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HORIZONTES DA PESQUISA EM MUSICA

Vanda Bellard Freire


organizadora

1à reimpressão

-'"'--------------------- -
·r-----------------------------------,----------··-----------·········----

Sumário
© 2010 Vanda Freire
bte livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portttgz~CSa de 1990,
adotado no Brasil çm 2009. PARTE I MÚSICA, PESQUISA E ·SUBJETIVIDADE -ASPECTOS GERAIS

Vãnda Bellard Freire


Coordenação Editorial
9 Introdução
Isadora Travasses
14 Abordagem Qualitativa x Abordagem Quantitativa Falso Dilema?
Produção Editorial
Cristina Parga Subjetividade e objetividade na pesquisa
Eduardo Süssekínd 21 Pesquisa em música e subjetividade- Bases Filosóficas e Pressupostos
Rodrigo Fontoura
SofiaSorer 25 Métodos de pesquisa em música e subjetividade
Victoria Rabello
43 Referencial Teórico ,_ Coerência e densidade da pesquisa
47 Pesquisa, Subjetivismo elnterdisciplinaridade

PARTE li MÚSICA, PESQUISA E SUBJETIVIDADE - TÓPICOS ESPECIAIS

63 Algumas questões da pesquisa em etnomusicologia


Acácio Tadeu de Camargo Piedade
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICJU'O NACIONAL DOS EDITORES DE UVROS, RJ 82 Por uma pedagogia da composição musical
H785 Celso Loureiro Chaves
Horizonte da pesquisa em música I Vanda Bellard Freire, organizadora . -
Rio de Janeiro: ?Letras, 2010. 172p.: i!. 96 Pesquisas qualitativas e quantitativas em práticas interpretativas
Inclui bibliografia Cristina Capparelli Gerling e Regina Antunes Teixeira dos Santos
ISBN 978-85-7577-689-6
1. Musicologia. I. Freire, Vanda Bellard.
139 Ressonância eletroacústica em um samba: qualidade analítica
10-3066. CDD; 780.72 CDU: 78.01 Rodolfo Caesar
155 Considerações sobre a pesquisa em educação musical
Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo

ANEXO

176 Algumas perguntas usuais de pesquisadores iniciantes sobre


Metodologia da Pesquisa
2013
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá 580, sobreloja 320- Ipanema
I I
Rio de Janeiro RJ CEP 22410-902
Tel. (21) 2540-0076
edirora@?lerras.com.br I www.?lerras.com~br
PARTE I

Música, pesquisa e subjetividade


Aspectos gerais

Vanda Bellard Freire


·---~--·-···"-"

Introdução

I O propósito deste livro é dialogar com os leitores em torno de algumas


I ques~§t;:s_~JQIÚÇÇJ_~_J:.Ç!Í~-~~,p_es_gJ!i_~-~m!fl~sic;a. Essas questões e tópicos
foram escôlhidos por parecerem relevantes aos autores que procuram, assim,
compartilhar, por meio de seus textos, a experiência que têm acumulado na
prática de pesquisa e na orientação de pesquisas em música.
Como a prática musical é uma atividade estética, uma fori!_la de eXpres-
são poética, portanto intrinsecamente criativa, surge, por vezes, a dúvida so-
bre a utilidade da pesquisà para a área de Música. A pesquisa pode, realmen-
te, contribuir, de alguma forma, para uma prática de natureza estética como
a prática musical? Em que medida o próprio fazer estético (interpretar, com-
por, reger) não é, ele mesmo, uma atividade de pesquisa, já que esse fazer en-
volve buscas e decisões e se apoia em um aparato técnico? Ensinar música é
também um ato de pesquisar, já que envolve sistematização de informações?
A atividade de pesquisa é antagônica ou incompaúvel à criatividade ineren-
te a qualquer atividade artística?
Essas são algumas questões que músicos muitas vezes levantam e que
parecem pertinentes à primeira vista. No meio acadêmico, observamos que
essas questões, muitas vezes, estão ligadas não somente à desconfiança com
a utilidade da pesquisa para a área, mas também refletem preocupações com
a avaliação docente e a valoração atribuída pelas instituições a essas diferen-
tes formas de expressão e de geração de conhecimento, o que repercute na
carreira dos profissionais envolvidos, gerando conflitos. Ou seja, ao questio-
nar a validade da pesquisa na área, muitos músicos expressam uma reação
à possível desvalorização da prática musical, o que de fato não se sustenta,
pois cada uma dessas esferas tem significados e movimentos próprios, não
_devendo incidir sobre a valorização da outra. O que se cria, então, são fal-
sas polêmicas e polarizações equivocadas, que em nada acrescentam ao co-
nhecimento da área.
Considerando os argumentos acima, este livro não pretende ~2!_d_:rr
~p~q~y~~JE-.E<:JEÉO!lto ou com<:Jpolarização()pgsta ao_f~er_,r.tJ:\lSic~..~ Ao
contrário, parte da concepção de que a pesquisa é uma atividade de investi-
gação cienúfica destinada a gerar conhecimento novo, inclusive na área de

9
música, a partir da interação entre a prática musical e a reflexão teórica. Isto O·primeiro requisito, citado pelo autor, refere-se, portanto, à questão
é, da pesquisa deve resultar, como conclusão, urna nova interpretação, urna que origina a pesquisa, ou seja, pesquisa-se para responder a urna indagação.
nova informação, urna nova possibilidade metodológica etc. As conclusões -Cabe aqui apontar urna diferença iinportante em relação à atividade artís-
de pesquisa devem propiciar, nessa ótica, algum tipo de incidência e trans- tica, pois esta não surge necessariamente de urna pergunta ou questão, mas
formação na prática musical. . , de urna intenção expressiva cuja resposta é de natureza estética, o que a dis-
JAp~sqwsa sobre música não é, portanto, urna atividade estética. É urna\ tingue da atividade científica. ·
,c~tividade científica (ainda que debruçada sobre um objeto de natureza es-, O segurido requisito refere-se aos métodos (metodologia) a serem em-
I tética: a música), seja ela de natureza predominantemente teórica ou meto- pregados na construção da resposta à pergunta inicial. Outra diferença a
\ do~~~~a, s:ja mais volta~~ .Pa,t":l. a,_4i~<:.~~~<? EE~tica ou empírica.;Conside- apontar em relação às atividades estéticas: não cabe, na atividade artística, a
ramos, assim, que para refletir melhor sobre pesquisa na área de música, é presença de metodologia, na forma como é definida na área científica, em-
interessante, como ponto de partida, considerar as peculiaridades do conhe- bora a atividade artística envolva a aplicação e o desenvolvimento de técni-
cimento científico e do conhecimento estético. cas que permitam alcançar o resultado expressivo pretendido.
Inicialmente, é importante observar c:JE..~!l.~nh'!!!l..?..~X.J?Le§~ªº··mígiça Finalmente, o terceiro item refere-se ao grau de confiabilidade, o que
~~ s~~!Ei~.~a~ÇJ.~.:y~JLd3.4~~:lJ>~9!!:Í~: A arte se l~gi;~a por Ot1trosca- não deve ser confundido com a obtenção, pela pesquisa, de respostas verda-
mif!h2§d?Qt()Utras l{>gic;~.A pesquisa pode, contudo, refletir sobre a.<t~J:~ deiras ou definitivas. A pesquisa é sempre urna aproximação da realidade,
SOQE.t::.as práticas J:el~ci()nad:lS à arte, !!l:C:!~iveas qe__~p§irto. O retorno.9.~:. que deve ser confiável por ser coerente e fundamentada, mas sempre passí-
~<lSf(!fl(!:X:éJes constrt1ídas pel<l.SJ>esquJsas sobre_ música ao fazer artí§J:iC() Ç(!E:- vel de revisão ou de questionamento (a "verdade" no que toca à arte advém
tamentepode contribuir para urna transformação qualitativa do artista e de de urna lógica própria, à 'qual não cabe refutação nem comprovação, em-
~!!~~práticas.,. bora possamos não apreciar deterJ.n!.nada corrente estética ou determinada
De qualquer forma, toda pesquisa surge de urna inquietação, um ques- obra de arte).
tionamento ou conflito inicial, que leva à busca de respostas. Uma lacuna
Em outras palavras, é necessário haver um problema de pesquisa (o que não signifi-
percebida em urna área de conhecimento ou na compreensão de um fenô-
ca uma hipótese formal), um procedimento que gere informação relevante para ares-
meno ou urna discordância em relação ao que já está estabelecido são fontes posta e, finalmente, é preciso demonstrar que esra informação decorre do procedimento
geradoras de perguntas, portanto são possíveis questões iniciais de pesquisa. empregado e que a resposta produzida por ele não é apenas uma resposta possível como
As questões geradoras de pesquisa já estão presentes na prática cotidia- também é a melhor, nas circunstâncias (o que indul, certamente, o referencial teórico).
na de músicos, seja qual for sua atuação (como docentes, intérpretes, com- Luna, 2002, p. 27.
positores, regentes). Ou seja, não há necessidade de "inventar" urna questão
Luna consid~E!queh_á UII1 falso conflito entre as tendênciasmetodoló-
de pesquisa. Certamente, nossas indagações cotidianas, seja na prática mu- gi~as, comoys;:;.b()rdagens"q~~Eativas" e "qua,ntitativas", e considera que
sical propriamente dita, seja no ensino de música, já contêm, potencialmen- seria mais relevante congregar diferentes contribuições metodológicas. O
te, urna proposta de pesquisa.
po_s,ic;ionamento de Luna temmu"itos adeptos, mas não ~I1COntra unanimi- .
Luna (2002, p. 27) considera que toda pesquisa, seja qualJor a aborda-
d~de na <Úea de pesquisa, o que nfG tira a legitimidade de, ~uas posiÇões.
gem metodológica, necessita preencher três requisitos:
Santos Filho e Garúboa (2002) concordam com o posicionamento de
1) a existência de urna pergunta; Luna e denunciam como fabo o conflito quantidade-qualidade, no que con-
2) a elaboração (e descrição) de um conjunto de passos que permitam cerne à metodologia ck11.tífica, na medida em que tal posição, segundo eles, i
~ !
obter a informação necessária para respondê-la; hipertrofia o nível técnico-instr~ental da pesquisa. Ou seja, eles conside-
ram que a abordagem desses temas, centrada na polarização entre quantida-
3) a indicação do grau de confiabilidade na resposta obtida.

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de-qualidade, termina por supervalorizar a operacionalização da pesquisa, Não se trata de admitir que o objeto determine a linha de pesquisa ou
que fica caracterizada, através dessa polarização, apenas em termos dos mé- as questões formuladas, mas de re.corrhecer que a relação que se estabelece
todos que emprega, como quantitativos e qualitativos. Assim, ficam de fora entre músicos e música abre porras, em muitos casos, à abordagem subjeti-
outras dimensões que envolvem a pesquisa, como a epistemológica, isto é, a va. Além disso, a flexibilidade e a abertura iniciais que a pesquisa qualitativa
esfera conceitual e filosófica que existe "por trás" dos métodos de pesquisa. pressupõe também nos parecem muito propícias às indagações sobre músi-
Assim, esses autores propõem outras formas de analisar a questão, pro- ca e ao desenvolvimento de pesquisas sobre ela e sobre as práticas que a en-
curando priorizar categorias epistemológicas, relativas á natureza do .conheci- volvem, em virtude da natureza estética e da dimensão humana envolvidas.
mento envolvido, tais como objetividade, subjetividade, cientificidade, ver- É nessa direção que o livro caminha, apresentando, em sua primeira
dade etc. Procuram também ressaltar outras possibilidades de abordagem parte, aspectos gerais importantes no âmbito da pesquisa subjetivista (ou
científica, minimizando, assim, a polarização reducionista que reside, segundo qualitativa) em música e, na segunda parte, contribuições de pesquis.ado-
eles, na focalização de apenas dois posicionamentos: qualidade e quantidade. res atuantes na pesquisa sobre música, enfocando alguns tópicos específicos
Freire e Cavazzoti (2007) também se alinham com essa posição de de suas subáreas. Ao fina[ do livro, um pequeno Anexo relaciona algumas
Gamboa e Santos, ao darem ênfase aos conceitos de "objetividade" e "sub- perguntas mais frequentes sobre metodologia da pesquisa, procurando res-
jetividade" na caracterização das principais vertentes de pesquisa, sem va- pondê-las de forma clara e concisa, esperando, assim, contribuir, sobretudo,
lorizar a dicotomia entre quantidade e qualidade. Os autores identificam com a prática de pesquisa nos cursos de Graduação e de Pós-Graduação na
como tendências predominantemente objetivistas aquelas derivadas do pen- área de Música.
samento positivista (entre as quais citam o sistemismo, o funcionalismo, o A dimensão criativa da pesquisa, que nem sempre é reconhecida, ganha
estruturalismo) e como predominantemente subjetivistas aquelas relaciona- espaço neste livro, cujos autores, sob diferentes perspectivas, abordam a in-
das ao pensamento dialético e fenom~nológico. vestigação científica como um espaço instigante de reflexão e de geração de
Este livro parte do princípio de que existerp. diferenças conceituais im- possíveis respostas a questões que são caras aos músicos, inclusive às ques-
portantes entre as diferentes vertentes metodológicas (sem atribuir uma co- tões de natureza estética, às quais a abordagem subjetivista parece particu-
notação valorativa a essas diferenças) e pretende se debruçar, mais especi- larmente interessante.
ficamente, sobre a pesquisa comumente designa.:!a como qualitativa, cuja
aplicação à área de música (ou a qualquer modalidade de arte) parece, aos
autores, particularmente interessante. A proposta é a de enfatizar o trata- Questões e sugestões ao pesquisador iniciante:
mento da questão no que se refere à ~nfase que a pesquisa qua.litativa dá à
subjetividade, aqui entendida como perspectiva subjetiva, simultaneamente Você já tem alguma questão de pesquisa em mente?
individual e social, já que a perspectiva individual é condicionada cultural-
Ela se origina ou se relaciona com sua prática?
mente, sendo construída na interação das diversas subjetividades individuais
Como escolher ou formular uma questão de pesquisa?
na cultura.
-il Não se pretende, assim, desconhecer ou desqualificar qualquer outra Reflita sobre sua prática, seja ela prioritariamente artística ou docente, e
ab~rdagem metodol6gica de pesquisa, mas enfatizar uma linha de aborda- ·identifique algum aspecto ou tópico que o intriga ou que desperta seu especial
gem com a qual os autores deste livro particularmente se identificam, pela interesse. Procure informações sobre esse assunto, pois pode existir farto material
seguinte razão principal: a natureza estética do objeto de pesquisa (a músi- a respeito que já contenha as respost~ que você deseja. Ou, ao contrário, as
ca, no presente caso, e as práticas a ela correlatas, como o ensino de mru;ica), informações disponfveis continuam insatisfatórias para você. É aí que reside
sua questão de pesquisa.
podem suscitar, com grande frequência, questões q1,1e muito se beneficiam
com uma abordagem qualitativa.

12 13
Abordagem Qualitativa x Abordagem Quantitativa- iltistramos esse deslocamento citando uma passagem do livro de Labor-
de (2005, p. 91), na qual o autor, ao descrever uma pesquisa realizada sobre
Falso dilema? Subjetividade e objetividade na pesquisa improvisações cantadas na culturaBasca, recorre a Schutz (1987) para enfati-
zai a importância de deslocar a atenção da ação como ato efetuado (como ato
"em si"), para a ação como o ato de agir ou em curso, concluindo que "cada
um de nós faz a experiência'. Laborde situa, na pesquisa, os diversos atores e
Partimos do pressuposto de que toda pesquisa reflete a visão de mundo do suas subjetividades como foco central. Esse exemplo evidencia o deslocamen-
pesquisador, portanto expressa alguns valores e convicções ideológicas que to do foco das pesquisas qualitativas para o sujeito que interroga e investiga,
priorizam um olhar predominantemente objetivista ou subjetivista sobre o ressaltando, assim, seu caráter predominantemente subjetivo.
fenômeno estudado. Colocado esse pressuposto, algumas questões parecem Cabe ressaltar que não há objetividade sem certa dose de subjetividade
aflorar: em que medida os métodos "quantitativos" dão conta de um objeto e vice-versa, portanto a pesquisa dita qualitativa não pressupõe um alhea-
estético, como a música? Serão os métodos e a abordagem "qualitativa' mais mento da realidade nem a ausência de certa dose de objetividade. Por outro
adequados à pesquisa em música? Por que discutir sobre as possibilidades de lado, a pesquisa não pode ser totalmente objetiva, pois há, inevitavelmente,
abordagem "quantitativà' e "qualitativà' em música? alguma dose de subjetividade envolvida.
Ao analisarmos essas questões, consideramos, inicialmente, que as abor- Não é o objeto de pesquisa quem "define" o tipo de abordagem de pes-
dagens chamadas de qualitativas (subjetivistas) diferem essencialmente das quisa, e sim a visão do pesquisador e seus propósitos investigativos, em um
abordagens não qualitativas ou quantitativas (objetivistas), desde a formula- sentido mais amplo. Ou seja, os possíveis objetos de pesquisa não trazem,
ção das questões, portanto desde o início da pesquisa e, consequentemente, em si, uma "pré-moldagem", quanto ao enfoque de pesquisa que lhe seria
dos objetivos a que se propõe. "mais favorável". Ao contrário, é o olhir do pesquisador e a natureza das in-
Na verdade, conforme o pressuposto que assumimos no início deste ca- dagações que ele formula que direcionam a pesquisa.
pítulo, o enfoque de pesquisa a ser empregado antecede, de certa forma, o Por exemplo, uma situação de ensino de música pode ser avaliada ou ex-
início da investigação, pois reflete a visão de mundo do pesquisador, que es- plicada mais objetivamente"- parur de determinados parâmetros quantificá-
tá implícita nas questões que ele formula, nos objetivos e delimitações que veis (índice de rendimento, percentual de aceitação, índice de evasão etc.).
estabelece. Ou seja, em seu "nascedouro", a pesquisa já se perfila com uma Por outro lado, pode ser avaliada a p;m:ir da análise de aspectos não neces-
dessas abordagens, pois sua visão de mundo preexiste às questões da pesquisa, sariamente quantificáveis, como a visão dos alunos, a visão dos professores
mesmo que o pesquisador não tenha plena consciência disso. e as considerações do próprio pesquisador, colhidas por meio de observa-
- ~pesquisa "qualitativà', contudo, conforme já apontado anteriormente, ção qualitativa ou outros procedimentos metodológicos pertinentes (sobre
não é antagonista da pesquisa "quantitativà'. Elas se movem de forma dife- métodos de pesquisa e abordagem qualitativa, o capítulo seguinte se deterá
rente, têm perspectivas e objetivos de natureza diferente e, eventualmente, com mais detalhes). Os objetivos da pesquisa revelam o "perfil" da aborda-
a
uma abordagem pode contribuir para outra. Por que então a denominação gem a ser empregada (não sendo, portanto, uma decisão posterior ao início
"qualitativa'? Porque essa abordagem de pesqtiisiCprivilegia~(tnívelsubji::ti­ da pesquisa, mas subjacente às questões formuladas). ·
vo e, consequentemente, interpretativo da pesquisa, ao contrário de outras Um outro exemplo de abordagem objetivista (quantitativa), relativo à
abordagens que privilegiam maior objetividade, valorizando a explicação pesquisa na área de composição musical, consistiria na busca de caracterizar o
objetiva, a relação causa-efeito, a mensuração etc., em vez da interpretação. estilo de um conjunto de obras de um mesmo autor a partir da identificação
A abo~dagem qualitativa desloca o foco central da pesquisa do "objeto" pa- de aspectos objetivos, quantificáveis, como o percentual de incidência de de-
ra o "sujeito". terminados acordes ou de determinadas estruturas, ou até mesmo pelo aferi-

14 15
r

mento acústico de alguns aspectos das obras consideradas.. Qualitativamente, de considerá-las como polos opostos, convém reconhecer níveis de gradação
ou sob um enfoque subjetivista, o mesmo conjunto de obras poderia servisu- em cada uma dessas abordagens.
alizado a partir da recepção das mesmas pelo pesquisador ou por um conjunto Flick (2009) também aborda as diferentes linhas de abordagem meto-
de receptores (que podem ser intérpretes, compositores, regentes ou até mes- dológica em pesquisa, identificando-as como qualitativas ou quantitativas,
. mo indivíduos sem formação musical sistemática), buscando, a partir da per- embora também reconheça limitações nessa categorizaçáo. O autor observa
cepção dos diferentes sujeitos, desenhar um perfil estilístico das obras em ques- que há um crescimento recente das pesquisas qualitativas e relaciona esse in-
tão. Em ambos os casos, a análise deverá estar fundamentada teoricamente, e teresse crescente à pluralização atual das esferas de vida e às tendências epis-
suas diferenças estarão cunhadas desde o início pela visão de mundo do pes- .temológicas do pensamento pós-moderno.
quisador, pelas questões que ele formula e pelas respostas que pretende obter.
A mudança social acelerada e a consequente diversificação das esferas de vida fazem
As questões que deram início a essas pesquisas citadas como exemplos com que, cada vcr. mais, os pesquisadores sociàis enfrentem novos contextos e r.ers-
hipotéticos podem até se assemelhar, mas diferem essencialmente quanto ao pectivas sociais. Trata-se de situações tão novas pata eles que suas metodologias dedu-
nível de objetividade ou de subjetividade levados em conta. E é justamente tivas tradicionais- questões e hipóteses de pesquisa obtidas a partir de modelos teóri-
a intensidade maior ou menor desses aspectos que leva a pesquisa a ser clas- cos e estadas sobre evidê~cias empíricas -agora fracassam devido à diferenciação dos
objetos. Desta forma, a pesquisa está cada vcr.· mais obrigada a utilizar-se das estra-
sificada, muitas vezes, como "qualitativa'' ou "quantitativa'', em que pese o
tégias indutivas. Em vcr. de partir de teorias pàra testá-las, são necessários "conceitos·
reducionismo a que esses "rótulos" induzem. sensibilizantes" pata a abordagem dos contextos sociais a serem estudados. Contudo,
Ibarretxe in Diaz (2006, p. 24) descreve, com base em diferentes au- ao contrário do que vem sendo equivocadamente difundido, esses conceitos são essen-
tores, três paradigmas de pesquisa encontráveis no âmbito da pesquisa em cialmente influenciados por um conhecimento teórico anterior. No entanto, aqui, as
educação e em ciências sociais, mas q~e podem ser estendidos às demais su- teorias são desenvolvidas a pattir de estudos empíricos. O conhecimento e a prática
são estudados enquanto conhecimento e práticas locais (Geertz, 1983). (Flick, p. 21).
báreas de pesquisa sobre música. O autor também não envereda pela dicoto-
mia quantidade versus qualidade, buscando visualizar o tema por outro ân- Flick (p. 21) também analisa a pesquisa quantitativa e observa que os
gulo, a partir da definição de paradigmas de pensamento: princípios norteadores da pesquisa e do planejamento dessa linha de abor-
dagem em pesquisa são utilizados com as seguintes finalidades:
• Paradigma positivista, que envolve uma metodologia quantitativa e
que busca explicar, controlar, predizer os fenômenos, verificar teorias, des- o Isolar claramente causas e efeitos, buscando, ao máximo, controlar as con-
cobrir leis para regular os fenômenos. dições e as relações em que os fenômenos estudados ocorrem, a fim de melhor
• Paradigma interpretativo, cuja metodologia é qualitativa e que pro- classificá-los e garantir a clareza e a validade das relações causais identificadas.
cura compreender e interpretar a realidade, os significados atribuídos pelas • Operacionalizar adequadamente relações teóricas
pessoas, suas intenções e ações.
o Medir e quantificar fenômenos (por exemplo, classificando os fenô-
• Paradigma sociocrítico, com uma metodologia preferentemente qua- menos de acordo com sua frequência e distribuição)
litativa, que se propõei cientificar o potencial de mudança, emancipar sujei-
tos, analisar a realidade. · • Desenvolver planos de pesquisa que permitam a generalização. das
· descobertas e permitam formular leis gerais, o que implica em minimizar,
Ibarretxe aponta os enfoques predominam~ de investigação (quantita- tanto quanto possível, as influências do pesquisador, do entrevistador etc.,
tivo e qualitativo), como representantes das duas tradições de pesquis~ nas buscando garantir a objetividade do estudo (o que implica em desconside-
ciências sociais e humanas (a positivista e a imerpretativa). Ress:;~lta, co~ru­ rar, muitas vezes, grande parte das opiniões subjetivas, tanto do pesquisador
do, o perigo de que se considerem as duas metodologias como dicotomias quanto dos indivíduos submetidos ao estudo).
conceituais ou como enfoques totalmente opostos, observando que, em vez

16 17
Essas características descritas por Flick relacionam-se à realização de le- incessante entre qualidade e quantidade, a partir da aplicação de princípios
vantamentos e métodos quantitativos e padronizados (já que se busca, fre- como os de síntese de contrários e de movimento, que têm sempre em vista
quentemente, nessa linha de abordagem, identificar padrões de ocorrência, as possibilidades de transformação:
sua frequência e distribuição, por exemplo) e a um interesse especial em .· Essas considerações de Gamboa e Santos se aproximam das de Ibar-
aperfeiçoar os instrumentos de coleta de dados e de análise estatística dos retxe. Ou seja, não há como desconhecer que há um debate, no ambiente
mesmos. Divergem, portanto, das pesquisas eminentemente subjetivistas. científico, sobre os enfoques qualitativo e quantitativo, mas também não há
Observa-se, pela análise de Flick, que o tipo de interesse (e, portanto, de como desconhecer que a simples polarização entre esses enfoques é um tan-
questão de pesquisa) que conduz a urna abordagem objetivista é essencial- to simplista, deixando de lado aspectos importantes.
mente distinta dos interesses e questões que conduzem a urna abordagem De qualquer forma, os autores, em geral, reconhecem que o predomí-
predominantemente subjetivista, cujas respostas não dependem, necessaria- nio de características como subjetividade ou objetividade estão por trás dos
mente, de padronização ou de quantificação. enfoques qualitativos ou quantitativos, e que mais importantes que as possí-
Outros autores que abordam a temática da polarização entre pesquisa veis divergências entre abordagens técnicas seriam as diferenças epistemológi-
quantitativa e pesquisa qualitativa, como Santos Filho e Gamboa (2002), já cas encr-. ..:sses enfoques, pois c.orrc..::p~ndem a diferentes visões de mundo e de
citados, também enfatizam a implicação das visões de mundo implícitas ao propósitos de pesquisa. "'l.S questões ligadas à crítica e à transformação social
processo de pesquisa e acrescentam que apontariam um terceiro caminho, que é também marcado pela predominân-
[...]as opções de pesquisa não se limitam à escolha de técnicas ou métodos qualitativos cia do subjetivismo, e qne tem a transformação social entre suas prioridades.
ou quantitativos, desconhecendo suas implicações teóricas e epistemológicas. As op- O presente livro se identifica com o entendimento de que abordagens
ções são mais complexas e dizem respeito às formas de abordar o objeto, aos objetivos de pesquisa e procedimentos metodológicos predominantemente subjeti-
com relação a este, às maneiras de conceber o sujeito, aos interesses que comandam vos ou objetivos não são necessari~ente antagônicos, podendo trazer con-
o processo cognitivo, às visões de mundo implícitas nesses interesses, às estratégias de
tribuições mútuas, e que o debate sobre essas questões pode, para a área da
pesquisa, ao tipo de resultados esperados etc. (p. 9).
pesquisa em música, aportes instigantes e renovadores. Cabe ressaltar, con-
Quanto ao relacionamento· ou antagonismo entre essas principais ten- tudo, que os autores priorizam a abordagem subjetivista.
dências de pesquisa, Santos Filho e Gamboa identificam a existência de pelo
menos três posicionamentos no que tange à relação quantidade-qualidade:

1) os que argumentam a favor da incompatibilidade entre os paradigmas


científicos que estariam subjacentes aos enfoques quantitativo e qualitativo;
2) os que defendem a complementaridade entre esses enfoques (diver-
sidade complementar);
3) e os que defendem a tese da uniciadt:: pgss[y(!_l~rgre ~§(;:SpM_açligmas,
através de sínteses entre ambos. .
Os autores procuram substituir a análise dessa polarização entre quali-
dade e quantidade pela discussão epistemológica (relativa às teorias do co-
nhecimento envolvidas) e pela análise da possibilidade de identificação de
um terceiro posicionamento. Esse terceiro foco corresponderia ao das teorias
críticas, que, a partir de um substrato dialético, visualizam um movimento

18 19
Questões e sugestões aos pesquisadores iniciantes:
I Pesquisa em música e subjetividade:
bases filosóficas e pressupostbs
Sua questá~ de pesquisa parece indicar um caniinho subjetivista ou objetivista?
Por quê?
Procure identificar as ênfases "embutidas" em seus objetivos, para que você
possa, com clareza, condUzir seus caminhos de pesquisa: · ·· · · · ·As bases filósóficas da pesquisa qualitativa (subjetivista) encontram-se na
• Se há ênfase em identificar características e estabelecer relação de causa dialética e na fenomenologia, ambas implicadas com uma visão mais subje-
e efeito, como atributos "em si" da realidade, sua tendência está sendo tiva da realidade e com a relativização do conhecimento. Melhor seria falar-
o bj etivista. mos no plural, mencionando pesquisas qualitativas ou subjetivistas, já que
• Se, ao contrário, sua tendência mais forte é para interpretar os fenômenos
e não para identificar o que já "está lá'', a tend~ncia que se anuncia é '
It
há diferentes linhas de abordagem dentro desse enfoque (mais adiante, éssas
diferenças serão aprofundadas).
predominantemente subjetivista. Os pressupostos das pesquisas consideradas qualitativas diferem dos
pressupostos das pesquisas rotuladas como quantitativas, de cunho predo-
Ou seja, se a ênfase está em identificar algo já contido na realidade e que deve
minantemente objetivo, uma vez que a pesquisa qualitativa é, por natureza,
ser revelado pela pesquisa, a inclinação prevalecente é objetivista. Ao contrário,
predominantemente subjetiva, tal como já mencionado no capítulo anterior.
se a tendência é para encontrar respostas sobre os fenômenos, consideradas
Como também já foi observado, não se pode afirmar que uma pesqui-
como fi:utos da interpretação do sujeito que pesquisa, o que predomina é 0
subjetivismo. · · sa possa ser estritamente objetiva, ou estritamente subjetiva. O que ocorre
é que predomina uma dessas concepções, que termina por conferir um for-
te caráter à pesquisa. Os pressupostos assumidos pela pesquisa considerada
t qualitativa são de natureza predominantemente subjetiva, diferindo, assim,
I já nos pressupostos adotados, das pesquisas de cunho predominantemente
objetivista.
ff Alguns dos pressupostos que regem a pesquisa qualitativa dizem respei-
~I to ao conceito de realidade (e, consequentemente, da realidade que é inves-
i tigada), uma vez que a abordagem qualitativa considera a realidade como
'
I uma instância em interação dialética com o sujeito ou mesmo como resul-

I tante da percepção do sujeito e não como um fenômeno "em si".


Entre os demais pressupostos da pesquisa qualitativa, pode também ser
I citada a negação de possibilidade de neutr~lidade na pesquisa. A pesquisa é

I entendida como necessariamente ideológica, matizada pela subjetividade do


pesquisador. Ou seja, no lugar de o pesquisador buscar um distanciamento
do objeto que lhe permita analisá-lo com maior isenção, a abordagem qua-
r . litativa considera que não há possibilidade de isenção absoluta, e, por esse
f motivo, o importante é explicitar qual o ponto de vista que está sendo uti-
('' lizado. A abordagem qualitativa ou subjetivista não preconiza o afastamen-
.to do sujeito em relação a um objeto que seria externo a ele, como forma de
·t· ..
20
I\ 21
Apesar das possíveis trocas entre abordagens quantitativas e qualitativas, Métodos de pesquisa em música e subjetividade ·
é importante perceber que, do ponto de vista epistemológico, ou seja, da na-
tureza do conhecimento envolvido, as diferenças são significativas e mere-
cem ser explicitadas pelo pesquisador, para segurança maior dele mesmo, e
para melhor compreensão dos resultados da pesquisa, por aqueles que tive-
rem acesso a esse material. · Métodos de pesquisa são caminhos possíveis a serem trilhados para alcan-
_çar as respostas buscadas e os objetivos da pesquisa. Os métodos, descritos
de forma simples, são os meios, o "como" a pesquisa será desenvolvida, para
Questões e sugestões ao pesquisador inidante:
dar conta das perguntas formuladas.
A metodologia estuda esses métodos, analisa-os, mas não cabe a ela ser
• Você iden~ifica sua questão e seus objetivos de pesquisa com a abordagem prescritiva, pois a escolha dos métodos é decisão complexa qu~ comporta
qualitativa? Por quê? vários níveis e comporta inúmeras alternativas.
Freire e Cavazotti (2007) consideram que os métodos de pesquisa abran-
• Procure identificar, no capítulo que acabou de ler, pelo menos três aspectos
gem, segundo uma visão esquemática, três níveis de diferentes naturezas: um
que justifiquem entender sua pesquisa como subjetivista (se for este o seu caso).
nível operacional (ou técnico, segundo alguns autores), relativo à interação
• Se sua tendência é predominantemente objetivista, busque no capítulo que
direta do pesquisador com o objeto de pesquisa; um nível correlacionai, re-
acabou de ler três características que fundamentem essa tendência.
lativo ao estabelecimento de relações entre as informações levantadas no ní-
Ê importante ter unia consciência clara sobre a tendência filosófica vel operacional; e, finalmente, um nível filosófico e ideológico, subjacente a
predominante na pesquisa desde seu início, pois essa clareza facilitará todas as todos os procedimentos da pesquisa, desde a formulação de suas questões,
etapas posteriores, como adoção de métodos e de referencial teórico.
que confere o caráter à pesquisa, garantindo densidade e coerência à inves-
tigação e às conclusões obtidas. Esse esquema, certamente, implica em uma
visão reducionista, e seu propósito é simplesmente didático.
Essencial, porém, é que os métodos realmente sejam pertinentes às
questões formuladas (e, consequentemente,.·à·visão de mundo do pesquisa-
dor) e aos objetivos propostos, além de guardar relação de coerência com o
referencial teórico adotado, isto é, com os conceitos e teorias adotados como
base para a pesquisa. Dessa coerência interna, dependem, em grande parte,
a densidade e a confiabilidade das conclusões da pesquisa.
A densidade da pesquisa tem relação direta com a articulação coerente
entre objetivos propostos, métodos selecionados e referencial teórico adota-
do, isto é, com os conceitos e teorias que regerão a pesquisa principalmente
em sua fase interpretativa (o próximo capítulo se deterá em aprofundar al-
mas consideracões
l:> • sobre o "referencial teórico").
· Os métodos operacionais (procedimentos metodológicos) nem sempre
são específicos da abordagem subjetivista ou objetivista de pesquisa, mas a for-
ma de concebê-los e aplicá-los à pesquisa certamente é nitidamente diferen-
ciada. Alguns métodos operacionais e técnicas desenvolvidos pelas pesquisas

24
2.5
designadas como quantitativas têm sido apropriados pela pesquisa qualita- Observamos, assim, que além das perguntas que dão origem à pesqui-
tiva e ajustados aos seus propósitos. E vice-versa, ou seja, a pesquisa objeti- sa sinalizarem sua nátureza ideológica, os conceitos e teorias adotados co-
vista também tem relativizado alguns de seus princípios e procedimentos, mo referencial teórico devem ser coerentes com essa natureza, assim como
face aos questionamentos da abordagem qualitativa ou subjetivista. Observa- os métodos e técnicas deverão, também, ter uso pertinente. Conceitos como
mos, assim, que a pesquisa de origem positivista e de natureza objetivista (ou "tempo", "formà', "signifi<;:ado", "representação", "avaliação", "cotidiano",
quantitativa, como alguns a designam) tem recebido algumas permeações "contexto", "estruturà', "continuidade", "descontinuidade", "memórià', en-
das concepções subjetivistas (ou qualitativas), ao longo do século xx, embora tre outros,- podem ser tomados como integrantes do referencial teórico. A
o predomínio do enfoque objetivista e de seus pressupostos permaneça sub- concepção adotada será uma condicionante de toda a pesquisa, desde os ob-
jacente. Processo similar se deu com a abordagem subjetivista. jetivos aos métodos e às conclusões. Ou seja, tanto as teorias (explicações)
Muitas vezes, é possível partir de uma base quantitativa (objetiva) pa- como os conceitos que elas articulam são os fundamentos (referencial) que
ra construir uma interpretação qualitativa (subjetiva). Dados numéricos po- irão subsidiar a pesquisa, sendo que os métodos e técnicas adotados devem
dem servir a leituras subjetivas, embora, geralmente, as abordagens qualitati- ser coerentes com esse referencial.
vas deem preferência a outros métodos que não são voltados para resultados Podemos destacar, entre os métodos e técnicas mais usados pelas pes-
quantificáveis e que já têm embutida a perspectiva de subjetividade, como é quisas qualitativas, a observação (sobretudo a participante) e a comparação,
o caso das entrevistas quando realizadas segundo a perspectiva subjetivista. a entrevista, os questionários, a análise qualitativa, a descrição emográfica,
Tão importante, contudo, quanto a configuração dos métodos e téc- sempre utilizados e manipulados de forma adequada à natureza da pesquisa.
nicas empregados é o caráter originário da pesquisa. A natureza da questão O simples fato de colher depoimentos, através de entrevistas, por exemplo,
formulada já aponta a tendência do pesquisador, tendência essa que, inevi- não é suficiente para que-a pesquisa seja considerada subjetivista, pois essa
tavelmente, percorrerá todo o processo de pesquisa e estará subjacente aos característica está relacionada a ouqos fatores. Ou seja, além do referencial
métodos, à interpretação dos dados e às conclusões formuladas. teórico, a forma como são concebidos e utilizados os procedimentos de pes-
Por exemplo, diante da obra de um determinado compositor, pode-se quisa é que a identificam como subjetivista ou objetivista.
interrogar sobre as reais intenções dele, o que indica um pressuposto, cons- Flick (2009, p. 29, 30, 31 e 32) identifica três perspectivas principais,
ciente ou não, de que há uma verdade "em si" contida na obra em questão, no que se refere às tendências das pesquisas qualitativas, e identifica alguns
definida pelo compositor no ato da criação, e que cabe ao pesquisador reve- métodos como mais relacionados a cada uma delas:
lá-la, configurando, assim, uma abordagem objetJvista da obra.
Outro pesquisador pode, diante da mesma obra, interrogar sobre dife- 1) Uma primeira perspectiva valoriza a abordagem dos pontos de vista
rentc=:s concepções dessa obra, segundo diferentes receptores (um deles po- subjetivos e tem forte ligação com a fenomenologia, adotando como princi-
de ser o próprio pesquisador) ou ainda segundo diferentes intérpretes (que pais métodos as entrevistas semiestruturadas e as entrevistas narrativas.
são, também, receptores da obra). Neste caso, não há o pressuposto de um 2) Uma segunda perspectiva valoriza a descrição e produção de situa-
significado único e definitivo atribuído à obra pelo compositor, nem o pro- ções sociais, tendo como principais abordagens metodológicas os grupos fo-
pósito de revelar uma "verdade" ali contida, e-siiri~õpressuposfó-"de que a cais, a emografia, -a observação participante, a gravação de interações e a co-
obra de arte é sempre aberta a diferentes percepções e significados, confor- leta de documentos.
me o sujeito que a recebe, uma vez que ele é um sujeito condicionado social
3) A terceira perspectiva é a da análise hermenêutica [interessada em des-
e historicamente. Ou seja, há um pressuposto subjacente referente à pos-
vendar significados] das estruturas subjacentes e utiliza, principalmente, a grava-
sibilidade permanente de atualização da percepção e dos significados atri- ção de interação, a fotografia e o registro em filmes como métodos de estudo.
buídos à obra.

26 27
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Certamente, iremos encontrar, como já comentado, métodos e técnicas I) OBSERVAÇÃO
similares aos que foram citados até este momento em pesquisas de outro teor
(como as quantitativas/objetivistas), mas sua formulação, aplicação e fina- Observar não é um ato neutro, ou seja, podemos conduzir a observação
lidades serão essencialmente diferentes. Assim, cabe destacar que essa clas- de diversas formas e chegar a diferentes conclusões, conforme o olhar (ou en-
sificação que Flick apresenta não é totalmente "fechada'', pois os métodos foque) utilizado. Enquanto a pesquisa quantitativa observa com propósitos
priorizados por uma perspectiva de pesquisa podem ser utilizados por outra, pré-definidos e analisa o material recolhido com métodos e objetivos coeren-
ainda que de maneira diversa e com propósitos diversos.
André (1995) destaca três tipos de pesquisa que aparecem associados
lo~•~ • tes com seus pressupostos, a pesquisa qualitativa privilegia abordagens mais
abertas e flexíveis, como a da observação participante e da descrição etna-
à abordagem qualitativa, ou seja, os métodos empregados nessas pesqui- I gráfica e privilegia a interpretação do fenômeno, sem procurar chegar a con-
sas partem de pressupostos abordados no capítulo anterior, tais como os da
não-neutralidade e da não-separação sujeito-objeto, pressupostos esses que I clusões "verdadeiras", mesmo que leve em conta informações objetivas ou
quantitativas sobre ele.
estarão subjacentes aos procedimentos metodológicos, assim como ao refe:- A característica esse11cial da observação na pesquisa qualitativa é que ela
f
rencial teórico e a todo o processo da pesquisa. São os seguintes os tipos de ! não busca ser uma observação neutra nem gerar uma descrição neutra. Ao con-

I
pesquisa destacados por André: trário, ela assume que toda observação é necessariamente subjetiva e impreg-
nada da ideologia subjacente ao pesquisador e dos demais indivíduos envolvi-
1) pesquisas do tipo etnográfico, cuja ênfase estaria, de modo geral, nades-
' dos no estudo, portanto não busca um distanciamento no qual não acredita.
c~ção de práticas, hábitos, crenças, valores, significados etc., de um grupo so-
ctal, tendo a observação participante como um dos métodos predominantes.
2) estudo de caso, também muito ligado à pesquisa etnográfica, uma
I Flick (2009) identifica cinco dimensões nas quais procura classificar os
procedimentos observacionais por meio de pares de opostos: .
1) observação secreta x observação participante (relativas ao grau de co-
vez que aplica a abordagem etnográfica ao estudo de um caso (cabe lembrar
nhecimento que os indivíduos têm do processo de observação)
que nem todo estudo de caso utiliza a abordagem etnográfica e, portanto,
nem todos se. encaixam nesta descrição). 2) observação não-participante x observação participante (relativas ao
3) pesquisa-ação, voltada principalmente para, a partir da coleta e análi-
[ grau de envolvimento e participação que os indivíduos têm no processo de
se de dados e do diagrtóstico de problemas, planejar ações para sua superação.
I observação)
3) observação sistemática x observação não sistemática (relativas ao me-
Nos três casos destacados por André, os procedimentos metodológi-
cos, assim como as questões que originam as pesquisas, relacionam-se dire- nor ou maior grau de padronização ou de flexibilização empregados)
tamente aos pressupostos e fundamentos metodológicos mencionados nos 4) observação em situações p.aturais x observação em situações artificiais
capítulos iniciais deste livro. (conforme sejam realizadas no campo de interesse ou deslocadas para um lo-
Quanto aos métodos empregados, podemos dizer que os procedimen- cal especial, como um laboratório)
tos básicos de qualquer pesquisa são observação e comparação e estarão pre-
. 5) auto-observação x observação direcionada a outros (conforme a ob-
sentes, explicitamente ou não, em pesquisas quantitativas ou· qualitativas
. servaçáo se dirija reflexivamente à experiência do próprio pesquisador ou à
(Freire & Cavazzoti, 2007). Outros métodos ou técnicas, como a experi-
. de terceiros)
mentação ou a análise estatística, por exemplo, são mais afeitos às pesquisas
quantitativas, enquanto a descrição etnográfica ou a análise fenomenológica A observação participante, como o próprio nome indica, imerge o pesqui-
estão no âmbito das pesquisas qualitativas. Passaremos, a seguir, a api:esen:.. sador no fenômeno observado, intrincando-os a ponto de não estabelecer dife-
tar alguns aspectos básicos referentes a alguns métodos mais usuais nas pes- rença .entre sujeito e objeto. Neste caso, além do pesquisador, os indivíduos que
quisas em música, na perspectiva da pesquisa subjetivista. integram o fenômeno têm participação ativa na pesquisa, não sendo consi-

28 29
derados apenas "objetos", pois têm participação garantida desde a proposi- ao ·contrário do que muitos pensam, que pesquisa participante se resolve rapidamente
ção de objetivos até a formulação de conclusões e suas aplicações. no ativismo, rio deprezo pela reoria,.na excitação política da comunidade, sua efetiva-
ção qualirariv.J. (fcrmal e política) exige:
A observação qualitativa, tal como qualquer outra observação, gera uma
descrição, mas, por ser qualitativa, não dispensa o atendimento de alguns a) realização perceptível do fenômeno parcicipativo; sem organização comunitária, a
preceitos. Joel (2002, p. 58) apresenta algumas características da observação li&~·. não sai autodiagnóstic.1;
e da descrição qualitativas, das quais destacamos: b) produção de conhecimento, também a parór da prática, evitando-se simples ativismo;

I) nas pesquisas qualitativas, os dados são coletados através da descri- c) equiliôrio entre forma e conteúdo; não há por que desprezar levantamentos empíri-
ção feita pelos sujeitos (inclusive o próprio pesquisador), ou seja, a descrição cos, construções ciem.,::cas lógicas, como não há sentido em submerer a prática ao mé-
qualitativa não se fundamenta em idealizações, imaginações, desejos nem é todo, tornando este um fun em si mesmo;
um trabalho que se realiza na subestrutura dos objetos descritos; d) decisão política do pesquisador de correr o risco da identificação ideológica com a co-
munidade, para não desaparecer da cena na primeira baralha, abandonando-a à sua
2) a descrição qualitativa é feita com precisão conceitual rigorosa, mas
própria sorte, o que seria, de novo, fuzê-la de cobaia;
não cabe insistir em procedimentos sistemáticos que possam ser previstos,
ou mesmo em passos gradativos para uma generalização; e) ao lado da competência formal acadêmica, é fundamental experiência em desenvol-
vimento comunitário - teoria e prática.
3) as análises qualitativas podem gerar teorizações, mas a teorização de-
dutiva está excluída das análises qualitativas (uma vez que a dedução está in- Além disso, o autor alerta para o fato de que é imprescindível o acesso
timamente ligada à pretensão de generalização). do grupo estudado às informações colhidas, bem como a preocupação com
As pesquisas ligadas ao cotidiano, em educação, têm se valido muitas ve- coerência entre teoria e prática e com a contribuição para a transformação
da realidade. · · . .
zes do modelo etnográfico, utilizando técnicas de inspiração antropológica,
tais como a observação participante e a entrevista não estruturada (André, Assim, Demo resume as principais características do processo de realiza-
2002, p. 37). Essas técnicas, nas pesquisas de inspiração etnográfica, além de ção da pesquisa participante nos seguintes momentos (1989, p. 237):
visarem à descrição subjetiva do fenômeno observado, valorizam as experiên- • Autodiagnóstico, entendido como a confluência entre o saber cientí:fi-
cias e vivências dos indivíduos e grupos que participam do cotidiano escolar co e o saber popular, ou seja, o conhecimento científico é fundamental, mas
e o constroem. A descrição etnográfica se alinha com a pesquisa participan- instrumental e somente se torna útil à comunidade se for digerido por ela co-
te, uma vez que imerge o pesquisador no fenômeno estudado, diluindo a se- mo autodiagnóstico; ideia.S podem vir de fora, desde que se tornem "de den-
paração sujeito-objeto. De qualquer forma, tanto a observação participante tro", ou seja, que sejam compartilhadas e aceitas pelá grupo etc. O autodiag-
quanto a descrição etnográfica e as entrevistas aplicadas às pesquisas qualita- nóstico chega à cidadania estando, então, a ciência a serviço da emancipação.
tivas implicam no desenvolvimento de procedimentos de observação.
• Construção de estratégias de enfrentamento prático;
Demo (1989) aponta algumas características que seriam essenciais às
pesquisas participantes. Cabe diferençar uma pesquisa totalmente inserida o Necessidade de organização política da comunidade, como meio e :fim;
no formato "participante" daquelas que se apropriam de alguns aspectos ou Alguns exemplos interessantes de interação do pesquisador com os ato-
estratégias dessa modalidade de pesquisa, tais como a entrevista aberta ou a res do fenômeno observado podem ser colhidos na área de educação musi-
observação participante, que podem ser utilizadas, também, em certa medi- cal, que vem apresentando, em muitos casos, uma tendência a ampliar suas
da, em pesquisas objetivistas. fontes de informação, fucluindo depoimentos de pais, coordenadores, alu-
Segundo Demo, a pesquisa participante coloca um duplo desafio: pes- nos e professores, entre outros. Esses diferentes depoimentos permitem uma
quisar e participar (1989, p. 240): ' aproximação de realidades específicas, nas quais eles se inserem e permitem

30 31
que se estabeleçam relações com outras realidades. Não há, contudo, a preo- A observação, nas pesquisas qualitativas, mesmo sendo conduzida com
cupação em generalizá-los ou em atingir uma "verdade" única, característica flexibilidade e não sendo necessariamente totalmente pré-definida, não dis-
esta que é própria da pesquisa subjetivista. Observamos, contudo, que nem pensa cuidados metodológicos, tais como a efetivação de registros cuidado-
sempre essas pesquisas adotam integralmente o modelo das pesquisas parti- sos e sistemáticos (escritos, sonoros, visuais ou outros) e a elaboração cons-
cipantes, mas se valem de a).gumas de suas estratégias. tante de um caderno de campo. Cuidados com os registros das observações
Bressler (2006, p. 60), analisando os paradigmas qualitativos na inves- são importantes para garantir a confiabilidade dos dados levantados e das
tigação em educação musical, observa que o conceito de investigação qua- interpretações e conclusões que serão obtidas.
litativa pode ser utilizado como um termo geral para se referir a diversas
estratégias (métodos) de investigação que compartilham as seguintes carac- II) COMPARAÇÃO
terísticas:
1) a descrição contextual de pessoas e eventos;
l Comparar implica em procurar estabelecer algum tipo de paralelo en-

2) a ênfase na interpretação tanto de questões êmicas (aquelas dos par-


I tre características observadas. A comparação se relaciona, necessariamente, a
procedimentos preliminares de observação. "De certa forma, todos os atos de
ticipantes) como de questões éticas (aquelas do investigador); observação e descrição contêm, implicitamente, aspectos comparativos, pois
3) a validação de informação através da triangulação. à própria descrição muitas vezes está subjacente um parâmetro ou referencial
I que baliza as observações realizadas." (Freire & Cavazotti, 2007, p. 28-29)
A triangulação é uma técnica metodológica que visa a ampliar o leque
Comparação é um procedimento de pesquisa que também pode ser uti-
de informações (dados), colocando informações provenientes de diferen-
lizado com finalidades objetivistas. Sua aplicação às pesquisas de caráter sub-
tes fontes em interação, na interpretaÇão realizada pela pesquisa. Diferentes
fontes de informação (sujeitos internos ou externos ao processo, documen-
tos escritos etc.) propiciam diferentes ângulos de visão e, portanto, favore-
I jetivista (qualitativa), conforme já comentado, é feita com procedimentos e
finalidades diversas; não pretende levar à identificação de características mo-
delares ou generalizáveis, nem pretende servir necessariamente à identificação
cem o aprofundamento e o enriquecimento das conclusões de pesquisa, o
de relações de causa e efeito. O propósito do emprego de procedimentos de
que torna a triangulaÇão uma estratégia metodológica interessante para as
comparação nessas pesquisas é o de aprofundar a compreensão a respeito de
abordagens qualitativas em especial.
diferentes ângulos de um mesmo fenômeno, ou seja, de melhor compreender
A área de etnomusicologia tem valorizado a observação parricipante,
as nuances ou diferenças, sem pretender hierarquizá-las.
uma vez que a proximidade dessa área com as concepções e métodos da an-
Assim, diferentes visões de mundo, diferentes pontos de vista ou de es-
tropologia não conduz à necessidade de buscar uma separação nítida en-
cuta, diferentes percepções ou recepções, entre outros aspectos, podem ser
tre sujeito e objeto, sendo até mesmo desejável que tal separação seja diluí-
aprofundados através da comparação entre diferentes informações obtidas
da ou minimizada. De qualquer forma, a observação, desde que realizada
por observação (incluindo-se, aqui, a observação feita por meio de entrevis-
com a devida adequação, é um dos métodos básicos das pesquisas subjeti-
tas e questionários). Comparar, por exemplo, diferentes formas de notação
vistas em geral.
musical ou diferentes versões de uma mesma obra pode propiciar a compreen-
Em geral, essas abordagens [observação e etnografia] enfatizam o fàto de que as práticas .· · são de muitos aspectos de diferentes natureza, tais como características epis-
apenas podem ser acessadas por meio da observaçáo, uma vra. que as entrevistas e as temológicas, estéticas ou socioculturais da época, entre outras.
narrativas somente tornam acessíveis os relatos das práticas e náo as próprias práticas.
A alegaçáo que normalmente é feita é que a observaçáo permite ao pesquisador descp- É importante ressaltar que a comparaçáo, como método de pesquisa, náo impõe jul-
brir como algo efetivamente funciona ou ocorre. Em comparaçáo com essa alegaçáo, gamentos ou critérios de valor a partir dos procedimentos comparativos realizados. As
as apresentações em entrevistas compreendem uma mistura de como· algo é e de como pesquisas de cunho subjetivista [...] utilizam frequentemente os procedimentos com-
deveria ser, a qual ainda precisa ser desvendada. (Flick, 2009; p. 203).

32 33
parativos sem, com isso, pretender atingir generalizações ou categorias absolutas de Passamos, a seguir, a comentar alguns procedimentos metodológicos
valor. (Freire & Cavazotti, 2007, p. 30). aplicáveis às pesquisaS qualitativas ou subjetivistas, todos eles envolvendo,
.A experimentação, método de particular interesse· de pesquisas objeti- em alguma medida, os dois métodos básicos comentados, ou seja, observa-
vistas, também pressupõe procedimentos de comparação, mas seus propósi- ção· e comparação.
tos são, obviamente, diferentes daqueles aplicados às pesquisa subjetivistas. A
I) Questionários e entrevistas
experimentação busca manipular algumas variáveis durante a pesquisa, a fim
de obter algumas conclusões objetivas sobre o fenômeno observado, ou se- Os quéstionários são ferramentas de pesquisa que envolvem questões
ja, o objeto de pesquisa é controlado a.rtificialmente, em uma situação expe- a serem respondidas por informantes ou depoentes. As questões devem ter
rimental (criada a.rtificialmente), pretendendo obter maior fidedignidade e correlação adequada com os objetivos da pesquisa, de forma que efetiva-
confiabilidade nos resultados obtidos. A preocupação em estabelecer relações mente contribuam para que eles sejam atingidos.
de causa/efeito é um forte componente da pesquisa experimental, divergindo, As entrevistas são procedimentos metodológicos muito semelhantes aos
portanto, das preocupações principais das pesquisas subjetivistas/ qualitativas. questionários, diferindo deles, essencialmente, por fornecerem dados orais
A análise musical, que será comentada em um dos itens a seguir, tam- (que, conforme o caso, são necessários ou até mesmo preferíveis). Há, tam-
bém envolve procedimentos de comparação (envolvendo aspectos intrínse- bém, a possibilidade de aplicar face a face um questionário escrito, abrindo
cos, à obra ou às obras analisada(s), ou extrínsecos a elas). O mesmo se dá possibilidade de prestar esclarecimentos ao depoente sobre eventuais dúvidas.
com questionários e entrevistas, assim como com as des~rições etnográficas, Da mesma: forma que os questionários, as entrevistas, nas pesquisas sub-
q~e tam.bém têm como procedimentos básicos a observação e a compara- jetivistas ou qualitativas, tendem ao formato aberto ou semiaberto, ou seja, o
çao. Mats uma vez, cabe lembrar que a comparação realizada através dessas direcionamento das perguntas não deve apontar para um determinado tipo
abordagens metodológicas, em pesquisas de caráter subjetivista, não visa à de resposta, mas pressupor abertura para o inesperado. As categorias em que
identificação de modelos, padrões ou mesmo ao reconhecimento de carac- as respostas serão organizadas e interpretadas serão decorrentes da interação
terísticas pré-definidas. No âmbito da análise musical, a análise fenomeno- do pesquisador com os entrevistados e com o teor das respostas, isto é, não
lógica é uma das mais representativas da tendência subjetivista. são definidas a priori, já que há abertura para respostas não previstas.
A comparação, assim como a observacão, necessita de cuidados meto- Os questionários· são particularmente úteis quando se deseja colher in-
dol?gicos. É preciso que o pesquisador se ~segure de que está comparando formações de um número maior de indivíduos, o que torna o contato mais
fenomenos ou aspectos passíveis de comparação. Um exemplo dado por Le- pessoal, como o da entrevista, pouco viável.
pherd (1992) de dificuldades de comparação no âmbito da Educação Musi- Conforme já mencionado, nas pesquisas de caráter subjetivista, os ques-
cal diz respeito à comparação entre diferentes sistemas nacionais de educa- tionários costumam ser abertos ou semiabertos, ou seja, não há interesse em
ção musical, tendo em vista as peculiaridades culturais. pré-direcionar as respostas, mas em garantir ao depoente espaço para respos-
Em resumo, podemos destacar que a comparação, na pesquisa qualitati- tas não previstas, o que contribui para enriquecer ou aprofundar o conheci-
va, não parte necessariamente da quantificação e nem tem por objetivo hie- mento sobre o fenômeno estudado, possibilitando novas interpretações.
rarquizar categorias ou desqualificar informaÇões pelo collfiontoco.ffi
outras. Como exemplo de pergunta não pré-direcionada, podemos, no estudo
Ao contrário, na pesquisa de caráter subjetivista, toda contradição é acolhida de uma determinada prática m}lsical, indagar de cada. um dos intérpretes
como válida e é incluída na interpretação, contribuindo para 0 aprofunda- quais aspectos dessa prática ele considera mais relevantes, em vez de pergun-
mento da análise. De qualquer forma, critérios metodológicos e referenciais tar, por exemplo, qual a importância da condução harmônica no processo.

teóricos coerentes estarão presentes, de forma a garantir a confiabilidade (e No primeiro caso, abre-se espaço para que os músicos apontem, segundo sua
não a veracidade em termos absolutos) das interpretações e conclusões. percepção, quais são os aspectos que eles consideram realmente importantes

34 35
(a harmonia, que pode parecer prioritária para o pesquisadur, pode nem ser minam por ganhar destaque na pesquisa. A comparação dos resultados obti-
citada), podendo-se caracterizar diverg~ncias dentro do grupo, c•lt:::l:: seus dos através de questionários e entreV-istas com o levantamento de outras in-
elementos, ou caracterizar divergências em relação à expectativa do próprio formações seguirá, em linhas gerais, nas pesquisas qualitativas, os cuidados
pesquisador. Em ambos os casos, as divergências enriquecem a pesquisa, ao apontados no item referente aos procedimentos de comparação neste capítulo.
em vez de comprometê-la.
Quanto a alguns cuidados básicos na formulação de questionários, se- 2) Descrições do tipo etnográfico
jam eles destinados a aplicação direta (face a face) ou indireta, podemos des- ·· AdesciiÇãô'etriográfica, oriunda da antropologia, tornou-se, a partir de
tacar, entre outros, os seguintes: adaptações, um dos procedimentos descritivos mais caros à pesquisa subjeti-
1) definir com clareza os objetivos do questionário, que devem se repor- vista em geral, mesmo àquela não ligada à área antropológica (por esse mo-
tar claramente aos objetivos da pesquisa; tivo, concordamos com André (2002) quando prefere denominar esse p~o­
cedimento de estudo do tipo etnográfico e não de etnografiastríctu semo).
2) formular perguntas claras, que contribuam realmente para responder De qualquer formà, os estudos do tipo etnográfico pressupõem a total
às questões da pesquisa, evitando perguntas desnecessárias; imersão do pesquisador no fenômeno, diluindo a separação sujeito-objeto.
3) definir o(s) respondente(s) com pertinência aos objetivos, pois não Os diferentes sujeitos envolvidos no processo são também sujeitos da pes-
adianta entrevistar sujeitos sem ter clara a relação possível entre seus depoi- quisa, uma vez que são usadas técnicas de tradicional uso da etnografia, tal
mentos e os objetivos da pesquisa; como a observação participante, que implica na participação ativa de todos
os atores do processo no desenvolvimento da pesquisa. A observação é con-
4) definir com critérios adequados o número de depoentes a serem ou-
siderada participante na medida em que se estabelece um grau intenso de
vidos, evitando desgaste desnecessário com quantidade inadequada de in-
interação do pesquisador com a situação em estudo, fazendo que ele seja afe-
formantes. As pesquisas exploratórias recorrem, por vezes, a um grande
tado por ela, e vice-versa.
número inicial de informantes (survey), e se de5tinam, geralmente, a uma
Outros procedimentos metodológicos que costumam ser associados aos
análise quantitativa, embora esta análise preliminar possa servir a interpre-
estudos do tipo etnográfico são a entrevista e a análise documental. Tanto as
tações qualitativas em etapas posteriores da pesquisa.
entrevistas quanto a análise de documentos contribuem, de diferentes for-
Quando as questões se destinam a um procedimento metodológico na mas, para aprofUndar o conhecimento sobre o fenômeno estudado, trazen-
forma de entrevista, as perguntas não são, nas pesquisas subjetivistas, neces- do possibilidades interpretativas mais densas, sobretudo no que concerne
sariamente formuladas com antecedência. O pesquisador pode se valer de ao(s) significado(s) pertinente(s) ao fenômeno em questão. Em ambos os ca-
um roteiro, com os tópicos que pretende atender com a entrevista, mas con- sos, a abordagem subjetivista se faz presente através de procedimentos flexí-
duzi-la de forma mais flexível, abordando os tópicos pretendidos (ou outros veis do não estabelecimento de separação entre sujeito e objeto, da relativi-
não previstos) no decorrer da entrevista, seguindo mais o fluxo do pensamen- . zação dos conceitos e conclusões. Mesmo um documento escrito, no âmbito
to do depoente. Esse formato corresponde ao que se costuma designar como da pesquisa subjetivista, é analisado sob um olhar relativista, sendo conside-
"entrevista abertá' ou "em profUndidade" (utiliza basicamente-um roteiro) .rado uma versão ou um determinado entendimento sobre o fenômeno, não
ou "semiestruturada" (quando associa perguntas abertas e fechadas) confor- necessariamente generalizável.
me o grau de delimitação .prévia estabelecido. A importância do pesquisador, nos estudos do tipo etnográfico, faz-se
De qualquer forma, nas pesquisas subjetivistas, a pretensão não é a de ge- presente na medida em que ele atua como mediador na coleta de dados e na
rar, necessariamente, dados quantificáveis a partir dos questionários e das en- interpretação dos mesmos. Em virtude dos pressupostos metodológicos que
trevistas, mas a de obter um aprofUndamento na compreensão .do fenômeno, subsidiam toda pesquisa qualitativa ou subjetivista, a flexibilidade metodoló-
com abertura garantida para informações inesperadas, que, muitas vezes, ter- . gica (que não significa falta de rigor científico) se faz presente nesses estudos,

36 37
permitindo a inclusão de novos sujeitos, a revisão das questões e dos proce- significa, contudo, que "qualquer coisa'' possa ser percebida, pois há, neces-
dimentos metodológicos adotados, a ênfase no processo como um. todo, a sariamente, Ulha relação de pertinência e de coerência entre o que é percebido
ampliação ou revisão do referencial teórico face aos dados coletados. e a concepção originária do autor).
O trabalho de campo é, portanto, um aspecto importante dos estu- .A experiência musical, considerada o ponto de partida essencial à des-
dos etnográficos, pois permite a aproximação e imersão do pesquisador nos crição fenomenológica, tem a "atualização da experiência'' como concepção
eventos e nos locais relativos ao fenômeno estudado, favorecendo sua apro- essencial, pois considera a forma musical como permanentemente passível
ximação com as pessoas através de contato direto. Os registros cuidadosos, de novas percepções e, portanto de novos entendimentos de sua estrutura e
tal como comentados no item referente à observação, e os cuidados meto- de novas significações por parte do receptor. As abordagens subjetivistas de
dológicos e teóricos, abordados no item referente à comparação, são funda- análise musical envolvem, necessariamente, uma base conceitual coerente
mentais para assegurar a qualidade dos dados levantados. com o enfoque subjetivista adotado.
A interpretação desses dados e a busca de formular conceitos ou teorias são Assim, conceitos como forma, gênero musical, tempo musical e ou-
algumas das possibilidades resultantes dos estudos etnográficos, não havendo tros são passíveis de diferentes definições e significados, conforme o enfo-
pretensão ou interesse em testar teorias, em identificar modelos ou padrões ge- que teórico-metodológico adotado, sobretudo conforme o enfoque assu-
neralizáveis ou em estabelecer, necessariamente, relações de causa e efeito. mido quanto à relação sujeito/objeto. Forma, por exemplo, na perspectiva
fenomenológica, é entendida como estrutura (nesse aspecto, aproxima-se da
3) Análise musical abordagem formalista), mas não como estrutura fixa, restrita à concepção
A análise musical é uma ferramenta metodológica que, conforme a con- do compositor. Diferentes mediações são reconhecidas, como a dos edito-
cepção de pesquisa adotada, aponta para questões de natureza objetiva ou res, intérpretes e receptoreS, em geral, de maneira que o entendimento so-
subjetiva. Analisar abrange, necessariamente, observar e comparar, pois o bre forma pode advir de diferentes e?cutas, podendo ser a forma percebida
pesquisador, no processo de análise musical, ao identificar e descrever as:- e descrita com ênfase em diferentes aspectos, tais como textura ou timbre (e
pectos da música analisada, necessita observá-los e compará-los, não só no não, necessariamente, pelo contorno fraseológico).
âmbito da própria obra focalizada, mas até mesmo em relação a elemen- Freire e Cavazotti (2007), descrevem a abordagem analítica, em bases
tos externos. Há, conforme a ótica de pesquisa adotada, diversas abordagens fenomenológicas, tal como vem sendo aplicada pela Professora Vanda Frei-
analíticas a adotar, como a formalista, a shenkeriana, a semiótica, a fenome- re, junto a seu grupo de pesquisa, na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
nológica, entre outras, mas nem todas elas se adaptam à pesquisa qualitativa. com base, principalmente, nos trabalhos de Clifton (1983) e Ferrara (1984).
A análise formalista (ou morfológica) que Ferrara (1982) analisa e com- Trata-se apenas de uma possibilidade de aplicação dos princípios da fenome-
par:! à abordagem fenomenológica, busca, segundo esse autor, dissecar a nologia à análise musical, e não de uma tentativa de criar ..Um modelo "fe-
obra, em busca de revelar estruturas formais que espelham a concepção que chado". Essa proposta pode ser resumida nos seguintes t-ópicos principais:
o compositor teria, em uma visão mais estática ou cristalizada da forma, e, 1. O ponto de partida é a experiência musical, seja através da ·interpretação ou da au-
portanto mais relacionável às pesquisas de caráter objetivista. Assim também dição (de outro intérprete, ao vivo ou gravada). A partir dessa esCuta inicial, começa-se
ocorre com as análises shenkeriana e semiótica que, de algtlti:la fórma, bus- a aprofundar a experiência com novas escuras, a partir das quais começam a emergir,
cam identificar estruturas modelares subjacentes à música. segundo a percepção do ouvinte, os elementos principais que irão conduzir à descri-
A análise fenomenológica, ao contrário, segundo uma visão subjetivista, ção da forma, analisada através da experiência musical.
procura entender e descrever a forma musical (macro ou micro) a partir da 2. Critérios como pertinência e coerência são fundamentais para que, apesar de sub-
interação da experiência significativa do sujeito com a experiência de criação jetiva, a análise não se transforme em comentários aleatórios ou desconexos. Tam-
do autor. Ou seja, do encontro dessas duas percepções e concepções surge, bém não envolve a atribuição de imagens evocadas pelo analista durante a experiên-
cia musical.
então, um entendimento de forma que não é uno nem definitivo (o que não

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3. As escuras podem ser complementadas, nesta proposta, pela consulta à partirura, terpretadas pelo pesquisador, com base no referencial teórico adotado ou,
desde que a experiência musical, mais ampla, não seja substituÍda pela visualidade.
conforme os dados se revelem, novos referenciais podem ser requisitados.
4. Como a análise musical não é atividade leiga, conceitos cunhados pela área de mú- Percebe-se, assim, que nas pesquisas qualitativas/subjetivistas a inter-
sica podem ser aplicados, com pertinência e coerência, desde que não sejam tomados, pretação de documentos não parte de referenciais necc:ssariamente pré-defi-
aprioristi=ente, como os parâmetros que devem conduzir a análise. Essa escolha deve, nidos nem de categorias de análise pré-determinadas. E na interação do pes-
necessariamente, derivar da experiência muSical.
quisador com o conteúdo dos documentos que esse quadro se torna mais
5. A interpretação dos significados, necessariamente c. :tdicionada pela experiência do claro, podendo suscitar novas necessidades teóricas.
analista e pela experiência do artista criador da obra, segundo suas bagagens culturais, Uma estratégia metodológica que é frequentemente utilizada na inter-
vai se entrelaçando gradativamente com a "visuailzação" das estrururas musicais, ma-
pretação de documentos é a análise de conteúdo, que tanto pode ser utili-
cro ou micro.
zada nas investigações quantitativas quanto nas qualitativas, com dife~entes
6. Elementos como textura, timbre, temfo, dinãmica, delineamento de unh..s (meló- nuances e diferentes aplicações, podendo abranger diversas formas de ·co-
dicas ou não), ambientações harmônicas, entre outros, podem ser mais ou inenos va- municação, inclusive órais.
lorizados no processo de descrição da experiência. A form1 pode ser "desenhada'' pela
A aplicação da análise de conteúdo abrange, em linhas gerais, três eta-
texrura, pela fraseologia ou por qualquer outro elemento que sobressaia à percepção.
pas, sendo a primeira a de preparação ou pré-análise, a segunda a de descri-
7. Caso a música tenha finalidade cênica ou contenha letra, esses aspectos são trazidos ção analítica das informações e a terceira a de interpretação, que é feita, so-
também à tona, e entrelaçados com os demais. bretudo, com apoio no referencial teórico. Essa interpretação pode suscitar,
8. O final é necessariamente provisório, pois novas escutas levarão, sempre, a percepções nas pesquisas qualitativas, novos recursos teóricos, em decorrência da inte-
mais profundas ou ampliadas, em um processo de "escavações arqueológicas" sucessi- ração do pesquisador com os dados. Bardin (1979) é urna das principais re-
vas, segundo denominação utilizada por scHUTz (1976). (Freire & Cavazotti, 2007). ferências sobre essa técnica, aplicável inclusive a questionários e entrevistas.
Observe-se que o conteúdo pode ser entendido e interpretado sob dife-
Outras possibilidades, aliás infinitas, de cainlnhos para análise musical,
rentes perspectivas segundo o referencial teórico adotado. A tendência posi-
em pesquisas subjetivistas, podem ser buscados. A escolha do tipo de análise
tivista (qualitativalobjetivista) tende a privilegiar o conteúdo manifesto ou
a ser empregada é uma decisão teórico-metodológica, devendo, necessaria-
explícito dos documentos, enquanto a tendência subjetivista ou qualitativa
mente, ser pertinente às questões formuladas pela pesquisa, ou seja, a análise
pende a buscar e interpretar o conteúdo latente, aquele que está nas entreli-
musical deve contribuir efetivamente para respondê-las e, no caso das pes-
nhas, não necessariamente explícito.
quisas subjetivistas, ela deve ser concebida de forma a dar real espaço à inter-
A análise de conteúdo, assim como qualquer outra estratégia interpreta-
pretação subjetiva do pesquisador, sem partir de fórmulas prévias.
tiva aplicada a documentos, não é limitada aos documentos escritos, poden-
4) Análise documental do também ser empregada na análise de documentos oriundos de questio-
nários, entrevistas, gravações em vídeo, registros iconográficos ou outros. O
A análise de documentos (escritos, fonográficos ou outros) é, também, confronto crítico desses documentos é particularmente útil à pesquisa qua-
um procedimento metodológico empregável em pesquisas qualitativas, a . litativa, adensando a interpre~ação dos fenômenos pela integração de dife-
partir dos pressupostos que as caracterizam. A possibilidade de obser\rar e de .rentes fontes de informação. A técnica de triangulação, já mencionada, pode
comparar dados provenientes de diferentes fontes documentais está na base se valer desse recurso.
de qualquer processo de análise documental. Nas pesquisas qualitativas da área de musicologia histórica, documen-
Os documentos não são tratados, nas pesquisas subjetivistas como pQr- tos como fonogramas, partituras, periódicos de época, depoimentos de di-
tadores de verdades absolutas. As informações obtidas através de documen- versos· sujeitos (como compositores, críticos, intérpretes, ou outros) podem
tos escritos (ou outros), nessas pesquisas, são levantadas, sistematizadas e in- ser objeto de análise e de confronto comparativo, propiciando ampliação e

40 41
aprofundamento das interpretações na pesquisa, sob uma perspectiva ne- Referencial teórico - coerência e densidade da pesquisa
cessariamente relativista, uma vez que não há pretensão de desqualificar ne-
nhuma dessas informações, mesmo que sejam conflitantes entre si. Nesse
I caso, o próprio conflito passa a ser de especial interesse para o pesquisador.
t Este capítulo não pretende, obviainente, esgotar as possibilidades de
O referencial teórico é a base teórica sobre a qual a pesquisa se constrói. É
mencionar procedimentos metodológicos. A proposta é apenas abrir algu-
constituído pelos conceitos ou teorias que irão servir de base para a análise
li mas reflexões sobre eles. De qualquer forma, fica, aqui, uma varredura básica
interpretativa dos dados da pesquisa.
sobre esses procedimentos e suas possibilidades de uso nas_ pesquisas qualita-
Embora seja comum haver alguma confusão entre o papel da revisão
tivas ou subjetivistas, lembrando, mais uma vez, que essas pesquisas não pres-
de literatura e do referencial teórico na pesquisa, seus papéis são distintos.
cindem do uso consciente e criterioso de métodos e de referenciais teóricos.
A revisão de literatura se destina a realizar uma leitura crítica da litera-
tura especializada, buscando situar o tema da pesquisa no atual estado de
conhecimento da área. A revisão de literatura pode até incluir alguns traba-
Questões e sugestões ao pesquisador iniciante: lhos que não têm a mesma linha de abordagem adotada na pesquisa, mas
que enriquecem o conhecimento sobre o assunto por outros ângulos. Já o
referencial teórico decorre de um posicionamento específico, de uma esco-
Reflita sobre a aplicação de métodos ou técnicas que você tenha em mente às
lha do pesquisador, pois implica na adoção de uma base teórica diretamente
questões que você formulou.
aplicável à pesquisa, podendo advir ou não da revisão de literatura. O refe-
• Que métodos você urili.zará em sua pesquisa? Por que você pensa em adotá-los? rencial teórico pode ser delineado como um recorte na revisão de literatu-
• Será que a entrevista é a forma mais adequada de buscar suas respostas? ra; outras vezes o referencial teórico· só é focalizado no momento específico
Caso contrário, qual é a alternativa? de definir os rumos metodológicos da pesquisa após a revisão de literatura.
• Será que o modelo de análise musical que você pretende adotar pode dar Por exemplo, ao formular uma questão sobre uma obra ou um conjunto
as respostas desejadas? de obras de um determinado autor, um conceito de "formà' estará presente,
• A captação de dados se dará estritamente pela ótica do pesquisador explicitamente ou não. Ao definir a abordagem metodológica da pesquisa,
(objetivismo) ou levará em conta a percepção de outros atores envolvidos será necessário levar em conta que a conceituação de "forma'' é extremamen-
(subjetivismo)? Nesse caso, quais os métodos e técnicas mais indicados? te diversa conforme o posicionamento teórico-metodológico adotado. "For-
•. Os métodos e técnicas pretendidos por você são adequadamente abertos ou ma'', definida como um esquema básico que pré-existe à própria criação da
B.eJdveis, caso sua pesquisa seja de cunho subjetivista? Eles podem conduzir, obra corresponde a uma abordagem formalista (objetivista), enquanto "for-
realmente, a respostas às questões iniciais? mà' concebida como estrutura percebida corresponde a uma visão subjeti-
vista de "forma", que pressupõe uma forma "abertà' à recepção da obra. Es-
ses dois conceiws tomados como exemplos deixam em evidência o quanto o
referencial teórico está implicado com os caminhos (métodos) e com as con-
clusões da pesquisa. A revisão de ·literatura dessa pesquisa poderá, contudo, re-
visar autores que abordem "formà' segundo diferentes visões e conceitos, in-
clusive alguns que entrem em conflito· com as posições adotadas na pesquisa.
Ao definir, porém, a metodologia, o referencial teórico terá de ser assumido
e explicitado, o que implica em :;~.dotar para a pesquisa uma posição clara e

42 43
fundamentada sobre o conceito em questão, a despeito de outras concep- Pesquisadores profissionais já têm uma base teórica constituída, ainda
ções que tenham sido revisitadas na revisão de lieratura. que a renovem constantemente, más pesquisadores iniciantes têm identifi-
Esse é o cerne principal da pesquisa, ou seja,. o entrelaçamento de ob- car suas afinidades teóricas e ideológicas para definirem o referencial que irão
jetivos, metodologia e referencial teórico (mais uma vez lembramos que a adotar (recorrer à bibliografia de algum trabalho que pareça bem sintonizado
revisão de literatura é mais abrangente, pqdendo cobrir diferentes posicio- com os interesses da pesquisa a ser desenvolvida pode ser um caminho prático
namentos teóricos, até mesmo contraditórios com o que constituirá o refe- para constrUir um pensamento coerente, subjacente à investigação).
rencial teórico da pesquisa). · "Tempo''·éum·outro exemplo de conceito importante na área de mú-
Os métodos e técnicas utilizados na pesquisa necessitam ser coerentes sica, cuja definição é extremamente variável. O tempo na música pode ser
com a base teórica e, obviamente, também com os objetivos que se deseja considerado objetivamente, como um fenômeno "em si", externo ao sujeito.
atingir, com as respostas que se pretende obter. De nada adianta, por exem- Pode também ser considerado de forma relativa, como decorrente de uma
plo, fazer uma análise morfológica de uma obra (abordagem objetivistalfor- percepção subjetiva do receptor (que pode ser o intérprete ou qualquer ou-
malisra), se a questão que dá origem à pesquisa não necessita dessa análise vinte), que interage, no caso da composição escrita, com a concepção tam-
para chegar às suas respostas. Por vezes, na área de música, existe a suposi- bém subjetiva do autor da obra. A concepção de tempo tomada como parte
ção equivocada de que não se pode abordar uma obra, em pesquisa, sem fa- do referencial teórico em uma pesquisa reflete, simultaneamente, a visão de
zer uma análise formalista da mesma. Como já foi observado, isso não ocorre mundo do pesquisador e a linha filosófica subjacente ao referencial teórico
necessariamente (só se a questão de pesquisa o der:-. :mdar). adotado, bem como aponta para uma determinada direção quanto às con-
Há outras abordagens analíticas que podem ser adoradas como estraté- clusões a serem obtidas.
gia de pesquisa, em consonância com qs objetivos do estudo e embasadas em Percebe-se, assim, que a consistência da pesquisa está, em grande parte,
outras concepções (referencial teórico). Por exemplo, uma ardise semiótica, vinculada ao referencial teórico. Demo (2000, p. 26 e 27), ao expor os cri-
de ~unho estruturalista (objetivista), não pode responder a questões de cará- térios formais que caracterizam a ciemificidade dos trabalhos de investiga-
ter subjetivista (embora até possam contribuir para elas). A análise fenome- ção, aborda a consistência (que deve ser tanto teórica quanto metodológica)
nológica (subjetivista), por sua vez, não pode responder a questões objetivis- e faz as seguintes considerações:
tas de pesquisa.
consistência refere-s~ à capacidade do texto [relatório de pesquisa] resistir à contra-ar-
"Significado", por exemplo, é um conceito utilizado em muitas pesqui-
gumentação a ou, pelo menos, merecer o respeito de opiniões contrárias; em certa me-
sas em música e pode implicar em entendimentos essencialmente distintos, dida, fazer ciência é saber argumentar, não só como técnica de domínio lógico, mas
segundo a abordagem adotada. O significado de uma obra ou de uma práti- sobretudo como arte construtiva; saber argumentar começa com a capacidade de es-
ca musical pode ser apreendido através da busca de padrões de recorrência, tudar o conhecimento disponível [reviSão de literatura], teorias, autores, conceitos da-
que, de certa forma, uniformizam alguns usos, convertendo-os em modelos. dos, práticas, métodos, ou seja, de pesquisar para, em seguida, colocar rodo em ter-
mós de elaboração própria; saber argumentar coincide com saber fundamentar, alegar
Este seria uma concepção objetivista do conceito, ao contrário de concep- razões, apresentar os porquês; vai além da descrição do tema, para aninhar-se em sua
ções subjetivistas, que darão ao conceito de significado um tratamento mais explicação[...].
flexível e relativista, valorizando as diferenças, e não os possívéis modelos,
apesar dos condicionantes culturais. · Demo (2000) apresenta como critérios formais da demarcação científi-
O mesmo se pode dizer de outros conceitos relevantes para a área de ca, além da consistência, os critérios de coerência, sistematicidade, origina-
música, que recebem diferentes definições, conforme a linha de pensamen- lidade, objetivação e discutibilidade. Todos esse critérios perpassam a neces-
to teórico em que estão inseridos, o que evidencia a importância de haver sidade de articulação teórico-metodológica coerente e consistente, o que só
clareza e densidade na adoção de referenciais teóricos· para uma pesquisa. pode ·oc;orrercom a adoção também consistente e coerente de um referencial
teórico sólido, que garanta a possibilidade de sistematização, no decorrer da

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pesquisa, sem perda da objetividade necessária (mesmo em pesquisas subje- PesqUisa, subjetivismo e interdisciplinaridade
tivistas), garantindo a possibilidade de discussão dos resultados, mas não de
desqualificação da construção de conhecimento empreendida.
A confiabilidade dos resultados das pesquisas qualitativas está, em gran-
de parte, assim como nas quantitativas, relacionada à consistência e à coe-
rência de sua base teórica, tanto quanto ao emprego consistente e sistemáti- Este capítulo reproduz, com adaptações, palestra feita em Goiânia (Univer-
co de procedimentos metodológicos pertinentes. Para que a pesquisa tenha sidade Federal de Goiás), no ix Seminário de Pesquisa em Música (sempem),
seus resultados confiáveis, é, portanto, necessário que ela tenha utilizado ca- 2009. São recapitulados, aqui, diversos tópicos abordados em capítulos an-
minhos metodológicos adequados e que esses procedimentos estejam ade- teriores, aprofundando reflexões sobre pesquisa na área de música e relacio-
quadamente embasados em formulações teóricas compatíveis. nando-a ao enfoque do paradigma de pensamento pós-moderno. Abordam-
Este é o grande desafio que os pesquisadores dedicados a pesquisas sub- -se, assim, diversos aspectos que dizem respeito a novas visões emergentes de
jetivistas, não só da área de música, precisam enfrentar, pois, ao se afastarem pesquisa e de construção de conhecimento.
do caminho aparentemente mais estável da objetividade, são muitas vezes Não vamos analisar ou questionar, aqui, alguns conceitos de uso re-
olhados com desconfiança por aqueles que temem que a validade da pesquisa lativamente frequente, como "moderno", "modernidade", "modernismo" e
resida apenas na objetividade, e não na coerência, pertinência e consistência "pós-modernismo". Lembramos apenas que a concepção de moderno não é
aplicados aos métodos e aos fundamentos teóricos. recente, já passou por várias nuances conceituais ao longo dos últimos sécu-
los e, de cena forma, está sempre associada à visão de inovação. O conceito
de pós-modernismo também não é novo e já foi aplicado a diferentes mo-
Questões e sugestões ao pesquisador iniciante: mentos da história, sendo que nos deteremos apenas na concepção recente,
oriunda do final do século xx, e que corresponde a uma visão descrita por
o Como você pretende analisar ou interpretar dados em sua pesquisa? Boaventura de Souza Santos (1988) como um novo paradigma de pensa-
mento emergente, correspondente a modificações significativas no âmbito
• Em que medida os conceitos e teorias adotados são coerentes com as questões
iniciais da pesquisa? do pensamento científico a partir do final do século xx. Não se trata, ape-
nas, de recolocar "as mesmas peças em um mesmo tabuleiro", mas de con-
• Em que medida esses conceitos e teorias são coerentes com a sua visão de
ceber um "jogo" conceitual diferente, que envolve, sobretudo, novas formas
mundo como pesquisador? -
de entendimento correspondentes, na visão de Sousa Santos, ao novo para-
digma de pensamento.
Destacamos, no item a segllir. alguns pontos fundamentais, sob a ótica
dessas novas concepções, lembrando que diversos deleii já foram abordados
nos capítulos iniciais deste livro, mas que são retomados, neste momento,
sob novas colocações.

I) CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO E PÓS-MODERNISMO

Pesquisar implica, necessariamente, em construir conhecimento novo,


mesmo que essa novidade seja apenas uma reinterpretaçáo de um fenômeno
já conhecido. Resumidamente, relacionamos e comentamos, a seguir, alguns

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aspectos imponantes do pensamento pós-moderno e algumas de suas implica- servir a outras análises estrututais. O imponante é que a ãbordagem pós-
ções à construção de conhecimento. Ou seja, são comentados aspectos peni- -moderna não valoriza e não tem como objetivo a generalização.
nentes à pesquisa, em geral, também aplicáveis às pesquisas da área de música:
Valorização da transitoriedade e da transformação como processos
Relação sujeito-objeto permanentes
O paradigma de pensamento pós-moderno prioriza a perspectiva sub- As bases conceituais e metodológicas do pensamento pós-moderno en-
jetiva centrada no sujeito, e não o distanciamento objetivo entre um sujeito, fatizam a percepção das mudanças, o que pode se exemplificar com o trata-
que se pretende neutro, e um objeto, externo a ele e distante, sobre o qual mento que as pesquisas sob esse enfoque dão a conceitos que têm sido tra-
busca atingir um mnhecimento também neutro e generalizável. A relação tados de forma mais estática e com delimitação mais definida, como os de
sujeito-objeto proposta pelo enfoque pós-moderno não busca esse distan- "tradição", "forma", "estrututa'' e "contexto". Conceitos aparentemente es-
ciamento nem essa neutralidade e não valoriza a possibilidade de generaliza- táveis, como esses, ganham dimensões diferentes ao serem visualizados sob
ção. O foco das pesquisas é centrado principalmente em estudos delimita- uma ótica que enfatiza o dinamismo, a transformação e a relatividade, mes-
dos a casos específicos. As conclusões desses estudos são aplicáveis a reflexões mo com o reconhecimento de que, paralelamente à mudança, persistem re-
mais amplas e a outros casos similares, mas não pretendem o simples estabe- síduos de permanência.
lecimento de relações causais e generalizáveis. Redimensionamento dos conceitos de espaço e tempo, relativizan-
Relativização dos conceitos, inclusive os de conhecimento, de ver- do o enfoque cronológico
dade e de música Na medida em que as trocas, as reelaborações, as transformações e apro-
Na medida em que não priorh;a conceitos e conclusões generalizáveis, priações passam a ser enfatizadas, assim como os consequentes processos de hi-
o pensamento pós-moderno dá destaque à relatividade desses conceitos e bridação, os conceitos de espaço e tempo são também redimensionados e fo-
conclusões. Eles são sempre relacionados a situaÇões específicas e a olhares calizados de forma mais flexível. Entende-se, por exemplo, a permanência de
de análise também específicos, ou seja, não são abordados com pretensão de vestígios ou resíduos de tempos passados e a antecipação de tempos fututos em
"universalização". Ganha destaque, por exemplo, a perspectiva cultutal e, tempos presentes. Consequentemenre, os limites espaciais e a concepção de
mais que isso, a perspectiva multicultural. Todos os conceitos e valores (in- tempo como sequência linear têm seu desenho relativizado. A partir dessas no-
clusive, como já mencionado, o conceito de música) são considerados como vas visões, a linearidade cronológica, entre outros aspectos, deixa de ser impor-
relativos a uma determinada perspectiva cultural, seja mais ampla, seja res- tante, e a própria concepção de tempo musical ganha novos entendimentos.
trita a um segmento de uma sociedade. Valorização do subjetivismo, das diversidades e das minorias, em
Valorização da concepção de sistemas abP.rto.s, em rede, pluralistas, detrimento de relatos universalistas, sem perda da perspectiva total
no lugar de sistemas fechados e estruturas e~>táticas e genera.lizàvds Cabe reiterar que se trata, na verdade, de uma outra visão epistemológi-
A relativização dos conceitos, mencionada no item anterior, gera a ne- ca, com desdobramentos nos métodos e procedimentos de pesquisa, e não de
cessidade de interpretar os processos de forma mais flexível, levando, assim, ·uma mudança superficial, restrita aos procedimentos metodológicos ou a al-
a um entendimento mais amplo e dinâmico das estruturas, redesenhando- guns conceitos isoladamente. Essa visão traz possibilidades de aplicação à pes-
-as a partir de outras bases conceituais, que não enfatizam a estaticidade. O quisa em música, sem perda de validade científica, como temem alguns e, ao
paradigma de pensamento pós-moderno não procura caracterizar est:I"qttiras · mesmo tempo, traz novas possibilidades às conclusões das pesquisas da área.
com o objetivo de gerar modelos estrututais que possam explicar outros fenô~ A subjetividad-e encontra espaço, assim, na pesquisa científica, apesar
menos, ainda que as conclusões das pesquisas sob o novo paradigma possam da tendência tradicional de preconizar a objetividade como critério funda-
mental de dentificidade. Subjetividade, aqui, está sendo entendida, tal co-

48 49
mo já mencionado em capímlo anterior, tanto como perspectiva subjetiva Essa visão interdisciplinar, que busca transpor, sem desqualificar, limi-
individual (condicionada culturalmente), como perspectiva coletiv;IIsocial tes rígidos entre ireas· de conhecimento, é muito cara, assim, ao pensamento
(construída pelas diversas subjetividades individuais em"interação cultural). pós-moderno, ampliando os possíveis ângulos de abordagem nas pesquisas.
N~ diferentes subáreas de música, considerando as características do novo
paradigma, tornam-se importantes para a pesquisa novas estratégias meto-
II) MÚSICA E PESQUISA SOB O ENFOQUE PÓS-MODERNO
dológicas, pois não se trata de mudar alguns elementos na superfície, mas de
construir conhecimento a partir de novas premissas. Essas novas estratégias
A partir dessas considerações, podemos constatar que tratar de música e metodológicas envolvem, entre outras, as seguintes características:
pesquisa, sob a ótica pós-moderna, implica em repensar alguns aspectos es-
• qualidade dos questionamentos (questões que abordam aspectos que
pecíficos fundamentais, já que não se trata de uma simples troca de rómlos.
dão espaço à subjetividade), ou seja, não se trata de decidir dar à pesquisa já
Procuramos, a seguir, delinear alguns desdobramentos do novo paradigma
iniciada um perfil subjetivista, pois essa tendência está implícita nas ques-
na prática de pesquisa na área de música:
tões que dão origem à pesquisa, que já partem do pressuposto (entre outros)
• revisão e relativização dos limites do campo de pesquisa de muitos de que sujeito e objeto não são instâncias estanques e definidas a priori.
conceitos e métodos, conduzindo as investigações com contornos mais am-
plos. Conceitos como " texto)) , ((contexto)) , ((•tnnuencta
_ _Q
A •
, mustca , "6orma))
)) CC I • )) • flexibilidade metodológica (os métodos e referenciais teóricos não
e outros já citados ganham novas abordagens, novos entendlmentos, sendo são necessariamente totalmente pré-definidos), uma vez que as pesquisas,
também entendidos como relativos e transitórios. sob o enfoque pós-moderno, transitam permanentemente entre a teoria e
a prática, o que abre a possibilidade de novos métodos e novos conceitos
• valorização da heterogeneidade (inclusive das culturas), passando a abar- serem incorporados no decorrer da investigação. Os referenciais teóricos
car conteúdos e práticas musicais antes marginalizados, como a música "po- e metodologias mais pertinentes, nessa linha de pensamento, são aqueles
pular", a música de "massa'', entre outros, ampliando o campo das pesquisas. que têm como pressuposto a valorização da subjetividade, da relatividade
. • valorização da subjetividade, abrindo maior espaço para as percepções e da flexibilidade.
dos diferentes sujeitos que interagem nos processos (críticos, composito- • utilização de com.citos e metodologias com abertura de espaços para a
res, ouvintes, intérpretes, editores, produtores musicais, professores e alunos heterogeneidade e a diversidade cultural, abrangendo a dlmensáo rnidiática e
etc.). Esses diferentes sujeitos podem expressar diferentes visões de mundo, outras (ampliação do objeto e do campo de estudo das pesquisas so_bre músi-
visões essas que as pesquisas subjetivistas se empenh_am em valorizar. ca). Ou seja, gap.ha espaço a valorização das diversidades e das minorias, em
··· .. Esses a.Spectos acima destacados evidenciam a necessidade de rediscutir detrimento de relatos universalistas, sem perda da perspectiva total.
os limites das pesquisas e das subáreas de música, já que não se trata de uma
simples mudança superficial de perspectiva, mas de uma mudança profunda
III) IMPLICAÇÕES DO. PENSAMENTO PÓS-MODERNO
e conceitual, ou seja, epistemológica. A interdisciplinaridade aparece, assim,
NAS PESQUISAS DAS SUBÁREAS DE MÚSICA
como uma necessidade, decorrente de novas petspêctivas·He''abotdagem, e
não como um artifício.
Fazendo um esforço didático para observar, nas pesquisas recentes das
Como a prática da interdisciplinaridade não pressupõe a descaracteriza-
diversas subáreas de música, os principais aspectos que decorrem da visão pós-
ção dos diferentes campos de conhecimento, e sim a interação entre eles (so-
-moderna, podemos destacar, aqui, alguns deles. A bibliografia apresentada ao
bretudo a partir de equipes interdisciplinares de pesquisa), essa abordage_m
final deste trabalho cita alguns autores que referendam esses aspectos sem
torna-se particularmente interessante sob o enfoque pós-moderno, pois pos-
nenhuma pretensão de fazer uma relação completa ou definitiva:
sibilita transitar através de limites antes considerados definitivos.

50 51
1) Na musicologialetnomusicologia, as pesquisas, sob o enfoque pós- • As possibilidades diferenciadas de criação, sobretudo a partir de dife-
-moderno, têm valorizado, entre outros aspectos: rentes conceitos de tempo e espaço (:: do emprego de elementos musicais an-
tes não enfatizados, como timbre e teXtura.
• O conceito de cultura, segundo um enfoque pluralista e segundo a
concepção de desterritorialização da cultura, valorizando, como processos . • As abordagens de análise musical, não subordinadas ao enfoque euro-
inerentes às culturas, as trocas e reelaborações entre as manifestações musi- peu e ao sistema· tonal.
cais, assim como as sínteses ou hibridismos e as transformações. Podemos observar que muitos pontos de convergência aparecem entre
• A relativização dos documentos, considerados como relatos subjeti- esses aspectos destacados nas duas subáreas mencionadas (musicologia/ et-
vos, conferindo igual importância a textos escritos, relatos orais, performan- nomusicologia e criação musical), o que parece deixar claras as possibilida-
ce, participação do público nos eventos, diferentes registros áudio-visuais, des de permeação interdisciplinar entre esses dois campos.
inclusive midiáticos. 3) No âmbito das práticas interpretativas, podemos destacar que as pes-
• A relativização dos pontos de vista, abrangendo conceitos como os da quisas, sob o enfoque pós-moderno, têm valorizado, entre outros aspectos:
estética da recepção e o de pontos de escuta. • A legitimação de diferentes técnicas de interpretação musical, com en-
• A não valorização hierárquica de concepções musicais, abrindo espaço foque pluralista e subjetivo, valorizando trocas e reelaborações de caracterís-
para a "música popular'' e para a "música midiática'' (os próprios coil.ceitos ticas musicais, hibridismos e transformações.
de música "popular" e "midiática'' entram em revisão). • A relativização dos pontos de vista estéticos e sua aplicação na perfor-
Observamos, assim, que os limites das pesquisas musicológicas e etna- mance, abrangendo conceitos como os da estética da recepção e o de pontos
musicológicas se ampliaram. Sob essa linha de abordagem, nós podemos de escuta (maior subjetivismo, menor submissão ao texto/partitura).
nos defrontar, com alguma frequência, com pesquisas que abrangem as prá- • A aplicação, na interpretação musical, de diferentes conceitos de tempo
ticas musicais e não apenas a "música em si", que focalizam diferentes mani- e espaço e de elementos musicais antes não enfà.tizados, como timbre e textura.
festações e estéticas musicrus e suas diferentes escutas e entendimentos, sem
priorizar a música de concerto e sem tentar caracterizar essa música como • O reconhecimento de fonogramas e outros registros áudio-visuais co-
"universal", que problernatizam conceitos antes considerados estáveis, como mo documentos import<illtes, constituindo fontes significativas de informação
os de "estilo" ou "contexto", entre outros. primária, propiciando diferentes experiências e percepções de'performance.

2) No âmbito da criação musical, as pesquisas, sob o enfoque pós-mo- A ampliação dos limites das pesquisas voltadas para as práticas interpre-
derno, têm valorizado, entre outros aspectos: tativas leva, como nos casos anteriores, à aproximação com outras subáreas de
pesquisa sobre música, como, por exemplo, com a etnomusicologia, quan-
• A legitimação de diferentes técnicas de criação e diferentes sonoridades do abre espaço para um entendimento dessas práticas como manifestações
e sistemas musicais segundo visão pluralista de estética e de cultura. da cultura em que se inserem. Outro exemplo é a aproximação das pesqui-
• As trocas e reelaboraçóes, considerando hibrid.ismos e trarisformacões .sas que focalizam a performance com as pesquisas musicológicas, quando
com maior espaço para as· tradições orais.
' ' essas investigações procuram entrelaçar a performance com diferentes pon-
tos de escuta e diferentes possibilidades de recepção, relativizando-os. Ou se-
• A relativização dos pontos de vista estéticos, conferindo maior espaço
ja, a perspectiva interdisciplinar se faz presente como decorrência dos novos
à subjetividade e a conceitos como os da estética da recepção e o de pontos
pressupostos.
de escuta.

52 53
4) No âmbito da educação musical, as pesquisas, sob o enfoque pós- as fronteiras entre as áreas de conhecimento, vem relativizando suas conclu-
-moderno, têm enfatizado aspectos que também geram aproximação com sões e dando maior espaço à voz dos sujeitos envolvidos, reduzindo a distân-
outros campos de conhecimento, como no emprego de abordagens etnográ- cia entre sujeito e objeto.
ficas, na ampliação de limites de seu objeto de estudo, trazendo a cultura e ·As áreas de práticas interpretativas e de composição têm bu~cado afir-
o cotidiano para seu foco de interesse. Entre esses aspectos, valorizados pelas mar seus próprios desenhos de pesquisa, o que tem contribuído para o for-
pesquisas recentes sobre educação musical, podemos citar: talecimento das mesmas. Há que se registre, conrudo, que os debates nessas
• A legitimação de diferentes técnicas de criaÇão, diferentes sonorida- áreas ainda estãó em "trânsito" (de certa forma, debates e conclusões, em to-
des e sistemas musicais, analisados, pelo enfoque da educação, com uso fre- das as áreas e subárea.> estão sempre em curso), sendo possível observar resis-
quente de abordagens etnográficas. tências e dúvidas de ordens diversas.
A L.:sca de interdisciplinari~2.de ou, pelo menos, de trabalhos mais
• O conceito de cultura, segundo um enfoque pluralista, concedendo compartilhado.; por diferentes pesquisadores é mais frequente atualmente.
maior espaço às trocas e reelaborações de características musicais e às experiên- Uma parceria que se tem eridenciado com mais frequência é das áreas de
cias do cotidiano dos alunos, relativizando os pontos de vista. etnomusicologia e educação musical. A aproximação da educação musical
• As metodologias de ensino que dão destaque às experiências musicais com a educação geral também já é observável há algum tempo. Outras par-
do aluno e às trocas entre processos informais, não formais e formais de en- cerias, entre musicologia e história, musicologia e arquivologia, musicologia
sino de música. e etnomusicologia, composição e filosofia, performance e linguística, entre
outras, são também constatáveis.
• As percepções e depoimentos de todos os atores de um processo edu-
Esses aportes de outraS áreas de conhecimento vêm sendo cada vez mais
cacional, inclusive dos alunos ou de pessoas não letradas, como relatos váli:..
acolhidos nas pesquisas em música, ~pliando as perspectivas da área.
dos para a pesquisa.
É, contudo, importante registrar o debate e as divergência.S sobre o uso
Reiteramos que a exposição de características distribuídas pelas dife- das metodologias, não só nas pesquisas mais especificamente centradas na
r~ntes subáreas tem um caráter didático, não constituindo uma tentativa de área de música, mas também naquelas que associam diferentes áreas. Há
demarcar separação entre esses campos. Observamos, inclusive, que mui- quem advogue que, se os métodos não foram originados na própria área de
tas características são comuns às diferentes áreas, ressaltando, conforme já música, a pesquisa não pode ser reconhecida como pertinente à área. Há
apontado, as possibilidades de convergências de interesse e a possibilidade também aqueles que entendem que a apropriação e adaptação de procedi-
de constituir estudos interdisciplinares. mentos é prática usual e desejável, só trazendo enriquecimento à pesquisa
Paralelamente, observamos que o novo paradigma tem suscitado rea- em música.
váliações das pesquisas da área de música, mesmo em casos em que não há Considerando esse cenário em que as fronteiras entre áreas são mais dis-
uma adesão clara ou consciente a essas novas visões. cutidas ou mesmo diluídas, que ferramentas de pesquisa parecem mais ade-
quadas? Análises com diferentes enfoques, emprego de tecnologias, equipes
IV) BREVES CONCLUSÕES interdisciplinares, ampliação dos limites do foco da pesquisa para além do
texto estritamente musical são alguns dos posicionamentos metodológicos
Atualmente, pode-se observar que tendências de cunho objetivista coe- que vêm refletindo os debates da' área e que parecem apontar tendências para
xistem com as tendências de caráter subjetivista, embora se possa constatar o futuro.
um aumento gradual de interesse pelo enfoque subjetivista.. Buscando concluir, ainda que provisoriamente, as questões apontadas
Coerentemente com o que se chama de pensamento pós-moderno, a ao longo deste capítulo, resumimos, a seguir, algumas das repercussões do
pesquisa em música, inclusive no Brasil, vem atravessando gradativamente novo paradigma nas pesquisas da área de música:

54 55
• A tendência pós-moderna tem suscitado a necessidade de repensar REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
conceitos, metodologias e referenciais teóricos compatíveis com o novo pa-
radigma, de forma a garantir a coerência epistemológica das pesquisas. ANDRÉ, Marli. A pesquisa no cotidiano escolar. In: FAZENDA, Ivani (Org.).
Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 2002.
• As tendências interdisciplinares ganham espaço renovado,· sob o para-
_ _. Etnografia da prdtica escolar. Campinas: Papirus, 2004.
digma de pensamento pós-moderno, mas também desencadeiam resistên-
cias e críticas diversas, não só na área de música. BARDIN, L. Andlise de conteúdo. Lisboa: Editora 70, 1979.

• Para a área de música, entram em discussão os limites das subáreas


........ BERGER, H. M.:
Metal, rock, andjàzz: Perception and the phenomenology ofmusi-
cal experíence. Hanover: University Press ofNew England, 1999.
de pesquisa, a validade desses limites, as vantagens e desvantagens quanto à
maior permeabilidade entre elas. BORDA, Orlando Fals. Aspectos teóricos da pesquisa participante: considerações
sobre o significado e o papel da ciência na participação popular. In: BRf\N-
• Algumas subáreas, como a educação musical e a etnomusicologia, têm se DÃO, Carlos Rodrigues (Org.). Pesquisa participante. São Paulo: Brasüiense,
mostrado mais permeáveis à visão interdisciplinar, outras se atêm mais a uma 1986, p. 43-44.
visão "individualistà' de pesquisa e de conhecimento. De qualquer forma, a di- BORNHEIM, Gerd. Sobre a linguagem musical. In: BORNHEIM, Gerd. Metafí-
luição de limites parece mais ou menos evidente em todas as subáreas. sica efinitude. São Paulo: Perspectiva, 2001. Cap. 7, p. -135-146.
Constatamos, assim, que ainda há muitos desafios para a área de músi- BRANDÃO, Carlos Rodrigues & STRECK, Danilo Romeu (Orgs.). Pesquisa par-
ca enfrentar, em suas pesquisas, caso pretenda caminhar na direção de uma ticipante- A partilha do saber. Aparecida: Ideias e Letras, 2006.
renovação efetiva e profunda de seus princípios e métodos. Por outro lado, BRESSLER, Liora. Paradigmas cualitativos na investigación en educación musical.
mesmo aqueles que relutam ou refutám essas concepções do novo paradig- In: DIAZ, Maravillas (coord).lntroducción a la investigation em educación musi-
ma têm sentido necessidade de refletir e de reconstruir seus argumentos, fa- cal. Madri: Enclave Creativa Ediciones, 2006, p. 61-81.
ce à nova argumentação teórica que vem se co.locando, não só na área de CATROGA, Fernando. Memória, história, historiografia. Coimbra: Quarteto Edi-
música, há pelo menos quatro décadas. tora, 2001.
Existe uma provocação epistemológica em pauta, que nos cabe discutir CAVAZOTTI, André. Caminhos para pesquisa na área de performance musical:
e analisar, e que não pode ser ignorada, uma vez que perpassa grande parte uma breve introdução à fenomenologia da música. Cadernos do lmtituto de Ar-
de importantes trabalhos contemporâneos. Creio que nos cabe tirar parti- tes da Unicamp. Campinas: v. 5, n. 2, p. 35-38, 2001.
do do que nos parecer pertinente, mas, para isso, faz-se necessário arregaçar CHAVES, Celso Loureiro. Memórias do passado no presente: a fenomenologia de
as mangas e analisar as novas tendências profundamente e sem preconcei- "Trama". Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996.
tos, seja para incorporá-las total ou parcialmente, seja para rejeitá-las, total _ _. Memórias, citações e referências: o fluxo do tempo interior em Estudo Paulis-
ou parcialmente. tano. In: Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
O avanço de conhecimento da área de música certamente se beneficiará Música, 14, 2003, Porto Alegre (Anais). Porto Alegre: Associação Nacional de
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58 59
PARTEII

Música, pesquis~ e subjetividade- tópicos especiais

i.
Algumas questões da pesquisa em etnomusicologia
:Acdcio Tadeu de Camargo Piedade

INTRODUÇÃO

Falar sobre pesquisa em etnomusicologia remete imediatamente à questão


da etnografia e das práticas de trabalho de =po. Discutir estes temas é
adentra.1 um território bem coní1eddo da antropologia, cheio de dilemas e
questionamentos que sürgem a partir dos desafios do contexto contemporâ-
neo. Para me guiar nesta ta~efa, tentarei fazer uma reflexão a partir das dú-
vidas que me trouxera..il alguns estudantes de graduação e de pós-graduação
em música interessados em etnomusicologia ou que realizam emogra.Eas em
seus trabalhos ·acadêmicos. Antes disso, porém, gostaria de apresentar um
breve histórico da etnomusicologia e, a partir dele, realizar uma breve refle-
xão sobre o famoso prefixo "etno" .

.RAÍZES E TRAJETÓRIA DA ETNOMUSICOLOGIA

A disciplina atualmente conhecida como etnomusicologia antes dos


1950 era chamada "etnó-musicologià' e, antes ainda, como "musicologia
comparadà', sub-ramo da musicologia sistemática. Os emomusicólogos
passaram muito tempo ao longo do século xx procurando definir o que é et-
nomusicologia, em geral9-e forma comrastiva em relação à musicologia e à
antropologia. Várias sugestões foram dadas, algumas por musicólogos, e ou-
tras designações foram propostas, tais como "antropologia da músicà' (Mer-
riam,1964), "sociomusicologià' (Feld, 1984), "antropologia musical" (Se-
eger, 1987) e "musicologia cultural" (Kerman, 1987). Após as revoluções
epistemológicas do chamado pós-modernismo, no final do século xx, temos
que admitir que atualmente não há consenso sobre se há ou não profundas
diferenças entre etnomusicologia e musicologia. Ou seja, está em questão o
sentido do prefixo "etno". Por isso, é interessante mostrar aqui um breve his-
tórico da disciplina e depois indagar sobre estas diferenças.
Podemos dizer que o princípio primário da emomusicologia surge com
o interesse pelo "Outro" tal como desponta a partir do Iluminismo francês

63
e do pensamento romântico alemão. Diversos pensadores franceses, através pectivos campos de estudo, verdadeiras folhas em branco da-humanidade. A
do racionalismo iluminista, desenvolveram uma filosofia universalista que mecânica celeste cristalizada por Newton exerce supremo domínio no pen-
tocava na questão do exótico e da moralidade "selvagem" (Todorov, 1993). samento científico, e pressupunha um deus monárquico governando, das
Já nas terras germânicas a ideia de cultura desenvolve-se com o movimen- alruras, um universo estático e invariável. Todo o arsenal conceptual para a
to literário romântico e filosófico em torno de Herder e Schiller, encon- observação empírico-científica da época derivava desse modelo, o homem
trando-se neste romantismo e na retomada da ideia latina de culrura a tra- téndo tomado de deus o governo do mundo. Entretanto, revoluções como a
dução e a apologia do apego ao solo, às raízes de onde provem cada povo. - -- -descoberta da-evolução das espécies e aquela do inconsciente viriam a tirar o
Certamente estes olhares para a alteridade, tanto aquela para o "nobre sel- homem desta sua posição de autocontrole e transcendência, da qual gozava
vagem'' quanto aquela para as raízes do povo, portam esse ímpeto que vai pelo menos desde o século xvi.
desaguar na etnografia. A musicologia nasce desse impulso, e a etnomusi- A antropologia e a etnografia são filhas deste espírito. Seu ímpet? era
cologia o mantém vivo. forjar uma disciplina autônoma, uma ciência das sociedades primitivas,
No célebre artigo de Guido Adler (1885), visto como fundador da através da qual estas poderiam ser vistas em todas as suas dimensões. A
Musíkwissenschaft ("ciência da músicà', que mais tarde será chamada de mu- orientação inicial tomada foi historicista e etnocêntrica: o chamado "evolu-
sicologia), esta ciência aparece desde já cindida em dois ramos: o histórico cionismo" media o atraso dos povos primitivos em relação à civilização eu-
e o sistemático. Esta cisão, entretanto, nada tinha a ver com a futura divi- ropeia, colocando este estágio de desenvolvimento técnico como necessário
são entre musicologia e etnomusicologia, ao contrário. A "ciência histórica e, ao mesmo tempo, justificando a dominação colonialista através da visão
da músicà' objetivava o estudo das notações, formas musicais e "leis da arte" de uma culrura europeia superior que tutela os povos inferiores. Mas para
de períodos históricos particulares, enquanto a "ciência sistemática da mú- isso era necessário compreender a mente primitiva e as práticas de magia.
sica" se debruçava sobre teoria, estética e pedagogia musical. Adler chamou O grande Sir Prazer, em sua obra principal, O Ramo de Ouro (1982), inter-
a atenção para um "novo e promissor campo de estudos adjacente à musi- pretou a magia dos povos primitivos como uma prática grosseira, anterior a
cologia sistemáticà' (p. 14), cuja tarefa era comparar com viés etnográfico um desenvolvimento que culminará na glória da religião e da ciência. Ou-
a música de diferentes povos. A este campo ele chamou de Musíkologie, ou tro grande pioneiro, Morgan (1985), afirmou que há uma progressão natu-
Vergleichende Musikwissenschaft ("ciência comparada da músicà', ou "musi- ral e necessária do estado selvagem à civilização, passando por um período
cologia comparadà'). É curioso afirmar, com toda a discussão terminológi- de barbárie. Para ambos, a magia não serve para nada, pois só puderam vê-la
ca que iria ocorrer, que o termo "musicologià' propriamente, Musíkologie, em relação ao progresso. Os evolucionistas, assim, deixaram inúmeras zonas
seja originariamente relacionado unicamente à etnografia da música. Nota- polêmicas em aberto, inúmeros buracos (ver Castro, 2005) e por aí vai se
-se neste artigo de Adler o esforço em deslocar os estudos sobre música do dar o desenvolvimento posterior da antropologia: com Malinowski (1984),
olhar estético-filosófico para colocá-los sob a perspectiva empírico-científi- o antropólogo de gabinete dá lugar ao etnógrafo viajante, executor da pes-
ca, seguindo assim o espírito de sua época, que era o da busca científica pe- quisa de campo que exige convivência com os nativos por determinado tem-
lo entendimento do homem, suas origens e comportamentos. Neste espíri- po, e assim surge o fieldwork ("trabalho de campo").
to período do final do século xix, o campo da antropologia também estava Assim embebida por uma fascinação pelo universo simbólico-mitológi-
em formação. Vale a pena uma breve digressão sobre as últimas décadas do -co-religioso dos povos primitivos, na segunda metade do século xix surgiu a
século xix, pois ali estão as raízes da etnomusicologia e, portanto, os funda- antropologia, ambígua já de nascença em sua condição moderna, buscando
mentos da pesquisa em etnomusicologia. no primitivo explicações para o "mal-estar da civilização", como disse Freud,
O século xix é um gigante às nossas costas, muitas vezes injustamente pois havia a intuição de que a natureza humana se deteriorou, algo havia si-
desacreditado. A moldura de nosso século é ali brilhantemente elaborada: do perdido. O antropólogo Edward Tylor achava que, com a civilização, de-
Marx, Freud, Darwin, e tantos outros investigadores que forjaram seus res- terminadas capacidades e potenciais humanos desapareceram, desativados

64 65
pelo racionalismo, e que era possível que os chamados povos primitivos ain- do estudo das estruturas musicais de fonogramas vindos de várias partes do
da possuíssem esses poderes (sobre isso, ver Carvalho, 1993). Esse impul- mundo; compreender a mente primitiva e sua relação com a civilização.
so alimentou não somente a nascente antropologia, mas também a musico- A tematização emológica da Escola de Berlim resultou em obras pionei-
logia, filhas deste caldeirão de grandes revoluções que estavam se iniciando ras sobre a música das sociedades primitivas. Estas investigações fornecem es-
nesta passagem para o século xx. . quemas ainda hoje utilizados para a classificação de instrumentos (Sachs &
Na virada do século, a nascente musicologia comparada se fortale- Hornbostel, 1986), embora no seu contexto original estejam ancorados na
ceu institucionalmente pela formação da Escola de Berlim de Musicologia perspectiva· evolucionista e d.i.fusionista, e em modelos quantitativos. No en-
Comparada e do Arquivo de Fonogramas do Instituto de Psicologia da Uni- tanto, o desenvolvimento da musicologia comparada foi interrompido nos
versidade de Berlim. Figuras como Erich M. Von Hornbostel e Carl Stum- anos 30 pela ascensão do nazismo, que forçou a dissolução do seu quadro de
pf, que dirigiam estas instituições, formaram o que se convencionou chamar pesquisadores e levou à mudança do cenário da musicologia comparada ale-
de "Escola de Berlirn''. 1 Para Menezes Bastos (1995), os estudos desenvolvi- má para os Estados Unidos, onde, nos anos 50, foi batizada de etnomusico-
dos neste momento inicial da disciplina portavam um olhar essencialmen- logia. Neste país, a antropologia seguiu o curso da escola culturalista fUnda-
te psicológico e performático (gestáltico), investigando as sensações em re- da por Franz Boas, cujo pensamento se opunha à perspectiva evolucionista
lação aos sons, as propriedades do som, a natureza dos irttervalos e escalas e (Boas, 1995). Com uma forte base empírica, esta escola segue a trilha aberta
da noção de consonância (Christensen, 1991; Schneider, 1991). Um exem- por Malinowski e foi-se fortalecendo o relativismo cultural (tratarei adiante
plo disto é a obra Tonpsychologie, na qual Stumpf desenvolveu uma teoria desta questão). Foi nestes Estados Unidos dos anos 50 que a etnomusicolo-
da sensação do som e dos efeitos que a música causa em ouvintes (univer- gia se fortaleceu como disciplina acadêmica, principalmente com a formação
sais), criando um aparato conceitual para investigar este campo até então ,,=:i da Society oJEthnomusicology (e seu periódico Ethnomusicology).
praticamente inexplorado. Sua noção de "distância' entre os sons foi im-
portante na época, tendo sido posteriormente desenvolvida por Hornbos-
.
'I·1 Nos anos 60, Merriam (1964) mostrou as duas abordagens que até en-
tão vigoravam na emomusicologia: aquela que reduzia a música ao plano
tel e Abraham na elaboração da teoria dos constituintes do som (Helligkeit,
Tonígkeít, Lautheit e Klangfarbe). Apesar da parte empírica destes experi-
mentos (medições e generalizações) hoje serem consideradas ultrapassadas,
I
..

t
de expressão, desprezando seu sentido sociocultural, característica dos estu-
dos da musicologia histórica e de etnomusicólogos como Hood e Kolinski,
e aquela que negligencia a parte sonora da música para se .fi.mdar em numa
o modelo de Stumpf, que tem uma sólida base filosófica na fenomenologia . ~ "semântica destituída de substância' (Menezes Bastos, 1995), cujo princi-
e na Denkpsychologie, bem como na posterior Teoria da Gestalt, está ainda pal apóstolo é Lomax. Merriam, criado na tradição antropológica cultura-
aberto para desenvolvimentos2 • Refiro-me articularmente à área de Psicolo- ··I·
lista de Boas, ·influenciado por Kroeber e aluno de Herskovits, apresenta o
:l
gia Cognitiva da Música, na qual há muitas pesquisas sendo desenvolvidas conflito congênito da disciplina: o dilema musicológico segundo o qual a
que; de certo modo, revivem o espírito de Stumpf e deste momento inicial
da etnomusicologia. Por exemplo, Raffman (1993) examina a relação en- I música se constitui de dois planos distintos, o dos sons e o dos comporta-
mentos. A etnomusicologia tenta colocar-se entre estes dois polos, o primei-

~l
tre a memória e a verbalização no caso da percepção de música tonal com o ro sendo próprio da musicologia e o segundo da antropologia. Buscando es-
objetivo de desenvolver uma explicação cognitivista da inefabilidade musi- clarecer seu campo epistemológico, Merriam posiciona a emomusicologia,
cal. Tratando assim da percepção, memorização, representação mental e ver- I portanto, como uma ponte entre as ciências humanas e as humanidades, e
cria sua célebre definição: etnomusicologia é o "o estudo da música na cul-
balização das estruturas musicais, o trabalho desta autora recupera o olhar
psicológico que era cultivado na Escola de Berlim, que procurava, através tura' (Merriam, 1960).
1
Há vários textos em porruguês a respeito dos primórdios da emomusicologia, dentre os quais destaco
Menezes Bastos (1995), Pimo (2001) e Lühning (1991).
2
Wolfgang Kõhler e seus colegas criadores da Gestalttheorie foram alunos de Carl SrumpE .I,
.~
I Outra figura-chave da etnomusicologia norte-americana é Brliflo Nettl
(1964), aluno de Boas que não se encaixa propriamente em nenhuma das
abordagens vigentes, nem a corrente de acento mais musicológico nem a li-
.~
66 67
nha mais antropológica. Da primeira, apega-se às descrições e análises do
material musical,· e da segunda, enfoca questões como o papel da música na
~r
!····· rativa, age na regeneração da cultura, integrando o pensamento do homem
como "sistema modelar primário" (2007, p. 212). A partir desta abertura,
cultura, desenvolve ideias sobre a temática da mudança cultural aplicando 13lacking investia-a
t> as mudancas no mundo da música como indicadores de
>

conceitos de acento difusionista, como o de musical area. O autor vê a et- possíveis mudanças no cerne da sociedade, expressando estágios de senti-
nomusicologia como "a disciplina que busca o conhecimento das músicas mentos de uma nova ordem das coisas. 4 Além disso, Blacking deve ser o pri-
do mundo, com ênfase na música que está fora da cultura do pesquisador" meiro etnomusicólogo que investiga a habilidade musical e os processos de
(1964, p. 11), sendo que seu objeto seria, portanto, a música das culturas · composição sem utilizar critérios etnocêntricos, mas sim buscando catego-
não-letradas, a das avançadas sociedades orientais e a folclórica. É de se des- rias nativas e ressaltando o papel criativo do ouvinte.
tacar a importância desta obra de Nettl (1964), principalmente nas suas ob- Aluno de Merriam, Steven Feld publicou uma etnografia da música da
servações teóricas e metodológicas sobre o trabalho do etnomusicólogo, po- sociedade Kaluli, de Papua, Nova Guiné, e esta obra se tornou um clássico
rém desde os anos 60 ele já publicou diversas outras obras fundamentais e da etnomusicologia (Feld, 1982). Com o objetivo de compreender o éthos
igualmente importantes (p. ex. Nettl, 1995, 2005). Kaluli através do estudo do som como sistema de símbolos, o autor obser-
Apesar da importância atribuída ao polo musicológico da etnomusico- va que, na teoria musical n~tiva, o som é tomado como materialização de
logia, nem Merriam nem Nettl chegaram a idealizar a importância em cons- sentimentos profundos, encontrando-se epistemologicamente situado en-
truir modelos de análise compatíveis com a teoria musical nativa. Isto é o tre o sentimento dos Kaluli e os pássaros, mantendo uma relação metoní-
que John Blacking vai enfatizar em seus estudos sobre a música dos Venda e mica com o primeiro e metafórica com o segundo. O que ocorre nos mitos
outros grupos africanos (1967). Herdeiro intelectual de Merriam, Blacking e nas canções Kaluli, portanto, constitui uma interface entre cultura e natu-
é o primeiro que retoma a ideia da prevalência de senso tonal entre não- reza, que também é alcançada no choro ritual e em outras formas poéticas.
-ocidentais, entre outras novas ideias (ver Travasses, 2007). Este autor ten- A abordagem teórica de Feld é inovadora, pois mescla três correntes bem di-
ta romper a dicotomia música! cultura enfocando o contexto cultural como versas e de difícil compatibilidade: a hermenêutica de Geertz, o estruturalis-
base fu11:dante dos estilos musicais, cujos termos "são aqueles da sociedade mo de Lévi-Strauss e a etnografia da comunicação de Dell Hymes. Com esta
e da cultura, e dos corpos dos seres humanos que os escutam, criam e exe- obra, a imbricaçáci de música, mito e sociedade fica muito evidente, corro-
cutam" (1973, p. 25). Assim, a música não pode ser analisada somente no borando para uma visão holística, sistemática e sociocultural da música, tí-
seu nível de expressão: combinações motívicas se articulam e interagem com pica da etnomusicologia pelos menos até os anos 1980.
elementos de outros domínios culturais, como parte de um sistema holístico Este percurso histórico é fundamental para discutir quaisquer questões
no qual todos os fenômenos perceptíveis estão interligados. sobre pesquisa em etnomusicologia, visto que a disciplina tem uma trajetó-
Esta abordagem da música como sistema cultural é tida como uma con- ria metodológica rica e, graças ao suporte da antropologia, bastante teórica.
tribuição forte em direção àquilo que se pode entender como teoria musical A etnomusicologia que se desenha a partir de Blacking mostra que a músi-
nativa. "Nativo" aqui não quer dizer aborígine ou indígena, mas é um ter- ca é portadora de facetas da fundação da cultura e que se encontram codifi-
mo metodológico da antropologia que designa um membro de uma socie- cadas em sua dimensão sonora. Isto contraria a visão de Merriam, que pro-
dade enquanto indivíduo integrado no sistema cultural específi.co. 3 Teoria move uma cisão entre música e cultura: há naquela sua primeira definição
musical nativa seria, assim, o conjunto de postulados que organizam a di- (o estudo da música na cultura) um absurdo epistemológico, a música apa-
mensão musical, sejam estes conscientes e cobertos por categorias linguísti- recendo como um subconjunto limitado que se encontra dentro do conjun-
cas ou não. Onde há repertórios musicais há uma teoria musical implícita. to total da cultura, desvinculando-se assim de outros possíveis subconjun-
Para Blacking, a música não somente reflete a realidade social, mas é gene- tos, entre os quais podem estar a dança ou as narrativas míticas. Segundo o
3
Por isso, rodos somos nativos. 4 Nisro, lembra as ideias deAnali sobre como a música antecipa mudanças na sociedade (1977).

68 69
modelo holístico tal subdivisão não ocorre, a não ser que, por alguma moti- to debatido desde que o termo ethno-musicology foi cunhado por Kunst em
vação metodológica, se reduza a música à dimensão dos sons. Inúmeros tra- 1950, o assurito não é de modo algum coisa do passado. 5 Na segunda me-
balhos mostram que o conteúdo da música não apena5 aponta ou remete à tade do séc. xx, Frank Harrison afirmou que toda musicologia é etnomu-
cultura: a música, de certa forma, é a própria cultura, isto no sentido de que sicologia, pois trabalha aspectos sociológicos, e John Blacking afirmou que
na totalidade da música estão traduzidos simbolicamente os elementos da toda musicologia é uma musicologia étnica, pois o viés cultural está dado
totalidade da cultura. nos seus métodos e objetivos analíticos (Porter, 1995). Tais afirmações, que
Esta perspectiva, que se consolida com as revoluções pós-modernas, viajaram a favor das turbulências epistemológicas do pós-modernismo e da
aponta para a viabilidade de uma compreensão da música indissociável do New Musicology, não serviram para erodir as sólidas instituições cujos alicer-
sistema sociocultural. Isto vale não apenas para a música dos Kaluli ou dos ces se encontram na separação. Se há uma convergência geral em termos de
Venda, mas para qualquer sistema musical; ou seja, música clássica, popular, objetivos e de aspectos metodológicos, somente algo extracienúfico poderia
folclórica, qualquer tradição musical produz uma música necessariamente sustentar o prefixo: as disputas no campo cientifico, ou como disse Bour-
imbricada com cultura e sociedade. Vale lembrar que, com a vasta penetra- dieu, a luta pelo monopólio da autoridade do discurso ou da competência
ção da fenomenologia nas ciências humanas, a compreensão da sociedade cienúfica (1975, 1983). Creio que é preciso se dar conta disso antes de cair
passou a depender e exigir um papel de participante assumido pelo intér- em um debate que ingenuamente busca na própria ciência justificativas que
prete do fato, no caso da etnomusicologia, o etnomusicólogo ele mesmo. Ao só se encontram no mundo social. Apesar disto, o termo etnomusicologia
contrário de conferir significado às coisas observadas, o etnomusicólogo ex- está em uso nas instituições de ensino de todo o mundo, e talvez não seja o
plicita o significado subjacente das objetivações (Habermas, 1989), confi- momento de celebrar uma nova musicologia, e por isso vamos aceitar o ró-
gurando-se conforme o paradigma hermenêutica. Assim, o etnomusicólogo tulo até quando ele cair por si próprio, mas por enquanto é importante ao
como produtor de conhecimento, com seu embasamento na antropologia, menos não reproduzir a referida ingenuidade.
está ciente da ausência de neutralidade no discurso cientifico e de que todas
os relatos e observações socioculturais e históricos estão baseados em inter- SOBRE RELATMSMO
pretações dos fatos. Ora, se estes postulados estão presentes também na mu-
sicologia atual, e se o aspecto sociocultural é inerente a toda música, surge a A expressão que melhor esclarece sobre o uso comum do conceito de
pergunta sobre o que, hoje, distingue musicologia de etnomusicologia. Es- relativismo cultural reza que cada cultura tem seus próprios termos e que
tamos tratando de etnomusicologia ou de uma nova visão da própria musi- ela somente pode ser conhecida ou julgada através deles. Como vimos aci-
cologia? O que realmente significa este prefixo "etno"? ma, o conceito surgé por influência do culturalismo de Boas, mas original-
mente envolve um certo ideal preservacionista (ou salvacionista) em relação
aos "primitivos". O relativismo expressava "o desejo de proteger as popula-
ções subordinadas da discriminação e pilhagem do povo dominante" (Gol-
É importante que tenha urna ampla compreensão do prefixo "etno": ele dschmidt, 1960, p. 563). Tido como um histórico relativista "radical", Her-
vem sendo questionado por muitos pesquisadores, há muitos discursos uni- skovirs afirma que, na verdade, o relativismo nega os valores absolutos, mas
ficadores em relação à uma nova musicologia. Ao mesmo tempo, ele conti- não a moralidade: ao contrário, valoriza a dignidade inerente a cada corpo
nua sendo empregado para criar um distanciamento em relação a uma velha de costumes e insiste na necessidade de tolerância (Herskovits, 1963). Pa-
musicologia, afirmando uma diferença epistemológica que justifica falar-se ra outros, o relativismo é uma posição que deve ser superável, pois mantê-la
em outro campo intelectual. Muitos dos etnomusicólogos que insistem no torna impossível a comparação, acabando com o empreendimento antropo-
prefixo se recusam a dissolvê-lo em favor do termo musicologia, que reme-
te a uma tradição por eles questionada. Apesar de tudo isto já ter sldo mui- 5 Ver, por exemplo, os vários artigos recentes reunidos em Sroban (2008).

70 71

,,
d
lógico, pois sem o método comparativo não haveria antropologia (Kaplan
e Manners, 1981, p. 18-23). Spiro (1992) procu.:a mostrar que não há um
relativismo, mas três: o relativisrpo descútivü, que é o julgamento à em fato
da diversidade cultural, o relativismo normativo, onde o julgamento é so-
bre o sistema cultural, e o relativismo epistemológico, que vai além dos dois
primeiros e declara que tudo é inscrito pela cultura, cada cultura sendo um
mundo único e incomparável. Spiro busca combater este último tipo, bem
como a antropologia hermenêutica, pois crê também que ambos represen-
tam o fim da antropologia enquanto disciplina cienúfi.ca. Outra perspectiva
antirrelativista é a de Gellner (1995), que se mostra defensor de um racio-
nalismo crítico, em favor do universalismo. O relativismo levaria, em suas
manifestações na esfera política, ao populismo e ao nacionalismo, daí suare-
cusa em aceitar o que entende por uma obsessão dos antropólogos por mun-
dos fechados de cultura compartilhada. Uma perspectiva oposta é de Nel-
son Goodman (1985), um relativista radical que fala de um único mundo,
mas de uma multiplicidade de versões-de-mundo, mutuamente intraduú-
veis. Também na abordagem fenomenológica de Schutz (1967), a realidade
é construída e múltiplas realidades e~ergem em função da variedade de ne-
cessidades da consciência. É como pensa Langer (1971): diferentes "mun-
d~s", do sonho, da arte, da experiência religiosa, da contemplação cienúfica,
diferentes províncias finitas de sentido. Portanto, há diversos relativismos e é
importante que o pesquisador reflita sobre qual perspectiva se encaixa na sua
linha de pensamento. Que cada cultura tenha seus próprios termos e que ela
só possa ser conhecida ou julgada através deles é um fato inegável, porém a
questão do relativismo depende de até que ponto se toma uma base univer-
sal para estes termos.
Nesta primeira parte do presente trabalho, procurei mostrar as raízes na
etnomusicologia e a trajetória de seu desenvolvimento até os dias de hoje,
onde a pertinência de uma musicologia geral e englobante é discutida. É im-
p~escin~ível p~r.desta trajetória para alcançar uma compreensão ampla da
dimensao qualitatlva da pesquisa em etnomusicologia. A importância das
raizes e da trajetória da ernomusicologia, da etnografia, da hermenêutica, do
relativismo cultural, do reconhecimento das fronteiras enevoadas entre mu-
sicologia e etnomusicologia, é algo inegável e a disciplina somente pode ir
adiante partindo destes marcos. Vamos agora discutir alguns aspectós màis
pontuais da pesquisa em etnomusicologia a partir de questões interessantes
que me foram feitas por estudantes. · .

72 73
po para um objeto, podemos dizer, "autêntico", e não sobre sua "triste" rea- teoria; lim ponto virtual com o qual o estudante deve prepara-se para estar
lidade contemporânea. face a face. Vamos tentar desenvolver um pouco isto.
Procurei deixar fluir seu trabalho, sem problematiZar demais, afinal, a Na perspectiva teórica, sabemos que grande parte da emografia do sécu-
monografia de conclusão de curso é um trabalho de iniciação à pesquisa. En- lo :Xx apresenta o pressuposto de um sujeito observador e um objeto pesqui-
tretanto, eu tive vários questionamentos ao longo da orientação, mas que sado, reproduzindo a famosa dicotomia sujeito~objeto. Mas Kant já mos-
eram dirigidos a mim mesmo: eis, mais uma vez, o problema do realismo et- trava que conhecer um fenômeno significa realizar seu entendimento como
nográ:fico, da autenticidade, a questão da descontemporanização dos nativos, objeto de éonhecimento, ou seja, que o objeto é uma construção resultante
o processo de exoticização na emografia, entre muitos outros. Por fim, a ques- de uma leitura efetuada pelo nosso próprio aparato perceptivo. O objeto, tal
tão do próprio trabalho de campo e do preparo que se pode dar a um estu- como ele realmente é, nunca poderá ser conhecido. Aqui mesmo tem início
dante para enfrentar estas questões táo presentes no contexto contemporâneo. um dilema para o realismo emográfico que se liga à própria crise das ciên-
Sem dúvida, o interesse pela emografia e pelo trabalho de campo tem a cias: a ciência encontra respostas porque já instala desde sempre aquilo que
ver um pouco com o interesse de vivenciar e produzir o exótico, no sentido busca em suas próprias perguntas. A pergunta já determina a resposta. Po-
daquilo que se encontra fora do horizonte de normalidade da cultura do et- demos falar do bóson de Higgs como sendo um objeto no mundo, mas não
nógrafo. Este, em seu ensejo, busca o exótico, procura o diferente, naturali- porque ele foi evidenciado e sim porque já existe matematicamente, porque
zando o que é comum. Um outro estudante me perguntou o que deve entrar sustenta toda uma teoria do cosmos. Uma das maiores construções da hu-
na descrição emográ:fica, se é importante descrever, por exemplo como um manidade está sendo feita para concretizar a resposta já presente na hipóte-
nativo come. Tive que admitir que descrever os nativos tomando o alimen- se e na pergunta que sustenta toda a física atual. Ao contrário, certos fenô-
to pelas mãos, levando-o à boca para mastigá-lo e engoli-lo não era algo para menos do mundo natural parecem que somente começam a existir a partir
se colocar no trabalho. Este ato ordinário de comer não consiste em um fa- do momento em que são observados (Latour, 1994). Os limites do aparato
to emográ:fico, a não ser que houvesse uma simbologia implícita, ou se algo mental humano na observação do real se tornam flagrantes.
diferente ocorresse no processo, por exemplo, se eles cuspissem parte do ali- Heidegger afirmou, em Ser e Tempo, que a analítica existencial do Dasein
mento antes de engolir. Uma estudante que ouvia o debate me questionou: encontra-se antes de toda psicologia, antropologia e biologia. Isto quer dizer
"assim, quando se lê uma emografia, não se trata então daquilo que realmen- que o modo próprio do ser humano de estar no mundo é tal que está funda-
te aconteceu?". Foi como se ela continuasse a dizer: sim, mas se trata de uma do em um nível anterior ao nível ôntico onde opera o pensamento racional.
coleção de fatos extraordinários, compilados de forma a criar um universo sui A ciência é ôntica, segue o senso comum que se origina em Galileu, crista-
generis. E se assim for, o trabalho de campo não p.lrece mais uma caça ao ob- liza-se na metafísica de Descartes e vai adiante, do mecanicismo newtonia-
jeto exótico? Como responder estes questionamentos de estudantes de mú- na à física quântica, constituindo a maior parte do paradigma científico tra-
sica? Esclareci que a emografia é uma ferramenta poderosa, mas tem limita- dicional. Entretanto, o modo de estar no mundo do ser humano reporta ao
ções. O efeito de exoticização pode de fato estar presente ali, na produção do ontológico, ao que é anterior a toda realidade ôntica. o realismo é um dis-
texto, na construção de um mundo onde se privilegia o extraordinário. curso ôntico que, na verdade, está fundado em uma ontologia, é preciso re-
Embora esta limitação teórica que aludi ao esfudiirite-seja-oerii conheci- conhecer esta premência.
da na antropologia atual, tendo sido tratada por diversos autores como, por- É claro que o realismo emográfico se tornou insuportável e, a partir dos
exemplo, Geertz (1998) e Fabian (1983), estas dúvidas de estudantes me re- anos 60, com a chamada pós-modernidade, há toda uma crise da represen-
velam que o problema da consistência do realismo emográ:fico é algo perma- tação e da validade do co.nhecimento etnográfico. Sob influência do próprio
nentemente questionável. Parece haver um ponto limite, talvez guiado mais Heidegger e de Wittgenstein, a partir dos anos 70 a emografia atravessa o
pela sensatez, pela experiência, e certamente por princípios éticos que pela pós-moderno consolidando-se no reconhecimento da precariedade do rea-

74 75
lismo e do impulso da explicação neutra, adotando a perspectiva do etnógra- ção vem de encontro à necessidade de exoticização, é uma estratégia de re-
fo enquanto autor situado historicamente em seu empenho de compreensão sultado. A questão que fica, além do problema do realismo etnográfico, é
e tradução de uma realidade. A hermenêutica toma o posto do realismo. A fe- sobre o direito dos nativos de serem retratados de forma consistente com a
nomenologia é seu veículo e a precariedade da etnografia é sua grande força. forma como são no presente.
Ela norteia urna concepção de trabalho de campo completamente diversa do Outra questão que muitos estudantes me fazem quando falo de meu
modelo consagrado no Guia Prático de Antropologia (rai, 1973). trabalho de campo entre os índios Wauja, é sobre a naroreza do vínculo que
Para os estudantes, pude argumentar que o trabalho de campo deve le- se estabelece entre pesquisador e nativos. É verdade que muitas vezes é um
vantar dados para construir uma etnografia que, lc.-, ge de pretender apresen- vínculo pontual, contratual, mas outras tantas vezes envolve o afetivo e mes-
tar realidades tais como elas são, pode produzir descrições de experiências mo a dependência. No cenário contemporâneo, fica cada dia mais eviden-
etnográficas. A experiência etnográfica, com todas suas limitações e errân- te que os nativos desejam compreender claramente o que está sendo feito e
cias, é em si mesma a base do conhecimento mtropológicc, que interessa à muitos desejam ter um retorno do trabalho para a comunidade. Muit~ ve-
etnomusicologia. A chamada "antropologia da experiência" oferç..:e diver- zes o pesquisador se torna uma espécie de assessor dos nativos, orientando-
sas chaves preciosas para pesquisa de campo (Turner & Bruner, 1986). Por -os nas dificuldades do mundo contemporâneo. Até que ponto os estudan-
exemplo, a atenção às expressões, representações, performances e discursos, tes estão cientes dos tipos de vínculo que podem surgir, e em que medida
apregoada por Geertz, envolvendo interpretações de segunda mão. Ou seja, suas estratégias de trabalho de campo envolvem um conhecimento acerca
os dados coletados com informantes resultam da interpretação de um sujei- disto?
to: o informante. A forma como este sujeito interpreta o fato é passada ao Parece-me que, no caso da etnomusicologia, o vínculo acaba por mate-
antropólogo, que por sua vez, como sujeito do conhecimento, fará uma in- rializar-se na mídia: são as imagens e os sons capturados que constituem a
terpretação desta interpretação. No limite, porém, este aspecto circular, não natureza deste vínculo. O etnomusicólogo em campo pode ter sempre em
realista da etnografia, completamente assumido- na antropologia atual, traz mente este peso que os sons têm. Por isso mesmo, é importante que haja a
fronteiras tênues com o discurso literário ou psicológico, limites que, se ul- possibilidade de armazenar e preservar este vínculo materializado em insti-
trapassados, solapam os resultados antropológicos do trabalho. Etnografia tuições adequadas. Para tal, arquivos sonoros são a solução que, malgrado
não pode se confundir com _romance ou ficção. Para escapar disto, enten- sua urgência e papel capital, parece tão difícil de ser concretizada no Brasil.
de-se que deve haver algum compromisso de realismo na etnografia, algum
fundamento científico no discurso. Hammersley chama isto de "realismo COMENTÁRIOS FINAIS
sutil" (1992): urna aposta no valor e na viabilidade cientÍfica da etnogra-
fia. Para alguns estudantes de música isto não esclarece muito: afinal, como As raízes da trajetória da etnomusicologia revelam que o gesto que está
é este realismo sutil, de que forma ele pode ser uma meta para o trabalho por trás desta disciplina tem laços profundos com a aventura antropológi-
de campo? Justamente porque é sutil, não pode ser objetivamente definido, - ca. Os modelos teóricos que alicerçam a pesquisa em antropologia serviram
mas deriva, mais urna vez, de um bom senso, de uma boa imersão nos exem- de base para a consolidação da etnomusicologia, tais como as teorias do re-
plos da lite)."atura e de um compromisso ético. -lativismo cultural. Porém, com a influência da fenomenologia e da herme-
Bem, a etnografia da.prática "em extinção" ficou interessante, um bom nêutica cultural nas ciências humanas, a etnomusicologia e a musicologia se
trabalho acadêmico, e o estudante acabou resolvendo seu dilema entenden- transformaram e se aproximaram de tal modo que, atlialmente, é possível
do seu trabalho como um tipo de "resgate", e orientá-lo me fez pensar sobre falar em um ·único campo de saber, uma musicologia geral, que abraça uma
a questão da descontemporanização. Ou seja, urna certa recusa do presente diversidade de estudos sobre a música.
em benefício do discurso dos anciãos, de um mundo presente somente nas EStudantes por vezes tocam em questões que, embora tenham sido tra-
narrativas ou documentos escritos sobre o passado. A descontemporaniza- balhadas ao longo da história da disciplina, mantêm-se sem solução, como

76 77
se fossem os pilares ocultos das ciências humanas. Com as transformações BOAS, ·Franz. Race, Language, and Culture. Chicago: University of Chicago Press,
do final do século :xx, todas as fronteiras e certezas tornaram-'se mais.frágeis, 1995.
estes pilares esconderam-se ainda mais. Há uma sauda<fe do tempo em que BOURDIEU, Pierre. La spécificiré du champ scientifique et les condirlons sociales
tudo era claro, que nada era problemático, o tempo do Guia Prático que os · du progres de la raison. Sociologíe et sociétés, vol. 7, n. 1, maio, 1975, pp. 91-
etnógrafos podiam ler e ir para campo munidos de todas as orientações, o 118.
tempo em que musicologia era musicologia e etnomusicologia era etnomu,.. _ _ _. "O Campo Científico". In: R. Ortiz (org.). Pierre Bourdieu: Sociologia.
sicologia, em que ouvir e praticar música era tão importante para o conheci- São Paúlo: Ática, 1983, pp. 122-55.
mento quanto ler e escrever artigos. Mas devemos nos despedir com prazer CARVALHO, José Jorge. Antropologia: Saber acadêmico e experiência iniciática.
desta época de ouro, sim, pois detrás das orientações do Guia Prática esta- Anuário Antropológico, 90, Rio de Janeiro, 1993, pp. 91-108.
va um colonialismo que é inaceitável hoje, e da mesma forma o que susten-
CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural-Textos de Morgan, IJlor e Prazer. Rio de
ta o "ema" tem mais claramente a ver com economia simbólica do mundo Janeiro: Zahar, 2005.
acadêmico do que com divergências reais. Enquanto a história corre, e ela é
CRIST, Stephen A. & MARVIN, Roberta M. Historical Musicology: Sources, Meth-
que julgará nosso tempo e colocará as coisas em outros lugares, vamos lidan-
ods, Interpretations. Rochester: University ofRochester Press, 2008.
do com as divisões precárias que criamos. A pesquisa em etnomusicologia
ao menos pode seguir sem inocência, sem essencializar conceitos. e a tomar CHRISTENSEN, Dieter (1991) Erich M. "Von Hornbostel, Carl Stumpfand the
Institutionalization of Comparative Musicology''. In: Bruno Nettl & Philip
como reais estas criações provisórias. Enquanto isto, a música vai moldan-
Bohlman (eds.) Comparative Musicology and Anthropology ofMusic. Chicago:
do as sociedades e, com sorte, vamos aprendendo com estudantes e enfren-
The University of Chicago Press, 1991, pp. 201-9.
tando suas questões que, às vezes, tocam no fundo dos dilemas da música.
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:1

PINTO, Tiago de Oliveira. Som e música: questões de uma antropologia sonora.


Revista de Antropologia, São Paulo, 44, 1, 2001, pp. 221-286.

80 81
Por uma pedagogia da composição musical Eni seguida às inquietações, os pontos de desafio ali identificados são dis-
cutidos brevemente, com vistas a possíveis avenidas de investigação de cada
Celso Loureiro Chaves um deles, "olfateando horizontes"- diria a poeta Julia de Burgos- para a pes-
quisa em pedagogia da composição musical no meio acadêmico brasileiro.
Antes, então, os pressupostos.
A aquisição do saber compositivo no meio acadêmico brasileiro padece de
1. Pressupostos. As atividades de composição musical podem ser en-
indefinições, seja no ensino de graduação, seja no de pós-graduação. As in-
tendidas co.mo um processo de tomada de decisões que se estende por três
definições começam por binários de aparentes oposições - música acústica
ou músiea eletroacústica? Música vernácula ou música de concerto? Tonal territórios:
oder atonal? Conhecimento interdisciplinar ou conhecimento intradiscipli- e decisões ideológicas - o estabelecimento do repertório com o qual se dia-

nar? São indefinições que não cabem no escopo de um capítulo, como não loga e no qual é possível intervir para a solidificação de suas concepções;
caberiam no escopo de toda uma vida compositiva. O que cabe, e há inquie-
• decisões estéticas- quais componentes sonoras são colocadas em ação,
tações suficentes para isso, é um apontamento de três Ôu quatro aspectos so-
e quando, como se integram e como divergem, o quanto se bastam e o
bre os quais se debruçar, esmiuçando implicações, improvisando suposições.
quanto se consomem;
As indefinições que reconheço na música acadêmica do Brasil, "Norte,
Centro, Sul, inteiro", 1 não tem sido impeditivas do enraizamento da com- o decisões pontuais- as decisões de processo de criação que impelem o
posição musical na disciplina universitária; no entanto, elas têm dificultado trabalho para diante e conformam a obra em um processo cumulativo
a identificação de linhas de pensamento, que devem ser inúmeras e várias, de informações.
que deem urna ideia do estado-da-arte da ideologia sonora brasileira nesse Nesses territórios de decisões, o processo criativo está em movimento
âmbito específico. Pouco se tem refletido sobre urna pedagogia da composi- constante e essas operações ocupam diferentes escalas temporais.
ção musical acadêmica e é necessário fazê-lo para que seus pontos de desafio, As decisões ideológicas se movem mais lentamente, pois sinalizam com
que também são inúmeros e vários, venham à percepção dei compreensível e certa permanência urna família de interlocuções possíveis. O estabelecimen-
tàmbém nos ensinem algo. to dessas interlocuções é parte indispensável de uma pedagogia da composi-
Aqui são apresentadas reflexões sobre possíveis linhas investigativas, são ção ao propor vínculos que estendem o trabalho individual para o coletivo.
propostos alguns grandes e pequenos temas, sobre a pedagogia da composi- As decisões estéricas se movem mais rapidamente dentro do território
ção musical e da pedagogia da composição musical, pontilhadas aqui e ali do ideológico, admitindo constantes flutuações de caráter geral que são pró-
por epígraf~;S retiradas do ensaio Idée, Réalisation, Métier, de Pierre Boulez, 2 prias d:J construção de um repertério individual. Aqui, o foco das decisões
como, por exemplo: "Uma ideia em si, musicalmente, não existe; ela é rea- se desloca "do ~o~ial" pata o "do material".
ção ao que nos circunda culturalmente." O processo de decisões pontuais é o mais veloz e deixa traços concre-
Por isso, antes da listagem das inquietações que movem este texto, são tos atrás de si, sob a forma J.e anotaçéies em diferentes graus de completude
estabelecidos alguns pressupostos que são ,C:Q{Il.PJ:'()I!l.ͧ_sg§_,gª :ár.çs.,<:l.t:: cqnhe- e que, em retrospecto, C.:io conta e testemunho do trabalho do compositor.
cimento "composição musical" com ela mesma e com a sociedade a quem Para o estudante de composição (daqui em diante tratado abreviadamen-
ela deve prestar contas, pois é dela que o conhecimento emana e à qual ele te como "ec"), esse processo coniigura o próprio percurso da aprendizagem
deve retornar, transmutado. compositiva, seja como exercícios preparatórios, seja como composição em
1 Luiz Gonzaga, Hora do Adeus (1967), por via de uma rememoraçáo fenomenológica de Transa, o
vir-a-ser, seja como produto acabado.
álbum de Caerano Veloso de 1972. Estabelecidos esses pressupostos, aparecem as inquietações que dão al-
2 1n: Leçons de musique. Poinrs de répi:re III. Paris: Chriscian Borgouis Éditeur. 2005. p. 71-110. gum limite para os horizontes da investigação em busca de uma pedagogia

82 83
da composição musical. Um aprofundamento mais sistemático do tema por g) enfim, há o ponto de desafio do repertório, o qual, diãnte das infini-
certo resultaria em tantos outros horizontes, mas para o momento estes são tas possibilidades oferecidas, mas nem sempre prontamente utilizadas
suficientes para cercar o assunto cuja urgência é ditada, enfim, pela experiên- de sistematizar as informações largamente disponíveis ao ec, invade o
cia fatual e as indagações por ela geradas. ensino compositivo como questão central para onde rodas convergem,
2. Inquietações. Há sete inquietações que aparecem como pontos de de- fazendo fronteira com a questão da interdisciplinaridade ou, melhor se-
safio na busca por uma pedagogia da composição. Cada um destes pontos ria, com a falácia da interdisciplinaridade, pois que falácia ela se torna
sugere aberturas para a investigação e a pesquisa, mirando o lançamento de quando usada como aparência e não como substância.
princípios para o agir compositivo no âmbito acadêmico: Uma vez, Arnold Schoenberg afirmou que a composição é acima de
a) há o ponto de desafio da estrutura e da forma, sem o qual não se tudo a arte de inventar uma ideia musical e apresentá-la de maneira con-
avança, pois, deixando-o sem objetivação, despe-se igualmente a músi- veniente.3 Essa conveniência, que ele não pormenoriza, talvez seja atingida
ca de sua característica de processo; por vias desses pontos de desafio recém-descrito, e os quais se -passa a dis-
cutir brevemente.
b) há o ponto de desafio do tempo, condição indispensável para a exis-
tência de música, mas que nem sempre está no primeiro plano de preo~ 3. Ponto de desafio (a): estrutura e forma. No processo de tomada de
cupação do ec, pois antes ele/ ela há que se confrontar com a música co- decisões, a questão de estrutura e forma aparece como central. Obviamen-
mo processo para, em seguida, confrontar-se com as conotações de seu te pode-se avánçar na discussão acadêmica do exercício da composição sem
desenrolar no tempo; passar por ela, mas, a partir de um momento que logo chega, o equilíbrio
de conceituação da estrutura e da forma se torna indispensável, como dire-
c) há também o ponto de desafio da escolha de alturas; uma dentre vá-
cionamento ao exercício da atividade compositiva. Essa conceituação é fer-
rias questões pontuais que se pode buscar no processo compositivo; a
ramenta para a previsão do caminho a seguir quando o futuro ainda não
escolha de alturas é a questão mais vital da i:omada de decisões e inte-
gra, junto com forma/estrutura e tempo, um tripé de questões afeitas existe, pois também o tempo da música não existe se não lhe tiver sido da-
diretamente aos materiais do ensino compositivo e da composição co- da uma fisionomia musical. Sem essa ferramenta, o encaminhamento com-
mo exercício didático; positivo se torna deambulatório, fazendo com que o ec se encontre limita-
do pela ausência de conexões de ideias ou, menos ainda, com a ausência do
d) há o ponto de desafio, ao falar de processo e materiais, de entender dar-se conta da existência de possibilidades de conexão de ideias. Isto é se-
- do lado de cá da análise - que posição ocuFm a questão criativa e a melhante a dizer:
questão perceptiva na conformação de pensamento do ec, em que im-
portam e de que caráter indispensável são investidas; A ideia não existe antes de ter tomado consciência de suas possibilidades de realização.

e) e, também do lado de cá da análi~e e partindo da questão dr> '1rocesso Em texto de março de 1949, John Cage faz, uma distinção que pode for-
criativo, há o ponto de desafio do gecenciamento das fontes e dos ma- necer uma linha investigativa para a questão. Ele estabelece estrutura como
teriais pré-compositivos e compositivos, elementos constitUtivos do re- a divisibilidade em partes sucessivas, de frases a seções longas; e estabelece
gistro da composição-em-processo-de-vir-a-ser; forma como conteúdo e continuidade. Cage não revela pudores na sua uti-
f) há o ponto de desafio, uma vez que dos materiais se passa à análise do _lização de palavras estranhas à aridez técnica. Tanto assim que, se para ele, a
próprio diálogo - se não do embate - entre essas duas faces da m~ma estrutura é controlada pela mente, ambas "deliciando-se" com a precisão, a
moeda, pressupondo caminhos (conRitos?) da composição à análise e
da análise à composição; . .
3 Arnold Schoenberg. Style and Idea. Los Angeles: Universiry of California Press. 1975. p. 374.

84
85
clareza, a obediência às regras, a forma "tão unicamente quer liberdade para "nós" e ·a "peça de música" é fundamental para a compreensão do processo
ser, pois pertence ao coração e sua lei nunca foi e nunca será escrità'. 4 de tomada de decisõeS, que é objeto do aprendizado compositivo.
Assim definidas e assim discrepadas, estrutura e forina fornecem o arca- Não há dúvida, afirma Schutz, de que a dimensão de tempo na qual
bouço para os pensamentos que se seguem, o subtexto conceitual que per- uma peça de música existe é o tempo interior de nosso stream of conscious-
passa as observações que aqui prosseguem. ness.6 As ações do compositor são mediadas por essa relação. Em seu raciocí-
nio, Schutz parece se referir unicamente ao ato de ouvir: diz ele que "o fluxo
4. Ponto de desafio (h): tempo. Música é uma das artés do tempo, afir-
da música e o fluxo da stream [de nossa] consciousness estão interrelaciona-
mação não tão óbvia quanto parece e não tão óbvia- ou imprecisa- quanto
dos; há uma unidade entre eles; nadamos, por assim dizer, nessa torrente".
a afirmação de que música é a arte do som. Poucos cercaram a questão tem-
Na operação dessas interrelações, o recurso à memória é fundamental
po/música com tanta simplicidade como Jorge Luis Borges em seu poema "El
e entram em relevância outras definições fenomenológicas de Schutz, os ti-
Tango": ': .. hecho de polvo y tiempo, el hombre dura menos que la liviana me-
pos de rememoração do passado e os tipos de expectâncias do futuro. Essas
lodía, que solo és tíempo" .5 A leve melodia que é apenas tempo ... Esse é pena-
são categorias essenciais para a compreensão do processo auditivo de uma
menta que estabelece paralelo com o pensamento de Cage, descrito há pou-
peça de música, por certo. Mais ainda o são para a compreensão do proces-
co, ao caracterizar a forma como "continuidade". Pressupõe-se, em ambos os
so compositivo ou, ainda antes, para a conformação do processo de tomada
casos, que o tempo é a preocupação subjacente de compositor e poeta.
de decisões, se este levar em conta as rememorações e as expectâncias, cons-
Um material complexo desenvolve no seu próprio interior
tituintes, conforme Schutz, da interconetividade da stream of conciousness e
uma noção de tempo que niío será sempre compaúvel com
o tempo-envelope que vai ligar no interior de uma igualmente constituinte da experiência da música. Que se acrescente- cons-
organização global os fenômenos sonoros uns aos outros. tituirltf'" -ia experiência do ato CO'Yitpositivo da música.?
Se se acrescentar a F.Sta discussão o ·aspecto temporal do relacionamen-
Os impulsos que jogam o compositor para diante são o controle do tem- to entre "ideia'' e "realizaçãc>'' no sentido bouleziano, o quadro se completa.
po e o desenrolar da ideia no tempo- o desenho de um percurso entre o pon-
to A e o ponto B que é o percurso entre o início e o fim de um recorte nó Ideia e Realização estão estreitamente imbricadas
em um processo extremamente móvel, extremamente até precário.
tempo, de um recorte do tempo. Para a pedagogia da composição, eis um de-
safio sem fim, o de propiciar o desenvolvimento de urna noção de controle de Compositor e ouvinte, compositor/ouvinte, rememorações e expectân-
tempo, de projeção para adiante do tempo em um tempo que ainda não exis- cias, ideia e realização - esses são alguns dos elementos do aporte que fe-
te pois que a obra ainda não existe, num exercíciÓ compositivo em processo. nomenologia traz à noção de tempo e à pedagogia da composição, como
Nesse sentido, a fenomenologia pode vir em auxílio ao estudo do tempo elementos valiosos para serem trazidos ao nível da consciência e da objetivi-
como elemento primordial do discurso musical, tanto quanto a música é o dade como auxílio à compreensão das ações de tomadas de decisão. O lan-
objeto fenomenológico ideal, como o afirmaAlfred Schutz, cujas proposições çamento da ideia composicional no tempo, o desenrolar da ideia sonora no
são pertinentes na apreciação do tempo e da memória como elementos in- tempo, a articulação formal-da continuidade proposta por Cage - essas são
separáveis do processo compositivo. Os múltiplos cortes que Schutz exerce as ações objeto de aprendizagem e exercício na pedagogia· da composição
no contínuo temporal são importantes para definir os diversos tipos de Pas- musical, naquilo que concerne 9-0 tempo.
sado, Presente e Futuro. Mais ainda, a relação que Schutz estabelece entre o

6 Os apontamentos de Alfred Schutz sobre a fenomenologia da música esráo reunidos em In Search of


4O texto "Prec~ores da Música Moderna" onde estão essas afirmativas pertence a The Boulez-Cage MusicalMethod (F.J. Smit:h, ed.). Londres: Gordon An"d Breach. 1976. p. 5-72.
Correspondences (].]. Nattiez, ed.) Cambridge: Cambridge University Press. 1999. p. 38-42. 7Estes aspectos esráo pormenorizados na "Seção 14: O elemento temporal em música" da Fenomeno-
5 In: Obra poética. Buenos Aires: EmecéEdirores. 1972. p. 175-177. I ÚJgia dLZ Música, de Schutz.

86

l 87
5. Ponto de desafio (c): escolha de alturas. Problema central da cons- questão é a de, em um sentido verdadeiramente schoenbergiliano, possibili-
trução do pensamento compositivo do ec, da compreensão do que sejam os tar que as alturas sejam ditadas pelá teor expressivo que se espera delas e de
elementos denotativos do caráter expressivo de uma composição, a escolha suas combinações e recombinações, nunca o contrário. Pois que o princípio
de alturas se apresenta como enigma semelhante, mas mais aprofundado, ao seja a construção schoenberguiana da expressividade investida em um grupo
da estrutura/forma. de alturas. Que o final seja o resultado expressivo de algo como a cena der-
Contudo, podemos acrescentar que, do ponto de vista radeira de Satyagraha, de Philip Glass.
da composição, o som em si não é nada? A versatilidade e a
6. Ponto de desafio (d): criação e percepção; poiesis e esthesis. Assim co-
COerência VãO permitir que ele Se integre aO procesSO da obra. 8
mo Jean-Jacques Nattiez afirma que o analista arbitra "isto é o que se ouve",
Pode-se lançar mão dos rudimentos da técnica serial para auxiliar na es- o ec arbitra o seu ouvinte ideal, investindo nele o poder de compartilhar o
colha de alturas, como processo que por um momento abstrai dos seus ho- processo de tomada de decisões, arbitrando "isto é o que ele/ela ouve'\ O
exercício de imaginar o ouvinte ideal é verdadeiro também para outras eta-

II
rizontes a preocupação harmônica. No entanto, há que se reconhecer que
da anulação do tonalismo se chegou à reificação das alturas. A multiplicida- pas de uma vida compositiva, mas é na pedagogia da composição que ela
de de possibilidades de escolha de alturas é quase paralizante e, às vezes, leva tem o seu lugar ideal, como ferramenta de controle externo da articulação
à aplicação de certos preceitos que, composicionalmente, são um beco sem dos eventos na forma.
saída, pois desprovidos de qualquer conotação expressiva.
A set-theory, por exemplo, é por certo válida no seu sentido original de
abstração, de extração, de formulação de uma ordem subjacente a determi-
L
l
As seis situações analíticas de Jean-Jacques Nattiez, 9 apoiadas na teoria
da tripartição de Jean Molino, são úteis neste processo, quando utilizadas
em sentido inverso - não no sentido analítico, mas no sentido compositivo.
nadas composições de determinados ·idiomas. Mas, no sentido de preen- Nas suas situações analíticas, Nattiez expõe os aspectos poiéticos do "isso é
chimento de estruturas sonoras ainda vazias, ela se mostra vazia de aplica- o que se ouve", magnificando ao importância dos dados que testemunham
bilidade, embora isso possa ser feito como exerCício compositivo. Vazia de o desenrolar do processo criativo do compositor, os traços que o composi-
aplicabilidade porque desprovida da expressividade que a escolha de alturas tor deixa atrás de si e ·que, no caso do ec, significam a conservaçáó dos seus
deve guardar em si, sempre e necessariamente. documentos de trabalho como roteiro sempre reconstruível de um processo.
Para o ec, "expressividade" é palavra arcana, inescrutável. Se os rudi- Nattiez também se ocupa, na clareza de suas situações analíticas, dos as-
mentos da técnica serial são úteis para a aquisição de liberalidade no trato pectos estésicos do "isso é o que se ouve" e que envolvem diretamente a expe-
das alturas (quer sejam as alturas stricto sensu da música acústica, quer se- riência aura! do ouvinte arbitrário e- com alguma liberalidade de interpreta-
jam os objets trouvés da música eletroacústica), a aplicação retrospectiva de ção - também envolvem a experiência aura! do próprio ec. 10 O nível neutro,
teorias de extração de metodologias de escolhas de alturas (a descoberta do identificado nas situações analíticas de Nattiez como as configurações ima-
conceito de rotação em Stravinsky, por exemplo) restam inutilizáveis. A pa- nentes de uma obra, tem óbvias repercussões na pedagogia da composição,
lavra-chave é mesmo essa, "expressividade''. Na sua ausência, uma escolha particularmente naqueles momentos em que os aspectos eminentemente téc-
de alturaS pode anular uma obra já assim, a priori. . nicos vêm para o primeiro plano, desprovidos de quaisquer outras conotações.
Há propostas a fazer, quase no sentido ficcional que Italo Calvino dá ao Das seis situações analíticas propostas por Nattiez, é provável que unica-
termo? Por certo: disponibilizar ao ec o maior número de sistemas de orga- mente a sexta- a que igualapoiésir, esthésir e imanência- seja real. Ainda assim,
nização de alturas que for possível e há que lembrar que, mesmo sem repi-
·
9
Nactiez expôe essas seis situações em De la sémiolagie à la musique. Montreal: University o f Quebec
sar dicotomias, há um sem número deles no acústico e no eletroacústicó. A ar Montreal. 1988. p.l89;234.
10
8
Uma ampliação do pensamento de Nactiez a partir do ponto de vista do compositor foi feira por
Esta epígrafe, também de Boulez, vem de "Langage, matérhu et strúctute", in'Leçons de musique Germán Enrique Grás, em O compositorftente à sua peça. Dissertação de mestrado Programa de Pós-
~~ . . -Graduação em Música- ufrgs, Porto Alegre, 201 O.

88 89
todas as outras são indispensáveis para o ec, uma vez que compartimentarn e ria ou em texto verbal e o processo do vir-a-ser da composição que vai lan-
organizam respostas para suas prováveis inquietações. Propostas CODJ.O situa- çando suas próprias leis. No entanto, não é a obra que dita suas leis, é o
ções analíticas, as conceituações de Nattiez podem bem ser apropriadas como criador que se confronta paripassu com as próprias possibilidades - antes
situações compositivas, com um núnimo de adaptações necessárias, mais am- não vislumbradas - que seu trabalho vai abrindo.
plas elas parecerão na sua relevância para uma pedagogia da composição. A resolução desse conflito está em uma tomada de consciência daquilo
7. Ponto de desafio (e) :o gerenciamento das fontes. que Cecilia Almeida Salles conceirua ao afirmar que o movimento criativo é
a convivência de m1mdos possíveis.U É a crítica genética, em sua sistemáti-
Quando se compara esboços e realizações definitivas, às vezes ficamos
ca, que traz apaziguamento para o constante ir e vir entre ideia e realização
surpresos com a imensa margem que desliza entre cada etapa da realização.
Mas quanta diferença entre o nada e o objeto, mesmo criado provisoriamente! (par;; rFtornar ao conceito de Bo,.L.ez) e poderá reconciliar o ec com as dife-
renças evidenr~s entre o planejado e o obtido. De qualquer forma, como se
Na pedagogia da composição musical, as considerações poiéticas são lê nas afirmações de caráter poético (e poiético) de Salles, há, em diferentes
fundamentais naquilo que permitem ao ec ter sempre à mão a possibilida- momentos, diferentes possibilidade, de obra habitando o mesmo teto.
de de reconstruir o seu próprio processo de tomada de decisões, dando-lhe Novamente a ideia. J.e continuidade entra em consideração, confirman-
continuidade, mas reabrindo-o e reavaliando-o quando e se necessário. Nes- do o acerto da acepção que Cage imputa ao termo "forma''. O aporte da crí-
te sentido específico, um outro enfoque vem se somar às situações analíticas tica genética redunda, enfim, no recurso didático do "diário de bordo" da
de Nattiez, que é o do gerenciamento das fontes. composição. Pois que, no estudo sistemático do processo de tomada de de-
O processo de tomada de decisão pode ser o seu próprio objeto de in- cisões, não é à apenas a obra como produto terminado que pode valer pa-
vestigação e uma outra disciplina, a crítica genética, apresenta um direcio- ra o ec como objeto de apreciação de estética e de efeito entre o pensado, o
namento sistemático viável, com seus princípios metodológicos bem de- obtido e o ouvido. É também o próp_rio·processo de tomada de decisões que
senhados que se, em princípio, aplicados a outras áreas do conhecimento, deverá estar sempre sob escrutínio; é a constante comparação entre as diver-
podem ser transpostos tais e quais para a música. A crítica genética se confi- sas decisões que redundaram em diferente obras que irão construindo uma
gura como um mergulho na gênese do processo criativo através de suas evi- constância de processos que acabarão por resultar em um estilo individual-
dências, coincidindo - mas logo ultrapassando em especificidade e aplicabi- não apenas um estilo compositivo individual, mas, e mais importante como
lidade prática- os aspectos de análise poiética propostos por Nattiez. pedagogia, um estilo decisório individual.
De fato, a crítica genética pode investir de especificidade o estudo do O diário de bordo de um processo criativo é indispensável, e a crítica
processo de decisões que caracteriza o exercício ·da composição musical. Os genética fornece as ferramentas metodológicas para cotejar, avaliar e ponde-
s~us pressupostos podem desvelar um processo sempre individual através
rar as chamadas operações sistemáticas da escritura - escrever, acrescentar,
dos traços de diferentes ordens que foram deixados pelo caminho pelo com- suprimir, substituir, permutar. 12 Essas são as operações que as fontes manus-
positor ou, nesse caso, pelo ec. Muito simplesmente, os estudos da gênese critas ou informatizadas testemunham,· como objetivação dos traços, mais
apontam para um axioma singelo - a ideia não é música, é apenas ideia. O
uma vez no dizer de Nattiez, que o compositor deixa atrás de si. Para o ec,
desdobramento da ideia na continuidade, no sentido cageano, esse, sim, é
esses traços devem estar sempre à mão, para responder-lhe a pergurtta muitas
música ou- ao menos - tem a potencialidade de vir a ser música.
vezes irrespondível, mas que é básica ao término de um processo de tomada
Entretanto, em toda obra importante, a realização está de decisões compositivas: "fiz o que eu digo que fiz?"
cheia de acidentes, em relação à ideia inicial, acidentes
que fazem a obra mais interessante do que a ideia. u Estudo definitivo sobre criação ardstica, a reflexão de Cecilia Almeida Salles está em seu Gesto Ina-
cabado. Processo de Criação Artística. São Paulo: Annablwne. 2004. 168p.
Um dos conflitos epistêmicos mais agudos do ec é precisamente o con- 12
Uma avaliação sistemática da crítica genética está no estudo de Almutb Grésillon, Elementos de crítica
flito entre a ideialprojeto, formulada, previamente ou em intenção, em teo- genética. Ler os manuscritos modernos. Porto Alegre: Editora da ufrgs. 2007. 335p.

90 91
8. Ponto de desafio (f): da composição à análise e da análise à composi- elementos e gestos que, com todo o direito, poderiam pregar sua bandeira
ção. O diálogo entre análise e composição já esteve imbricado em pontos de mais fundamente, e mais prolongadamente, no âmbito do processo de uma
desafio anteriores. Tanto um enfoque compositivo dos enfoques analíticos composição em vir-a-ser. Não por poucas razões, a disciplina da análise tem
de Nattiez quanto os pressupostos da crítica genética apontam para a inter- adquirido um mau nome na academia, mercê de sua inutilidade. Quanto
locução possível entre composição e análi$e, configurando uma via de dois resigni:ficada como análise aplicada, no entanto, ela volta a ter alguma vali-
sentidos, da composição à análise e da análise à composição. dade e pode vir a se somar ao complexo processo do ec na construção, an-
tes do que ~e uma obra, de todo um processo de pensamento compositivo.
Tudo que podemos diante da obra é analisá-la, tentar reconstiuir
em sentido contrário ao caminho da realização à ideia: 9. Ponto de desafio (g): o repertório. E há o desafio do conhecimento
uma espécie de perversão da obra através da investigação. do repertório, agora que todo o repertório está à disposição de quem o procu-
O processo de reconstrução da tomada de decisões a partir da análise ra, nas suas diferentes configurações, do virtual ao concreto. Dizia Schoenberg
do produto acabado, por ilusória que seja a noção de obra acabada como que "apenas um conhecimento profundo dos estilos torna-nos consicentes
Boulez admite, 13 é conveniente para manter sempre em aberto a chegada à da diferença entre 'meu' e-'teu'. E, da mesma forma, não se pode realmente
conclusão do todo, fazendo permanecer em constante avaliação/reavaliação compreender o estilo de nosso tempo se não descobrimos como distingui-lo
a tomada de decisões, em suas decisões de fato acatadas, em suas decisões de do estilo de nossos predecessores". 14
fato descartadas. A análise, como estudo prescritivo restrito às estruturas e É exuemamente importante para mim dar-me coma do aspeçro
ao seu monótono repetir de fórmulas, é disciplina defunta. Como tal, pou- inelutável das obras escritas pelos predecessores ilustres, constar que
depois de certas obras é estritamente impossível escrever como antes,
co acrescenta à compreensão da música. Quando se torna possibilidade de que estas obras não podem tocar-nos apenas como acidentes pessoais,
reconstrução de percursos, no entanto, a análise e as teorias analíticas já co- mas como verdadeiros catadismas geológicos que alteraram
dificadas trazem boas contribuições. . inteiramente a configuração do pensamento musical.
Um exemplo: uma das conclusões que se pode abstrair da teoria schenke-
riana não é a de que em música há coisas que não interessam~ Analiticamen- No entanto e mais de sete décadas depois, ainda será possível que seja
verdadeira a afirmativa do mesmo Schoenberg de que o conhecimento que
te, as progressivas reduções a que o processo schenkeriano vai submetendo
um ec tem da literatura musical se parece a um queijo suíço - "quase mais
seus objetos de investigação é apenas a forma mais rápida de demonstrar
furos do que queijo"? 15 O acesso à informação musical- e dentro dela o aces-
um teorema analítico, um ponto de vista ideológico de análise. Mas visto
no sentido inverso, de magnificação das reduções, de reconstrução das re- so ao repertório - é ilimitado e essa é uma das contradições de nosso tem-
po: onde está essa amplidão de acesso ao repertório na bagagem que o ec traz
duções, revelam e justificam o que é um dos pontos básicos de identificação
consigo? Que fosse não mais do que a amplidão de um nicho específico de
da música das décadas posteriores à morte da vanguarda prescritiva dos anos
repertório e já bastaria; pelo menos isso, para que se cumprissem as decisões
1950 e 1970, a necessidade de áreas de respiração, de reintrodução dare-
· ideológicas que estabelecem o repertório com o qual se dialoga e no qual é
dundância, de potencialização das repetições em constante espiralamento.
possível intervir para a solidificação de suas concepções. Mas é que mesmo
Da reintegração do nada à música, enfim.
·antes que se estabeleça a amplidão nem que seja de um nicho específico de re-
Um outro exemplo: as noções rétianas de composição em germe podem
pertório, frequentemente algo se interpõe: a falácia da interdisciplinaridade.
vir em auxílio de uma economia da composição, evitando que a continuidade
Vê-se com frequência que o ec rapidamente coopta disciplinas externas
formal no tempo seja comprometida pela saída de cena, antes da hora, de
à música (ou é cooptado por elas), no afã de ter prontamente arcabouços es-
13
"Será ~u~ a obra ral como a conhecemos é um rodo verdadeiro ou será ela não mais do que o. frag-
mento lirnirado dentro do tempo de um projeto mais vasro, não levado a termo, sem o qual, mesmo 14 Arnold
assim, este fragmento não poderia rer exisrido e dar a ilusão do rodo?" ;.in: L'oeuvre: tout ou ftagment. Séhoenberg. Style and Idea. Los Angeles: University ofCalifornia Press. 1975. p. 377.
15
Leçons de musique (op, cir). · · Id., p. 376.

92 93
trururantes que o permitam seguir a composição adiante, desenrolando-a Quem so.q.haria ainda hoje em trabalhar em favor de uma linguagem coletiva?
· Schoenberg e a escola vienense foram provavelmente os últimos
no tempo. A falácia reside em dois pontos nevrálgicos: (a) a disciplina exter-
a se encantarem com esra uropia. 16
na é no mais das vezes cooptada em sua superfície, desprovida de suas ne-
cessárias individualidades e dos seus meandros de pensamento, de seus não -A construção de uma música erudita brasileira não é assunto premen-
poucos desvãos, armadilhas, descobertas e epifanias; neste tipo de interdis- te. A construção de um conhecimento brasileiro dos processos compositivos
ciplinaridade de superfície, a disciplina externa é alegoria de mão em desfile em música, esse sim, é assunto indispensável e que tarda. É passado o tem-
de carnaval; (b) o desconhecimento do repertório espedfico da música co- po das escolas de composição, dos nacionalismos e dos internacionalismos,
mo área de conhecimento faz buscar na interdisciplinaridade, muitas vezes dos Guarnieri e dos Koellreutter. É preciso seguir adiante, mais uma vez em
sem plena consciência de tais mecanismos em operação, o preenchimento sentido beethoveniano. Nestas reflexões sobre os pontos de desafios de uma
ilusório de lacunas absolutamente reais e que se apresentam como armadi- pedagogia da composição, buscou-se nada mais do que dar certa ordem a
lhas potenciais; nesse caso, parece mais fácil buscar na retórica, na psicolo- pensamentos ainda dispersos mas que vêm da observação da cena brasileira,
gia, na poesia, na informática, elementos de preenchimento de deficiências, a partir de diversos pontos de vista.
procurando longe o que está perto. Ou seja, virando as costas para a músi- O entrincheiramento da composição musical no meio acadêmico ·bra-:-
ca sem se dar conta de que nela talvez estejam as soluções mais imediatas e sileiro ainda não resultou em proposições que atendam tanto o estado-da-
mais duradouras. -arte da música do século quanto à solifidificação do estudo da composição
Confrontar os cataclismas geológicos aludidos por Boulez parece ser o musical como disciplina universitária tout court. Há inúmeras questões so-
caminho mais indicado para confrontar a falácia interdisciplinar. De resto, bre as quais tcoriz2T e a partir das quais formular pressupostos. Não se irá
esclareça-se sempre que não se trata de dar as costas à interdisciplinaridade, longe se persistir a ausência de propostas gerais que deem certa centralidade
nada disso. Se assim fosse, novamente seria sacado contra a música o argu- à conpn.sição musical no meio ac;:;.dêmico brasileiro, a partir da qual a exis-
mento de elitismo, em si debatível, mas que é como veneno para formigas tência de uma música brasileira erudita - a qual de resto jamais tem deixa-
em sua conotação insidiosa. Trata-se unicamente de tratá-la com o cuidado do de existir- virá como consequência natural e não nascida das discussões
devido, o que significa não utilizá-la como álibi .para cobrir o desconheci- forçadas dos dogmatismos e das agendas privadas.
mento do repertório, para impedir que o caminho da intradisciplinaridade Terminemos: para ;ohn Cage, novamente em março de 1949, "a mú-
também seja trilhado, e antes. Desconhecimento de repertório e interdisci- sica é construtiva, pois, de tempos em tempos, ela coloca a alma em opera-
plinaridade de superfície se potencializam mutl!amente e por um momen- ção". E há lugar para uma última epígrafe de Pierre Boulez para entrever o
to dão a impressão de correção. Não é esse o caso, pois, nessa equação mal fascínio de uma pedagogia da composição musical:
vinda, a musica permanece intocada, as disciplinas correlatas permanecem
Ver como o outro utiliza suas faculdades de dedução, como a partir de certo material
prostituídas. ele foi trazido a prever o desenvolvimento, a proliferação, isso, na verdade, se comuni-
Agora, alguns comentários de fechamento. ca. (... ) Por contra, o que não se adquire diretamente do outro (... ) é a transgressão. A
transgressão permanece individual, é ela que vai determinar fortemente, se não exclu-
10. Por uma pedagogia da composição. A composição musical existe
sivamente, a obra em seu perfil, seus métodos, sua própria existência.
como disciplina do ensino acadêmico de música no Brasil, com pontos de
desafios, alguns dos quais foram recém-abordados. Há uma pergunta que,
desde logo, não se deve formular, diante da permanência da composição
nos currículos acadêmicos, permanência inamovível e indispensável para o
avanço, no sentido beethoveniano, dessa área do conhecimento: "existe uma
16Essa epígrafe, rambém de Boulez, vem de "Langage, marériau er srrucrure", in Leçons de musique
música erudita brasileira?"
(op. cir.).

94 95

'
'.
Pesquisas qualitativas e quantitativas em práticas interpretativas reais. Se, nem os artistas mais famosos e tarimbados estão livres de experiên-
cias neaativas,
t:>
de eventualidades e incertezas em situações de peiformance, o
Cristina Capparelli Gerling e Regina Antunes Teixeira dos Santos que se dirá dos alunos menos experientes? . .
Em situações da prática quotidiana, isto é, no ensmo e na aprendiza-
gem instrumental na tradição clássica ocidental, as _consider~çóes e posicio-
INTRODUÇÃO namentos sobre o(s) produto(s) atingido(s) e almeFdo(s) cnam problemas
extremamente desafiadores. As leituras em negativo da(s) peiformance{s) co-
O presente capítulo é dirigido à comunidade de iniciantes e iniciados em mo produto(s), ou seja, aquelas características o~ _atributos ~e~c~entes o~
pesquisa acadêmica em Música- graduandos, pós-graduandos, educadores insatisfatórios tendem a constituir o cerne do pos1c10namento cnnco. Mm-
musicais, músicos-professores - que, por interesse ou necessidade, desejam tas vezes, nós nos esquecemos de perguntar sobre qual perspectiva est~os
se familiarizar com abordagens qualitativas, quantitativas e mistas nas Prá- observando, ou ainda ponderar sobre quais características (aspectos/parâ-
ticas Interpretativas. Nesse texto, propomo-nos a discutir algumas das pos- metros) específicas nos posicionamos. Muitas vezes, falamos de um dado
síveis construções de métodos, cari:linhos e estratégias de investigação com objeto (performance), sob um ângulo tácito e ambíguo entre subj:tiv~dade'e
potencial de coordenar objetivos, contextos, problemáticas nesse complexo objetividade. Por isso mesmo, pesquisas voltadas para a observaçao slstema-
campo de conhecimento. tica de produtos e processos de execução musical apresentam-se co ::no ferr~­
Publicações recentes na área de Psicologia da Música têm se voltado mentas eficazes e bem-vindas, visto que contribuem para a formaçao de cn-
consistentemente para estudos relacionados à execução njtusical tanto em la- térios objetivos e meios confiáveis de avaliação da execução musical.~
boratórios quanto nas manifestações artísticas. Graças àlvalorização da exe- Nesta moldura, é possível investigar os resultados de uma execuçao mu-
cucão
• musical, entendida como uma . das atividades humanas mais comple- sical? Através desse questionamento, colocamos a suposição indissociável
xas, a literatura disponível registra um avanço de conhecimento embasado do objeto efêmero e único, que tem não somente um resultado possível, mas
principalmente no repertório da música clássica ocidental. De longa data, contém muitos resultados plausíveis e pertinentes. Isso não significa que to-
seja no ambiente acadêmico seja no profissional, o produto de dada execu- dos os resultados serão aceitos e validados. Essa colocação apresenta-se co-
ção musical tem sido julgado a partir de tradições de execução. No decorrer mo uma abertura para o produto musical com o objeto de investigação e de
do século precedente, a musicologia empírica forn: •:eu, por meio do estudo conhecimento. Por exemplo, o que faz um dado produto musical ser con-
da partitura escrita, pressupostos analíticos significativos. Essas análises, no siderado aceitável no quesito acuidade em leitura? Qual o sentido e signifi-
mais das vezes, permaneceram (e permanecem) distantes do fazer musical cado de acuidade em leitura musical para um estudante? Qual o significado
em tempo real. O julgamento de execuções, q'ler no ambit:nte acadêmico, do conceito acuidade em leitura musical que o professor está considerando
quer no mundo artístico, é expresso por .::onsiderações subjetivas, nem sem- em suas avaliações?
pre coerentes ou mesmo satisfatórias. As apresentações públicas suscitam Sabendo que pesquisas em Práticas Interpretativas lidam com a com-
comentários os mais variados, porém quase sempre wnt.::aditórios. Quem plexidade na abordagem do objeto, tendo em vista o tênue limite entre
de nós não participou de debates acalorados sobre os méritos. ou deméri- . subjetividade e objetividade, existem metodologias ade~uadas e ferr~en:as
tos da mesma apresentação de determinada peça, produzindo opiniões ex- ·pertinentes para estudar processos tão comp~exos? ~esqmsas re~entes tem_ In-
tremamente divergentes? O senso comum encoraja que os produtos musi- vestigado aspectos isolados de execução musical, trus como acmdade de lel~­
cais sejam amplamente comentados, discutidos, criticados e, acima de tudo, ra (Ruiz et al., 2009), articulação (Geringer et al., 2007), andamento (R.ankin
avaliados sob um ângulo idealizado. Os recursos de gravação aperfeiçoaram & Large, 2009), palsação (Grahn & McAuley, 2009), tíming (Goebl & :al-
ainda mais essa idealização performática da realização artística, frequente- mer, 2009) e contorno melódico (Pfordresher, 2008). Em nossas pesqmsas,
mente desprovida dos percursos de acasos e das adversidades dos contextos temos procurado incluir um número mais elevado de parâmetros, tendo por

96 97
objetivo enfrentar a complexidade da realização musical (Gerling & Santos, !acionado à C;]!Jacidade de monitorar, administrar, ajustar e regular pensa-
2007; Gerling et al. 2008a, 2008b, 2009a, 2009b, 2009c). mentos próprios, tanto na ação, como no aprimoramento do músico na di-
Um dos desafios do pesquisador consiste em avaliar a gama de signi- mensão temporal. Em sentido amplú, o conhecimento supervisor combina
ficados que o intérprete confere à construção da obra e, neste processo, há julgamentos musicais F .:ssoais, compreensão das obrigações ou mesmo éti-
um elo indissociável entre o objetivo e o subjetivo. De acordo com Palmer cas musicais de uma prática e um tipo particular de imaginação heurística,
(1997), um dos objetivos da interpretação musical, que se constitui na mo- ou seja, a habilidade de projetar e sustentar imagens pertinentes no imaginá-
delagem individual a partir de ideias e intenções musicais compreendidas rio mental antes, durante e após a própria performance musical. O processo
em uma obra, é conferir significados à música. A gama de significados é de- prático na elaboração de imagens musicais (ou imaginação em ação) é consi-
finida por vários teóricos como os componentes principais que relacionam derado por Elliot (1995) um componente crucial do conhecimento supervi-
estrutura, emoção e movimento físico (Gabrielsson, 1982; Meyer, 1956; sor. Por essa razão, o pesquisador deve ser capaz de lidar com a subjetividade
Palmer, 1997) e que contribuem para a execução do intérprete. A aborda- intrínseca a esse tipo de pesquisa.
gem dos fenômenos não se prende, portanto, nem ao qualitativo nem ao Educadores musicais (vide Swanwick, 1994; Elliot, 1995, 2005) advo-
quantitativo, mas usufrui de ferramentas complementares para avançar no gam que o produto musical revela o que o sujeito conhece. O estudante, assim
conhecimento do objeto. como o profissional, toca aquilo que compreende tácita ou explicitamen-
Discutiremos e ilustraremos, nesse capítulo, delineamentos de pesqui- te. A psicologia da música (Sloboda et al., 1996; Hallam, 1997a, 1997b,
sas em performance, sob o ponto de vista da complementaridade das aborda- 200 I) reforça esse pensamento ao relacionar características diferenciadas da
gens qualitativas e quantitativas. qualidade de produto com o nível de expertise (iniciante, proficiente, pro-
fissional). Ainda que inegiveis, esses posicionamentos não avançam o co-
A DIMENSÃO QUALITATIVA NAS PESQUISAS EM PERFORMANCE MUSICAL nhecimento referente a práticas int~rpretativas, pois tendem a impedir o
surgimento de hipóteses viáveis sobre o desenvolvimento da construção do
Na abordagem qualitativa, o conhecimento é entendido como uma produto. Sabe-se que, no plano ideal, aquele que toca almeja (sempre!) mais
construção com "o propósito de estabelecer uma memória mais clara e aju- do que realiza.
dar as pessoas a obter um conhecimento mais sofisticado das coisas" (Bresler, A vertente procedimental aponta para inúmeras (sub)habilidades a se-
2006, p. 61). Pesquisas em Práticas Interpretativas lidam com conhecimen- rem acionadas, dominadas e integradas na ação. Conceber o produto da prá-
to procedimental. Para Elliot (1995), o conhecimento musical é intrinseca- tica como objeto que desvenda o conhecimento em termos absolutos pode
mente procedimental e multidimensional e, por Ís:So .mesmo, compreende a implicar o desconhecimento do sujeito. Na prática diária, o professor do ins-
relação entre quatro outras formas de conhecimento: formal, informal, im- trumento tende a se envolver com o julgamento imediato de resultados, cor-
presSionista, supervisor. O conhecimento formal envolve conceitos verbais rendo então o risco de negligenciar as múltiplas facetas do fenômeno. Tendo
sobre uma prática e pode tanto influenciar, como guiar, formatar e refinar em vista que cada produto pode ser observado e avaliado de diferentes ângu-
o pensamento na ação do estudante. O conhecimento informal refere-se ao los, a reflexão e a avaliação podem representar uma abertura de possibilidades.
saber fazer prático, advindo da experiência de fazer escolhas musicais, ava- Temos procurado privilegiar investigações mais abrangentes, buscando evitar
liar os resultados dessas escolhas, testar estratégias artísticas alternativas na delineamentos experimentais rígidos. Ainda assim, questões de pesquisa po- !
resolução de problemas e desenvolver valores pessoais que direciónem alter- dem ser elaboradas de forma a equilibrar. uma visão macroscópica do fenôme-
nativas em relação à performance instrumental. Conhecimento musical im- no com a nitidez do foco de investigação. Uma questão aberta do tipo: "Quais
pressionista envolve emoções cognitivas, pois exige o desenvolvimento do conhecimentos são mobilizados na preparação do repertório pianistico como
sentido, da sensação emocional para aquilo que é musical e artisticamente bacharelandos em diferentes momentos da formação acadêmica?" (Santos,
apropriado à obra musical em questão. O conhecimento supervisor está re- 2007, p. 5) vai exigir um delineamento qualitativo aberto. Cabe, no entanto,

98 99
ao pesquisador precaver-se para não cair no risco de privilegiar um "vale-tu- sugestão de roteiro para a entrevista semiestruturada, visando a acessar as-
do". Trata-se de conhecimentos de uma prática cultural que dispõe de nor- pectos pontuais da preparação de uma obra. As questões referem-se à dura-
mas, desvios, ou seja, baseada em padrões de acuidade e de erro. ção do estudo, abordagem técnica, aspectos interpretativos e problemáticas
A questão de pesquisa direciona o delineamento para o universo amos- identificadas pelos participantes.
trado, o tamanho da amostra, a forma de c;:oleta, o tratamento dos dados. A
TABELA r. EXEMPLO DE ROTEIRO PARA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA
coleta de dados, na dimensão qualitativa, pode ser realizada a partir do re-
NA PESQIDSA.DE COMUNICAÇÃO DA EMOÇÃO NA PERFORMANCE
lato de experiência de participantes, que descrevem seus processos de práti-
ca instrumental, os problemas e soluções experienciados, os aspectos de sua
TEMÁTICAS EXEMPLOS POTENCIAIS DE QUESTIONAMENTOS PARA O PESQUISADOR
compreensão do texto musical. Uma das técnicas de coleta de dados comu-
mente empregada é a entrevista, uma negociação entre entrevistador e entre- Quando começou?
vistado, um encontro entre subjetividades que provoca explicações sobre os Tempo Quanto estudou? (muita/pouca dedicação)
enunciados revelados através dos depoimentos (Ruquoy, 1997). Quantàs sessões de prática?
Em termos de universo de pesquisa, a população entrevistada pode
De que maneira/como praticou (mãos junras/mãos separadas?
exigir certas peculiaridades na coleta de dados. Por exemplo, McPherson
Partes/todo?)?
(1995, 1996, 2005), ao investigar aspectos da leitura instrumental à primei- Abordagem Onde praticou? Qual a situação de prática (no instrUmento, fora dele,
ra vista, em crianças entre 7 e 12 anos de idade, aplicou a metodologia da através da audição, visualização (Youtube? dvdlconcerro ao vivo)?
entrevista não estruturada englobando relatos das dificuldades enfrentadas
pelos participantes. Segundo o pesquisador, fatores de estresse influenciam a Grau de dificuldade da tarefa: foi fácil? Difícil? Em que sentido foi
coleta de dados, requerendo competê~cia na relação entre pesquisador e su- fácil? Em que sentido foi difícil?
Quais problemas encontrados? Foram solucionados? De que maneira?
jeitos investigados. Essa relação tem por princípio estabelecer um ambiente
Problemática Quais problemas geram impasse para o avanço da preparação?
de confiança, disponibilidade (acessibilidade), empatia. Pesquisas envolven- Você é capaz de isolar o problema/problemas?
do profissionais ou adultos, embora contenham as mesmas qualidades éti- Grau de compreensão explícita! implícita: explicita à estrutura da
cas, tendem a ser invasivas e confrontam os sujeitos em situação de estresse peça? De que maneira? Qual o vocabulário/ conceitos dominados/
(competição: vide Wapnick et al., 2004; Yoshie et al., 2008). Em certos ca- desconhecidos?
sos, os participantes são até mesmo compensados com créditos acadêmicos
O que a prática dessa peça trouxe para você? E sua performance?
ou remuneração (vide Luck et al., 2008). Essa peça faz parte de seu repertório pessoal? Se sim/não: em que
Significado(s)
Sejam as situações mais amenas ou mais estressantes, a entrevista1 so- sentido? Por quê?
licita depoimentos e encoraja que aspectos pontuais da preparação sejam
abordados tornando-se um instrumento balizador de potenciais questiona- Você pensou em um caráter para essa peça?
mentos a serem explorados. A título de exemplo, a Tabela 1 apresenta uma No caso de ter indicação de caráter pelo compositor: o que você
Caráter esrá procurando fàzer para conferir o caráter (triste/alegre/raivoso/
1 Três impetuoso/dolente etc.) pedido pelo compositor/partitura?
tipos de entrevista: (i) estruturada; (ü) semiestrururada e (iü) náo estruturada. A entrevista
estruturada é um processo conduzido de acordo com uma ordem e predeterminada, culdadosamenre
planejada para extrair o máximo de informações do participante, com o mínimo de perguntas do pes-
quisador. Na entrevista semiesrrururada, o pesquisador parte de um roteiro predetemiinado com .uma Outro e~emplo de roteiro para estruturar a coleta de dados da prática
série de entrevistas abertas, feiras verbalmente em uma ordem prevista, podendo acrescentar perguntas musical de estudantes de piano foi proposto por Santos (2007) conforme
de esclarecimento. Na entrevista náo estruturada, o pesquisador apoia-se em um ou vários remas já
antecipados para permitir o dlálogo em função de suas interpretações e· das respostas obtidas por seu ilustra a Figura 1.
interlocutor (Vide, por exemplo, Laville & Dionne (1999); Flick (2004)). ·

101
100
FIGURA I. RoTEIRO PARA REFLEXÃO ENTRE AS ENTREVISTAS DA PREPARAÇÃO tem casos eventuais- da não aceitação do registro em áudio e vídeo, cabendo
(REPRODUZIDO DE SANTOS, 2007)
então uma neaociacáó
t> • entre entrevistador e entrevistado para avaliar a rela-
ção custo/benefício entre o aceite e o descarte. Essas situações são críticas,
Como é descrita/relatada a peça? quando a pesquisa ocorre em uma única etapa. Nos delineamentos seriados,
De cada peça (verbal e musicalmente)
Do repertório como um todo Qual o vocabulário utilizado esses percalços talvez sejam mais bem contornados e causem menor impac-
{
Significados dos termos utilizados to no conjunto de dados coletados. Especificamente, no tocante a pesquisas
l em Práticas· Interpretativas, o pesquisador lida com a questão da documen-
tação de etapas nos processos de preparação e/ ou em situações de perfor-
j Organização I De cada peça em preparação
Da prática de estudo
Planejamento(que/quando/coml)
Estrutura;ão (prática/peça)
(tempo/ordenamentq { Hierarquização mances. Na coleta de dados, o pesquisador deve enfatizar a importância dos
l Que tipo de questionamentos?
depoimentos (sinceros!) na preparação da obra e, dependendo do formato
adotado, deixar os participantes à vontade para gravar quantos produtos fo-
IReflexões I Dúvida? Certezas?
Preocupações? Pode-se falar nesses termoS/
Como e quando isso ocorr&.
rem necessários.
Relações/Comparações { Ajuda/impede amobilização? Conforme mencionado, o tratamento dos dados deve ser norteado pe-
l Hipótese; Inferências
Questionamentos? la questão de pesquisa, um dos maiores desafios ao qual o pesquisador deve
Prática de estudo'? (Estudo de se ater durante a organização e a análise de dados. Muitas entrevistas e horas
IJustificativas I Se ocorre, por que o faz? peças/técnico) ·
Traz fundamentospara prática?
e horas de transcrição podem cegar o investigador, induzindo-o a percorrer
Em relação a quê?
1 { Como os encontra (professor/
CDkecitaiSI)
caminhos que o afastam do escopo proposto. A questão norteadora funcio-
na como estratégia eficiente de análises potencialmente efetivas. As respos-
,.--R-e_dir_·_e_c_io-n-am-e-nt_o_s_/-, Pode-se falar nesses termoS?
tas não saem diretamente dos dados 1 elas se encontram nas entrelinhas, no
Mudanças de perspectiva Por quê? .
O que pensa sobre isso? diálogo com resultados da literatura, na complementaridade de coletas, nas
discussões com os pares. O pesquisador não pode ficar imerso em seu mun-
do. Como em qualquer campo de ação, ele participa de uma comunidade,
Ao contrário de noções frouxas sobre pesquisas qualitativas, a Figura 1 dialoga e vê seus pontos de vistas confrontados. Então, deve se perguntar so-
deixa claro que a entrevista sobre a preparação prevê um conteúdo inten- bre a pertinência de sua perspectiva, ao propor relações e fatos que precisam
cional previamente deliberado e leva em conta como o estudante vai apre- ser verificados, e estar aberto para eventuais calibraçóes ou até mesmo mu- .
sentar a peça em preparação, como a descreve, qual o vocabulário utilizado, danças de percursos em delineamentos posteriores.
C!:)m qual(is) significado(s) os termos e conceitos são empregados. O pesqui- Pesquisas qualitativas envolvem um trabalho exaustivo de transcrição e
sador está também interessado em conhecer como o estudante organiza, re- organização de dados. Uma proposta de sistematização e organização de da-
flete e traz justificativas para sua prática. O roteiro prevê redirecionamentos dos, denominada 'Escada de Abstração Analíticà (Figura 2) é apresentada
ou mudanças de perspectivas potenciais durante a etapa de preparação, pois por Carney (1990).
se sabe que estudantes mudam frequentemente seus repertórios, a médio e
.curto prazo, em função de problemas motivacionais.
A coleta de dados deve ser realizada de forma rigorosa, em termos da
conduta do entrevistador e do registro de dados. Recursos tais como grava-
ção em áudio e/ou vídeo, ainda que possam desempenhar papel momen-
taneamente constrangedor, fazem-se .q.ecessários como documentação de
comprovação da veracidade e para o posterior tratamento de dados. Exis-

102 103
FIGURA 2. ESCADA DE ABSTRAÇÃO ANALÍTICA, ADAPTADA DE WRNEY Cr990) TABELA 2. ÜRGANIZAÇÃO DE DADOS DE UMA SÉRIE DE SESSÕES-REFERENTES
À PREPARAÇÃO DE UMA SONATA' CLÁSSICA POR UM BACHARELANDO

3 Desenvolvimento e testagem Delineamento Slntese: integração Sessões


de proposições para construção de uma estrutura de dados em uma Parâmetros
de uma estrutura explanatória 3b mais aprofundada matriz explanatória I 2 3 R 4 5 p

Cruzamento dos Tocou no Tocou 1· mov. Tocou r' mov Comentários


Hipotetização dados. Análise em Nota-Ritmo s/ si
Mastm:l=. no exame de há pouco no pro&.
3a e redução dos dados tennos de temas 1~·~1 v dificuldade.
-Comenclrlo meio de curso.
s/
Mastm:bw:
comentários.
problomas de
'"·"
___________________ --.,----~._P_~ ~~~I~s:_~e-~~~~~~~ -~~~-~~~?~ __ _ PreCfro c07sh!ur de colegas e Precisa de
comentários.
sugestão de
(véspera de
regularidade
2 Reorganização dos
Relato do dasridsmo
professores muicas coisas. ideia de <SCl.r:;:l'
prova)
rítmica
Busca por relações nos dados: momento e
dados movimentos
Identificação de redação de notas analíticas.
Identificação de pontos de da Sonata l·mov.
temas e tendências l'mov.2"
executados r• mov. 2" mov.
no conjunto de dados ênfase e "furos" nos dados. 1· mov. 2• mov.
rnov. 3" mov.: 1* mov. e2·
1"' mov. 2• mov. 2·mov.
I·· I modificação .3" mov.: leitura 3· mov.: leirura 3~ mov.: 3°mOY.
leirura. <nfuse mov.
-------~----- --------- ---------------------------------------- acompanhamento ênfase mdódica
mdódica
ênfuse mdódica leirura <nfuse
mdódica.
1 lb Codificação Decodificação dos dados. Notas analíticas
Resumo e .. (Simbólica)
organização Desenvolvimento l"mov.:
dos dados 1a Criação de um texto Reconstrução das entrevistas sob fonna de notas Comentário em
Sinopse das entrevistas individuais (gr:úàdo na part.) masculino
termos de "cema s/ s/ s/
v /pane, ideia
"Toda peç:t rem s/comentários
comencirios
(homem da
comentários comenrârios
Organização/ inicio/meio/fim"' corte) 2° mov.:
repetida/repetição"'
Esrrurural/ aamada3*
A proposta de Carney (1990) é um instrumento de transformação de Simbólica mov.: batle

elementos brutos em uma perspectiva analítica que se inicia pela descrição •• Intenção das !menção das Intenção das Tprenção das Intenção Intenção
Descontrole.
dos dados (criação de um texto), já e~traindo temáticas, e, em profundida- I panes.
(ponruoção)
partes
(ponruaçáo)
partes
(pontuação)
S/coerência
panes
(ponruoç;io)
das partes
(ponruação)
das panes
(pontuoção)
de crescente, vai reduzindo e sintetizando as informações. Intc:nç:âo de simbólica (caça,
Esforços para descrever e explicar os dados podem ser paradigmáticos,
' v "'de corte", realeza
s/comentários rransmiúr
s/
feminino.
si s/
elegante camencirlos comentários comentários
na medida em que envolvem orientação com relação a conceitos bem de- I1.·i ideia dança)

finidos. Por exemplo, na tradição da música clássica ocidental, certos parâ-


... Caráter r"mov.:
Intenção
Expressivo.
3*mov.
Q)ler ser deganrel Distanciamento Intenção. agitado, Elegante!
I do espírito (Tema):
metros, tais como a acuidade de leitura, podem envolver desde uma visão expressivo pesso~ Expressividade 2•mov. E.xpr~ivo
L: verbalizado deganre
1·· ·.·. recupeta-:-sc
mais elementar de altura, duração, articulação, andamento até níveis mais (Minuet)

subjetivos quanto à intensidade e à qualidade sonora ou aos padrões de ten- Ii/: Classicismo: Música p/classe
são e repouso. v Resistência ao Intemer: esana sentimento si média(traz.er si s/

A organização dos dados pode ser ainda realizada em termos de tempo, l(i.·.

classicismo obras clássicas comedido
(bisavô)
comentários para casa, a
orquestra)
comcnclrios comentários

Estilo
conteúdo ou função. Na organização temporal, como o próprio nome in-
dica, os eventos e dados são colocados em sequência cronológica. Os dados
1:.1·.······ S/regularidade. $/regularidade
Slregularidade. fu:gularidade
ainda
fu:gularida Regularidade fu:gularidade
I Muito pedal. ainda ainda ainda
Muito pedal. compromete

ir)!~
da primeira etapa são listados antes da segunda etapa e assim sucessivamen- Embolado. compromete compromete compromete

te, o que facilita o acompanhamento da evolução do fenômeno. No segundo


V, informação verbalizada. I = informação extraída da performance instrumental. R.= Reciral.
caso, os dados são agrupados em relação a determinado parâmetro (conteú-
do ou função). i!> P = Prova depanamenral.

A Tabela 2 ilustra a organização de dados da preparação de uma sonata ;ii.f. A disposição qos
dados (Tabela 2) permite acompanhar os resultados
obtidos através de uma série de coletas. Os dados demonstram que, nessa
clássica por um bacharelando, durante o semestre acadêmico investigado. :
Os números de 1 a 5 referem-se às sessões de coleta. obra, 0 estudante investigado obteve suporte externo através das relações in-
';·L
104
105
terpessoais em seu ambiente de estudo, e também foram recebidas sugestões in- Assiste à óperas,
Não faz menção. Assiste óperas,
terpretativas de outros professores de piano durante os exames e nos laborató- concen:osJ pianisras.
(Estimulação): não concertos, pianistas na
rios (masterclass). O estudante buscou na Internet as referências sonoras sobre o Internet- Material teórico sobre
considera prático companhia de amigos.
Computador técnica pianistica.
estilo clássico: escutou sinfonias, concertos e sonatas para piano de Haydn, as- pois "só (permite] Trabalho de percepção
Copia, assiste e
sim como óperas de Mozart. A partir disso e estimulado por seu professor, ele trechinhos". musical.
comenta cds!dvds.
refletiu sobre a possibilidade de trazer analogias tímbricas de outros instrumen-
Declarou não gostar Todos os vídeos de
tos para o piano. Nas escuras de obras, o estudante comentou que percebia cla-
de escutar aquilo que Glenn Gould. Vários
reza na comunicação das :&ases e, por isso, buscou refinar a articulação melódi- estuda no momento, no vídeos de pianistas
cdlnvnNídeos Conraro via Internet.
ca no 1o movimento da Sonata de Haydn. Ele percebeu que, no estilo clássico, entanto ouviu quatro profissionais. Idem
a expressão pessoal deve enfatizar a elegância e a clareza dos eventos musicais. versões da Sonatina de dvd. Apreciação de
Ravel (Masterclass). músicas que estuda.
No terceiro movimento, o estudante vivenciou, mas não conseguiu superar
completamente, a questão da regularidade da estrutura rítmica. Outro recurso Percepção (tp)
manipulado consistiu na obtenção de informações sobre o período clássico e o foi fundamental.
Sensível mudança na
contexto lústórico da Sonata, incluindo a cronologia das obras. Quanto à prá- Não viu utilidade compreensão musical.
Gostaria que houvesse
tica diária, o estudante dispôs de duas estratégias: a repetição de seções, bem co- ou relevância para
mais cadeiras no início,
Análise musical e
Disciplinas Teóricas a preparação do História da Música
mo a repetição integral da cada movimento, e o envolvimento simbólico com pois ajudariam na
repertório naquele não acrescentaram
a sugestão de "caça, caçada e baile", respectivamente estabelecidos para os três compreensão musical.
semestre. mulm ao que já
movimentos (Santos, 2007; Santos &Hentschke, 2010). sabia. Contrapomo:
A Tabela 3 ilustra a organização dos dados de três estudantes, referentes Fuga e Harmonia:
insuliciemes
a uma série de parâmetros investigados. Essa disposição facilita a compara-
Masterclass: importante.
ção entre os casos. Masterclass é
Festival
Recitais/ concertos:
Recitais/Concertos/ importante para insights sobre a postura
de verão: reviu
Workshopl Masterclass aprofundamento no palco. Festival:
TAJ3ELA 3· ORGANIZAÇÃO DE DADOS, COMPARATIVAMENTE DE TRÊS CASOS, repertório antigo.
do repertório. convivência musical.
EM TERMOS DE DETERMINADOS PARÂMETROS Convivência musical.

Compartilha problemas Música de


FUNÇÕES
Distantes. Discute e dúvidas/ críticas câmara eventual
PARÂMETRO
sobre música/ à vida acadêmica. (incompatibilidade
ESTUDANTE A ESTUDANTE B ESTUDANTE C Colegas
repertório com um Comparrilha pouco musical). Importante
colega em particular. ou quase nada sobre o para troca de materials
Orientador. Faz pensar, repertório em estudo. (partitzmu].
Decisões tomadas a
muda posicionamento,
partir das sugestões
Professor de Piano sugere opções. Pouca menção. Estudante A:l• semestre; Estudante B: 5• semestre; Estudante C: f<;>rmando.
e demonstrações do
Demonstra pontos a
professor.
serem aprofundados.
Em observação estrita ao depoimento dos estudantes, percebe-se pela
Sente fàlra de Relevante pela Tabela 3 que o estudante A encontrava-se em um momento de fone depen-
Desinteresse por
aprofundamento nas possibilidade de dência do professor para confirmações; correção de leitura musical mesmo
disciplinas básicas de
Universidade informações sobre interagir com colegas.
teoria e percepção
repertório da música Disciplinas não são
em seus elementos mais básicos; sugestões para a execução de ornamentos
musical.
ocidental. tão importantes. e para garantia da precisão rítmica. Para o estudante B, a dependência ma-
nifestou-se em questões instrumentais específicas, assim como em detalhes

106 107
interpretativos, com vistas ao refinamento da qual:dade expressiva. O estu- para a subjetividade na avaliação do produto escutado. A medição de dados
dante C mostrou-se praticamente independente. O professor parecia atuar paramétricas coletados como graus' atribuídos fornece material para trata-
como um conselheiro e orientador artístico para sugestões interpretativas. mento quantitativo de pesqUisas.
Para os três bacharelandos investigados, a form1.ção acadêrmca foi percebida A abordagem quantitativa permite que dados, até então difíceis ou im-
como insuficiente em relação às suas necessidades pessoais. O estud~te A possíveis de serem manipulados em seu estado bruto, transformem-se pa-
considerou descartáveis disciplinas voltadas à percepção musical e aos fun- ra permitir a observação sob um ponto de vista objetivo. A abordagem
damentos da música. O estudante B sentiu a necessidade de a Universidade quantitativa estabelece uma linguagem confiável, isto é, numérica, para li-
propiciar uma visão mais ampla e aprofundada da música clássica ocidental. dar com elementos tidos por díspares ou mesmo paradoxais. Ao propor a
O estudante C não considerou as disciplinas como o mais significativo do transformação dos dados, o pesquisador passa a ter recursos mais perma-
contexto universitário, mas como uma possibilidade de trocas interpessoais nentes para contextualizar e refletir. É necessário, no entanto, o domínio
com colegas, professores e convidados. Comparações semelhantes podem de todas as etapas para não se submeter cegamente aos resultados. Cabe·ao
ser averiguadas em referência aos demais parâmetros (Santos, 2007; Santos pesquisador entender que o tratamento.dos dados por meio de indicadores
& Hentschke, 2010). (testes de inferência, por exemplo) oferece indícios sobre as questões trata-
A pesquisa qualitativa tem se sofisticado para incluir o uso de ferramen- das, possibilitando aflorar semelhanças, proximidades ou plausibilidades,
tas da informática. Softwares comerciais (nvivo8, Acculine, best, cat, xsight, não certezas.
2
entre ourros) têm facilitado a organização, o gerenciamento, a extração de
conhecimento conceitual para a análise de dados coletados sob forma de A DIMENSÃO QUANTITATIVA NAS PESQUISAS EM PEREORMANCE MUSICAL
textos ou por registros em áudio ou vídeo. O emprego de softwares permite
a organização e a associação não linear da informação (Lee & Esterhuizen, O desempenho musical envolve produtos balizados por convenções es-
2000). O pesquisador pode mover-se rapidamente e com flexibilidade entre tilísticas de determinada cultura, no caso, a música clássica ocidental. A pró-
diversas fontes de informação. O caráter dinâmico, associativo e não linear pria natureza do produto estimulou, ao longo dos anos; a abordagem quan-
aproxima-se de processos heurísticos e interativos, típicos da pesquisa quali- titativa nas pesquisas. Por volta de 1930, Carl Seashore e pesquisadores da
tativa (Weaver &Atkinson, 1994). Essa perspectiva deriva do entendimen- Universidade de Iowa, sistematizaram resultados de medidas de-pàrâlnetros
to da pesquisa qualitativa como um processo de leitura, escrita e reflexão, na de performances centradas principalmente na ótica da Psicologia da Música
qual as duas primeiras encontram-se dialeticamente relacionadas, uma vez e avançaram o conhecimento dos fenômenos acústicos, cognitivos e fisioló-
que a assimilação e a interpretação dos dados processam-se através da escrita gicos implícitos em uma performance musical (veja síntese em Gabrielsson,
de um comentário analítico, em geral na forma de diário. Segundo os auto- 1999; 2003). A abordagem quantitativa vem mantendo sua relevância. A tí-
res, é "essa interação entre leitura e escrita que constitui a análise" (p. 117). tulo de ilustração, a Tabela 4 exemplifica algumas pesquisas recentes.
A questão de objetividade nas pesquisas envolve a detecção de grau de
desvio na relação entre os níveis de compreensão e o produto reificado na
forma de realizacrão. Cada músico confronta-se com uma realiZação ideali-
zada e (raramente) concretizada. Esta afirmação parece pertinente para qual-
quer gênero de desempenho (circo, teatro, oratória... ). Como medir o grau
de desvio? A abordagem quâlitativa dos dados obtidos na descrição apont~

2
Uma lista ampla comentada de softwares para análise qualitativa pode sen!nconttadano site daAmerican
Evaluat:ion Association (http://www.eval.org!Resources/qda.han). Acessadó em novembro de 2009.

108 109
TABELA 4· EXEMPLOS DE PESQUISAS QUANTITATIVAS RECENTES
16 pianistas (18-32 anos).
EM PERFORMANCE MUSICAL
Gravação de 3 peças (duetos)
curtas a 2 vozes. anova_
TÉCmCAS Goebl &
FOCO DE INVESTIGAÇÃO AMOSTRAGEM REFERÊNCIAS Sincronização de timing e Registro da captura dos Análise
DE ANÁLISE Palmer
movimento entre intérpretes movimentos (dedos, funcional
(2009)
fome, olhos). Gravação da de dados.
60 bacharelandos (17-33
performance em
anos) que tinham cursado
piano digital.
Efeito da taxa relativa entre pelo menos um semesrre ancova.
Cabn
a prática mental e física na de improvisação de jazz. (Post-hoc)
(2008) 19-30 graduandos (músicos
performance Regisrro em áudio da Teste t. Relação entre emoção
e não músicos)
performance de dois trechos .········r percebida e nível de
Escimulo com 27 trechos
Escalonamento
harmônicos (16 comp.). expertise de ouvintes, mulridimensional Bigand et al.

I
musicais. Registro verbal
de acordo com a duração (mds). Análise (2005)
Características do estilo da emoção. Agrupamento das
28 registros comerciais de 8 do escimulo musical. de clusrer.
individual da performance Gratchen obras em uma página
Norurnos de Chopin Modelagem de Powerpoint.
na realização do ritardando &Widmer
Transcrição automática matemática
final (2009)
(software) do regisrro áudio. 165 graduandos (18-30 anos)
Gêneros musicais (4 universidades
Influência da texrura Análise Hewitt
8-16 organistas profissionais. interpretados por e 1 conservatório).
fatorial. (2009)
musical, condição graduandos em música Questionário fechado
Peças homofônicas e
de preparação, metas (Metodologia Q)
comraponcisticas. Gingras et
interpretativas e nível de anova
Gravação em áudio. ai. (2007)
competência no tipo e Quantificação da Vlolonisra profissional.
Conversão dos dados Análise formal Earis &
número de erros cometidos expressividade rúnbrfca Registro de performance
emmidi. conceirual. Holmes
na performance (órgão) através da análise espectral de um prelúdio de Bach
Análise espectral. (2007)
em violão acústico.
50 estudantes (18-22 anos)
de cinco categorias (metais,
Relação entre ambiente
cordas, madeiras, percussão Philips Os exemplos expostos na Tabela 4 contemplam aspectos acúsdcos, fi-
sonoro e prática
e voz). ano va &Mace
instrumental
Coleta com dosimetros (2008)
siológicos, psicológicos, técnicos e sociológicos que integram wna execução
durante suas práticas musical. Algumas dessas temáticas são retomadas, explorando novos recur-
instrumentais. sos tecnológicos de aquisição de dados ou ferramentas estatísdcas e matemá-
45 estudantes (17-28)
ticas. Quanto à natureza da amostra, observa-se a participação tanto de es-
Rel~ção entre emoção tudantes de música, como de músicos profissionais. A maioria dos trabalhos
graduandos em música
pretendida (intérprete) Evans &
Registro (em escala) de contidos na Tabela 4 adota elevado número de participantes (em média 30
e percebida (ouvinte) anova Schuberc
emoções sentidas (modelo de
na performance
Russell) e familiaridade com
(2008) sujeitos), em geral voluntários pertencentes à mesma Universidade ou Con-
as obras. servatório. A participação nessas pesquisas pode ser retribuída aos estudan-
tes sob forma de créditos acadêmicos ou por pagamento de wn montante
12 pianistas (19-24 anos).
Relação entre nível de Registro de batimentos
simbólico por sessão de coleta de dados.
ansiedade por situações de cardíacos, taXa de suor e Análise de Do ponto de vista de aquisição de dados, embora muitas pesquisas re-
Yoshie er ai.
estresse psicológico e o nível atividade eletrorniográfica. correlação
(2009) corram a equipamentos ·de gravação em áudio e vídeo, a maioria (Tabela 4)
de performance de pianistas Gravação da performance (Spearman).
de arpejos em piand digital.
utiliza recursos tecnológicos avançados. Pianos digitais (Disklaver', Roland
Conversão dos dados em rnidi rd', por exemplo) são empregados para aquisição de dados, o que facilita im-

110 111
i<.

portá-los para softwares de análise de parâmetros acústicos (SonicVisualiser"). Procedimentq que determina a imagem relativa percebida de um
Gestos e ~sincronização de movimentos são detectados a partir de sistemas Escalonamento conjunto de objeros com base na similaridade (ou preferência)
multidimensional (mds) em distâncias representadas em espaço multidimensional.
de c~~tura de movimentos, que os registram e os traduzem para um mode-
lo digital. Marcadores são posicionados tanto no corpo do pianista (unhas
pul~o, vários pontos da face) como no tec,iado. Eletrodos para detecção d~
Classificação dos objetos em diferentes grupos de fOrma que o
Análise de agrupamentos grau de associação enrre dois objetos é máxima se eles pertencem
batimentos cardíacos e sensores para medidas de taxa de sudorese têm sido (Clusters) ao mesmo grupo e mínimo de outra fOrma.
utilizados nas pesquisas que investigam respostas fisiológicas, buscando re-
Análise de inter-relações enrre um grande número de variáveis e
ferendá-las ao controle fino da motricidade. Para a maioria dos músicos, es- explicar essas variáveis em termos de suas dimensões inerentes co-
tes trabalhos causam certo desconforto por sua natureza essencialmente psi- Análise fatorial muns. O objetivo é enconrrar um meio de condensar a infOrma-
ção conrida em diversas variáveis originais em um conjunto menor
cofisiológica.
de variáveis esraristica, com uma perda minima de ~ormaçãó~ ~~
Para melhor compreensão, a Tabela 5 sistematiza as informações obti-
das pelas técnicas estatísticas mencionadas na 'làbela 4. Muitas técnicas es- ·~Análise de propriedades esrrururals de domínios conceituais que
Análise formal conceirual acarretam categorias de protótipos. Permite criar redes que re-
tatísticas inferencia.ls e exploratórias situam-se em análise n 1 ultivariada ou
seja, na análise de múltiplas variáveis em wn único relacionamentu o c: ~on­
velam hierariquias, continuidades e atributos em um determi-
(fda)
nado contexto.
junto de relações. Maior detalhamento pode ser obtido na literatura especí-
Identificação de harmônicos nos quais uma série observacional
fica (Hair et al., 2009). pode ser decomposto, bem como a ampllrude de cada harmôni-
Análise especrral (ou
Transformada de Fourier) co, rraduzindo um fenômeno físico de um domínio temporal pa-
TAllELA 5· MÉTODOS E TESTES ESTATÍSTICOS COMUMENTE ra um domínio de frequência.
EMPREGADOS EM PESQuiSAS EM PERFORMANCE
•Variáveis métricas são variáveis que podem ser correlacionadas por ser passíveis de serem expressas em
TÉCNICAS ESTATÍSTICAS INFORMAÇÕES
termos de razão ou proporção, ao conrrário das variáveis não mérricas, que não utilizam os mesmos
tipos de medidas proporcionais, sendo expressas em termos de escala nominal ou ordinal.
Procedimento univariado para avaliar diferenÇas de grupos em
uma única variável mérrica. • Permite verificar se existe diferença
Essas técnicas estatísticas fornecem ferramentas capazes de extrair dados
significativa enrre as médias de dois grupos de dados, e se os fa-
anova (Análise de Variança) inacessíveis em uma simples análise (percepmal). Por exemplo, em trabalhos
tores investigados exercem influência em alguma variável depen-
dem;. :ra comp":'"ação áudio e áudio/vídeo, houve significado anteriores, através do uso de anova, mostramos o significado estaústico en-
estaosoco na avaliação de Gerling e Santos (2008)
tre a emoção pretendida e a emoção percebida por árbitros que examina-
Procedimento anova que leva em conta o uso de covariáveis (va- ram dvds- som e imagem- na execução de um Prelúdio de J.S. Bach. Não
ancova (Análise de Variança
com covariáveis)
riáveis mérricas que extraem desvios da variável dependente) en- detectamos significado estatístico, quando o estímulo limitou-se à audição
rre as médias de dois grupos.
(som sem imagem) do prelúdio pelo mesmo grupo de participantes (Ger-
Procedimento que revela a narureza das associações enrre as vari- ling et al., 2008b). Outro exemplo exposto na Tabela 5 faz menção ao uso
Análise de Correlação (ca) áveis. Técnica que quantifica relações enrre modalidades paramé-
de Análise Fatorial. Trata-se de um conjunto de técnicas que servem para
tricas e não paramétricas.
identificar os constructos hipotéticos subjacentes que existem entre as vari-
Operação sobre funções contÍnuas no tempo. Fornece informa- áveis observadas. A Análise Fatorial é uma técnica de redução de dados que,
Análise de dados funcionais
ções sobre a trajetória dos movimentos, gerando modelos de cur- partindo de um amplo número de questões (variáveis), condensa-se em nú-
(fda)
vas, superfícies e rude aquilo que varia sobre o contÍnuo. .
mero mais restrito Üe dimensões e fatores. Esse tratamento exige elevado nú-
mero de respondentes (superior a 100). Observa-se que, na referência citada,

113
112
Hewitt (2009) utiliza 165 graduandos. Nessa pesquisa, o questionário con- A modelagem matemática citada na Tabela 5 é uma ferramenta que
tinha afirmações referentes à importância de esforço, confiança, habilidade busca descrever os fenômenos acústicos por funções matemáticas, o que
técnica, sorte/acaso. Fatores como o gênero musical (sonata, rondó, canção) possibilita extrair parâmetros numéricos capazes de permitir a comparação
mostraram-se relevantes, ao passo que fatores como gênero (masculino ou entre funções, tais como a determinação do grau e do local de desvio entre
feminino), anos de experiência, idade cronológica e tipo de instituição não peiformances. No trabalho de Gratchen e Widmer (2009), os autores mo-
foram significativos. delam o ritardando final em Noturnos de Chopi.ri., executado por uma série
A análise espectral mencionada na Tabela 5 tem sido empregada para de pianistas·(registros comercialmente disponíveis). Eles conseguiram iden-
quantificar parâmetros acústicos. No trabalho desenvolvido por Earis e Hol- tificar os instrumentistas, a partir de conversões matemáticas do perfil das
mes (2007), esse tipo de análise avalia diferenças quantitativas na qualidade execuções. Em nossos trabalhos, temos utilizado a modelagem matemática
do espectro sonoro de gravações de Prelúdio de J.S. Bach, executado ao vio- para extrair correlações e padrões presentes na interpretação de estudantes
lão. A Figura 3 ilustra esse tipo de dado, obtido em nossas pesquisas, através de piano. A Figura 4 ilustra o espectro sonoro (preto) e a modelagem ma-
da conversão do arquivo áudio, em espectro sonoro. A abscissa contém o in- temática (vermelho) em um Ponteio de Guarnieri, interpretado por um es-
tervalo de tempo, enquanto, na ordenada, inferimos a intensidade das altu- tudante de graduação. O procedimento envolve a conversão do arquivo de
ras expressas em decibéis. No caso da Figura 3, um mesmo estudante de gra- áudio (wave) em números (dat), que, posteriormente, através de softwares de
duação registra um Ponteio de Guarnieri, em duas ocasiões. A comparação simulação, ajustam a equação que mais se aproxima do dado real, no caso,
entre os espectros permite observar o nível de reprodutibilidade entre per- a trigonométrica. O grau de acuidade depende do denominado custo com-
formances em termos de andamento e dinâmica. putacional, ou seja, o tempo necessário de aquisição de máquina nas inter-
polações e aproximações da função matemática gerada. Esse tipo de análise
FIGURA 3· ESPECTRO ACÚSTICO DE DUAS PERFORMANCES permite identificar desvios estilísticos, bem como correlacioná-los com es-
DE UM PONTEIO DE GUARNIERI POR UM ESTUDANTE DE GRADUAÇÃO
truturas musicais presentes na obra.

FIGURA 4· ESPECTRO SONORO (PRETO) E MODELAGEM MATEMÁTICA (VERMELHO)


DA PERFORMANCE DE UM PONTEIO DE GUARNIERI
POR UM ESTUDANTE DE GRADUAÇÃO

40000

-40000 'r---,----,----,---,---,----,:---r--r-
Graduando A 1:05.575 o z 4 6 8 10 12 1 16
"li=po (s.)

114 115
Outras técnicas mencionadas na Tabela 5: análise de correlacão escalo- influem no resultado das ferramentas estatísticas aplicáveis. 3 -Existem vários
namento multidimensional e análise de cluster também serão co~e~tadas e delineamentos de escalas. Ilustraremos, a seguir, três tipos de escalas comu-
ilustradas no presente capítulo.
mente empregadas: de Osgood, de Stapel, de Likert.
As técnicas estatísticas possibilitam conclusões (correlações, inferências) A Escala de Osgood ou escalas de diferencial semântico são escalas bi-
sobre parâmetros, partindo de informações retiradas de variáveis, por exem- polares de sete pontos, aos quais podem ser atribuídos valores numéricos.
plo, caráter, acuidade de leitura, coerência global. A escolha de um méto- Nos extremos, são colocadas palavras antagônicas ou com significados opos-
do estatístico relaciona-se diretamente aos parâmetros determinados (por tos (ou ainda, antônimos) (Vide Tabela 6).
exemplo, acuidade de leitura, tempo de prática, grau de familiaridade com a
obra), bem como com a proximidade e o distanciamento entre variáveis (in- TABELA 6. EXEMPLO DE ESCALA DE DIFERENCIAL SEMÂNTICO

terpretações, intérpretes, níveis de expertise, por exemplo). Os testes estatís-


ticos, em geral, entre eles o teste t, visam a estimar os limites além dos quais A interpretação da peça X pelo instrumentista Y é:
duas amostras não devem ser mais consideradas da mesma população. Por Imprecisa à
exemplo, um teste de acuidade de leitura à primeira vista, aplicado a grupos Precisa à partitura 1 2 3 4 5 6 7
partitura
de nível diferenciado (um de profissionais e outro de estudantes), permite
Inadequada ao
deduzir se há possibilidade de comparação entre os grupos. Adequada ao estilo 1 2 3 4 5 6 7
estilo
Uma das potencialidades das abordagens metodológicas quantitativas
Ineficaz na
consiste na elaboração de modelos construídos a partir de estatísticas ou fun- Eficaz na
comunicação
ções matemáticas para explicar o fenÔD;J.eno observado. O tratamento estatís- comunicação do 1 2 3 4 5 6 7
do caráter
caráter da obra
tico pode ser meramente descritivo (os resultados .-lt:screvem médias, desvio da obra
padrão etc.) ou inferencial, que busca revelar relações entre os diversos parâ- Isenta de
Plena de domínio
metros investigados. Assim como a natureza da partitura determina a ferra- 1 2 3 4 5 6 7 donúnio
técnico
menta analítica mais eficaz, a natureza e o número de sujeito~ da amostra di- .técnico

recionam para o tipo de ferramenta a ser emvregada. Amostras nas quais a


distribuição é conhecida e que comumente envolvem um número relativa- Nessa escala, o ponto 4 é considerado como um centro isento de opi-
mente elevado de sujeitos prestam-se ao emprego de t~i.:es paramétricas, nos nião. Uma modificação dessa escala é a de Stapel, que possui dez pontos es-
quais os valores das variáveis (parâmetros predeterminados que representam tritamente representados por números. A Tabela 7 ilustra uma situação de
características da amostra) adotam um princípio de normalização, ou seja, há coleta em escala de Stapel.
uma base hierárquica de sustentação para os critérios escolhidos.
Quando a coleta de dados envolve a aquisição de variáveis físicas (nú-
3 As
mero de batimentos cardíacos ou andamento de uma obra musical, por escalas podem ser classificadas em:
. (i) nominais: nas quais os objetivos são classificados em grupos, pemútindo, porranro, apenas conragem
exemplo), a aplicação de métodos estatísticos pode ser diretaménte realiza-
e classificação;
da. Em situações que env.olvam medidas de percepção e comportamento, · (ü) ordinais: nas quais os objetos são ordenados segundo o grau em que possuem um dado atributo;
faz-se necessário o uso de escalas, cabendo ao pesquisador atribuir escores. A (ili) de intervalo: faixas ao longo da escala em que são iguais;
escolha da escala mais apropriada para o tipo de medida qúe se deseja reali- (iv) de razão: descreve o grau em que dois objetos ou sujeitos possuem um atriburo.
zar tem de se apoiar obrigatoriamente no conhecimento de suas caracrerís:. A escolha da escala deve buscar atingir um balanço entre pemútir o maior conteúdo de informações
para suas finalidades de análise e, ao mesmo tempo, não exigir muito do respondenre. A natureza e o
ricas e principalmente de suas limitações, visto· que benefícios e limitações número de variáveis determinam o tipo de análise estatística que pode ser realizada e esta depende do
tipo de escala empregada (Hair et ai., 2009).

116
117
TABELA 7· EXEMPLO DE ESCALA DE STAPEL trução e· o uso de afirmações independentes do comportamento estudado.
Como desvantagem, o· ordenamento ordinal não permite gradações mais so-
A interpretação da peça X pelo instrumentista Y é: . fisticadas nem mede oscilações comportamentais,
Precisa à partitura -5 -4 -3 -2 -1 +1 +2 +3 +4 +5 Em nossas pesquisas, parâmetros musicais são muitas vezes avaliados se-
gundo critérios, como os exemplificados na Tabela 9, que utilizam um priu-
Adequada ao estilo -5 -4 -3 -2 -1 +1 +2 +3 +4 +5
cípio de escala de ordenação. ·
Eficaz na comunicação
-5 -4 -3 -2 -1 +1 +2 +3 +4 +5
do caráter da obra 1ABELA 9· ExEMPLO DE ESCALA PARA ANÁLISE DE PARÂMETROS
DA PERFORMANCE MUSICAL
Plena de domínio técnico -5 -4 -3 -2 -1 +1 +2 +3 +4 +5
Acuidade na leitura musical

Uma das escalas mais empregadas é a de Likert (Siegel, 1975). Trata-se I Insufi.cieme
de uma escala indireta, para atribuição numérica, em que cada célula de res- 2 Aceitável
posta reflete a direção de atitude do respondente. A pontuação total da ati- 3 Regular.
tude de cada respondente em relação ao objeto é dada pelo somatório das 4 Bom
pontuações obtidas para cada afirmação relativa ao objeto. A Tabela 8 ilus- 5 Muito bom
tra a situação exemplificada nas tabelas anteriores sob um delineamento na
A disponibilidade de softwares comerciais, tais como Statistica, Statgra-
Escala de Likert.
phics, spss, Minitab, sas, sphinx, winks e mesmo Excell e Origin (com apli-
TABELA 8. EXEMPLO DE ESCALA DE LIKERT
cações limitadas) viabilizaram e facilitaram o tratamento de dados estatísticos
nas mais diversas técnicas e testes. A seguir, ilustraremos algumas aplicações
A interpretação da peça X pelo instrumentista Y é: dessas técnicas no tratamento de dados obtidos em nossas pesquisas,
A análise de correlação, que no caso das práticas interpretativas pode
Concordo Discordo
Concordo Indiferente Discordo estabelecer o sentido da relação entre dois parâmetros, compreende o tra-
totalmente totalmente
tamento de dados amostrais para saber como duas ou mais variáveis estão
Precisa à partitura 1 2 3 4 5
rela.cícn: J.-as entre si. O sentido -l<> correlação pode ser positivo, negativo
Adequada ao estilo 1 2 3 4 5 ou nulo (ausên:::ia de C('rrelação). Em trabalhos anteriores (Gerling et al.,
-
··Eficaz na 2009a), investigamos a prep"'lração de uma obra de Schumann (Anhangdas
comunicacáo do 2 3 4 5 Peças Fantásticas, op. 12) por um grupo de estudantes sem auxílio do pro-
caráter da .obra
fessor. A performance reg1strada foi avaliada por três árbítros, levando-se em
Plena de domínio consideração parâmetros musicais previamente estabelecidos, a saber: con-
1 2 3 4 5
técnico
torno, articulação, andamento, timing, dinâmica; gestos, coerência global. 4
• Os critérios de avaliação do produto de execução musical, para nossas pesquisas, são compreendidos
Na Escala de Likert, os valores extraídos são posteriormente converti- como: contorno (das frases): grau de coerência sobre o direcionamento das linhas melódicas, rendo
dos em pontuação para fins estatísticos. Por exemplo, no caso de uma afir- em vista características do padrão sonoro global, resulranre em termos de sua inclinação, seu desvio e
mação favorável (positiva), como é o caso da sentença na Tabela 6, os valores reciprocidade (contorno em arco; ondúlante, em degraus, descendente, por exemplo);
atribuídos de 1 a 5 podem ser transfon,nado em pontos: -2, -1, O, +1, +2. As articulação: grau de coerência sobre expressão de indicações de articulação explícitas na obra (legato,
staccato, portato, por exemplo). A função da articulação é conectar ou separar noras isoladas ou em
principais vantagens em relação a outras escalas são a simplicidade de cons- grupos, deixando o conteúdo inrelecrual da linha melódica inviolável, mas determinando sua expressão;

118 119
Dado o número elevado de variáveis, consideramos necessário estabelecer mais perfeita a correlação. Considera-se a seguinte relação entre o coeficiente
correlações. A Tabela 10 apresenta os dados obtidos do coeficiente de corre- de correlação e a intensidade de interação:
lação de Pearson (r), apropriado para descrever a correlação linear dos dados
de duas variáveis quantitativas. i) valores entre 1,0 e 0,7: forte correlação;
ii) valores entre 0,7 e 0,3: correlação moderada;
TABELA 10. AVALORES DO COEFICIENTE DE CORRELAÇÃO LINEAR DE PEARSON (R) iii) valores entre 0,3 e 0: fraca correlação.
PARA OS PARAMETROS MUSICAIS AVALIADOS POR TRÊS ÁRBITROS NA PERFORMANCE
DE SCHUMANN POR ESTUDANTES DE PIANO (n = 6) De acordo com aTabela 10, a relação forte encontrada encontra-se en-
tre as notas atribuídas a contorno e coerência (r= 0,893). Isso significa que os
Conrorno Articulação Andamento Timing Dinâmica Gestos
Coerência valores atribuídos pelos árbitros sugerem que o valor atribuído ao escore coe-
global
rência global possa estar sendo influenciado por aquele atribmdo ao contorno.
Contorno 1 0,204 0,712 0,719 0.400 0,237 0,893 Correlações fortes foram também observados pelas relações entre contorno-
Articulação 0,204 1 0,269 0,190 -andamento (0,712), contorno~timing (0,719), andamento-tíming (0,725),
0.482 0,042 0,216
Andamento 0,712 0,269 1 0,725 0,326
andamento-coerência global (0,765),tíming-coerência global (0,779).
0,112 0,765
Quando os dados de alguma das variáveis mostram-se com distribui-
Timing 0,719 0,190 0,725 1 0,536 0,358 0,779 ção muito assimétrica ou com valores discrepantes, a análise de correlação
Dinâmica 0,400 0.482 0,326 0,536 através do coeficiente de Pearson pode ficar comprometida. Uma alternativa
1 0,009 0,433
Gestos 0,237 0,042 0,112
consiste na aplicação não paramétrica do coeficiente de correlação de Spear-
0,358 0,009 1 0,246
Coerência man (r), que independe da suposição de linearidade entre as variáveis e uti-
0,893 0,216 0,765 0,779 0,433 0,246 liza o ordenamento dos valores (Barbetta, 2006). A Tabela 11 apresenta os
global 1
mesmos dados da avaliação do Anhang de Schumann por árbitros, calcula-
Na Tabela 10, os mesmos parâmetros são apresentados nas linhas como dos pelo coeficiente de Spearman.
"co~:or~o", os dados da relação encontram-se com os demais parâmetros
(var1ave1s dependentes): articulação, andamento, tímíng etc. A correlação TABELA I I. VALORES DO COEFICIENTE DE CORRELAÇÃO DE SPEARMAN (RS) PARA
entre a variável consigo mesma é igual à unidade. Os valores de correlacáo OS PARÂMETROS MUSICAIS AVALIADOS POR TRÊS ÁRBITROS NA PERFORMANCE

de Pearson obtidos para os escores dos parâmetros musicais avaliados varlou DE SCHUMANN POR ESTUDANTES DE PIANO (N = 6)
entre 0,009 e 0,893. No presente caso, todos os valores obtidos são positi-
Coerência
vos (o que significa uma relação diretamente proporcional), com exceção da Contorno Articulação Andamento Timing Dinâmica Gestos
global
relação entre gestos e dinâmica (0,009) que foi muito próxima de zero, su- Contorno 1 0,095 0,712 0,686 0,442 0,189 0,799
gerindo ausência. A correlação tem intensidade: qLmto mais próxima de 1,
Artlculaçáo 0,095 1 0,250 0,221 0,526 0,088 0,211
Andamento 0,686 0,250 1 0,692 0,406 0,062 0,689
~clamemo: grau de ve:ocidade. relativa dos eventos (usualrneme medida em número de batidas por
mmuto), CUJos pulsos sao sucedidos repetidamente; Timing 0,605 0,221 0,692 1 0,647 0,339 0,718
timing: ;narupula~o. ~ vel?c~dade relativa entre o, ~~·~mor de esrrururas temporais, •••.m•'=ndo as Dinâmica 0,442 0,526 0,406 0,647 1 0,099 0,539
proporçoes da subdiVJsao memca e com finalidade exptessiva;
0,088 0,062
dinâmica: referindo-se a três ?rincípios: .(i) ~udanças graduais de imensidade para indicar padrões de Gestos 0,189 0,3398 0,099 1 0,245
tempo f~rre e tempo ~co assun com a direçao do movimento dentro dos agrupamentos; (ü) contraste Coerência .
para arncul,ar_fronr~tras entr,e ~pamenros; (ili) demarcação de eventos estrururais significativos, global
0,799 0,211 0,689 0,718 0,539 0,245 1
(acentos metr1cos, p1cos melodicos, mudanças harmônicas, entre outros) (Clarke, 1989);
coerência global: expressão global da peça quanto ao relacionamento entre eventos musicais.

120
121
De acordo com a Tabela 11, a mesma tendência de correlação é observa- àquela do contorno e essas duas, em um nível de distanciamento maior, às no-
da, mas as correlações fortes podem ser encontradas apenas entre contorno- tas de timinge andanÍento. O dendrograma confirma o que fora já observado
-andamento (0,712), contorno-coerência global (0,799)", coerência global-ti- na correlação de Pearson e Spearman: os parâmetros de dinâmica, articulação
ming (0,718), 5 sugerindo que a correlação linear de Pearson descreve melhor e gesto estão bastante dispersos no grupo de estudantes, ou seja, neste estudo
a correlação entre os parâmetros investigados. Essa técnica de análise de dados e nesta obra, os parâmetros anteriormente descritos não foram valorizados.
sugere que,- para essa amostra, o produto avaliado pelos árbitros está estrutu- Em comparação às abordagens qualitativas de pesquisa, os métodos de
rado em quatro fatores: contorno, andamento, timing, coerência global. Ou- análise de dados que se traduzem por números podem ser muito úteis na com-
tro questionamento decorrente apoia-se na compreensão da hierarquia entre preensão de diversos percursos ou soluções tomadas pelos instrumentistas.
todos os parâmetros. Para tal, realizamos uma análise de agrupamento. Mais ainda, a combinação desse tipo de dados com os oriundos de metodolo-
A análise de agrupamentos visa a organizar dados observados em estru- gias qualitativas pode enriquecer a compreensão de eventos, fatos, produtos,
turas ou em classes. Consiste em unificar objetos em grupos sucessivamen- processos. As duas abordagens demandam, como em qualquer processo cri-
te maiores através de alguma medida de similaridade ou de distanciamento. terioso de investigação, o esforço de reflexão do pesquisador para dar sentido
Quando o pesquisador utiliza a análise de agrupamentos (ou de clusters), es- ao material levantado e analisado, assunto a ser abordado na próxima seção.
tá fazendo uma suposição da existência de uma estrutura hierárquica entre
as variáveis (Hair et al., 2009). A maneira mais comum de apresentar esses DEL!WEAMENTOS MISTOS
resultados é sob a forma de árvore hierárquica, denominada dendrograma.
A Figura 5 ilustra a hierarquia dos avaliações em termos dos parâmetros in- Métodos mistos (múltiplos ou híbridos) constituem-se em metodologia
vestigados na performance do Anhang de Schumann. de pesquisa com tendênci~ conceitu:üs muito definidas, bem como método
de investigação propri;~ mente dito. Çoino metodologia, envolve afirmações
FIGURA 5. DENDROGRAMA POR ANÁLISE DE CLUSTERS DOS PARÂMETROS MUSICAIS
filosóficas que direcionam a coleta de dados, combinando abordagens qua-
AVALIADOS POR TRÊS ÁRBITROS NA PERFORMANCE DO ANHANG
DO OP. I2 DE SCHUMANN POR ESTUDANTES DE PIANO (N = 6) litativas e quantitativas nas diversas fases da pesquisa. Como método, dirige
o foco sobre a coleta e análise da combinação de dados qualitativos e quanti-
o 5 lO 15 20 25 tativos (Creswell & Plano Clark, 2007). Do ponto de vista metodológico, a
1····-···········---f···················+···················+·······-···········1····················1 base filosófica assume a dialética como linha de investigação fundamentan-
Contorno do-se em uma visão de mundo tanto pós-positivista (Guba, 1990; Greene &
Coerência Caracelli, 1997; Tashakkori & Teddlie, 2003; Mertens, 2003; Plano Clark
Timing- et al., 2008) como construtivista (Plano Clark et al., 2008).
-· Andamento - - - - - - - - - - - ' A visão de mundo pós-positivista entende que o conhecimento das re-
Arcicwa~o - - - - - - - - - - - - - - . - - - - - - - - - ' sultantes do produto permite o avanço da investigação. Nesse caso, a parti-
Dinâmica
tura é a referência, e as- execuções desta mesma fonte apresentarão desvios
Gestos
sobre um ideal objetivo-normativo, advindo das tradições de (teorias de) per-
De acordo com a Figura 5, os escores conferidos ao contorno e à coe- formances (Cohen, 2002) e de t~orias musicológicas (Christensen, 2002) da
rência global encontram-se extremamente próximos entre si, sugerindo que, música (clássica) ocidental. A interpretação construtivista leva em conta os
nesse grupo de estudantes, a nota atribuída à coerência global está vinculada processos e suas relações de sentidos e significados, demonstrando tensões,
contradições e complementaridade constantes em torno da investigação pro-
5 Aquelasrelações que apresentavam valores bai'(OS na correla~o de Pearson apresentaram valores rela-
tivamente mais elevados na de Spearman, como é o ciso da correla~o entre coerência global-dinâmica, priamente dita. A interpretação construtivista abrange os desvios como parte
que subiu de 0,433-(Pearson) para 0,539 (Spearman). do desempenho diferenciado e idiossincrático de cada participante.

122 123

L
A perspectiva de métodos mistos apresenta preocupação com a objetivi- (2009) investigaram a performance realizada pela interação músico-compu-
dade reformulada e processos de pesquisa envolvendo: tador através da análise de discurso !(qualitativo) em combinação com ferra-
(i) mescla de condições reais e impostas (estudos de casos e mentas estatísticas (testes de hipóteses) e computacionais (teste de Turing). 7
quasiexperimentos); 6 Em nossas pesquisas, temos utilizado esse tipo de abordagem mista
com alunos da graduação e da pós-graduação (mestrado e doutorado em
(ii) abordagens qualitativas e quantitativas: precisão (forte interesse pe- Práticas Interpretativas). Devido à diferença no nível de expertise, 8 precisa-
lo objetivo) e riqueza- necessidade de contemplar a diversidade nas abor- mos aprenderca·lidar·com as-variáveis em um laboratório abrigado, em um si-
dagens/subjetividade na construção do conhecimento;
tuação escolar verídica e não idealizada. A título de exemplo, podemos ilus-
(iii) aplicabilidade e validação (árbitros e calibrações nas definições de trar a situação, anteriormente mencionada, na qual uma peça de Schumann
conceitos) frente aos processos e produtos investigados. executada por alunos de diversos níveis foi avaliada por árbitros. A Figura 6
representa o grau médio atribuído pelos árbitros a cada estudante (A-F), ·se-
Justificamos métodos mistos pelos seguintes ganhos (Greene et al.,
1989; Bryman, 2006): gundo sete parâmetros· investigados.

diversidade de perspectivas dos participantes e dos pesquisadores; 6. GRAU MÉDIO .ATRIBUÍDO AOS DIVERSOS PARÂMETROS DE EXECUÇÃO
FIGURA
compensacáo na extração de pontos fortes de cada vertente; MUSICAL PARA 7 ESTUDANTES DE MÚSICA.
A, B E C: GRADUANDOS DE I 0
SEMESTRE. D: GRADUANDO DE 6° SEMESTRE. E: GRADUANDO DE 7° SEMESTRE. F_:
complementaridade na elaboração, desenvolvimento, ilustracáo e clari-
MESTRANDA
ficação de resultados através de resultados ponderados; .
expansão das fronteiras da investigação, usando diferentes métodos
com diferentes componentes de pesquisa; 10
.....----------·· .... .. ..
completude na busca de visões mais abrangentes do objeto; ... ... ~
..
~···

utilidade nos resultados práticos compartilhados com os participantes; ~·:<::::---···· .......


-
7
triangulacão (ou maior validacão) ao corroborar os resultados de uma
vertente com os de outra;
credibilidade ao intensificar a integridade dos dados, tendo em vista a
complementaridade das perspectivas.
No caso de execução musical de estudantes, são poucas as pesquisas vol-
tadas para delineamento com métodos mistos. Em outras situações, Stevens
et al. (2007) utilizaram abordagens mistas, ao desenvolver um método para
medir as reações da plateia frente a uma performance que combinava um ins-
Contamo ArticuÍação And~mento Tim/ng Dinâmica Mov/Gestos Coe;. Global
trumento psicométrico (ferramenta de resposta do público) coni a descrição Parâmetros da Execução Musical
de respostas cognitivas e emocionais em questionário aberto. Stowell et al.
6 7 O Teste de Turing é um teste proposto por Alan Turing (1950), cujo objetivo é determinar se um
Em nossas pesquisas, métodos quasiexperimentais são utilizados no laboratório de Execução Musical
da ufrgs e visam abranger todos os estudantes participantes, sejam esses graduandos ou pós-graduandos. programa de compt<ttulor ~ ou não intellgente. O programa é inteligente se a pessoa que participa no
Nos estudos desenvolvidos até o presente momento, optámos por um grupo intacto e único (Cohen & teste não for capaz de dizer se foi o programa ou um ser humano que respondeu às suas perguntas.
Manion, 1994), na proposição de uma peça para todos. Os estudos de caso são realizados com estudantes 8A psicolofiia cogclriva propõe cinco níveis de experrne, 1) iniciante, 2) iniciante avançado, 3) com-
voluntários que aceitam participar de pesquisas pertinentes à preparação de'seu repertório. · petente, 4) proficiente, 5) expert.

124 125
Os dados da Figura 6 revelam ampla dispersão de graus atribuídos ao exeeuçáo, não a finalidade em si. Quanras ve:z.es a mesma peça é executada em andamen-
tos totalmente diferentes, mas é bonita igual? (estudante de graduação C, 1° semestre).
mesmo estudante, sugerindo a valorização relativa de certos parâmetros em
detrimento de outros. Uma análise meramente quantitativa dos dados não Fenômeno análogo foi detectado no caso de um aluno da pós-gradua-
permite especular a possibilidade de haver algum tipo de vínculo entre o va- ção (Figura 8).
lor atribuído pelos árbitros e aquele relacionado à valorização de um parâ-
metro por parte do estudante. De posse desses dados, pesquisadores ques- FIGURA 8. RELAÇÃO ENTRE A P.:IERARQUIA DOS PARÂMETROS MUSICAIS

tionam os participantes sobre a hierarquia entre os parâmetros durante a DA MESTRANDA E O GRAU MÉDIO ATINGIDO NA AVALIAÇÃO DE ÁRBITROS

preparação. Este questionamento resultou em coerência entre valor atribuído


e grau médio atingindo. A Figura 7 exemplifica a relação da hierarquia en- 10
tre os parâmetros segundo a perspectiva de um estudante de graduação (1 °
semestre) e as respectivas notas dos árbitros.
B
• .. •
c "
·~ 7
FIGURA 7· RELAÇÃO ENTRE A HIERARQUIA DOS PARÂMETROS MUSICAIS "'
.!:!
DA ESTUDANTE C E O GRAU MÉDIO ATINGIDO SEGUNDO AVALIAÇÃO DE ÁRBITROS ~ 6

m
"C 5
o
:;:;
.., 4
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"'
o Alldilli'I!nto
Coaf!nclaGiobtl Artlt:Ulllr?O Dln1mic:a
COn!DmQ
GoSttt~ íiiTIIng

Hierarquia das parâmetros musicais na performance


para o estudante F

O estudante comentou sua concepção de alguns parâmetros musicais,


conforme mostra seu depoimento:
Hierarquia dos paràmelros musicais na perfofmance
para o e-studante C Coerência global- se isso não for o mais importante, como é que a gente vai tocar al-
guma coisa? (... ) Entendendo que contorno é o desenho da música, o fraseado, o en-
tendimento dos caminhos melódicos e harmônicos que a música segue (... ).A arti-
culação é o que dá a "carinha" da música, talve:z. até ajude a dar o caráter, junto com
dinâmica, gestos e outros elementos. (... ) Estudar os gestos da música ou das partes de
De acordo com a Figura 7, existe tendência decrescente entre a nota unia música é importante porque o visual ajuda a convencer a ideia da música que vo-
atribuída pelo árbitro e a ordem relativa de relevância atribuída pelo estu- cê quer passar (ou pode atrapalhar, então é bom pensar neles). (... )A dinâmica, rarn-
dante em cada parâmetro. Na justificativa,. a estudante mencionou: bém muito importante, pode ajudar a compreender o caráter da peça ou da seção, e o
Timing, importantíssimo, é o que distingue 'um pianista do outro, a forma como ele
Me parece que coerência global envolve todos os outros critérios. Timing e contorno entende as seções, os momentos, as frases, as respirações da música. (... ) Para mim, o
ajudam a justificar a escolha de andamento, dinâmica e articulação. Então, eu acho andamento não é tão importante, desde que a coerência global da peça e o seu caráter
que esses dois últimos são rarnbém importantes. O andamento é uma ferramenta para a sejam respeitados e compreendidos. (mestranda, estudante F)

126 127
De acordo com esse depoimento, a não valorização do andamento pa- FIGURA 9· MAPA PERCENTUAL DE PROXIMIDADES DOS PARÂMETROS MUSICAIS
rece justificar o grau relativamente baixo nesse parâmetro. Esses dados su- AVALIADOS NA PERFORMANCE DO ANHANG DO OP. 12 DE SCHUMANN

gerem que o nível de desenvolvimento dos alunos determina os parâmetros


valorizados por cada um. Surgem questões: o aluno executa o que pode? 0,8
O que entende? Poderíamos supor que a, não valorização de determina- .la
""~ 0,6
Coeréncia
• Contorno
do parâmetro, tal como o andamento, acaba por satisfazê-los pela simples Q,
X
w

acomodação? O aluno não Yaloriza porque não pode ou'porque não sabe? o.~

Qual é o papel do conhecimento (ter ideia do andamento real) em relação


ao seu nível de desenvolvimento nessa habilidade? O produto final parece
0.2
.
Andamento
Tfmlng • G.estos


ser sustentado por alguns parâmetros fortemente dominados, em decorrên- '·'
~0,2
cia da valorização do que já é sabido em detrimento daquilo que. é espera-
do em um nível mais elevado de realização artística. A análise puramente .Q,.t.
Feurigst
B

• Artll:ulaç:lo

quantitativa dos dados (escores) não permite revelar essa relação de poten- -0,6
O lnãmJea

cial tão importante no autoconhecimento e no desenvolvimento dos par-
ticipantes. Ao realizarmos estes estudos, mantemos o desenvolvimento da
.. o,a
-o.a -0,5 .... -0.2
'·' 0,2 0.4 0,5 o.•
Realização
1,0

autonomia dos estudantes e de seus processos de aprendizagem como me-


ta prioritária.
Outro exemplo de método que combina, de forma complementar, di- Nesse tipo de técnica estatística multivariada, exploratória, a interpre-
mensões quantitativas e qualitativas da pesquisa é encontrado na avalia- tação das dimensões fica a cargo do pesquisador. A distribuição obtida por
ção da comunicação do caráter, combinando as avaliacões dos árbitros com essa técnica, no tocante à dimensão da ordenada, revela três grupos de pa-
aquelas dos próprios estudantes. O escalonamento ~ultidimensional, um râmetros com distanciamento próximo: (i) Feurigst, dinâmica e articula-
método de estatística inferencial exploratória, é um conjunto de procedi- ção; (ii) andamento, timing e gestos; (iii) coerência e contorno. O conjun-
mentos que utiliza, na elab9ração de uma representação espacial da estrutu- to desses três grupos levou-nos a sugerir que a ordenada (eixo Y) representa
ra de relação, medidas de proximidade entre os parâmetros (vide, por exem- uma dimensão vinculada à comunicação/percepção da expressão. Com re-
plo, Hair et al., 2009; Silva et al., 2909). Este método permite obter o mapa lação à dimensão da abscissa (eixo X), observa-se a proximidade entre cará-
perceptual. Os dados dos escores dos três árbitros, referentes à performance ter Feurigst e andamento ou dinâmica e contorno, provavelmente revelan-
do Anhang do Op. 12 de Schumann, foram submetidos a esse método por- do uma dimensão que busca descrever o grau de realização na performance.
que, nesse ponto da investigação, nossas inferências dependem mais da per- Na Figura 9, os parâmetros "coerência global" e "contorno" são os mais
cepção dos árbitros do que de hipóteses prévias. salientes para os estudantes. Conforme estudos anteriores (Gerling et al.,
O caráter (Feurigst, ardente) foi analisado por escalonamento multidi- 2009), apesar do potencial de expressividade, coerência global parece ser um
mensional (mds), conforme representação na Figura 9. · .parâmetro bem assimilado e menos dependente do nível de expertise mu-
sical. Aparentemente, para esse grupo investigado, a coerência global está
mais próxima do contorno do que os demais parâmetros, ou seja, o conjun-
to de alunos valorizou o delineamento de cada uma das :&ases mais do que
o contexto de sua execução.
Uma interpretação com base apenas nos resultados quantitativos (es-
cores atribuídos pelos árbitros) não permite elucidar a razão de distribui-

128 129
ção desses parâmetros nos três grupos. Fez-se então necessário submeter um Esses exemplos ilustram a potencialidade de se combinarem delinea-
questionário aberto aos estudantes e aos árbitros, para, na medida do pos- mentos quantitativos ·e qualitativos. Nas duas situações, observa-se que essa
sível, justificarem suas percepções das performances realizadas e avaliadas. combinação permite obter:
Alguns depoimentos dos estudantes revelaram a valorização de aspectos (i) diversidade de perspectivas (árbitros e estudantes participantes);
vinculados à dinâmica e à articulação:
(ii) compensação e complementaridade, à medida que certos aspectos
Para chegar nessa sensação [atiçado], eu trabalhei com dinâmica (crescendo afobada- revelados através de métodos estatísticos puderam ser justificados, a partir
mente), algumas vezes terminando com legato e staccato. (esrudante A, 1° semestre) .
de abordagens qualitativas (questionário aberto);
A primeira seção, em vez de fogoso, penso em tenso e aflito [comp. 1-18]. Faço con-
(ili) completude, visto que as análises forneceram urna visão mais abrangen-
traste de dinâmica para criar tensão e movimemo. Na segunda seção [comp. 18-41],
penso no caráter encantado e triste. O triste, eu acho pode vir de um certo aspecto in- te do objeto de pesquisa, passível de aprofundamentos em estudos posteriores;
timista e reflexivo na melodia, que procuro fazer cantábile. O final, para mim, é de-
(iv) utilidade e credibilidade, inicialmente para a própria população
siludido e irônico, pois a música deveria ser uma coisa, mas ela não consegue. Nesse
sentido, Schumann me parece irônico: uma música que deveria ser bonita, mas que
participante da pesquisa e potencialmente aplicável para outros indivíduos
não consegue ser. (esrudante C, 1o semestre) atuantes nas subáreas de Práticas Interpretativas e educação musical, urna
A ideia que eu queria passar é atiçado, num sentido de instáw;l. Para tal, o ataque pre- vez que essas pesqulGas passam a extrair e estabelecer parâmetros potenciais
dominantemente rápido nas teclas, associado à dinâmica instável, que cresce e dimi- para avaliação de produtos da performance com vistas à valorização de qua-
nui. (esrudante D, 6° semestre) lidades -. 'i:Ísticas.
A música começa aflita, mas lá pelas tantas existe uma lembrança de um momento
passado, que dava bons motivos para mostrar-se encantado. (...) Eu devo tocar com os Independentemente do delineamento da pesquisa, os procedimentos
dedos mais leves ou lerdos.( ...).(esrudante E, 7° semestre) éticos implicados em urna investigaçiio estão absolutamente atados às pos-
Depoimentos dos árbitros, no questionário aberto, conduzem à obser- turas epistemológicas e ~etodológicas do pesquisador. Antes de mais nada,
v~ção da leitura e à compreensão musical da obra relacionadas a andamen- trata-se de urna relação humana que acontece em um contexto sociocultu-
to, timing e gestos, conforme revelam estes exemplos: ral. Questões éticas perténcem aos padrões profissionais ou código de con-
dutas não vinculados legalmente, mas que tem sérias consequências pro-
Iniciou a peça com bom caráter e andamento, perdendo o sentido e a direção da mú- fissionais ou pessoais, através de sanções não legais. Na última seção deste
sica na parte central. A segunda seção foi executada mais devagar que a primeira. (co-
capítulo, abordaremos princípios éticos a serem adotados, de modo. geral,
mentário da performance do esrudante A) ·
na condução de pesquisas e, particularmente, em Práticas Interpretativas.
Andamento muito abaixo do indicado (com fooco), o que leva ao questionamento so-
··bre o que ele entende por leitura da partitura. Só as notas e o rirmo? (comentário da
performance do esrudante B) PROCEDIMENTOS ÉTICOS
Grande fluruação do andamento na 2a seção, se os accellera~di e ritardandi são reali-
zados em sincronia com a curvatura da frase, em vez de se perceber as flutuações de A relação entre o pesquisador e o participante é delicada, necessitando,
tempo, percebe-se o arco da frase. Da maneira como está, percebo várias alterações de
portanto, de mecanismos de proteção no trato entre os envolvidos e no sen-
andamento. (comentário da performance do esrudante C)
tido de evitar danos e maximizar benefícios. Além desse cuidado essencial,
Especialmente na 2a seção, a fluidez e a velocidade ficam um pouco inibidas por causa
da grande amplirude de gestos. (comentário da peiformance do esrudante D) os procedimentos investigativos precisam refletir um alto nível de compro-
O fraseado· é orgânico e as variações do tempo são organizadas a partir de um pul- metimento profissional com a área de conhecimento e com outros profissio-
so básico. Demonstrou um bom enten~ento da estrutura da peça. (comentário da nais. O participante deve ser alertado para fornecer informações sinceras e
performance do esrudante E) · verídicas, urna vez que o intuito primordial é o avanço do conhecimento de

130 131
para a consolidação do campo artístico em nível de ciência da execução, têm
uma área de estudo. Sua participação, na maioria das situações, envolve dis-
ponibilidade de tempo e dedicação para participar da pesquisa. É de suma sido também motivação e recompensa intelectual.
No presente texto, procuramos demonstrar perspectivas relevantes de
importância que seu aceite parta de uma deliberação consciente e envolva o
engajamento necessário durante o período da coleta de dados. abordagens qualitativas, quantitativas e mistas em Práticas Interpretativas e
O instrumento de preservação tanto ,para o pesquisador como para o em Educação Musical. Abordagens qualitativas têm como premissa a obser-
participante é o consentimento informado, que consiste em um documento vação, seja como processo ou como produto, sob a perspectiva dos partici-
formal escrito, esclarecendo os objetivos e a metodologia da pesquisa. Sua pantes em seus respectivos contextos socioculturais. A premissa essencial da
função é fornecer informações que permitam decisões informadas e cons- investigação é a compreensão de significados e conceitos nas práticas musi-
cientes sobre o alcance de determinado estudo. cais dos participantes.
Outro aspecto vinculado às questões éticas reside no direito de privaci- Abordagens quantitativas, em função da própria natureza da exec~ção
dade por parte do participante, em termos de autonomia e de confidencia- musical, têm sido pioneiras e ainda se mantêm como perspectiva relevan-
Hdade. A autonomia reflete-se na opção de escolha, na presença ou ausência te e mesmo fundamental na reflexão sobre a natureza dos produtos. Tendo
posterior de determinados dados coletados. A confidencialidade refere-se à em vista a complexidade dos processos de realização musical e levando em
manutenção do anonimato. Especificamente, com relação a esse ponto, no conta que a percepção e a compreensão humanas são falhas, precisamos, co-
caso de informações geradas por dados alfanuméricos, pode-se empregar mo pesquisadores, nos munir de estratégias quantitativas para _nos ajudar-
pseudônimos na identificação dos sujeitos, preservando seu anonimato. No mos a questionar e avançar em nossos achados. Em termos de abordagem
caso de dados gerados por vídeos contendo imagens, locais ou vozes, podem quantitativa, dois aspectos devem ser considerados como ponto de partida:
ser empregados mecanismos de disfarce tais como o uso de máscaras (reais (i) 0 poder de números, frequências e medidas é limitado: há algumas pro-
ou digitais) e alteração da voz (vide, por exemplo, Santos, 2007). . priedades que delimitam as operações e o alcance obtidos; (ii), a:' análises
dependem das perguntas e dos questionamentos que o(s) pesqmsador(es)
venha(m) a fazer, ou seja, da qualidade da fundamentação teórica e da pers-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
pectiva epistêmica na abordagem do problema, pois es:as guiam tanto ~
Temos tido o privilégio de investigar a execução musical em contexto análises quanto as interpretações decorrentes. Sem considerar essas condi-
acadêmico, envolvendo alunos de piano da graduação e da pós-graduação. ções como ponto de partida, corre-se o risco de usar indevidamente certos
Nesse contexto, o nível de expertise e de engajamento é variado. Por expe- tratamentos estatísticos e de não obter interpretações pertinentes a partir
riência e treinamento, estamos aprendendo a lidar, na medida do possível, das análises numéricas. Em si, tabelas, indicadores, testes de significância
com situações adversas que refletem contextos reais :·o ensino e na aprendiza- etc. nada dizem. O significado dos resultados é dado pelos pesquisadores,
gem do instrumento. Assim como em grande número de pesquisas realizadas em função de sua bagagem teórica e de sua experiência prática. Esperamos
em outros centros, a desistência de participantes, o pouco comprometimen- ter elucidado e até mesmo contornado alguns dos problemas levantados ao
to com a tarefa proposta, o desinteresse pela teroát1ca em estudo são alguns optarmos principalmente por abordagens mistas.
dos entraves que enfrentamos. Em geral, pesquisa em prática instrumental,
como a. maioria das pesquisas, possui um componente básico e explorató- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
rio, de mapeamento do universo escolhido e, ao qual não se pode fugir pa-
BARBETTA, P. A Estatística aplicada às ciências sociais. 6ed. Florianópoüs: Editora
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gada, que em geral é aquela a ser beneficiada com os resultados da pes·quisa:, UFSC,2006.•
acaba sendo lento. Apesar disso, os avanços, embora C;J.utelosos e lentos, têm BIGM~D, E.; VIEILLARD, S.; MADURELL, F.; MAROZEAU, J.; DACQUET,
sido reais e compensatórios. Além de se constituírem em fatores necessários A Multidimensional scaling of emocional response to music: The effect of

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STOWELL; D.; ROBERTSON, A.; BRYAN-KINNS, N.; PLUMBLEY, M.D. escuta musical, que buscou outras categorias para além da teoria tradicional,
Evaluation of live human-computer music-making: quantitative and qualita- no movimento iniciado por Pierre Schaeffer (Schaeffer, 1966), com reper-
tive approaches.lnternationaljournal ofhuman-computer studies, 2009, v. 67, cussões na pesquisa. 1 O aumento da abrangência do universo sonoro/mu-
p. 960-975. sical descortinado após a introdução de novas tecnologias para o trabalho
SWANWICK, K. Musical knowledge: intuition, and music education. London: de composição e difusão de obras musicais trouxe, para a experiência musi-
Routledge, 1994. cal, bem mais do que ela estava habituada a lidar. O conhecimento musical
(acadêmico) tampouco escapou a essa oportuna irrupção. A Análise Musi-
TASHAKKORl, A. & TEDDLIE, C. Handbook of mixed methods in social and be-
cal, que tem tido problemas internos para lidar com músicas cujos sentidos
havioral research. Thousand Oaks: Sage, 2003.
de unidade (Korsyn, 2004) e organicidade vinham sendo abolidos já na prá-
WAPNICK, ]., RYAN, C., LACAILLE, N. Effects of selected variables on musi-
tica da composição instrumental, precisou optar entre abrir-se ao novo uni-
cian' rating of high-level piano performances. lnternatíonal journal of music
verso ou manter-se no que já era de seu domínio. Unidade é uma noção que
education, 2004, v. 22, p. 7-20.
remonta a Platão, tendo chegado aos nossos tempos pela Poética de Aristó-
WEAVER, A. & ATKINSON, P. Microcomputing and qualitatíve data analysis. Al- teles, que preconizava na composição das tragédias a unidade de seu enredo,
dershot: Avebury, 1994.
ou seja, que não caís.se em digressõeS e distrações pela perda da coesão entre
YOSHIE, M.; KUDO, K; MURAKOSHI, T.; OHTSUKI, T. Music performan- narrativa e drama. A noção de organicidade, ou, como prefere Peter Kivy,
ce anxiety in skilled pianists: effects of social-evaluative performance situation de organismo, é modelo mais recente: " ... tinha ainda a virtude de uma tem-
on subjective, autonornic and eletromyographic reactions, Experimental brain poralidade. Era o fenômeno percebido de direção e progressão a caminho de
research, 2009, v. 199, n. 2, p. 177-126.
·uma chegada..." Por exemplo: " ... o crescimento' em sistemas vivos, a evolu-
ção da infância para a fase adulta, ou melhor, o desdobramento gradual do
embrião que constituía a ideia operante." Segundo A.W Von Schlegel, ci-
tado por Kivy para reforçar o elo com a ciência de então: "A harmonia fei-
ta de notas simultâneas consonantes que, apesar de diferentes, formam uma
unidade, podem, de fato, representar em termos audíveis a estrutura inter-
na da vida." (Kivy, 1993).
Desde há algum tempo os círculos musicológicos admitem que instru-
mentos analíticos pretendendo dar conta de uma compreensão abrangen-
te devem se abrir ao encontro de referencialidades e intertextualidades, bem
como voltar-se para quaisquer manifestações musicais, incluindo as músicas
não-clássicas-europeias (não-notadas), as 'populares', com texto, com apor-
tes visuais, etc. (Cook &·Everist, 1999) (McClary, 1989) (Subotnik, 1996)
1
O nome Groupe de Recherches Musicales não esconde o interesse de Schaeffer pela pesquisa.

138 139

L
A Análise não é o campo de pesquisa dentro do qual venho atuando di- Em Colônia nos anos 1950 assumia-se que os equipámentos eletroa-
retamente, pois ao contrário, meu tra:balho está mais do lado da síntese: a cústicos deveriam ser postos a serviÇo da composição de uma música cienti-
composição. No entanto o relato a seguir poderá servir para ilustrar a dis- ficamente regida pelo sistema serial, fundamentado nos quatro parâmetros
cussão sobre Qualidade & Quantidade em pesquisa. Acredito que este seja da teoria tradicional: altura, timbre, duração e intensidade, transposto para
um dos núcleos 'microscópicos' mais sensiveis para problematizar o deba- os equipamentos de estúdio. Em Paris propunha-se um mergulho no desco-
te que, em sua configuração macroscópica, impõe com força excessiva sis- nhecido, em uma experiência sensorial direta, a partir da captação microfô-
temas de valores para contabilização de atividades de pesquisa. Repetindo o nica e do registro e manipulação em suporte de gravação, de sons que rara-
que dizia Hermes Trismegistos em tempos passados: 'Assim como o peque- mente eram redutíveis a esses parâmetros. Embora problematicamente, os
no, também é o grande.' quatro parâmetros fundamentaram o 'quantitativo', pois só pela quantifica-
Tentarei apresentar um detalhe da história recente da música que tal- ção se obtém um produto "serial". Portanto, a escola alemã operava, inJcial-
vez ainda cause ressonância no debate a propósito do tema, especificamen- mente, com o propósito de estender uma lógica instrumental a aparelhos
te residente na apreciação do repertório contemporâneo. Não sem adver- eletroacústicos. Estes funcionariam como extensão (ou "prótese", conforme
tir,· inicialmente, que e~sa conversa não precisa ser prosseguida por ouvintes o gosto mais recente dos media studies) - mediada pela acústica - de traba-
que, de antemão, não julgam dignas de escuta as obras musicais que, em lhos composicionais orientados pela estética serialista. Na escola francesa,
sua composição, manifestam a presença do acaso, da palavra, da referência, cuja proposm firma uma opção pelo qualitativo, preponderava a percepção
da imagem visual, da imagem sonora etc. ou que de algum modo fogem ao de que não havia linearidade na passagem entre instrumento musical e apa-
princípio unitário e organicista de composição. Não creio que em geral os relho eletroacústico, e que disso surgia uma nova estética como consequên-
ouvintes descartem de seu repertório de escuta as óperas, músicas-vídeo, im- cia, bem como se tornava necessária uma nova teoria para a percepção. Todo
provisações, músicas eletroacústica.S, artes radiofônicas, músicas populares esse tema está muito claramente demonstrado por Pierre Schaeffer no (re-
etc. Mas quem defende uma supervalorizaç~o do repertório clássico encon- centemente reeditado) "Solfege de l'objet sonore". (Schaeffer, Reibel, Fer-
trará pouco interesse a seguir. reyra & Chiarucd, 1967)
O núcleo desse texto reside no fato de que foi justamente este binômio Sessenta anos depois as diferenças parecem agora niveladas apenas por-
(ou oposição?) que presidiu a formação do importante segmento da produ- que não há mais motivação estética ou política para que compositores se in-
ção musical- a música eletroacústica - que, em seus primórdios, assistiu a teressem pela defesa de uma ou de outra posição. Mas elas não estão feno-
um esquentado debate entre a escola alemã da elektronische Musik contra a menologicamente extintas, pois o avanço no conhecimento e na tecnologia
escola francesa de Musique Concrete, cada uma delas defendendo um lado. não foram suficientes para romper a barreira conceito-perceptual que está
Relembrar detalhes da querela - resistindo à fácil tentàção filiadora de ser em suas bases (Caesar, 1992). Por conta dessa 'falha geológicà no conheci-
levado a defender uma ou outra -leva a segundas reflexões, de alcance con- mento pode-se dizer que a composição musical eletroacústica ainda reser-
temporaneamente bem mais amplo. O binômio será entendido do ângulo va um espaço antípoda ao de uma Análise baseada na nota: em sua vertente
do que é Contável e o que é Incontável na música, tentando advogar em fa- 'concretistà -lidando com o 'não-notável' pela abstração dos símbolos grá-
vor da segunda sem desejar eliminar a primeira. Desde já é preciso que fique ficos, persistindo no uso de procedimentos experimentais de composição di-
claro que, na medida do possível, minha posição é anti-hegemônica. Tendo rigida pela escuta- constitui um problema para o analista.
tido experiência composidonal com a música eletroacústica - cuja função Por que a música concreta teria mantido a música em terreno tão mo-
estética considero bem terminada- guardo dela um precioso ensinamento vediço? Creio poder atribuir à sensibilidade de seu próprio inventor. Dian-
de valor que é o estado de dúvida vigilante e a convicção de apenas carni~ te da inadequação· entre equipamentos eletroacústicos e a teoria tradicional
nharmos na direção de um entendimento do que seja· musical. da música, Pierre Schaeffer, publicou, nos anos 1960, uma teoria baseada na

140 141
primazia da. escuta, doravante qualitativa. Para tanto misturou (nem sempre Veri:J. ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de vdcê..."2
habilmente, conforme voltarei a expor) a redução fenomenológica de Hus-
serl - na nocão de écoute· réduite - com o estruturalismo de Saussure - na .. Embalado fisicamente pelo ritmo do samba, o ouvinte da canção de
identificação, de objetos sonoros e musicais em estruturas -.levando a ~a Noel Rosa "escuta' um apito de fábrica que não necessariamente chega a ser
nova tabela de percepções não mais apoiadas nos quatro parametros da mu- simulado "musicalmente" pelo timbre de alguma flauta (a não ser que assim
sica tradicional, serial e eletrônica, mas tecida no cruzamento de critérios de o deseje um arranjador tautológico) ou por uma nota mais longa, estando
percepção de ordem espacial e temporal. A partir desse 'Tratado dos Obje.:. esse timbre. apenas enunciado pelas palavras do texto; o ouvinte mentalmen-
tos Musicais' (Schaeffer, 1966), Schaeffer empreendeu uma taxonomia do te cria a imagem de toda uma fábrica em empatia com a "fábrica' do nar-
espaço aéreo musical por onde transitavam allures, grãos, nuvens de mas- rador (que ele também ouve), "cantando" ter tido seus ouvidos feridos por
sas densas, complexas, onduladas, lisas etc. Certamente o trabalho recebeu aquele timbre- insinuando assim ao ouvinte uma experiência acústica sofri-
muitas críticas por apresentar diversas zonas mal cobertas, e de certo modo da e/ou prazerosa. E somente então passam, narrador e ouvinte- seguindo
alinhou-se a uma escuta redutora (cf. a seguir), mas representou um primei- a sugestão da letra- a imaginar uma figura amada, que, doravante a critério
ro esforço de uma moifotipologia do sonoro que mostrava a inadequação da exclusivo do ouvinte será morena, negra ou do feitio que melhor lhe aprou-
teoria musical para examinar o repertório contemporâneo, quando baseada ver, depois de todo esse complexo encapsulamento de impressões.
somente nos quatro parâmetros da acústica tradicional. O i-son, personagem principal da teoria (pós-schaefferiana) proposta
Essa inadequação constituiu, por si só, um tema interessante historica- por François Bayle, apoiado na semiótica de Charles Pierce (Bayle, 1994,
mente já bastante debatido (Chion, 1991). A extensão do tema é decerto p, 97), assinala, na escuta.acusmática, não a representação dos sons de fon-
mais abrangente, sem, no entanto, deixar o âmbito do diálogo entre Quali- tes usadas na gravação, mas a apresentação de 'imagens-de[sses]-sons', fixa-
dade & Quantidade. Meu objetivo de prosseguir é trazer, não só para a Aná- dos no suporte (Bayle, 1994, p. 24}. Ou seja: quando se escuta algo grava-
lise como também para o ensino e o sistema de avaliação acadêmico, per- do, uma gota d'água, por exemplo, não se trata de 'gota que escutamos, mas
oo-untas suro-idas
o no âmbito da composicão ' eletroacústica que
. denotam uma de uma imagem sua, que nos chega difundida em som assim como nos che-
possível aproXimação de interesses. Mas minha segunda expectativa é que ga em papel (bidimensional) a imagem de uma pessoa retratada. Entende-
esse texto aponte com alguma clareza para uma questão mais fundamental -se em Bayle a preferência pela palavra imagem- em lugar de índice- como
que eu gostaria de, desde já, chamar de 'loop entre analista e analisando'. mais apropriada para denotar o trabalho imaginativo do ouvinte. Exercício ·
este que é possível propor que seja estendido para músicas não-eletroacústi-
ESCUTA ELETROACÚSTICA DE UM SAMBA cas. Se, em uma aventurosa operação extraeletroacústica, transpusermos es-
sa noção fazendo com que palavras em música sejam igualmente conside-
·A música eletroacústica não é mais difícil de analisar do que qualquer
radas portadoras de imagens, entenderemos que 'apito' no samba de Noel
outra, e sim mais exposta. Mais do que outras, ela teve oportunidades para
Rosa é 'imagem-da-imagem-do-som' de um apito: o apito indiciado na pa-
demonstrar inesgotados recursos em termos de problemas interessantes pa-
lavra, indiciada na gravação reproduzida. Por sua vez, essa imagem-da-ima-
ra o conhecimento musical. Graças ao repertório composto e às publicações
gem-de-som entrou no texto da música para evocar, isto é, portar, metaforizar
teóricas geradas em torno dela, e consequente reflexão, hoje se pode apreciar
"a fábrica de tecidos". Temos então uma "imagem-da.-imagem-da-imagem-
de que maneiras um samba como "Três apitos" de Noel Rosa atinge, espeta-
-do-som" que é a fábrica, cuja utilickde no contexto da. música é lembrar -fe-
cularmente, um espaço de experiência de tanta complexidade que a Análise
não deveria desconsiderar.
você anda I Sem dúvida bem zangada I Ou esrá interessada I em fingir que não me vê I Você
2 ... Mas

"Quando o apito que atende ao apito I De uma chaminé de barro I Por que não atende ao grito I Tão afl.ito I Da buzina
Da fábrica d:e recido I Do meu carro?

142 143
rindo os ouvidos de passagem- a imagem impregnada de afeto da fulana por Não pertence ao rol de interesses desse artigo buscar a: precisa origem
quem o samba-se interessa. dessa questão, que muitos textos remetem a e.t.a. Hoffmann e a Immanuel
De modo análogo e idiossincrático, a música eletroacústica não conse- Kant. Aqui e agora nos ba.Sta continuar lembrando que as notas são esses
gue fugir dessa rede de interseções toda e cada vez c;ue passa por filtros ana- sons entendidos pela ótica da teoria -já tradicional àquela époça - sempre
líticos. Uma questão inicial é decidir se estamos de acordo que a experiência representados pelos quatro parâmetros: altura, duração, intensidade e tim-
musical não deve ser necessariamente separada em compartimentos estan- bre, insuficientes para uma escuta. Pode-se entender que o exercício da aná-
ques: um domínio literário para examinar a p0esia na letra da música, se- lise musical privilegie o estudo de obras que gozem de autonomia referen-
guindo em ponte para um prosódico conferindo adequação entte t:::xto e cial, porque o material a ser pesquisado está escrito na partitura com todos
música, que salta mais além para um harmônico, este dedicado a estudar os 'efes e erres'.
melodia, harmonia e possíveis jogos contrapontÍsticus, uma crítica orga- Paralelamente à opção pela análise do notável- ou 'leitura do legív~l'? -
nológica e do arranjo, que nos falará de timbres instrumentais (ou, no ca- interpretações apressadas de Adorno legitimaram e de certa maneira hegemo-
so escutado, da absoluta falta de necessidade de uma flauta para evocar um nizaram a esfera de interesse de grande parcela da massa crítica musical do
amor), um performático, para pesquisar a qualidade da interpretação, de- século xx. Hoje, muito por conta da redução do campo focal, ainda se assis-
sembocando em um vastíssimo et cetera. A experiência de escuta musical te a um conflito motivado pela oposição entre um pós-modernismo referen-
passa nitidamente por compartimentos conceituais, mas não está eviden- cialista contra um formalismo modernista de feitio adorniano (Subomik,
te quando sai de um para entrar em outro. Desta maneira, uma experiên- ·1996). Como claramente expõe Alastair Williams (Williams, 1999), essa
cia musical analítica que se atenha ao som, ao que lhe é específico e próprio, oposição resulta menos dos fatos do que de uma interpretação um tanto
terá atualmente uma limitação muito marcada - isto se conseguir definir o quanto descuidada - tanto de Adorno quanto do Modernismo. Mas o ob-
que seria esse "som", esse "esp.ecíficà" e esse "próprio". jetivo deste texto não é a salvaguarda ou o ataque aos modernos ou a Ador-
A pergunta sobre a (abrangência da) escuta ·não é nada nova na músi- no, e sim a tentativa de efetuar um percurso ilustrando de que modo essa
ca. O que de certa forma seria novidade é o divórcio entre a música e seu escolha ainda afeta grande parte do mundo teórico sedimentado no século .
instrumento de "conhecimento". Persistem certos princípios que levam a xx (cf. Subotriik, ibid.), resultando no privilégio da análise de um repertó-
uma homogeneização da experiência musical, inicialmente no seu repertó- rio autônomo, anotado e lido. Os quatro parâmetros habitam em partituras
rio, mais tarde na teorização, muito por conta da noção de uma "música ab- de obras "autônomas", mas não em músicas, 'concretistas', indeterminadas
soluta". Inicialmente formulado por Wagner (Dahlhaus, 1989) para criticar (Cage etc.), ou dos índios tucano.
a música instrumental sem programa, o conceito consagrado por Eduard Qual deveria ter sido o esforço empreendido, pela Análise de então, pa-
Hanslick3 trouxe a esse crítico renome e importância histórica - enquanto ra a incorporação desses repertórios em seu campo focal? É claro que de an-
dividia as águas em música absoluta e músicas não-instrumentais, que se as- temão o analista se defende afirmando [com propriedade] que o repertório
sociavam a texto ou qualquer outro material 'extramusical' (ópera, poema 'eletroacústico' e 'indeterminado' padece de desequilíbrio organizacional e
sinfônico, música para ballet etc.). de sentido de unidade. O desequilíbrio e a falta de unidade são pura verda-
de, mas não o padecimento. Pois não seria exatamente essa mesma organici-
Formas sonoras em movimento são, única e exclusivamente o conteúdo e objeto da
músici'. «Conteúdo, no sentido originário e próprio, é aquilo que uma coisa contém,
.dade a noção que, segundo Joseph Kerman- remontando outra vez a e.t.a.
retém em si. Nesta acepção, as notas de que se compõe uma peça musical, e que, en- Hoffmann- fundamenta o trabalho da Análise no séc. xx, com a qual essas
quanto partes dela, constituem um todo, são o próprio conteúdo. (Hanslick, 1854). músicas não se comprometeram?
A·intuiçáo especial de Hoffmann consistiu em associar as fontes metafísicas do su-
blim~ na ~úsica de Beethoven às fontes técnicas de sua unidade - o que ele, de mo-
3
"The expression was coined, not by Eduard Hanslick, as is aiways claimed, bút by Richard Wagner; ••."

144 145
do não surpreendente para o seu tempo, comparou à unidade de um organismo. Ne- dos quà.tro parâmetros, e provém de tão longe quanto. Já para Kam, na in-
nhuma das artes foi mais profundamente afetada pela ideologia da organicidade que a trodução à "Crítica da Razão Purà', espaço seria uma das coordenadas- jun-
músiCa.; sua influência nociva ainda persiste entre nós. (Keqnan, Musicologia, 1987).
to com o tempo- sem as quais não pode haver qualquer percepção. Filosofias
Do ponto de vista da ideologia dominante, análise existe pelo propósito de demons-
trar organicidade, e organicidade existe pelo propósito de validar um determinado re-
mal.s contemporâneas foram por outro caminho, assim como a física de Eins-
pertório de obras de arte. (Kerman, 1980). tein, na qual se concebe um conúnuo espaço-temporal. No mundo da escuta
espaço é bem mais do que um ordenador de 'objetos' em um 'lugar-cenário-
Então uma música afastando-se do conceito de unidade e equilíbrio, de -musical': úm vazio sem o qual nada existiria. (Nem mencionarei aqui o es-
organicidade, enfim, de todas as qualidades que dependem de uma quanti- paço imervalar que preside a qualquer manifestação sonora, definindo até -
ficação colocou-se 'naturalmente' fora da alçada da Análise, divorciando-se no nível microscópico- as distribuições espectrais de um timbre).
assim do mundo acadêmico. Esse foi o 'sacrifício' feito por grande parte do Para muitos compositores como Bernard Parmegiani (Mion, Nattiez, &
repertório contemporâneo, incluindo especialmente o eletroacústico. O que Thomas, 1982), Francis Dhomont, Katharine Norman (Norman, 2004), lei-
importa é anotar que grande parte do repertório de música contemporânea tores de Gaston Bachelard, 5 espaço pode ser associado diretamente a emo-
opta por permanecer no ambiente analisável, sustentando(-se), assim (n)aqui- ções e estados psíquicos. O que soa próximo traz "intimidade", e o que soa
lo que eu chamo de 'loop entre analista e analisando'. Este consiste não só do longe manifesta uma distância não apenas "métricà', mas emocional: uma
problema enunciado por Kerman, de uma música legitimada por um mode- "extimidade". No mesmo artigo arrisquei-me a afirmar que duas das emoções
lo analítico, mas também daquele pranteado por segmentos da eletroacústica mais básicas do ser humano se relacionam diretamente com espaço e tempo.
- em sua ansiedade de passar de um setor excluído para um incluído graças à A angústia da falta de espaço (e seu alívio, por exemplo, nas obras musicais
ampliação das ferramentas analíticas. É bem verdade que, como que em tes- "espaçosas") cruza com a ~siedade da espera, da passagem ou de uma fixação
temunho de sua entrada em fase de declínio, a música eletroacústica vem ba- do tempo. Portanto, se a composiçãq (e a análise) abrange o trabalho de espa-
tendo em uma tecla conhecida- em busca da mesma legitimidade, a partir de cialização, estaria então "impurificando" uma experiência musical.
uma análise mais abrangente. Para conferir sugiro e leitura de alguns artigos É comum se dizer que a bossa-nova beneficiou-se do close-mikinf pa-
_na obraAnalyticalMethods ofElectroacoustic Music, de Mary Simoni (Simoni, ra provocar a sensação de intimidade, aproximando a voz do cantor do ou-
2006), especialmente o de Mornilani Ramstrum, em que se vê a aplicação de .vido dos ouvintes. Este aporte acústico e emocional do microfone já tinha
programas computacionais- especificamente criados para a contabilização de sido descoberto por Pierre Schaeffer em 1942.7 Uma crítica "eletroacústi-
eventos- a uma obra de Philippe Manoury (Ramstrum, 2006). cà' que se pode aplicar à interpretação de 'Três apitos', diria que a reverbe-
Mas até uma música contável passa por incontáveis instâncias. ração exagerada aplicada à voz de Tom Jobim - talvez refletindo uma tenta-
tiva do produtor de reforçar os recursos vocais do intérprete - introduz um
O ESPAÇO COMO PARÂMETRO
conflito de interesses; revestindo um fio de voz dentro de um espaço gran-
diloquente sem todavia oferecer segurança à entoação. Este é um critério de
O compositor contemporâneo geneticamente mais implicado (e marti-
espaço. Sem ser especificamente 'musical', acaba de ser incluído em um tra-
rizado pela literatura pós-moderna) na linhagem pós:serialista, Pierre Bou-
balho crítico-analítico.
lez, acredita euclidianamente que uma "espacialização" dos sons musicais
Resumindo: porque contém mais do que a mera extemáo -euclidiana ou
serve para melhor coordenar agrupamentos tímbricos. Não resta dúvidas
eimteiniana - portando também uma intensificaçáo, espaço é um problema
que o timbre seja um conceito musical por excelência (embora, assim como
a intensidade, tão difícil de ser resolvido acusticamente). Conforme comen- 5 "Poérique de l'espacen (Bachelard, 1957).
6 Técnica de eferuat gravações com o microfone bem próximo da fome sonora.
tei em artigo anterior (Caesar, 2004a),J espaço em música é algo que vai além
rádio parece não ter limite, pois é capaz, ele, em meio ao ttiplo forte da orquestra, de fazer
7 " ... 0
4
Também disponível em: http://www.ufrj.brllamutfcropsite/cc04/cc04e.hrm. sussurrar uma voz ao nosso ouvido." (Schaeffer, Palombini & Bruner, 2010).

146 147
musical ainda mais complexo que timbre, intensidade, altura e duração. O e musical que não oculta a carência de palavras específicas. Na verdade não
que digo? Não, nada disso! Imensidade e timbre são percepções extrema- temos certeza de qual dos sentidos essas palavras viriam originalmente. Gra-
mente inter-relacionadas e embutidas uma na outra, nem um pouco óbvias. nulosidade, entre outras, é uma qualidade que poderia ser atribuída à per-
Porém sua discussão não cabe nesse texto. cepção tátil, e também à visão. Um som rugoso revela rugas originárias de
outro sentido? Qual dos sentidos percebeu primeiro a qualidade rugosa? O
O QUE SERIA ESPECIFICAMENTE MUSICAL? tato? A visão? A "redução" da escuta acontece graças à condução de uma ati-
vidade qualificadoranáo somente para fora do âmbito da terminologia mu-
Quando Schaeffer empreendeu o trabalho de classificar e catalogar em sical tradicional, mas para fora de um vocabulário que seja próprio ao som.
formas e tipos as qualidades dos objetos sonoros, objetos esses que passavam A spectromorphology de Denis Smalley, um extensivo desenvolvimen-
longe da notabilidade dos quatro parâmetros, teve que buscar no vocabulá- to da morfotipologia de Schaeffer, traz mais variedades de empréstimo ver-
rio termos e expressões capazes de descrever a composição e a escuta de uma bal, ou metáfora visual, para falar de eventos musicais muito explorados na
música feita de sons complexos e referenciais manipulados durante o ato de música eletroacústica. Flocked motion, por exemplo, o 'movimento em reba-
compor. Sua terminologia foi cuidadosamente pesr:uisada no vernáculo por nho' (Smalley, 1986, p. 77), serve para designar um deslocamento espacial
recato autoral, para evitar neologismos que tantas vezes se revestem com a de um grupo de personagens sonoros que mantém características tais que
roupa nova para o rei. Os esforços de Schaef±cr caminharam na busca de se identificam como coletividade porém manifestando, dentro da ação gru-
uma escuta deliberadamente "reduzidà', isto é, deúigada de instâncias cau- ·pal, pequenas intervenções individuais (que corroboram o agrupamentó).
sais e referenciais. Sérgio Freire observou que nesse esforço sobrev1ve..: uma· Por exemplo, um 'som' de chimes passando de um lado para o outro, ou sen-
preocupação alinhada com a doutrina çie Eduard Hanslick: 'Examinando-se do transposto conjuntamente em alturas. A metáfora desse "movimento em
esses critérios [de forma e de matéria], nota-se que o Jcs-condicionamento bando", seja de pássaros ou um rebanho de ovelhas, denota a ligação do au-
da escuta proposto por Schaeffer tende para a ideia de música absoluta, ao tor com a natureza. Assim como os critérios de Schaeffer, contribui para o
concentrar-se em elementos musicalmente "intrínsecos", derivados da escu- arsenal analítico trazendo modelos equivalentemente 'extramusicais' e nes-
ta reduzida.' (Freire Garcia, 2004). Não foi por acidente quê isso acontece- ses casos 'extrassonoros' .
ria em sua teoria, tendo havido confirmação antecipada no repertório das
composições schaefferianas pós-1958, em que os objets sonores vieram des-
O SOM NÃO EXrSTE!
carregados ao máximo de qualquer referencialidade. Também levaremos em
coma que Schaeffer dialogava não somente 'contrà uma determinada músi- Quando fala do cinema, Michel Chion propõe as expressões dudio-visáo
ca (serial), mas sobretudo 'com' seu fundamento co~um, por via de um co- e visu-audiçáo para designar a dupla impregnação dos canais perceptivos im-
mum respeito·à noção de absoluta autonomia. plicados na experiência de assistir a um :lilme. Chion não acredita nem mes-
Isto não impediu, porém, que os melhores resultados da moifotipologia mo na separação absoluta dos cinco sentidos, segundo ele fruto da doxa, do
schaefferiana implicassem em metáforas sinestésicas, em palavras empresta- senso comum. E segue mais longe ao associar a linguagem às outras moda-
das de outros domínios da experiência. Aqui neste texto a menyãb a este fato .lidades percepruais nas obras audiovisuais:
corrobora não o que se acreditava então - que as palavras não davam conta
Atualmente a linguagem está presente na maior parte das obras áudio-visuais, popula-
da música- mas que a música eletroacústica não tem vocabulário próprio
res ou eruditas, clássicas ou de vanguarda, ao mesmo tempo na forma visível da escrita
porque, como talvez todas as artes, funciona em um registro de complexas e na forma audível da fala, especialmente quando vemos um filme estrangeiro subti-
imbricações. A palavra "granulação" -para descrever as percepções de i.ugo.:. ru!ado na nossa ltngua. Ora, esta linguagem- tão importante para o cinema desde seu
sidade e regular aspereza nos sons - traz à mente um universo· extrassonoro início - é visual ou sonora? Nem uma coisa nem outra, mas ao mesmo tempo pa5sa

148
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por uma e/ou pela ourra. Por isso proponho, para ser mais preciso, falar de audio-lo- adição de vias de mixagem, de uma gravação em que se escuta sons associa-
go-visual, e de audio-logo-visão para caracterizar o cinema e a .televisão...s dos ao verão (cigarras etc.). Em composição eletroacústica poucos duvidam,
e- também poucos se dão conta que a complexidade da percepção é regida
Michel Chion ficaria satisfeito se soubesse que sua proposta de aborda-
pela· trans-sensorialidade, e que o aparelho escutante é assim e também mul-
gem analítica para cinema e televisão também pode alcançar um samba de ·
tidimensional, porque a escuta musical, além da complexidade descrita, im-
Noel Rosa. Isto é, se uma atitude dudio-logo-visual facilita a análise cinema-
plica em memória- cultural e individual- estados psíquicos de motivação e
tográfica, pode também se aplicar à escuta de uma canção.
predisposição etc., e tudo o mais que preencheria o requisito do estágio mais
O mesmo e.t.a. Hoffinann, a quem se responsabiliza quase culposa-
amplo da escuta, o da compreensão, segundo Schaeffer (Schaeffer, 1966).
mente pelas origens da organicidade cúmplice da música absoluta, não de-
(Por que 'mais amplo'? Eis uma questão que ficará para ser elaborada em
ve ter sido tão ortodoxo em suas posições. É dele uma reveladora descrição,
outro texto: a origem da noção de compreensão na escuta musical, ou, mais
digna de experimentações ilícitas:
radicalmente, a origem da noção de escuta musical aqui usada até agora.)
Não apenas em sonhos, mas também naquele estado de delírio precedendo ao sono,
principalmente depois de ouvir ui:n bocado de música, descubro uma congruência de
CONSEQUÊNCIAS
cores, sons e fragrâncias. Parece que tudo é produzido do mesmo modo misterioso,
por raios de luz combinados em um concerto =aordinário. A fragrância de cravos
vermelhos exerce um poder mágico em mim; sem perceber a fundo em um esrado oní- Conforme diversos autores da New Musicology (Subotnik, 1996) (Mc-
rico no qual escuto, como se vindo de longe, o som escuro, alternadamente crescendo Clary, 1989), quando as disciplinas do conhecimento da música decidem
e decrescendo, do corno basseto. e.r.a. Hoffinann, Pensamentos =emamente aleató- pelo esquadrinhamento das relações baseadas nos quatro parâmetros da teo-
rios, Kreisleriana I, 1814. (Charlton, 1989). ria tradicional, optam pela ·produção musical restrita a um determinado pe-
Em lugar de sinestesias, Chion prefere falar de uma "trans-sensorialida- ríodo da música euro-ocidental cert~ente significativo, mas de modo al-
de" da percepção: gum único e definitivo. Nota-se em autores dessa linha cobranças reativas
que não compartilho integralmente, até porque muitas vezes se referem a
Nós chamaremos de rrans-sensoriais as percepções que não são de nenhum sentido em um modernismo que não chegou a se instalar no Brasil. Mas apontam para
particular, mas que podem tomar o caminho de um sentido ou de outro sem que seu
conteúdo e seu efeito estejam encerrados nos limites deste sentido. Por exemplo: tu-
o fechamento de um campo focal·.
do o que diz respeito ao rirmo, assim como algumas percepções espaciais, e a dimen- É interessante observar se algo que aconteceu no mundo das artes plás-
são da linguagem. [...] Em outros termos, falar de rrans-sensorialidade é lembrar que ticas, segundo Charles Harrison, ocorre no da música:
seria incorreto pensar que tudo o que é auditivo é somente relativo à audição, e dizer
que os se!;ltidos não são entidades fechadas em si mesmas. Um dos problemas com o conceito de modernismo é que ele tende a significar coisas
Na verdade, a noção de sinestesia (a "correspondência' enrre percepções precisas pró- diferentes para pessoas de línguas diferentes. Falar de modernismo na Espanha, por
exemplo, é evocar a arquitetura de um Amoni Gaudí, enquanto que, para um histo-
prias a domínios diferentes) não tem mais razão de ser em muitos casos, tão logo se to-
me consciência que cada sentido não represenra um campo de percepções homogêneas! riador da arte inglê!: da minha geração, os nomes que logo veem à mente são os de
pintores, na maior parte franceses e americanos: Manet, Cézanne e Matisse, Pollock,
Em outro artigo 10 abordei a importância do "calor" em Presque Rien .·......... . Rothko, Newman e Srella, embora Cf'rtamente que não apenas estes. As omissões mais
notáveis da tradição modernista assiiD concebida são Duchamp e os dadaístas, os fu-
(1970) do compositor Luc Ferrari (1929-2005). Aqui não há tampouco si-:- turistas italianos, os COltSrrutivistas russos, os surrealistas e as várias vanguardas pós
nestesia, mas um calor 'percebido', provocado pelo aumento do volume, por 1 Segunda Guerra Mundial. Cnmo as exceções revelam, há uma tendência a se suspei-
tar de iniciativas que sejam mais evidentemente engajadas, e que se afastem demasia-
8 Conferência durante o Seminário de Literatura e Tecnologia, na Casa de Rui Barbosa em agosro de damente das categorias .:.:cnicas tradicionais. Entretanto, mesmo enrre os que falam e
2004. escrevem em inglês, existe frequentemente uma discordância sobre se o modernismo
9 Chion, le son, 1998.
descreveria um período delimirado da extensa cultura dos séculos xix e xx, uma ten-
1
°Caesar, O tímpano· é uma rela?, 2004b.

J....
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dência específica da arte daquele período, ou ainda um corpo mais ou menos coeren- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
te de teoria e crítica- do qual Clive Bell foi um contribuinte inicial, mas cujo prin-
cipal paradigma são os textos de Clement Greenberg- ou urna mistura disso tudo. BACHELARD, G. (1957). La poétique de !'espace (2001 ed.). Paris: P.U.F.
(Harrison, 2003).
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levarem em conta o descomedido aumento da abrangência de sua área de CAESAR, R (1992). lhe composition ofelectroacoustic mmic (Doutorado) . Norwi-
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rio gráfica que entenda a concentração na nota como ferramenta·ex:clusivis- lavra, I (2), pp. 13-32.
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ponderada pela quantificação possivelmente estenderá seu efeito na direção gens Musicais (pp. 17-25). São Paulo: Departamento de Música /ECA IUSP.
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versity Press.
paz de se transformar em uma sequência de pontos indo de zero a dez? O
CHION, M. (1991). L'artdes somjixés, ou la musique concretement. Fontaine: Mé-
quantificável é fundamental como álibi contra o risco da subjetividade. Não
tamkine.
somente para avaliar a produção de estUdantes em composição, mas os de
práticas interpretativas também. O mundo das artes plásticas, mais uma vez _ _ _. (1998). Le son (2a ed.). Paris: Nathan.
vem antecipando o da música, desta vez o faz na percepção de problemas. É COOK, N., & Everist, M. (1999). Rethinking Music (la ed.). Londres: Oxford
de novo Harrison quem relata: University Press.
O curso de Teoria da Arte em Coventty não durou formalmente mais do que dois
DAHLHAUS, C. (1989). lhe idea ofabsolute mmic. (R. Lustig, Trad.) Chicago:
anos. Mesmo frequentado assiduamente por inúmeros estudantes; o curso enfrenta- The University of Chlcago Press.
va a oposição de vários professores e era olhado com proftmda desconfiança pela ad- FREIRE GARCIA, S. (2004). Alto-, alter-, auto-falantes: concertos eletroacústicos e
ministração. Acabou sendo desmantelado pelo exercício arbitrário do poder vindo de
ao-vivo musical. São Paulo: PUC-SP.
cima. [...] Convocou-se um burocrata do National Councll for Diplomas in Art and
Design, que estabeleceu que "apenas objetos de arte vist·..Jmente ta.<gíveis" poderiam GIBSON, J. J. (1986). Ihe ecological approach to visualperception. Londres: Psycho-
ser aceitos para avaliação. Com efeito, os el:~t::l.antt'S que, individualmente ,- · em gru- logy Press.
pos, vinham há dois anos trabalhando sobre textos extensos, foram informados de
que, no campo das Belas Artes, provas da existência de reflexão não seriam levadas em
HANSLICK, E. (1854). On the musically beautifol (1986 ed.). Indiana: Hackett.
conta como provas da existência de trabalho. (Harrison, 20(,3). HARRISON, C. (2003). O ensino da arte conceitual (Palestra no Louvre,
23.01.2003). Arte & Emaio, X, 78-88.
Volto agora ao início, quando me referi ao meu envolvimento como
KERMAN, J. (1980). How We Got into Analysis, and How to Get Out. Critica!
compositor com essas questões, e do macroscópico para o micro, na escala
de Hermes. Peço licença para apresentar um trabalho que resulta da reflexão lnqttiry, VI/(2), 311-331.
sobre elas: Tristáo & !solda; de 2007, é uma peça que se apresenta em insta- _ _ _. (1987). Mmicologia. Rio de Janeiro: Martins Fontes.
lação consistindo de um alto-falante de 15 polegadas reagindo a ond~ de KIVY, P. (1993). lhe fine artofrepetition. Essays in the philosophy ofmusic (2a ed.).
baixíssima frequência. Nenhum som é escutado, mas a membrana se move; Nova York: Cambridge University Press.
expressivamente. 11 Musicalmente?
11
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EDUCAÇÃO MUSICAL COMO ÁREA DE CONHECIMENTO

Uma das formas de entender a área de educação musical é através de


seu caráter interdisciplinar que congrega questões de música e de educação.
Nesta área, são estudados diversos temas que incluem aspetos essencialmen-
l te musicais, assim como são investigados componentes de aprendizagem e

.l ensino, ou seja, como os indivíduos aprendem .os diversos elementos musi-

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cais, e como são ensinados tais elementos em diferentes contextos e para di-
ferentes tipos de indivíduos.
I humanas se manifestam através da música, o que significa, ·em algum nível,
a existência de processos de transmissão e recepção, de ensino e aprendiza-
As diversas interseções que se estabelecem entre música e educação, de gem, implícitos num fazer social. A educação musical, como área de estu-
forma abrangente, implicam na possibilidade de relações com outras áreas dos, busca compreender de que forma as pessoas aprendem e ensinam mú-
do conhecimento. Para Kramer, a educaçãq musical- ou pedagogia da mú- sica, a partir dos mais variados pressupostos, já que tais atos humanos não
sica para esse autor - conecta-se diretamente com a sociologia, a psicologia, acontecem em um vácuo, e sim em um contexto específico, diverso e com-
a antropologia, a filosofia, dentre outras áreas, estabelecendo um diálogo que plexo por·narureza,·Aescola, como instituição social, é um dos locais ond(!
fortalece a compreensão que se pode ter sobre os diversos modos de apren- se aprende e se ensina música, mas, evidentemente, não é o único local onde
der e ensinar música. tais atividades- aprender e ensinar música- ocorrem. O ensino e a aprendi-
Já que a pedagogia da música ocupa-se com as relações entre pessoa(s) e música(s), ela di- zagem musical acontecem em diferentes espaços, com diferentes atores assu-
vide seu objeto com as disciplinas chamadas ocasionalmente de "ciências humanas", fi- mindo papéis distintos configurando processos extremamente- divers~s--em
losofia, antropologia, pedagogia, sociologia, ciências políticas, história. A pedagogia da, termos do que pode ser identificado como ensinar e aprender música.
música trata sempre do objeto estético "músicà'. Com isso é dada a relação com a mu- Se a natureza da área de educação musical apresenta-se de forma múl-
sicologia (assim como com a prática da música e a vida musical) (Kramer, 2000, p. 52). tipla e diversüicada, a pesquisa em educação musical também será múltipla
Assim, relações interdisciplinares - além de música e educação - po- e diversificada, podendo ser desenvolvida a partir de diferentes perspectivas
dem se configurar em diversos trabalhos de pesquisa em educação musical, metodológicas, valendo-se de distintos referenciais teóricos que podem es-
abrangendo outras áreas e disciplinas que trazem perspectivas teóricas dis- tar localizados em diversas áreas e disciplinas, notadamente aquelas relacionadas
tintas e enriquecedoras para a compreensão dos processos de aprender e en- às ciências sociais. Tal diversidade tem promovido investigações que tratam do
sinar música. A literatura da área de educação musical já incorporou, há vá- ensino e da aprendizagem da música nos mais variados contextos e para diversos
rias décadas, elementos da psicologia, por exemplo, estabelecendo, desde o grupos sociais e etários, tendo como protagonistas aqueles que são responsáveis
século xix, urna área que pode ser nomeada psicologia da música, com diver- pelo ensino ou aqueles que aprendem, assim como o foco pode estar no currí-
sos focos, incluindo educação musical (ver Sloboda, 1985; Hodges, 1999). culo que insere a música de diversas maneiras e com distintas funções, no reper-
Da mesma forma, a sociologia da música estuda questões musicais a partir tório musical utilizado, na execução musical vocal ou instrumental, na audição
de um viés sociológico, valendo-se do conhecimento e da experiência acu- e na criação de música como patte do processo educativo, e assim por diante.
mulada pela área de sociologia como um todo (ver Souza, 1996). A filosofia
da educação musical também tem sido estabelecida a partir de vários pos- PESQUISA EM EDUCAÇÃO MUSICAL NO BRASIL
tulados sobre os fund~entos necessários para o ensino de música, man-
tendo um debate que estimula a reflexão sobre as razões pelas quais estuda- Um rápido apanhado histórico pode ser traçado a partir de relatórios de
mos, aprendemos e ensinamos música (ver Swanwick, 1988; Reimer, 1989; pesquisa que apresentaram, como resultados de investigações em diferentes
Elliott, 1995). momentos, a quantidade de trabalhos produzidos nos cursos de pós-gradu-
O conhecimento na área de educação musical produzido a partir de re- ação em música referentes à educação musical até o ano de 1997. Oliveira e
ferenciais das áreas da psicologia, sociologia e 6losofia, por exemplo, tem Souza (1997) listaram 46 dissertações envolvendo temas da área de educa-
contribuído para a produção de trabalhos cada ve7 mais consistentes, que ção musical e Ulhôa (1997) apresentou mais quatro trabalhos, perfazendo
situam a aprendizagem e o ensino da mtis;c::a na perspectiva dos sujPitos que um total de 50 produções em nível de pós-graduação até aquela data-1997.
se relacionam com diferentes formas de música, assim como consideràm os Nogueira (19~7), como representante da área de artes junto ao cnpq
contextos em que tais músicas são produzidas e realizadas, demonstrando os naquela .data, apresentou relatório sobre a produção em música utilizando
nexos que os seres humanos estabelecem com a música. Todas as sociedades distintas denominações para se referir ao que chamou de "especialidades"

156 157
da pesquisa na subárea educação musical. As "especialidades" propostas por A Tabela 1 evidencia a predominância do tópico relacionado a proces-
Nogueira (1997) foram mantidas em outros estudos realizados sobre a pro- sos formais e não formais de educação musical, além de identificar a pouca
ducão acadêmica na área de educacão musical . ·produção em outras especialidades da educação musical, quando analisada
. Um dos estudos realizado por Fernandes (1999) identificou a produção erri termos do total de produções. Processos formais e não formais da educação
da área de educação musical a partir de dissertações e teses defendidas em pro- musical (educação básica e educação especializada) é uma especialidade bas-
gramas de pós-graduação em música e educação no Brasil. Esses estudos re-: tante abrangente, pois agrega trabalhos com crianças de várias idades, com
velaram o crescimento quantitativo e qualitativo da pesquisa em educação jovens e adultos, na escola regular, na escola de música ou no conservatório,
musical no Brasil, sendo tal produção acadêmica a mais significativa em ter- além de outros espaços educativos. Tal abrangência pode ser uma justificati-
mos de desenvolvimento da pesquisa nesta área no Brasil, o que significa que va para o grande número de trabalhos classificados nesta especialidade. De
a maior parte da investigação em educação musical em nosso pais está vincu- qualquer maneira, mesmo considerando a diversidade de espaços educati~
lada às universidades e aos cursos de pós-graduação de mestrado e doutorado. vos incluídos nesta especialidade, o estudo de processos de educação musi-
Em outro estudo, Fernandes (2006) analisou a produção brasileira de dis- cal revela-se como um foco predominante dos estudos da área de educação
sertacóes e teses com temáticas referentes à educação musical até o ano de 2005. musical até 2005.
Ado~do a mesma categorização apresentada por Nogueira (1997), Fernandes A wntinuação deste estudo de Fernandes poderia modificar sensivel-
(2006) identificou 267 trabalhos desenvolvidos em programas de pós-gradua- mente os indicadores áa Tabela 1, já que mais programas de pós-graduação
ção stricto sensu em Artes, Música e Educação. A Tabela 1, a seguir, apresenta foram autorizados a partir Je 2005, cuja produção certamente deve contri-
síntese do estudo de Fernandes (2006), contendo a "especialidade" da área de buir para o desenvolvi:nento da educação musical em várias especialidades,
educação musical e a quantidade de trabalhos produzidos em cada uma delas. isto se considerarmos a ~ategorização oferecida por Nogueira (1997) ade-
TABELA I. DISSERTAÇÕES E TESES NA ÁREA quada para a produção atual. Por e4erriplo, questões como inclusão social e
DE EDUCAÇÃO MUSICAL NO BRASIL ATÉ 2.00 5 educação musical especial, têm sido focos importantes das políticas educa-
cionais, o que gera, obrigatoriamente, discussão e reflexão sobre esses assun-
ESPECIALIDADE DA ÁREA QUANTIDADE DE
tos incluindo a educação musical. Consequentemente, a quantidade de tra-
DE EDUCAÇÃO MUSICAL DISSERTACÓES E. TESES
balhos com esses focos amplia a quantidade de produção acadêmica, além
Processos formais e não formais da educação musical
201 de sugerir o estabelecimento de novos campos de estudo, ou especialidades,
(educação básica e educação especializada)
além daquelas apresentadas por Nogueira em 1997.
Processos cognitivos na educação musical 18
..
..filosofia e Fundamentos da Educação Musical 14 DOIS PONTOS FUNDAMENTAIS

Educação musical coral 14


A partir das considerações feitas até este momento, é possível depreender
Educação musical instrumental (conjuntos: banda, pelo menos dois pontos fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa
9
orquestra etc.)
em educação musical. O primeiro refere-se à natureza da área de educação
Administração, currículos e programas
7 musical, com seu caráter interçl.isciplinar - música e educação - trabalha-
de educação musical
do a partir de referenciais que auxiliam na compreensão dos diversos modos
Educação musical especial 4 de aprender e ensinar música - filosofia, psicologia, sociologia, antropolo-
Total 267 gia, história, dentre outros. A pesquisa em educação musical e, consequen-
Fonte: fernandes, 2006.
temente, o pesquisador desta área precisam conhecer a natureza de sua área

158 159
de estudos de forma ampla e abrangente, considerando os diferentes pressu- Moreira e Caleffe (2006), exemplificando modelos de pesquisa na área
postos teóricos que estão direta ou indiretamente conectados com o ensino educacional, reforçam a ideia de que toda e qualquer pesquisa é
e a aprendizagem musical.
guiada por pressupostos e compromissos filosóficos que determinam a maneira pela
O segundo ponto fundamental estabelecido nesta discussão refere-se ao
qual os indivíduos e grupos de indivíduos concebem a natureza e o propósito da pes-
"estado da arte" da pesquisa em educação musical no Brasil e em outros paí- quisa. Cada uma destas perspectivas do estudo do comportamento humano tem pro-
ses do mundo. A catalogação dos trabalhos produzidos na área entre 1999 e fundas implicações para o pesquisador na sala de aula, nas escolas e nas universidades .
2006, por exemplo, representa um acervo essencial para compreender os ru- ... . . Aesc()!ha_.clf:Ulrpl:Jlern<J., aJqrmtliação das questões a serem respondidas, a caracteriza-
mos, as perspectivas e os focos da pesquisa brasileira em educação musical. ção dos alunos e professores, as preocupações metodológicas, o tipo de dados e o mo-
do de analisá-los - tudo isso é influenciado ou determinado pela visão de mundo as-
Da mesma forma, trabalhos produzidos em outros contextos fora do Brasil
sumida pelo pesquisador. (Moreira & Caleffe, 2006, p. 41)
representam diferentes perspectivas da pesquisa em educação musical pelo
mundo, que podem interagir com a produção brasileira. Pesquisadores de- A afirmação dos autores citados acima, aplicada à pesquisa_educacional,
vem conhecer profundamente a produção de pesquisa em educação musical pode ser assumida pela pesquisa em música, de um modo geral, e pela pes-
para poder contribuir para a consolidação, o avanço, a reflexão e a revisão quisa em educação musical em particular. Todo trabalho de investigação es-
crítica de aspectos que vêm sendo apresentados sob a forma de dissertações tará diretamente relacionado à postura e ao posicionamento do pesquisador,
e teses, além de outros tipos. de relatos de pesquisa. Evidentemente, este não que seleciona seu tema de pesquisa, estabelece objetivos para a investigação,
é o único tipo de produção existente, mas possui relevância no processo de busca respostas a questões estabelecidas, escolhe instrumentos para coleta e
escolha de temas, metodologias, instrumentos de coleta de dados e referen- 11
análise de dados, sempre considerando pressupostos e compromissos filo-
ciais teóricos que têm contribuído para a qualificação da área de educação sóficos" construídos e estabelecidos a partir de sua experiência de vida, de
musical no cenário brasileiro e internaéional. suas crenças e valores.
Em resumo, o pesquisador da área de educação musical deve estar aten- A pesquisa quantitativa vincula-se ao paradigma positivista que enfati-
to à natureza de sua área de estudos, respeitand~ e considerando a interfa- za a objetividade, a neutralidade e o distanciamento do pesquisador- que é
ce com outras áreas do conhecimento, assim como deve ter amplo conta- um observador da realidade que é considerada externa ao sujeito. Neste mo-
to com a produção bibliográfica da área. Tal produção está disponível sob delo de pesquisa, trabalha-se com hipóteses pré-estabelecidas, com grandes
a forma de dissertações e teses defendidas nos programas de pós-graduação grupos de participantes, valoriza-se os dados numéricos e a análise estatís-
em música e em outros programas, além dos periódicos e livros que também tica. O paradigma positivista e, consequentemente, a pesquisa quantitativa
refletem a produção acadêmica de pesquisa. recebem críticas em função da limitação que tal modelo impõe à investiga-
ção no campo das ciências sociais, por exemplo, porque assume a referência
PESQUISA QUANTITATIVA, PESQUISA QUALITATIVA E EDUCAÇÃO MUSICAL das ciências físicas ou naturais; uma crítica veemente é que para muitos pes-
quisadores que adotam a perspectiva quantitativa "não existe diferença qua-
A pesquisa, de um modo geral, tem sido categorizada a partir de dois litativa entre os mundos natural e social de modo que os métodos e procedi-
grandes modelos: quantitativo e qualitativo. Sinteticamente, pode-se con- mentos do cientista natural podem ser diretamente aplicados à investigação
siderar que os trabalhos de cunho quantitativo são predominantes nas áreas · do mundo social" (Moreira & Caleffe, 2006, p. 51). Esta visão de pesquisa
das ciências naturais e exatas e que trabalhos qualitativos são predominantes tem sido questionada ao longo dos tempos, e o próprio modelo positivista
nas ciências sociais e humanas. No entanto, ambas as abordagens- quantita- tem sido repensado; um modelo denominado neopositivismo tem sido ado-
tiva e qualitativa- podem ser utilizadas para o desenvolvimento de pesquisas tado por pesquisadores que atuam na produção da pesquisa quantitativa,
nas diversas áreas do conhecimento, dependendo da proposta. e dos objeti- considerando diferentes prerrogativas, quando comparados aos pesquisado-
vos da investigação, além da formação e das escolhas feitas pelo pesql,Úsador. res que se valem radicalmente dos pressupostos positivas.

160
161
A pesquisa quantitativa tem seu valor e sua utilidade nos dias de hoje. A pesquisa intitulada "A formação do professor de música no Brasil" (Fin-
Na área de educação musical, por exemplo, são relevantes as pesquisas do ti- .ck, Figueiredo e Soares, 2008) vem sendo desenvolvida através do Progra-
ma observatório da educação (capes/inep/secad, 2008) e se propõe a traçar
po survey -levantamento -, que apresentam panoramas -amplos de situações
um panorama geral dos cursos de licenciatura em música no Brasil. São 76
definidas para estudo. Os três exemplos a seguir ilustram a possibilidade de cursos desta moda\idacle, estabelecidos nas cinco regiões brasileiras, defini-
desenvolvimento de pesquisa quantitativa na área de educação musical. ,los a partir rle d;.dos oficiais do Ministério da Educação e de consultas aos
sites das diversas universidades brasileiras. Um dos objetivos desta pesqui-
Os desenhos metodológicos de diversas pesquisas realizadas pelo Ministé- Exemplo 3 · sa é o levantamento de dados referentes aos cursos; outro objetivo é o le-
rio da Educação - mec (através do inep -Instituto Nacional de Estudos vantamentco de dados com os estudantes de licenciatura em música. Esses
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, por exemplo) trazem dados bas- dois objetivos têm sido abordados através de procedimentos quantitativos
tame diversificados, tratados estatisticamente que podem gerar outras in- em função da grande quantidade de dados gerados em cada instituição de
vestigações com análises qualitativas a partir do levantamento quantitati- ensino superior. Em uma segunda etapa, serão realizados estudos de caso,
vo. Um exemplo desta situação pode se configurar através do relatório do de caráter qualitativo, a serem selecionados a partir da análise dos dados
enade 2006 (Brasil, 2006), que apresenta dados quantitativos analisados quantitativos da primeira etapa.
deralhadamente sobre cada questão respondida pelos estudantes dos cur-
Exemplo I sos superiores de música no ano de 2006. A partir destas análises é pos-
sível traçar um panorama sobre o desempenho dos estudantes de música Os três exemplos apresentados evidenciam que a pesquisa quantitati-
li naquela avaliação, o que inclui, indiscutivelmente, a formação que os mes- va pode ser empregada no desenvolvimento de trabalhos na área de educa-
1:
[I mos têm recebido nas diversas instituições brasileiras de ensino superior; ção musical de forma eficiente e útil para o progresso de investigações que
alem disso, a partir destes resultados, é possível desenhar diversas pesqui- podem ser relevantes em .si mesmas, além de se constituírem como gerado-
li sas de caráter qualitativo, estudando aspecros especificas sobre cada curso,
conteúdos curriculares, formação teórica, ensino de instrumentos, relação
ras de outras propostas de pesquisa. É fundamental que se tenha em mente
li teoria e prática, dentre outros. que a pesquisa quantitativa representa· urna possibilidade atual no conjun-
to de procedimentos investigativos, devendo-se refletir sobre a tendência de
I. Neste momento da educação musical brasileira, quando temos uma legis-
,,1: se considerar este tipo de pesquisa ultrapassado ou ineficiente. Pesquisado-
!ação que estabelece a música como "conteúdo curricular obrigatório" na
I educação básica (Brasil, 2008), diversas considerações têm sido feitas com
res da área de educação musical em várias partes do mundo utilizam pro-
relação à ausência de professores licenciados para atuarem nas escolas de cedimentos quantitativos com muito mais frequência que os pesquisadores
todo o Brasil, mas não se sabe exatamente qual é a necessidade numérica brasileiros, e tais pesquisas podem ser referência para estudos que poderão
que se apresenta. Uma pesquisa quantitativa poderia contribuir para a co- ser desenvolvidos, além daqueles já e:xemplificados anteriormente. Creswell
lera e análise de dados sobre a quantidade dé·professores de música que já (2003) pode ser uma referência importante para o entendimento destas
atuam na educação básica, por exemplo, por região, por estado, por mu-
nicípio, por sistema educacional, trazendo informações precisas sobre as
abordagens da pesquisa, incluindo aquilo que ele denomina de mixed me-
Exeinplo2 thods (métodos mistos), que envolvem questões quantitativas e qualitativas
reais necessidades de formação de mais professores de música, assim co-
mo poderia balizar a necessidade de formação concinuada e projetos tran- de diferentes maneiras.
sitórios para a formação de professores de música que pudessem atuar na Malb~an (2006) e~atiza a importância de desenhos metodológicos
educação básica. Os resultados de trabalhos dessa natureza poderiam di- quantitativos para o desenvolvimento de pesquisas na área de educação mu-
mensionar com mais clareza a necessidade de oferta de mais vagas nos cur-
sos de licenciatura em música no Brasil, assim como a abertura de novos
sical que estão vinculadas às práticas do professor. Para aquela autora,
cursos presenciais e a distância para suprir a demanda que se estabelece a a controvérsia entre métodos quantitativos e qualitativos na atualidade tem perdido
partir da nova lei. envergadura. Hoje sabemos que o tipo de método a eleger se vincula com a natureza
do objeto de estudo a examinar e que certos estudos tiram proveito de ambas as pers-
pectivas (Malbran, 2006, p. 57).

163
162
A pesquisa qualitativa, vinculada ao paradigma interpretativo, tem sido ração das ações e das intenções das pessoas envolvidas, leva...!do em conside-
amplamente desenvolvida no contexto brasileiro da educação musical. Este ração sempre uma visão holística do fenômeno investigado. Bresler chama
modelo de pesquisa leva em consideração. "os produtos da mente humana, a atenção para a importância dos estudos qualitativos em educação musi'-
incluindo subjetividade, interesses, emoções e valores" (Moreira & Caleffe, cal, sem descartar a relevância dos estudos quantitativos, afirmando que em
2006, p. 60) e não se busca a generalizaçã9 de resultados, ou verdades per- "educação musical temos necessidade de generalizações formais e de compre-
manentes, como na pesquisa quantitativa. ensões experíendais de situações particulares. Necessitamos investigação de
Para ~s pesquisadores interpretativos, o propósito da pesquisa é descrever e interpretar grande qualidade,~tanto quantitativa como qualitativa" (Bresler, 2006, p. 65).
o fenomeno do mundo em uma tentativa de compartilhar significados com outros. A A pesquisa qualitativa é flexível em termos de seu desenvolvimento. O
i.nt~rpretaçá~ é a b!JSca de perspectivas seguras em acontecimentos particulares e por pesquisador qualitativo está aberto para realizar mudanças estratégicas ao
mszghts paruculares. Ela pode oferecer possibilidades, mas não certezas sobre o que se- longo do processo de pesquisa, sem descaracterizar aquilo que vinha tra-
rá o resultado de acontecimentos futuros. (Moreira & Caleffe, 2006, p. 61).
balhando. Trata-se de flexibilidade com a intenção de aproveitar elementos
Dessa forma, o pesquisador qualitativo é o principal instrumento de co- importantes que são revelados ao longo do processo e que não poderiam ser
leta de dados, conhecendo, analisando, comparando, refletindo sobre a vi- previstos antes do início da pesquisa e da imersão do pesquisador nos tra-
são e o significado que os pesquisados atribuem a determinado fenômeno. balhos de campo, por exemplo - diferente do modelo quantitativo onde os
O pesquisador qualitativo prefere coletar dados em seu ambiente natural- instrumentos de coleta e análise de dados estão definidos a priori. O pesqui-
e po~ esta razão a pesquisa qualitativa é, às vezes, denominada pesquisa na- sador qualitativo prefere coletar dados através de entrevistas abertas para que
turalista-, e não em situações pré-estabelecidas ou construídas em um labo- possa explorar temas a partir das respostas do entrevistado, sendo este um
ratório, por exemplo, onde os indivíduos participantes da investigação estão dos tipos de procedimentos adotados na pesquisa qualitativa. A análise dos
fora de seu contexto. · dados da pesquisa qualitativa, de acordo com Ezzy (2002), começa durante
Vale reforçar que os dados quantitativos também podem fazer parte de a coleta de dados, pois o aprofundamento de questões e temas nas entrevis-
uma pesquisa qualitativa, contribuindo para a análise e reflexão de determi- tas ou observações, por exemplo, depende da capacidade do pesquisador de
nado aspecto. decidir, durante o processo, o que merece ser intensificado a fim de contri-
buir com a pesquisa como um todo, mesmo que isso implique em mudan-
Os pesquisadores interpretativos estão preocupados em qualificar através dos olhos dos
ças dos planos iniciais.
participantes ao irivés de quantificar através dos olhos do observador. O argumento
fun~enral é que os dados quantitativos necessi= ser sustentados por detalhes con- A análise de dados na maior parte das pesquisas qualitativas começa durante a coleta
textuaJ.s fornecidos pelas técnicas qualitativas. (Moreira & Caleffe, 2006, p. 67). de dados ... Se a análise começa somente depois que os dados foram coletados, os pes-
quisadores terão perdido muitas oportunidades que s6 existem ao mesmo tempo em
Bresler (2006) discute os enfoques qualitativos, com suas diferentes de- que eles estão coletando os dados. (Ezzy, 2002, p. 60, 61).
nomin~ções - estudo de caso, estudo de campo, investigação etnográfica,
naturalista, fenomenológica, interpretativa e interacionismo simbólico - re- Diversas publicações específicas da área de metodologia científica tra-
sumindo três características fundamentais que são verificadas em .diversas es- tam de muitos aspectos da pesquisa qualitativa e da pesquisa quantitativa e
tratégias de pesquisa: "1. a descrição contextual de pessoas e eventos; 2. a ~o­ devem fazer parte do estudo sistemático do pesquisador. É fundamental que
fase na interpretação tanto de questões êmicas (aquelas dos participantes) se compreenda o exercício da pesquisa - qualitativa e quantitativa - com
como de questões éticas (aquelas do investigador); e 3) a validação de infor- mais profundidade, ou seja, a metodologia não pode ser confundida com os
mação através da triangulação" (Bresler, 2006, p. 60). Nessa perspectiva, não· instrumentos de coleta de dados simplesmente. O aprofundamento de ques-
se busca a generalização; a preferência do pesquisador qualitativo está na sin- tões referentes ao; modelos de pesquisa, aos paradigmas subjacentes, aos ins-
gularidade das situações investigadas, em busca da identificação e interpre- trumentos de coleta e a análise de dados, contribui para o aprimoramento

164
165
da qualidade dos relatórios de investigação que, além de divulgar o conheci- relevância de se conhecer a natureza da área e o "estado da arte" da pesquisa
mento produzido, tornam-se importantes indicativos das lacunas e necessi- existente. A escolha do tema precisa considerar estes dois fatores - natureza
dades da pesquisa em uma determinada área. -da área e "estado da arte" - para identificar _assuntos que sejam pertinentes
No Brasil, a pesquisa na área de educação musical tem sido desenvol.,. à pesquisa em educação musical, levando em consideração aquilo que vem
vida principalmente a partir das orientações qualitativas. A preferência por sendo produzido e que poderia ser ampliado, revisto, criticado, inovado ..
estudos de caso, estudos multicasos, estudos do tipo etnográfi.co, dentre ou- a
Dessa forma, pesquisa ganha relevância, evitando a repetição de investiga-
tros desenhos metodológicos característicos da investigação qualitativa, es- ções que já foram realizadas, ou escolhendo temas cuja literatura é escassa
tá evidenciada na produção de trabalhos acadêmicos de diversas naturezas. ou inexistente, o que poderia dificultar e até inviabilizar a execução de todas
Essa produção, que indiscutivelmente tem contribuído para o crescimento as etapas do processo de pesquisa.
da área no Brasil, gradualmente ganha reconhecimento internacional, evi- O tema da pesquisa é o resultado deste processo que envolve o entendi-
denciando a qualidade do trabalho que vem sendo desenvolvido pelos pes- mento da área de estudos e aquilo que tem caracterizado a produção cientí-
quisadores da área de educação musical no Brasil. Diversos pesquisadores fica desta área e este processo é contínuo. Com esse embasamento, será pos-
brasileiros atuam em parceria com pesquisadores de outros países, além de sível escolher um tema pertinente à área de estudos- neste caso, educação
levarem suas experiências em congressos internacionais e publicarem siste- musical -, com a segurança de que existe literatura que ampare as discus-
maticamente em periódicos estrangeiros. sões e ,_.Jlexões que serão geradó.S <:. partir do desenvolvimento do trabalho.
A ênfase da pesquisa brasileira em educação musical nos trabalhos qua- Relacionado direto..IIlente ao tema da pesquisa está a questão, o proble-
litativos não pode ser vista como a única forma de fazer pesquisa nem de- ma que se pretende inves!Jgar. Por exemplo, o tema pode ser o ensino de
veria ser vista como forma de hierarquizar estudos qualitativos e quantitati- música para crianças rle ti.-ês anos através do canto; esse tema poderá ser de-
vos. Tal ênfase revela, de certo modo, uma escolha que vem sendo praticada senvolvido de muitas maneiras, com diferentes focos: repertório, tessitura
por gerações de pesquisadores da área de educação musical no Brasil, mas vocal, capacidade de afinação, memória musical, extensão das peças, relação
não deve ser entendida como a única ou a melhor forma dese fazer pesqui- letra e música, e assim por diante. Isso quer dizer que o tema está diretamen-
sa. Estudos quantitativos poderão dimensionar focos relevantes para a edu- te relacionado à questão ou questões da pesquisa.
cação musical brasileira, o que ampliará, ainda mais, a consolidação da área Moreira e Calefe (2006) discutem esta relação da escolha do tema com
no cenário atual - educacional, musical e social. Ambas as formas de fazer a questão de pesquisa sugerindo o exercício a partir de uma "escada de_abs-
pesquisa são relevantes e devem ser consideradas no processo de pesquisa em trações", mostrando que "uma determinada área de interesse podê. ser ex-
educação musical no Brasil. - pressa em um contínuo do geral para o específico" (Moreira & Calefe, 2006,
p. 23). Essa proposição é exemplificada pelos autores, na Tabela 2, com um
O PROCESSO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO MUSICAL exemplo para a área de educação que poderia ser aplicado para a área de edu-
cação musical ou outras áreas.
O objetivo desta seção é apresentar elementos que podem ser considera-
TABELA 2. PERGUNTAS DE PESQUISA EM DIFERENTES NÍVEIS DE ABSTRAÇÃO
dos essenciais no processo de elaboração e desenvolvimento da pesquisa em
educação musical de forma geral. Diversos modos de pensar e fazer pesquisa
L Quais os principais fatores que ajudam na melhoria da
coexistem na contemporaneidade e o que se pretende é discutir elementos
aprendizagem na escola?
que poderiam fazer parte de qualquer processo de investigação que envolva
o ensino e a aprendizagem da música. 2. Quais os principais fatores que melhoram a aprendiza-
A escolha do tema é, sem dúvida,,: questão fundamental para o desen- gem de uma língua estrangeira?
volvimento de-qualquer pesquisa, não só na área de educação musical. Daí a

166 167
3. Quais os principais fatores que melhoram a aprendiza- A Figura 1, a seguir, apresem~ estes elementos do procêsso de pesquisa.
gem da língua inglesa como segunda língua?
FIGURA I -ETAPAS E ELEMENTOS DO PROCESSO DE PESQIDSA
4. Quais os principais fatores que contribuem para o uso
correto do tempo subjuntivo na língua inglesa?

5. Quais os principais fatores que contribuem para o uso J Tema J ~ Natureza da área de esrudos e 'estado da arte'
correto do tempo subjuntivo do verbo ser na língua inglesa?
.. , " .,'!(i~~~ão.. , ~ Questão principal e questões derivadas
Fome: Moreira & Calefe, 2006, p. 24.
J Objetivos ~~ Gerais e específicos

O exemplo poderia, ainda, conter outras questões e, consequentemen- jMetodologia j---.. Fundamentos e métodos
te, outros níveis de abstração, considerando, por exemplo, faixa etária e con-
texto socioeconômico-cultural, ou ainda acrescentando elementos à questão J Referencial teórico I~ Autores e teorias
da pesquisa que pudessem focalizar completamente o objeto de estudo. Esse
processo de focalização é essencial para o desenvolvimento de uma pesquisa,
IRevisão bibliográfica ~ Trabalhos publicados
J

não apenas na área de educação musical. IColeta e análise de dados


Parafraseando o exemplo de Moreira e Calefe (2008), para a área de
educação musical, poderíamos substituir a língua inglesa - que é objeto IElaboração do texto
de estudo do exemplo dado -, por música, ou por algum aspecto musical
- identificação de timbres, execução instrumental, criação musical, dentre Il J Conclusões e recomendações

outros. Exercitar os níveis de abstração pode ser. um ponto bastante útil no


processo de definição de um projeto de pesquisa. L Existe uma sugestão de ordem nessas etapas do desenvolvimento de
uma pesquisa, queinicia com a escolha temática e culmina c~J_U o texto e~­
A partir da escolha do tema e do estabelecimento da questão da pesqui-
crito - uma monografia, uma dissertação, uma tese, um relato no de pesqw-
sa, a investigação como um todo precisa ser levada em consideração. O tra-
balho acadêmico segue diversos protocolos que deverão ser atendidos em sa, um artigo em periódico, ou outro texto acadêmico - e as conclusões e
recomendações do trabalho. Este texto escrito apresem2.- sintética ou deta-
qualquer investigação. Um tema consistente deverá gerar uma questão de
lhadamente- as etapas do processo, evidenciando a pertinência e a relevân-
pesquisa- um foco, um problema- que será respondido ao longo do traba-
cia do tema, a eficiência da metodologia escolhida e milizada, assim como a
lho cujas partes são interdependentes. A questão da pesquisa pode ser subdi-
vidida em outras questões, sempre se tomando o cuidado de manter o foco, consistência da literatura de referência para a discussão dos dados. Mas essa
manter a direção escolhida a partir do tema selecionado. O tema e a ques- ordem pode ser revista durante o processo da pesquisa quando, por exem-
tão da pesquisa geram, por sua vez, os objetivo& a serem atingidos com a rea- plo, a revisão da literatura contribui para uma focalização mais clara da
lização da investigação, e tais objetivos também palem ser :::presentados de questão da pesquisa ou redimensiona um ou mais objetivos do trabalho; ou,
forma geral ou especÍfica. Para que se rc.<.ponda à questão da pes':t:J.s-:?, e se ainda, a partir dos dados coletados evidencia-se a necessida~e de estud~ ou-
cumpram os objetivos propostos, a metodologia- incluindo os métodos de tros tópicos, modificando e ampliando a literatura de apo10 para as discus-
coleta de dados - precisa ser coerente, a ponto de posribilitar o desenvolvi- sões e reflexões.
mento fluente da investigação. E todo esse processo depende de uma lite=- Trago um exe!Jlplo de meu próprio processo de desenvolvimento da tese
ratura de apoio, tanto para a revisão bibliográfica quanto para o estabeleci- de doutorado (Figueiredo, 2003), quando vivenciei de forma efetiva esta al-
mento do referencial teórico adequado para a investigação. teração no projeto original em função de novos elementos que foram sendo

168 169
...<'~1j

agregados ao longo do processo de pesquisa. A temática escolhida foi a for- Cursos de Pedagogia, sua história e sua relação com o ensino de música ao
mação musical de professores nos cursos de Pedagogia no Brasil, temática longo do tempo. Ao" revisar a nova literatura, as discussões ganharam ou-
relacionada à minha experiência em cursos de formação·musical para pro- ·tras consistências, evidenciando aspectos que não seriam objeto de discus-
fessores especialistas ou não especialistas - pedagogos. A escolha deste tema são iniciaLrnente, mas que, ao longo do processo, adquiriram relevância para
levou em consideração a escassez de trabalhos que discutiam esta temática a pesquisa. Todas estas modificações refinam, de alguma maneira, a questão
na literatura da área de educação musical e também na área de educação no da pesquisa, os objetivos, e auxiliam na adequação dos métodos de coleta de
Brasil. Mas, em diversos lugares do mundo, existe esta discussão com tra- dados, bem como na análise dos mesmos.
balhos importantes, cujos resultados são aplicáveis e contribuem com a dis- Com esse exemplo, quero enfatizar a flexibilidade do desenho metodo-
cussão brasileira a esse respeito e este material bibliográfico foi essencial pa- lógico necessária para a realização de um trabalho de pesquisa, especialmen-
ra garantir que a temática escolhida teria um respaldo teórico já acumulado te quando se trata de investigação qlialitativa, em que o pesquisador cons-
em outros contextos. Ao definir a questão de pesquisa- como os cursos de trói e reconstrói os elementos da pesquisa a partir do contato com o objeto
pedagogia tratam a formação musical do pedagogo? -, e~ imaginava que al- de estudo, com os dados coletados e analisados continuamente. Evidente-
gum tipo de formação deveria existir em qualquer curso de Pedagogia, con- mente, essa flexibilidade não pode modificar radicalmente aquilo que foi
siderando que os professores pedagogos que atuam nos anos iniciais da esco- previsto, considerando que todo o processo de elaboração de um projeto de
la- educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental- muitas vezes investigação deve ser realizado levando em conta algum tipo de produção
se utilizam da música em suas práticas pedagógicas, havendo, inclusive, le- existente que possa assegurar o encaminhamento da pesquisa naquela linha
gislação educacional que indica a presença das artes e da música nos currí- de desenvolvimento.
culos desses níveis escolares. Assim, com isto em mente, o método de cole-
ta de dados incluiu inicialmente a realização de entrevistas com professores FONTES DE REFERÊNCIA PARA A PESQUISA
de música dos cursos de pedagogia. Ao contatar universidades selecionadas EM EDUCAÇÃO MUSICAL NO BRASIL
para a realização da pesquisa, descobri que não havia professores de músi-
ca. na grande maioria das instituições que formam pedagogos, e que a mú- A Revista da abem, periódico semestral da área de educação musical, é
sica pode ser uma parte dos conteúdos da aula de artes, ou de outras dis- uma publicação de referência que pode contribuir para a escolha de temas
ciplinas, ou nem estar presente na formação do pedagogo.· Desta forma, as para trabalhos de investigação nesta área. Os artigos dessa publicação apre-
entrevistas foram dirigidas para professores de artes dos referidos cursos de sentam temáticas diversas, mostrando vários focos que podem ter as pes-
pedagogia, o que exigiu uma nova organização da literatura que pudesse au- quisas em educação musical. Para exemplificar alguns destes focos, pode-
xili_ar a discussão do professor de arte com a função polivalente de ensinar mos citar:
todaS as linguagens artísticas. Cabe destacar que diversos professores respon-
• temáticas que focam o professor- sua formação musical e/ou pedagó-
sáveis pelo ensino das artes nos cursos de Pedagogia, não possuíam forma-
gica, sua atuação em sala 'de aula e outros espaços educativos, como ele en-
ção acadêmica específica nas áreas arústicas, o que resulta em práticas extre-
sina música, qual é sua filosofia de ensino, dentre outros;
mamente diversificadas nos diferentes contextos participantes da pesquisa.
Estes fatores - ausência de professores específicos de música, e ausência de • temáticas que focam o aluno - como ele aprende, o que traz de baga-
formação acadêmica por parte dos professores de artes de algumas institui- gem cultural para a escola, qual a sua relação com música dentro e fora da
ções- conduziram a uma reorganização da revisão da literatura. Além disso, escola, que música prefere ou está habituado, e assim por diante;
os dados coletados enfatizavam a trajetória do curso de Pedagogia no Brasil, 0
temáticas que focam a escola - como a instituição organi.Za as aulas de
com mudanças que resultaram nesta formação musical quase inexistente nos
música, quais as orientações sobre a música no currículo ou fora dele, como é
dias de hoje; ess~ dado trouxe a necessidàde de revisão da literatura sobre os
1
170 l 171

,._...•. ,._]
o processo de contratação de profissionais para atuarem com música, den- formação do pesquisador, suas crenças e valores, além das necessidades gera-
tre outros; das pelos objetos de estudo. :
A pesquisa em educaÇão musical tem crescido sistematicamente, com~
• temáticas que focam oimos espaços educativos - escolas de música,
se pode observar através das produções bibliográficas que tratam das ma1s
conservatórios, ongs, projetos sociais, investigando o ensino e a aprendiza-
diversas temáticas e estão cada vez mais disponíveis para aqueles que se pre-
gem musical em contextos não formais e informais;
param para a atuação como educadores musicais, para aqueles que já atuam
Outras temáticas são estudadas, incluindo as questões de legislação edu- nos diversos"setores·da~educação musical e para aqueles que desejam enve-
cacional, a importância da música na educação dos indivíduos, relações en- redar pelos caminhos da investigação. O conhecimento produzido na área
tre a educação musical e outras áreas do conhecimento. Parte dessa identifi- de educacáo musical será cada vez mais relevante, na medida em que possa-
cação temática pode ser acessada através dos índices de autores produzidos mos ampllar a formação para a pesquisa, e que tal prática não esteja restri-
pela abem (disponíveis na página www.abemeducacaomusical.org.br), onde ta à academia, aos cursos de pós-graduaçào, mas que se estenda amplamen-
o& temas gerais foram identificados a partir das publicações da Associação. te para todos aqueles que atuam como educadores musicais, e para aqueles
Diversos periódicos nacionais também incluem textos sobre educação que atuam na educação em geral - como professores, diretores, coordena-
musical, além das referências internacionais de periódicos disponibilizados dores, administradores.
pela capes. Seguramente, pode-se afirmar que hoje não há, necessariamen- A difusão dos resultados de pesquisa em educação musical precisa es-
te, dificuldade com relação ao acesso a material bibliográfico disponível para tar cada vez mais disponível para a população em geral, de forma a contri-
a realização de. trabalhos de investigação em educação musical. A literatura buir para ~ revisá~ de valores que são atribuídos àqueles que fazem música.
em língua portuguesa, inclusive, tem ampliado significativamente o acesso Para concretizar a ideia de que a música deve estar na experiência educacio-
a trabalhos relevantes de publicaç~es internacionais, através de traduções, nal de todos os indivíduos - como prática social e não como formação pro-
revisões e resenhas de obras fundamentais para a .área de educação musical. fissional necessariamente-, a pesquisa em educação musical pode trazer sua
contribuicão. Muitos mitos sobre a músiea - sua aprendizagem e seu ensi-
PARA FINALIZAR no - ainÚ são perpetilados nos meios educacionais e na sociedade em geral.
A pesquisa pode trazer contribuições neste sentido, atrav~s de estudos ~i~te­
A pesquisa em educação caracteriza-se por seu caráter interdisciplinar e, máticos sobre aspectos que envolvem o ensino e a aprendtzagem da mustca,
por essa razão, diversas interfaces se estabelecem nos estudos que investigam seus atores, os benefícios desta experiência, e assim por diante. De fato, todos
o ensino e a aprendizagem musical a partir de referenciais de diversas áreas esses tópicos já fazem parte da pesquisa em educação musical no Brasil e de-
do conhecimento. Assim, os focos da pesquisa em educação musical podem vem ser continuados e ampliados com a realização de investigações consis-
estar dirigidos para questões psicológicas da aprendizagem, ou questões filo- tentes .e relevantes nos mais diversos contextos brasileiros.
sóficas da formação dos professores, ou aspectos sociológicos da música no
cotidiano das pessoas, e assim por diante. A psicologia, a sociologia, a an-
tropologia, a filosofia, dentre outras áreas, têm sido utilizadas nos referen-
ciais dos esrudos em educação musical, contribuindo para um entendimento
dos processos de ensino e aprendizagem de forma abrangente e aprofundada.
Diferentes modos de fazer pesquisa coexistem e contribuem para o de-
senvolvimento da área em diversos contextos educativos. Os pesquisadores
da área de educação musical se valem de modelos quantitativos e qualitati-
vos, e as escolhas de tais modelos dependem de vários fatores, como a própria

172 173
-,-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS !1 NOGUEIRA, L Esuutura da área de música na Tabela de Classificação do conhe-
cimento.· Relatório junto ao CNPq. Anais do X Encontro da Associação Nacio-
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Oxford University Press, 1995. duação stricto semu em música e artes/música até dezembro de 1996. Revista
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Madrid: Enclave Creativa Ediciones S. L, 2006, p. 32-59.

174 175
ANEXO
Algumas perguntas usuais de pesquisadores iniciantes
sobre Metodologia da Pesquisa

1) Como escolher o tema da minha primeira pesquisa, se não tenho, ainda,


"questões" de pesquisa?
& questões de'pesquisa nada mais são do que indagações a serem res-
pondidas através da investigação a ser realizada. Não há necessidade de for-:
mular questões artificialmente. De um modo geral, elas já estão presentes
na prática do músico, seja ele mais dedicado à docência, à "performance", à
composição ou às reflexões musicológicas, ou seja, um exame da própria vi-
vência revela essas questões. Alguns exemplos: ·
" Por que alguns alunos apresentam dificuldades técnicas com relação a
determinados aspectos do instrumento que tocam? É possível superar essas
dificuldades? Como?
• Como tomar determinadas decisões interpretativas em relação a uma
determinada obra musical? Onde buscar os fundamentos para essas decisões?
Essas e outras questões, que já estão explicitadas ou não em nossa práti-
ca profissional cotidiana, já contêm questões suficientemente adequadas pa-
ra darem início a um projeto de pesquisa.

2) Q;te itens foiem parte de um projeto de pesquisa?


Embora não haja um formato definitivo, no geral, os projetos incluem:
• introdução (que apresenta o tema da pesquisa, inclusive a questão ou
questões que dão início a ela) ·
• justificativa (que aponta a importância da pesquisa para a área em que
se insere)
• objetivos (~ue indicam os propósitos da pesquisa, ou seja, o que ela
pretende alcançar

177
~

i
l
• metodologia e referencial teórico (os meios ou métodos que serão uti- O relatório pode, também, incluir anexos se houver necessidade. Os
lizados e os conceitos ou teorias que serão utilizados)
I anexos acrescentam ·ao relatório final alguns documentos e informações que
• breve revisão preliminar de literatura (que apres~nta uma resenha de
alguns textos ligados ao tema da pesquisa, um comentário crítico sobre eles
l · não cabia incluir no texto do relatório. Por exemplo: transcrição integral de
entrevistas que foram comentadas e citadas pontualmente no relatório; có-
e a indicação de sua relevância para a pesquisa) pias de documentos consultados (currículos, partituras, decretos de lei etc);
·I imagens ilustrativas complementares, como fotografias de personagens rela-
• referências bibliográficas (explicitam as referências que aparecem no
decorrer do projeto, citadas segundo as normas de referência; as normas mais
adotadas são as da Associação Brasileira de Normas Técnicas - abnt).
l
l
tivos ao tema da pesquisa, imagens de periódicos etc.

5) Quais os principais tipos de pesquisa?


Embora muitos alunos ou pesquisadores inicianres se preocupem sobre Conforme o perfil da pesquisa e o caráter das questões que deram ori-
como incluir conclusões no projeto de pesquisa, cabe observar que elas ainda gem a ela, podemos encontrar, na literatura da área, diferentes tipos de pes-
não existem na época em que o projeto é feito, pois a pesquisa ainda não foi quisa mencionados. Não há uma unanimidade sobre essa classificação, mas
realizada, portanto, não há como incluir um item "Conclusões" no projeto. podemos citar alguns dos tipos mais comumente mencionados: pesquisa
exploratória (investigações que abordam assuntos pouco explorados e que
3) Qual a diferença entre projeto e relatório de pesquisa?
visa a estabelecer uma aproximação preliminar com o assunto focalizado),
O projeto é um planejamento prévio da pesquisa, ou seja, apresenta pesquisa experimental (investigação que envolve manipulação da realida-
uma proposta de pesquisa ainda não realizada. O relatório relata a trajetória de, visando à identificação de aspectos relativos à relação causa/efeico), pes-
e os resultados de uma pesquisa já realizada parcialmente (relatório parcial) quisa descritiva (investigação que enfatiza a descrição de um fenômeno ou
ou totalmente (relatório final). de um conjunto de fenômenos, podendo ter um caráter objetivista ou sub-
jetivista).
4) Que ítens ou capítulos fazem parte do relatório de pesquisa?
6) Quais as principais diferenças entre pesquisa qualitativa e pesquisa
Parte do que foi escrito no projeto pode ser aproveitado no relatório. É
essencial, contudo, fazer a diferença entre projeto e relatório de pesquisa: o quantitativa?
primeiro é um planejamento, uma antecipação do que vai ser a pesquisa; o Não há unanimidade sobre essa nomenclatura. Discute-se, sobretudo,
segundo é o relato de uma pesquisa já concluída: l a pertinência da denominação "quantitativà' e diversos equívocos que en-
Não há, também no caso do relatório, um formato único ou totalmen- volvem a utilização do conceito "pesquisa qualitativà'. Fundamentalmente,
te consensual, mas, em geral, aparecem os seguintes capítulos no relatório as duas diferem por sua natureza, por seus objetivos, pelo perfil teórico me-
final:
Introdução
Revisão de literatura
Metodologia e Referencial teórico
J l
todológico, mas, sobretudo, pela concepção filosófico-metodológica que está
por trás delas, desde o momento da formulação das questões da pesquisa. Ou
seja, a visão de mundo do pesquisador já está inclinada em·uma dessas dire-
ções. Os limites entre ambas são, também, em alguns momentos, discutíveis,
pois uma pesquisa qualitativa pode se valer de elementos quantitativos como
Resultados obtidos
Conclusões base preliminar para suas interpretações e conclusões. Uma pesquisa quanti-
Bibliografia tativa, por sua vez, comporta algum grau de interpretação, mesmo valorizan-
do mais a obtenção e a análise objetiva ou quantitativa dos dados.

178 179

...l
7) Qual a diferença entre revisão de literatura e referencial teórico?
1 O) Como deve ser o formato gráfico do trabalhofinal e como fazer corre-
tamente as citações e as referências /J.ibliográficas, ao final do trabalho? Há um
A revisão de literatura é, de certa forma, o ponto de partida de toda e
modelo único?
qualquer pesquisa. Ela corresponde a wna tomada de conhecimento, ampla,
Não há wn modelo único, nem para normas gráficas, nem para normas
sobre o tema a ser pesquisado, inclusive a alguns assuntos correlatos ao te-
de referências bibliográficas. Normas gráficas e normas para referências não
ma. Os conceitos e teorias que serão utilizados como referencial teórico po-
.dem aparecer no capítulo destinado à revisão de·!iteratura, mas deverão ser são temas do âmbito da metodologia, enquanto estudo dos métodos. Essas
explicitados na parte referente a metodologia e referencial te6rico. Por outro
normas s5.o..cônvenÇ6es; eseiiúso visaa garantir melhor acessO à.S fcíiites de
lado, nem todos os autores e assuntos qu~ co!lstam da revisão de J:1;eratura informação, através de maior uniformidade na forma de referi-las. No Bra-
sil, de wn modo geral, as normas da Associação Brasileira de Normas Téc-
fazem parte do referencial teórico.
nicas (abnt) são as mais usadas e aceitas (consultar o sítio da Associação, na
8) As pesquisa na área de música necessitam de referencial teórico? Internet).
Esta é urría pergunta recorrentemente apresentada por músicos que es- 11) É possível reunir diferentes abordagens de pesquisa em uma única in-
tão se iniciando na área de pesquisa. A resposta é: toda pesquisa se apoia
vestigação?
em algum tipo de referencial ou quadro teórico, pois não há possibilidade
Dentro de certos limites, sim. É necessário, em primeiro lugar, que <;s-
de consistência na pesquisa sem referencial teórico. O quadro teórico, que
abrange teorias e conceitos que dão suporte à pesquisa, é imprescindível, in- sa junção de metodologias seja feita com critérios e com conhecimento de
clusive nas pesquisas subjetivistas, wna vez que é ele que garante a densida- causa (e não por desconhecimento). De qualquer forma, as possibilidades
de reunir, em wna mesma investigação, contribuições de diferentes linhas
de epistemo~ógica da pesquisa. Para pesquisadores iniciantes, wna sugestão
para assegurar coerência na escolha de wn referencial teórico consiste em, metodológicas têm a coerência como wn limite lógico, ou seja, não é possí-
ao longo da revisão de literat:uÍa, identificar o autor com que mais se identi- vel conciliar aspectos contraditórios. Haverá, necessariamente, wn enfoque
fica e, em seguida, recorrer às fontes bibliográficas citadas por ele, que, cer- predominante, que deverá conférir o caráter prevalente da pesquisa (subjeti-
tamente, têm wna relativa afinidade teórico-metodológica entre elas. Des- vista, por exemplo), sendo as demais contribuições assimiladas e direciona-
se grupo revisto, o referencial teórico, provavelmente, poderá ser escolhido das por esse enfoque predominante, garantindo, assim, a coerência e a con-
com coerência. sistência da pesquisa.

9) É possível fazer uma pesquisa que aborde a própria experiência (por


exemplo, uma proposta de educação musical ou uma composição musical) do
pesquisador?
Sim, desde que fique explicitado, na condução da pesquisa (desde o pro-
jeto) e no relatório a existência dessa proximidade. A pesquisa qualitativa ou
subjetivista não tem nenhwna restrição a fazer quanto âs pesquisas voltadas
para a própria experiência do pesquisador, pois essas abordagens não têm co-
mo pressuposto o afastamento entre sujeito e objeto. A garantia de qualida-
de e de confiabilidade da pesquisa estará, assim, nos métodos e no referenéial-
teórico adotados, e não na tentativa de pressupor a neutralidade na pesquisa
pelo distanciamento do pesquisador em relação ao objeto. de estudo ..
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