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PAPEIS ‘SELVAGENS UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Reitor Ruy Gareia Marques Viee-reitora Maria Georgina Muniz Washington EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Consetho Editorial Bemardo Esteves Erick Felinto Glaucio Marafon (presidente) Jane Russo Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro Ivo Barbieri (membro honorério) Italo Moriconi (membro honoriio) Lucia Bastos (membro honorério) PAPEIS SELVAGENS Coordenagio Editorial Rafael Gutiérrez, Maria Elvira Diaz-Benitez, Antonio Marcos Pereira Consetho Editori Alberto Giordano (Universidade Nacional de Rosério) Ana Cecilia Olmos (USP) Elena Palmero Gonzilez (UFRJ) Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG) Jaime Arocha (Universidade Nacional da Colémbia) Jeffrey Cedefio (Universidade Javeriana de Bogota) Juan Pablo Villalobos (Escritor) Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRS) Maria Filomena Gregori (Unicamp) Ménica Menezes (UFBA) Colegio Kateta Papéis Selvagens papeisselvagens@gmail.com wwww-papeisselvagens.com a A ESCRITA DA CULTURA: POETICA E POLITICA DA ETNOGRAFIA James Clifford e George E, Marcus Orpanizagio ‘Tradugio: Maria Claudia Coelho lB fea ms } 'SELVAGENS Rio de Jani 2016 O conceito de traducao cultural na antropologia social britanica Talal Asad Introdugio ‘Todos os antropélogos estao familiarizados com a famosa definigio de cultura de B. B. Tylor: “cultura ou civilizagao, em scu sentido etnogrifico amplo, é esse todo complexo que inclui conhecimento, ctenga, arte, moral, Ici, costume ¢ quaisquer outras capacidades hibitos adquiridos pelo ho- mem enquanto um membro da sociedade”. Seria interessante rastrear como ¢ quando essa nogio de cultura, com sua enumeracio das “capacidades ¢ ha- bitos” ¢ sua énfase naquilo que Linton chamou de hereditariedade soial (Focan- do no processo de aprendizagem), foi transformada na nogao de um fexto — isto é, em algo parecido com um discurso inscrito. Uma pista Gbvia para essa mudanga pode ser encontrada na forma como uma nogio de dngnagem como aprecondicao da continuidade historica ¢ da aprendizagem social (“cultivo”) vyeio a dominar a perspectiva dos antropélogos sociais. fi clara-que, de ma- neira geral, esse interesse pela linguagem é anterior a Tylor, mas, no século XIX e no inicio do século XX, tendia a ser central em algumas correntes da tcoria literaria nacionalista e da educacio (cf. Eagleton, 1983, cap. 2), mais do que em outras ciéncias humanas. Quando ¢ de que forma esse interesse se tornou crucial para a antropologia social britinica? Nao pretendo tentar tracar essa historia aqui, mas apenas lembrar que a expressio “tradugio de culturas”, que, cada vez mais, desde os anos 1950, tem se tornado uma des- cticio quase banal da tarefa especifica da antropologia social, nem sempre esteve to em evidéncia. Quero enfatizar que essa mudanga aparente nto coincide de forma plena com a velha periodizagao pré-funcionalismo/ fun: cionalismo, Nao se trata, também, meramente de um problema de interesse direto na linguagem e no significado que antes estaria ausente (Crick, 1976). Bronislaw Malinowski, um dos fundadores da escola conhecida como fun- cionalista, escreveu muito sobre a “linguagem primitiva” e coletou enormes quantidades de material linguistico (provérbios, terminologia de parentesco, feitigos etc.) para andlise antropoligica. Mas ele nunca pensou em seu traba- Iho em termos de uma tradugio de culturas. O wabalho de Godtrey Lienhardt, “Modes of Thought” (1954), € pos- sivelmente, um dos primeiros — certamente um dos mais sutis — exemplos do uso dessa nogio de traducio pa central da antropologia social, descrever explicitamente uma tarefa © problema de deserever para outros o modo como membros de uma tri bo distante pensam comega entio a se parecer muito com um problema de teadugio, de tornar a coeréncia que © pensamento primitivo tem na lingua em que realmente vive tio clara quanto possivel na nossa propria lingua (ienhardt, 1954, p97). BE analiso na prdxima segio, ¢ voltarci a cla no contexto do argumento de Gell- ner, Chamo, aqui, a atencio rapidamente para 0 uso, por Lienhardt, da pala- vra “traducio” para se referir no aos ass a afirmativa é citada ¢ criticada no artigo de Ernest Gellner que intos linguisticos per'se, mas a“mo- dos de pensamento” embutidos nesses assuntos. Talvez no seja irrelevante, propésito, que Licnhardt tenha formacio cm literatura inglesa ¢ tenha sido aluno de F. R. Leavis, em Cambridge, antes de se tornar aluno ¢ colaborador de E. E. Evans-Pritchard, em Oxford. ‘Osford, evidentemente, ¢ famosa como 0 centro antropolégico da Gri Bretanha mais autoconsciente quanto 4 sua preocupacio com a “tradu- 0 de culturas”. O mais eonhecido livro diditico produzido naquele centro, Other euliaes, de Jobn Beattie (1964), enfatizava a centralidade do “problema da tradugio” para a antropologia social e distinguia (mas nao separay: “cultura” da “ inguagem”, de uma forma que comesava a se tornar familiar para os antropélogos — embora nfo necessariamente, por isso, totalmente clara (ver pp. 89-90) F; interessante ver Edmund Leach, que nunca esteve associado a Oxford, empregar a mesma nogio em sua conclusio de um retrato histérico da antropologia social escrito uma década mais tarde: Deixem-me recapitular, Comecamos enfatizando quio diferentes sio “os outros” € 08 tornamos nio apenas diferentes, mas distantes ¢ in- feriores. No plano sentimental, seguimos entio 0 caminho oposto ¢ ale~ {gamos que todos os seres humanos sio semelhantes; podemos entender os trobriandeses ou os Barotse porque suas motivagdes sto idénticas fis nossas; mas isso também nfo funcionou, “os outros” continuaram sendo, obstinadamente, outros. Mas agora nos demos conta de que © problema essencial é uma questo de traducdo. Os lingvistas nos mostra- ram que toda tradugio € dificil, e que a tradugio perfeita em geral é im- possivel, Mas, mesmo assim, sabemos que, para objetivos priticos, uma tradugio accitavelmente satisfatoria € sempre possivel, mesmo quando 0 “texto” original é extremamente obscuro. As linguas sto diferentes, mas io to diferentes assim, Vistos por esse dngulo, os antropélogos sociais estio dedicados 4 ctiagio de uma metodologia pata a tradugio da lingua cultural (Leach, 1973, p. 772). ‘Até mesmo Max Gluckman (1973, p. 905), em resposta, logo depois, a Leach, aceita a centralidade da “traducio cultural”, embora proponha uma gencalogia muito diferente para essa pritica antropolégica. ‘Ainda assim, apesar da concordancia geral com a qual essa nogio foi accita como parte da autodefinigao da antropologia social britanica, cla foi objeto de escasso exame sistemitico no seio da profissio. Uma excecio par- cial & Belief language, and exsperience, de Rodney Needham (1972). Trata-se de uma obra complexa ¢ erudita que merece uma anilise atenta. Aqui, Gontudo,. desejo me concentrar em um texto mais curto ~ “Concepts and Society”, de Eimest Gellner —, que parece set amplamente usado em cursos de graduagio ‘nas universidades britinicas ¢ ainda est disponivel em algumas coletaneas muito conhecidas. A proxima seciio é, assim, dedicada a um exame detalha- do desse ensaio, e, nas segdes seguintes, abordo alguns pontos que emergem desse exame. Um texto tebrico “Concepts and Society”, de Gellner, € dedicado a anilise do modo como 0s antropélogos funcionalistas lidam com problemas de interpretacao © tradugio do discurso de sociedades estrangeiras. Seu argumento basico € que (@) 68 antapdlagns contemporineos ins crengas exéticos em um contexto social, mas, (b) ao fazé-lo, garantem que afiemacdes aparentemente absurdas ou incoetentes recebam sempre um sen- tido aceitavel, ¢ que, (c) embora o método contextual de interpretacio seja ilido em principio, a “indulgéncia excessiva” que costuma acompanhé-lo nao 0 é. O trabalho contém varios diagramas, cujo propésito € organizar € esclarecer, de forma visual, os processos culturais relevantes. Geliner apresenta 0 problema da interpretagio em referéncia a0 Rel gion and economic action (1961), de Kurt Samuelsson, um ataque empreendido por um historiador da economia & tese weberiana da ética protestante. Sa- muelsson critica o fato de Weber © seus seguidores terem reinterpretado ‘tem em interpretar conceitos textos religiosos de uma forma que Ihes permite extrait significados que con- firmam a tese. Geller apresenta este exemplo apenas para tornar mais nitida a posi¢io contrastante do antropélogo funcionalista: Nao estou preocupado, nem apto, a discutir se, so especifico, & vie lide o emprego por Samuelsson de seu principio tito de que nao se deve reinterpretar as afirmages encontradas. O que interessa aqui é que, se esse principio for explicitado e generalizedo, ele tornaria absurda a maior parte dos estudos sociolégicos sobre a relacko entre erenea e conduc. Encontn- ‘emos antropdlogos inclinados a usilizar 0 principio exatamente oposto, a in- sisténcia, ¢ no a recusa, na reinterpretagio contextual (Geller, 1970, p. 20). ‘Mas essa afirmacio modesta de inaptidao deixa & deriva um nimero excessivo de questées interessantes, Para comecar, mio € preciso tet maiotes competéncias pata observar que Samuelsson nao defende o principio de que info se deve munca reinterpretar. Ele também nao insiste em que nio hi munca uma conexao significativa entre um texto religioso € seu contexto social; seu ponto € que conclusio a que a tese de Weber pretende chegar nao pode ser estabelecida. (Ver, por exemplo, Samuelsson, 1961, p. 69). Além disso, ha um contraste real que Gellner pode ter captado entre o exemplo de Samuels- son € as dificuldaces tipicas do antropélogo. Para os historiadores da eco- nomia e 08 socidlogos envolvidos no debate weberiano, os textos hist6ricos sio um dado primario em relagio a0 qual os contextos sociais precisam ser reconstruidos. O antropélogo pesquisador de campo parte de uma situagao social na qual algo é dito, € o significado cultural dessas enunciagies que precisa ser reconstruido, Isso no quer dizer, evidentemente, que o historia- dor possa abordar seu material de arquivo sem alguma concepgio a respeito de seu contexto histérico, ou que 0 pesquisador de campo possa definir a situagio social independentemente daquilo que foi dito ncla, © contraste parece ser de otientagao, que decorre do fato de que 0 historiador rrebe um teste, a0 passo que o etndgrafo precisa construir une te Em ver de investigar esse contraste to relevante, Gellner se apressa a definir e recomendar como método aquilo a que chama de “funcionalismo moderado”, 0 qual [.-] consiste em insistie no fato de que conceitos ¢ erengas nfo existem em es- tado de isolamento, em textos ou mentes individuais, mas aa vida dle homens « sociedades, As atividades e instituigdes, no contexto das quais uma palavra, € usada ou expressio, ot conjunto de expressd precisa ser conhecidas antes que essa palavra ow essas expresses possam ser compreendidas, a0: tes que possamos realmente falar de um eoncilo ou de uma eronz (Gellner, op. cit, p. 22). 1 uma boa formulagio ¢, mesmo que ja tenha sido enunciada antes, vale a pena reafirmi-la, © leitor talvez espere, agora, uma discussio sobre as diversas formas como a linguagem é encontrada pelo etndgrafo no campo, sobre © modo como as elocucdes sf produzidas, os significados verbais organizados, os efeitos retéticos obtidos ¢ as reacdes culturalrente apro- priadas suscitadas. Afinal, Wittgenstein ja havia sensibilizado os filésofos bri- tinicos pata a complexidade da lingua em uso, ¢ J. L. Austin havia definido distingdes entre os diferentes niveis de produgio e recepeio da fala de uma maneira que antecipava aquilo que os antropdlogos mais tarde chamariam de etnografia da fala, Mas Gellner havia anteriormente rejeitado a sug de que esse movimento filoséfico tivesse qualquer coisa valiosa (ver sua polémica em Words and things, 1959) e, como outtos criticos, sempre insistiu que sua preocupacao com a compreensio da linguagem cotidiana era

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