. A ideologia do mundo
ocidental nesse período estava impregnada de uma crença sincera no progresso um mito
baseado no significado de aperfeiçoamento, principalmente para os elementos das elites
que se beneficiavam diretamente dos efeitos da modernização.

Para a autora, o século XIX foi um período de grande importância para o


processo civilizador, pois permitiu ao Ocidente tomar consciência da superioridade de
seu próprio comportamento e sua corporificação na ciência, tecnologia ou arte. A partir
desse momento, as nações ocidentais passaram então a encarar o processo civilizatório
como algo acabado, fundamental a ser levado a outros povos como modelo de
civilização a ser seguido.

Para isso a sociedade civilizada deveria esquecer os resquícios dos outros povos
considerados como bárbaros. Refinando as maneiras de agir, controlando gestos e
dominando as atitudes diretamente ligadas aos desejos da diferenciação e da distinção
social ainda nas sociedades chamadas igualitárias.

A ideologia do mundo ocidental no século XIX estava impregnada de uma


crença sincera no progresso, um mito baseado no significado de aperfeiçoamento,
principalmente para os elementos das elites que se beneficiavam diretamente dos efeitos
da modernização. Sobre isso a autora pontua que:

A crença nesse mito atingiu, nessa época, todos sem exceção. Mesmo
políticos radicais, utópicos ou científicos, estavam convencidos de que o
80

progresso seria capaz de acabar com a escassez de alimentos e derrotar o


grande fantasma que sempre assolou a humanidade, a fome; pois “[...] se
havia o bastante para todos, o futuro não podia deixar de sorrir, e todas as
expectativas estavam implícitas no presente. Para muita gente, as mudanças
não constituíam uma ameaça, e sim uma promessa” (PILLA, p. 111).

Podemos perceber, através do fragmento anterior, que essa nova forma de pensar
que permeava a sociedade do século XIX, que dá destaque a construção de um ideal de
coletividade consciente de seu valor e civilizada, teve suas bases no movimento
Iluminista do século XVIII que trouxe uma ideia de progresso ligada ao
desenvolvimento das sociedades, das ciências, da economia, do progresso.

Segundo essa corrente de pensamento, os avanços científicos se dariam ao


cumprir etapas sucessivas, e é dessa forma que o progresso estaria ligado a ideia de
processo civilizatório. Para muitos dessa sociedade o processo civilizatório que tinha
pretensão de trazer o progresso, não representava uma ameaça e sim a promessa de
consolidar a sociedade e dar fim a vários problemas, inclusive o da escassez de
alimento. Nesse caso, o conceito de civilização está posto de maneira valorativa ligado
ao progresso social, ao desenvolvimento da tecnologia e ao crescimento do conjunto de
informação cientificas no geral.

O processo de civilização do Estado, da Constituição, da educação, oriundo do


pensamento europeu, sobretudo na França, deveria seguir-se ao refinamento das ditas
boas maneiras e à pacificação interna do país pela monarquia. Isto é, a classe média, que
ganhava cada vez mais espaço a cada dia na sociedade francesa, que será exemplo para
a nação brasileira, buscava refinar a sociedade, aplicando a ideia de novos modelos de
sociedade. Buscando assim, promover padrões de sociedade que ocasionalmente
influenciariam o Estado, a constituição e a educação dos chamados povos civilizados ou
em processo de civilização na busca por suprimir os povos que não seguirem esse
modelo padrão.

A autora nos diz que a partir da expansão desses novos modelos civilizatórios
europeus, os manuais de civilidade sofrem o desafio de cumprir sua missão de preservar
a importância dos velhos gestos e ao mesmo tempo se preparar para as novas condições
sociais, políticas e econômicas, principalmente diante de um tempo pós-Revolução
Francesa.
81

Soma-se a esse desafio o compromisso com a ética e a moral, sob a pena de


serem considerados simples artifícios sociais, ou nada mais que vestígios de um mundo
que não existe mais. Isto é, para não se tornar apenas resquício de modelo de uma
sociedade esquecida, o manual de civilidade tem como principal função preservar os
valores sociais, políticos e econômicos de uma dada sociedade. Além disso, ele deve
conduzir essa sociedade a integrar valores éticos morais para construir bons cidadãos.

A forma simplificada e reducionista com que os manuais do século XIX


apresentam seus preceitos sobre a ideia de civilização é prova dessa busca da
simplificação. Destinados a todos que deles necessitassem, serviam, além de
divulgadores de comportamentos referenciados como comportamento padrão, para o
estabelecimento de uma ordem, que por sua vez era marcada por uma intensa
mobilidade social e por um crescente processo de industrialização e urbanização.

Segundo a autora, esse “novo” gênero literário dedicado à “ciência da


civilização” toma força na Europa e nas Américas, graças principalmente ao
crescimento dos índices de alfabetização e ao crescimento editorial. Esses códigos de
conduta, na verdade, apesar da nova roupagem e sob novos auspícios, traziam consigo o
desejo do estabelecimento de regras e modelos para a vida dessa nova sociedade que se
delineava.

No Brasil esse modelo de processo civilizatório ocorre no final do século XIX e


início do XX, em pleno processo de urbanização brasileira, pode-se observar a
intensificação de projetos que visam ‘civilizar’ e europeizar o Brasil, começando pelas
principais capitais, ou mais especificamente pelo Rio de Janeiro.

A intenção de ‘civilizar o país’ passava pelos vários momentos da vida


brasileira, desde as relações políticas e econômicas, chegando às sociais. Era importante
saber viver em uma sociedade em que se assistia o estreitamento dos laços sociais,
período este marcado pela passagem das relações sociais senhoriais às relações sociais
do tipo burguês. De acordo com Pilla, a cidade burguesa teria sistematicamente de lutar
contra comportamentos, atitudes e expressões tradicionais que eram considerados
inadequados para a nova situação.

Ou seja, é possível perceber, nas palavras da autora, que no final do século XIX
e início do XX, em pleno processo de urbanização e modernização brasileira, a
82

intensificação de projetos que visam ‘civilizar’ e europeizar o Brasil, começam a surgir


pelas principais capitais, ou mais especificamente pelo Rio de Janeiro. A intenção de
construir um novo modelo de civilização passava pelos vários momentos da vida
brasileira, desde as relações políticas e econômicas, chegando às sociais.

Nesse processo era construído o ideal de Brasil aos moldes da Europa, que
buscava elencar a imagem do colonizador europeu, a um modelo a ser seguido que
influenciaria a sociedade e que estava sendo pensado para o país no período oitocentista.
Deixando de lado os diferentes povos que habitavam o Brasil no período em questão.
Essas escolhas ocasionalmente não deram conta de promover a identificação do povo
brasileiro em sua imagem em quanto povo, sendo necessária a promoção de debates que
versavam sobre novas roupagens para configuração da identidade nacional do país.

A memória nacional é construída a partir das questões sociais vividas pelos


homens que a instituíram e, interpretando sua época, apropriaram-se dos fatos e a
erigiram à condição de conhecimento histórico, determinando, sem dúvidas, o
conhecimento sobre a história da pátria. A interpretação desses autores deveu-se, à
afirmação dos nacionalismos europeus e dos conflitos daí decorrentes.

Ou seja, os Estados em organização e estabilização, como a Inglaterra e a


França, por exemplo, e os Estados ainda em processo de unificação, como a Alemanha e
a Itália, vão provocar o interesse pelo estudo de sua história nacional, com preocupação
marcadamente ideológica. Partindo dessas influências a historiografia do Império teve
na constituição do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) o principal, mas
não o único centro divulgador de textos históricos, atuando no processo de
fortalecimento do Estado Monárquico. Fundado com a pretensão de tornar-se arquivo e
guardião da história brasileira, estabeleceu diretrizes sobre o que se deveria ou não ser
historicizado. Desse processo iniciou-se a construção de uma memória da história do
Brasil afinada aos projetos de poder de D. Pedro II e sua corte.

Os autores Christino de Cortez & Maria Cecilia Souza (2004) ajudam na


reflexão sobre essa construção da memória voltada ao ensino brasileiro no século XIX
ao nos permitirem perceber que:

Aqui no Brasil, a ideia de sociedade futura foi especialmente acentuada; só


que ao contrário do movimento francês, em que essa utopia estava calcada de
alguma forma mais abstrata ou normativa de progresso, as políticas
83

educacionais procuraram, como é sabido, adequar a escola brasileira a


imagens concretas e recorrentes que espelhavam o presente de países que,
assim se acreditava, tinham conseguido simultaneamente civilização e
riqueza (CORTEZ & SOUZA, 2004, p. 26).

Os autores mostram que aqui no Brasil a escola brasileira moderna, reflexo do


modelo de ensino francês, deveria ser espelhada nas civilizações que fossem
consideradas desenvolvidas e detentoras de riqueza. O ensino secundário no país,
sobretudo no que se refere ao ensino voltado para a elite brasileira, deveria buscar
formas que promovessem a alusão do conhecimento, a metodologias que,
consequentemente, atendessem na vida prática a demanda social que fosse ao encontro
dos interesses do governo.
Em outras palavras, para o campo da história esta abordagem é muito salutar,
pois permite o reconhecimento de que a História ensinada fundamentalmente nas séries
iniciais esteve dominantemente sob o império da memória, não apenas porque havia a
compreensão de que o ensino de História se fazia pela memorização de datas, fatos e
vultos heroicos, mas porque foi a partir do recurso metodológico e historiográfico do
século XIX que a história se tornou um meio importante para dispor da memória e
converter-se em História nacional (TOLEDO, 2004).
Nesse caso, para nós, compreender qual o papel da memória e como ela era
ressignificada na construção desse ideário de nação e de sociedade, nos permite uma
melhor reflexão sobre como eram construídos os compêndios escolares que deveriam
ser utilizados por alunos que em seguida se tornariam a massa pensante do país, apta a
galgar cargos públicos no Estado. Sobre isso os autores nos mostram que:
Quando na educação das elites, se pensava nessas funções, a tensão se
matinha, mas de forma mediatizada: procurar educar o indivíduo na tradição
de cultura, atender as demandas de mão-de-obra de uma sociedade moderna,
disciplinar e desenvolver, guardavam relações de sentido (CORTEZ &
SOUZA, 2004, p. 27).

Ou seja, podemos perceber que a educação brasileira, comumente voltada para a


elite, deveria ser um mecanismo que levasse o indivíduo a ter aptidão suficiente para
atender as demandas de uma sociedade moderna e ao mesmo tempo educar o indivíduo
para se mantiver na tradição cultural e política que estava posta pelo regime de governo
vigente.
84

A memória que se pretendia deixar para as gerações posteriores registrada na


escrita da história dos compêndios traduzidos e produzidos no Brasil, no período
Imperial, estava baseada na construção de um projeto de nação que estava sendo
pensado no intuito de satisfazer os interesses do Império brasileiro.

Sobre a função da literatura na construção dessa memória coletiva Maurice


Halbwachs nos fala que se por um lado “a memória se apega mais ao fato vivido do que
aquele que entramos em contato através dos livros” (2013, p. 79). Por outro lado, é
através da memória histórica deixada para as futuras gerações, que um fato exterior à
nossa vida deixa sua impressão em determinado dia ou hora. E é a partir dessa
impressão que recordamos esse momento. Isso nos faz pensar sobre a importância da
memória histórica como fator de reconstrução de momentos vividos em um
determinado período sobre o qual indivíduos registram o que deve ser ou não
selecionado como objeto a ser perpetuado para as futuras gerações e as escolhas feitas
por cada sociedade no estudo sobre o passado. Corroborando com esse pensamento
Jacques Le Goff nos mostra que:

A memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento


de poder. São as sociedades cuja memoria social é, sobretudo oral, ou que
estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que melhor
permitem compreender esta luta de dominação da recordação da tradição,
esta manifestação da memória (LE GOFF, 2003, p. 470).

Podemos dizer que o estudo da memória coletiva deve ser percebido além de
uma conquista, devemos identificá-lo como um instrumento de poder sobre o qual o
historiador constrói através da oralidade, da escrita, da construção de monumentos e de
documentos considerados “fontes oficiais” o ideal de história de uma determinada
sociedade que deve ser elencado ao conhecimento a ser memorizado, recordado e
perpetuado através do ensino dessa tradição para as futuras gerações.

Contudo, consideramos problemático dizer que as fontes, os documentos e


monumentos materiais construídos para o desempenho da memória coletiva e da
História, são um conjunto do que existiu no passado, por acreditar que estes artifícios
tratam de uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento
temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam a ciência do passado e
do tempo que passa. Nesse caso os historiadores. Nesse sentido, pensamos que o
85

documento não é inócuo pois ele resulta do esforço das sociedades históricas para impor
ao futuro voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No
limite, não existe um documento-verdade, mas sim vestígios deixados intencionalmente
ou não para as novas gerações.

Com isso, podemos dizer que ao analisar questões referentes a concepção de


civilização, identidade nacional, memória coletiva e o fazer historiográfico produzido
no Brasil no século XIX - sob o ponto de vista que existia um projeto político para
criação de um ideário de sociedade forjada de maneira a atender necessidades e
predileções do governo imperial brasileiro - acreditamos que de certa maneira o que
estava sendo posto em jogo, era a luta das forças sociais pelo poder.

Essas relações de poder é que decidiriam o que deveria ser abordado ou não pela
historiografia no IHGB e simultaneamente nos compêndios utilizados pelo ensino
secundário do país. Atrelados a essas escolhas eram selecionados quais conteúdos
seriam e como seriam abordados, deixando como memória coletiva o discurso do
vencedor e como memória silenciada, os discursos que não iam ao encontro dos
interesses do poder público vigente. Nesse sentido, os esquecimentos e os silêncios da
história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.
Assim como também a memória coletiva que deveria ser fixada para garantir os
interesses do governo Imperial brasileiro.

Essa analise nos levou a perceber que a escrita sobre o passado brasileiro é
construída a partir de escolhas que trazem a visão de um passado Ocidental, construído
pela ótica da sociedade europeia, moderna e civilizada, com a qual a monarquia
imperial se sente identificada. Isso consequentemente traz uma visão excludente sobre
determinados territórios existentes na antiguidade, o que resulta em uma escrita da
história do Brasil marcada pela visão do colonizador que apresenta o indivíduo
“civilizado” na concepção Ocidental inferiorizando outras culturas da antiguidade que
dialogavam com esses povos e, por serem negligenciadas, não fazem parte da grade de
ensino do país nos oitocentos como, por exemplo, os povos vindos da Índia, China e
oriundos de determinadas regiões de matizes africanas e do Oriente.
86

2.2. AS REFORMAS E A ESCRITA DA HISTÓRIA ESCOLAR DE


1854 A 1878: algumas reflexões sobre o ensino secundário nos
oitocentos

Para adentramos ao universo da escrita escolar no século XIX e


compreendermos como essa escrita era produzida e o papel do IHGB nesse contexto, se
faz necessário apresentarmos o recorte temporal selecionado para o desenvolvimento de
nosso estudo que é marcado por dois importantes acontecimentos que influenciaram os
membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro na escrita da história no século
XIX e consequentemente a escrita da história escolar do período oitocentista.

Esse recorte é datado de 1854 a 1878 sua escolha se deu por se tratar de um
período de duas importantes reformas no ensino brasileiro sendo elas a reforma de
Couto Ferraz (1854) e Reforma de Leôncio de Carvalho (1878) e tem como justificativa
a necessidade de compreendermos as implicações político-culturais que afetam a escrita
da história escolar no século XIX durante o período dessas duas reformas, bem como o
papel dos estudos clássicos na formação de jovens durante o Segundo Reinado.

Essas reformas envolvem a implementação do primeiro programa de ensino,


chancelado pelo Conselho Diretor, órgão criado pelo regulamento de 17.02.1854,
decorrente da reforma educacional de Couto Ferraz (1854), até a reforma de Leôncio de
Carvalho de 1878, momento em que as dissensões políticas entre o grupo conservador
católico perdem espaço para grupos liberais que passam a disseminar propostas
positivistas, marcadas pela ideia de progresso e evolução.

A Reforma de Couto Ferraz foi tomada como referência para as reflexões por
três motivos: primeiro por se tratar de um esforço governamental pela
uniformização do ensino secundário em escala nacional, a partir da
organização curricular implantada no Imperial Colégio Pedro II, ou seja, o
currículo de tal unidade escolar passou a ser, em tese, uma espécie de núcleo
irradiador de propostas curriculares às escolas secundárias provinciais;
segundo, pelo controle e vigilância sobre instituições escolares, professores e
produções didáticas, estabelecidos por meio da criação de órgãos e cargos
públicos com tais atribuições; terceiro, por promover o ensino religioso,
segundo a moral cristã, tanto no nível elementar, quanto secundário, o que
estabelece uma relação direta com a escrita da história escolar (FARIAS
JÍNIOR & LIMA, 2019, p. 82).

Na busca por melhor compreender o ensino secundário nesse período buscamos


ajuda nos escritos da autora Maria de Lourdes Mariotto Haidar (1972) em sua obra
87

intitulada O ensino secundário no Império Brasileiro, pelo fato dessa autora tratar em
particular do ensino secundário e nos mostrar que, no caso do ensino secundário, a
equiparação dos liceus provinciais em relação ao Colégio Pedro II passou ser apontada
como um meio indireto de uniformizar os estudos preparatórios ao ensino superior em
todo o país sem ferir os direitos constitucionais das assembleias legislativas das
províncias.

De acordo com a Maria de Lourdes (1972) os preparatórios fixados pelo Centro


como condição de matricula nos cursos superiores constituíram, de fato, buscavam
ajustar-se ao padrão estabelecimentos provinciais e particulares de ensino secundário,
cujo currículo acabou por restringir-se as às disciplinas preparatórias. Por um lado, o
sistema parcelado adotado nos exames destinados a conferir o conhecimento dos
candidatos às academias, e as irregularidades de toda ordem que se registraram nesses
exames no decorrer do Império, não apenas levaram a consagração definitiva dos
estudos avulsos, como contribuíram decisivamente para o desmoronamento completo
do ensino secundário.

A autora nos diz que no dia 25 de agosto de 1851, Dias de Carvalho, em emenda
ao projeto de reforma de Couto Ferraz que tinha como pretensão reformar o ensino
primário e secundário na corte, buscava promover a criação de um Liceu de externos na
capital do Império e com esse intuito propôs, novamente, o reconhecimento de diplomas
conferidos pelos Liceus provinciais que se equiparassem ao Colégio de Pedro II e ao
internato.

Esses grupos políticos conservadores estabeleceram a partir dos dispositivos


voltados para organização da instrução primária e secundária, o alcance regulamentador
da Reforma de 1854 aos colégios, profissionais, práticas e estabelecimentos particulares
de ensino. Este Regulamento, aprovado e posto em execução na Corte, traduz uma
vontade de governar para além da sede monárquica, mas tinha como pretensão produzir
efeitos em todo Estado Imperial. Segundo a autora:

A concessão dos privilégios do colégio da corte e dos liceus provinciais


defrontavam-se, entretanto, ainda, com serias resistências e a emenda não foi
aprovada. Diante, porém das dificuldades financeiras que impediam a criação
de estabelecimentos gerais nas províncias, acreditavam os simpatizantes da
centralização do poder sustar a diversificação do país através da atuação dos
presidentes de província, delegados do poder central.
88

Em seu relatório de 1856, o ministro do império Luiz Pedreira do Couto


Ferraz referia-se com otimismo à ação uniformizadora dos presidentes da
província: “respeitando o direito conferido as províncias por lei, mas
convencido de que a uniformidade do ensino traz consigo vantagens reais,
continua o governo a despertar, por meio de seus delegados a atenção das
assembleias provinciais para as reformas admitidas na corte (HAIDAR, 1972,
p. 28).

Tomando como referência citação anterior, podemos perceber que mesmo diante
de dificuldades financeiras existiam, dentre as classes políticas, o desejo de criar um
modelo de ensino que fosse destinado a preparação de indivíduos para governar
determinados cargos públicos. Nesse sentido, apresenta-se uma conexão favorável a
reforma proposta por Couto Ferraz e a intenção de alterar e montar um ordenamento
jurídico-político vigente no campo educacional e, ainda, de instaurar uma política mais
centralizadora no campo do ensino.

Essas medidas e iniciativas correspondem ao tempo em que a tarefa de


modernizar o próprio Estado Imperial estava inscrita nos assuntos relativos à
escolarização. Para o sucesso deste empreendimento político, o aparelho escolar
precisava se submeter à “minúcia dos regulamentos”, ao “olhar esmiuçante das
inspeções”.

Com base nisso, é possível identificar que a representação de ensino como força
civilizatória neste regulamento se edifica a partir das relações entre modelos de inspeção
escolar, enquanto mecanismo de controle, conformação e garantia de aplicabilidade dos
anseios de progresso a ser derramado pela nação. Exatamente por isso, o equipamento
privado de ensino, cuja expansão significativa no dezenove era notada pelas
autoridades, teve suas práticas, ações, profissionais, métodos e modelos de ensino,
inscrito nos termos normalizadores desta regulamentação ao lado do sistema público de
ensino como podemos perceber ao longo da obra da autora.

Ao tratar sobre a Reforma que Leôncio de Carvalho propôs para o ensino, a


autora nos diz que na década de 1870, a elite intelectual brasileira também esteve atenta
aos progressos educacionais buscando uma educação em sintonia com a sociedade
móvel e progressiva. Uma sociedade que passou a demandar uma escola moderna. A
partir de então, outro ideário pedagógico se fez presente nos documentos oficiais da
89

educação de diferentes países, almejando, em particular, articular os saberes


elementares com os anseios sociais modernos. De acordo com a autora:

O Decreto n. 7.274 de 19 de abril de 1879 previa, igualmente a participação do


Poder Geral no desenvolvimento da Instrução nas províncias. No artigo 5 e no
artigo 8 autorizava o governo a subvencionar escolas particulares situadas em
localidades afastadas das escolas públicas, a criar ou auxiliar escolas normais e
cursos para o ensino primário dos adultos analfabetos e a criar e auxiliar
escolas profissionais. Os artigos 10 e 11 autorizavam o governo a fundar ou
auxiliar bibliotecas e museus pedagógicos onde houvesse escolas normais e a
criar e auxiliar bibliotecas populares.
Nos projetos que acompanharam os pareceres sobre a reforma de Leôncio de
Carvalho (Reforma do Ensino Secundário e Superior – 13 de abril de 1882 e
Reforma do Ensino Primário e Várias Instituições Complementares da
Instrução Pública – 12 de setembro de 1882), apresentado por Rui Barbosa,
previa-se a criação de Liceus Gerais semelhantes ao Pedro II nas cidades de
São Paulo e Recife, em substituição dos cursos preparatórios anexos as
faculdades de Direito; autorizava-se o governo a subsidiar a criação de
estabelecimentos normais fundada pelos governos provinciais e a criar nas
províncias escolas de arte aplicada de acordo com a indústria ou industrias
dominantes (HAIDAR, 1972, p. 43).

Com o parecer desses projetos aprovados no que diz respeito a Reforma do


Ensino Secundário e Superior – 13 de abril de 1882 e a Reforma do Ensino Primário e
Várias Instituições Complementares da Instrução Pública – 12 de setembro de 1882, é
possível perceber através dos documentos, apresentados pela autora – os quais tiveram
como autores Leôncio de Carvalho e Rui Barbosa, respectivamente – que eles
demarcam a nova proposta pedagógica para a escola brasileira, em tempos de
modernização. Acreditamos que estes dois documentos foram as primeiras iniciativas da
inserção do Brasil no campo de ideias novas que circulavam no mundo ocidental. Tais
ideias novas colocaram em marcha as diretrizes de uma instrução amparada pela
pedagogia chamada na época de moderna pelos pensadores da época.

Para Haidar, o Colégio configurou-se, durante esse período, como um padrão


apenas ideal, mas não real, tendo em vista a sua coexistência com múltiplas formas de
organização do ensino secundário que adentraram a própria República: as aulas públicas
avulsas; os liceus estaduais, que buscavam equiparar-se ao Colégio de Pedro II; os
colégios particulares seriados; os colégios particulares que ofereciam apenas um
conjunto de aulas isoladas nas quais os alunos podiam matricular-se separadamente; as
aulas de preparatórios anexas às instituições de ensino superior e os exames parcelados
90

de disciplinas isoladas, que persistiram no interior do próprio Colégio de Pedro II.


(MENDONÇA, 2013).

De acordo com Kênia Hilda Moreira (2010) a partir de 1854, quando os exames
preparatórios para o ensino superior passam a ser elaborados de acordo com os
programas do Colégio Pedro II, as demais instituições, colégios provinciais e/ou
particulares, procuraram adequar seus currículos e programas aos do Colégio Pedro II.
Convém salientar que no século XIX, a escrita da História, em geral comprometida com
a construção da história das nações europeias, numa perspectiva genealógica, aludia às
experiências político-culturais das sociedades antigas gregas e romanas como ponto de
partida para compreender o processo civilizacional e o padrão cultural que impulsionou
o Ocidente.

Verifica-se, em outras palavras, o esforço da elite letrada em construir uma linha


de continuidade entre o “novo” e o “velho” mundo, no interior da qual as origens da
nação brasileira não se encontravam na África, mas sim nas sociedades clássicas, Grécia
e Roma. De acordo com Farias Junior e Lima (2019) na visão de Goody:

Sob essa ótica, as sociedades antigas ocidentais, Grécia, Roma, contribuíram


para forjar o que muitos estudiosos chamam de ‘identidade cultural
ocidental’, como se fôssemos herdeiros diretos de práticas culturais
genuinamente ocidentais, ou, dito de outro modo, como se as sociedades
gregas e romanas tivessem construído um campo de experiências culturais
desconectado das sociedades antigas orientais, tais como Israel, China e Índia
(GOODY 2008 apud FARIAS JUNIOR e LIMA, 2019, p. 94).

O ensino de história antiga nas escolas do Brasil no período imperial brasileiro


voltava-se para o conhecimento do progresso humano, dos grandes vultos e datas
memoráveis, dividida em História universal e História nacional. O Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) também criado em 1837, tornou-se responsável pela
inauguração da História do Brasil. O IHGB representa no século XIX a instituição
legitimadora da escrita da História didática e erudita. Seus membros, também
professores do Colégio Pedro II, eram responsáveis pela elaboração dos programas de
ensino e dos livros didáticos. Quanto aos livros didáticos no período imperial, a autora
nos diz que:

Os livros didáticos presentes no início do século XIX eram escassos, seja


pela falta de autores, seja pela falta de editoras em condições de produção. As
primeiras obras didáticas de História geral adotadas no ensino secundário
91

brasileiro eram, em sua maioria, originárias da França ou Alemanha, países


que, junto com a Inglaterra, passaram a produzir histórias universais a partir
do final do século XVIII e durante todo o XIX. As obras utilizadas nas
escolas brasileiras eram, em sua maioria, traduções, adaptações e/ou
compilações de obras estrangeiras. Todavia, muitas delas eram adotadas na
língua original, quando o estudo do idioma estava incorporado no currículo
(MOREIRA, 2010, p. 34).

Podemos perceber através da citação anterior, que para suprir a carência dos
livros didáticos no Brasil no início do século XIX, os autores de livros didáticos de
História, vinculados ao Colégio Pedro II e ao IHGB, considerados, nas palavras da
autora, como “homens sábios, capazes de adaptar obras estrangeiras ao público do
ensino secundário, e especialmente, capazes de auxiliar na tarefa de formar alunos
patriotas”, produziram textos sobre os quais eram feitas traduções, adaptações e/ou
compilações de autores estrangeiros.

A partir da década de 1830, em consonância com uma nova formulação


curricular, a “história sagrada”, a “história universal” e a “história pátria” passaram a
integrar o sistema educacional alinhado ao espírito das luzes do século XIX. O
pensamento liberal característico deste período histórico definiu o papel da educação no
que se refere à formação do cidadão íntegro, industrioso ou produtivo e, sobretudo,
obediente às Leis.

Vários projetos de reforma da educação foram apresentados a câmera dos


deputados com o objetivo de criar o ensino primário no município da corte e servir de
exemplo as províncias que compunham o reino. Essa limitação das reformas ocorria em
função do ato adicional de 1834, que descentralizou o ensino e designou como
responsabilidade do governo geral a manutenção da instrução primária e secundária
apenas no Município da Corte e o ensino superior em todo o império. Mediante um
adiantamento, organizado na secretária da câmera dos deputados, contendo os projetos
relativos à instrução pública.

Dentre os projetos de reforma destaca-se o Decreto n° 7.247 de Leôncio de


Carvalho e os Pareceres/Projeto de Rui Barbosa, que evidenciaram o quanto era urgente
o investimento em educação por parte do governo brasileiro, apresentando de forma
abrangente questões relativas ao ensino. Leôncio de Carvalho marcou o início do
processo de organização da escola pública. Buscou reformar o ensino brasileiro
92

propondo o Decreto n° 7.247 de 19 de abril de 1879 que traçava disposições que


deveriam ser observadas nos regulamentos de instrução primária e secundária no
município da corte, nos regulamentos dos exames de preparatórios nas províncias, nos
estatutos das faculdades de direito e de medicina e nos regulamentos das escolas
politécnicas.

No que diz respeito à Reforma Couto Ferraz de 1854, também escolhida como
recorte temporal da pesquisa, podemos dizer que através dessa reforma o ensino de
História passou estar presente nas últimas seis séries, sendo os manuais e compêndios
didáticos considerados indispensáveis para o início e desenvolvimento dos estudos no
recém reformulado Ensino Secundário. Dessa forma, o ensino de História na escola
secundária brasileira também foi oficializado com a implantação do Colégio Pedro II,
especificamente com a confecção do seu primeiro plano de estudos em 1838, com
grande destaque para os estudos de História Antiga e da História Romana.

Para André Luiz Cruz Tavares o destaque para os estudos da Antiguidade


Clássica dentro do Ensino Secundário brasileiro estava condicionado, portanto, pelo
próprio caráter humanístico desse nível de ensino, sendo a História da Grécia e a
História Romana os principais componentes dessa cadeira.

De forma geral, entre a metade do século XIX e as primeiras décadas do século


XX, a estrutura e conteúdo dos manuais e compêndios didáticos das redes de instrução
pública dos países europeus ocidentais eram norteados não só por certos princípios
políticos (democráticos e republicanos) e pedagógicos, mas seus textos também são
fortemente influenciados pelas “tradições inventadas”, principalmente aquelas
elaboradas por Estados ou grupos e movimentos sociais organizados consideradas
tradições inventadas “oficiais” (TAVARES, 2012).

Nesse sentido, para o autor, o aparecimento e desenvolvimento dessas “tradições


inventadas” estão intimamente vinculados às rápidas e significativas transformações
políticas e sociais que essas nações vivenciaram a partir do século XIX. Essas
transformações determinaram, por sua vez, a elaboração e criação de novos mecanismos
e valores que assegurassem uma nova identidade e a coesão social diante do surgimento
desses novos quadros de relações sociais da época, não mais sustentados pelas formas
93

tradicionais de governo ou pelas determinações das antigas hierarquias sociais e


políticas específicas de épocas anteriores.

De acordo com Glaydson Jose da silva (2008) a origem, como forma primeira de
identidade e de representação, apresenta sua mais importante característica, a teleologia.
Quando os iluministas do século XVIII e os cientistas historiadores, a partir do século
XIX, perguntam-se pela origem do que eram ou do que era a sua civilização europeia,
imediatamente veem-se impulsionados para o mundo greco-romano, e compreendem a
pureza máxima do que era a origem primeira do uso da razão, o modelo para sua
redenção. Definir uma origem torna-se a definir um modelo ético, um modelo político,
uma raça, uma nação, uma missão e um destino, e, também, o valor dos que não
pertencem a essas definições.

No Brasil essa busca para explicar a origem e a formação do mundo, o Ensino


Secundário tinha seu programa curricular básico formado por conteúdos que destinavam
à “História Universal”, os textos e narrativas históricas que se dedicavam à história dos
povos de um passado mais antigo, norteados por premissas epistemológicas particulares
e a Antiguidade Clássica, tornou-se um dos mais importantes “núcleos” desse novo
universo descrito nos compêndios didáticos históricos do Ensino Secundário francês,
com uma função e importâncias ímpares nas narrativas dos povos do passado antigo,
que serviram de modelo de escrita para os compêndios de história brasileiros.

Quando o assunto é tratar sobre a escrita da História Antiga percebemos que os


professores do período oitocentista, muitas vezes membros do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, buscam transcrever a história do mundo antigo ao retratar a
antiguidade a partir do início da civilização humana tal como descrito na religião
judaico-cristã.

Após trabalhar sobre este conteúdo inicia-se posteriormente o estudo da História


do Ocidente onde este se refere ao conhecimento territorial, político e cultural sobre
Grécia e Roma que é produzido com o intuito de produzir uma história com certa
valorização destas civilizações no intuito de promover uma identificação entre a elite
letrada e a cultura europeia abordando também a História do Oriente que se refere as
civilizações de Egito e Mesopotâmia.
94

De acordo com Evandro dos Santos (2018) a escrita sobre o mundo antigo nos
mostra que essa influência da história na construção de uma sociedade virtuosa e ideal,
aos moldes da religião judaico-cristã ganhava destaque no ensino das elites brasileiras.
Permitindo assim que aspectos do presente dialogassem constantemente com as
informações e opiniões sobre o passado.

Dessa forma podemos dizer que o conteúdo referente ao estudo sobre a história
da humanidade presente no currículo das disciplinas de história do ensino secundário
trazia de forma clara o pensamento dos autores da época sobre o que seria o ideal de
civilização moderna e avançada a ser preferido para a nação.

Ao analisarmos uma de nossas fontes de pesquisa que é o Compendio de


História Universal de Victor Duruy (1865) percebemos que essa influência da história
na construção de uma sociedade virtuosa e ideal, aos moldes da religião judaico-cristã
ganhava destaque no ensino das elites brasileiras. Notamos também que o autor ao
descrever sobre as civilizações antigas imprime sua visão de mundo e de modelo de
ideal a ser ensinado para a nova elite quando em suas palavras o autor fala que:

Todos os povos concervárão uma lembrança vaga, como que um êcho


longínquo das ultimas convulsões que agitarão a terra. As desordens
confirmadas pelo aspecto da superfície sólida do globo, algumas
catástrophes, de que até os homens puderão ser testemunhas, como os
diluvius parciaes de que a Grécia fallava, na Assyria, e entre os povos da
extrema do oriente, fizerão popular a crença de que imensos cataclysmas
precederão o aparecimento do homem na terra. Nenhuma porém d’essas
antigas narrações tem a simples e imponente grandeza da do genesis, o
primeiro livro sagrado de judeos e christãos (DURUY, 1865, p. 30, grifos
nosso).

No fragmento acima percebemos a influência do historiador ao colocar sua


concepção de ideal de passado ao se referir a criação do mundo. Notamos que a escrita
da história produzida aos moldes judaico-cristãos, recorrente no Brasil ao longo do
século XIX é retratada de forma superior ao percebermos o autor de certa forma
inferioriza outas narrativas antigas sobre a criação do mundo pois na concepção de
Duruy os escritos que trazem outras visões sobre a criação do mundo não possuem a
grandeza e a credibilidade que é concedida ao livro de Genesis.

Essa visão religiosa sobre o mundo antigo se faz presente na escrita da história
antiga pelos membros do IHGB em território nacional e é bastante difundida nos
95

compêndios escolares que fazem parte do ensino secundário brasileiro. Podemos ver
essa difusão de pensamento também no compêndio de Justiniano Jose da Rocha (1860)
quando autor diz que:

No meio, porém, de todas estas facilidades do erro, que alteram o testemunho


histórico, vai a critica discriminando os factos, explicando-lhes as causas,
revelando o passado, e pondo a humanidade de posse do seu patrimônio de
cerca de sessenta séculos. Para nós, que felizmente somos calholicos, não
haveria tanta difliculdade. Temos nos nossos livros sagrados, naqueltes que a
fé nos diz escriptos sob a inspiração da verdade eterna, guias infalliveis, se os
soubéssemos seguir. Mas a historia no ponto de vista christão, como
cumpriria ser estudada, ainda está por escrever: a historia clássica, qual a
temos, adoplada em todos os livros de educação de todas as nações cultas,
não parte de semelhantes princípios; abstrahe-se da revelação, e só colligo,
com o esforço da critica, o que de mais plausível dizem os escriptores
profanos. Não podemos nós innovar; cumpre-nos seguir o mesmo trilho.
Ainda bem, quanto á historia antiga: Tito Livio e Tácito, Herodoto e
Thucydides, ainda nos seus erros, otferecem a compensação do seu estylo,
das suas longas vistas, e do conhecimento do coração humano (ROCHA,
1860, p. 18, grifos nosso).

Percebemos que a escrita da história universal nos compêndios de Victor Duruy,


traduzido pelo cônego Francisco Bernardino de Sousa e de Justiniano Jose da Rocha
trazem uma visão de mundo marcada pelo catolicismo atuante no século XIX e pela
singularidade do olhar de seus escritores. Trazendo à tona também sua concepção sobre
o mundo antigo, que será analisada em nossa pesquisa de maneira mais detalhada
posteriormente.

Sobre a questão da escrita sobre o mundo antigo e as formas de interpretação


desse conhecimento pelos modernos, Temístocles Cezar nos fala que os grandes
homens das letras no IHGB desempenham, então, uma função de destaque para que a
empresa missionária tenha sucesso; nas palavras do autor: "a fama dos grandes homens,
rompendo as trevas da antiguidade, tem chegado a nós com os documentos de seus
méritos afinados pela história: ela assim premia a virtude muitas vezes perseguida,
restituindo à veneração dos homens a memória daqueles que dela se fizeram dignos". A
memória virtuosa a ser preparada para ser preservada pela elite é uma visão que faz
referência a antiguidade a partir da criação do mundo pelo Deus Judaico-cristão. De
acordo com o autor:

Uma sútil precisão impõe-se aqui. Se a história faz os grandes homens, então
os historiadores que fazem a história (que a "purificam") são os verdadeiros
mestres do jogo. Fazedores da história, eles controlam os destinos dos
grandes homens, ou, dito de outro modo, os vivos controlam os mortos e os
mortos servem aos vivos. Eis uma variação da religião historiadora adotada
96

no IHGB. Resta saber se o grande homem é um herói acabado ou um


candidato a herói. Independente da resposta, os historiadores do IHGB têm o
poder de decidir. Eles se colocam, assim, em uma posição quase divina.
Criam sua própria providência (CEZAR, 2004, p. 23).

Para o autor, os historiadores do IHGB são os grandes mestres do jogo, eles


controlam a escrita da história e o destino dos grandes personagens e das civilizações
que devem receber destaque ou não na escrita da história. Os historiadores do IHGB são
responsáveis por produzir o conteúdo que deve ser ministrado e ensinado para as elites
de acordo com os anseios que são estabelecidos para a mesma.

Nesse sentido, o Historiador imprime sua visão de mundo na escolha dos heróis
e civilizações a serem destacados e também marginalizados na escrita ou
tradução/adaptação de seus compêndios. O que nos permite enxergar de forma mais
clara que a seleção de conteúdos para fazer parte da escrita da história oitocentista feita
pelo IHGB seja sobre o âmbito da história dita nacional ou sobre a história da
antiguidade é intencional e tem a função de legitimar o interesse dessa elite letrada.

De forma mais precisa, o que se deve observar é o parâmetro de que a conhecida


sujeição da disciplina histórica ao grande sentido político exterior, qual seja, a nação,
não eximia os letrados do século XIX de serem responsáveis por certa alternância
epistemológica que resultava em efetivas mudanças sociais, à revelia das limitações
variadas engendradas no contexto de fundação do IHGB.

Nas palavras do autor, no tocante à presença de autores antigos na historiografia


do Brasil oitocentista, entre outras ponderações, sugere-se que o espaço compartilhado
por antigos e modernos pode ser visto como espaço político, ambientes onde
determinados pontos de vista seriam aos poucos estabelecidos, sem qualquer direção
estrita. Ainda assim, a questão de fundo político não impedia formulações de conotação
disciplinar (SANTOS, 2018).

A escrita da história no IHGB é marcada por homens que ocupavam espaços de


poder e que tinham, em decorrência disso, como principal interesse legitimar o
sentimento de pertencimento e nacionalidade do país no período imperial. A História
Antiga ao seguir a narrativa da religião judaico-cristã contribuía para referendar o
catolicismo em detrimentos das demais práticas religiosas.
97

A narrativa oitocentista produzida de maneira mais abrangente e descritiva com


o intuito de narrar os fatos históricos referentes a antiguidade realizada pelos
historiadores do século XIX permitiu que os historiadores do IHGB que por sua vez
escreviam e traduziam os compêndios escolares do ensino secundário, produzissem
obras que narrassem as civilizações antigas a partir da formação do espaço geográfico
de seu território, da história dos grandes personagens e das grandes guerras que
chamavam atenção desses pensadores, que por sua vez imprimiam seu ponto de vista
sobre o passado com a intensão de moldar o conhecimento da elite para que esta, por
sua vez, obtivesse uma imagem de ideal a seguir, onde este ideal de civilização fosse ao
encontro do ideal de projeto político pensado para o país pelo Governo Imperial.

Para entendermos melhor como eram produzidos e traduzidos os compêndios de


História Universal, assim como seus autores e tradutores; a forma de escrita, difusão e
circulação dessas obras, se faz necessária uma análise mais profundada sobre a escrita
da história escolar no Brasil no período oitocentista. Sobre essa temática trabalhamos a
seguir.
98

2.3. A ESCRITA DA HISTÓRIA ESCOLAR NO SÉCULO XIX:


análise sobre os manuais oitocentistas; produção, circulação e recepção

O livro didático representa uma ferramenta pedagógica muito importante no


cotidiano escolar de muitas salas de aula no Brasil ao longo dos tempos. Não podemos
deixar de lado que seu uso nas diferentes escolas públicas e particulares do país é
resultado de uma conquista social, por isso devemos valorizá-lo como recurso
pedagógico a serviço do professor e amparado por políticas públicas dirigidas à
educação, responsáveis pela avaliação, compra e distribuição, no entanto, como
pesquisadores não deixaram de problematizar a narrativa histórica escolar, já que
partimos do pressuposto de que nenhum discurso é neutro ou desinteressado.

Antonio Viñao (2014) em sua obra Les disciplines scolaires dans


l’historiographie européenne Angleterre, France, Espagne10 trata das disciplinas
escolares na historiografia europeia em países como Inglaterra, França e Espanha; em
sua obra o autor traz como temas centrais de analise o currículo e o livro didático na
construção das disciplinas escolares desses países através da análise de duas revistas de
educação onde nos mostra que as disciplinas escolares, durante muito tempo
consideradas naturais, tornam-se agora objeto de investigação histórica. Em suas
palavras:

L’histoire des manuels et celle des disciplines scolaires sont deux choses
distinctes. Cependant, si certains aspects de l’histoire des manuels scolaires
(ceux qui envisagent cet objet comme un produit commercial, textuel et
imprimé, ou qui concernent sa régulation) n’ont qu’un rapport indirect ou
lointain avec l’histoire des disciplines, l’histoire des manuels scolaires ne
prend tout son sens qu’en s’inscrivant dans le cadre plus large de l’histoire
des disciplines, en particulier si l’on se réfère aux niveaux secondaire et
supérieur de l’enseignement. D’um autre côté, comme l’a fait remarquer
Dominique Julia, l’histoire d’une discipline ne peut certes pas se réduire à
l’analyse de ses contenus à travers les manuels utilisés pour son
enseignement, mais ne peut non plus se passer de cette analyse et de celle du
matériel pédagogique mis en oeuvre. Ces deux remarques préalables ont une
importance particulière compte tenu du nombre de travaux qui abordent
l’histoire des disciplines scolaires à travers leurs manuels (par exemple, ceux
qui ont été produits dans la mouvance du projet MANES, ou les études sur
l’enseignement de l’histoire analysées par R. Valls), alors qu’il conviendrait
d’insérer ces travaux dans le cadre de l’histoire des disciplines et qu’il serait
certainement préférable, au lieu de continuer à analyser les disciplines

10
Ver VIÑAO, Antonio. Les disciplines scolaires dans l’historiographie européenne. Angleterre, France,
Espagne, Histoire de l’éducation [En ligne], 125 | 2010, mis em lignele 01 janvier 2014.
99

scolaires à travers leurs manuels, d’analyser les manuels en partant de


l’histoire des disciplines (VIÑAO, 2014, p. 85-86)11.

A história dos livros didáticos e das disciplinas escolares são duas coisas que se
diferem. Contudo, de acordo ele, se por um lado, certos aspectos da história dos livros
didáticos que consideram esse objeto como um produto comercial, textual e impresso,
dizendo respeito a sua regulamentação tem apenas uma relação indireta ou distante com
a história das disciplinas. Por outro lado, a história dos livros didáticos mercê destaque
não apenas no contexto mais amplo da história do assunto, mas principalmente quando
se refere aos níveis de ensino secundário e superior. E, é sobre este assunto que tratamos
nesse momento.

Ao longo dos debates anteriores em nossa narrativa, nosso escrito teve como
principal finalidade propor uma reflexão sobre os usos do passado na construção do
saber escolar levando em consideração os estudos de história e historiografia no Brasil
entre os anos de 1850-1870 e sua contribuição para a criação de um ideário nacional em
território brasileiro.

O intuito desse debate era analisar os principais aspectos ocorridos no campo da


historiografia em um período que se buscava construir projetos de nação que atendesse
às demandas político-culturais da sociedade imperial. Nossa investigação pretendeu
considerar o papel do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) durante o
processo de construção de uma narrativa sobre a nação que ambicionava, entre outros
objetivos, legitimar a ordem social vigente.

Essa reflexão foi necessária para que pudéssemos dar início a nossa investigação
que tem como pretensão desenvolver uma análise sobre a escrita da história escolar no
século XIX. Propomos uma narrativa que versa sobre a tentativa de responder a algumas
questões, como por exemplo: o papel do livro didático como fonte de pesquisa histórica

11
A história dos livros didáticos e das disciplinas escolares são duas coisas distintas. No entanto, se por
um lado, certos aspectos da história dos livros didáticos (aqueles que consideram esse objeto como um
produto comercial, textual e impresso, ou que dizem respeito a sua regulamentação) tem apenas uma
relação indireta ou distante com a história das disciplinas, por outro, a história dos livros didáticos é
significativa não apenas no contexto mais amplo da história do assunto, mas principalmente quando se
refere aos níveis de ensino secundário e superior (VIÑAO, 2014, p.85- tradução livre).
100

e a escolha, produção, circulação e difusão dos livros didáticos no período imperial


brasileiro.

Isto acontece porque ao pensarmos o saber escolar e a escrita da História


Universal, de forma mais específica, os estudos sobre a democracia ateniense, conteúdo
referente a Grécia Antiga, nos compêndios de História Universal de Justiniano Jose da
Rocha (1860), Pedro Parley (1869) e Victor Duruy (1865) utilizados no Brasil entre as
duas reformas citadas no tópico anterior, nos chama bastante atenção o papel exercido
pelo livro didático como difusor de conhecimento e instrumento utilizado para legitimar
aquilo que deveria ser ou não apreendido por aqueles a quem esse conhecimento era
destinado durante o período trabalhado na pesquisa.

No que diz respeito ao uso do livro didático como fonte histórica, recorremos à
obra História dos livros e das edições didáticas sobre o estado da arte do autor Alain
Choppin (2004) que nos mostra que os livros didáticos e seus conteúdos estão ganhando
cada vez mais espaço nas pesquisas ao longo do tempo. De acordo com o autor os livros
didáticos assumem conjuntamente ou não, quatro funções essenciais que podem variar
de acordo com o ambiente sociocultural, os níveis de ensino, à época, os métodos de
ensino e as formas de utilização, sendo elas: a função referencial, a função instrumental,
a função ideológica e cultural e a função documental.

Aos termos contato com as quatro funções existentes atribuídas ao livro didático
na obra de Choppin (2004) podemos refletir sobre as funções exercidas pelo livro
didático como ferramenta de legitimação de poder existente, em que o livro didático
seria utilizado como instrumento de modelo de civilização a ser seguido no que se refere
a escolha dos conteúdos escolares referente ao estudo de História Antiga. Esta obra
além de nos possibilitar compreender as dificuldades de se trabalhar o livro didático
como fonte pesquisa histórica, também nos remete a refletir sobre as funções que são
exercidas pelo livro didático em quanto difusor do conhecimento.

Para entender os caminhos do ensino brasileiro nos oitocentos e a maneira como


era regida a legislação escolar e como se dava em território nacional o processo de
produção, circulação e divulgação do saber escolar são as obras de Circe Bittencourt 12

12
Ver: BITTENCOURT, Circe. Autores e editores de compêndios e livros de leitura (1810-1910).
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 475-491, set./dez. 2004.
101

que nos dão suporte teórico para aprofundar nosso trabalho uma vez que a autora, em
sua narrativa nos ajuda a dar luz a nossa investigação na medida em que trabalha a
história do livro didático no processo de constituição do ensino escolar brasileiro no
decorrer do século XIX e primeiros anos do século XX.

A proposta dos escritos de Circe Bittencourt é pensar o livro didático de forma


ampla, acompanhando os movimentos que vão da sua concepção à sua utilização em
sala de aula. Bittencourt (2004) propõe uma reflexão sobre o papel do livro didático na
construção do saber escolar que, por sua natureza, deve ser considerado em um conjunto
mais geral no qual aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos se articulam.
Segundo ela:

O livro didático e sua história somaram-se aos problemas do saber escolar,


cuja essência busco definir. Essa reflexão é necessária uma vez que o
conteúdo dos manuais é confundido com o saber escolar por excelência.
Trata-se de um conhecimento concebido como cientifico, ou criado com
certo rigor em centros considerados academicamente como tal e que é
proposto de acordo com regras determinadas pelo poder constituído ou por
instituições próximas a ele, construindo-se, dessa forma, o saber a ser
ensinado difundido pelas disciplinas escolares distribuídas pelos programas e
currículos escolares. O saber ensinado transforma-se em saber ensinado na
sala de aula, onde o professor é o elemento fundamental tanto na
interpretação que fornece a esse conhecimento proposto como nos métodos
que utiliza em sua transmissão, com os meios de comunicação que dispõe.
Finalmente para a configuração integral do saber escolar, temos o saber
apreendido, ou seja, o conhecimento incorporado e utilizado pelos alunos de
acordo com a vivencia de cada um deles, das condições sociais e das relações
estabelecidas no espaço escolar (BITTENCOURT, 2008, p. 16).

Em outras palavras, podemos perceber que o livro didático assim como sua
história somaram-se as inquietações referentes ao saber escolar; refletir sobre seu
pensamento é necessário uma vez que, em nossa pesquisa, trabalhamos os conteúdos
dos compêndios de História Universal. Para a autora, o saber escolar não resulta de um
conhecimento construído no espaço escolar por meio do diálogo entre professores,
alunos e livros didáticos; mas, ao contrário, era concebido como um saber proveniente
do meio acadêmico sintetizado em compêndios, cujos conteúdos deveriam ser
memorizados e reproduzidos em avaliações.

Para Bittencourt (2008, p. 16) o uso permanente do livro a partir das primeiras
escolas do século XIX, integrado ou não aos métodos determinados como tradicionais
de ensino, foi o ponto de partida para análise do livro como fonte histórica. Segundo ela
102

“livro didático foi se constituindo como um problema a ser desvendado de onde surgem
constantes indagações sobre à pratica escolar que temos vivenciado ao longo da
história”. O espaço escolar está intrinsecamente associado à construção do livro
didático, se considerar que a escola é, fundamentalmente uma instituição contraditória,
onde dominação e conflitos sobre a escolha do conteúdo a ser ensinado nas escolas
convivem no cotidiano de alunos e professores desde sua criação pelo Estado Nacional.

A trajetória de produção dos primeiros autores brasileiros nos possibilita


identificar algumas das características das relações entre autor, editor e Estado. Permite
constatar as especificidades do texto didático e a complexa teia de interferências a que o
livro é submetido. Esses primeiros autores, com maior ou menor autonomia, foram os
criadores de textos didáticos que possibilitaram a configuração de uma produção
nacional, com características próprias. Mesmo que a forma se assemelhasse aos livros
estrangeiros, os textos escolares expressaram uma produção própria que buscava
atender as condições de trabalho dos professores das escolas públicas que se
espalhavam pelo país (BITTENCOURT, 2004).

De acordo com Bittencourt (2008) no Brasil, no decorrer do século XIX, Estado


e Igreja, afastando-se ou aproximando-se, produziram e efetivaram projetos
educacionais variados, provocando conflitos ou conciliando interesses que expressavam
a contradição inerente à educação escolar proposta com bases econômicas e políticas
configuradas a partir da Revolução Francesa.

A educação a ser exercida nas escolas deveria ser estendida ao conjunto da


população, obedecendo aos princípios de legitimidade impostos pelo ideário liberal
europeu. O poder exercido deveria estar subordinado a vontade da nação, expressa pelo
voto, pressupondo, portanto, a educação do eleitor para o exercício do poder.

A legitimação do poder político pelo voto obrigou as classes dirigentes a


estabelecer que parcela da população gozaria desse privilegio. A escola agora, não
poderia continuar dedicando-se, exclusivamente, à educação da elite tradicional
brasileira, pois existiam, agora, outras necessidades oriundas de novos
empreendimentos que precisavam garantir o aumento da produtividade.

A concepção de livro didático e a sua destinação eram determinações quase


exclusivas do poder político educacional, que procurava, no grupo da elite intelectual,
103

apoio para a produção desse tipo de literatura. Tivemos assim, na geração dos
iniciadores da produção didática, figuras próximas ao governo, escritores de obras
literárias, sobretudo os principais encarregados do “fazer científico” da época.

Consideramos os manuais de História oitocentistas, chamados à época de


compêndios, como um documento que congrega, ao menos em parte, valores e
princípios sociais de um grupo social, responsável pela definição dos conteúdos
escolares. Uma vez que estas obras foram produzidas e traduzidas por uma geração de
intelectuais no período oitocentista brasileiro que buscavam adaptar ao caso brasileiro
obras estrangeiras de forma que o conteúdo presente fosse ao encontro do interesse do
governo imperial brasileiro, que buscava para o Brasil o ideal de civilização europeu.
As relações entre autores e editores de livros didáticos nesse contexto, devem considerar
o livro didático como objeto mercadológico, unindo autor e editor em busca de
aprovação e comercialização da obra didática.

No tocante as editoras, Moreira (2010) nos diz que, findado o monopólio da


Impressão Régia, a partir de 1822 - que posteriormente passa a se chamar de Tipografia
Nacional - três editoras iniciam no mercado nacional no século XIX, todas elas sediadas
no Rio de Janeiro, a saber: editora dos irmãos Laemmert, que substituiu a Tipografia
Nacional, a editora de B. L. Garnier que dominou a área editorial no país até os
primeiros anos do século XX e a editora Alves, posteriormente denominada Francisco
Alves, se especializando na produção de livros escolares e abrindo filial em São Paulo
em 1894. Essa editora compra a editora e livraria Laemmert em 1909, conforme
Hallewell (2005). Em São Paulo a editora Duprat e Companhia publicou, dentre outras,
as obras do Padre Raphael Maria Galante. Além dessa editora, localizamos a tipografia
industrial de São Paulo, a tipografia dois de dezembro de Antonio Louzada Antunes e a
José Maria Lisboa. Tipografias menores, muitas delas regionalizadas, também editaram
obras didáticas nesse período, tais como: Imprensa Econômica, na Bahia; tipografias
Imparcial e Lailhoar em Pernambuco; e Livraria Selbach, em Porto Alegre (MOREIRA,
2010).

As editoras escolhiam autores vendáveis, ou seja, que tinham a aceitação do


público escolar, e por outra via, os autores recorriam a editoras que propiciassem a
divulgação e distribuição necessária de suas obras. No entanto, a comercialização do
104

livro didático sempre dependeu do Estado, seja para aprovar ou para comprar as obras, o
que levou as editoras a elegerem autores vinculados ao poder educacional.

Podemos citar como exemplo dessas escolhas nossas fontes de pesquisa, sendo
elas: a obra de Pedro Parley, História Universal resumida para uso das escolas comuns
dos Estados Unidos da América do Norte que é traduzida para uso das escolas do
Império do Brasil pelo desembargador Lourenço José Ribeiro, editada pela Laemmert
por volta de 1857, adotada pela Escola Americana de São Paulo. O compêndio
produzido no Brasil escrito por Justiniano José da Rocha denominado de Compendio de
História Universal – História Antiga, publicado em 1860 e divulgado no 23º catálogo da
B. L. Garnier, em 1866, e também o Compendio de História da idade média, em terceira
edição em 1876, pela livraria Serafim José Alves.

No prefácio do compêndio de História Universal - História Antiga Justiniano


Jose da Rocha afirma que se utilizou da obra de Calógeras como fonte de pesquisa. João
Baptista Calógeras (1810-1878), naturalizado brasileiro, diretor da Secretaria de Estado
nos Negócios do Império e primeiro oficial do gabinete no Ministério dos Negócios
Estrangeiros, sócio do IHGB, fundador de colégios no Rio de Janeiro e professor,
escreveu Compêndio de história da idade média, adotado pelo conselho da instrução
pública (MOREIRA, 2010).

A presença do poder político no IHGB foi constante durante todo o império,


tendo d. Pedro II participado assiduamente de suas reuniões. Não é, também, por mero
acaso que encontramos na lista do IHGB vários nomes de professores do Colégio Pedro
II e muitos deles foram os responsáveis pelas mais conhecidas e divulgadas obras
didáticas destinadas ao curso secundário.

Tais autores possuíam, portanto, estreitas ligações com o poder institucional


responsável pela política educacional do Estado, não apenas porque eram obrigados a
seguir os programas estabelecidos, mas porque estavam “no lugar” onde este mesmo
saber era produzido. A primeira interlocução que os autores estabeleciam era
exatamente com o poder educacional institucionalmente organizado. O “lugar” de sua
produção situava-se junto ao poder e realizava-se para consolidar o poder instituído por
intermédio dos colégios destinados à formação das elites, dialogando com intelectuais e
políticos responsáveis pela política educacional (BITTENCOURT, 2004).
105

Essa relação entre o lugar de escolha, produção e circulação dos livros didáticos
nos permite refletir sobre as relações de poder que envolviam o saber escolar no século
XIX. Consideramos que o livro didático é um documento que apresenta a maneira como
determinada época pensa o que e como ensinar, além de retratar temas e sujeitos de
maneira singular, o que fundamenta uma versão oficial da História. E é nesse sentido
que objetivamos problematizar as narrativas históricas escolares presentes nos manuais
de ensino de História do século XIX.

Os compêndios escritos para o público estudantil geralmente eram de literatura,


gramática, história e geografia, dedicados ao ensino secundário, majoritariamente, e em
menor escala para as “escolas de primeiras letras”. Os autores, com raras exceções e
pela condição da disciplina, inspiravam-se ou mesmo adaptavam obras estrangeiras. Os
livros de matemática, então desdobrada em aritmética, geometria, álgebra exemplificam
essa produção modelada em obras europeias, lembrando ainda que os programas
curriculares eram originários e “traduzidos”, em sua maioria, da França
(BITTENCOURT, 2004).

Nesse caso, podemos perceber que educação a escolar foi ao longo do século
XIX planejada e acompanhada pelo poder governamental, que passa então a usar de
vários mecanismos que tem como objetivo direcionar e controlar o saber a ser
disseminado. De acordo com Farias Júnior & Lima (2019) o IHGB ganha destaque não
apenas na construção de uma identidade nacional e no contar de sua história, mas
também no ensino dela, por isso sua análise da escrita histórica escolar pode nos
auxiliar a compreender de que modo a Antiguidade foi instrumentalizada por escritores
ligados ao IHGB para satisfazer a interesses e objetivos políticos, subjacentes à escrita
dos compêndios de História Universal.

Em linhas gerais, podemos dizer, a partir da análise dos autores, que, no pós-
independência, o principal objetivo da proposta de ensino secundário brasileiro
continuava a ser a formação das elites dirigentes e a questão predominante da narrativa
histórica em compêndios de História versava sobre a identidade nacional bem como
reflexões sobre a construção da nação brasileira. Dado o exposto, a valorização dos
estudos clássicos, pelo menos até meados da década de 1870 nas escolas secundárias do
Império do Brasil, torna-se a principal característica dos programas de ensino de
106

instrução pública, como pode ser percebido nos programas para o ensino de História no
período em questão, tal como diagnosticados por VECHIA, A e LORENZ, K. M. em
‘Programa de ensino da escola secundária brasileira: 1850- 1951’ (1998). Presentes nas
imagens I e II.

IMAGEM I. PROGRAMA DE ENSINO DA ESCOLA SECUNDÁRIA


BRASILEIRA: 1850-1951 (1998)

Fonte:VECHIA, A; LOREN, K. Programa de Ensino da Escola Secundária Brasileira –


1850/1951.
107

IMAGEM II. PROGRAMA DE ENSINO DA ESCOLA SECUNDÁRIA


BRASILEIRA: 1850- 1951 (1998) (Continuação)

Fonte:VECHIA, A; LOREN, K. Programa de Ensino da Escola Secundária Brasileira –


1850/1951.

Podemos perceber através da imagem anterior que os estudos clássicos, se não


identificados de maneira direta nas disciplinas de História, permeavam as demais
disciplinas. Nessa perspectiva, as propostas relativas ao livro didáticas contidas nos
discursos dos ministros do estado, presidentes de província/Estados, deputados e
senadores, administradores, inspetores escolares, revelam que existiram dois momentos
diferenciados para a elaboração dessa produção, uma delas foi a fase inicial que
correspondeu a projetos que insistiam sobre a necessidade de se construir livros
seguindo modelos estrangeiros, notadamente franceses e alemães. De acordo com a
autora:

Muitas figuras que se destacaram como secretários do IHGB foram também


autores de livros didáticos. O cônego Caetano Fernandes Pinheiro (1859-
1876), dr. Duarte Moreira de Azevedo (1880-1886), Joaquim Manuel de
Macedo (1852-1856) e Max Fleiuss (1900-1905). Além do papel que
desempenharam na entidade, como secretários, tinham todos eles uma
atuação dinâmica, conciliando seu trabalho de “cientistas” com outros cargos,
108

quer como professores, quer como profissionais liberais. Os secretários


compuseram um segundo escalão importante para a sobrevivência da
instituição e deles dependia a imagem e a produção científica do IHGB. Sem
serem nomes famosos, eram os que lutavam para conseguir aproximar-se e
desfrutar dos privilégios do poder. O IHGB abrigou outros nomes, entre seus
sócios efetivos, que deixaram textos escolares como uma de suas
contribuições culturais sem que, entretanto, alardeassem estas atividades
(BITTENCOURT, 2004, p. 481).

A geração de intelectuais do início dos oitocentos determinou que através dos


planos de ensino os livros escolares fossem adaptados de obras estrangeiras, podendo-se
mesmo traduzir-se algumas, que existissem nas outras nações cultas. Contudo estas
traduções deveriam ser adaptadas de acordo com o plano de ensino apropriado para a
nação. A constatação de alguns dos problemas que envolvem os autores quanto ao seu
papel na elaboração do livro nos faz indagar se tensões e conflitos dessa natureza são
inerentes à produção do livro didático e, portanto, visíveis em outros momentos de sua
história.

Dessa forma, a preocupação em traçar o perfil dos primeiros autores de livros


didáticos, no decorrer do século XIX e início do século XX, centrou-se na apreensão das
articulações entre os diferentes sujeitos sempre presentes na produção didática,
destacando a atuação do Estado e das editoras.

A trajetória de produção dos primeiros autores brasileiros possibilita identificar


algumas das características das relações entre autor, editor e Estado. Permite constatar
as especificidades do texto didático e a complexa teia de interferências a que o livro é
submetido. Esses primeiros autores, com maior ou menor autonomia, foram os criadores
de textos didáticos que possibilitaram a configuração de uma produção nacional, com
características próprias.

De acordo com Toledo (2005) na concepção de Bittencourt (1993) o emprego de


autores estrangeiros no ensino brasileiro foi muito frequente no ensino da História
Universal. Para ela o exemplo dessa manipulação sobre os conteúdos no compêndio de
Victor Duruy é marcante. A tradução do professor do Colégio Pedro II, o clérigo
Francisco Bernardino de Souza, não obedeceu exatamente aos princípios do historiador
francês. A intervenção do tradutor foi responsável por algumas alterações importantes
na obra. Onde a autora exemplifica mostrando que:
109

No original, (...) Duruy buscou apresentar uma configuração geral dos


continentes e as formas de comunicação estabelecidas entre os diferentes
povos. No capítulo II, (...), o autor apresentava as tradições bíblicas sobre os
primeiros homens para explicar que as 3 raças humanas estavam presentes na
versão religiosa católica,(...).O tradutor brasileiro inverteu a apresentação dos
capítulos. Iniciou o livro com o Tempos primitivos – Tradições bíblicas –
fundação dos impérios e no final incluiu, resumidamente os limites do mundo
conhecido pelos antigos. A inversão dos temas,(...), indicou um reforço
quanto à versão cristã da história do homem, interpretação que Duruy
atenuou ao enxertar os pareces científicos quanto à origem das raças humanas
(BITTENCOURT, 1993, p. 177 apud TOLEDO, 2005, p. 6).

Além disso:

No livro de Duruy há um total de 62 capítulos organizados em 340 páginas.


A versão brasileira é de 433 páginas onde houve mudanças na disposição e
apresentação dos capítulos ( 20 capítulos para cada período), com omissões
de alguns sub-ítens e há acréscimos de conteúdos com a inclusão de um
capítulo do final da História da Idade Média, XX-Portugal-Breve resumo da
história de Portugal até o resinado de Afonso V e outro ainda sobre o reino
português durante o período da História Moderna, desde o reinado de D. João
II até o de D. Pedro V (BITTENCOURT, 1993, p. 177 apud TOLEDO, 2005,
p. 6).

Perceber essas adaptações e alterações na tradução da obra de Victor Duruy é


importante, pois nos possibilita refletir sobre a singularidade do olhar de seu tradutor o
cônego Francisco Bernardino de Souza, sua escrita é marcada por seu local de fala e os
interesses inerentes a produção historiográfica do período no qual está inserido.

No que se refere a Justiniano José da Rocha, autor do primeiro compêndio de


História Universal produzido em solo brasileiro, podemos dizer que Justiniano era um
brasileiro mestiço que estudou na França, no Collège Henri IV, e formou-se em Direito,
na Faculdade de São Paulo. Justiniano foi integrante do primeiro corpo docente do
ICPII, membro do IHGB, jornalista de destaque no Brasil Imperial, defensor do Partido
Conservador, deputado eleito pela Província de Minas Gerais, entre outras atividades. É
a esse contexto que se relaciona o autor do Compêndio de História universal. Além de
pertencer ao IHGB e ao ICPII, Justiniano José da Rocha era membro do Conselho
Diretor de Instrução Pública. Tais cargos devem ser evidenciados ao considerarmos que
o autor tinha mais de uma obra aprovada com amplas aceitações nas escolas da Corte.
Neste sentido, podemos perceber a ligação intrínseca entre o ICPII e o IHGB
(MOREIRA, 2010).
110

Sobre A obra de Pedro Parley, História Universal resumida para uso das escolas
comuns dos Estados Unidos da América do Norte a autora Circe Bittencourt nos diz que
essa obra foi traduzida para uso das escolas do Império do Brasil pelo desembargador
Lourenço José Ribeiro, editada pela Laemmert por volta de 1857. A obra foi adotada
pela Escola Americana de São Paulo. De acordo com Bittencourt (1993) havia bastante
liberdade no momento das traduções das obras para o português e “o tradutor
transformava o texto de acordo com seus interesses e ideologia”.

Nesse caso, perceber essa ligação entre os autores escolhidos para o nosso
estudo, o ICPII e o IHGB nos levam a refletir sobre a possibilidade desses autores e
tradutores de obras destinadas ao ensino no Brasil, produzirem uma escrita da história
de fosse ao encontro dos interesses dos grupos aos quais eles pertenciam. A relação
existente entre os autores e as editoras e os projetos políticos a serem desenvolvidos
para a sociedade brasileira nos oitocentos também deve ser levada em conta ao
produzirmos uma análise mais minuciosa sobre as fontes escolhidas para o
desenvolvimento de nossa pesquisa.

Os crescentes progressos do setor industrial e, por consequência, os


deslocamentos das massas para os centros urbanos foram acontecimentos que
configuraram um período de reafirmação de uma nova sociedade. No que diz respeito a
modernização da educação importantes iniciativas foram tomadas: a exemplo, as
Exposições Universais. Nelas, as seções escolares marcaram presença a partir de 1862,
contemplando toda a educação desde o jardim de infância às universidades. Porém, a
ênfase recaía ao ensino primário. As seções marcadas para decidir os caminhos do
ensino brasileiro aconteciam através do encontro de gestores educacionais de diferentes
países cada um com seus objetivos específicos, mas todos tinham por objetivo geral
saber o que e como distintas nações estavam pensando a educação para um mundo em
progresso e em modernização científica.

No que diz respeito à educação voltada para a sociedade brasileira dos


Oitocentos, defendemos que a tradição clássica veiculada no Brasil por meio do ensino
reproduzia uma perspectiva eurocêntrica e com ela um conjunto de valores e princípios
político-culturais que conferia inteligibilidade ao que se entendia por processo
civilizacional. Sendo assim, tratava-se de uma narrativa com a qual as famílias
111

abastadas, em particular, deveriam se identificar para justificar o status de membros


pertencentes a uma nação civilizada.

Dito de outro modo, a História Antiga, ressignificada ou revisitada por


historiadores do século XIX, escrita para ser entendida no interior dos desdobramentos
da história das nações europeias. Uma nação, sob as categorias de pensamento da
historiografia anglo-americana e germânica do século XIX, respaldada pelos adeptos da
arqueologia histórico-cultural, era concebida como sendo formada por um povo, uma
língua, uma só ancestralidade e uma cultura comum e, para a maioria dos pesquisadores
europeus, a História das civilizações ocidentais começava na Grécia Antiga, o que
contribuía para forjar a concepção de ‘identidade cultural do Ocidente’(FARIAS
JUNIOR & LIMA, 2019).

De acordo com Pena (2008)13 os conhecimentos conectados à tradição Clássica


constituíam um ideal de erudição e cultura enormemente valorizados nos países que
perseguiram uma concepção de civilização advinda da Europa, como o próprio Brasil
no início do século XIX. Esta erudição ligada a tradição Clássica permeava grande parte
dos campos do conhecimento, como a filosofia, a retórica, os estudos das línguas
antigas (grego e latim, principalmente), aritmética, história, dentre outros. Essa
valorização da herança cultural da antiguidade nos diversos campos de conhecimento
tem um reflexo direto na instrução pública, que deveria difundir o ideal de civilização
através do ensino.

Assim, inferimos que, no pós-independência, o principal objetivo da proposta de


ensino brasileiro continuava a ser a formação das elites dirigentes e a questão
predominante da narrativa histórica em compêndios de História versava sobre a
identidade nacional bem como reflexões sobre a construção da nação brasileira. Ainda
que o caráter da instrução pública nos Oitocentos tenha sido profundamente elitista ou
ainda que os objetivos educacionais carregassem consigo o pendor de um Estado ‘para
poucos’, convém salientar que tal perspectiva produz uma imagem sobre os setores
sociais subalternizados que pode ser mais bem explorada, tendo em vista as
circunstâncias históricas e as condições de produção da narrativa histórica escolar.
13
PENA, Fernando de Araújo Pena A importância da tradição clássica no nascimento da disciplina
escolar história no imperial colégio de Pedro II, IN: CHEVITARESE, André L.; CORNELLI,
Gabrielle; SILVA, Maria Aparecida Oliveira. (Org.). A tradição clássica e o Brasil. Brasília: Fortium,
2008. Pág. 67-78.
112

No âmbito da escrita da história oitocentista, notamos que os historiadores dos


oitocentos, em geral, esforçavam-se por apresentar a civilização brasileira como
continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela coroa portuguesa. Para isso, o império
brasileiro mobilizaria de forma habilidosa alguns setores brasileiros que se
encarregariam de organizar e sistematizar a construção discursiva e imagética desse
período.

Nessa construção imagética e discursiva, os conteúdos sobre a Grécia Antiga


também eram colocados de forma particular nos compêndios brasileiros do período
oitocentista, pois, de acordo com os autores Gonçalves & Silva (2008)14 a noção de
Grécia ou de civilização grega era, na realidade, uma convenção estabelecida, em sua
grande maioria, pelos imperativos da ordem didática, uma vez que a Grécia nunca
correspondeu a uma sociedade uniformizada, possuindo uma mesma cultura ou a um
estado unificado.

Isto é, a Grécia não apresentava uma identidade comum, era, na verdade, um


mosaico de póleis que dialogavam entre si e reconheciam, no contexto do sistema
políade, a autonomia local. Para melhor destacar essa afirmação, tomamos como base a
forma como Justiniano Jose da Rocha descreve em seu compêndio a formação da
Grécia. Segundo ele:

A Grécia não formava um estado único, nem mesmo estado de uma só


origem. Colônias phenicias e egypcias, quando nella vieram estabelecer-se, já
haviam achado raças que se presumiam authochlonas, mas que do fado
tinham anteriormente vindo da Ásia nas primeiras emigrações dos povos.
Acompanhal-as nos seus primeiros passos é a fadigar improficuamente a
altenção e a memória,: baste-nos dizer que a base dá população grega,
quando a Grécia começa a apresentar-se na historia, é dessa raça laboriosa,
trabalhadora, apta para todos os sacrifícios e dedicações da vida social, que,
com o nome de Pelagios, oecupára todo o littorâl europeu do Mediterrâneo. E
uma observação antes de ir adianle : das regiões que beiram esse mar,
veiemos em todas as opocas sahir, desenvolver-se, a civilisação : estrada
commuoi da Ásia, da Europa e dessa parle seplentrional da África que vasta
cinta de areias separa das regiões meridiònáes, ainda hoje barbaras, o
Mediterrâneo, com os PheniciOs, com os Carthaginezes, com á Grécia, e
Roma, e Veneza, e Gênova, e Hespanha, e ainda com Portugal, foi o caminho
da civilisação, da troca reciproca de productos, de inventos, de riquezas, de
estudos, que trouceram o homem ao grau do progresso em que o vemos
(ROCHA, 1860, p. 42-43).

14
GONÇALVES, Ana Teresa Marques Gonçalves e SILVA, Gilvan Ventura da silva: O ensino da
história antiga nos livros didáticos brasileiros: balanços e perspectivas IN: CHEVITARESE, André
L.; CORNELLI, Gabrielle; SILVA, Maria Aparecida Oliveira. (Org.). A tradição clássica e o Brasil.
Brasília: Fortium, 2008. Pág. 21-34.
113

Podemos perceber tomando como exemplo o fragmento anterior retirado do


compendio de Justiniano Jose da Rocha, que nesses compêndios, a história da Grécia
Antiga surge nas ilhas do mar Egeu (cidades) – civilização egeia/minoica – e, após a
migração de grupos indo-europeus, como os aqueus, surge a civilização creto-micênica.
Em seguida a narrativa didática se desloca para o território continental (a Península
Balcânica ou Hélade), tratando de forma breve a civilização micênica e o chamado
‘período homérico’, para se detiver nas póleis.

Em outras palavras, a Grécia não apresentava uma identidade una, o que faz com
que os estudos sobre os conteúdos dessa civilização sejam iniciados a partir do
desenvolvimento humano surgido nas ilhas do mar Egeu (cidades), com ênfase à realeza
cretense. Em seguida a narrativa didática nos compêndios didáticos se desloca para o
território continental (a Península Balcânica ou Hélade), tratando de forma abreviada a
civilização micênica e o chamado ‘período homérico’, para se deter nas cidades-estado,
consideradas independentes do ponto de vista político, mas interdependentes do ponto
de vista econômico e cultural.

Dessa maneira prevalecia na escrita da história antiga o olhar do europeu sobre


essas civilizações. No que se refere à importância dos estudos clássicos na construção
desse ideário de civilização preterido para as elites brasileiras os autores nos dizem que:

A História Antiga tem sido definida primordialmente como o estudo das


sociedades que, no passado, se organizavam em civilizações, tendo em vista,
em última instancia, a compreensão da trajetória de civilização Ocidental,
vale dizer, europeia, cujos primórdios remontariam ao surgimento de
sociedades complexas às margens dos rios Nilo (Egito), Tigre e Eufrates
(mesopotâmia). Daí o percurso civilizacional da Humanidade passaria de
maneira gradual para os territórios da Península Balcânica e da Península
Itálica, nos quais emergiram as sociedades grega e romana, respectivamente.
Compondo uma unidade (a “Civilização Clássica”), Grécia e Romana, ao fim
e ao cabo, dariam origem a sociedade europeia (GONÇALVES & SILVA,
2008, p. 25-26).

Tomando como ponto de partida o fragmento acima, é possível notar que os


conteúdos ensinados sob a denominação de História Antiga na literatura didática
brasileira, embora tenham sofrido alterações ao longo do tempo, em virtude de novas
possibilidades de interpretação para a disciplina e da exploração de novas temáticas,
ainda se mantém presa a concepções ultrapassadas, pois como podemos verificar nos
114

escritos de Gonçalves & Silva (2008) que quando se trata dos conteúdos que são
definidos primordialmente como o estudo das sociedades antigas, isto é, conteúdos que
tratam das sociedades que no passado, se organizavam em civilizações tomando como
ponto de referência a compreensão de civilização ocidental europeia, a história antiga
era ensinada sob a forma de uma sucessão temporal que caminhava do Leste para o
Oeste de Roma, iniciando pelo Antigo Oriente próximo Egito e Mesopotâmia, Grécia e
Roma.

Entendemos assim, que a tradição clássica no Brasil oitocentista, não é um


simples produto do passado, obra de outro momento histórico, ela é uma perspectiva
que os homens do presente adotam e desenvolvem para lidar com que os precedeu. Em
outras palavras, os homens extraem do passado o que lhes parece útil para ser abordado
e o que deve ser silenciado no presente. A escrita da narrativa escolar não é neutra. Ela é
uma interpretação do passado elaborada em função de interesses de contemporâneos
para compreendê-la, difundi-la e utilizá-la na busca por inseri-la ao seu público alvo e
ao mesmo tempo sanar anseios de quem tem o poder sobre elas.

No período do Império brasileiro, os debates e projetos de reforma da Instrução


Pública foram constantes e a importância da instrução popular foi insistentemente
reafirmada. A Instrução Pública e particular na Corte Imperial foi organizada e
regulamentada em meados do século XIX, após aprovação de lei que autorizava o
Ministério do Império a reformar o ensino primário e secundário. Com a crescente
institucionalização dos poderes públicos neste tempo, a problemática da formação do
povo estava definitivamente colocada no centro das preocupações do Estado. E
relacionava-se à busca de alternativas para solucionar o problema da constituição de
uma mão-de-obra, moralizada e independente, no momento em que o fim do tráfico
negreiro anunciava os limites futuros de reprodução da escravidão.

Em todo caso, é importante observar o quanto a história antiga abordada nos


compêndios de História Universal, ensinada no ensino secundário brasileiro oitocentista
é dependente da história europeia. A história antiga continua presa à história europeia
pelo simples fato de se tratar de uma realidade geográfica e cultural que tem como
escopo a influência europeia em grande parte das correntes historiográficas do século
XIX, que busca com insistência revelar as “origens das nações”, nos levando a
115

conclusão que até mesmo a própria nomenclatura empregada ao denominar os estudos


das sociedades antigas exprime, de certa maneira, o olhar do europeu sobre essas
civilizações.
116

3. A NARRATIVA ESCOLAR NOS COMPÊNDIOS DE


JUSTINIANO JOSE DA ROCHA (1860) PEDRO PARLEY (1869) E
VICTOR DURUY (1865): ANÁLISE SOBRE A DEMOCRACIA
ATENIENSE NO BRASIL OITOCENTISTA Estas frases estão
iguais. Sugiro
reescrever uma delas.
Esse capítulo busca demonstrar, pelos pensadores, como a antiguidade clássica
concebeu a democracia ateniense na Grécia Antiga. Isso é necessário para que possamos
compreender as diferentes interpretações sobre a democracia ateniense e em que medida
elas estão comprometidas com as circunstâncias históricas e condições político-culturais
em que foram produzidas. Para isso, em primeiro momento pretendemos apresentar a
democracia ateniense, suas instituições e a dinâmica social a partir de Aristóteles.
Depois discorreremos sobre as abordagens historiográficas acerca de tais fontes.

Nossa proposta procura demonstrar observações de estudiosos sobre a


antiguidade clássica, como se concebeu a democracia, a participação na assembleia e
nos cargos públicos em Atenas. Desse modo, buscamos nas obras A constituição de
Atenas e Política, de Aristóteles, algumas informações necessárias para a construção de
nossa narrativa que ajudam a dialogar com os estudos promovidos pelos outros autores
do século XIX.

A narrativa tem como finalidade apresentar, de forma panorâmica, os principais


debates historiográficos acerca da democracia ateniense. Pois assim, podemos
compreender as diferentes interpretações sobre a democracia ateniense e em que medida
elas estão comprometidas com as circunstâncias históricas e condições político-culturais
em que foram produzidas.

A partir do desenvolvimento dessa análise, temos como finalidade principal


analisar as nossas fontes de pesquisa histórica que são os compêndios de História
Universal de Justiniano Jose da Rocha (1860), Victor Duruy (1865) e Pedro Parley
(1869), em que investigamos como a história da Grécia é narrada e como a democracia
ateniense é abordada, o que nos levará a refletir sobre a narrativa escolar proposta para o
ensino secundário no período Imperial brasileiro. Após isso podemos compreender o
olhar desses pensadores sobre essa sociedade e os silenciamentos existentes na narrativa
escolar sobre a democracia proposta por estes.
117

3.1. A DEMOCRACIA ATENIENSE: estudo sobre a sociedade e o


processo democrático na antiguidade

A narrativa proposta nos capítulos anteriores foi necessária para que pudéssemos
compreender alguns pontos sobre a escrita da história escolar no século XIX, uma vez
que chama bastante atenção o papel exercido pelo livro (compêndio) didático enquanto
difusor de conhecimento e instrumento utilizado para legitimar aquilo que deveria ser
ou não apreendido por aqueles a quem esse conhecimento era destinado durante esse
período.

Para entendermos a concepção de democracia ateniense e sua forma de escrita a


partir da singularidade do olhar e das escolhas feitas pelos autores oitocentistas que
produziram/traduziram os compêndios de História Universal no Império Brasileiro,
destinamos esse subtópico à apresentação da democracia ateniense tomando como base
as obras A constituição de Atenas e a Política, de Aristóteles, e os estudos referentes a
este conteúdo por pensadores que buscaram mapear essa forma de governo,
compreender a sociedade Ateniense que habitava a pólis15 nos séculos VI ao IV a.C e os
principais cargos públicos existentes.

A escolha de Aristóteles como fonte histórica primária para nossa pesquisa é


justificada por percebermos, nos compêndios de história universal, uma simpatia pelo
referido pensador grego, como vemos no fragmento retirado do compêndio de
Justiniano José da Rocha (1860), em que o autor declara:

Aristóteles, o Humboldt da antigüidade, o gênio mais vasto, a applicação


mais tenaz de que ha noticia, dá impulso simultâneo a todas as sciências de
observação, a todos os ramos de conhecimentos humanos, descobre pela
analyse todos os princípios das sciências do raciocínio e das expansões
lillerarias da imaginação (ROCHA, 1860, p. 85).

Percebemos nesses autores referências ao filósofo grego, sobretudo no que se


refere a sua análise sobre o sistema de governo ateniense, por esse motivo o utilizamos
como parâmetro para pensar as apropriações sobre a democracia ateniense no século
XIX por meios dos manuais de ensino de História. Para compreendermos a democracia

15
Nome dado a cidades-estado autogovernadas do mundo grego. Cada pólis tinha suas próprias leis de
cidadania, cunhagem, costumes, festivais, ritos e etc. Atenas, Corinto, Tebas e Esparta eram todas póleis
separadas e autônomas. Facilmente formavam aliança entre si, mas tendiam a entrar em conflito sobre as
melhores formas de constituição (JONES, 1997).
118

ateniense é importante que a observemos não como um acontecimento histórico pronto


e acabado, mas no interior de um processo histórico que se estende do século VI a.C ao
Aristóteles também fala
IV século a.C, momento em que Aristóteles sistematiza em suas obras tal experiência
de um lugar...sugiro
substituir "sistematiza"
política. por analisa ou reflete
sobre tal experiência
política.
De acordo com Peter Jones (1997), o termo democracia significa governo do
povo. Esta terminologia foi criada a partir da junção das palavras demos = povo e kratos
= poder. De acordo com o autor, desde os tempos de Sólon (594 a.C)16, no início do
século VI, os cidadãos atenienses haviam sido divididos em quatro grupos censitários,
baseados na renda agrícola, para fins de distribuição de poder político. A ampliação do
acesso à participação política e o fortalecimento das instituições políticas de decisão
coletiva, como a Assembleia e o Conselho, a partir do final do século VI, fizeram com
que diferentes estratos sociais assumissem funções político-administrativas, ainda que a
concentração de poder entre os eupátridas17 continuasse muito forte. Além disso, a
riqueza determinava o papel militar do cidadão em Atenas e o poder político andava de
mãos dadas com o poder militar nesse período.

Nesse sistema de governo, Sólon elaborou uma constituição que estipulava que
todas as decisões referentes à vida dos atenienses deveriam ser tomadas com a
participação do povo. Contudo, é necessário ressaltar que o “povo” era constituído
apenas pelos cidadãos atenienses, o que excluía a maior parte da população -
considerados os não-cidadãos.

Quando a constituição feita por Sólon entrou em vigor fora possibilitado aos
cidadãos atenienses o direito de eleger seus governantes e também que deliberassem em
praça pública, local chamado Ágora18, sobre os principais assuntos que diziam respeito
às assembleias. Ao longo das assembleias que eram tomadas decisões e também eram
eleitos como seus representantes aqueles que atingissem o maior número de votos, já
que os cidadãos eram considerados iguais pela constituição ateniense.

16
Estadista e poeta ateniense que, na década de 590 a. C dividiu o corpo de cidadãos segundo a riqueza,
atribuindo diversas responsabilidades políticas a cada um deles e permitindo que os cidadãos das classes
mais baixas participassem dos tribunais. Fez outras leis que ainda eram observadas no século V, em
Atenas tornando-se uma figura altamente reverenciada (JONES, 1997).
17
Os eupátridas consistiam em um grupo social da Grécia Antiga detentores de altas posições,
constituindo a nobreza da região da Ática (correspondente a Atenas e regiões circunvizinhas). Em grego,
o termo significa algo como "aqueles bem-nascidos", ou "os de pais nobres" (JONES, 1997).
18
“Lugar de reunião”. Pode designar a praça do mercado e o centro cívico de qualquer cidade grega
(JONES, 1997).
119

Anterior a implementação da Democracia em Atenas, a cidade-estado era


controlada por uma elite aristocrática oligárquica denominada de “eupátridas” ou “bem-
nascidos”, os quais detinham o poder político e econômico na pólis grega. Entretanto,
com o surgimento de outras categorias sociais (comerciantes, pequenos proprietários de
terra, artesãos, camponeses, etc.), as quais pretendiam participar da vida política,
fizeram com que a aristocracia, em virtude das pressões sociais por acesso a terras e à
ampliação da participação política, fosse estimulada a rever a organização política da
pólis de tal maneira que por volta de 510 a.C. as instituições políticas foram
fortalecidas, em Atenas, através da vitória do político aristocrata grego Clístenes19, que
liderou uma revolta popular contra o último tirano grego, Hípias 20- que governou entre
527 a.C. e 510 a.C. Após esse evento, Atenas foi dividida em dez unidades
denominadas “demos”, que era o elemento principal dessa reforma e, por esse motivo, o
novo regime passou a se chamar “demokratia”. A Atenas de fins do século VI a. C.,
grande parte do século V a. C. e do século IV a. C., foi uma cidade democrática, ainda
que intercalada com breves períodos de regimes oligárquicos, dotada de pequena
população e com pequeno território. O século V a.C. ateniense foi o momento da
consolidação do regime democrático, de suas instituições e valores, da participação
política direta dos cidadãos reconhecidos como tais por serem filhos de pais atenienses e
habitantes de uma das dez tribos ou regiões geográficas, assim delimitadas por Clístenes
e mantidas por Péricles21 (REIS, 2018).

Ao pensarmos na maneira de como abordar a sociedade ateniense, para


compreender a forma democrática exercida por estes, buscamos na obra Constituição de
Atenas de Aristóteles, traduzida no Brasil pelo autor Francisco Murari Pires (1995, um
instrumento chave para entendermos a formação da democracia. Nesse caso,
gostaríamos de salientar que essa obra está estruturada em dois momentos, sequenciada
da seguinte forma: no primeiro momento a obra retrata a evolução histórica de Atenas
desde suas origens aristocráticas (século VII a.C), demonstrando seus desdobramentos
com a instauração da Tirania (século VI a.C), até conseguir chegar em sua formulação

19
Estadista ateniense que, em 507, reformou a Constituição de Atenas de um modo que levaria a
democracia plena do século V, sob Péricles (JONES, 1997).
20
Hípias foi um tirano da antiga Atenas que governou entre 527 a. C. e 510 a. C. Era o filho mais velho
de Pisístrato, responsável pela introdução da tirania em Atenas,
21
Estadista e general, incentivador da democracia e do imperialismo ateniense. Eleito estrategos todos os
anos desde 443 a. C até a sua morte. Foi idealizador da construção do Pantenon. Amigo íntimo de muitos
dos intelectuais da época (JONES, 1997).
120

final com a democracia (séculos V e IV a.C); no segundo momento da obra, o autor


descreve os encargos e poderes atribuídos aos mais diversos órgãos estatais, de onde
podemos destacar especialmente o funcionamento dos órgãos de composição coletiva
como, por exemplo, o conselho, a assembleia e os tribunais. Trataremos de cada órgão
separadamente, de modo abrangente, no decorrer da pesquisa, assim como, os escritos a
respeito do conceito de liberdade democrática, relacionando-os com trabalhos feitos por
outros autores que discutem seus escritos. É de suma importância fazer uma análise
coerente e minuciosa sobre a maneira como a fonte descreve a sociedade ateniense, da
qual é contemporânea, para que possamos compreender como os contemporâneos se
apropriam desses escritos para compor novos conceitos sobre política, entre outros
Sugiro "deste autor"
temas. Sugiro citar o próprio
Aristóteles
No texto de Chih (2010), A pólis e a Eudaimonia, que faz referência Aristóteles,
é possível perceber que na concepção de deste a pólis (cidade) representa a condição
essencial para a existência de uma boa vida. Nesse sentido, a pólis simboliza a condição
para o desenvolvimento da virtude dos seus cidadãos e assim da sua felicidade. De
acordo com o autor:

O processo de constituição das relações humanas resulta na formação da


comunidade mais completa. Essa visa não apenas as necessidades básicas da
vida e da sobrevivência como no caso da comunidade familiar, ou as
necessidades de certos membros semelhantes, como na comunidade do clã.
Ao contrário, a comunidade política surge para propiciar uma vida auto-
suficiente, ou seja, uma vida feliz (CHIH, 2010, p. 22-23).

Percebemos que a cidade, na concepção dos antigos, é uma comunidade


completa, formada a partir de várias aldeias e que, por assim dizer, atinge o ponto
máximo da autossuficiência. Nesse caso, a pólis é a comunidade que pode ser
considerada um fim supremo, aquele fim no qual culminam todas as demais
organizações humanas. Contudo, apesar de o autor buscar inserir a importância da
participação do homem na vida social da pólis, em outro momento Aristóteles nos
mostra que existem categorias a serem consideradas para essa participação.

Segundo o autor, a sociedade ateniense é estruturada em duas categorias


distintas: cidadãos e não-cidadãos. A participação ativa na vida pública da sociedade
ateniense era destinada a uma parcela da sociedade, os cidadãos, em que essa prática
exclui uma massa significativa de indivíduos considerados não-cidadãos.
121

Em Atenas, a partir do século V, eram considerados cidadãos as crianças


nascidas de um pai cidadão e de uma mãe filha de cidadão. Na maior parte das cidades
gregas as condições para que um nascimento fosse considerado legítimo com acesso à
cidadania seriam as mesmas que em Atenas. No entanto, haviam cidades em que
bastava que o pai fosse cidadão e em outras bastavam até a condição de cidadania da
mãe para a futura aquisição de plenos direitos cívicos da criança. Nas antigas cidades
gregas ser cidadão não significava apenas pertencer a uma entidade nacional,
significava também participar de uma vida comum, manifestava a nível econômico,
político, religioso e militar. Nos regimes oligárquicos havia cidadãos que, devido à sua
pobreza e ao exercício de profissões menos prestigiadas, eram excluídos da comunidade
política e nos regimes democráticos os casos de exclusão de cidadãos da comunidade
política aconteciam quer por privação dos seus direitos, quer por desinteresse dos
cidadãos pela causa pública (CORDEIRO, 2012).

Para adentrarmos ao universo ateniense é necessário atentarmos ao fato de


Atenas ser uma cidade cosmopolita, ou seja, marcada pela presença de milhares de
imigrantes temporários ou permanentes de outras cidades gregas, ou até mesmo de
cidades não gregas que trabalhavam em seu território - muitas vezes realizando o
mesmo trabalho que os cidadãos gregos. Dessa maneira, é necessário destacar que
mesmo que os trabalhos fossem realizados por ambas as partes, os não-cidadãos não
poderiam compartilhar de nenhum direito político dos cidadãos, pois nas palavras de
Aristóteles:

A natureza, por assim dizer, imprimiu ao homem a liberdade e a escravidão


até nos hábitos corporais. Vemos homens robustos talhados especialmente
para carregar fardos e outros usos igualmente necessários; outros, pelo
contrário disciplinados, mas também mais esguios e incapazes de tais
trabalhos, são bons apenas para a vida política, isto é, para os exercícios da
paz e da guerra. [...]. Não pretendemos agora estabelecer nada além de que,
para a natureza existem homens feitos para a liberdade e outros para a
servidão, os quais tanto por justiça quanto por interesse convém que sirvam.
No entanto, é fácil ver que a opinião contrária não seria totalmente
desprovida de razão (ARISTÓTELES, 2014, p. 16).

Percebemos que para Aristóteles, na obra Política, a liberdade é destinada a uma


camada de indivíduos que buscam resolver os problemas políticos da pólis e que é
natural que existam seres humanos destinados à liberdade e outros à servidão. Nesse
caso, ao mergulharmos no estudo sobre as civilizações gregas percebemos que o
122

pensamento aristotélico também abre caminho para muitas indagações sobre a


organização política das cidades-estados.

Aristóteles baseia-se em alguns elementos que compõem a sociedade e o Estado,


podemos destacar como principais da obra Política: a população (famílias e cidadãos); o
território (geografia ideal da cidade); a autoridade política (fins do poder e formas de
governo, comparação e apreciação, exames das causas que acarretam a ruína ou
garantem sua conservação). Isto é, ao longo dessa obra, Aristóteles faz um apanhado
geral nos proporcionando um conhecimento mais amplo sobre seus escritos.

Assim, a obra Política é ao mesmo tempo descritiva, comparativa e crítica por


seu senso de realidade, pelo contato direto com os textos e os costumes das civilizações
antigas, as quais o autor faz menção ao longo do texto. Essa obra nos permite examinar
de forma mais abrangente seus estudos sobre política e as diferentes formas de governo
em Atenas. No entanto, esse trabalho evidencia somente a democracia como forma de
governo, visto que é este o nosso foco de análise.

No que se refere o papel do homem enquanto ser político, Aristóteles nos diz
que:

Considerando que o homem tem pôr fim a felicidade, cuja plenitude está no
pensamento puro, o homem só é ele mesmo na cidade. Esta é a sua condição de
“animal Cívico”, e não apenas num constrangimento de fato que ele teria que
sofrer. É uma situação bela, boa e desejável, apesar de sua “sequela” de
confusões e de deveres incessantes e variados. Consequentemente, a ciência
por excelência, no que se refere a vida humana, é a ciência da sociedade. “Não
só a mais beleza no governo do Estado, que no governo de si mesmo, mas...
tendo o homem sido feito para a vida social, a política é, relativamente a ética,
uma ciência mestra, ciência arquitetônica” (ARISTÓTELES, 2014, p. 6).

Outro ponto importante a destacar no pensamento político de Aristóteles, é que


era necessário, na composição da cidade, reunir pessoas que não pudessem viver umas
sem as outras, como o macho e a fêmea para a geração de novos indivíduos que
conservariam a espécie. Sob essa perspectiva, era necessário que existissem dentro da
natureza indivíduos que fossem destinados ao comando e outros que fossem
comandados. Desta forma, a primeira sociedade natural se formaria da dupla reunião do
homem e da mulher, do senhor e do escravo. A sociedade que se formaria, em seguida,
de várias casas era dada o nome de aldeia e se assemelhava perfeitamente à primeira
123

sociedade natural, com a diferença de não ser de todos os momentos nem de uma
frequentação contínua.

A sociedade que se formaria de várias aldeias era dada o nome de cidade, esta
como fora dito antes em nosso escrito, deveria ter a função de bastar-se em si mesma,
sendo organizada não apenas para conservar a existência do homem, mas também para
garantir-lhe o bem-estar. Segundo Aristóteles, o Estado ou a sociedade política deve
estabelecer relações com a cidade, uma vez que se bastar a si mesmo é uma meta a que
tende toda produção da natureza e é também o mais perfeito Estado. É, portanto,
evidente que toda cidade que está na natureza produz o homem que é naturalmente feito
para a sociedade política.

É necessário ressaltar que Aristóteles ao escrever sobre a política e a democracia


como forma de governo da sociedade ateniense, da qual é contemporâneo, está inserido
em um período onde a pólis ateniense vive um momento de grande crise, pois como é
abordada por Claude Mossé (1985), em sua obra As instituições gregas, a guerra do
Peloponeso iria destruir o equilíbrio alcançado no século V, tendo como consequências
imediatas resultados desastrosos para a Ática no que se refere à devastação dos campos,
diminuição das trocas comerciais, paragem quase total da exploração das minas do
Láurio, declínio da produção artesanal - principalmente no domínio da indústria da
cerâmica, dentre outras. Nesse cenário de crise, a democracia ateniense é repensada
pelos intelectuais da época que continuam féis à democracia, buscando na política a
solução para a crise.

Finley (1963) nos traz indagações sobre a forma como a ideia de liberdade é
concebida na Grécia Antiga e a quem essa liberdade está destinada:

Surge então a pergunta: se a pólis tinha assim uma autoridade ilimitada, em


que sentido é que os gregos eram livres, como julgavam ser? Até certo ponto
a resposta era dada pelo epigrama <a liberdade é o rei>. A liberdade não se
equiparava à anarquia, mas a uma existência ordenada, dentro de uma
comunidade que era governada por um código estabelecido, por todos
respeitado. Por isso se lutara desde grande parte do período arcaico, primeiro
contra os privilégios tradicionais e o monopólio do poder que a nobreza
detinha, depois, contra o poder incontrolado dos tiranos. O fato de a
comunidade ser a única fonte da lei era uma garantia de liberdade. Nisto,
todos estavam de acordo, mas a tradução para a prática era outra coisa; os
gregos clássicos debatiam com uma dificuldade que tem, desde então,
persistido na teoria política, sem encontrar solução estável. Até que ponto era
livre a comunidade para alterar as leis estabelecidas? Se as leis pudessem ser
mudadas à vontade, isto é, por qualquer facção ou grupo que dominasse a
124

comunidade em dada altura, isso não equivalia à anarquia, à estabilidade


autentica e da segurança implícitas na doutrina de que a lei era soberana?
(FINLEY, 1963, p. 50-51).

O autor nos mostra a distância entre os discursos e a prática social, no que se


refere à manutenção dos privilégios. Nesse sentido, de maneira diferente do que é
vivenciado na contemporaneidade, em Atenas, os cidadãos, os escravos, os estrangeiros
e os bárbaros não estavam reunidos com o intuito de participar, da mesma maneira, das
questões políticas referentes à pólis. A política era um tema destinado ao público seleto,
ou seja, apenas aos cidadãos considerados livres. Os outros grupos ficavam à margem
da política e, assim, à margem do que seria liberdade de fala e de participação ativa nas
assembleias. Poderíamos entender que, por causa desta distinção entre cidadãos e não-
cidadãos, não existiria liberdade de fato, ou ainda, que as diferenças entre eles poderiam
ser diferenças de categorias sociais. Contudo, as questões referentes a liberdade de
expressão e de participação política, tal qual imaginamos a partir da modernidade, não
ocorriam da mesma maneira no mundo clássico. Assim, a concepção do que é liberdade
é distinta entre o período clássico e a modernidade.

Para entendermos quem eram os cidadãos nesse período, que tinham o direito à
liberdade de fala e de participação nas assembleias e os critérios para se obter a
cidadania em Atenas Aristóteles, nos referimos:

Participam da cidadania os nascidos de pai e mãe cidadãos, sendo inscritos


entre os démotas aos dezoito anos. Quando da inscrição, os démotas votam
sob juramento a seu respeito: primeiro, se eles aparentam ter a idade legal,
caso não aparentem, retomam novamente a condição de meninos. Segundo,
se é homem livre e de nascimento em conformidade com as leis e, caso o
rejeitem por não se tratar de um homem livre, ele pode apelar para o tribunal,
ao passo que os démotas encarregam da acusação cinco de seus membros: se
for considerado que a inscrição é inválida, o Estado o vende, mas se ele
ganhar, os démotas ficam obrigados a inscrevê-lo. Só depois o conselho
procede ao exame dos inscritos, e, caso considere que algum dos inscritos
tem menos de dezoito anos, multam os démotas que o inscreveram
(ARISTÓTELES, 1995, p. 87).

Podemos perceber, segundo esse trecho retirado da Constituição de Atenas, que


todos os homens atenienses que o sejam pela parte materna e paterna, são beneficiários
dos direitos políticos, vigorando os mesmos desde os dezoito anos - momento em que se
tornam cidadãos. Para isso, os funcionários encarregados da participação política dos
homens atenienses à vida pública (démotas) emitem seus votos mediante juramento,
125

fazendo constar, primeiramente, se é certo que os candidatos têm a idade prescrita pela
lei; em segundo lugar, se o candidato é livre de nascimento e pelos pais, tal como a lei
também prescreve. Então, se não o declaram livre, apela para o tribunal de juristas,
sendo que os representantes do povo indicam cinco entre eles para servirem como
acusadores; se perde, não tem direito algum a ser declarado cidadão e é vendido como
escravo, mas, se vence se torna beneficiário de todos os direitos entre os cidadãos, sem
que se lhe possa opor impedimento algum.

Depois disso, o Conselho comprova se o candidato reúne as condições


requeridas e, se chega à conclusão de que algum ainda não tem dezoito anos, multa os
que o admitiram. Quando os jovens ou efebos são admitidos, seus pais reúnem a sua
tribo, o qual nomeiam, mediante juramento, três dos pertencentes a ela, que tenham
mais de quarenta anos de idade, os quais, a seu ver, são os mais indicados para se
encarregarem da educação da juventude. Em seguida, cabe a assembleia escolher, entre
estes, um por tribo, como guardião, juntamente com um diretor onde é selecionado entre
o corpo geral o ateniense que os dirige a todos.

A democracia, como já falado antes, foi uma invenção ateniense e segundo


Jones (1997, p. 202) “foi uma façanha espantosa”. Desse jeito, se faz relevante
abordarmos a maneira como o autor faz uma distinção entre a democracia antiga e suas
várias versões na modernidade:

Na Antiguidade, o governo do povo, pelo povo e para o povo era exercido


diretamente pelos cidadãos, ao passo que nas democracias modernas, os
eleitores (que não são necessariamente todos os cidadãos) elegem
representantes para tomar decisões em seu lugar e não tem acesso direto ao
poder político no dia-a-dia. Atenas, em resumo era uma democracia direta e
não uma democracia representativa (JONES, 1997, p. 202).

Tomando como base o fragmento acima, gostaríamos de problematizar essa


participação do povo nas assembleias de Atenas e com isso promover uma reflexão
sobre como se determinava cada órgão executor dessa democracia. Segundo Pinsky
(2013), o fundamento do regime democrático é a liberdade, sendo o princípio da
democracia a liberdade de fala (isonomia)22, fundamentada na igualdade de participação

22
Palavra vem do termo grego composto pelos radicais isos, que significa o mesmo, e nomos, que quer
dizer lei - que por sua etimologia significa "de mesma lei". Isto é, isonomia é o princípio de que todas as
pessoas são regidas pelas mesmas regras, da condição de igualdade.
126

na vida pública (isegoria)23. E sendo esse o fundamento principal da democracia, os


procedimentos democráticos seriam os seguintes: que todas as magistraturas fossem
eleitas entre todos; que todos mandem em cada um e cada um, por sua vez, sobre todos;
que as magistraturas sejam providas por sorteio e isso não se baseie em nenhuma
propriedade ou se assim for, baseie-se na menor propriedade possível. Apesar disso, o
autor nos mostra que:

O problema maior seria como conseguir esta igualdade: se se deve distribuir


as propriedades de modo que as de 500 cidadãos espalhavam-se às de 1.000 e
que estes mil tinham o mesmo poder dos quinhentos, ou não se deve assim
estabelecer a igualdade a respeito da propriedade, se não dividir-se primeiro
assim, porém tomar depois um número igual de cada grupo e conceder a este
grupo autoridade no concerne as eleições e aos tribunais. Será este o regime
mais justo segundo a justiça democrática ou será que se fundamente no
número? [...] Qual pode ser pois, a igualdade em que uns e outros estarão de
acordo, é questão que deve examinar-se à luz do que uns e outros definem
como justo. Ambos os grupos dizem que devem prevalecer a opinião da
maioria dos cidadãos. Concedamos, porém não inteiramente, sendo duas as
partes que constituem a cidade: os ricos e os pobres, o que deve prevalecer é
aquilo em que concordem uns e outros ou a maioria; no caso de opiniões
contrárias, prevalecerá a dos mais numerosos e cuja propriedade é maior
(PINSKY, 2013, p. 89).

Isto é, existia uma série de normas e restrições que ocasionalmente deixava de


fora uma vasta gama da população, que compunha a pólis, da participação direta na
assembleia e nos diferentes cargos públicos. Nesse caso, podemos perceber que a
isonomia e isegoria, no que se refere à liberdade de fala e participação nas assembleias,
eram restritas apenas a uma parcela da população. No entanto, mesmo que o indivíduo
fosse considerado cidadão ateniense, para obter direito de fala na Ekkesia24
(assembleia), exercer algum cargo no Boulé25 (Conselho dos 500) ou determinados
cargos públicos eram exigidos aos concorrentes, que mesmo sendo escolhidos através
de votação, fossem cidadãos atenienses do sexo masculino com 30 anos de idade ou
mais, pertencentes à linhagem das doze tribos. Essas divisões artificiais do corpo de

23
Palavra oriunda do grego isos, que significa o mesmo e agoreúo que dizer falar em público, em
assembleia.
24
“Assembleia” aberta a todos os atenienses (homens) maiores de 18 anos estes reuniam-se quatro vezes
por mês. Uma dessas seções era a Kuria (soberana) com uma agenda determinada. Podia ser convocada
em outras ocasiões. Era considerada o organismo soberano da cidade. Seus membros votavam sobre todas
as questões principais e elegiam os funcionários mais importantes. Sua agenda era preparada pela boulé,
mas a ekklesia podia rejeitar a proposta da boulé e exigir que sua vontade fosse cumprida (JONES, 1997).
25
Boulé ou conselho dos 500, órgão aberto aos conselheiros com mais de trinte anos. Reuniam-se todos
os dias (a não ser nos feriados) e tinha a função de preparar a agenda para a Ekklesia, presidi-la e
providenciar para que suas decisões fossem cumpridas. Também supervisionava os funcionários e as
finanças da cidade (JONES, 1997).
127

cidadãos atenienses eram concebidas para garantir que os cidadãos fossem de todos os
distritos da Ática e fossem igualmente representados.

Na tentativa de compreender os principais órgãos de funcionamento da


democracia ateniense apresentamos um quadro com a intenção de apresentar melhor o
funcionamento da democracia ateniense, bem como os órgãos executores de seu
funcionamento. Observe a seguir:

IMAGEM III: ÓRGÃOS DA DEMOCRACIA ATENIENSE

Fonte: Google Imagens.

No que tange o Areópago26, Jones (1997) afirma que este órgão era o “guardião
das leis”, o órgão responsável em última instância pelo código ateniense das leis e fazia
o exame da conduta dos funcionários após o término de seu tempo de serviço, ou após o
seu impedimento durante esse tempo. O conselho de Areópago recebeu este nome
devido ao rochedo de Aires localizado entre a acrópole27 e a Pnix28, onde se reuniam
desde os tempos passados - era considerado o órgão mais antigo da pólis ateniense. De
acordo com Aristóteles (1995), na Constituição de Atenas, o conselho dos areopagitas
tinha a prescrição de zelar pelas leis, porém geria a maioria as questões principais da
cidade, infligindo soberanamente penas corporais e pecuniárias a todos os desordeiros.
Pois, os arcontes eram eleitos por nobreza e riqueza, e com eles constituíram-se os
26
Areópago era o mais antigo conselho de Atenas, constituído, por exemplo: arcontes. Teve grande poder
no passado, mas, no século V, supervisionava as funções religiosas e tinha jurisdição nos julgamentos por
assassinatos (JONES, 1997).
27
“O alto da cidade”, em geral o local mais alto da cidade, onde se construíam os templos e as
fortificações para resistência final. Em Atenas ai foram construídos o templo de Atena, o Pantenon e o
templo de Erecteu, o Erecteion. O Pantenon serviu como tesouro de Atenas. (JONES, 1997, p. 368-369).
28
Lugar onde a Ekklesia se reunia (JONES, 1997).
128

Areopagitas. É por esse motivo que esse era o único cargo que prevalecia vitalício no
período.

Segundo Jones (1997), a assembleia ou Ekklesia era uma instituição básica da


democracia, em sessões realizadas num espaço de 70 anos. Quando convocada, a
assembleia reunia-se como centro cívico de Atenas e era considerado o órgão de tomada
de decisões. Era a Ekkesia que fazia as leis e que decidia sobre as políticas a serem
seguidas.

A assembleia (Ekklesia), segundo Starr (2005), tinha como suas principais


atividades às áreas da finança, do culto aos deuses, das eleições, da preparação militar e
naval, da política exterior e da justiça - embora de um modo geral apenas em casos
políticos. Segundo o autor, era considerada também um veículo que fazia com que se
chegasse às decisões e a aprovação de uma legislação, que não deveria ser considerada
em si mesma, mas sim em cada esfera de ação.

No que se refere à participação nas assembleias, Starr (2005) nos mostra que
existiam alguns critérios para que os atenienses tivessem direito de se pronunciar como
oradores, dos quais podemos citar: o indivíduo deveria ser reconhecido como cidadão;
deveria ter conhecimento sobre o assunto discutido; e, pedir o dom da palavra, se lhe
fosse concedido o direito de se pronunciar, aí sim ele poderia falar a todos os demais
componentes da assembleia. O autor também nos mostra algumas regras que são
sintetizadas no discurso de Ésquines29:

Os oradores do concelho e da assembleia devem ater-se ao assunto, devem


tratar de cada assunto separadamente, devem evitar falar duas vezes sobre o
mesmo assunto na mesma sessão; devem evitar as invectivas, não devem
interromper outro orador, não devem falar se não do bêma e não devem
atacar o epistátes. Para cada transgressão, os próedroi podem impor uma
multa de até 50 dracmas ou, para uma punição maior, remeter o caso à
próxima sessão do conselho ou da assembleia (ÉSQUINES apud STARR,
2005, p. 82).

Somente após as questões serem apresentadas, pelos oradores, à assembleia é


que elas seriam encaminhadas para a votação, que era decidida pelo erguimento de

29
Ésquines (Atenas, 389 a.C. — Samos, 314 a.C.) foi um orador ateniense. Pertencia a uma família de
poucas posses. Isso, no entanto, não o impediu de casar-se com uma mulher oriunda de uma família muito
mais rica. O interesse pela política sempre o acompanhou, mas foi somente em 348 a.C. que se lançou
como orador (STARR, 2005).
129

mãos e se os epistátes30 tivessem dúvidas acerca de quem tinha a maioria, podia chamar
seus colegas prutáneis31 para ajuda-los com a contagem. Ainda segundo o autor, através
da constituição outorgada em de 320 a.C, tal como é descrita por Aristóteles, a
assembleia passou a realizar quatro reuniões fixas em cada um dos dez meses civis. A
primeira das quatro reuniões era denominada de reunião soberana (Kuria), na qual
deveriam ser discutidos os assuntos de maior relevância para a pólis, como por
exemplo: os suprimentos de grãos, a defesa nacional e a continuação dos funcionários
em seus cargos.

Aristóteles descreve a ekklésia como o fórum credenciado para decidir a paz e a


guerra, para construção e/ou rompimentos de alianças, para a promoção de leis, bem
como para aplicá-las em caso de banimentos, de confiscações ou de pena de morte. Era
também através da Assembleia que os magistrados prestavam contas de suas decisões
durante - ou ao término de - seus respectivos mandatos. Outro ponto importante para
relembrar sobre o funcionamento da assembleia, é que para o bom funcionamento da
pólis, de acordo Aristóteles, era necessário, na composição da cidade, reunir pessoas
que tivessem uma espécie de dependência umas das outras, como o macho e a fêmea
para a geração de novos indivíduos que conservariam a espécie. Para isso, era
necessário que existissem dentro da natureza indivíduos que assumissem o comando de
determinados cargos e outros que fossem comandados. Visto que se não fosse essa a
organização constitucional, poderia ocorrer a revolta da maioria da população que era
escrava da minoria, ou seja, as massas se rebelariam contra as categorias superiores
(ARISTÓTELES, 1995).

Para Aristóteles, as camadas destinadas à obediência (mulheres, escravos,


crianças) não deveriam ter direito a fala e nem a participação política nas assembleias.
No que diz respeito aos estrangeiros (metecos) e aos pobres (tetas), o autor nos diz que
estes igualmente as mulheres, escravos e crianças também não deveriam ter direito a
participar da Ekklesia por não serem considerados qualificados o suficiente a opinar.
Além disso, no tocante aos camponeses, comerciantes e artesãos o autor nos expõe que

30
Presidente dos prutáneis e da Ekklesia. Como havia cinquenta prutáneis que exerciam a função de 35
ou 36 dias, era grande a probabilidade que qualquer prutánies tornar-se epistátes (JONES, 1997).
31
Cinquenta membros da boulé que durante 35 ou 36 dias, permanecem no tholos dia e noite, à custa da
cidade, para atender todas as questões e decidir se boulé ou a ekklesia devia ou não ser convocada para
tratar delas (JONES, 1997).
130

estas camadas sociais não poderiam participar das assembleias por se tratar de
indivíduos que estavam destinados ao trabalho, e por isso, não teriam tempo para se
dedicar ao exercício da política, uma vez que estes estariam destinados a contribuir com
a pólis através de seu trabalho e apenas dessa forma deveriam contribuir para o
desenvolvimento da cidade.

No que expõe o preenchimento de cargos públicos, percebemos que as eleições


para as várias funções instituídas na democracia eram realizadas por sorteio entre os
candidatos selecionados por cada uma das tribos. Cada tribo elegia dez candidatos para
os nove arcontes32, efetuando-se o sorteio entre eles. Daí prevalece o costume de em
cada tribo se eleger dez candidatos por sorteio. Também demonstra a regulamentação
das eleições para os cargos, segundo a categoria de proprietários e pelos interesses da
polis, representados pelos cidadãos operantes, como é o caso da eleição para os cargos
de oficiais militares descritos por Aristóteles:

São eleitos por votação por mãos levantadas todos os oficiais militares. Os
dez estrategos eram anteriormente eleitos um de cada tribo, mas atualmente o
são dentre todos [os atenienses]. Procede-se também a sua distribuição em
votação por mãos levantadas: um para os hoplitas, encarregado de comandar
os hoplitas em campanha externa; um para defesa do território, estando
encarregado dos combates quando de guerras travadas no território; dois para
o Pireu, sendo um para Muníquia e um para Acte, ficando encarregados da
guarda do Pireu; e um para as simorías, o qual está encarregado de arrolar os
trierarcos, de proceder ás suas trocas de fortuna e de encaminhar-lhes as
ajudicações. Os demais são expedidos de acordo com o momento. A cada
pritania eles são submetidos a uma votação de mãos levantadas, na qual é
considerado se eles estão exercendo bem o cargo; caso algum deles seja
destituído, é julgado no tribunal e, se for condenado, avaliam qual deve ser a
punição ou multa, mas, se absolvido, volta a exercer o cargo. Quando eles
estão no comando, são soberanos para prender qualquer indisciplinado, para
expulsa-lo e inflingir-lhe multa (ARISTÓTELES, 1995, p. 121).

Percebemos que entre as ditas pessoas, alguns jovens começam a passar pelo
círculo dos templos, dirigindo-se logo ao Pireu33, outros vão à guarnição de Municia e
outros ainda, a costa do Sul. A assembleia elege também quatro instrutores que lhes

32
Havia um total de nove arcontes. Eram escolhidos anualmente por sorteio e passavam a fazer parte do
Areópago ao final do mandado. No início eram as autoridades mais importantes da cidade. Após o século
VI passaram a ter funções sobretudo religiosas e judiciárias. O arconte rei presidia o Areópago e cuidava
dos casos de homicídio e impiedade; o arconte polemarco (originalmente o arconte da guerra) cuidava
dos resistentes não-atenienses e de Atenas; o arconte epônimo (assim chamado por emprestar seu nome ao
ano corrente) estava encarregado das disputas sobre propriedades familiares, heranças, dando atenção
especial aos órfãos e herdeiras. Quanto aos seis arcontes restantes (thesmothétai) eram dedicados à
administração da justiça, determinação das datas de julgamento etc (JONES, 1997).
33
Porta de Atenas (JONES, 1997).
131

ensinam a luta, revestidos de uma pesada armadura, exercitando-os no manejo do arco e


no disparo da catapulta.

O pagamento aos guardiões equivale a uma dracma34 por cabeça, recebendo os


efebos quatro óbolos cada um. Cada guardião recebe a gratificação correspondente aos
pertencentes à sua tribo, adquirindo as provisões necessárias para o grupo, pois se
reúnem por tribos, estando o seu cargo a direção geral. Desta maneira, passam o
primeiro ano e no ano seguinte apresentam-se em público, aproveitando a ocasião que a
Assembleia se reúne no teatro. Aí então executam suas evoluções militares, recebendo
uma lança e um escudo.

Após isso, estando aptos para a vida pública da pólis, fazem o serviço de
patrulhamento, incluídos na guarnição durante dois anos, usando túnica militar e
ficando isentos de qualquer tributo durante todo o tempo de serviço, não podem ser
processados - medida esta que tem por fim evitar que tenham motivos para pedir
licenças, embora haja exceções em casos de litígio concernentes a tutela do Estado, ou
qualquer cerimonial de sacrifício relativo à família a que pertençam. Logo que
terminam os dois anos, passam a ocupar seu lugar na sociedade, entre os demais
cidadãos. Esses mecanismos de acesso ao poder político favorecem o rodízio de
cidadãos atenienses no poder, de tal forma que, ao menos uma vez, o ateniense terá
exercido uma função político-administrativa ou militar, o que contribui para que os
cidadãos em geral experimentem funções públicas que exigem certa responsabilidade
social.

O conselho dos 500 (Boulé) tinha como função básica determinar as questões
que seriam colocadas na agenda da Ekklesia como proposta para discussão
(proboúlema). Entretanto, a Ekklesia era livre para fazer quaisquer emendas às
propostas que tivesse objeções. E para melhor registrar suas decisões, os atenienses
escreviam em pedras seus decretos, para fornecer um registro público permanente a
consultado por qualquer cidadão que assim desejasse. A Ekklesia, além disso, poderia
exigir que qualquer plano fosse inserido na agenda para a próxima reunião. E em
nenhuma hipótese a boulé poderia determinar algo para a assembleia, uma vez que a
assembleia era soberana.

34
Unidade monetária dentro do seguinte sistema: óbolo dracma (seis óbolos), mina (cem dracmas) talento
(sessenta minas) (JONES, 1997).
132

No que concerne à participação ativa no conselho dos 500 (Boulé), é necessário


atentar que só uma parte da sociedade ateniense tinha direitos políticos de participar do
conselho e das assembleias, fazer parte do exército, exercer determinados cargos
públicos e garantir a suposta eudaimonia35 na pólis. Ao longo da Constituição de
Atenas, Aristóteles apresenta quais os critérios eram necessários para se obtiver direitos
políticos de participação ativa no conselho a garantir seu lugar nessa sociedade. Observe
esses critérios no fragmento a seguir:

XXXI_ Comporão o conselho quatrocentos membros em conformidade com


as tradições ancestrais, quarenta de cada tribo, os quais serão eleitos por sua
tribo dentre os cidadãos previamente indicados com mais de trinta anos. Eles
designarão os oficiais, redigirão os termos do julgamento a ser prestado, e
resolverão as questões concernentes às leis, às prestações de contas e aos
demais assuntos, do modo que entenderem ser vantajoso.
2. Serão observadas as leis que forem promulgadas atinentes às questões
públicas, e não será permitido modificá-las, nem promulgar outras. Por agora
os estrategos serão eleitos dentre todos os Cinco Mil; mas uma vez
constituído o conselho, ele promoverá uma inspeção militar e elegerá dez
cidadãos mais o seu secretário, e os eleitos exercerão o cargo com plenos
poderes durante o ano vindouro e, no caso de alguma necessidade,
deliberarão juntamente com o conselho.
3. Serão eleitos também um hiparco e dez comandantes tribais; mas para o
futuro, a sua eleição será feita pelo conselho conforme foi descrito. No que
respeita ao demais cargos, fora o de membro do conselho e estrategos, não
será permitido, nem a esses e nem a nenhum outro, exercer o cargo por mais
de uma vez. Para o futuro, quando vierem compor o conselho com outros, a
comissão dos cem procederá à distribuição a fim de que os Quatrocentos
fiquem repartidos pelas quatro divisões (ARISTÓTELES, 1995, p. 71).

É possível perceber que a liberdade de participação no conselho não era


garantida a todos os cidadãos, a liberdade de exercer esses direitos era garantida apenas
a uma parte da população, sobretudo as classes mais abastadas, que detinham o poder
em círculos que com o passar tempo não mudava de mãos. No que se referem as demais
camadas de cidadãos, estes, por sua vez, “tinham garantido” o seu direito de fala nas
assembleias. No entanto, a liberdade de fala não acontecia de forma natural, uma vez
que para ter liberdade o indivíduo deveria seguir alguns critérios como já citado
anteriormente, mas que vale apena ser relembrado: comprovar ser cidadão ateniense,

35
Eudaimonia significa alcançar as melhores condições possíveis para um ser humano, em todos os seus
sentidos e não apenas a felicidade, mas também a virtude, a moralidade e uma vida significativa.
Aristóteles argumentou que era possível a Eudaimonia com muito trabalho, cultivando as próprias
virtudes e destacando-se em quaisquer tarefas que a natureza e as circunstâncias levam até o indivíduo
(ARISTÓTELES, 2014).
133

obter conhecimento sobre o assunto em questão e obter a autorização para proferir o


dom da palavra. De acordo com Aristóteles:

XXX_Os eleitos, então redigiram essas propostas. Uma vez sancionadas, os


Cinco Mil elegeram, dentre eles mesmos, os cem cidadãos que seriam os
redatores do regime. E os eleitos redigiram e apresentaram o seguinte:
2.Comporão o conselho, por um ano, os que tiverem mais de trinta anos, sem
direito a remuneração; dentre eles sairão os estrategos, os nove arcontes, o
arquivista-sacro, os comandantes da divisão, os comandantes da cavalaria e
os comandantes tribais, os comandantes das guarnições, os dez tesoureiros
dos fundos sagrados da Deusa e das outras divindades, os vinte tesoureiros
dos helenos e gerentes também de todos os demais fundos seculares, os dez
executores-sacros, e os dez intendentes: todos esses serão eleitos dentre os
membros do conselho em exercício, sendo previamente selecionados em
número excedente; todos os demais oficiais serão sorteados, porém não
dentre os membros do conselho; mas os tesoureiros dos helenos que tiverem
fundos sob sua gerencia não participarão do conselho.
3.Para o futuro, serão formados quatro conselhos com cidadãos da idade
mencionada, e dentre eles sortear-se-á qual seção comporá o conselho; e
também os demais serão repartidos para cada sorteio; os cem cidadãos
procederão à repartição deles mesmos e dos demais em quatro seções que
sejam o máximo iguais, e procederão também ao sorteio; o conselho será
composto por um ano.
4. O conselho decidirá, no que respeita as finanças, da maneira que melhor
lhe parecer para que estejam em segurança e sejam empregues para o
necessário e, quanto às demais questões, da melhor forma que puderem. Caso
queiram deliberar alguma questão com um número maior, cada um cooptará
um adjunto de sua escolha dentre os cidadãos da mesma idade. As sessões do
conselho terão lugar a cada cinco dias, caso não haja necessidade de mais. Os
nove arcontes sortearão o conselho, e serão sorteados cinco membros do
conselho para o escrutínio das votações por mãos levantadas, e, a cada dia,
um dentre eles será sorteado para pôr as moções em votação.
5.Os cinco designados sortearão os que pretendem uma audiência do
conselho, primeiro os assuntos sagrados, em segundo os arautos, em terceiro
as embaixadas, e em quarto os demais; as questões bélicas serão tratadas
quando houver necessidade, ficando a introdução dos estrategos dispensada
do sorteio.
6. O conselheiro que não estiver presente no conselho no horário marcado
será multado em uma dragma por cada dia, a não ser que falte com dispensa
do conselho (ARISTÓTELES, 1995, p. 70-71).

A respeito dos demais cargos públicos, serão apresentados brevemente e de


forma que promova um mapeamento sobre o funcionamento da vida pública ateniense.
Desse modo, podemos começar apresentando os Arkhaí (Funcionários ou magistrados),
indivíduos que deveriam ser responsáveis, perante o povo da mais alta a mais baixa
patente, sobre a contabilidade da pólis. Todos os Arkhaí tinham que prestar contas no
final de seus mandatos, esses mandatos durariam geralmente em torno de um ano. Essa
134

prestação de contas acontecia em duas etapas: na primeira as contas eram examinadas


por trinta contadores; e, depois eles ficavam à disposição de qualquer um que desejasse
apresentar queixa por má administração. No caso dos arautos (Kerux), estes eram
considerados o braço da lei, mantendo a ordem nas reuniões, fazendo proclamações,
levando mensagens e até servindo vinho nas mesas. Em geral sua presença significava
que a cidade estava agindo oficialmente. No exterior o arauto tinha um papel vital na
declaração e no fim do combate. Cabia a ele declarar guerra, solicitar trégua, ou tentar
abrir as negociações de paz, uma vez que nessas situações era necessário contar com a
imunidade que seu cargo lhe conferia, era necessário recorrer ao arauto, visto que de
forma geral sua imunidade era respeitada, pois o indivíduo que ocupava essa função
estava sob proteção dos deuses e qualquer violação sobre sua imunidade poderia
provocar a ira divina. No que refere aos enviados (Presbeis “literalmente anciãos”),
podemos dizer que se tratava de homens geralmente importantes em suas cidades. A
palavra prebeis implica que deveriam ser os anciãos da cidade. Em Atenas a idade
mínima exigida para ser ancião era de 50 anos. No entanto, os anciãos não desfrutavam
de uma imunidade especifica, mesmo sendo considerados importantes e obtendo laços
com os cidadãos da cidade. Os presbeis mesmo sendo importantes não eram
considerados sagrados (JONES, 1997).

Os tribunais do júri (dikatéria) e o sistema legal ateniense chamaram bastante


atenção dos pensadores da Antiguidade. A respeito da lei e da política percebemos que
na Grécia Antiga nem na teoria nem na pratica havia separação entre os poderes.
Quando o povo ateniense se tornou senhor nos tribunais, nas palavras de Aristóteles,
tornou-se também senhor da constituição. Aristóteles em seu conceito de política
definiu o cidadão de uma democracia como o homem que participava das krísis e das
arkaí. Já Sólon, em 594, havia estabelecido um tribunal popular de recursos contra as
decisões das autoridades, esse tribunal recebeu o nome de Eliaia36 e algum tempo depois
logo após a reforma de Efialtes37, em 462-61, todos os inúmeros tribunais do júri
passaram a ser conhecidos coletivamente pelo mesmo nome. Segundo Starr:

36
Cooperação de seis mil dikastai, escolhidos para servir no júri por um ano. Um jurado poderia ser
chamado de (h)eliastes ou dikastés (JONES, 1997).
37
Efialtes foi um político grego que liderou com Péricles o movimento democrático em Atenas. Segundo
Em 462 a.C. Efialtes foi responsável pela reforma do Areópago, controlado pela aristocracia, limitando o
seu poder para julgar apenas os casos de homicídio e os crimes religiosos. Esta medida foi impopular
entre os aristocratas e levou ao seu assassinato em 461 a.C. (STARR, 2005).
135

A política externa era uma constante para os cidadãos reunidos na


assembleia, ao passo que a justiça estava nas mãos dos cidadãos que serviam
nos tribunais de justiça, em júris (dikatéria) de 201 membros ou mais—
sempre um número ímpar, pois se esperava um voto de maioria para o
veredito. Os jurados eram voluntários com idade acima dos 30 anos e, assim,
é provável que constituíssem um grupo mais velho de assembleia, composta
por eleitores de 18 anos ou mais; mas a suposição comum de que os jurados
eram mais conservadores não é muito bem amparada pela evidencia acerca
dos tribunais do século IV (STARR, 2005, p 74).

Em relação ao Julgamento pelo Júri (O Agón), Jones (1997) defende que a


audiência preliminar assumia a forma de uma arbitragem pública, sendo o arbítrio um
cidadão acima da idade militar que era selecionado por sorteio. Ambos os lados
prestavam juramento de que sua causa era correta e que apresentariam provas de apoio.
Se uma decisão fosse alcançada nesse estágio, seu cumprimento era obrigatório e o caso
era encerrado. Se não, todas as provas eram recolhidas e seladas numa caixa para serem
lidas no tribunal. Após isso, nada mais podia ser acrescentado a elas. A caixa era
deixada sob a guarda do arconte e a causa era entregue a jurisdição pública em um
tribunal do júri. Se o homem condenado se negasse a pagar a quantia determinada no
tribunal, o vencedor poderia apossar-se de propriedades correspondentes ao valor da
quantia imposta. No entanto, mesmo assim, muitas vezes era difícil que se cumprisse o
que determinava o julgamento na prática. Pois, os atenienses carregavam a fama de
serem litigiosos, fama justificada no cuidado para ter certeza de que o caso devia ou não
ir aos tribunais.

Por volta do século V começou a surgir um sentimento de que havia gente


demais abrindo processos, não por espirito público, mas para ficarem bem com seus
chefes políticos ou para ganho de bens ilícitos com a recompensa financeira proveniente
da vitória em um caso. Tais homens ficaram conhecidos como Sukophántai38. As
acusações feitas por um Sukophántai também incluíam informações contra alguém que
não houvesse pagado a quantia imposta no tribunal ou denúncias por práticas
comerciais ilícitas. Podemos perceber que os Sukophántai assim como muitas
características do sistema legal ateniense poderiam levar os cidadãos atenienses ao
estado de Atimía, que significa a perda total ou parcial de alguns ou todos os direitos
civis plenos. Isso é estar em um estado de Atimía equivalia a estar fora da lei. O homem
átimos podia ser morto ou roubado sem a possibilidade de reparação legal. Assim a

38
De acordo com Jones (1997) essa palavra é de origem desconhecida.
136

atimía era a sentença mais severa pronunciada pelos tribunais, depois da morte e do
exílio (JONES, 1997).

Podemos assim dizer que no que concerne à vida pública em Atenas, até mesmo
para os considerados cidadãos atenienses havia o direito de isonomia e isegoria.
Igualdade de direito no uso da palavra e de participação em assembleia só era garantido
através de um processo de investigação e votação que lhes garantisse sua participação
política na esfera pública durante esse período. Em sentido geral, eram os aristocratas
atenienses que conseguiam adentrar a esfera política e se manter no poder ao longo do
tempo.

Percebemos que a liberdade de oratória e participação nas assembleias, no


conselho, no areópago e em diversos setores públicos da pólis era uma liberdade
segregacionista, que abarcava de forma abrangente uma minoria de residentes da pólis,
sobretudo a aristocracia ateniense, que por sua vez, era a detentora dos poderes
políticos, ocasionalmente deixando o restante da população que faziam parte das
categorias de cidadãos não-livres (mulheres, crianças, escravos, tetas e metecos) a
margem dessa liberdade – pois não tinham nenhum direito público ou privado segundo
as leis.

Em relação à obra de Aristóteles, e aos autores trabalhados em nossa narrativa,


consideramos que estes não obtiveram um conhecimento mais amplo sobre
funcionamento da democracia e da vida pública em Atenas. Aos termos contato com o
funcionamento da sociedade ateniense percebemos que, no pensamento dos gregos, era
a obediência às leis e a constituição que determinava que os indivíduos políticos
devessem, dentre outras funções a ser realizado, manter a organização e manutenção da
pólis.

Em contra ponto, percebemos que para Aristóteles manter a organização e


manutenção da pólis grega significava o mesmo que excluir da esfera pública
determinadas camadas sociais, as camadas destinadas à obediência (mulheres, escravos,
crianças), aquelas que não deveriam ter direito a fala e nem a participação política direta
nas assembleias. Além disso, os metecos e aos tetas também não deveriam ter direito a
participar da Ekklesia por não serem considerados qualificados o suficiente a serem
capazes de opinar.
137

Devemos atentar também a existência de camponeses que também compunham


a pólis de Atenas, tais como comerciantes e artesãos, camadas sociais sobre os quais não
se recomendava a participação nas assembleias por se tratar de indivíduos que estavam
destinados ao trabalho, e por isso, na visão de Aristóteles, não teriam tempo para se
dedicar ao exercício da política. Sobre esse assunto, Aristóteles na obra “Politica”
(1328b15-24) nos diz que esses são os trabalhos de que toda cidade necessita, pois na
sua concepção a cidade não é um povo que se reúne por acaso, mas para ser a autarquia
da vida e caso alguns desses elementos for deixado para trás, é impossível que essa
comunidade seja autárquica. Para o autor é necessário então que a cidade se estabeleça
conforme essas atividades. Deve existir certo número de agricultores, os quais devem
prover o alimento, também os artesãos, o grupo dos guerreiros, o grupo dos ricos, os
sacerdotes e os juízes dentro das necessidades do que for conveniente.

Partindo do pressuposto de que a história é (re)escrita a cada presente e que a


leitura de um fonte histórica sempre dialoga com o historiador e seu tempo, como
demonstramos no capítulo 1, interessa-nos compreender como a democracia ateniense é
concebida no Império do Brasil por meio dos manuais de ensino de História,
chancelados pelos órgãos de controle e fiscalização das escolas secundárias.
Compreender esse processo de recepção do passado pelas produções escolares
oitocentistas permite-nos ampliar nosso olhar sobre a relação entre educação pública,
interesses estatais e usos do passado.
138

3.2. A DEMOCRACIA EM ATENAS: discussões historiográficas no


século XIX

David Held (2006) em sua obra Models of democracy, ao tratar sobre modelo
democrático e sobre a ideia desta forma de governo em Atenas, nos diz que essa
proposta de organização política tinha como objetivo retirar o poder das mãos de poucos
e alocar nas mãos do povo e, para isso, era necessário que todos os cidadãos pudessem e
devessem participar da criação e manutenção de uma vida comum. Assim, este modelo
baseia-se na ideia de que todos os cidadãos deveriam participar ativamente do dia-a-dia
das discussões e decisões políticas, tomando para si determinadas tarefas dentro desse
sistema. O autor diz que neste contexto são os próprios cidadãos que devem fazer o
Estado funcionar e essa tarefa é vista como uma afirmação da sua soberania perante a
‘coisa pública’. Em suas palavras “in Greece, decisions were made among citizens by
the force of the best argument and not by the imposition of brute force”39 (HELD, 2006,
p. 15, grifos nosso).

No subtópico anterior traçamos um panorama sobre o funcionamento da sociedade


ateniense, sobre o desenvolvimento do conceito de democracia e também sobre as
instituições democráticas dessa importante civilização. Consideramos que a questão dos
direitos dos cidadãos constitui um indicador fundamental da vida democrática de uma
sociedade e que os direitos de cidadania traduzem o poder dos cidadãos nas suas
relações com o Estado.

A narrativa a seguir tem a finalidade de apresentar alguns dos principais debates


historiográficos acerca da democracia ateniense ao longo do século XIX. Isso é
necessário para compreender as diferentes interpretações sobre a democracia ateniense e
em que medida elas estão comprometidas com as circunstâncias históricas e condições
político-culturais em que foram produzidas. O objetivo desse escrito é demonstrar as
especificidades do ‘olhar’ dos historiadores do século XIX e em que medida tais
perspectivas historiográficas influenciaram a escrita da história nos compêndios. Nesse
sentido, devemos nos atentar para o fato de que o modelo historiográfico produz

39
“Na Grécia, as decisões eram tomadas entre os cidadãos pela força do melhor argumento e não pela
imposição da força bruta” (HELD, 2006, p.15, tradução livre).
139

significado a uma representação da realidade passada para esses historiadores, nessa


análise compreendida como o historicismo, modelo de escrita que fora abordado de
forma aprofundada no capítulo 2.

De acordo com Beatriz Boclin Matos dos Santos (2015) no século XIX ocorreu um
momento importante de reflexão e mudança a respeito do significado do conceito de
História. Nesse século, há uma passagem da concepção da História filosófica para a
História fundamentada no método científico. Até o século XVIII os estudos históricos
faziam parte do mundo dos filósofos iluministas e a História era concebida como uma
história filosófica, projetada de forma linear e teleológica. A autora se refere ao regime
moderno de historicidade, no qual a escrita preocupava-se com o sentido e o dever da
razão histórica. Já no século XIX a mudança principal está no novo regime de
historicidade. A mudança na escrita da História apontada pela autora é marcada pela
passagem da visão filosófica para a perspectiva “romântica” da História e ocorre no
mesmo momento em que a História estabelece-se como uma disciplina acadêmica
(SANTOS, 2015).

François Hartog (apud SANTOS, 2015), ao se referir à escrita da história antiga no


século XIX, diz que nesse período a História se “profissionalizava” buscando constituir-
se como ciência, de modo a se consolidar como disciplina acadêmica no âmbito das
universidades. No processo de afirmação como disciplina de conhecimento científico, a
História tornava-se um importante instrumento do Estado na construção do conceito de
nação. Atendia, assim, o movimento de pensar o Estado-Nação, especialmente em um
período de reconstrução do mapa político europeu após o período napoleônico, quando
as questões nacionais (nacionalismo e identidade nacional) ganhavam espaço nos
debates políticos e culturais. Dessa maneira, a História foi se constituindo como uma
disciplina de conhecimento científico, capaz de explicar as mudanças decorrentes da
ampliação da dimensão do mundo social e político, no que se convencionou chamar de
História Universal: “a reunião dos acontecimentos de todos os tempos e todas as
nações” (HARTOG, 2006 apud SANTOS, 2015, p. 56, grifos nosso).
No final do século XVIII e durante o século XIX, os historiadores começaram a
produzir História a partir dessa tradição, onde eram desenvolvidas novas metodologias
de crítica documental para extrair dos textos a sociedade e a cultura que os tinham
140

produzido. De um modo bastante natural, os historiadores do século XIX ordenaram as


informações que encontraram nas fontes criando formas ou contextos para lhes dar
significado. Contextos que, como veremos, eram capazes de unir e separar documentos
e de inseri-los em diferentes tipos de diálogo. De acordo com Guarinello (2014), um
primeiro contexto era dado pelo idioma das fontes, latim e grego. Essas línguas eram
vistas como possuidoras de duas tradições relacionadas, mas diferentes. Formando,
assim, a base para o estudo de Grécia e Roma. O segundo contexto é o contexto de
cunho político onde Guarinello aponta que:

A História da Grécia foi concebida como a História de uma nação


politicamente dividida, cuja unidade era antes cultural ou, até mesmo, racial.
A História de Roma derivou, em parte, das narrativas das próprias fontes
antigas, mas relidas como contando a História de um estado-nacional
expansionista, de um povo com suas virtudes especiais e seu caráter
particular. A passagem da estado-cidade para o Império, por outro lado, era
descrita (e ainda, muitas vezes, o é) por um ângulo exclusivamente
constitucional: a transformação de um sistema político republicano em um
sistema imperial. Como se a escala da própria História não mudasse! De
certo modo, ainda estruturamos nossa disciplina ao redor da ideia de nação,
por mais que hoje isso pareça anacrônico (GUARINELLO, 2014, p.72-73).

De acordo com o autor, além desses dois contextos que influenciaram a escrita
da história antiga no século XIX, houveram ainda duas outras noções que determinaram
e influenciam as formas da escrita referente a História Antiga: as noções de civilização e
de progresso, os livros da tradição clássica foram considerados produtos de civilizações
diferentes, cada qual com suas próprias características, Oriente Próximo, Grécia e Roma
foram assim colocados numa espécie de sucessão, num processo civilizatório que
culminaria na civilização ocidental europeia; ainda falamos a seu respeito em termos de
“civilizações” quando, na realidade, a ideia de civilização é extremamente ambígua,às
vezes é empregado como sinônimo de cultura em geral, às vezes refere-se apenas a uma
parte da produção cultural de uma sociedade, outras é usado para diferenciar povos
“primitivos” daqueles desenvolvidos (GUARINELLO, 2014).

Nesse caso, o objetivo desse escrito é desenvolver uma consciência mais clara do
que os autores do século XIX, aqui investigados, apresentam como o passado para os
seus leitores, estudantes ou público geral. Iremos refletir sobre a concepção desses
autores no que se refere a democracia ateniense, presente no estudo sobre a História
Antiga. Isso se justifica em primeiro lugar, porque ao investigarmos os autores do
141

século XIX percebemos que sua escrita baseia numa tradição intelectual que é muito
rica em termos humanos e em segundo lugar, porque como nos diz Guarinello “a
tradição que estudamos e transformamos em História é, ainda, nossa própria tradição.
Somos parte dela, mesmo no Brasil. A própria Ciência é herdeira direta da tradição
clássica” (2014, p. 75, grifos nosso). Devemos, nesse sentido, antes demais nada,
refletir sobre a singularidade presente em cada historiador para compreender suas
pretensões à universalidade em sua narrativa histórica por tratar-se de uma História
particular e específica sobre a democracia ateniense, marcada pela influência de outros
pensadores e, que é baseada em uma forma de escrita aos moldes europeus.

Em nosso escrito, tomamos como ponto de partida para refletir sobre a escrita da
história ateniense no século XIX, a obra de Fustel de Coulanges (2006) intitulada A
cidade Antiga. Seu texto está dividido em cinco livros: no primeiro, são avaliadas as
antigas crenças que uniam o universo indo-europeu em uma religião de culto aos
ancestrais; no segundo, há uma sistematização das famílias grega e romana, cuja
estrutura era a base para o funcionamento da religião doméstica (du foyer); no terceiro,
o tema central concerne a ampliação da cidade e de suas próprias instituições; já no
quarto, foi moldada uma narrativa de caráter diacrônico sobre as revoluções, isto é, trata
das mudanças sociais que consolidaram o governo da pólis e que fizeram surgir a
democracia em Atenas; por fim, no último livro, são sublinhadas as transformações no
mundo romano que conduziram ao surgimento do cristianismo, ponto de inflexão na
argumentação do autor no que se refere ao respeito à liberdade do indivíduo
(MOERBECK, 2019).

Fustel de Coulanges (2006) ao abordar a participação dos cidadãos atenienses na


vida pública se mostra mais favorável a essa forma de governo do que alguns de seus
contemporâneos, como por exemplo, Gustave Glotz. Percebemos na obra de Glotz, logo
nos primeiros escritos, uma crítica sobre a visão romântica de Coulangens 40, referente a

40
Fustel de Coulanges estudou na École Normale Supérieure (ENS), sob a influência de François Guizot.
Foi professor no Lycée d’Amiens e no Lycée Saint-Louis de Paris. Em 1862, apenas dois anos após
Charles Darwin publicar sua teoria da origem e evolução das espécies, iniciou a carreira universitária em
Estrasburgo, retornando a Paris em 1870, como maître de conférences da ENS. Em 1875, assumiu a
cátedra de história antiga da Sorbonne. Depois, coloca-se na direção da ENS, em 1880, e, em 1883,
retorna à Sorbonne (CÉZAR, 2010). Fustel integra um conjunto de historiadores que defendiam o status
da história como ciência (LORENZ, 2009). Para ele, a história científica dependia do distanciamento da
experiência do presente, o que muito tem a ver com as memórias do Terror na Revolução Francesa, que
permeavam sua geração (CARDOSO, 2005; FONTANA, 1998). A história deveria voltar-se à
142

essa temática. É possível perceber marcas de singularidade na escrita de Fustel de


Coulanges, no capítulo IV, o que nos permite perceber algumas das contradições mais
objetivas entre o que o autor propunha como base epistemológica para a história e o que
realmente fazia em sua pesquisa. Podemos citar como exemplo, a forma como o autor
trata sobre a democracia ateniense e a participação dos cidadãos na vida pública. O
autor pondera que apesar de tantos cuidados quanto aos requisitos e a virtude necessária
ao cidadão que obtivesse espaço na vida pública ateniense, no período democrático,
podia acontecer que alguma proposta injusta ou funesta fosse adotada. Por isso, a lei
trazia sempre o nome de seu autor que mais tarde poderia ser perseguido em justiça e
punido. Para ele, o povo como verdadeiro soberano, era considerado impecável, mas no
que se refere a sua função pública no Estado o autor nos diz que cada orador ficava
sempre responsável pelo conselho que dera em assembleia. Essas eram regras de
obediência a democracia. Em suas palavras: “não devemos concluir daí que os cidadãos
nunca cometessem faltas. Qualquer que seja a forma de governo monarquia, aristocracia
ou democracia há dias em que a razão governa, mas também há outros em que a paixão
se sobrepõe” (COULANGES, 2006, p. 358) . Isto é, na concepção do autor, os erros
podem acontecer independente da forma de governo.
Para o autor é impressionante todo esse esforço que a democracia exige dos homens
atenienses para exercer o melhor trabalho na assembleia. Em suas palavras a
democracia era:
Era um governo muito trabalhoso. Vejamos como se passa a vida de um
ateniense. Certo dia ele é chamado à assembleia do seu demos e tem que
deliberar sobre os interesses religiosos ou financeiros dessa pequena
associação. Outro dia esse mesmo ateniense é chamado para participar da
assembleia de sua tribo; trata-se de regulamentar uma festa religiosa, ou de
examinar as finanças, ou de fazer decretos, ou ainda de nomear chefes e
juízes. Regularmente três vezes por mês este cidadão deve assistir à
assembleia geral do povo, e não tem o direito de faltar. Mas a seção é longa,
porque ele não vai assembleia somente para votar. Chegando pela manhã é-
lhe exigido que ali permaneça até a hora avançada do dia para ouvir os
discursos dos oradores. Não pode votar se não estiver presente desde a

observação, à busca da verdade por meio de seus métodos, especialmente baseados na leitura e no
acúmulo de documentação. Tratava-se de uma mudança profunda nas perspectivas historiográficas
oriundas do romantismo, o que Hartog chamou de um novo “regime de evidência”, que pretendia impedir
que o passado fosse apropriado no presente, como fizeram os artífices da Revolução Francesa na leitura
do igualitarismo espartano de Rousseau. Tratava-se de negar as experiências de J. Michelet e mesmo de
horizontes mais esotéricos, que falavam em divina providência na visão da história, como S. T. Coleridge
ou G. Bancroft. Fustel está no bojo de um movimento que consolidou o regime moderno de historicidade,
ao negar a possibilidade de uma história magistra vitae, isto é, que lançasse luz sobre o futuro por meio
das experiências e exemplos pretéritos (DOSSE, 2013; HARTOG, 2017; MOMIGLIANO, 2012;
MOERBECK, 2019).
143

abertura da assembleia e tendo ouvido todos os discursos (COULANGENS,


2006, p. 358-359).

A singularidade do historiador é marcada por seu local de fala e pela cultura no


qual está inserido. No século XIX, por exemplo, a sociedade movida por homens
dinâmicos, produtividade, inovação e Revolução Industrial embaçaram as lentes de
Fustel de Coulanges sobre o mundo grego entre os séculos VII e V a.C. De acordo com
Moerbeck (2019), há intenções ocultas em interpretar processos históricos à luz da
ascensão política e econômica da Europa, pois trata-se de um regime de verdade que
estava sendo gerado e que tinha a Grécia como vértice de uma narrativa: a do
nascimento da Europa.

Moses Finley (1988) em sua obra Democracia antiga e moderna aponta o fato de
que as elites modernas se enamoram da democracia, assim como alguns historiadores,
exatamente por ter sido retirada do jogo político a participação popular efetiva e livre.
Segundo suas palavras: “hoje, no mundo ocidental, todos se consideram democratas”
(FINLEY, 1988). Esse aspecto da obra representa uma mudança com relação à situação
predominante há cento e cinquenta anos. Quando os historiadores buscavam narrar a
história da Grécia a partir de uma história repassada de geração em geração através da
oralidade. Em parte, isso se tornou possível graças a uma drástica redução no elemento
de participação popular que havia na concepção original grega de democracia. A
disseminação de uma teoria justificando tal redução contribuiu muito, no campo
ideológico, para que ela ocorresse. A teoria elitista, como é usualmente chamada,
sustenta que a democracia só pode funcionar e sobreviver sob uma oligarquia de facto
de políticos e burocratas profissionais; que a participação popular deve ser restrita a
eleições eventuais; que, em outras palavras, a apatia política do povo é algo bom, um
indício de saúde da sociedade (FINLEY, 1988).

A grande questão da obra de Finley é: será que a experiência política da Grécia


antiga tem algo a nos ensinar? A partir de uma série de comparações, Moses Finley
prova que sim. No primeiro dos cinco estudos do livro Líderes e liderados analisa a
indiferença e ignorância da maioria do eleitorado nas modernas democracias ocidentais.
Em muitos países, inclusive, uma boa proporção dos eleitores sequer se dá ao trabalho
de votar. Nesse sentido, Finley compara autores antigos e modernos que destacam a
importância da apatia dos cidadãos. O mesmo paralelo, entre escritores antigos e
144

modernos, é feito quando é explicada a delegação da política a especialistas. Na


Antiguidade a maioria esmagadora dos intelectuais desaprovava o governo popular.
Atualmente, a mesma cifra dos estudiosos defende que a democracia é a melhor forma
de governo. A seguir, nesse estudo, Finley apresenta as definições gregas para política e
democracia, e explica como os atenienses buscaram manter seu sistema democrático em
funcionamento. Os gregos, segundo ele, foram os primeiros a pensar sistematicamente
sobre política, a observar, descrever e, finalmente, formular teorias políticas. Apesar
disso, os próprios gregos não desenvolveram uma teoria da democracia (FINLEY,
1988).

Dentro desse debate, a obra A cidade grega, de Gustave Glotz (1980), aborda a
Grécia antiga promovendo um maior destaque para as póleis grega e espartana. A
segunda parte da obra de Glotz é dedicada à cidade democrática. Notamos, desde o
início, uma escolha muito clara do modelo ateniense em oposição ao espartano, o
primeiro constituído como o futuro e o segundo como o passado. Ao tratar sobre as
reformas de Sólon, o autor nos diz que Sólon teria promovido uma ‘revolução
mitigada’, estabelecendo entre as suas medidas o ‘habeas corpus’ do cidadão ateniense.
Para ele, a reforma de Sólon marca o surgimento da democracia. As leis políticas de
Clístenes virão completar as leis civis de Sólon. A maneira como o autor aborda essa
temática passa a ideia de uma continuidade perfeita entre Sólon, Pisístrato e Clístenes
num movimento de “inevitabilidade democrática”, uma forma de teleologia. Depois o
autor aborda que as guerras médicas, o desenvolvimento contínuo do comércio e da
indústria e a abundância de riqueza mobiliária provocaram uma espécie de alargamento
contínuo da democracia, um deslocamento progressivo do centro de gravidade em
direção à massa dos produtores e dos marinheiros. Chega então à figura providencial de
Péricles: “Péricles, o sobrinho-neto de Clístenes, juntava a uma inteligência genial,
uma eloquência, uma autoridade, uma habilidade no manejo dos homens, que lhe
permitiram servir o povo dominando-o” (GLOTZ, 1980, p. 130-137, grifos nosso).

Para Glotz (1980, p. 111, grifos nosso) “a teoria da democracia ateniense é bem
simples; resume-se numa expressão: o povo é soberano (kúrios) quer funcione na
assembleia ou nos tribunais, tem a soberania absoluta de tudo que se refere a pólis”.
Percebemos que para o autor, a cidade grega é, igualmente, dos cidadãos em sentido
rigoroso: metecos e escravos não ocupam espaço, a não ser externo, pois em sua
145

concepção eles não fazem parte estrutural do sistema. A obra de Glotz é marcada pela
singularidade de seu olhar, uma vez que o autor apresenta suas convicções a respeito da
democracia como forma de governo quando diz que para chegar ao seu destino a
democracia ateniense se submeteu à ditadura moral do povo, o que a levou a seu
declínio.

Sobre as concessões de cidadania ateniense, individuais ou coletivas, o autor se


mostra favorável a democracia, desde que sejam selecionados os cidadãos ‘mais aptos’
a participação nos órgãos públicos, o que nos mostra também a particularidade de sua
interpretação ao trazer para o seu estudo o orgulho integracionista do francês
republicano com a “France terre d’accueil”, elemento importante da ideologia da III
República experienciada pelo autor41. Nesse sentido, para Dabdab Trabuci, na
concepção Glotz:

O erro dos atenienses foi o de não se abrirem às outras cidades, como farão
mais tarde os romanos, enfim, da mesma forma que a França, vencida em
1815, deixou o Código de Napoleão aos seus vencedores, Atenas (...)”. Essa
missão civilizadora que justifica a dominação é obviamente para uso de um
país colonizador – como a França da época de Glotz. Quanto aos aspectos
relativos à lei, ele reconhece que havia certa confusão entre lei e decreto, mas
relativiza isso, lembrando que os modernos, que inventaram o decreto-lei,
não possuem muita legitimidade para criticar os antigos quanto a isso. Aliás,
Glotz é claramente um “antiquisant”, além de ser um historiador da
Antiguidade, ou seja, alguém para quem a comparação entre o mundo antigo
e o mundo moderno resulta, na maioria das vezes, em vantagem para o
mundo antigo e o maior mérito do sistema, segundo ele, era o de promover a
educação política permanente dos cidadãos, pois a política não era “a simples
obrigação de depositar um voto na urna em longos intervalos de tempo”
(GLOTZ, 1980 apud DABDAB TRABUCI, 2016, p. 38).

Para o autor, a participação do povo na assembleia, importante órgão público de


Atenas, era exercida através de exigências que deveriam afunilar a participação
indivíduos, mesmo que estes fossem considerados cidadãos. Os antigos, como por
exemplo, Aristóteles em Constituição de Atenas, demonstram que o sistema
41
Glotz ao tratrar sobre a estrutura social da democracia ateniense lembra que o sistema representativo
democrático não existia e teria sido considerado como uma restrição oligárquica da isegoria. Para o autor,
Atenas se configura como uma espécie de França da Antiguidade. E a fraternidade, terceiro elemento da
tríade republicana, aparece sob a forma da justiça social. Vemos de novo aparecerem as convicções do
cidadão Glotz, quando ele diz que “antes dos últimos anos do V século, não se observa que a liberdade
tivesse degenerado em anarquia ou em indisciplina (...) quanto ao sentimento da igualdade, ele não era
levado até à negação das superioridades intelectuais”, temos aqui uma bela definição transposta daquilo
que se chamou na história da França contemporânea de “elitismo republicano”, forjado durante a III
República (1875-1940). O paralelismo se torna explícito quando ele diz: “liberdade, igualdade, era
propriamente a divisa dos atenienses; eles acrescentaram a fraternidade, sob o nome de filantropia” (p.
153) (TRABUCI, 2016, p. 36-38).
146

democrático serviria se deixasse aos ricos a sua riqueza e esses ajudariam a sustentar os
pobres, e os pobres decidiriam em última instância, pois na concepção de Aristóteles, os
pobres, a maioria, não estariam aptos para decidir.

Percebemos na obra de Glotz uma simpatia ao modelo democrático pensado por


Aristóteles, visto que o autor corrobora com o pensamento de que o povo é formado por
uma maioria que nem sempre sabe o que é melhor para a cidade. Portanto, a democracia
não funcionava bem como forma de governo, logo pressupunha a igualdade entre
desiguais. A participação popular, portanto, deveria estar à parte dessa relação. Esse
modelo de pensamento foi bastante difundido no século XIX.

Dabdab Trabuci (2016) em seu artigo intitulado “A democracia ateniense e nós”


aponta que é quase impossível nos interessarmos pela democracia antiga sem
encontrarmos análises que explicam que, nos quadros das cidades antigas, os indivíduos
não eram defendidos como nós somos, que a cidade grega não estava longe de ser
“totalitária”, no sentido em que não havia limites ao seu intervencionismo, a esfera
pública invadindo tudo e não deixando à esfera privada uma zona clara e delimitada,
protegida contra a sua invasão. Em suas palavras “tal visão parece muito exagerada em
certos aspectos, e totalmente falsa em outros aspectos” (TRABUCI, 2016, p. 9). Ainda
de acordo com o autor:

Podemos começar afirmando, contra tal opinião, que havia uma consciência de
esferas distintas. Alguns textos fundadores afirmam e reafirmam suas
especificidades. Em Tucídides, Péricles estabelece a distinção muito
claramente, falando da liberdade dos atenienses na ordem política, e
prosseguindo com a menção dos assuntos de ordem privada (Tucídides, 2, 37).
Da mesma forma, Aristóteles, na Constituição de Atenas (15, 5), quando
retorna à tomada de poder por Pisístrato, afirma que esse último ordenou que
cada um se ocupasse de seus assuntos pessoais (idíon), pois ele próprio se
encarregaria dos assuntos da coletividade (koinôn). Não estamos ainda, no caso
de Pisístrato, na época da democracia, e isso não impede a consciência de duas
esferas claramente distintas. Isso vai se afirmar progressivamente como uma
prática habitual dos discursos. Lísias, por exemplo, divide uma de suas
argumentações em duas partes: ele começa falando da vida privada, e em
seguida passa à vida pública (Lísias, Em defesa de Mantithéos, 11). Passemos a
outro ponto frequente na crítica da liberdade dos Antigos feita pelos liberais
modernos: o indivíduo não estaria protegido pelas leis, ele estaria à mercê das
vontades imediatas da coletividade, tanto mais nocivas quanto sempre muito
voláteis. Ora, contrariamente a isso, podemos constatar nas fontes muitas
garantias, por exemplo, quando leis são citadas nos discursos dos oradores
(TRABUCI, 2016, p. 9).
147

Podemos perceber a crítica da liberdade dos Antigos feita pelos liberais


modernos no trecho “o indivíduo não estaria protegido pelas leis, ele estaria à mercê das
vontades imediatas da coletividade, tanto mais nocivas quanto sempre muito voláteis”
(TRABUCI, 2016, p. 9). Nesse trecho, o autor nos incita a refletir sobre dois
questionamentos referentes às representações atenienses sobre a vida política: o cidadão
comum pode governar? E quanto aos cidadãos pobres, em especial, será que se pode
atribuir a eles uma parte importante no governo da coletividade em Atenas? Essas
questões foram debatidas ao longo de todo o regime democrático na Atenas clássica. A
ordem institucional da cidade dos atenienses promove a garantia a qualquer cidadão
sobre o direito de participação ativa, no tribunal, por exemplo, pois era quase uma
obrigação para os oradores lembrar os direitos políticos do povo, para que ficassem bem
vistos por parte dos cidadãos-jurados que iam decidir o caso em questão. O cidadão
comum, que não possui ancestral ilustre, que exerce uma profissão simples, não apenas
é autorizado a falar, mas incitado a fazê-lo. Sua palavra é bem acolhida. No entanto, a
realidade nem sempre era assim tão bonita, mas o mais importante é que o direito à
palavra era a norma social e, mais ainda, era a lei da cidade para todos os que fossem
incluídos na categoria de cidadão (TRABICI, 2016).

Segundo Burckhardt (1961), em sua obra Reflexões sobre a história os homens,


os seus contemporâneos carregariam consigo uma necessidade de formar juízos
históricos sobre os acontecimentos passados. Como observa o historiador, é comum
classificarmos os eventos históricos em felizes ou infelizes, como se fossem fatos
atuais. Contrário a essas classificações, Burckhardt acredita que devemos ser cuidadosos
ao desenvolver opiniões sobre os povos passados, uma vez que nem sempre o que
julgamos como fundamental para uma época pode ter sido realmente. Nessa obra, o
autor tenta esclarecer quais são as origens dos juízos históricos. Segundo Burckhardt, os
juízos frequentemente derivam da impaciência dos que escrevem ou leem a história,
visto que, buscando os fenômenos históricos grandiosos, esses homens entediam-se com
os períodos tranquilos, confundindo o que pode ter sido bom no passado com aquilo que
agrada a sua imaginação. Os juízos também podem ter origem em uma análise cultural
de um povo. Assim, quanto maior for o desenvolvimento de uma civilização, maior será
a sua felicidade. Além desses, Burckhardt identifica os juízos fundados no gosto
pessoal, em que o fator de felicidade seria medido de acordo com as preferências
148

pessoais de cada um. De outro modo, que se predomina em nós o gosto pela
imaginação, pela emoção ou pela razão. Por fim, há ainda os que julgam os fenômenos
históricos conforme suas crenças políticas ou por juízos de grandezas
(BURCKHARDT, 1961).

Em sua obra, o historiador suíço identifica a existência de três poderes: o Estado,


a Religião e a Cultura. Para Burckhardt, o Estado e a Religião consistiriam em potências
estáveis que almejariam obter uma universalidade. Esses dois fatores seriam
responsáveis pela produção de uma espécie de controle e se utilizariam da força como
meio de assegurar o seu poder. Por outro lado, a Cultura seria a “soma total de criações
espontâneas do espírito humano que não reivindicam para si uma validez obrigatória
universal” (BURCKHARDT, 1961) e exerceria uma função regulatória sobre as outras
duas potências, com exceção dos casos nos quais as primeiras reprimem-na, fazendo-a
trabalhar a seu serviço. Segundo o autor, essas três potências coexistiriam sempre
juntas, antagonicamente. Entretanto, o historiador identifica que há épocas
predominantemente políticas, épocas preponderantemente religiosas e épocas de
equilíbrio entre as potências, que resultaram em um grande florescimento cultural.

Burckhardt inicia as suas considerações sobre o Estado, reafirmando que “não


irá se preocupar com todas as conjecturas teóricas que pudermos fazer com relação à
origem e ao princípio do Estado” (BURCKHARDT, 1961), uma vez que essas seriam
vãs e sem utilidade. Segundo ele, através de algumas indagações, devemos esclarecer
apenas o necessário para compreender algumas questões, “alguns abismos que se abrem
sobre nós” com relação à formação de um povo e posteriormente de um Estado. O
Estado para Burckhardt, não teria surgido da renúncia aos egoísmos individuais, mas da
síntese desses egoísmos na esfera pública, que se integrariam a ele e a coletividade que
ele representa. O Estado, para Burckhardt, manifesta-se de várias formas, sendo
responsável pela configuração interna e externa de uma sociedade, devido a fatores tais
qual sua predisposição inicial, o seu desenvolvimento e a influência da religião e da
cultura sobre eles (BURCKHARDT, 1961).

A Cultura, para Burckhardt, seria constituída por “elementos dinâmicos e livres,


que possibilitariam o surgimento das expressões espontâneas do ser humano”
(BURCKHARDT, 1961). Ela agiria de forma natural e não violenta, constituindo-se
149

como um elemento modificador sobre os outros dois poderes. Segundo Burckhardt, a


Cultura representaria a crítica de ambos os fatores restantes, o relógio que soa a hora
fatídica em que a forma e o conteúdo da Religião e do Estado já não coincidem
exatamente. Deste modo, para o historiador, ficaria a cargo da Cultura o papel de
manter a simultaneidade entre as potências, remodelando-as e movendo-se entre elas.
As três potências, para Burckhardt, seguiriam a ordem da gênese, apogeu e declínio. Ou
seja, passariam por fases de crescimento, afirmação e declínio.

No caso da cultura, o historiador afirma que as experiências de povos do


passado, que já entraram em declínio, sempre que disso forem capazes e dignas, podem
continuar presentes e integradas na tradição comum coletiva, através de um processo de
“acumulação inconsciente nos povos e nos indivíduos, de legados culturais passado”
(BURCKHARDT, 1961).

O historiador suíço Jackob Burkhadt (1961) partilha também um sentimento de


perda constante da tradição europeia, após acontecimentos como as revoltas populares
da década de 1840, a Revolução Francesa, a Revolução Industrial e as Guerras
Napoleônicas; observando com desconfiança a modernidade, buscando na Grécia
Clássica seu modelo. Burckhardt não acreditava que a democracia conduziria a Europa
à liberdade e achava os socialistas perigosos em virtude de suas promessas e sua crença
em um assunto no qual os meios, o fim e o ponto de partida estão fora de controle
(BURCKHARDT, 1961). No que concerne ao sufrágio universal e a igualdade entre os
homens, o autor via tais práticas como um círculo vicioso que levaria ao sacrifício de
inúmeras coisas para fazê-las acreditar que o “progresso” estaria em andamento. Para o
autor, isso acarretaria na mediocrização da sociedade. As metrópoles modernas não
poderiam ser consideradas democráticas se comparadas a pólis grega. Com relação à
arte, o suíço acreditava que os Estados burgueses, na sua busca pela igualdade,
causariam uma burocratização da espontaneidade criadora, que levaria a uma escassez
de artistas e obras de arte relevantes.

Burckhardt apesar de criticar as mudanças pelas quais passava o século no qual


estava inserido e o desejo infundado da sua época em obter um conhecimento prévio do
futuro da humanidade, afirma que o século XIX estaria mais bem provido que os
séculos passados para o estudo da história. As vantagens práticas do século XIX para o
150

estudo da história fizeram com que os estudos realizados nesse século adquirissem uma
universalidade desconhecida até então. Segundo o historiador:

A História tornou-se infinitamente mais interessante na sua concepção e


descrição. Além disso, os pontos de vista sob os quais a analisamos tornaram-
se incomparavelmente mais numerosos, graças ao intercâmbio literário e as
viagens cosmopolitas do século XIX: o que era distante tornou-se próximo.
Em vez de um grupo de conhecimentos isolados, a respeito de fatos curiosos
de épocas países distantes, surgiu em seu lugar, o postulado de uma visão
global da humanidade (BURCKHARDT, 1961, p. 22).

O historiador diz que graças ao intercambio literário e as viagens cosmopolitas


do século XIX qualquer homem erudito que se interessasse pela história e se dedicasse
com afinco teria a capacidade de apreendê-la e poderia adquirir uma visão global sobre
fatos curiosos de épocas e lugares longínquos. No que se refere ao pensamento do autor
sobre a democracia ateniense, a obra “Jacob Burckhardt and his Athens or how to shape
an authoritarian democratic state”42, de Guilherme Moerbeck (2018), promove um
mapeamento sobre as principais características do pensamento de Jacob Burckhardt
referente ao mundo grego e a relação entre o indivíduo e o Estado na antiguidade. Seu
artigo foi organizado em três partes. Na primeira, é desenvolvida uma síntese da obra A
História da Cultura Grega de Burckhardt e do seu contexto histórico de produção. O
foco da segunda parte está relacionado às ideias de Burckhardt que concernem à
emergência da pólis na Grécia antiga, bem como às principais concepções do
historiador que tendem a transpor para a Antiguidade algumas reflexões teóricas
inerentes ao decurso do século XIX. A Atenas de Burckhardt é caracterizada na parte
final do texto, onde Moerbeck explica como Burckhardt construiu e sobrepôs a ideia do
“estado como mau” para a Atenas democrática dos séculos V e IV a.C. Dessa forma, o
autor promove uma reflexão sobre a Atenas de Borchardt, uma cidade-estado
degenerada por um governo popular corrompido.

No que se refere ao pensamento de Burckhardt sobre o desenvolvimento das póleis


na Grécia Antiga, o autor nos diz que:

We must be aware that, for Burckhardt, the problem of the advent of the poleis
was deeply rooted in violence. What Burckhardt began to stitch together is that
the development of Greek culture was directly linked to the development of the
poleis, so, it ends up being subordinated to the development of politics and a
State. A question that we should raise here is: was the formation of the State
troublesome in Antiquity, as well as the modern one? There is a strong

42
Jacob Burckhardt e sua Atenas ou como forjar um estado democrático autoritário.
151

temptation to easily link this fact with the German unification process, as far as
Basel’s bumpy ride during the creation of a united Switzerland. However, let
us put these conclusions aside for a while, and let Burckhardt’s thoughts guide
us. The interpretation of the author leads us to believe that the process of
synoecism had an enormous human cost - which involved struggles and
resettlements, which took the Greeks away from the lands they cultivated and
from the graves of their dead. The formation of the polis was ultimately, and
somehow paradoxically, the way found by the Greeks to fight against the
violence created by their form of territorial and institutional organization43
(BURCKHARDT, 1999, p. 45-6 apud MOERBECK 2018, p. 134).

No fragmento acima, o autor nos diz que devemos estar conscientes de que, na
visão Burckhardt, o problema do advento das póleis estava enraizado na violência. Para
ele, o que Burckhardt começou a costurar em sua obra, é que o desenvolvimento da
cultura grega estava diretamente ligado ao desenvolvimento das cidades-estado. Nesse
sentido, esse desenvolvimento acaba subordinado ao aprimoramento da política e do
Estado. Para o autor, a formação da pólis foi finalmente, e paradoxalmente, o caminho
encontrado pelos gregos para combater a violência criada por sua forma de organização
territorial e institucional.

De acordo com Moerbeck (2018), Burckhardt faz uma comparação considerando o


Estado e o indivíduo entre os tempos modernos e Antigos. Para o autor, no que se refere
a este último, as pessoas criam o Estado por causa de suas necessidades. A principal é a
segurança, de forma que eles possam desenvolver plenamente todo o seu potencial. Para
ele, a oferta de sacrifícios individuais em troca do estado é friamente calculada. Na pólis
grega, parte do todo, que é concebido cronologicamente, deve levar o cidadão a se
entregar ao todo, não apenas no campo de batalha, sacrificando sua vida, mas também
em outras esferas para ter a segurança da existência entre seus pares, que é restrita às
suas póleis. Isso significa que para ele “até o cidadão mais meritório sempre deve mais à

43
Devemos estar cientes de que, para Burckhardt, o problema do advento das poleis era profundamente
enraizado na violência. O que Burckhardt começou a costurar é que o desenvolvimento da cultura grega
estava diretamente ligado ao desenvolvimento das poleis, então acaba sendo subordinado ao
desenvolvimento da política e de um Estado. Uma questão que devemos levantar aqui está: a formação do
Estado foi problemática na Antiguidade, assim como a moderna? Existe uma forte tentação de vincular
facilmente esse fato ao processo de unificação alemão, tanto quanto como o passeio esburacado de
Basileia durante a criação de uma Suíça unida. No entanto, vamos colocar estes tirar conclusões por um
tempo e deixar que os pensamentos de Burckhardt nos guiem. A interpretação de o autor nos leva a
acreditar que o processo de snoecismo teve um enorme custo humano - que envolvia lutas e
reassentamentos, o que levou os gregos para longe das terras que cultivadas e das sepulturas de seus
mortos. A formação da polis foi finalmente, e paradoxalmente, o caminho encontrado pelos gregos para
combater a violência criada por sua forma de organização territorial e institucional (BURCKHARDT,
1999, p. 45-6 apud MOERBECK, 2018, p. 134, tradução livre).
152

sua cidade natal do que a cidade para ele” (BURCKHARDT, 1999, p. 55-56 apud
MOERBECK, 2018, p. 135).

Ainda segundo Moerbeck (2018), Burckhardt, em sentido geral, define a pólis


ateniense como o único modo de os cidadãos realizarem todas as suas virtudes. Assim,
os gregos só poderiam alcançar seu espírito pleno através da participação no Estado.
Além disso, a pólis era uma tremenda força educativa. O ponto é que para Burckhardt a
pólis poderia fornecer aos seus cidadãos uma vasta gama de rituais especialmente
religiosos. Além disso, ela também fornecia obras de arte, discursos públicos, poesia
(inclusive teatro) e educação familiar para reforçar os valores culturais e amarrar os
seres humanos à sua terra natal, à sua pólis.

Ao tratar sobre a democracia ateniense como forma de governo, Moerbeck (2018)


nos diz que Burckhardt não tinha certeza se Clístenes e seus seguidores eram os
criadores ativos da democracia ou meros artífices do espírito ateniense da época. Pois
Burckhardt enfatiza que os homens ambiciosos e inescrupulosos que exploraram o
Estado eram um dos elementos mais perversos que distinguiam a democracia antiga. O
historiador suíço afirma que o problema crucial era que:
The poor man, to guard against wicked decisions, had to be able to be judge
and magistrate. And considering the enormous power of the polis over
existence, the most insignificant had to claim their participation in it. Thus,
all the power that was formerly owned by kings, aristocrats, tyrants, now
passes into the hands of the people [and the people] are the most suspiciously
anxious to react and command, and it is important to point out, at that
moment, that those measures were used to defend [the poor] from the influx
of individuals of indicated intelligence, the procedure of election of a military
leader or ostracism (BURCKHARDT, 1964, p. 282-3 apud MOERBECK,
2018, p. 137)44.

Segundo o fragmento acima, para se proteger de decisões iníquas, o cidadão


ateniense tinha de ser juiz e magistrado. Isto é, tinha que participar da vida pública.
Burckhardt faz uma crítica à participação do povo considerando o enorme poder dos
mais insignificantes que reivindicam sua participação na assembleia e nos cargos

44
O pobre homem para se proteger de decisões iníquas, tinha que poder ser juiz e magistrado. E
considerando o enorme poder da pólis sobre a existência, os mais insignificantes tiveram que reivindicar
sua participação nele. Assim, todo o poder que antes era propriedade de reis, aristocratas, tiranos, agora
passam para as mãos do povo [e o povo] são os mais suspeitosamente ansiosos para reagir e comando, e é
importante ressaltar, naquele momento, que essas medidas foram usadas para defender [os pobres] do
influxo de indivíduos de inteligência indicada, o procedimento de eleição de um líder militar ou
ostracismo (BURCKHARDT, 1964, p. 282-3 apud MOERBECK, 2018, p. 137, tradução livre).
153

públicos em Atenas. Pois segundo ele, todo o poder que antes era propriedade de reis,
aristocratas, tiranos, agora passa para as mãos do povo; que o autor considera indigno,
por se tratar de indivíduos que “são os mais suspeitosamente ansiosos para reagir e
comandar” (BURCKHARDT, 1964, p. 282-3 apud MOERBECK, 2018, p. 137).
Moerbeck nos mostra que a crítica de Burckhardt a participação do povo e as
instituições democráticas atenienses é apenas o começo. Burckhardt considera o
theoryikon (pagamento de ingressos para o teatro), os banquetes e os sacrifícios
públicos como um dos pontos mais prejudiciais da democracia. A sobreposição de
funções no caso ateniense levou o Estado, nos argumentos de Burckhardt, a um
problema real, possivelmente causando um distúrbio significativo. Ele também afirma
que os funcionários no período democrático eram sazonais (devido a eleições e
cédulas). Portanto, não houve possíveis ganhos de força e organização nesse regime de
governo. Finalmente, Burckhardt se mostra desconfortável com uma posição relevante
do “povo” nos assuntos administrativos do sistema democrático ateniense
(MOERBECK, 2018).

Moerbeck ao apresentar o pensamento de Burckhardt, nos apresenta a enorme


escala de fontes escritas que foram usados pelo autor em suas palestras sobre História da
Grécia Antiga. No que se refere à sociedade ateniense o autor nos diz que os cidadãos
realizaram suas virtudes na pólis, o próprio lugar onde o indivíduo perdeu sua liberdade,
em um regime de governo que não traria prosperidade a cidade-estado. Mas, ao mesmo
tempo, os atenienses fizeram coisas únicas. Seletivamente, nas décadas seguintes, essas
coisas únicas serão politicamente usadas para formar a base, ou o passado glorioso, da
chamada cultura europeia.

No entanto, na concepção de Burckhardt, essas realizações não foram iguais para


todos os seus cidadãos. Os mais ricos, explorados progressivamente pelas demos, viram
seus valores de vida levados por uma multidão ociosa e agressiva. A multidão estava se
incorporando ao núcleo da Instituições democráticas atenienses enquanto o estado se
tornava progressivamente tirânico com vozes dissonantes. Na concepção de Burckhardt,
da Prússia moderna à antiga Atenas, o Estado era mau. Atenas foi um exemplo para
ilustrar o que deve ser evitado. Apesar de todo o brilho do espírito grego, Atenas
tornou-se, paradoxalmente, um autoritário Estado democrático (MOERBECK, 2018).
154

Os elogios e críticas ao trabalho de Burckhardt, segundo Moerbeck (2018),


ganharam o mesmo peso na historiografia. O pensamento do autor gerou algumas das
leituras mais críticas que influenciaram a historiografia moderna, como a ideia da
primazia do poder político na vida grega, que acabou por impor uma forma de
racionalidade na sociedade grega.
A obra de Mogens Herman Hansen “The Tradition of Ancient Greek Democracy
and its Importance for Modem Democracy”45 também ajuda a refletir sobre a escrita
referente a democracia ateniense ao longo dos tempos, pois trata de estudos impressos
que investigam até que ponto há uma conexão entre a democracia antiga e a moderna. O
foco de investigação do autor trata a noção da democracia grega antiga, especialmente a
tradição de democracia ateniense de 1750 até o que o autor considera como “dias
atuais”.

Argumenta em seu texto o fato de a ideologia, apresentada pelos pensadores


analisados em seu estudo, obtém uma notável semelhança entre os atenienses da
democracia no período clássico e a democracia liberal moderna nos séculos XIX e XX.
Por outro lado, nenhuma tradição direta conecta democracia liberal moderna com seu
ancestral antigo. Segundo o autor, nenhuma instituição ateniense única foi copiada por
uma democracia moderna e é apenas a partir de 1850 que os ideais valorizados pelos
democratas atenienses foram mencionados com aprovação pelos campeões modernos da
democracia. Ao tratar sobre a escrita dos antigos sobre a democracia ateniense:

The Plato - Aristotle - Polybios view of democracy as one of the three basic
types of constitution that is reflected in political philosophy and in political
thought from the recovery of Aristotle’s Politics about and to the rise of
history in its modem sense in the beginning of the 19th century During this
period of 600 years the standard description of ancient Greek democracy
includes the following elements:
1. Democracy is not described in its own right but only as one of the three
basic forms of government, monarchy, oligarchy and democracy.
2. The description is theoretical rather than historical. Democracy, that is
government by the majority of the people, is mentioned in passing only as a
possible form of government which nobody needs to take much notice of.
3. The view of democracy is mostly hostile, and when it is positive,
democracy is nevertheless regarded as impracticable.
4. It is commonly held that the best form of government is some kind of
mixed constitution, combining monarchic, aristocratic and democratic
elements.
5. In so far as democracy can be accepted it is one of the elements in a mixed
constitution not a pure constitution.

45
A tradição da democracia na Grécia antiga e sua importância para a democracia moderna.
155

6. Occasional references to Athenian institutions are mostly to the famous


legislator Solon, who was believed to be the father of a moderate mixed
democracy.
7. The sources upon which this account of ancient democracy is based are
Plato, Aristotle and, sometimes, Polybios. In so far as the Athenian
democracy is mentioned the main source is Plutarch’s lives of Solon,
Perikles, Demosthenes and Phokion, as well as his other lives of Athenian
statesmen (HANSEN, 2005, p. 9)46.

Na busca por compreender melhor a democracia ao longo do tempo, Ana Sofia


Cordeiro (2012) nos diz que o conceito de democracia, desde a sua concepção, traz
consigo alguns princípios que lhe são inerentes. No entanto, historicamente, esses
princípios materializaram-se em diferentes modelos de democracia. De acordo com a
autora, cada um dos modelos de democracia elaborou uma forma própria de tratar os
princípios democráticos, inserindo maior ou menor ênfase na importância atribuída a
cada um deles. Segundo ela, o desenvolvimento desses modelos, ao longo da história,
trouxeram diversas consequências, quer no plano normativo, quer no traçado dos
próprios estados democráticos. A soberania popular é um princípio que acompanha a
democracia desde o início, estando incluída na própria etimologia da palavra, que vem
do grego e que significa governo do povo (CORDEIRO, 2012).

É interessante perceber que essa visão hostil sobre a democracia na antiguidade,


retratada no século XIX, é marcada pela singularidade daqueles que dominavam os
espaços públicos e que estavam à frente das políticas públicas educacionais que ao tratar

46
Platão - Aristóteles – Políbio apresentam uma visão sobre a democracia como um dos três tipos básicos
de constituição que se refletem na filosofia política e no pensamento político a partir da recuperação da
obra de Aristóteles Política sobre e à ascensão da história em seu sentido moderno no início do século
XIX, durante este período de 600 anos a descrição padrão da democracia grega antiga inclui os seguintes
elementos:
1. A democracia não é descrita por si só, mas apenas como uma das as três formas básicas de governo,
monarquia, oligarquia e democracia.
2. A descrição é teórica e não histórica. Democracia, que é governo pela maioria das pessoas, é
mencionado de passagem apenas como uma forma possível de governo que ninguém precisa prestar
muita atenção.
3. A visão da democracia é principalmente hostil e, quando positiva, a democracia é, no entanto,
considerada impraticável.
4. Costuma-se afirmar que a melhor forma de governo é algum tipo de constituição mista, combinando
monárquica, aristocrática e elementos democráticos.
5. Na medida em que a democracia pode ser aceita, é um dos elementos em uma constituição mista, não
uma constituição pura.
6. As referências ocasionais às instituições atenienses são principalmente o famoso legislador Solon, que
se acreditava ser o pai de uma democracia mista moderada.
7. As fontes sobre as quais esse relato da democracia antiga é são baseados em Platão, Aristóteles e, às
vezes, Políbios. Até agora como a democracia ateniense é mencionada, a principal fonte é A vida de
Plutarco em Sólon, Péricles, Demóstenes e Phokion, bem como suas outras vidas de estadistas atenienses
(HANSEN, 2005, p. 9).
156

sobre o que deveria ser fixado pelo alunado brasileiro nos oitocentos, através da
memorização dos conteúdos dos compêndios de História Universal, deixavam marcas
de suas concepções de mundo e de seu olhar sobre essas civilizações.

No Brasil, o estudo sobre os povos antigos ocupou grande espaço nas grades
curriculares das escolas brasileiras ao longo dos oitocentos. Pierre Vidal Naquet (2002)
em sua obra Os gregos, os historiadores e a democracia, o grande desvio mostra que os
estudos de história antiga na França - grande influenciadora da configuração curricular
do ensino secundário brasileiro – incluíram o estudo das línguas latina, grega e hebraica.
Segundo o autor:
A antiguidade é essencialmente o mundo greco-romano, ao qual se anexam
Egito, Israel e Oriente Próximo. Trata-se da laicização, operada no
transcorrer do século XIX, da antiga história sagrada, centrada no povo
judeu. Nem a China nem a Índia estão ligadas a antiguidade. E é impossível
fazer estudos de história sem o conhecimento, no mínimo do latim
(NAQUET, 2012, p. 18).

Tomando como base o fragmento, ao longo do século XIX, podemos perceber que
além das disciplinas das línguas grega e latina, a cadeira da antiguidade é
essencialmente demarcada pelo estudo do mundo greco-romano, ao qual se anexam
Egito, Israel e Oriente Próximo. O conhecimento relacionado a antiguidade na França
dava aos conteúdos de Grécia e Roma uma maior ênfase. Para ele, “os estudos clássicos
eram caracterizados por uma divisão entre a disciplina filológica e literatura de um lado,
e do doutro lado à história e a filosofia antiga” (NAQUET, 2012, p. 18). Para o autor a
história antiga, sobretudo grega e romana, era considerada de grande influência pelo
lugar que ocupava naquilo que ele chamou de “quadripartição da história” (VIDAL-
NAQUET, 2002). No que se refere à democracia grega o autor ainda aponta:

A Grécia não está na nossa história, e para compreender esta última não
temos nenhuma necessidade de saber como funcionava a assembleia
ateniense, o que era a boulé (o conselho) e como era aplicado o ostracismo. O
que está na nossa história, ou pelo menos numa parte da nossa história, e que
não podemos extirpar, porque ela é o passado, é o diálogo com a Grécia e,
antes de tudo, com os textos gregos. A reelaboração da herança grega, ora
sob forma mítica ou ideológica, ora sob forma do trabalho crítico e científico,
é um dos dados da nossa história intelectual, que se exprime na criação,
incessantemente renovada, de novos modos de discurso, de novos conceitos,
de novos campos epistemológicos (VIDALNAQUET, 2002, p. 254-255).
157

Nesse caso, tomando como ponto de apoio as palavras de Vidal- Naquet


poderíamos questionar então qual a razão de ensinar a história de determinados povos
da Antiguidade como, por exemplo, a Grécia; ou por que algumas sociedades antigas
ganham destaque para serem estudadas e outras não; ou mesmo qual motivo levaria a
escolha dos helenos e dos latinos para serem considerados o berço de uma “civilização
ocidental” a que pertenceríamos; como a edificação da unidade territorial e de uma
identidade nacional estão relacionadas com o lugar dos antigos dentro da cultura
histórica no Brasil do século XIX?

Em resposta a esses questionamentos teríamos nos escritos Guarinello (2014)


como uma grande ajuda, pois o autor relata que a História da Grécia, um dos elementos
da tripartição da História Antiga (junto com o Oriente Próximo e Roma), confere
coerência a um grande corpo documental oriundo tanto da tradição literária clássica
quanto das pesquisas arqueológicas, constituindo-se naquilo que o autor define como
‘forma’, um conjunto de generalizações ou contextos que fundamentam o jogo
interpretativo entre certos modelos e teorias e certos documentos (GUARINELLO,
2014).

Entretanto, na visão do autor, a forma ‘História da Grécia’ não é livre de


contradições, fundadas tanto na diversidade dos documentos quanto nas questões
específicas do tempo e do espaço dos historiadores que a formularam e a reproduzem.
No decorrer do século XIX, a tradição clássica e seus padrões morais, filosóficos e
estéticos ganharam progressiva importância no seio da cultura viva. Sua atuação se
cristalizou nos padrões estabelecidos de seu ensino e assim permanece até hoje, tanto na
Europa como no Brasil. Ainda perdura, como por inércia, a tradicional visão da História
Antiga dividida em três partes: Oriente Próximo, Grécia e Roma. Ainda se ensina a
História Antiga como a História Universal ou, no mínimo, como a História do Ocidente
(GUARINELO, 2014).

De acordo com Douglas de Melo Altoé (2016), se na Antiguidade o mundo era


repartido entre gregos, romanos e bárbaros, no século XIX consolidou-se uma divisão
entre o mundo civilizado europeu e os demais povos “bárbaros”. Nesse momento, os
antigos ganham destaque para a constituição da história como ciência e para a
compreensão dos problemas do presente, uma vez que é no século XIX que se
158

constituem as “ciências da Antiguidade” na Europa. Para o autor, as obras de estudiosos


da história helenística, como George Grote (1794-1871), Victor Duruy (1811-1894),
Johann Gustav Droysen (1808-1884) e Ewald Friedrich Hertzberg (1725-1795) foram
marcadas por discussões relacionadas à atualidade política de cada contexto, pelo
“problema da constituição dos Estados nacionais e a questão da unidade, das relações
entre modos de dominação e suas consequências culturais” (ALTOÉ, 2016).

O legado da Grécia está diretamente ligado à ideia de civilização europeia em


contraposição a algumas sociedades estigmatizadas como “bárbaras”. No século XIX no
Brasil, o conhecimento do mundo clássico constituía um ideal de cultura extremamente
valorizado, no momento em que se buscava uma concepção de civilização advinda da
Europa. Nesse caminho, para um país que há pouco se encontrava na situação de
colônia, e era considerado como desprovido de História pelos europeus - condição essa
que o afastava do modelo moderno de civilização - a tarefa de constituir seu passado
como História, segundo os cânones da cultura letrada europeia, apresentava-se como
particularmente difícil.

A construção dos ideais democráticos e seus eixos, como o surgimento das


assembleias, a definição do cidadão ideal e o interesse pelo bem comum da pólis tinham
como intuito a criação de uma estrutura idealizada de valorização da cultura grega
ateniense. Para este homem grego não bastava somente ser livre e ter o atributo da
cidadania, tinha também que ter a participação ativa nos problemas da pólis. Essa era a
conduta esperada tanto idealmente quanto na vida cotidiana.

De acordo com Guarinello (2014), o primeiro passo para compreendermos as


narrativas propostas pelos historiadores desse período é termos consciência do que nos
separa dos antigos. A cidadania antiga não se desenvolveu no âmbito de estados-
nacionais complexos, oriundos da desagregação de monarquias absolutas, nem teve
como motor originário qualquer “princípio das nacionalidades” como se observou no
decorrer no século XIX e XX. Quando as fontes de que dispomos nos lançam alguma
luz sobre elas, já estão constituídas e, frequentemente, em crise. Além disso, ao longo
do Mediterrâneo antigo, desenvolveram-se estados-cidades das formas mais variadas,
pequenas e grandes, originárias ou fundadas por colônias e impérios, autônomas ou
dominadas. Segundo o autor:
159

O próprio termo, estado-cidade, pode levar a confusões, pois nada tem a ver
com o quê hoje entendemos como cidade, núcleo urbano de adensamento
populacional com diferentes e mutáveis funções. Uma estado-cidade é mais
que uma cidade, é, antes de tudo, uma forma de Estado. Uma definição única
e cabal é impossível. Mas uma definição mínima, como um tipo ideal, pode
nos servir de guia nas análises que se seguem sobre a questão da cidadania.
Para os fins de nosso estudo, entenderemos estado-cidade como uma forma
peculiar de organização de uma sociedade essencialmente camponesa. Uma
estado-cidade representa, ao menos num primeiro momento, um território
agrícola fechado, no sentido de que o acesso à terra, o principal meio de
produção, é restrito aos membros da comunidade que detém o controle sobre
esse território. Esse fechamento foi, quase certamente, produto de um
processo histórico, cujos detalhes nos escapam, mas que deve ter ocorrido, na
Grécia continental, entre os séculos IX e VIII a. C. e, em algumas regiões da
na Itália peninsular, entre os séculos VI e V a.C. É esse fechamento para o
exterior, ocasionado talvez por disputas guerreiras, talvez pelo esgotamento
das terras disponíveis para eventuais migrantes, que constitui a estado-cidade
como comunidade e que nos fornece um primeiro, e ainda embrionário,
conceito de cidadania. Ser cidadão é poder possuir terras no seio do território
ocupado pela comunidade (GUARINELLO, 2014, p. 99-100).

Dentro deste debate, Fabio Augusto Morales (2009) dá ênfase ao estudo das
categorias de pólis, traduzida como cidade ou cidade-estado, e nos mostra que o estudo
sobre a pólis tem sido uma constante na História da Grécia, enquanto disciplina
científica, desde a segunda metade do século XIX e em todo o século XX, a ponto de a
história grega ser associada quase que exclusivamente a uma história das poleis gregas.
Mas o que significa, na historiografia moderna, o termo pólis? Para o autor as respostas
são variadas: uma cidade de consumidores (com ou sem a separação campo-cidade),
uma comunidade sagrada, uma instituição estatal, uma experiência existencial, uma
sociedade liberal, uma vila escravista, uma união de aldeias etc. No entanto, existem
semelhanças entre os vários modelos de pólis elaborados pela historiografia dos séculos
XIX e XX: em primeiro lugar, o não questionamento da forma ‘História da Grécia’ ou
‘História Antiga’, ou ao menos uma ausência do enfrentamento teórico de suas
contradições; em segundo lugar, a identificação da póleis com a comunidade de
cidadãos, os polites, que são definidos de modo estático: homens, adultos, livres e filhos
de pais atenienses (MORALES, 2009).

Guimarães & Vieira (2012), em seu artigo intitulado O ideal de cidadania na


sociedade da Atenas clássica, busca refletir sobre a relação entre política e cidadania na
Atenas do período Clássico. Durante o Período Clássico, Atenas viveu sob o sistema de
governo criado e desenvolvido por ela, a Democracia. Neste sistema, o ideal era o da
participação direta dos cidadãos na política, ou seja, era exigida a sua participação ativa
160

na assembleia deliberativa votando as leis e as decisões que entrariam em vigor. O


modelo de cidadão ideal, considerado pela pólis, era aquele que estaria preocupado com
o bem da comunidade.

Em seu artigo, os autores promovem uma reflexão sobre os aspectos que


alimentavam a construção da cidadania ateniense, nele os autores nos mostram que a
ideia de cidadania, na Antiguidade e, em especial, na Atenas do período Clássico, era
um conceito formado por vários requisitos que vinculavam e, também, definiam quem
exerceria tal direito. Além disso, a obediência a todos os requisitos para participação na
vida pública ateniense, na definição do que seria um cidadão, criava a ideia de cidadão
com um ser virtuoso e ideal que serviria de exemplo aos outros e, ao mesmo tempo,
distinguia este grupo restrito dos outros habitantes da pólis. Criava-se, deste modo, uma
superioridade de um grupo minoritário, que estava no comando das decisões políticas,
frente aos outros integrantes da comunidade políade; os que não detinham o direito de
ser cidadão. Em suma, a pólis junto com seus habitantes devia formar um todo
harmonioso, que garantisse o equilíbrio interno para a valorização e difusão das virtudes
de um bom cidadão e, concomitantemente, de uma boa cidade. Evitando, portanto, a
desestruturação do equilíbrio da mesma (GUIMARÃES & VIERA, 2012).

De acordo com Ana Lívia Bonfim Vieira (2007) durante o Período Clássico,
Atenas viveu sob o sistema de governo criado e desenvolvido por ela, a saber, a
Democracia. Consideramos importante ressaltar que Atenas foi a única pólis
democrática da antiguidade grega de que se tem registro. Neste sistema, o ideal era o da
participação dos cidadãos na política e isso se dava com a participação ativa na
Assembleia, votando as leis e as decisões que entrariam em vigor. Um bom cidadão –
polites - ateniense era aquele que estava preocupado com os outros cidadãos, ou seja,
com a sua comunidade. Contudo, este ideal de unidade, de coesão social, entra em
desagregação no final do V século, entre outros fatores, por conta da Guerra do
Peloponeso. Segundo a autora:

A Guerra do Peloponeso aponta para um momento de crise da pólis de


Atenas como a grande senhora dos mares, a pólis hegemônica por excelência.
O conflito que se dá entre Esparta e suas aliadas (formando a Liga do
Peloponeso) e Atenas e suas aliadas (Liga de Delos) entre os anos de 431 e
404 a. C vai dar o tom deste final de século. Este "estado de guerra" –que se
caracterizou por inúmeros conflitos localizados- termina por acentuar o
esfacelamento dos valores democráticos ligados à pólis de Atenas. Sabemos
que existe um distanciamento entre os valores "ideais" e como eles são
161

compreendidos e efetivamente operacionalizados dentro do corpo social, que


jamais é homogêneo. E no caso de Atenas, seu poderio e seu "equilíbrio" fora
constantemente ameaçado mesmo antes deste conflito com Esparta, seja por
potências estrangeiras como a Pérsia e a Macedônia, seja por outras pólis
gregas na briga pela hegemonia do mundo grego. Porém, a partir do fim do V
século a. C e durante todo o IV século, essas ameaças vão representar um
dado importante na desagregação não somente do poder efetivo de Atenas,
haja vista que os gregos viram seus domínios caírem nas mãos dos
Macedônios, com Filipe e Alexandre, mas na dos seus valores. E eram esses
valores – como justiça, coragem, honra, honestidade, participação na política
– que representavam o alicerce do que chamamos de ideal democrático
políade (VIEIRA, 2007, p. 2).

Compreender o regime democrático nesse momento de crise em Atenas se faz


necessário, pois nos ajuda a entender como os historiadores do século XIX se apropriam
das fontes históricas atenienses, com destaque a Aristóteles, e enfatizam determinados
desdobramentos político-culturais que muitas vezes corroboram com uma concepção
depreciativa do processo democrático vivenciado em Atenas. Ao tratar do
desenvolvimento de uma historiografia oitocentista que dialogou com os autores dos
compêndios de História Universal, notamos uma abordagem interessada em
fundamentar o cenário político nacional, especialmente no Império do Brasil, em que os
compêndios circularam sob a chancela imperial, resultando em supressões e ênfases à
narrativa histórica, as quais imprimiram um tom bastante particular à democracia
ateniense.

Nesse viés, pode-se dizer que o compromisso desses homens não estava apenas
em propor elementos que viessem conduzir a um novo método de análise da história ou
destacar modelos de como deveria ser o perfil do novo historiador. Ao fazerem a crítica
do cientificismo, a preocupação estava em negar o modelo intelectual que conduzira o
pensamento do homem alemão e sua sociedade até aquele momento. Uma forma de
condução que precisava passar por mudanças, pois não atendia mais as necessidades
postas diante das transformações que estavam ocorrendo na sociedade e no mundo
durante o século XIX. E para que essas mudanças ocorressem da maneira desejada,
propôs-se a formação de um novo homem-cidadão, apoiado nos alicerces dos ideais de
unificação, do patriotismo e de orgulho do seu passado para que assim pudessem
escrever um novo capítulo na história.
Nesse momento, a instrução direcionada para a formação das elites, buscava inserir
a recente nação brasileira no caminho da civilização, e, por conseguinte, fazer do Brasil
162

uma parte do mundo civilizado ocidental, constituído pela “herança” da Antiguidade,


sobretudo, grega e romana. Todavia, a escrita referente a alguns pontos sobre essas
civilizações, sobretudo no que se refere à democracia, tomava como base os princípios
dos pensadores europeus que trabalharam sobre essa forma de governo em um período
de crise, onde os autores abordam suas fragilidades e seu declínio. Isto é, os autores não
produzem esse conteúdo de forma a abordar os pontos positivos dessa forma de
governo. Esse modo de concepção de democracia influenciará a escrita dos compêndios
escolares utilizados nas escolas secundárias do Brasil, como veremos na análise dos
compêndios de História Universal investigados no próximo subtópico.
163

3.3. A DEMOCRACIA ATENIENSE NOS COMPÊNDIOS DE


HISTÓRIA UNIVERSAL: análise sobre esse conteúdo nos compêndios
de Justiniano Jose da Rocha (1860) Pedro Parley (1869) e Victor
Duruy (1865)

Nesse subtópico traremos como finalidade principal analisar as nossas fontes de


pesquisa histórica que são os Compêndios de História Universal de Justiniano José da
Rocha (1860), Victor Duruy (1865) e Pedro Parley (1869) onde investigamos como a
história da Grécia é narrada e como a democracia ateniense é abordada, o que nos levará
a refletir sobre a narrativa escolar proposta para o ensino secundário no período
Imperial brasileiro. Isso se faz necessário para compreendermos o olhar desses
pensadores sobre essa sociedade e os silenciamentos existentes na narrativa escolar
sobre a democracia proposta por esses autores.

De acordo com Altoé (2016), a narrativa sobre a Antiguidade no Brasil


oitocentista estava inteiramente ligada à formação do cidadão como servidor do estado
monárquico. Por esse motivo, o ensino das civilizações antigas encadeava-se em duas
dimensões, a religiosa e a política. A primeira possuía como base a instrução dos alunos
na doutrina cristã/católica, percebida como alicerce da moral e da conduta virtuosa dos
indivíduos. Já no segundo caso, o autor nos diz que, o âmbito político, caracterizava-se
pela necessidade de absorção de uma tradição clássica, destinada aos filhos da “boa
sociedade”, isso é, os futuros letrados preparados para atuar no Estado e ocupar os
principais cargos aristocráticos.

Desse modo, na concepção do autor, a História Antiga ensinada concentrava-se


na Antiguidade clássica, aproximadamente 76,5% dos conteúdos dos manuais versavam
sobre o mundo greco-romano. Para ele, o ensino dessa disciplina se justificava como um
saber advindo das nações percebidas como cultas, oriundas dos países ocidentais, cujo
modelo de civilização deveria ser adotado pelas escolas brasileiras com a finalidade de
compreender a concepção de história que norteou tais narrativas escolares. Nessas
narrativas escolares, Roma era modelo por excelência, principalmente, devido ao seu
poder imperial militar e conquistador. Enquanto a Grécia era valorizada pelo
desenvolvimento artístico e literário (ALTOÉ, 2016).
164

Segundo o autor, para os pensadores do período oitocentista, os povos mais


desenvolvidos eram os europeus, com os heroicos helenos e latinos. Em contrapartida,
os povos africanos e asiáticos eram os mais rudimentares, dominados pela “barbárie”,
pela superstição e pela infâmia. Também vale assinalar que os personagens históricos
eram positivados ou menosprezados de acordo com suas virtudes morais, em razão do
uso da história para fornecer exemplos éticos e patrióticos, conforme a intrínseca
ligação entre a escrita dos autores e as circunstâncias históricas em que estavam
inseridos. Durante o período oitocentista, a escrita da história da Antiguidade estava
marcada por uma sociedade altamente hierarquizada e aristocrática, que intentava
encerrar as perturbações políticas, combater a “anarquia”, erigir a unidade nacional,
além da manutenção do sistema escravista, do governo monárquico, da promoção da
estabilidade social e da ordem.

Dentro dessa concepção, os acontecimentos históricos são apresentados para fins


de exortação moral. Dessa maneira, as lições da história antiga eram principiadas por
conteúdos bíblicos, fundamentadas na crença no tempo histórico linear, narrava-se a
criação, os feitos dos patriarcas, e todo um resumo da história dos hebreus,
proporcionando ensinamentos catequéticos. Estes ensinamentos estavam de acordo com
a Bíblia, a qual era entendida como fonte histórica de veracidade inquestionável e
inspirada na verdade eterna. Era uma história universal guiada por Deus, cuja narrativa
descrevia as superstições e as depravações das civilizações antigas até o triunfo do
cristianismo no mundo romano (ALTOÉ, 2016).

Nesse caso, é importante ressaltar que a educação brasileira oitocentista era


inspirada na europeia, sobretudo, na francesa, excluindo a contribuição africana e
indígena para a construção da civilização nos trópicos. Aponto que a orientação
europeia ainda reverbera em nossos livros de História, por isso há a necessidade de
repensarmos este currículo. Nesse contexto, a democracia ateniense não recebia a ênfase
necessária para que o alunado oriundo das escolas secundárias do Brasil, sobretudo os
alunos das classes mais abastadas, tivessem uma maior clareza sobre a forma como era
estabelecida a democracia, seu funcionamento, o que significava e como era exercida na
prática pelos atenienses, uma vez que esses conteúdos eram silenciados dos compêndios
do período. Ou pelo menos foram silenciados dos Compêndios do Justiniano José da
Rocha (1860), Pedro Parley (1869) e Victor Duruy (1865). Vejamos, nos quadros a
165

seguir, como era descrito o conteúdo referente a Grécia Antiga; como eram nomeados
os capítulos e os subtítulos em cada uma das fontes que pretendemos analisar. A
finalidade desses quadros é apresentar a forma romântica como os historiadores
trabalhados em nossa investigação promovem sua escrita. Escrita esta que versa sobre a
geografia e o nome dos “grandes” personagens dessa civilização.

Quadro I: A escrita sobre o conteúdo de Grécia no Compêndio de História Universal


de Justiniano José da Rocha (1860)
COMPÊNDIO DE HISTÓRIA UNIVERSAL DE
JUSTINIANO JOSÉ DA ROCHA
(1860)
XIII. Grécia; primeiros habitadores; tempos primitivos.

XIV. Tempos heroicos da Grécia

XV. Sparta e Lycurgo.

XVI. Athenas: Solou, Pisistratidas.

XVII. Colonias gregas.


XVIII. Guerras da Pérsia e da Grecia: tractado de Cimou.

XIX.. Rivalidades da Grécia até a conquista de Athenas.

XX. Os Trinta Tyrannos; fraqueza da Grécia; Pérsia até o tractado de Antalcidas.

XXI. Thebas: Pelopidas, Epaiiiluondas.

XXII. Lettras e artes na Grécia.

XXIII. Pérsia até a invasão de Alexandre.

XXIV. Macedonia e Pliilippe.

XXV. Alexandre.

XXVI. Sucessores de Alexandre.

Fonte:Elaboração da autora.

Nesse momento da dissertação, investigo os pressupostos sobre a História da


Grécia, no interior das quais salientamos a democracia ateniense, presente nas obras
didáticas oitocentistas selecionadas. Primeiramente, gostaria de apresentar uma reflexão
sobre o prefácio do Compêndio de Historia Universal, de Justiniano José da Rocha,
publicado em 1860, em que o autor esclarece a razão para escrever sua obra. Podemos
destacar em sua narrativa duas explicações: primeiro, a valorização da história
166

universal, em detrimento da história francesa que ocupava um papel privilegiado nos


compêndios franceses; e, em segundo lugar, Rocha defende a necessidade da escrita de
compêndios de História em língua portuguesa em virtude da carência de livros
produzidos na língua materna. O autor aborda o estudo sobre as primeiras civilizações
humanas e a criação do mundo sob a ótica da criação divina. Em sua escrita, ele
promove uma narração que concebe maior enfoque às narrativas bíblicas; narrativas
estas que ocupam a maior parte do conteúdo de história antiga em seu compêndio.
Antes de iniciar a exposição dos conteúdos do compêndio, o autor dedica cinco
páginas a algumas Considerações Preliminares, as quais são de grande importância
para compreender a organização do livro, o entendimento de Justiniano José da Rocha
sobre alguns fatos, sua concepção de história e o seu método. Chama atenção o
posicionamento religioso, especialmente católico, nas considerações preliminares e ao
longo de todo o livro. Essa grande presença de conteúdos bíblicos estava de acordo com
a primazia nos currículos das primeiras décadas do ICPII da História Sagrada. Estas
temáticas estavam presentes em vários textos escolares, como nos livros de leitura
destinados às primeiras letras ou nos compêndios de História Universal para o ensino
secundário (ALTOÉ, 2016, p. 40).
Segundo Justiniano José da Rocha, a Grécia seria a nação mais brilhante da
antiguidade, mas, apesar disso, a escrita sobre os primeiros acontecimentos que
circundam a fundação das cidades helênicas e de Roma estaria imersa na mitologia.
Embora o autor assinale a presença dos mitos, afirmando que “nesses primitivos tempos
cuja memoria nos é conservada pelas tradições de um povo tão admirado pela
imaginação, tão amigo de fabulas e de emblemas, cumpre não desdenhar a mythologia
ainda nos estudos históricos” (ROCHA, 1860, p. 44-45), podemos perceber que sua
visão a respeito da cultura grega é bem negativa. No que se refere à religião grega o
autor complementa seu pensamento:

Estudemos, pois, a religião hellenica, e a sua influencia politica. Proveniente


da Asia, porém enfeitada, poetizada pela imaginação grega, essa religião
admittiu o polytheismo o mais completo. Os deuses eram homens, com
corpos e perfeições e necessidades physicas, amores e odios, homens
immortaes, representando em gráu de sublimidade ideial alguma virtude,
algum vicio, alguma qualidade moral por elles admirada. Assim Jupiter, o
omnipotente e trovejador, era o profanador do thalamo das princesas, e
povoava o céu e o mundo de bastardos seus, deuses também, semi-deuses e
heróes. Apollo e Diana nascem de Latona seduzida, Baccho de Semele,
Hercules de Alcmena, Castor e Pollux de Leda (ROCHA, 1860, p. 44-45).
167

No trecho acima, podemos notar que Justiniano opta por mencionar os deuses
gregos através dos nomes equivalentes na mitologia romana, por exemplo, Júpiter
(Zeus), Diana (Ártemis) e Baco (Dionísio). Este recurso permeia a obra, percebemos
também que o panteão politeísta cultuado pelos gregos é, claramente, condenado por
Rocha (1860, p. 45): “Essa religião torpe e infame, por mais que a poesia a enfeite, mal
póde conceber-se que houvesse sido acreditada e acceita por um povo ilustrado”. Ainda
de acordo com o autor, a história arcaica da Grécia era obscura: “Nos tempos da
primeira organisação grega em monarchias mais ou menos regulares, acham-se alguns
factos que, brilhando pela sua importancia no meio das trevas conseguiram chegar, mais
ou menos imcompletos, ao conhecimento da posteridade” (ROCHA, 1860, p. 48).

Ao tratar sobre o conteúdo da Grécia Antiga, o autor determina quatorze


capítulos de seu compêndio para o estudo dessa civilização na ordem descrita no quadro
acima. No primeiro capítulo o autor aborda os tempos primitivos, primeiros habitantes,
a geografia47, a criação das cidades-estados, a religiosidade grega, deuses e semideuses,
a concepção de morte e festas fúnebres para os gregos. No segundo, intitulado tempos
heroicos da Grécia, o autor narra à expedição dos Argonautas, a Guerra de Tebas e a
Guerra de Troia. No terceiro, o autor apresenta a vida, grandes feitos, exilio e morte de
Licurgo importante figura para o cenário grego. E continua o capitulo apresentado
Esparta: sua geografia, sociedade, recrutamento e formação de soldados para guerra,
assim como também as principais guerras espartanas. No que tange às cidades
entendidas por Justiniano como dominadoras e merecidas de serem estudadas, o autor
nos fala de Tebas, no contexto das guerras entre as poleis nos séculos V e IV a. C.,
contudo é perceptível que a história helênica no compêndio se concentra na supracitada
Atenas e na belicosa Esparta.

47
De acordo com Guimarães (1988) os membros do IHGB concederam ao estudo da geografia o segundo
corpo temático amplamente tratado na sua revista. Esse estudo geográfico diz respeito as publicações
relativas às viagens e explorações do território brasileiro, onde os autores abordam questões de fronteiras
e limites, as riquezas naturais do país e a questão indígena. Essa forma de narrativa tem como objetivo
definir com precisão os contornos físicos da Nação, integrando na imagem em elaboração aos elementos
continentalidade e riquezas inumeráveis capazes de viabilizarem num futuro não-definido a realização
plena de sua identidade. No século XIX, os estudos geográficos publicados no Brasil, foram influenciados
pela formação intelectual dos autores europeus. Nesse caso, acreditamos que ao tratar sobre a formação
territorial dos povos da Grécia antiga, o autor busca integrar esse estudo ao que está sendo pretendido
para o território nacional.
168

No quarto capítulo de seu compendio, intitulado Athenas, Sólon e Pisistratidas,


ao tratar sobre as formas de governo, legislação e organização das assembleias gregas,
faz menção a democracia de ema forma negativa como poderemos ver a seguir:

[...] O poder é entregue aos archontes. A princípio vitalícios, já decennaes em


754, os archontes em 684 vêm reduzida a annual a sua authoridade. É que nas
discórdias intestinas, a influência aristocrática vae pouco a pouco cedendo
espaço para a democracia, e esta, vaga em suas afeições, inconstante em
sua confiança repelle antes de tudo a diuturnidade do poder. [...]Solon
organisa o poder de modo a assegurar a preponderancia da democracia
trazendo a tyrannia ou a omnipotência dos demagogos. [...]o grande poder,
todavia conserva-se inteiro nas mãos do povo, e comprehende-se com
que facilidade nessas numerosas assembléas a habilidade de um orador,
a influencia de um rico ambicioso tudo podem determinar, tanto mais
quanto se sabe qual é a inércia dos bons, nos dias de lutas facciosas, quão
facilmente se abstem elles dos encargos publicos. Os Pisistratidas, e melhor
do que eles Pericles fez dessa condição da democracia um meio de
absolutismo (ROCHA, 1860, p. 59-61, grifos nosso).

Podemos perceber, através do fragmento anterior, a crítica de Justiniano a


democracia. O autor nos diz que a democracia “vaga em suas afeições, inconstante em
sua confiança repelle antes de tudo a diuturnidade do poder” (ROCHA, 1860, p. 59-61).
Isto é, na concepção do autor a democracia não seria uma forma confiável de governo
por promover o poder ao povo nas decisões da polis. Essa crítica de Justiniano a
democracia pode ser justificada pelo interesse do autor em promover uma escrita que
agradasse a corte portuguesa no Brasil.

De acordo com Altoé (2016), durante o oitocentos, a escrita da história era


concebida pelos historiadores como um instrumento de inteligibilidade do presente. Por
conta deste aspecto, como hipótese de análise do Compêndio de História Universal de
Justiniano Jose da Rocha, talvez possamos considerar o olhar de Justiniano para a
Antiguidade, quando ele nos diz:

[...] o grande poder, todavia conserva-se inteiro nas mãos do povo, e


comprehende-se com que facilidade nessas numerosas assembléas a
habilidade de um orador, a influencia de um rico ambicioso tudo podem
determinar, tanto mais quanto se sabe qual é a inércia dos bons (ALTOÉ,
2016, p. 36).

Nesse trecho o autor pode ter pretendido sugerir a vulnerabilidade do povo


diante de um orador que poderia facilmente manipular as camadas menos afeitas a
questões político-militares, tais como artesãos, comerciantes e agricultores. Como
169

sugerem Platão e Aristóteles, o que faria com que o próprio povo logo se submetesse ao
poder de tiranos e pedagogos que conduziam as assembleias para satisfazer a interesses
políticos particulares. Podemos perceber marcas dessa influência também no fragmento
retirado da citação do autor que diz: “os Pisistratidas, e melhor do que eles Pericles fez
dessa condição da democracia um meio de absolutismo” (ALTOÉ, 2016, p. 36). Ou
seja, para o autor a democracia de Péricles destinava a participação política a uma
camada dos cidadãos, oriundos de boas famílias, que detinham o poder de fala nas
assembleias de modo quase absoluto.

Nos outros capítulos sobre a Grécia Antiga, o autor continua sua escrita narrando
as colônias, a expansão de seu território, atividades comerciais, as guerras, os grandes
reis e os principais filósofos, assim como as letras e a arte grega. Podemos perceber que
ao dar maior destaque a geografia, os heróis, os pensadores e a cultura grega Justiniano
José da Rocha expõe uma narrativa que vai de acordo com aquilo que é pensado pela
elite que compõe o IHGB: uma narrativa histórica atenta à delimitação do território,
como componente indispensável à constituição de uma nação, a seus heróis e
empreendimentos políticos-militares.

O Compêndio de História Universal¸ de Justiniano José da Rocha, como fonte


para compreendermos a escrita da história da Antiguidade no Brasil oitocentista,
evidencia o papel de destaque da formação clássica e cristã das elites naquele contexto.
A obra não espelha apenas os fundamentos religiosos do autor, o qual exalta o triunfo
do cristianismo e sua difusão pelo mundo civilizado, mas os valores e ideais da
sociedade do Segundo Reinado. Além disso, a “história universal” de Justiniano José da
Rocha concentrava-se na história grega e romana, muito mais aprofundada do que a
história das civilizações africanas e asiáticas. Era, portanto, uma história da Antiguidade
Clássica que reafirmava os laços de origem da recente nação brasileira com a
civilização ocidental.
170

Quadro II: A escrita sobre o conteúdo de Grécia nos compêndios de História Universal Resumida de
Pedro Parley (1869)
COMPÊNDIO DE HISTÓRIA UNIVERSAL RESUMIDA
PEDRO PARLEY
(1869)
XLIX. A Grecia; onde está situada; Aspecto do paiz; seu clima.

L. Extensão da Grecia; primeiros estabelecimentos do paiz;

LI. Primeiros legisladores gregos.

LII. Guerra com a Persia.


LIII. Negocios relativos a Athenas; Seculo de Pericles.

LIV. Principio da Guerra Thebana.

LV. Continuação da Guerra Thebana.

LVI. Religião dos gregos ou mythologia.

LVII. Philosophos gregos.

LVIII. Continuação dos philosophos gregos.

LIX. Algumas palavras mais sbre os philosophos; poetas gregos.

LX. Modo de viver dos antigos gregos.

LXI. Phillipe de Macenonia conquista a Grecia.

LXII. Conquistas de Alexandre Magno.

LXIII. Continuação.

LXIV. A Grecia invadida pelos Gaulezes.

LXV. Fim da independência dos Gregos.

LXVI. Historia moderna da Grecia.

Fonte: Elabora da autora.

A obra de Pedro Parley, História Universal Resumida para uso das escolas
comuns dos Estados Unidos da América do Norte, é traduzida para uso das escolas do
Império do Brasil pelo desembargador Lourenço José Ribeiro e editada pela Laemmert
por volta de 1857. História geral é a denominação apresentada no Programa de ensino
de 1882. Todavia, Moreira (2010) apresenta como sinônimas: História geral, História
universal e História da civilização. A obra de Pedro Parley foi adotada pela Escola
Americana de São Paulo. De acordo com Bittencourt (1993, p. 177), havia bastante
171

liberdade no momento das traduções das obras para o português e “o tradutor


transformava o texto de acordo com seus interesses e ideologia”, afirma a autora.

Em relação a escrita da narrativa histórica proposta no compêndio de Pedro


Parley (1869), percebemos que o autor também inicia seu escrito a partir das narrações
históricas presentes na narrativa bíblica e seus principais personagens. O autor busca,
dessa forma, apresentar essas narrativas cristãs como a imagem da criação e os
desdobramentos da civilização. Tal percepção sobre passado também pode ser
ressaltada, particularmente no âmbito dos valores e princípios ético-morais,
influenciados pelo cristianismo, que passam a fundamentar os projetos de poder
monárquico, como o Império Romano, na Antiguidade, e o Império do Brasil. A versão
brasileira do compêndio de História Universal de Pedro Parley traz uma proposta
inovadora no campo do ensino de História para as escolas secundárias brasileiras. Os
conteúdos históricos são estudados por continente e numa perspectiva linear e causal
que organiza acontecimentos históricos da Antiguidade à atualidade. Não é difícil
perceber que grande parte dos estudos antigos e medievais são reservados à Europa. Sob
essa perspectiva, Farias Junior & Lima (2019) nos mostram que para o autor a escrita da
História Antiga escolar, mais precisamente, a História da Grécia e suas literaturas
devem conciliar-se com o modelo do cristianismo, isto é, ensina-se uma “moral antiga”
acometida de acordo com a perspectiva judaico-cristã. Em outras palavras, o estudo não
só das fontes gregas e latinas, mas também da Antiguidade converte-se num exercício
para formar ‘bons’ cidadãos e cristãos, já que as narrativas escolares desqualificavam
práticas religiosas não-cristãs, como foi possível ver no compendio de Justiniano Jose
da Rocha e tal como se nota no excerto abaixo:

A política de Roma era egoísta, o amor próprio a sua mola real. Os Romanos
tinhão como os Gregos, Persas, Egypcios e outras nações antigas algumas
noções de virtude e mostravão às vezes qualidades nobres e generosas. Mas
faltava-lhes, como a todas essas nações, a verdadeira moralidade, aquella
que Jesus Christo nos ensinou na simples máxima: “Faze aos outros o que
desejas que eles te fação! ” Como ellas, achava-se Roma privada daquela
verdadeira religião, da qual aprendeu o gênero humano, o que todo poder
fundado na injustiça há de ter mui curta duração. Por mais esplendido que o
fosse o império romano, estava longe de possuir uma verdadeira gloria. Seu
esplendor adquirido pelo roubo, seu grande renome podião ofuscar as vistas
de um gentio; mas para um christão tinhão e têm pouco valor; ele
considera essa magnificência como falsa e sem fundamento (PARLEY,
1869, p. 240, grifos nosso).
172

Pedro Parley ao dizer, no fragmento anterior, que para os cristãos a história da


religiosidade grega e romana “tinhão e têm pouco valor” (PARLEY, 1869, p. 240),
demarca a superioridade da cultura cristã por meio de uma cadeia de negações em que
costumes, valores e princípios sociais não cristãos são concebidos de maneira
dicotômica, ou seja, a partir de jogos binários como por exemplo: verdadeiro/falso,
certo/errado, útil/inútil. De acordo com os autores Farias Junior & Lima (2019):

Convém salientar que muitos tradutores dos compêndios de História


universal nesse período eram religiosos (fiéis católicos ou clérigos), além
disso, o ICPII, assim como muitos liceus provinciais, contou com a presença
de professores religiosos em número significativo. Nesse caso, é preciso
atentar para o fato de tal binarismo está presente na cultura escolar afim de
incorporar uma função instrutiva ou pedagógica na medida em que apresenta
padrões de moralidade e excelência pelos quais ações humanas passam a ser
julgadas; o que também provoca, em compensação, o direito de ser julgado e
de julgar-se pelos padrões que são ressaltados sob a ótica do que é
consensualmente aceito no interior das comunidades cristãs como base para
as relações interpessoais (BARTH, 1998, p. 194 apud FARIAS JUNIOR &
LIMA, 2019, p. 101-102).

Para Farias Junior & Lima (2019), em linhas gerais, as narrativas sobre a Grécia
Antiga, se considerarmos o momento histórico em que foram escritas, partem do
pressuposto de que experiências do passado orientam e fundamentam a tomada de
decisão no presente. De acordo com os autores, é revelar a moralidade de um sistema de
valores culturalmente materializado na vida social e pessoal de determinados indivíduos
em um determinado tempo, através da demonstração de sua generalidade. Quer dizer,
que tem uma validade que se estende a uma gama de situações e leva consigo um
princípio geral válido para todos os momentos históricos (FARIAS JUNIOR & LIMA,
2019).

Durante o oitocentos, a escrita da história era concebida pelos historiadores


como um instrumento de inteligibilidade do presente. Por conta deste aspecto, como
hipótese de análise do Compêndio de História Universal Resumida, devemos considerar
que o olhar do tradutor da obra de Pedro Parley, o desembargador Lourenço Jose
Ribeiro, estava imerso nas questões que também obstinavam os letrados que, como ele,
aderiram ao projeto de governo, marcado pela defesa da ordem e neutralização da
anarquia associada ao período regencial e pela legitimação do governo monárquico,
através da manutenção do Império unificado e da difusão dos valores da civilização
europeia.
173

No que se refere aos conteúdos sobre a Grécia antiga, Pedro Parley (1869)
promove sua escrita destinando dezesseis capítulos para a abordagem dos conteúdos
referentes a essa civilização. Em seus capítulos o autor inicia sua narrativa a partir da
apresentação da geografia, do clima, do território e da formação das cidades-estados.
Em seguida apresenta a legislação grega, sua economia, grandes monumentos,
administração e suas grandes guerras. O autor também apresenta a religiosidade grega
assim como seus deuses e semideuses e os principais filósofos gregos, apresentando
inclusive o cotidiano dos gregos em um capitulo que inclui seu modo de vestir, de
comer, as armas utilizadas por eles e sua inclinação para a guerra. Essa forma de divisão
do conteúdo é demostrada no quadro II de nosso escrito.

O autor aborda a história da Grécia em pontos que, ora são abordados de forma
semelhante a Justiniano Jose da Rocha e Victor Duruy, ora se diferem, como poderemos
perceber ao longo desse escrito. Em relação ao conteúdo referente a democracia
ateniense, foi possível encontrar a menção à democracia apenas no trecho a seguir:

Lysandro entrou na cidade, aboliu a democracia e estabeleceu o governo


de trinta chefes sparthanos, que foram chamados de trinta tyranos de
Athenas. Assim terminou a Guerra do peloponneso e com ella a prosperidade
da Grécia, annos depois de começar 86 annos depois da batalha de
Marathona, 404 anos antes de Jesus Christo (PARLEY, 1869, p. 159, grifos
nosso).

Nesse fragmento o autor narra a entrada de Lysandro48 na cidade de Atenas, o


fim da democracia e o início do governo dos trinta tiranos - este governo oligárquico era
composto por trinta magistrados e sucedeu a democracia ateniense ao final da guerra do
Peloponeso em 404 a. C. Podemos perceber que mais uma vez negligencia-se um estudo
das instituições democráticas atenienses, suas dinâmicas políticas, a noção de liberdade
e suas limitações. O autor produz uma narrativa que expõe as fragilidades dessa forma
de governo, seu caráter vulnerável em relação às ambições de outras póleis.

48
Lysandro, foi o general Espartano (morto em 395 a.C.), que desafiou os atenienses durante a Guerra do
Peloponeso, e tomou Atenas (405 a.C.). Alguns meses após a vitória da frota peloponesia sobre os
atenienses na batalha de Aigos- potamos ele mediou as negociações de paz entre os atenienses. Selada a
paz o regime democrático foi abolido e um grupo de trinta cidadãos ficou encarregado, com o apoio de
Lysandro, de reformar a constituição ateniense no sentido de um retorno à constituição ancestral o que na
pratica significava instaurar uma oligarquia. Nesse caso ele estabeleceu um sistema de governo autoritário
na região que ficou sob sua influência. Tendo indicado os quinhentos membros do conselho, os trinta
constituíram um governo que duraria oito meses, no final de 404 a. C até meados de 403 a. C, segundo o
autor da Constituição de Atenas (MORALES, 2009).
174

Nota-se a facilidade com que Lisandro realizou a ação, o que denota, na


concepção do autor, a vulnerabilidade de Atenas. Em nossa analise esta é a única
referência do autor à democracia ateniense. É perceptível, nesse sentido, seu emprego
estratégico, já que, após mencioná-la, o autor noticia o processo de enfraquecimento das
instituições políticas atenienses após a vitória dos espartanos que ocasionalmente
termina com a conquista dos macedônicos, sob o comando de Alexandre. Além disso,
mais uma vez, a tirania aparece como desdobramento da democracia, como sucessora de
um regime fadado ao fracasso pela má administração do espaço público, o que reforça a
ideia de que a experiência democrática corrompe os grupos sociais que ocupam os
espaços de poder. De maneira tendenciosa, as narrativas históricas escolares referentes
ao estudo da sociedade grega desqualificam a democracia para demonstrar a solidez do
poder monárquico.

De acordo Altoé (2016, p. 13-15), as obras de estudiosos da história helenística,


como George Grote (1794-1871), Victor Duruy (1811-1894), Johann Gustav Droysen
(1808-1884) e Ewald Friedrich Hertzberg (1725-1795) foram marcadas por discussões
relacionadas à atualidade política de cada contexto, pelo “problema da constituição dos
Estados nacionais e a questão da unidade, das relações entre modos de dominação e
suas consequências culturais”. Os historiadores como Pedro Parley são influenciados
por essa forma de escrita reproduzida para a constituição da história científica ao longo
do século XIX. Dessa maneira, as obras de Heródoto, Tucídides, Políbio, Tito Lívio e
Tácito estavam em sintonia com o contexto político do presente vivido por esses autores
e com a questão a obstinar os historiadores modernos: a constituição e a consolidação
dos Estados-nações na Europa.

Ao analisarmos a forma como Pedro Parley trata sobre a democracia,


percebemos também uma simpatia pelo modelo democrático de Aristóteles, muito
embora o autor não faça menção a Constituição de Atenas nesse fragmento. Aristóteles,
produz uma ideia que o povo é formado por uma maioria que nem sempre sabe o que é
melhor para a cidade. Portanto, para ele, a democracia não funcionava bem como forma
de governo, pois pressupunha a igualdade entre desiguais como já mencionado no
tópico anterior. A participação popular, portanto, deveria estar à parte dessa relação.
Esse modelo de pensamento foi bastante difundido no século XIX e influenciou
pensadores como Gustave Glotz dentre outros já mencionados que trazem uma sintonia
175

com o pensamento de Pedro Parley e também de Victor Duruy sobre essa forma de
governo. Como continuaremos a ver na análise a seguir.

Quadro III: A escrita sobre o conteúdo de Grécia nos compêndios de História Universal de Victor Duruy
(1865)
COMPÊNDIO DE HISTÓRIA UNIVERSAL
VICTOR DURUY
(1965)
V. Grecia; Geographia da Grecia antiga; Tempos heroicos; Colonias; Principaes Estados; Lycurgo;
Leis de Sólon; Psitrato e seus filhos.

VI. Guerras Medicas; O poder de Athenas e seus grandes homens; Péricles; Guerra do Peloponeso; Os
gregos na Ásia e no Egypto; Epaminondas e Pelopidas: o poder de Thebas.
VII. Phillippe da Macedônia e Demosthenes.

VIII. Alexandre Magno: desmembramento de seu império; Conquistas de Alexandre;


Desmembramento do Imperio de Alexrandre; Partilha entre seus generaes; Reis da Syria, Reis do
Egypto.

IX. A Grécia reduzida a província dos romanos; Phillippe III; ligas dos Etolios e dos Archêos; Arsio e
Phitollomeo.

Fonte: Elaboração da autora.

Investiga-se agora o Compendio de Historia Universal, de Victor Duruy (1865),


traduzido pelo padre Francisco Bernardino de Souza, obra também incluída no presente
estudo, devido a influência desse autor nos escritos referentes a Grécia antiga presentes
na narrativa escolar brasileira nos oitocentos. Duruy, ao dar início a sua narrativa sobre
os conteúdos de História Antiga, privilegia as tradições bíblicas dando maior enfoque as
narrativas presentes no livro sagrado. Em seu compêndio o autor entende como história
antiga o estudo da criação do mundo feito por Deus e o desenvolvimento do mesmo ao
longo dos tempos e das civilizações.

Seu primeiro capítulo é intitulado como Tempos primitivos, apontando o início


da Antiguidade sob esta denominação e tem o mesmo título do primeiro capítulo do
compêndio de Justiniano Jose da Rocha (1860). Para o encerramento dos tempos
antigos, o autor também não é diferente de Rocha (1860), pois narra o triunfo do
cristianismo com Constantino, a partilha do império romano entre os filhos de Teodósio
e a queda do império do Ocidente a que se destina o último capítulo. Os mesmos marcos
temporais utilizados pelos outros autores trabalhados em nossa investigação.
176

No que se refere aos capítulos destinados ao conteúdo sobre a Grécia antiga, o


autor designa cinco capítulos para essa temática, onde ele apresenta a geografia da
Grécia, suas colônias, suas principais cidades-estados, seus reis, seus heróis, suas
principais guerras, conforme abordado no quadro III. Percebemos, contudo, que o autor
se difere de Justiniano Jose da Rocha ao tratar sobre as artes e sobre os filósofos gregos,
uma vez que não encontramos menção a esse conteúdo no compêndio de Victor Duruy.
Podemos perceber ao analisarmos a maneira como Duruy (1865) trata sobre a
civilização grega que o autor, ao distribuir os conteúdos a serem ministrados nas aulas
de História Universal, privilegia a narrativa bíblica, dando a ela o estatuto de ‘História’
como uma maneira de evidenciar as tradições Cristãs e difundir esse conhecimento na
tentativa de imputar a moral cristã e seus valores à àqueles que, consequentemente,
tivessem acesso ao ensino e a leitura de sua obra. Em suas palavras:

Todos os povos conservarão uma lembrança vaga, e como que um êcho


longínquo das últimas convulsões que agitarão a terra. As desordens
confirmadas pelo aspecto da superfície sólida do globo, algumas
catastrophes, de que até os homens puderam ser testemunhas, como os
diluvius parciais de que a Grecia falava, na Assíria, e entre os povos da
extrema do oriente, fizerão popular a crença de que immensos cataclysmas
precederão ou acompanharão o aparecimento do homem na terra. Nenhuma
porém d’essas antigas narrações tem a simples e imponente grandeza do
Genesis, o primeiro livro sagrado de Judêos e Christãos (DURUY, 1865,
p. 1, grifos nosso).

É perceptível que o autor trata a história construída a partir da narrativa bíblica,


com maior privilegio, conferindo a ela o estatuto de verdade histórico. Com isso, Duruy
evidencia os discursos cristãos como parâmetro moral às relações interpessoais e
negligencia a influência da herança clássica para formação do pensamento cristão e suas
literaturas (FARIAS JUNIOR & LIMA, 2019).
Estudando os compêndios oitocentistas trabalhados para essa pesquisa,
percebemos que os capítulos iniciais são os que mais chamam a atenção, visto que a
maioria das obras apresenta a História Sagrada, um tipo de resumo da história dos
hebreus em que, comumente, os tópicos versam sobre temas como a criação do mundo,
a torre de Babel, a saída do Egito, a história dos patriarcas (sobretudo Moisés), a vida de
reis (como Saul, Davi e Salomão), os reinos de Israel e Judá. Esta seria uma parte da
História Universal privilegiada e com sua veracidade inquestionável para os autores do
século XIX, dado que ela tem como fonte o livro sagrado da Bíblia.
177

Em relação à importância do estudo sobre os gregos antigos, percebemos que em


Victor Duruy, não bastasse a maior parte dos capítulos do compêndio ser destinado as
narrações de ordem histórica/religiosa ao tratar dos outros povos oriundos de outras
tradições, ainda os aborda de maneira pejorativa como se fossem de menor importância
para o conhecimento humano. Em sua obra, o autor, ao tratar dos conteúdos referente à
Grécia Antiga, distribui-os conforme abordado no quadro III, contudo, não aborda em
sua narrativa a forte influência filosófica, cultural e política exercida pelos gregos nas
demais civilizações. No que se refere ao conteúdo sobre a democracia ateniense, Duruy
aborda a democracia ao tratar das leis de Sólon como poderemos ver no trecho a seguir:

Em 594 confiarão-lhe o cuidado de reformar as leis e a constituição.


Começou elle o pagamento das dívidas e pondo em liberdade os devedores,
mas recusando a partilha das terras que exigião dos pobres, porque era seu
fim abolir a aristocracia oppressora, sem contudo estabelecer uma
democracia pura. Dividio o povo em quatro classes segundo as riquezas de
cada um. [...] O povo confirmava as leis, nomeava para os cargos, deliberava
sobre os negócios do Estado, e constituía os tribunaes nos julgamentos dos
grandes processos. O areópago, composto de archontes que haviam
terminado seu tempo, era o tribunal supremo para as causas capitaes,
velava sobre os costumes, sobre os magistrados e até podia prejudicar as
decisões do povo. Era pois, esta constituição uma mistura de aristocracia
e democracia, em que aos mais esclarecidos d’entre os cidadãos era
reservada a gestão dos negócios públicos (DURUY, 1865, p. 40-41, grifos
nosso).

Victor Duruy, demostra a afinidade de seu pensamento com a narrativa de


Aristóteles, tal como descrita na Constituição de Atenas, em que a emergência da
experiência democrática ateniense tem início com as reformas de Sólon, pois o
legislador, em sua concepção, não teria abandonado os princípios aristocráticos na
constituição desta forma de governo, em virtude da manutenção do areópago, composto
de arcontes que ainda desenvolviam a missão de velar sobre os costumes e sobre as
decisões do povo. Duruy (1865) ao dizer que a as reformas de Sólon eram uma espécie
de mistura de aristocracia com democracia, demonstra a sua simpatia por essa mistura
de governos quando diz que, dessa maneira, era destinado aos mais esclarecidos dentre
os cidadãos a gestão dos negócios públicos.

Diferentemente de Justiniano José da Rocha (1860), Victor Duruy (1865)


confere a Sólon uma postura combativa em relação à aristocracia opressora. Além disso,
o autor atribui a ele a organização da sociedade ateniense a partir de critérios
178

censitários, por meio dos quais os cidadãos atenienses definiriam suas formas de
participação política. Ambos os autores apresentam em comum o fato de que, após
Sólon, a experiência democrática ateniense teria se degenerado ou resultado no
enfraquecimento das instituições políticas. Essa narrativa, a nosso ver, contribui para
pensar a democracia em contextos de crise, dissolução ou enfraquecimento do poder, o
que se opõe a situações de manutenção da unidade político-administrativa, tal como
pretendida pelo Império do Brasil (FARIAS JUNIOR & LIMA, 2019).

Ao analisar os Compêndios de História Universal e os propósitos da história


ensinada presentes em tais narrativas escolares, destacamos a importância da
constituição histórica de sentido presentes na obra de Rüsen49. De acordo o pensamento
de Rüsen abordado por Farias Junior (2016), entendemos que o conhecimento histórico
é veiculado por meio de narrativas que conferem sentido ao passado. De acordo com
Assis (2010), há quatro formas básicas de constituição histórica de sentido, as quais
estão associadas a quatro princípios fundamentais de orientação histórica: a afirmação,
regularidade, negação e transformação. Orientação histórica, para Rüsen, consiste no
processo pelo qual há ‘coerência na narrativa’, ou seja, as referências atribuidoras de
sentido da narrativa afetam a conduta dos seres humanos. As formas de constituição
narrativa de sentido presentes na obra de Rüsen demonstram a importância da narrativa
histórica para suprir as carências de orientação presentes nos campos do saber no que se
refere a vida prática, uma vez que essa carência de orientação nos leva a sempre buscar
na história subsídios que nos permitam entender acontecimentos, temporalidades e os
caminhos e descaminhos que levam a humanidade até onde chegamos (FARIAS
JUNIOR, 2016).

Entra nesse debate trabalhar os quatro níveis de constituição de sentido de


Rüsen, dado que o autor nos possibilita compreender a forma como a narrativa escolar é
escrita no período oitocentista. Em nossa análise, percebemos que a escrita histórica

49
As constituições históricas de narrativa de sentido de Rüsen são: tradicional (cuja a identidade
desenvolve-se como um enraizamento das formas sociais tradicionais da subjetividade em atitudes,
motivações modelos de percepção e interpretação profundamente inseridos nas mentalidades); exemplar
(que é uma forma de narrativa histórica que se distingue do tipo de constituição tradicional de sentido por
um aumento do campo das experiências e por assim dizer, por um nível mais elevado da abstração na
relação normativa do saber histórico à pratica); crítico (que é uma forma de comunicação intercultural, na
qual o discurso histórico alterar-se radicalmente, quando novas representações substituem as antigas, ou
mesmo quando uma linguagem simbólica do histórico, inteiramente nova, varre a precedente) e por fim
genético (que propõe uma mudança no trabalho de interpretação histórica, adquirindo uma qualidade
positiva, onde a história torna-se portadora de sentido) (RÜSEN, 2007 apud FARIAS JUNIOR, 2016).
179

escolar descrita nos compêndios investigados se utiliza dos modelos tradicional e


exemplar como parâmetros para a análise documental. Desse modo, ao tratar sobre a
consciência histórica “tradicional”, presente na escrita desses compêndios, partimos do
pressuposto de que o presente (campo de experiências dos autores) mantém intensa
conexão com o passado. Isto é, presume-se que o passado está integrado ao presente, ou
seja, ainda não passou. Em vista disso, permanece inexistente a dissociação qualitativa
entre passado e presente. De acordo com Assis a constituição de sentido “tradicional”
ignora mudanças no transcorrer do tempo, de tal forma que “o passado está sempre
presente e o presente carece de historicidade. O ‘regime de tempo predominante’ é,
pois, o do ‘ontem eterno’” (2010, p. 21, grifos nosso).

De acordo com Farias Junior & Lima (2019), ocorre na constituição de sentido
tradicional a perpetuação de princípios e valores por intermédio da imitação de
comportamentos e práticas culturais ligados a formas de vida já habituais. Os sujeitos
humanos passam a direcionar suas vidas para assegurar a permanência de modelos
culturais na tentativa de racionalizar seu vínculo com comunidades já instituídas. Esse
fato pode ser percebido na escrita da história universal nos compêndios investigados,
uma vez que os autores abordam como modelo a ser seguido pelos alunos o modelo
judaico-cristão como forma de garantir ao alunado as virtudes necessárias para o bom
funcionamento de uma sociedade.

Provavelmente essa percepção sobre o passado tenha motivado muitos autores


ou tradutores de compêndios de História Universal a utilizar a ‘herança clássica’ como
referência cultural para pensar a sociedade imperial brasileira, sobretudo em termos
políticos e religiosos. Isso explica a preferência dos autores por determinados temas,
como a formação dos impérios, as monarquias orientais e ocidentais e a supressão ou
minimização de outros conteúdos históricos como a ‘democracia ateniense’ que está
sendo estudada nesse subtópico.

Em nossa concepção é possível que a escrita da história escolar oitocentista, em


geral, tenha sido escrita de forma a estar comprometida com a explicação e
fundamentação do presente dos autores e suas configurações político-culturais.
Percebemos isso através do exemplo dessas marcas de singularidade no olhar desses
180

pensadores através da análise dos escritos sobre a democracia ao longo do XIX feitos
em nosso tópico anterior. De acordo com Farias Junior & Lima:

É comum que os autores/ tradutores de compêndios registrem uma versão do


passado que se encaixa no aparente desenvolvimento histórico linear que
resultaria no campo de experiências no qual se está inserido e despreza ou
silencia as demais experiências históricas, como no caso da democracia
ateniense e da república romana. Em outas palavras, elimina-se todos os
projetos sociais que não triunfaram em função do presente. O passado passa a
ser concebido a partir de um relato uníssono, causal, linear e teleológico,
organizado para explicar o presente. Visto sob esse ângulo, o passado confere
inteligibilidade à formação imperial e à própria constituição e gênese
político-cultural do tempo presente, o que Stuart Hall chama de mito
fundacional (2002, p.54) e Adilton Luís Martins de agenciamento das
origens (2008, p. 196) (FARIAS JUNIOR & LIMA, 2019, p. 99).

Na escrita da história oitocentista é possível que se tenha registrado uma


concepção de passado, por parte desses historiadores, marcada pela singularidade
oriunda do local de fala destes autores/tradutores onde prevalecem os interesses
recorrentes a produção de uma escrita da história que versa sobre a narrativa da “origem
da humanidade”. Deste jeito, podemos perceber como o objeto do discurso
historiográfico estava pautado no critério do domínio da escrita. Se o objetivo dos
letrados oitocentistas era inserir o Brasil no quadro dos países considerados esclarecidos
e civilizados, há que se reconhecer que as narrativas históricas eram construídas sob esta
perspectiva.

De acordo Farias Junior & Lima (2019), na concepção de Rüsen, há nas


narrativas tradicionais um valor moral a ser alcançado. Para os autores a moralidade
presente nas narrativas tradicionais assume o papel de valor social pré-estabelecido.
Para conhecer narrativas históricas concebidas sob essa perspectiva pode-se questionar
em que medida o autor defende que algo vantajoso hoje que fora descoberto,
conquistado ou alcançado em outras temporalidades ou se acontecimentos e ações
humanas do passado desfrutem continuamente de importância social. Se sim, é provável
que seja essa forma de narrativa que esteja imperando. Ainda de acordo com os autores,
há, nos escritos de Rüsen, similaridades entre as narrativas exemplares e tradicionais
com a diferença de que as narrativas exemplares permitem um significativo grau de
abstração quando comparadas à tradição.

Na constituição exemplar de sentido experiências do passado confirmam e


reforçam a validade de regras práticas gerais para a experiência atual. A identificação de
181

narrativas sob a ótica exemplar de constituição de sentido pode ser percebida a partir do
momento em que verificamos se o autor admite que haja, perceptivelmente, uma regra
ou um princípio geral por trás de diferentes casos, por meio dos quais os acontecimentos
históricos podem ser mais bem compreendidos e as relações interpessoais, por extensão,
aprimoradas. A nosso ver, está claro que, para os leitores de tais manuais, há a
percepção de que a história ensina, a partir dos inúmeros acontecimentos do passado
que transmite regras gerais do agir ou, em outras palavras, regras ou princípios tomados
como válidos para toda mudança no tempo e para o agir humano que nela ocorre
(FARIAS JUNIOR & LIMA, 2019).

Em todo caso, é importante observar o quanto a história antiga retratada nos


compêndios de Justiniano Jose da Rocha (1860), Victor Duruy (1865) e Pedro Parley
(1869), e ensinada no ensino secundário brasileiro oitocentista, é dependente da história
europeia. A história antiga continua presa à história europeia pelo simples fato de se
tratar de uma realidade geográfica e cultural que tem como escopo a influência europeia
em grande parte das correntes historiográficas do século XIX, que busca com insistência
revelar as “origens das nações”, nos levando a refletir se até mesmo a própria
nomenclatura empregada ao denominar os estudos das sociedades antigas não exprime
de certa maneira o olhar do europeu sobre essas civilizações.

Além disso, devemos atentar ao fato de que nos compêndios de Justiniano Jose
da rocha (1860), Victor Duruy (1865) e Pedro Parley (1869) a escrita destes autores, no
que se refere à narrativa referente ao conteúdo de História Antiga, é repassada de forma
a perpetuar determinadas condutas aceitas culturalmente com o objetivo de civilizar os
estudantes brasileiros a partir dos modelos europeus. Ao tratar sobre esse modelo de
escrita percebemos que os autores, em seus respectivos compêndios, costumavam
reservar um espaço do conteúdo de História Antiga para as outras sociedades antigas
como, por exemplo: a persa, a fenícia e a hebraica, esta última em geral era mais
contemplada pelos autores devido à importância atribuída ao estudo da origem do
cristianismo para a compreensão adequada dos valores da sociedade em que viviam.

A escrita da narrativa escolar não é neutra. Ela é uma interpretação do passado


elaborada em função de interesses de contemporâneos para compreendê-la, difundi-la e
utilizá-la na busca inseri-la ao seu público alvo e ao mesmo tempo sanar anseios de
182

quem tem o poder sobre elas. Ressaltamos que as obras analisadas são essenciais para
compreendermos a tessitura da história da Antiguidade ensinada nas escolas brasileiras
do século XIX, sobretudo, no Imperial Colégio de Pedro II, a principal instituição do
ensino secundário do país no oitocentos. Estes compêndios apresentam um esquema
narrativo que reforça a visão de um equilíbrio social como condição da ordem e da
civilização, frente a ameaça da anarquia e do despotismo. A partir do enredo dessas
obras, é possível perceber significados e lições para os letrados e governantes brasileiros
que organizavam a educação secundária no Segundo Reinado (ALTOÉ, 2016).

Assim, na análise sobre a escrita referente à sociedade ateniense e a democracia


como forma de governo exercida na Grécia Antiga, notamos a necessidade desses
autores em perpetuar determinados valores político-culturais e religiosos, marcada pela
marginalização desse conteúdo na forma como Justiniano Jose da Rocha (1860), Pedro
Parley (1869) e Victor Duruy (1865) abordam essa civilização em seus compêndios,
uma vez que em nenhuma das fontes analisadas explicam a dinâmica de funcionamento
da democracia ateniense nem mesmo nas notas de rodapé.

Devemos levar em conta, ao tratar sobre as marcas de autoria e destinatário, as


especificidades de tradução desses compêndios no Brasil, a História como disciplina
escolar, obrigatória a partir da primeira metade do século XIX, em um momento de
afirmação do Estado Nacional, com a criação, em 1837, do Colégio Pedro II, no Rio de
Janeiro, encontra vinculada à construção das nações e a formação educacional de seus
membros. O que nos leva a perceber que a tradição clássica no Brasil oitocentista não é
um simples produto do passado, obra de outra idade, ela é uma perspectiva que os
homens do presente adotam e desenvolvem para lidar com que os precedeu. Em outras
palavras, os homens extraem do passado o que lhes parece útil para ser abordado e o
que deve ser silenciado no presente.

Ao longo de nossa investigação vimos que a História é uma disciplina científica


que se baseia em evidências empíricas e em teorias explicitas para interpretá-las e para
construir uma memória sobre o passado capaz de ser discutida em termos racionais.
Como toda ciência, a História tem também seus limites: nem sempre o passado que
gostaríamos de conhecer deixou vestígios documentáveis e as teorias históricas não são
verdades absolutas, mas propostas de organização do passado que mudam com o tempo.
183

Embora não se possa mais considerar a “História Antiga” como o início de uma
História Universal, as realizações humanas que se acumularam nesse pedaço do globo
são fundamentais para entendermos como o mundo contemporâneo se tornou possível.
As marcas de singularidade presentes em cada historiador, seu local de fala e o regime
de governo vigente devem ser levadas em conta, pois nelas podemos perceber através de
suas escolhas e silenciamentos o que era designado como preterido para o conhecimento
histórico.
184

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nossa análise percebemos que a escrita da História Antiga, ao ser trabalhada


no presente, produz um entendimento sobre o passado e isso ocorre porque somos seres
de nosso tempo e nossos olhares são marcados pela cadeia de sentidos que construímos
ao longo de nossa existência. Estudar a Grécia e as Civilizações Antigas é um fator
importante na contemporaneidade, dado que o conhecimento do modo de viver e da
cultura a qual tomamos referência sofre grande influência dessas civilizações. Com essa
finalidade tivemos o desejo de mostrar brevemente, ao longo dessas quatro seções
abordadas, como, a nosso ver, os usos do passado podem ser observados de forma muito
rica no âmbito da educação histórica. Tal temática vinculou-se em nossa leitura à grande
necessidade humana de se relacionar com o passado, tornando-o diversas formas
presente por meio de usos variados, apropriações e (re) significações, os quais devem
ser discutidos.

Ao longo de nossa analise investigativa buscamos entender por que a


Antiguidade instiga pensadores contemporâneos a fazerem uma releitura dos grandes
clássicos. Para, a partir dessa discussão, compreender como os pensadores do período
oitocentista também se utilizavam da literatura sobre o mundo antigo com a intenção de
adequá-los aos interesses do projeto de nação que estava sendo planejado para o Brasil
no período Imperial brasileiro. Nesse sentido, trouxemos à tona reflexões sobre o
relacionamento entre o investigador e as fontes antigas com a intensão de promover
uma maior compreensão sob o papel dessa temática no âmbito historiográfico.
Reconhecer como era concebida a escrita da história do Brasil nos oitocentos, nos fez
refletir sobre a construção dessa narrativa realizada por autores que traziam em seus
textos uma escrita que tinha como base de análise os modelos Positivistas e
Historicistas.

Para nós, os historiadores dos oitocentos tomam como base estes ideais, pois era
essa forma de análise que lhes permitia promover uma “correta” interpretação sobre os
fatos do passado corrigindo e interferindo na escrita sobre estes acontecimentos para
adequá-los ao projeto político pensado para o ideário de escrita da história nacional,
objetivado para o país no presente. Esse modo de pensar fundamentado por essas duas
correntes historiográficas levou os historiadores do IHGB a reproduzir uma forma de
185

escrita da história que foi largamente difundida e serviu de base para legitimar as
traduções de obras estrangeiras sobre a antiguidade e para produção da escrita da
história nacional que serviam de modelo para as narrativas escolares presentes no ensino
secundário brasileiro ao longo desse período.

A escrita da história nacional no século XIX traz à tona debates sobre as


possíveis formas de construção do saber historiográfico. Ao investigar esse ideário de
identificação do país com os projetos de nação cogitados para o Brasil, no período
oitocentista, que tinham como escopo os modelos europeus dos séculos XVIII e XIX,
propomos uma reflexão sobre alguns conceitos chaves que permeiam a narrativa
proposta para a escrita da história nesse período: memória, civilização e identidade
nacional. Para nós, entender esses conceitos chaves é de grande valia, dado que nos
possibilitam perceber que as criações das nacionalidades trazem consigo relações de
poder que permitem ao vencedor determinar o que será deixado como modelo para as
gerações vindouras.

Partindo dessa premissa, podemos assim dizer que discussão desses conceitos
chaves teve como justificativa a necessidade de compreendermos os interesses presentes
nos discursos nacionalistas sobre o ideal de civilização a ser preterido para a sociedade
brasileira nos oitocentos, uma vez que esse ideário de Brasil seria construído e fixado na
memória nacional através do ensino e da perpetuação da superioridade da cultura
europeia trazida, a nosso ver, como modelo de civilidade para o território nacional.

Essa reflexão foi necessária para que pudéssemos desenvolver uma investigação
sobre a escrita da história escolar no século XIX. Onde nossa narrativa abordou, além da
escrita da história escolar do período, o papel do livro didático como principal difusor
do conhecimento. Ao longo de nossa narrativa tivemos como principal finalidade
propor uma reflexão sobre os usos do passado na construção do saber escolar, levando
em consideração os estudos de história e historiografia no Brasil entre os anos de 1850-
1870 e sua contribuição para a criação de um ideário nacional em território brasileiro.

Percebemos que nos oitocentos a visão sobre a história antiga continua presa à
versão produzida pela história europeia pelo simples fato de se tratar de uma realidade
geográfica e cultural que tem como escopo a influência dessa civilização, em grande
parte das correntes historiográficas do século XIX, que busca com insistência revelar as
186

“origens das nações”, nos levando a refletir se até mesmo a própria nomenclatura
empregada ao denominar os estudos das sociedades antigas exprime de certa maneira o
olhar do europeu sobre essas civilizações. É possível perceber que no Brasil a História
como disciplina escolar, ao se tornar obrigatória na primeira metade do século XIX,
momento de afirmação do Estado Nacional, com a criação, em 1837, do Colégio Pedro
II, no Rio de Janeiro, encontra-se vinculada à construção das nações e a formação
educacional de seus membros.

Ao analisar nossas fontes questionamos o porquê a democracia ateniense não


recebia a ênfase necessária para que o alunado, oriundo das escolas secundárias do
Brasil, tivesse uma maior clareza sob como era estabelecida a democracia, como
funcionava, o que significava e como era exercida na pratica pelos atenienses, dado que
esses conteúdos eram de certa forma negligenciada fazendo com que a palavra
democracia aparecesse de forma breve e sem ser problematizada nos compêndios do
período. Ou pelo menos nos Compêndios de Justiniano Jose da Rocha (1860), Pedro
Parley (1869) e Victor Duruy (1860) que foram utilizados no desenvolvimento desse
estudo, mesmo não sendo aprofundada a sua análise como já colocado anteriormente.

Consideramos que as obras utilizadas ao longo de cada uma das três seções em
nossa narrativa, contribuíram para a produção empírica de nosso escrito e foram de
grande importância sobre as narrativas referentes à democracia ateniense presente no
conteúdo da Grécia Antiga nos compêndios de História Universal. Partimos do
pressuposto de que os autores dos manuais didáticos europeus, utilizados no Brasil,
como no caso de Justiniano José da Rocha (1860), Victor Duruy (1865) e Pedro Parley
(1869), que produziram os compêndios de História Universal, que foram utilizados no
ensino secundário em território nacional no período do Império Brasileiro, reproduziam
como verdade histórica: como restituição do passado clássico aquilo que é, a nosso ver,
retórico, ou seja, produto da manipulação de acontecimentos históricos com a finalidade
de referendar determinados posicionamentos político-culturais do presente. E por esse
motivo os conteúdos selecionados para compor o estudo sobre a Grécia Antiga pelos
alunos do ensino secundário brasileiro eram abordados de acordo com o que estava
sendo pensado como escrita da história para o território nacional.
187

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ANEXOS
200

ANEXO I– DECLARAÇÃO DE CORREÇÃO ORTOGRÁFICA E ABNT

DECLARAÇÃO

Eu, MAIANE ALDLIN BITTENCOURT, graduada em Ciência Política pelo Centro


Universitário Internacional UNINTER e mestranda em Ciência Política pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR), declaro para os devidos fins que efetuei a
correção ortográfica e a conferência da adequação das normas da ABNT da dissertação
intitulada “A ESCRITA DA DEMOCRACIA ATENIENSE NOS COMPÊNDIOS
DE HISTÓRIA UNIVERSAL DO BRASIL DE 1854 A 1878” da mestranda GIZELI
DA CONCEIÇÃO LIMA.

Curitiba, 1 de março de 2020.

___________________________
Maiane Aldlin Bittencourt

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