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desígnio 7 jul.

2011

PODEROSA AFRODITE: UMA


TRAGÉDIA CÔMICA
Orlando Luiz de Araújo*

ARAÚJO, L. A. (2011). “Poderosa Afrodite: uma tragédia


cômica”. Archai n. 7, jul-dez 2011, pp. 102-108.
* Professor Adjunto II da
RESUMO: Muitas adaptações modernas de tragédias anti- Ouça, menina, uma velha que viu três
Universidade Federal do
gas nem sempre são bem recebidas pelo público, seja porque Ceará. E-Mail: gerações e aprendeu muito sobre os homens e
araujo_orlando@hotmail.com
se distanciam do original, seja porque a fidelidade ao original sobre as mulheres. Casamento e amor nada
parece impossível. Nesse artigo, intentamos mostrar em Po- têm a ver com o outro. Casa-se para fundar
derosa Afrodite, de Woody Allen, a manipulação que o dire- uma família e forma-se uma família para
tor faz de temas e de elementos formais, como o Coro, do constituir a sociedade. A sociedade não pode
drama antigo, a fim de obter uma boa recepção pelo público dispensar o casamento. Se a sociedade é uma
contemporâneo. cadeia, cada família é um anel dessa cadeia.
PALAVRAS-CHA
ALAVRAS-CHAVE: Édipo Rei, Woody Allen, Poderosa
VRAS-CHAVE: Para soldar os anéis procuram-se sempre
Afrodite, Tragédia Grega metais parecidos [...]. Só nos casamos uma
vez, menina, porque o mundo exige, mas
MIGHTY APHRODITE
APHRODITE:: A COMIC TRAGEDY podemos amar vinte vezes na vida, porque a
natureza nos fez assim.
ABSTRACT: Many modern adaptations of ancient tragedies (Guy de Maupassant, Jadis, Pléiade, trad.
are not always well received by the public, either because de Rejane Janowitzer)
the distance from the original, either because their fidelity
to the original it seems impossible. In this paper we intend Ao tratar de temas clássicos, muitos
to show in Mighty Aphrodite by Woody Allen, the director diretores de teatro e de cinema têm buscado
makes the handling of themes and formal elements, like the inspiração, especialmente, nos poemas épicos,
Chorus, the ancient drama, in order to get a good reception Ilíada e Odisseia, e nas tragédias, Édipo Rei, As
by contemporary audiences. Troianas, Electra, Medeia, Antígona, que parecem
K E Y W O R D S : Oedipus King, Woody Allen, Mighty ser as mais inspiradoras. Os esforços desses
Aphrodite, Greek Tragedy dramaturgos e cineastas para trazer o passado
para o presente são enormes, e nem sempre
exitosos do ponto de vista da recepção das obras.
A transposição de qualquer obra literária para o
palco ou para a tela é algo bem complexo; tal

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complexidade se intensifica quando a obra a ser Atrides (1990). Consoante Roselli (2011: p. 63),
transposta está distante de nós há pelo menos no espaço social do teatro ateniense – e aqui
dois mil anos, como é o caso das obras literárias entendemos por espaço social o théatron, o lugar
da antiguidade clássica; acrescenta-se a essa onde se sentava o público -, o modo pelo qual as
complexidade a expectativa que os críticos, pessoas interagiam constituía uma forma de ação
leitores e espectadores têm de ver representados, política. É, pois, o elemento político, mais do
na nova produção, os valores sociais e culturais que os elementos formais da tragédia, que deve
da obra de partida. ser eleito como pano de fundo para transpor uma
No caso das adaptações e releituras das obra antiga para a contemporaneidade, podendo
tragédias gregas para o cenário contemporâneo, considerar, obviamente, elementos da tragédia
a representação das condições cênicas do próprio que poderão auxiliar na nova produção.
espetáculo, como o uso da máscara, a interdição Na tragédia grega, o elemento lírico já
da exibição das cenas violentas diante do público citado acima está confinado ao coro e se
e a participação do coro são questões que apresenta por meio de versos variados e não menos
diretores e encenadores devem estar atentos para complexos, como, por exemplo, podemos divisar
enfrentá-las. Dois outros elementos que eles não no terceiro estásimo de Édipo Rei (1086-1109),
podem negligenciar são o espaço e o tempo. No de Sófocles, que apresenta uma dança frenética
caso da tragédia grega, o espaço da pólis e veloz, de teor mais festivo, contrastando com
ateniense e a frequente discussão dos problemas os acontecimentos anteriores, que apresentam
humanos é algo que não pode ser descurado. É tons mais sombrios. A música instrumental,
óbvio que não se trata de, simplesmente, transpor performatizada pelo coro, os diálogos entre
a realidade grega para a da contemporaneidade, personagens e a declamação, que aparece em
trata-se, pois, de estabelecer o diálogo entre as pontos de alta tensão dramática, são elementos
culturas, principalmente, acerca do que é que estruturam a tragédia ao mesmo tempo em
fundamental a ambas. que aguçam a expectativa do público.
Destarte, eleger um tema, mais do que A organização desses elementos em uma
transladar a obra tal qual foi produzida na sua produção moderna é, indubitavelmente, possível.
época, torna-se mais eficiente e se conforma As Bacantes (1996), de José Celso Martinez Corrêa
melhor às condições de recepção do público (1937), é um exemplo; essa organicidade confere
moderno. Deve-se ressaltar que a representação à representação o estatuto formal – aproximando-
primitiva do drama contava com regras fixas e se da tragédia clássica -, entretanto pode não
bem definidas, como a apresentação, pelo menos causar o resultado que se deseja, pelo fato da
em todas as tragédias gregas supérstites, dos adaptação sugerir questões distintas da do
elementos lírico, cênico e recitativo, em oposição passado. As encenações no teatro de Dioniso,
a uma representação mais flexível e insubordinada em Atenas, não descuidavam dos seus contextos
do teatro na contemporaneidade. de performances e, frequentemente, faziam com
A combinação dos três elementos que suas personagens, - e a comédia é pródiga
supracitados permitia ao espectador antigo a em exemplos dessa espécie -, se dirigissem
explosão da emoção ou purificação dos diretamente ao auditório utilizando categorias
sentimentos, emoções que foram subtraídas do social e política.
teatro atual. O espectador, no teatro antigo, Na adaptação, devemos considerar o
ocupava um lugar de destaque que não mais se contexto da representação e o que esperamos
encontra hoje, exceção feita, talvez, às atingir com tal produção. Nesse sentido, o
encenações da diretora de teatro e de cinema espetáculo Fragmentos Troianos (1999), de Antunes
Ariane Mnouchkine (1939), frente ao Théâtre du Filho (1929), é bastante eloquente. Logo, parece-
Soleil, com sua representação memorável de Les nos que a adaptação ou a releitura das obras

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clássicas parece ser mais eficaz quando traduz vinculando o cômico ao trágico, consegue unir os
as questões essenciais do passado para a língua dois elementos, possibilitando-lhe filmar uma
do presente, sem que, necessariamente, a forma narrativa ao mesmo tempo séria e divertida, duas
seja preservada, todavia sem prejuízo do que facetas presentes nos gêneros dramático e
David Willes (2000: p. 179) denomina de elemento humano, se considerarmos a lição de Dejanira,
de authenticity. Para Willes, muitos diretores que em As Traquínias, de Sófocles, que nos ensina
se envolvem com o drama grego acreditam ter acerca da inevitabilidade da alegria seguir seu
encontrado algo de autêntico no passado que curso, todavia, “os que examinam bem podem
merece ser trazido ao presente, assim como temer que o vencedor um dia caia” (vv. 296-97).
acreditam ter encontrado algo no presente que é Como os enredos trágicos, o filme de Woody Allen
digno de ser levado para o texto antigo. Nessa narra uma história de contornos bem simples:
relação dialógica, pensamos que o passado pode um casal, Lenny Weinrib (Woody Allen) e Armanda
ser reinventado, ao invés de ser transplantado Sloan (Helena Bonham Carter), adota uma criança.
para o presente. Os dois desconhecem a identidade da mãe do
Dessa forma, Poderosa Afrodite, Mighty bebê, até o dia em que Lenny resolve investigar
Aphrodite (1995), roteiro de filme escrito e dirigido e descobre tratar-se da prostituta, que aspira a
por Woody Allen (1935), traz algo de autêntico ser atriz de filmes pornográficos, Judy Cum (Mira
ao buscar reler os pontos fundamentais que Sorvino), mais conhecida como Linda Ash, que
tragédias como Édipo Rei ou Medeia podem suscitar também será a “Afrodite” da história de Allen.
ao discutir assuntos de valor para o homem Allen apresenta na narrativa o lugar da
contemporâneo; assuntos que eram, também, alternância das coisas como ponto principal. Ao
necessários ser discutidos na época de Sófocles. fazer isso, ele atrai a atenção do espectador para
Como sabemos, as representações se realizavam o fato de que toda história tem, no mínimo, duas
no Teatro de Dioniso, em Atenas, por ocasião do versões. Na sequência inicial do filme, o público
festival dedicado ao deus e nos três dias do é transportado para o passado, para um anfiteatro
festival, temas como o da relação problemática antigo no qual um coro de atores mascarados
entre filhos e pai, o do adultério e o da culpa encena uma tragédia grega; trata-se da adaptação
faziam parte do programa das apresentações da história de Édipo. Allen parece, a exemplo
dramáticas. dos prólogos das tragédias gregas, prenunciar o
Sem dúvida, tais temas continuam em pauta que estar por vir ao fundir a história de Édipo na
na agenda do homem contemporâneo. Assim, mais de Lenny Weinrib.
importante do que transpor uma obra, A sequência seguinte se dá em um
privilegiando seus aspectos formais, buscando restaurante onde dois casais, um dos quais é
produzi-la tal qual produziu seu autor na época Lenny e Amanda, conversam animadamente acerca
em que foi feita, é discutir sua atualidade de filhos, adoções, pais e parricídio. Ao fazer
temática. Dessa forma, ao eleger a culpa e o isso, o diretor traz o espectador para o presente
adultério como objetos de discussão em sua da narrativa. Por meio desse artifício, lança o
produção, Woody Allen se aproxima das narrativas espectador em dois espaços diferentes e em dois
míticas e dos dramaturgos gregos sem, no tempos distintos, situando-o diante de dois
entanto, subvertê-los ou apagá-los totalmente, cenários totalmente singulares: as ruínas de um
visto que não intenta representar uma tragédia anfiteatro, de um lado; e o espaço organizado
antiga, mas, a partir dela, discutir as questões do restaurante no qual se encontram os casais,
que constituem, ainda, matéria de debate. de outro. No centro das duas narrativas, está a
A despeito do interesse de Allen por história de Lenny Weinrib, “tão grega e eterna
argumentos sérios, ele não constrói um drama quanto o próprio destino”, diz o coro. Lenny não
trágico no sentido estrito do termo; porém, deseja ter filhos naturais, tampouco adotá-los,

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temendo o sangue ruim do filho que poderá virar- se localiza no desejo proibido o qual leva homens
se contra ele, tornando-se um parricida. à ruína como, por exemplo, Aquiles e Édipo, no
Ao ritmo e ao tom sério e sombrio do coro, passado, e Lenny Weinrib, no presente. Mas,
na primeira cena, se opõe a conversa dos casais contraditoriamente, desejo que torna possível o
que se encontram no restaurante. Se na cena do homem sonhar e contemplar mudanças de vida,
anfiteatro, o espaço do théatron está vazio, de como a de Linda Ash. O coro alude à morte de
modo que somente os atores atuem sem que Aquiles, aos infortúnios de Édipo e à má sorte de
sejam vistos pelos espectadores, pois não há Medeia, que teve de gerar os filhos para depois
nenhum espectador; no restaurante, os casais matá-los, como todos eles sendo vítimas do
podem ver e serem vistos por outras pessoas “desejo proibido” que pode desgraçar todo
presentes à cena como prováveis espectadores. indivíduo que busca “entender os caminhos do
Igualmente, merecem destaques o uso de coração”.
máscaras pelo coro e a ausência delas na cena Ao combinar os elementos cômicos e
do restaurante. trágicos na narrativa, Allen se afasta do grupo
Allen suspende o tom austero, mais de diretores que buscam encenar a tragédia como
adequado à tragédia, para incluir o tom jocoso, se encenava no século V; contudo ganha ao
próprio de seus filmes, e mais próximo da construir uma tragicomédia que joga, bem
comédia. Por consequência, o tempo e o espaço, humoradamente, com o que há de bom e de
a tragédia e a comédia, o sério e o risível terrível no homem, apresentando o conflito
constituem a narrativa fílmica de Poderosa humano junto à dificuldade de lidar com seu
Afrodite. As ruínas do anfiteatro opostas à desejo e de tratar os sintomas decorrentes dele.
cuidadosa arrumação do restaurante no qual os Metaforicamente, o fogo poderoso é
casais, civilizadamente, comem e bebem, são substituído pelo poder de Afrodite, deusa grega
índices que levam o espectador a pensar na do amor. No Banquete (180d-e), Pausânias, um
desestruturação pela qual as personagens dos simposiastas que elogia o deus do amor,
passarão. refere-se à dupla natureza da deusa: Afrodite
No prólogo do Édipo Rei, a visão dos urânia, filha de Urano sem a participação
suplicantes espalhados pelos degraus do palácio feminina, e Afrodite pandêmia, filha de Zeus e
se opõe à notável e bem segura figura de Édipo, de Dione. A primeira, por nascer apenas do pai,
que acaba de sair ao vestíbulo. No caso da é celestial, inatingível e extraordinária, ao passo
tragédia sofocliana, Édipo troca de papel com os que a segunda, por ser produto do masculino e
suplicantes no final da peça, ao passar de rei a do feminino, é acessível a todos e ordinária na
súplice cego nos bosques de Colono. Édipo, ao forma de oferecer amor.
dirigir-se aos cidadãos que governa, o faz como Por meio das personagens Laio, que na
o rei que se preocupa com o bem-estar dos seus encenação já está morto, mas narra o que
governados, sentindo piedade por seus aconteceu, e Jocasta, que conhece seu terrível
sofrimentos, e disposto a protegê-los. A ironia destino, Allen aborda o problema das relações
da cena sofocliana joga com o desconhecimento amorosas que envolvem parricídio e incesto. Nessa
de Édipo em relação à própria vida e ao que lhe cena, o diretor reúne o tom patético da tragédia,
acontecerá depois. quando o próprio Laio revela que foi morto pelo
Em Poderosa Afrodite, Allen substitui a filho, e Jocasta menciona o incesto com Édipo,
presença real de Édipo, como símbolo de poder, com o tom ridículo da comédia dado pela visão
pela do fogo, que simboliza ao mesmo tempo o que temos de Édipo, cego e desengonçado,
poder encantatório e a destruição. O uso da correndo como se fosse uma criança. Seguem-se
imagem do fogo, então, sugere que a narrativa a isso uma suspensão da narrativa acerca dos
representará certo poder devastador. Poder que infortúnios da casa de Laio, a introdução das

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conjecturas a respeito dos filhos que abandonam No filme, ainda, o coro pode se apresentar
os pais e do vazio que é o casamento de Lenny disfarçado, vestindo as indumentárias de homem
Weinrib. moderno, como os jogadores, os amigos etc.
Ao apresentar a história de Lenny, Allen Quando Lenny conversa com seu amigo confidente,
organiza em um só eixo duas histórias, a de Édipo Bud, a respeito do casamento e do filho Max,
e a do próprio Lenny. Daí por diante, a noção de Bud lança em Lenny a dúvida, ao profetizar que
tempo, - presente e passado -, se desconstrói, todo casamento passa por altos e baixos. E, ao
bem como a concepção de espaço. A desconstrução mencionar a presumível morte do verdadeiro pai
de tempo e de espaço – borrando as fronteiras de Max, e a possível existência da mãe, uma
do clássico e do contemporâneo -, também epifania cai sob Lenny. Escutamos, nesse instante,
acontece na última produção de Allen: Meia Noite um barulho semelhante ao do trovão. Em seguida,
em Paris (2011). Por meio da técnica de a narrativa volta ao anfiteatro onde se encontra
superposição de narrativas, o diretor consegue o coro, que adverte Lenny – que se encontra no
um resultado interessante do ponto de vista da espaço e no tempo da ação passada -, a não
fluência do relato sem que nenhum dos níveis, o prosseguir a investigação.
temporal e o espacial, seja comprometido. Lenny, à maneira da têmpera heroica dos
Em Poderosa Afrodite, Allen nos parece mais heróis sofoclianos que não se desviam do caminho
radical que em Meia Noite em Paris, ao imbricar o escolhido, mostra-se obcecado pela ideia fixa de
passado no presente. Com isso, ele obtém um encontrar, a todo custo, a mãe do seu filho. Para
resultado primoroso e, esteticamente, conserva o coro, a decisão de Lenny é fruto do destino:
o que é importante no drama antigo, sem que “Ó, maldito destino. Certas ideias, é melhor não
seja necessário reproduzi-lo. Dessa forma, Allen tê-las”. “Deixa as coisas como estão”, alerta-o
subverte os aspectos formais da obra de mais uma vez o coro. E, por fim, arremata: “Por
referência, para atingir seu objetivo: discutir as favor, Lenny, não seja idiota”.
relações contemporâneas, a partir de uma alusão As admoestações e alertas do coro não são
à antiguidade. Em vez de Tebas e de Corinto, suficientes para dissuadir Lenny do intuito de
cidades gregas onde se passa a história de Édipo, encontrar a mãe do seu filho. Para tanto, viola
suas referências são cidades como Cincinnati, as regras, quando ouve da responsável pela
Boise e Idaho. Nomes que soam para Lenny, alter- documentação das crianças, que vão para adoção,
ego do diretor Allen, como ridículas e estranhas. que não é possível informar aos pais adotivos o
Allen não opta por tratar de grandes temas – o paradeiro dos pais biológicos.
que parece esconder-se por trás das tragédias Apesar de ser capaz de transgredir as leis,
gregas -, mas opta por histórias simples do não o faz sem culpa. No escritório que Lenny
cotidiano. invade, a fim de encontrar documentos que deem
As angústias de Allen, que desempenha o pistas de quem é a mãe de Max, Allen põe Lenny
papel do pai que sai em busca da mãe do seu diante do seu sentimento de culpa pelo ato
filho adotivo, equiparam-se às de Édipo, que tem cometido. “É contra a lei”, diz-lhe o coro. A quem
de encontrar o assassino de Laio. O coro, espécie Lenny retruca: “Há leis maiores”. Nessa passagem,
de narrador onisciente que segue os passos do lembramo-nos de Antígona e do desafio que ela
protagonista, como se fosse sua consciência, faz às leis escritas de Creonte que a proíbem de
participa durante toda a narrativa das ações de enterrar o irmão.
Lenny. Allen abre mão do elemento lírico coral e Em diálogo rápido e divertido entre Lenny
o adorna de tiradas humorísticas bem e o coro, Allen aporta questões meta-dramáticas
interessantes. Entre uma tirada e outra, o coro úteis. O tema da conversação diz respeito tanto
anuncia verdades que causam perplexidade a ao contexto cênico em que a narrativa do presente
Lenny. se dá, quanto às questões atinentes ao drama

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antigo. Se na tragédia, o papel do coro é rígido e assassina, pois Allen tem interesse em examinar
bem delimitado, no filme de Allen, ele é mais a traição, não o crime.
descontraído, distanciando-se de sua função na A partir disso, podemos afirmar que a
tragédia. Assim como na tragédia grega, ele recriação do trágico de Woody Allen foi bem
permanece todo o tempo em cena, intervindo e sucedida, uma vez que ele constrói um elemento
comentando, muitas vezes, as ações das de authenticity que permite comunicar aos
personagens, em Poderosa Afrodite, ele também pósteros verdades que ultrapassam o tempo e o
toma parte na ação “heroica” da personagem, espaço. Assim, em um jogo dialético e dialógico,
mas a ele cabe, somente, o papel de comentar a fusionando linguagens e costumes diversos, sem
ação, como diz Lenny, bem humorado, referindo- temer a subversão, nem a experimentação, Allen
se à condição de comentarista do coro como consegue harmonizar o clássico e o
função principal no contexto da narrativa. contemporâneo, diminuindo a distância entre
Outra referência meta-dramática que ambos.
merece destaque é a cena em que Lenny não dá Recebido em junho de 2011,
importância à profecia de Cassandra, chegando aprovado em junho de 2011.
até mesmo a desconhecê-la como profetisa. Ao
ser instado por Cassandra a que pare com a REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS E
investigação e a que não permita a Amanda CINEMA
CINEMATTOGRÁFICAS
OGRÁFICAS
convencê-lo a comprar a casa vizinha, Lenny
contraria as advertências de Cassandra. Assim Referências primárias
como no mito grego, na narrativa de Allen,
Cassandra se apresenta como a profetisa de ALLEN, W. (1995) Poderosa Afrodite (Mighty Aphrodite).
New York.
previsões inúteis, visto que suas palavras não
SÓFOCLES (1986) Édipo Rei. Trad. Maria do Céu Zambujo
causam efeito em quem as escuta. .
Fialho. Coimbra: INIC.
A profecia de Cassandra traz um subenredo
__. (2009) As Traquínias. Trad. de Flávio Ribeiro de
para a narrativa: o adultério de Amanda. Ao Oliveira. Campinas: Editora da Unicamp.
introduzir o tema do adultério, Allen mais uma
vez dialoga com o passado clássico, mormente, o Referências secundárias
mito grego. Sem fazer menção direta ao
Agamêmnon, de Ésquilo, em cuja tragédia o COOK, A. (1982) Oedipus Rex: mirror for greek drama.
adultério é apresentado, o espectador sabe da Ilinois: Wavelam Press, Inc.

alusão que se estabelece entre Clitemnestra e ROSELLI, D.K. (2011) The theater of the people: spectators
and society in ancient Athens. Austin: University of
Amanda. Allen, contudo, não está interessado
Texas Press.
em transformar Amanda em Clitemnestra. Logo,
WILLES, D. (2000) Greek theatre performance: an
não constrói uma personagem vingativa e introduction. Cambridge: University Press.

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