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REFLEXÕES SOBRE FINANÇAS

PÚBLICAS E DIREITO FINANCEIRO

MARCUS ABRAHAM

2019
Dados catalográficos:
Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
MARCUS ABRAHAM tem Pós-Doutorado na
Universidade de Lisboa. É Doutor em Direito Público pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (2005),
Mestre em Direito Tributário pela Universidade Candido
Mendes (2000), MBA em Direito Empresarial pela
EMERJ/CEE (1998) e possui graduação em
Administração pela Universidade Candido Mendes (1996)
e graduação em Direito pela Universidade Candido
Mendes (1992). É ex-Diretor da Associação Brasileira de
Direito Financeiro (2006-2013). Foi Procurador da
Fazenda Nacional (2000-2012) e, atualmente, é
Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da
2ª Região. É Professor de Direito Financeiro da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na
categoria de Professor Adjunto de 2006 a 2016, e de
Professor Associado desde 2016, bem como membro da
Diretoria da Escola da Magistratura Regional Federal da
2ª Região (EMARF).
Possui os seguintes livros publicados: Curso de Direito
Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2018; Curso de
Direito Financeiro. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018;
Lei de Responsabilidade Fiscal Comentada. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2017; Governança fiscal e
sustentabilidade financeira: os reflexos do Pacto
Orçamental Europeu em Portugal como exemplos para o
Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2018; Princípios de direito
público: ênfase em direito financeiro e tributário. Belo
Horizonte: Fórum, 2018 (co-organizador e coautor);
Direito financeiro na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal – homenagem ao Min. Marco Aurélio. Curitiba:
Juruá, 2016 (co-coordenador e coautor);
Responsabilidade fiscal – análise da Lei Complementar nº
101/2000. Brasília: Conselho Federal da OAB, 2016. (co-
organizador e coautor); Jurisprudência Tributária
Vinculante: teoria e precedentes. São Paulo: Quartier
Latin, 2015. (coautor); Orçamento Público no Direito
Comparado. São Paulo: Quartier Latin, 2015. (organizador
e co-autor); Estado Fiscal e Tributação. Rio de Janeiro:
GZ, 2015. (co-coordenador e coautor); Tributação e
Justiça Fiscal. Rio de Janeiro: GZ, 2014. (co-coordenador
e coautor); As Emendas Constitucionais Tributárias e os
Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo:
Quartier Latin, 2009; Manual de Auditoria Jurídica: Legal
Due Diligence. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
(coordenador e coautor); O Planejamento Tributário e o
Direito Privado. São Paulo: Quartier Latin, 2007.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais Herman e Clara, minha irmã


Patrícia e minha esposa Mariana, pelo amor, amizade e
apoio constantes.

Agradeço à minha equipe de gabinete no Tribunal


Regional Federal da 2ª Região (TRF2), nas pessoas dos
meus assessores Ana Cristina, Inez, Dalmo e,
especialmente ao Vítor, pela ajuda nas pesquisas e
revisões acadêmicas.
PREFÁCIO

XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
APRESENTAÇÃO

Com alegria, ofereço ao leitor a presente coletânea de 50 textos sobre


temas variados de Finanças Públicas e de Direito Financeiro.
Estes textos representam reflexões publicadas mensalmente, entre os
anos de 2015 e 2019, no site jurídico JOTA, no espaço intitulado COLUNA
FISCAL, que objetiva – a partir de uma visão didática e crítica – aproximar o
leitor do Direito Financeiro, área jurídica considerada árida e distante por
muitos, e com literatura especializada ainda incipiente no Brasil.
Em cada um dos textos, apresentamos e analisamos o cotidiano das
finanças públicas brasileiras, contextualizadas e explicadas pelo Direito
Financeiro, de maneira leve, simples e direta.
São abordados temas como: pedaladas fiscais, calamidade financeira,
efetividade das leis orçamentárias, metas de superávit/déficit fiscais,
democracia fiscal, princípios orçamentários, desvinculação de receitas
públicas, desonerações fiscais, responsabilidade fiscal, crédito público, gastos
de pessoal, tribunais de contas, federalismo fiscal, controle de
constitucionalidade do orçamento, sanções fiscais, corrupção como gasto
público, reforma da previdência, inteligência artificial nas finanças públicas,
impositividade orçamentária, limitação de empenho, pacto fiscal europeu,
educação fiscal, dentre outros.
Apesar de cada um dos textos ter sido escrito mensalmente, ao longo de
alguns anos e dentro de circunstâncias fiscais pertinentes ao respectivo
momento histórico, a sua leitura permanece atemporal.
O conhecimento do Direito Financeiro pode influenciar o desenvolvimento
da cidadania fiscal, imprescindível para qualquer nação que pretenda o bem-
estar dos seus integrantes, pois será por meio dela que o cidadão, conhecedor
dos seus direitos e deveres, demandará ao governante o cumprimento
adequado do seu múnus, para que se possa, ao final, transformar a justiça
fiscal em justiça social.
É preciso dar a devida relevância e efetividade ao Direito Financeiro, as
suas normas e a seus objetivos.
Por isso, o singelo desígnio desta coletânea é desmistificar essa
importante ciência jurídica, aplicando a doutrina e a teoria à realidade fiscal
brasileira. Esta obra se direciona não apenas aos estudantes de Direito, mas
também a toda a comunidade jurídica e áreas conexas, esperando que este
conteúdo reverbere para toda a sociedade brasileira.
Rio de Janeiro, 05 de agosto de 2019.
Marcus Abraham
Sumário
APRESENTAÇÃO ..................................................................................................................... 6
O renascimento do Direito Financeiro................................................................................ 9
Para entender as pedaladas fiscais .................................................................................. 13
Projeto de orçamento em pauta ......................................................................................... 17
Uma radiografia da lei orçamentária ................................................................................. 22
O perfil jurídico das metas e do equilíbrio fiscal ........................................................... 26
Democracia participativa na elaboração do orçamento público ............................... 30
Metas fiscais, pedaladas e pedido de impeachment – a retrospectiva de 2015.... 33
Onze princípios orçamentários para uma gestão responsável ................................. 37
Prós e contras da Desvinculação das Receitas da União ........................................... 41
Desonerações tributárias valem a pena? ........................................................................ 44
Avanços e retrocessos nos 16 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal ............... 48
Do tributo ao crédito público – uma nova realidade fiscal ......................................... 51
Estado de calamidade financeira e a Lei de Responsabilidade Fiscal .................... 54
Limite prudencial nas despesas públicas de pessoal ................................................. 57
O teto dos gastos públicos.................................................................................................. 60
Os Tribunais de Contas e o poder cautelar de indisponibilidade de bens ............. 63
A simbiótica relação entre o Direito Financeiro e o Tributário nos 50 anos do
Código Tributário Nacional.................................................................................................. 67
As novas desvinculações de receitas dos Estados e Municípios ............................ 70
Austeridade e federalismo municipal ............................................................................... 73
O controle de constitucionalidade das leis orçamentárias ........................................ 76
Choque de realidade e os relatórios das finanças públicas....................................... 79
Sanções contra a irresponsabilidade fiscal .................................................................... 82
A reforma da previdência e a LRF ..................................................................................... 85
A corrupção como despesa pública ................................................................................. 88
Véu da ignorância ou educação fiscal? ........................................................................... 91
A função parlamentar no orçamento público e o déficit democrático .................... 94
Indesejável guerra fiscal e a LC 160/2017........................................................................ 97
O Pacto Fiscal Europeu e a experiência portuguesa ................................................. 101
Diretrizes orçamentárias da OCDE .................................................................................. 105
Efeitos econômicos no orçamento público .................................................................. 109
Transparência fiscal e reforma da previdência ............................................................ 112
Shutdown e democracia orçamentária ........................................................................... 115
Receitas variáveis e despesas correntes: uma equação furada ............................. 118
Gastos públicos na ótica da sociedade e da Constituição ....................................... 120
Orçamento inflado e irreal ................................................................................................. 123
Novos municípios e a velha preguiça fiscal ................................................................. 126
Imprescindibilidade do planejamento dos gastos públicos ..................................... 129
Contas públicas desordenadas: há luz no fim do túnel? .......................................... 132
Gestão prudencial nos gastos com pessoal................................................................. 134
30 anos da Constituição Financeira e Tributária ......................................................... 137
Rejeição do orçamento italiano e um alerta para o Brasil ........................................ 141
O controle dos subsídios fiscais na realização das políticas públicas ................. 144
O gasto com as execuções fiscais inúteis .................................................................... 147
Colapso nas contas estaduais.......................................................................................... 150
Desafios da inteligência artificial nas finanças públicas .......................................... 153
Desmistificando a limitação de empenho...................................................................... 159
As promessas de campanha eleitoral presentes na Lei do Plano Plurianual...... 162
Mais um plano de equilíbrio fiscal ................................................................................... 166
Emenda Constitucional nº 100: a certeza da impositividade orçamentária ......... 169
Receitas insuficientes, novos impostos e as revoluções tributárias .................... 174
O renascimento do Direito Financeiro

Publicado em 09/07/2015

Em tempos em que expressões como “pedaladas fiscais” e


“contabilidade criativa” ocupam rotineiramente os noticiários de todo o país, em
um contexto de desequilíbrio nas finanças públicas e de inobservância das
regras de gestão fiscal responsável, jogam-se luzes sobre uma questão
extremamente relevante e que há muito parece ter sido esquecida: a de que o
Direito Financeiro brasileiro é um ramo do Direito dotado de normas jurídicas
imperativas que devem ser respeitadas.
No mundo moderno, o Direito Financeiro acumula funções de estatuto
protetivo do cidadão-contribuinte, de ferramenta do administrador público e de
instrumento indispensável ao Estado Democrático de Direito para fazer frente a
suas necessidades financeiras. Sem ele não seria possível ao Estado oferecer
os serviços públicos, exercer seu poder de polícia e intervir na sociedade,
colaborando na redistribuição de riquezas e na realização da justiça social, com
respeito à dignidade da pessoa humana e à manutenção do equilíbrio
econômico e da prosperidade.
Mais do que um conjunto de normas sobre o ingresso, a gestão e a
aplicação dos recursos financeiros do Estado, é uma ferramenta de mudança
social, importante para um país como o nosso, repleto de desigualdades
sociais, econômicas e culturais.
No Brasil, assim como nas demais nações do mundo, os recursos
públicos são limitados, e seu governante não pode gastá-los de forma
descontrolada e desarrazoada. Se os desejos humanos são ilimitados, a
possibilidade material de atendê-los é restrita. Portanto, não podemos
descuidar do tratamento das fontes e mecanismos de arrecadação, nem das
formas e escolhas para sua justa e devida gestão e aplicação.
Arrecadar com justiça, administrar com zelo e transparência, gastar com
sabedoria e controlar com rigor as contas públicas são os comandos que
devem ser seguidos pelo administrador público e acompanhados e cobrados
pelo cidadão.
Infelizmente, o nível de conhecimento da real importância do Direito
Financeiro ainda é muito incipiente no Brasil, sendo pouco usual que os
operadores do Direito, e menos ainda o cidadão, conheçam a sua função,
estrutura e elementos básicos. Agrava-se a situação – e até com certa rejeição
– por acreditarem que se trata de uma ciência econômica ou contábil, quando,
na realidade, estamos inseridos em uma seara eminentemente jurídica, dotada
de princípios e regras, inclusive de foro constitucional.
De fato, a economia e a contabilidade pública permeiam as finanças
públicas como importantes ciências integrantes da atividade financeira do
Estado, fornecendo teorias, dados e elementos técnicos para a sua condução.
Contudo, devemos compreender que as receitas e despesas públicas, bem
como a sua gestão, são todas disciplinadas por normas jurídicas, inclusive os
orçamentos, que são leis e precisam ser rigorosamente cumpridos.
Por isso, temas fiscais recorrentes na mídia impressa e eletrônica de
hoje, como plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias, superávit primário,
responsabilidade fiscal, tribunais de contas, dentre outros, acabam
considerados como “bichos de sete cabeças” insertos numa especialidade
quase mitológica, deixando grande parte da sociedade, inclusive a jurídica, à
margem dos debates.
A propósito, é de se questionar a razão pela qual matéria tão relevante
na formação jurídica não integra o rol de disciplinas obrigatórias nas faculdades
de Direito, e nem faz parte do programa exigido nas provas do Exame da
Ordem dos Advogados.
Com o objetivo de desmistificar o Direito Financeiro, percorreremos
todos os elementos e fases da atividade financeira do Estado – desde as suas
origens históricas, as receitas e despesas públicas, a dívida pública, a
elaboração e execução dos orçamentos, a gestão pública e sua fiscalização
etc. – e veremos como o Direito Financeiro os disciplina, destacando e
elucidando os seus conceitos básicos e ilustrando-os com situações concretas
do nosso dia a dia. Afinal, como dizia Kurt Lewin, não há nada mais prático do
que uma boa teoria!
Veremos que, para garantir a efetividade dos direitos humanos e sociais,
e materializá-los em bens e serviços oferecidos aos cidadãos, o Estado precisa
obter recursos financeiros suficientes, que se originarão da exploração de seus
próprios bens e rendas, ou derivarão do patrimônio do cidadão, arrecadados
segundo as normas do Direito Financeiro, tendo no Direito Tributário uma
subárea específica da atividade fiscal, que disciplina apenas uma, dentre as
diversas espécies de ingressos e receitas públicas (tributos, dividendos das
empresas públicas, royalties, renda patrimonial, empréstimo público etc.).
Assim, perceberemos que o Direito Financeiro e o Tributário não se
confundem. Enquanto o Direito Financeiro disciplina e normatiza todos os atos
e procedimentos para a realização da arrecadação pública em sentido amplo, a
gestão desses recursos, o respectivo gasto público e a elaboração e execução
do orçamento público, constituição e gestão da dívida pública, tudo isso
parametrizado por princípios específicos e por normas como a Lei Geral dos
Orçamentos (Lei nº 4.320/1964), a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº
101/2000), dentre outras, direcionando a conduta daqueles servidores públicos
que agem em nome do Estado durante a realização da atividade financeira; o
Direito Tributário estabelece as normas de uma relação jurídica específica – a
relação tributária – entre o cidadão e o Estado, pautada por princípios jurídicos
específicos da tributação, como a legalidade tributária, a capacidade
contributiva, a anterioridade, a progressividade, o não-confisco, as imunidades
etc.
Notaremos que o Direito Financeiro também influencia e determina a
definição das políticas públicas e as escolhas feitas pelo Estado sobre o que
fazer com os recursos financeiros arrecadados, já que estes devem seguir
sempre o interesse coletivo, pautar-se pelas necessidades mais prementes da
sociedade e serem aplicados a partir dos valores constitucionais voltados para
a consecução e o atendimento dos direitos fundamentais e dos direitos sociais.
Neste aspecto, destaca-se o orçamento público como relevante
instrumento de planejamento, gestão e controle financeiro, que contempla a
participação conjunta dos Poderes Executivo e Legislativo, tanto na sua
elaboração e aprovação quanto no controle da sua execução, configurando um
instituto fundamental no Estado Democrático de Direito. É mais do que um
documento meramente técnico, uma vez que revela as políticas públicas
adotadas pelo Estado para atender às necessidades e interesses da
sociedade, conjugando-as com as pretensões e possibilidades de realização
dos cofres públicos.
A tríade orçamentária – Plano Plurianual, Diretrizes Orçamentárias e
Orçamento Anual – é composta de leis em sentido estrito, cujo respeito e
efetiva execução pelo administrador público precisam ser diuturnamente
exigidos pela sociedade.
Neste ponto destaca-se outra vertente fundamental do Direito
Financeiro: trata-se de importante instrumento para o exercício da cidadania,
ao permitir o acompanhamento e a participação do cidadão brasileiro na
administração da coisa pública. Mas, para isso ocorrer, a sociedade deve ser
incitada a conhecer e participar deste relevante processo. A mera divulgação
do orçamento anual, sem que o cidadão seja estimulado a entendê-lo e avaliá-
lo, é de pouca valia. Afinal, é através do orçamento público, carta de
compromissos do governante, com natureza e força de lei, que se demonstra
para a sociedade o que será feito com o meu, o seu, o nosso dinheiro.
E, como em qualquer atividade humana, a execução da atividade
financeira precisa ser devidamente acompanhada, fiscalizada e controlada, já
que, da mesma forma que em outros atos humanos, está sujeita a equívocos,
inobservância de suas normas, desvios de conduta dos agentes e toda sorte de
irregularidades. Aliás, já advertia Montesquieu, no seu clássico O espírito das
leis, que “todo homem que tem em suas mãos o poder é sempre levado a
abusar dele, e assim irá seguindo, até que encontre algum limite”.
A fiscalização dos recursos públicos cabe a toda a sociedade e a cada
cidadão, em particular. Mas, no âmbito da Administração Pública, a
Constituição Federal atribui competência para fiscalizar aos órgãos de controle
interno de cada Poder e aos Tribunais de Contas de cada ente, instituições
republicanas que cada vez mais ganham espaço e importância.
Não se pode esquecer também da relevância da Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF), que há poucos meses completou 15 anos de
vigência. Constituindo um verdadeiro marco regulatório fiscal no Brasil, a Lei foi
criada para estabelecer um código de conduta aos gestores públicos, pautada
em padrões internacionais de boa governança. A probidade e a conduta ética
do administrador público como deveres jurídicos positivados passaram a ser o
núcleo da gestão fiscal responsável, voltada para a preservação da coisa
pública. Através dela, introduziu-se uma nova cultura na Administração Pública
brasileira, baseada no planejamento, na transparência, no controle e equilíbrio
das contas públicas e na imposição de limites para determinados gastos e para
o endividamento.
A partir da LRF, a responsabilidade na atividade financeira é requerida
em todas as etapas do processo fiscal, desde a arrecadação, passando pela
gestão, até a aplicação dos recursos na sociedade de maneira responsável,
ética, transparente e eficiente. Aliás, a temática das “pedaladas fiscais” gira em
torno de suposta violação a uma de suas regras basilares.
Enfim, percebe-se que no Direito Financeiro há muitos assuntos a serem
explorados, com a certeza de que o seu conhecimento é de suma importância
nos dias de hoje. A conscientização e a educação fiscal devem estimular o
cidadão a compreender os seus direitos e deveres cívicos, concorrendo para o
fortalecimento do ambiente republicano e democrático, imprescindível para
qualquer nação que pretenda o bem estar dos seus integrantes.
É imbuído desse espírito que ofereço ao leitor, desde o estudante na
faculdade de Direito ao profissional da área jurídica e outras conexas, um
modesto referencial sobre o tema, mas com um pretensioso objetivo: o de
estimular a busca pela efetivação da justiça fiscal, para que esta se traduza em
justiça social.
Para entender as pedaladas fiscais

Publicado em 06/08/2015

Hoje, oferecemos ao leitor uma visão jurídica das pedaladas fiscais à luz
do Direito Financeiro, por uma abordagem didática, sem viés político ou
ideológico, objetivando esclarecer e permitir o acompanhamento consciente e
crítico da apreciação da matéria pelo TCU e Congresso Nacional, o que
acontecerá em breve.
Preliminarmente, devemos ter em mente que estamos tratando de regras
eminentemente jurídicas, estabelecidas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC
nº 101/2000), norma cogente e imperativa como qualquer outra lei do nosso
país, e não de uma boa prática contábil ou recomendação de ordem
econômica.
Ademais, apesar de as “pedaladas fiscais” estarem hoje em dia sendo
questionadas apenas em relação ao Governo Federal, as regras jurídicas
supostamente violadas são aplicáveis aos três níveis da federação: União,
Estados/DF e Municípios.
E, como qualquer tema jurídico, a aplicação das normas aos fatos não é
incontroversa e nem se opera de maneira simples e objetiva, já que não
estamos no campo de uma ciência exata, razão pela qual devemos respeitar as
opiniões eventualmente divergentes.
No linguajar das finanças públicas, “pedalar” nada mais é do que a
expressão usada para fazer referência a atrasos de pagamento.
Figurativamente, a expressão “pedalada fiscal” também nos lembra o
jargão futebolístico para indicar o drible criativo dado em uma regra do Direito
Financeiro, visando à obtenção de um benefício fiscal para o governo. Aliás,
reza a lenda urbana em Brasília que um dos mentores da prática, um Ex-
Secretário do Tesouro Nacional, que tinha o hábito de ir trabalhar de bicicleta,
mudou o seu meio de transporte para não ser mais visto pedalando.
A manobra das pedaladas consistia na postergação mensal do repasse,
para certos bancos públicos, de recursos financeiros destinados ao
atendimento de programas sociais e previdenciários (bolsa família, abonos,
pensões, aposentadorias etc.), gerando para o Governo, como benefício, um
temporário aumento no superávit primário das contas públicas e uma aparente
maior capacidade de cumprimento das metas fiscais, diante de um real
desequilíbrio fiscal e das sérias dificuldades financeiras que o país atravessa.
Fato é que, no Brasil, assim como em qualquer nação do mundo, o
Estado depende de recursos financeiros para pagar as suas despesas. E,
quanto mais despesas tiver, mais dinheiro será necessário. Assim, se gastar
além do que arrecada, terá déficit nas suas contas; se arrecadar mais do que
gasta, terá superávit; e se mantiver as receitas e despesas no mesmo nível,
teremos o sonhado equilíbrio fiscal.
No início do século XX, o Estado e sua máquina administrativa eram
menores e menos atuantes, oferecendo ao cidadão apenas serviços públicos
básicos, tais como policiamento, justiça, exército para defesa das fronteiras e,
em uma medida mínima, escolas e hospitais públicos. Para tanto, arrecadava-
se pouco, algo em torno de 10% da renda nacional (PIB). Após as duas
grandes guerras mundiais e até os dias atuais, os Estados mudaram o seu
perfil e adotaram uma postura mais atuante e provedora. Ao passarem a gastar
mais, tiveram que arrecadar mais tributos, hoje em torno de 30% a 55% do PIB,
dependendo do país (p.ex., Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha
etc.). No Brasil, a carga fiscal está na ordem de 36% do PIB.
Porém, ainda não era suficiente para fechar a conta, e buscou-se outra
forma complementar de financiamento: o crédito público. E, como todo
empréstimo, ele precisa ser pago (e devidamente remunerado). Para as
nações com economias mais sólidas, o custo financeiro é menor. Já para
países com probabilidade maior de inadimplência, o mercado exige uma
remuneração com taxa de juros maior para compensar o risco: é o caso do
Brasil. Ter uma boa saúde financeira possibilita ao país manter o seu “grau de
investimento” e a confiança do mercado, atrair o capital de investidores e
reduzir os custos da dívida.
Apesar de a dívida pública brasileira não ser das maiores (em torno dos
2,5 trilhões de reais), seu custo de manutenção é muito alto, gerando um gasto
anual de mais de 40% do orçamento público federal apenas com juros e
amortização (cerca de 1,2 trilhões de reais).
Para termos uma ideia desta dimensão financeira, basta dizer que o gasto
federal com educação e saúde gira, respectivamente, em torno de 3,5% e 4,5%
do orçamento. Portanto, o custo da dívida pública é quase dez vezes maior do
que com saúde ou educação. Reduzindo-a, parcela deste gasto poderá ser
redirecionada ao atendimento dos serviços públicos fundamentais e dos
direitos sociais, tais como educação, saúde, segurança, previdência,
assistência social etc.
Por isso, a legislação brasileira, em especial a Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF), preocupou-se em estabelecer limites para a dívida pública e fixar
metas fiscais de superávit para reduzir parte da dívida pública. Portanto, o tão
propagado superávit primário nada mais é do que a economia feita para pagar
juros e demais encargos da dívida pública.
Muito em breve, o Tribunal de Contas da União (TCU) irá apreciar e
opinar tecnicamente sobre a regularidade das contas do Governo Federal do
ano de 2014, para que, com base no seu parecer, o Congresso Nacional julgue
tais contas.
A Constituição estabelece, nos artigos 70 e 71, que a fiscalização
financeira e orçamentária da União será exercida pelo Congresso Nacional,
com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete fiscalizar e
julgar contas de administradores públicos e de todos aqueles que utilizem
dinheiro público e, neste caso específico, apreciar as contas prestadas
anualmente pelo Governo da República, mediante parecer prévio.
A aprovação ou a rejeição das contas pelo Congresso Nacional (art. 49,
IX, CF), como toda votação que prescinde de fundamentação, será um ato de
natureza política, não estando vinculado - mas tão somente subsidiado - pela
manifestação técnica do TCU, especialmente quanto ao respeito e adequação
às normas da Constituição, às leis do país e, no caso das pedaladas, às regras
da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Neste sentido, constaram do Relatório Prévio do TCU (Acórdão nº
1464/2015, no Processo nº TC 005.335/2015-9), diversas supostas infrações
às leis financeiras, com destaque para indícios de 13 (treze) possíveis
irregularidades fiscais, objeto de pedido de esclarecimentos ao governo e que,
infelizmente, vão além das “pedaladas fiscais”, atingindo os pilares de
sustentação da LRF: planejamento, transparência e gestão fiscal responsável.
Em relação às pedaladas, destaca-se a possível violação ao artigo 36 da
LRF, que proíbe operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o
ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.
Tal infração seria originária dos adiantamentos concedidos para a União pela
Caixa Econômica Federal para cobertura dos programas Bolsa Família, Seguro
Desemprego e Abono Salarial de 2013/2014, dos adiantamentos concedidos
pelo BNDES para a cobertura do Programa de Sustentação do Investimento de
2010/2014, e dos adiantamentos concedidos pelo FGTS para as despesas do
Programa Minha Casa, Minha Vida de 2010/2014 (item 2.3.6 do Relatório do
TCU). Assim, enquanto as instituições financeiras efetuavam os pagamentos
em dia aos beneficiários sem ter recebido o repasse da União, esta, por sua
vez, não contabilizava como dívida o adiantamento, não afetando as
estatísticas oficiais do resultado primário.
A proibição do art. 36 da LRF não é em vão e se justifica por razões de
transparência, de controle e de gestão fiscal responsável. Afinal, quem não se
recorda da crise dos bancos públicos estaduais que o país viveu na década de
1990, jogando-se pelo ralo bilhões de reais com programas de reestruturação
do sistema financeiro, como o PROER?
Ocorre que esta prática das pedaladas fiscais já foi objeto de análise
recente pelo Plenário do TCU no Acórdão nº 825/2015, em que o Ministro
Relator José Múcio Monteiro chegou a equipará-la a um "cheque especial" da
União na CEF, expressando, ao final, a sua perplexidade ao dizer que: "ainda
não compreendo como é que dezenas de bilhões de reais em passivos da
União tornaram-se imperceptíveis ou indiferentes aos olhos do Banco Central".
Pelos cálculos do TCU, as manobras fizeram com que não fossem
contabilizados R$ 40,2 bilhões na Dívida Líquida do Setor Público no ano
passado.
Além das pedaladas, o Relatório Prévio do TCU aponta outras possíveis
violações à LRF, como a falta de contingenciamento em gastos discricionários
de mais de 28 bilhões de reais, diante da queda da arrecadação; a omissão nas
estatísticas da Dívida Pública de 2014 das dívidas da União com o BB, BNDES e
FGTS; a ausência do rol de prioridades no Projeto da LDO de 2014; distorções
nas informações relacionadas a indicadores e metas do PPA 2012/2015; o
pagamento pela União de dívida contratual junto ao FGTS sem autorização
orçamentária em 2014; os gastos superiores ao autorizado no orçamento de
estatais como Telebrás e Furnas; a utilização da execução orçamentária de 2014
para influenciar a apreciação do Projeto de Lei PLN 36/2014 que reduzia a
meta de superávit primário; etc.
Por sua vez, o Procurador Júlio Marcelo Oliveira, do Ministério Público de
Contas junto ao TCU, em sua dura manifestação, destaca que "foram
praticadas graves e intencionais violações à lei de Responsabilidade Fiscal
com o objetivo de expandir gastos públicos, sem sustentação orçamentário-
financeira, com a agravante de terem sido cometidas em ano eleitoral, a indicar
uma incidência em condutas que a LRF veio justamente combater".
Já o Ministro da Advocacia-Geral da União, Luís Inácio Adams, nos
esclarecimentos prestados ao TCU, afirma que não houve descumprimento da
lei e que a prática das “pedaladas fiscais” não se equipararia a uma operação
de crédito vedada pela LRF, já que estaria amparada por um contrato de
prestação de serviços para o pagamento de benefícios com compensação
pelos atrasos, com ganhos para as próprias instituições financeiras.
Argumenta ainda o Ministro Adams que o TCU não considerou irregulares
essas operações em anos anteriores, configurando um padrão jurisprudencial
da Corte de Contas, cuja eventual mudança de entendimento deverá respeitar
o Princípio da Segurança Jurídica e ter efeitos apenas prospectivos, citando o
Acórdão nº 992/2014 do próprio TCU, onde foi dito que: “não seria razoável
classificar como operações de crédito meros atrasos de curtíssimo prazo no
repasse de recursos do Tesouro, previstos e em condições estipuladas
contratualmente, como no caso dos programas sociais pagos por intermédio da
CEF”.
De fato, todos os questionamentos são preocupantes. Porém,
independentemente de como eles e as pedaladas fiscais serão considerados
pelo TCU e pelo Congresso Nacional, acredito que o mais importante é
percebermos que o tema está sendo objeto de amplo debate crítico e
construtivo e, sobretudo, que temos instituições atentas e republicanas, como o
TCU e Ministério Público de Contas, que buscam a aplicação e respeito da
legislação financeira, bem como a própria AGU, que, ao justificar as práticas,
manifesta, com transparência e lealdade, o compromisso de corrigir eventuais
irregularidades fiscais.
Enfim, a Lei de Responsabilidade Fiscal, ao estabelecer um código de
conduta aos gestores públicos, nestes seus 15 anos de vigência, demonstra
tratar-se de importante instrumento de fortalecimento dos valores do Estado
Democrático de Direito. O seu cumprimento precisa ser exigido por todos para
que possa realizar o seu desígnio: oferecer ao cidadão brasileiro e aos
governos os mecanismos necessários para o desenvolvimento econômico e
social, com a criação de uma sociedade mais digna e justa.
Projeto de orçamento em pauta

Publicado em 03/09/2015

Esta segunda-feira que passou foi uma das mais movimentadas neste
ano para o nosso Direito Financeiro.
Isso porque, anualmente, o dia 31 de agosto é a data limite para o Poder
Executivo da União, de todos os Estados/DF e municípios encaminharem o seu
projeto de lei orçamentária anual (LOA) aos seus respectivos Poderes
Legislativos, a fim de ser apreciado, votado e, finalmente, sancionado até o fim
de cada exercício financeiro, para viger já em primeiro de janeiro do
subsequente exercício.
A norma que estabelece esta regra é a contida no inciso III, §2º, art. 35 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da nossa Constituição, ao
prescrever que "o projeto de lei orçamentária da União será encaminhado até
quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro e devolvido para
sanção até o encerramento da sessão legislativa". Embora o comando seja
direcionado à União, em face da simetria das normas constitucionais, as
disposições orçamentárias estabelecidas no texto constitucional aplicam-se,
também, aos orçamentos estaduais, municipais e do Distrito Federal.
Da mesma forma, uma vez a cada quatro anos - no primeiro ano de cada
mandato do chefe do Executivo -, o dia 31 de agosto marca também a data
limite para o encaminhamento do Plano Plurianual (PPA), lei responsável pelo
planejamento estratégico das ações estatais no longo prazo, que vigerá por
quatro anos, até o final do primeiro exercício financeiro do mandato
subsequente.
Importante lembrar que, sem lei orçamentária, não é possível ao Estado
brasileiro gastar nem um centavo sequer, já que é vedada a realização de
qualquer despesa não prevista em lei (art. 167, II, CF), proibição essa,
inclusive, presente no Código Penal (art. 359-D), que estabelece o crime de
"ordenar despesa não autorizada por lei".
Infelizmente, o orçamento público ainda é pouco conhecido e
compreendido por nossa sociedade. Apesar disso, desempenha o papel de um
dos mais relevantes instrumentos de planejamento e controle financeiro,
contemplando, hodiernamente, a participação conjunta do Poder Executivo e
do Legislativo, tanto na sua elaboração e aprovação, como também no controle
da sua execução, configurando um instituto fundamental no Estado
Democrático de Direito contemporâneo. É mais do que um documento
meramente técnico, uma vez que revela as políticas públicas adotadas pelo
Estado ao procurar atender às necessidades e interesses da sociedade,
conjugando-as com as pretensões e possibilidades de realização dos cofres
públicos.
É comum a qualquer cidadão elaborar no seu dia a dia um orçamento
pessoal, contemplando todas as suas rendas, em regra provenientes do
salário, de rendimentos financeiros, de alugueres, de dividendos etc., para
confrontá-las com suas despesas ordinárias e extraordinárias, tais como
habitação, saúde, vestuário, alimentação, educação, transporte, lazer, bens de
consumo etc., visando saber se com elas poderá arcar regularmente, e se
ainda haverá alguma disponibilidade para investir ou economizar. Pelo mesmo
motivo, as empresas recorrem à contabilidade empresarial, a fim de estimar
seu faturamento, suas receitas operacionais e não operacionais, buscando
programar as despesas fixas e variáveis, os investimentos e o pagamento de
lucros aos sócios. E com o Estado não poderia ser diferente; afinal, como
qualquer pessoa ou empresa, precisa administrar seus gastos e saber se
disporá de recursos financeiros suficientes para financiá-los, identificando a
origem de suas receitas e toda a programação de despesas que irá realizar.
Esta lógica contempla o equilíbrio orçamentário entre as receitas nele
previstas, que ingressarão ao longo do ano, e as despesas autorizadas a
serem gastas. Isso porque o equilíbrio fiscal é a regra de ouro das finanças
públicas modernas, indicando que, para toda despesa, haja uma receita
suficiente a financiá-la, a fim de evitar o surgimento de déficits orçamentários
crescentes ou descontrolados, inflação e outros males financeiros.
O equilíbrio fiscal representa o ideal de gestão responsável buscado na
Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000), tal como vem previsto no § 1º
do artigo 1º da lei, permitindo a manutenção da estabilidade econômica, um
dos pilares do crescimento sustentado do Estado.
Portanto, conhecer o montante de recursos de que dispõe o Estado na
sua atividade arrecadatória, e determinar a sua destinação, de maneira
equilibrada, responsável, transparente e justa, é fundamental nos dias de hoje
para qualquer nação. Afinal, a administração de tais recursos deve ser feita de
forma eficiente e a sua aplicação precisa ser realizada criteriosamente, para
que se possa atender às necessidades públicas da maneira mais ampla e
satisfatória possível.
Contudo, para que o orçamento público ganhasse a estrutura jurídica que
possui hoje em dia, foi necessário um longo e complexo processo evolutivo no
decorrer dos séculos, cujo marco foi o desenvolvimento da ideia de que o
patrimônio do Estado deveria ser considerado distinto e autônomo em relação
ao patrimônio do imperador, do rei ou do governante, além da necessidade de
se fixarem parâmetros para o exercício de seu poder.
Assim, primeiro surgiram as regras para limitar os abusos na arrecadação
de recursos financeiros pelos governantes em face de seus súditos. Depois,
vieram as normas que disciplinavam a aplicação desses recursos, procurando
prestigiar as necessidades e o interesse público. Como consequência dessa
evolução na área das finanças públicas, tornou-se imperativa a criação de uma
ferramenta que permitisse ao governante identificar o volume financeiro de
recursos a ser arrecadado em certo período, a fim de poder determinar onde,
como e quanto se poderia gastar.
Atualmente, o orçamento público no Brasil é composto de uma tríade
legislativa: a lei orçamentária anual (lei de execução de gastos), a lei de
diretrizes orçamentárias (lei do planejamento operacional) e o plano plurianual
(lei do planejamento estratégico de longo prazo), todas interligadas e
dependentes entre si.
O art. 165 da Constituição prevê que as leis orçamentárias serão
elaboradas por iniciativa do Poder Executivo, o qual tem o dever – iniciativa
vinculada – de elaborar os projetos das leis orçamentárias, recebendo
previamente as propostas dos demais Poderes e órgãos para compatibilização
e unificação, tudo conforme estipulado conjuntamente na lei de diretrizes
orçamentárias, devendo, pois, encaminhá-las ao Poder Legislativo no prazo
legal.
A partir desse momento, a competência para dar seguimento à criação
das leis orçamentárias passa a ser do Poder Legislativo. Assim, temos a
concretização da participação popular no orçamento, através de seus
representantes eleitos, garantindo efetividade ao processo democrático nas
finanças públicas brasileiras.
No Congresso Nacional, a apreciação do projeto de lei orçamentária
ficará a cargo da Comissão Mista permanente, composta de 30 (trinta)
Deputados Federais e 10 (dez) Senadores.
Durante a análise e apreciação do projeto, será possível a todos os
congressistas oferecerem emendas ao projeto de lei orçamentária, a serem
apresentadas na Comissão mista, que sobre elas emitirá parecer, sendo
apreciadas, na forma regimental, pelo Plenário das duas Casas do Congresso
Nacional.
Encerradas as análises, emitido o parecer pela Comissão Mista, o projeto
de lei orçamentária será votado pelo Plenário do Congresso Nacional.
Aprovado pelo Poder Legislativo, o projeto será encaminhado ao
Presidente da República para a respectiva sanção presidencial, promulgação e
publicação no Diário Oficial. Registre-se, entretanto, ser possível ao Presidente
vetá-lo, total ou parcialmente, quando então deverá ser devolvido ao
Congresso Nacional para nova apreciação.
É importante termos em mente que o conteúdo do projeto de lei
orçamentária sob a ótica dos gastos, ou seja, a indicação das despesas que o
Estado pretende realizar no exercício de cada ano - tais como investimentos,
saúde, educação, segurança pública, funcionalismo, pagamento da dívida
pública etc. -, sempre foi tido como uma decisão discricionária e política do
Poder Executivo, a partir da ideia de que tais escolhas "em que gastar"
estariam legitimadas pelo próprio povo por decorrência do processo eletivo
democrático. Da mesma maneira, a execução orçamentária também seguiria
esta lógica, razão pela qual sempre se disse que o orçamento no Brasil seria
meramente autorizativo das despesas e não impositivo, ou seja, não obrigaria à
efetiva realização dos gastos nele previstos.
Entretanto, hoje, percebe-se que há um movimento doutrinário e
jurisprudencial de superação desta compreensão, no sentido da vinculação da
elaboração e da execução das leis orçamentárias aos preceitos constitucionais,
com a preponderância de certas despesas, mais especialmente em relação aos
direitos humanos fundamentais e direitos sociais, uma vez que dotadas de um
caráter diretivo-vinculante ao administrador público. Afinal, como preconizava
Rui Barbosa, a Constituição não contém meros conselhos, avisos ou lições, já
que todas as suas previsões são dotadas de força imperativa.
Aliás, toda a problemática da judicialização das políticas públicas tem
origem num orçamento que não dimensiona adequadamente a despesa com
direitos sociais ou realiza contingenciamentos financeiros imotivados,
acarretando a falta de recursos materiais e humanos para o adequado
atendimento do cidadão.
Esta a razão pela qual tenho afirmado, aqui e alhures, que o orçamento
público não é pautado primordialmente por deliberações de natureza política e
discricionária, mas sim por diretivas constitucionais, sendo impositivo na
elaboração e na sua execução.
A relevância da lei orçamentária foi muito bem traduzida pelo Ministro
aposentado do STF Carlos Ayres Britto (ADI 4048), para quem é "a lei
materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abaixo da
Constituição".
Como se viu, ao final desta segunda-feira (31), a União, através dos seus
Ministros da Fazenda e do Planejamento (Joaquim Levy e Nelson Barbosa),
encaminhou ao Congresso, na pessoa de seu Presidente Renan Calheiros, o
projeto de lei orçamentária anual para o ano de 2016, bem como o plano
plurianual do quadriênio 2016-2019.
Em relação à proposta do Plano Plurianual para o quadriênio de 2016-
2019, constam como eixos estratégicos: a qualidade na educação para a
cidadania e o desenvolvimento social e econômico; a inclusão social e redução
de desigualdades; a ampliação da produtividade e da competitividade da
economia, com ênfase nos investimentos públicos e privados, especialmente
em infraestrutura; o fortalecimento das instituições públicas, com participação e
controle social, transparência e qualidade na gestão. E contempla ações nas
seguintes áreas: saúde, educação, trabalho decente e economia solidária,
agricultura familiar e reforma agrária, comunicações, mobilidade urbana,
transporte terrestre, energia elétrica, petróleo e gás, combustíveis, aviação civil,
portos, moradia digna, mudança no clima, biodiversidade e recursos hídricos.
Por sua vez, em relação ao Projeto de Lei Orçamentária, é feita a
estimativa de receita da União, para o exercício financeiro de 2016, no
montante total de R$ 3.000.324.715.705,00, fixando-se a despesa em igual
valor (art. 1º), assim distribuído: para o Orçamento Fiscal e da Seguridade
Social, a cifra de R$ 2.903.425.049.341,00; para o Orçamento de Investimento,
o valor de R$ 96.899.666.364,00. Entretanto, consta que esta proposta
orçamentária prevê um déficit no resultado primário das contas públicas em
torno de 0,5% do PIB, ou seja, de 30 bilhões de reais, contemplando, ainda, um
crescimento do PIB em torno de 0,2% e uma inflação de 5,4%, além de fixar o
salário mínimo nacional em R$ 865,50.
Enfim, a partir de agora e até o final do ano, assistiremos às intensas
discussões orçamentárias no Congresso, em que se poderá rever a previsão
de receitas e modificar as despesas, inclusive as emendas parlamentares. Até
a transformação final do orçamento em lei, esperemos a superação de
divergências ideológicas e político-partidárias, com a assunção de um
compromisso nacional no sentido de se ampliar a capacidade governamental
em melhor administrar e alocar os recursos destinados à sociedade brasileira,
empregando-os naquilo que nos é efetivamente importante e prioritário,
cabendo a cada um de nós acompanharmos em que se empregará o meu, o
seu, o nosso dinheiro.
Uma radiografia da lei orçamentária

Publicado em 01/10/2015

Já que estamos em plena discussão sobre ajustes no projeto de lei do


orçamento de 2016 – para aumento de receitas e corte de despesas –,
abordaremos o conteúdo da Lei Orçamentária Anual (LOA), buscando
identificar o que é necessário e prioritário constar e ser devidamente
dimensionado, sempre sob a ótica da Constituição Federal e do Direito
Financeiro brasileiro.
Como sabemos, o Orçamento Público é composto de uma tríade legal
sistematicamente integrada: o Plano Plurianual (PPA), lei responsável pelo
planejamento estratégico das ações estatais no longo prazo; a Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO), que define as metas e prioridades da Administração
Pública e orienta a elaboração da lei orçamentária anual; e a própria Lei
Orçamentária Anual (LOA), instrumento legal de execução de gastos e de
planejamento financeiro do Estado, em que se estabelecem a previsão das
suas receitas e a fixação das suas despesas para o período de um ano.
O § 8º, art. 165, da Constituição adverte que “a lei orçamentária anual
não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa”.
Isso em razão de que a superada prática da inclusão de assuntos estranhos no
orçamento, inerente ao jogo político-orçamentário, era jocosamente conhecida
por “caudas orçamentárias” ou, na expressão usada por Rui Barbosa,
“orçamentos rabilongos”.
Podemos dizer que a LOA revela alguns aspectos merecedores de
destaque: o político, ao expor a ideologia e as políticas públicas estatais; o
econômico, ao demonstrar a dimensão financeira das atividades do Estado; o
técnico, por ser elaborado e se concretizar através das normas da
Contabilidade Pública e do Direito Financeiro; o jurídico, por se materializar por
meio de uma lei.
Apesar de consolidar-se em um documento uno, a Lei Orçamentária
Anual é organizada em três partes: I – o orçamento fiscal referente aos
Poderes, fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta; II – o
orçamento de investimento das empresas públicas e; III – o orçamento da
seguridade social.
Em termos gerais, a LOA contempla basicamente as receitas e as
despesas públicas. De um lado, prevê o montante a ser arrecadado; do outro,
estabelece as despesas a serem realizadas.
Na previsão das receitas públicas, constarão os valores estimados a
serem arrecadados de duas formas pelo Estado: a partir do seu próprio
patrimônio ou do patrimônio dos particulares. As receitas originárias do
patrimônio estatal advêm de arrendamentos e alugueres de seus bens móveis
e imóveis, do foro e taxa de ocupação de bens públicos, dos dividendos de
empresas públicas, da exploração da sua riqueza mineral (incluindo minérios e
também petróleo e gás natural), dentre outras. As receitas que derivam do
patrimônio do particular são, principalmente, aquelas de natureza tributária,
compostas, essencialmente, das espécies de impostos, taxas e contribuições
(especialmente das CIDEs e das contribuições sociais), bem como as multas
administrativas. Devemos lembrar, ainda, que o crédito público – materializado
em contratos de empréstimos públicos e pela emissão de títulos públicos – é
hoje um importante e indispensável instrumento de financiamento para o
Estado.
No Brasil, os tributos são, atualmente, a principal fonte de receitas
públicas, tendo também grande representatividade na arrecadação as receitas
financeiras decorrentes das operações de crédito, incluindo o refinanciamento
da dívida pública. O restante, menos de 10% do total, decorre das receitas de
natureza patrimonial, industrial, de serviços, alienação de bens etc.
Embora a arrecadação não esteja vinculada à legislação orçamentária
como ocorre com a despesa, o indicativo do seu volume é fundamental para
uma boa gestão, até porque será a partir do montante financeiro de receitas
previstas que será possível fixar as despesas a serem realizadas.
Assim, para conferir maior efetividade à gestão dos recursos e aproximá-
la da realidade social e econômica, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº
101/2000) ressalta que a previsão das receitas, além de observar as normas
técnicas e legais e a respectiva metodologia de cálculo, deverá considerar os
efeitos das alterações na legislação, a variação de índice de preços, do
crescimento econômico, o PIB e demais fatores relevantes, sendo que as
estimativas de arrecadação devem ser acompanhadas por demonstrativo de
sua evolução, nos três anos anteriores e nos dois anos seguintes àquele a que
se referirem (art. 12, LRF).
Nos últimos anos, o orçamento público federal tem girado em torno de
R$ 3 trilhões em valores arrecadados e, respectivamente, gastos.
Apenas a título exemplificativo, a receita estimada na LOA do Governo
Federal para 2015 foi de R$ 2.982.546.565.652,00 (Lei nº 13.115/2015), e,
para o ano de 2016, a previsão de receita constante do projeto de lei
orçamentária encaminhado recentemente ao Congresso foi de R$
3.000.324.715.705,00.
Quanto às despesas públicas, a doutrina tradicional ainda insiste em
afirmar que a natureza da escolha sobre as despesas públicas é
eminentemente política. Temos opinião diversa, já que existem limites,
parâmetros e prioridades constitucionais e infraconstitucionais para a
realização de todas as despesas públicas. Assim, encontraremos, tanto na
Constituição Federal de 1988 como nas leis específicas do Direito Financeiro,
critérios para a eleição da despesa pública, como também as regras que
conduzem o procedimento para sua realização.
Dentre os inúmeros tipos de despesas que o Estado brasileiro realiza
regularmente, podemos destacar aquelas relativas ao pagamento de
amortização, juros e encargos da dívida pública; pagamento de pessoal e
encargos sociais relativos a servidores civis e militares, ativos,
inativos/aposentados e pensionistas; aquisição de bens móveis e imóveis;
aquisição de equipamentos em geral e material de uso e consumo (incluindo
livros, material escolar, hospitalar, medicamentos etc.); realização de
investimentos e obras em geral (rodovias, hidroelétricas, portos, aeroportos,
habitação, escolas, hospitais etc.); constituição ou aumento de capital de
empresas públicas; pagamento de sentenças judiciais, entre outras.
Para termos ideia da dimensão financeira dos gastos públicos, e
adotando os valores federais do ano de 2014 (publicados no Portal da
Transparência), a área da saúde gastou cerca de R$ 94 bilhões enquanto que
foram destinados R$ 70 bilhões para a assistência social. Quase R$ 92 bilhões
foram empregados na educação enquanto gastou-se R$ 9 bilhões na
segurança pública e R$ 1,7 bilhão com o saneamento. Com a previdência
social, gastou-se nada menos que R$ 478 bilhões, montante muito menor ao
R$ 1,2 trilhão dispendidos no refinanciamento da dívida pública, ou seja, sua
amortização, pagamento de juros e encargos.
Embora todas estas despesas, em regra, atendam a finalidades
públicas, é inegável reconhecer que, diante da escassez de recursos, o
governante deve estabelecer uma hierarquia de prioridades nos gastos.
Primeiro, deve seguir a ordem das despesas constitucionais e legais
obrigatórias. Em seguida, parte-se para as ditas despesas discricionárias, onde
se revelam as escolhas do governante.
Ocorre que, hoje em dia, mais de 90% do orçamento público está
vinculado às despesas obrigatórias, tais como pagamento da dívida pública,
despesas de pessoal e previdência social, dentre outras, não restando muito
espaço para tais escolhas políticas ou ideológicas. E, além disso, diante dos
inúmeros direitos fundamentais e sociais assegurados ao cidadão em nossa
Constituição, como aqueles na área da saúde (art. 196) e da educação (art.
205), em que a Carta prevê expressamente serem “direitos de todos e dever do
Estado”, inequivocamente o governante deverá dar prioridade a esses gastos
em detrimento de outros de menor casta valorativa.
Essa ordem de prioridades pode fundamentar-se a partir da distinção
entre os interesses públicos primários e os interesses públicos secundários.
Enquanto os primeiros estão relacionados à atuação estatal para o
atendimento de necessidades dos cidadãos, como educação, saúde,
segurança, os segundos voltam-se para o atendimento de necessidades
internas da máquina burocrática, de modo que a Administração Pública possa
funcionar devidamente.
Conquanto esses interesses secundários não sejam irrelevantes, não se
pode equipará-los às ações estatais que atendem diretamente à população,
sob pena de se perder de vista o fim ou objetivo para o qual o próprio Estado é
constituído, a saber, prover necessidades concretas da coletividade em
primeiro lugar. Afinal, na noção contemporânea de Estado, este não é um fim
em si mesmo, mas um instrumento a serviço do cidadão. O Estado está
ordenado ao ser humano, e não o inverso.
Portanto, é inequívoco que a definição das políticas públicas e a escolha
feita pelo Estado sobre o que fazer com os recursos financeiros arrecadados
devem seguir sempre o interesse coletivo, pautar-se nas necessidades mais
urgentes da sociedade e ser conduzida a partir dos valores constitucionais
voltados para a consecução e o atendimento dos direitos fundamentais e dos
direitos sociais, provendo uma vida mais digna e justa ao cidadão.
É na Lei Orçamentária Anual que o cidadão identifica a destinação dos
recursos que o Estado arrecada, sendo que nenhuma despesa pública poderá
ser realizada sem estar fixada no Orçamento Anual.
Por isso, o orçamento precisa ser criteriosamente elaborado, a fim de
que os recursos públicos sejam adequadamente empregados na realização da
justiça social, de modo a trazer mudanças positivas para a sociedade,
reduzindo as desigualdades sociais, extirpando a miséria da realidade
brasileira e alavancando o desenvolvimento da economia como mola
propulsora de um círculo virtuoso.
O perfil jurídico das metas e do equilíbrio fiscal

Publicado em 05/11/2015

Tema que tem ocupado as manchetes nas últimas semanas é o do


déficit fiscal do governo federal para o ano de 2015. A cifra negativa estaria na
casa dos R$ 100 bilhões, já incluído o valor do pagamento das pedaladas
fiscais, identificadas pelo TCU recentemente. Este resultado deficitário deve-se,
principalmente, ao aumento de gastos públicos, à queda na arrecadação e ao
aumento dos custos do endividamento.
Apesar de o assunto envolver debates de ordem econômica,
pretendemos analisar o conteúdo jurídico das metas de resultado fiscal,
identificando na legislação do Direito Financeiro e na Constituição o tratamento
dado à matéria e a importância de sua adequação às normas fiscais.
O que fundamenta a necessidade da previsão e atendimento das metas
de resultado entre receitas e despesas é o Princípio do Equilíbrio Fiscal,
implicitamente contido na Constituição Federal de 1988 e expressamente
previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000), esta considerada
importante marco regulatório fiscal no Brasil e instituída para estabelecer uma
mudança de cultura fiscal, ao impor aos gestores públicos um código de
conduta pautada em padrões internacionais de boa governança.
O princípio do equilíbrio fiscal recomenda que, para toda despesa, haja
uma receita a financiá-la, a fim de evitar o surgimento de déficits orçamentários
crescentes ou descontrolados que possam prejudicar as contas públicas
presentes e futuras. Representa a verdadeira estabilidade financeira e é um
dos pilares do crescimento sustentado do Estado, a fim de permitir a realização
das suas finalidades essenciais: entregar à coletividade os bens e serviços
necessários à realização do bem comum, tais como educação, saúde,
segurança pública, saneamento básico, moradia digna, dentre outros.
Mas em um país com um custo elevado de manutenção da dívida
pública (juros e encargos) como o Brasil, além de ser recomendável gastar
apenas o que se arrecada, é necessário obter continuamente um resultado
superavitário destinado a reduzir a dívida pública, de modo a redirecionar este
gasto com despesas financeiras para aquilo que realmente é importante:
atendimento dos serviços públicos fundamentais e dos direitos sociais.
Embora a Constituição Federal de 1988 já não apresente esse princípio
de forma expressa, tal como havia na Carta de 1967 (art. 66, § 3º), o equilíbrio
fiscal é consagrado no novo § 17 do artigo 166, introduzido pela Emenda
Constitucional nº 86/2015 (Emenda do Orçamento Impositivo), que impõe o
contingenciamento nos pagamentos das emendas parlamentares caso seja
verificado que a reestimativa da receita e da despesa possa resultar no não
cumprimento da meta de resultado fiscal estabelecida na lei de diretrizes
orçamentárias. Além disso, a Constituição, no seu artigo 163, atribui à lei
complementar dispor sobre as finanças públicas, o que é feito através da Lei de
Responsabilidade Fiscal.
Nesta linha, a previsão legal expressa do equilíbrio fiscal na LRF
encontra-se no seu § 1º do art. 1º, que estabelece a ação planejada e
transparente para a prevenção de riscos e a correção de desvios capazes de
afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de
resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no
que tange à renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da
seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de
crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição
em Restos a Pagar.
Com igual sentido, o art. 4º, inciso I, alínea a da mesma LRF, determina
que a lei de diretrizes orçamentárias disponha sobre o equilíbrio entre receitas
e despesas. E o § 1º deste mesmo dispositivo determina a elaboração de um
“Anexo de Metas Fiscais”, que integrará o projeto de lei de diretrizes
orçamentárias, em que serão estabelecidas metas anuais, em valores
correntes e constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e
primário e montante da dívida pública, para o exercício a que se referirem e
para os dois seguintes. Nele, deverão estar contidos, dentre outros aspectos, a
avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior; demonstrativo
das metas anuais, (instruído com memória e metodologia de cálculo que
justifiquem os resultados pretendidos), comparando-as com as fixadas nos três
exercícios anteriores, e evidenciando a consistência delas com as premissas e
os objetivos da política econômica nacional.
Mas não é só. Há muitas outras normas na LRF que visam a resguardar
o equilíbrio fiscal e o atingimento das metas de resultados positivos. Uma
destas é a previsão do art. 9º, denominada “limitação de empenho”, derivada
do budget sequestration do modelo fiscal norte-americano, que impõe uma
contenção nos gastos públicos, em despesas consideradas discricionárias,
quando a receita correspondente não se realizar como originalmente previsto
na proposta orçamentária.
Outro exemplo está no art. 14 da LRF que impõe, de maneira rígida,
limites, prazos e condições para a concessão de incentivos e renúncias fiscais.
Por essa regra, a concessão do benefício fiscal dependerá de uma estimativa
de impacto orçamentário, da demonstração de que não afetará as metas de
resultados e de ser acompanhada de medidas de compensação.
Se, por um lado, a ideia de equilíbrio fiscal é importante para limitar
gastos excessivos e desnecessários e coibir gestões irresponsáveis, por outro,
a razão de a Constituição já não contemplar mais expressamente este princípio
está em não se engessar a função regulatória do orçamento na economia.
Algumas correntes econômicas (especialmente da escola Keynesiana)
justificam gastos em períodos de recessão por entenderem ser necessário,
para movimentação da economia nesses momentos de crise, o amplo
investimento do Estado na economia e concessões de incentivos e renúncias
fiscais, especialmente em infraestrutura, em empregos e demais áreas
relevantes para a sociedade, impondo ao Estado gastar mais ou cobrar menos
tributos, não devendo se submeter este instrumento de desenvolvimento
econômico a regras rígidas, sob pena de esvaziar essa relevante função
regulatória e desenvolvimentista.
Todavia, estas mesmas correntes de pensamento econômico entendem
que tal ideia não pode ser convertida em um “cheque em branco” ao
governante para adotar uma gestão desordenada e de desequilíbrio fiscal,
capaz de trazer mais malefícios do que benefícios para a sociedade.
Apenas a título exemplificativo, segundo dados do Banco Central, o
superávit fiscal do ano de 2003 foi de 55 bilhões de reais (3,2% do PIB); em
2004, foi de 72 bilhões de reais (3,5% do PIB); em 2005, foi de 81 bilhões de
reais (3,8% do PIB); em 2006, foi de 75 bilhões de reais (3,2% do PIB); em
2007, foi de 88 bilhões de reais (3,3% do PIB); em 2008, foi de 103 bilhões de
reais (3,4% do PIB); em 2009, foi de 64 bilhões de reais (2% do PIB); em 2010,
foi de 101 bilhões de reais (2,7% do PIB); em 2011, foi de 128 bilhões de reais
(3,1% do PIB); e, em 2012, foi de 104 bilhões de reais (2,3% do PIB).
Portanto, nestes dez anos, acumulou-se um superávit de cerca de R$
870 bilhões para reduzir a dívida pública.
O cenário econômico, porém, começou a mudar a partir de 2013. Para
aquele ano, estabeleceu-se como meta de superávit primário na respectiva
LDO o valor de pouco mais de R$ 108 bilhões (Lei nº 12.708/12) e cumpriu-se
o valor de R$ 91 bilhões. Para o ano de 2014, a meta inicialmente prevista na
LDO foi de R$ 116 bilhões (Lei nº 12.919/13), até que sobreveio a sua
possibilidade de redução pela Lei nº 13.053/2014, e o valor final foi um déficit
de R$ 32 bilhões. Já para o corrente ano de 2015, fixou-se na LDO como meta
de superávit primário o montante de R$ 66,3 bilhões (Lei nº 13.080/15).
É exatamente sobre este valor previsto para o corrente ano que haverá
uma revisão, e sairemos de uma meta de resultado positivo de economia fiscal
(superávit) de R$ 66 bilhões e iremos, provavelmente, para um resultado
negativo (déficit) em torno de R$ 100 bilhões. Tal situação deverá colocar em
marcha mecanismos de contenção de despesas e aumento de arrecadação,
com vistas à preservação do equilíbrio fiscal através da tentativa de cumprir as
metas nos próximos anos.
Pelo princípio da gestão fiscal responsável, as metas representam a
conexão entre o planejamento, a elaboração e a execução do orçamento.
Esses parâmetros indicam os rumos da condução da política fiscal para os
próximos exercícios e servem de indicadores para a promoção da limitação de
empenho e de movimentação financeira.
O princípio do equilíbrio fiscal e as metas de resultado não significam
apenas postulados de ordem econômica ou contábil, que apresentam
parâmetros financeiros ideais a serem implementados pelos governos. Muito
mais do que isto, decorrem de normas jurídicas previstas na Constituição e na
Lei de Responsabilidade Fiscal, fixados anualmente nas leis de diretrizes
orçamentárias, as quais, afinal, são leis em sentido estrito e precisam ser
cumpridas.
De tudo o que vimos, aspecto que merece destaque é o da
constitucionalização das metas de resultado e do equilíbrio fiscal, o que só
reforça a importância destes relevantes institutos do Direito Financeiro e a
necessidade da sua observância.
Se bem aplicados, será possível realizar uma justa arrecadação e a
correta aplicação dos recursos públicos, e alcançar, enfim, a realização dos
objetivos da República brasileira constantes do artigo 3º da nossa Constituição:
construir uma sociedade livre, justa e solidária, desenvolver o país, acabar com
a pobreza e a marginalização e minimizar as desigualdades sociais e regionais,
promovendo o bem de todos.
Democracia participativa na elaboração do orçamento
público

Publicado em 10/12/2015

Ao tempo em que assistimos os debates a respeito da aprovação da Lei


de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA) para o
ano de 2016, e na medida em que a sociedade brasileira vem a cada dia mais
despertando o seu interesse para questões fiscais, um assunto que vem à tona
é o da participação popular no processo de elaboração do orçamento público,
temática conhecida por orçamento participativo.
Como sabemos, a elaboração do orçamento é de iniciativa do chefe do
Poder Executivo em qualquer esfera (União, Estados, DF e Municípios). Sendo
ele um representante da coletividade, eleito democraticamente pelo voto
popular, indaga-se qual seria o real nível de participação do cidadão na criação
do orçamento público. Estaria a coletividade alijada das escolhas e
deliberações orçamentárias pela sistemática da representação, ou haveria
algum mecanismo formal para influenciar direta ou indiretamente as decisões
de onde e como aplicar os recursos públicos?
A resposta está no orçamento participativo, mecanismo através do qual
seria possível o envolvimento da população no processo decisório do
orçamento público. Assim, além do Executivo, que possui o cometido
constitucional de propor o projeto de lei orçamentária, e do Legislativo, cuja
missão é aprová-lo por meio do debate parlamentar, um novo núcleo de
decisão despontaria como instrumento de democracia direta: a participação
direta do povo.
Seria, a nosso ver, uma espécie de terceiro núcleo deliberativo de
questões orçamentárias, que funcionaria paralelamente ao Poder Executivo e
ao Legislativo.
A concretização da participação popular na elaboração do orçamento
público ocorreria através da realização de assembleias locais (municipais,
regionais ou de bairros), onde qualquer integrante da coletividade pode
participar dos debates, elegendo-se representantes ou delegados para
transmitirem e negociarem com o governo as deliberações assembleares.
Haveria, assim, uma maior capilarização na identificação das necessidades
locais, especialmente nos grandes centros urbanos, onde é comum a
Administração Pública se distanciar do cidadão.
Os principais temas de interesse local que são comumente abordados
no orçamento participativo são: saneamento básico, habitação, pavimentação,
educação, assistência social, saúde, circulação e transporte, esportes e lazer,
iluminação pública, turismo, cultura, saneamento ambiental e infância e
juventude.
Apesar da viabilidade do modelo, o fundamento legal para o orçamento
participativo é questionável. Isso porque, não obstante a Constituição Federal
contenha um dispositivo prevendo a iniciativa popular para a elaboração de leis
em geral (art. 61), o art. 165 fixa que, em relação às leis orçamentárias, a
iniciativa será privativa do chefe do Poder Executivo.
A norma mais próxima à ideia de orçamento participativo encontra-se no
art. 29 da Carta, que contém dispositivos estabelecendo a possibilidade de
participação popular nas questões locais. Assim é que o inciso XII prevê a
"cooperação das associações representativas no planejamento municipal" e o
inciso XIII permite a "iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico
do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo
menos, cinco por cento do eleitorado".
Não podemos desconsiderar, também, a previsão contida no parágrafo
único, inciso I, do art. 48 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que dispõe sobre o
"incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante
os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes
orçamentárias e orçamentos".
Nas normas constitucionais e legais indicadas não há, porém, qualquer
menção à vinculação da atividade de elaboração do orçamento pelo Poder
Executivo às propostas populares. Portanto, em regra, o governante não está
obrigado e nem pode ser compelido a levar em consideração as propostas
populares quando da elaboração do orçamento. Resta-nos, assim, considerá-
las como sugestões legitimadas pelo interesse público local.
Devemos, entretanto, realizar algumas reflexões a respeito, já que a
implementação do orçamento participativo apresenta aspectos positivos e
negativos. A primeira das vantagens é a de que haveria um fortalecimento da
cidadania ao incluir a voz social no processo orçamentário. Ademais, permitir-
se-iam escolhas comunitárias sugeridas a partir de suas maiores
necessidades, com legítimo conhecimento de causa. E, ainda, o cidadão teria
amplo acesso e transparência quanto ao custo/benefício do orçamento. Como
desvantagens, haveria um possível enfraquecimento do atual modelo de
representação política. Outrossim, grupos de pressão e movimentos sociais
poderiam atuar diretamente na elaboração do orçamento, afetando o seu
conteúdo com interesses individuais e específicos. Haveria, ainda, a ausência
de conhecimento técnico nas propostas originárias destes conselhos, além da
falta de visão global da peça orçamentária, gerando eventual desequilíbrio
fiscal. Finalmente, o aumento da burocracia poderá engessar e dificultar a
tomada de decisão.
Independentemente das vantagens e desvantagens, o orçamento
participativo, que já se expandiu para vários estados e municípios brasileiros,
foi uma criação tipicamente nacional nos moldes em que praticado hoje, fato
reconhecido pelo Banco Mundial. Estudos indicam que o número de
experiências supera mais de 300 municipalidades (ou entes equivalentes) ao
redor do mundo, o que demonstra o sucesso deste modelo. Neste sentido,
encontramos em diversos países a adoção do mecanismo do orçamento
participativo em suas cidades. Assim foi com Rosário, na Argentina; Saint-
Denis, na França; Montevidéu, no Uruguai; Barcelona, na Espanha; Toronto, no
Canadá; Bruxelas, na Bélgica etc. No Brasil, há diversos exemplos, como em
Vila Velha, no Espírito Santo; Angra dos Reis, Volta Redonda, Barra Mansa e
Niterói, no Rio de Janeiro; Lages, em Santa Catarina; Porto Alegre, no Rio
Grande do Sul etc.
Apesar do cenário descrito, infelizmente, o nível de conhecimento da real
importância do orçamento público ainda é muito incipiente no Brasil, sendo
pouco usual que o cidadão conheça a sua estrutura e elementos básicos e,
quanto mais, tenha o interesse em participar da sua elaboração. Temas fiscais
recorrentes nos noticiários de hoje, como plano plurianual, lei de diretrizes
orçamentárias, superávit primário, responsabilidade fiscal, dentre outros, são
pouco compreendidos, deixando grande parte da sociedade à margem dos
debates.
Seja por uma aparente complexidade da matéria, desconhecimento ou
falta de disponibilidade para compreender o assunto, este distanciamento -
como já me manifestei alhures - conduz ao nefasto efeito de limitar o
importante exercício da cidadania, preocupação revelada por Platão em "A
República" (Livro I, seção 347c), quando advertia que aqueles que não gostam
de política sofrem as consequências de serem governados pelos que gostam.
Em um país com tantas diferenças sociais, econômicas e culturais como
é o Brasil, a implementação de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento
da conscientização fiscal é imprescindível para qualquer nação que pretenda o
bem estar dos seus integrantes. A educação fiscal deve estimular o cidadão a
compreender os seus direitos e deveres cívicos, concorrendo para o
fortalecimento do ambiente republicano e democrático.
O ideal de democratização das políticas públicas é mais do que louvável.
Afinal, se hoje assistimos, nos últimos anos, à nação livremente manifestar a
sua insatisfação com os bens e serviços públicos oferecidos, isto se deve ao
inequívoco amadurecimento da democracia brasileira e à conscientização da
população dos seus direitos de cidadania, decorrentes do texto e do espírito da
Constituição de 1988.
Inequivocamente, o orçamento participativo oferece ao cidadão um canal
para manifestar as suas necessidades. Mas, na seara orçamentária, o tema
precisa ser tratado com cautela, a fim de serem encontrados meios para
potencializar os seus benefícios, sem contaminar-se pelas desvantagens.
Metas fiscais, pedaladas e pedido de impeachment – a
retrospectiva de 2015

Publicado em 07/01/2016

O ano de 2015 foi especialmente importante para o Direito Financeiro.


Isto se deveu, infelizmente, às intempéries enfrentadas pelo Brasil nas finanças
públicas. Mas, se há um lado positivo a considerar, este reside no fato de que o
Direito Financeiro ganhou destaque diuturno nos noticiários e suas normas
passaram a ser percebidas por toda a sociedade brasileira com a devida e
merecida importância.
Ouso parafrasear Pietro Calamandrei (na obra “Eles, os Juízes, Vistos
pelos Advogados”), para dizer que o Direito Financeiro, assim como qualquer
ramo do direito, enquanto ninguém o perturba e o contraria, nos rodeia,
invisível e impalpável como o ar que respiramos, inadvertido como a saúde,
cujo valor só compreendemos quando percebemos tê-la perdido.
Lamentavelmente, a saúde financeira brasileira nos três níveis federativos
acabou debilitada no ano que passou, e somente então se percebeu a
importância do respeito às regras fiscais do nosso ordenamento jurídico.
Um dos eventos fiscais mais questionados e marcantes de 2015 foi o não
cumprimento das metas fiscais fixadas na LDO devido ao desequilíbrio fiscal
motivado pelos excessos de renúncia de receitas (sem as respectivas
compensações) e pelo descontrole dos gastos públicos. Os críticos
destacavam que, em vez de se reconhecer o não atingimento da meta de
superávit estabelecida na LDO e implementar as medidas necessárias para
uma reorganização financeira, preferiu-se adotar o caminho mais cômodo:
alterar a lei, e simplesmente suprimir a meta, fazendo tabula rasa da Lei de
Responsabilidade Fiscal.
O fato é que esta trajetória de descumprimento das metas fiscais já se
iniciara no final de 2014, com a redução realizada pela Lei nº 13.053/14 da
meta de superávit primário fixada na LDO/2014. O mesmo ocorreu com a
LDO/2015, que inicialmente previa um superávit primário de 55 bilhões de
reais, mas acabou sendo alterada pela Lei nº 13.199/15, para permitir um
déficit de 120 bilhões de reais. Inegavelmente, o resultado foi terrível para as
finanças públicas, já que ocasionou o rebaixamento do país e a perda do seu
grau de investimento.
Já para o ano de 2016, a respectiva LDO, recém-aprovada pela Lei nº
13.242/2015, prevê uma meta de superávit primário de 0,5% do Produto Interno
Bruto (PIB), equivalente a R$ 30,5 bilhões, sendo R$ 24 bilhões para União e R$
6,5 bilhões para Estados e Municípios. A censura que se faz, todavia, é a de que,
para tanto, foi prevista uma receita de R$ 10 bilhões de um tributo equivalente à
extinta CPMF, o qual sequer foi aprovado. Espera-se que não estejamos diante
da volta dos orçamentos irreais, meras peças de ficção.
Outro acontecimento fiscal relevante de 2015 foi o julgamento pelo TCU
das contas da Presidência da República, com a opinião final pela sua rejeição.
Infelizmente, no mesmo ano em que se comemoravam os 15 anos de vigência
da Lei de Responsabilidade Fiscal e os 800 anos da Magna Carta (um dos
primeiros diplomas de limitação fiscal ao governante na História ocidental),
assistimos ao Tribunal de Contas da União apontar e julgar inúmeras
irregularidades e infrações às leis financeiras cometidas pelo Governo Central,
que atingiam os pilares de sustentação da LRF: planejamento, transparência e
gestão fiscal responsável.
Dentre estas irregularidades, encontravam-se as tão faladas “pedaladas
fiscais”, procedimento que atrasava os repasses financeiros do Governo aos
bancos públicos para o pagamento de benefícios sociais, em afronta ao artigo
36 da LRF, que proíbe operação de crédito entre uma instituição financeira
estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do
empréstimo. A infração originou-se dos adiantamentos concedidos para a
União pela Caixa Econômica Federal para cobertura dos programas Bolsa
Família, Seguro Desemprego e Abono Salarial, dos adiantamentos concedidos
pelo BNDES para a cobertura do Programa de Sustentação do Investimento, e
dos adiantamentos concedidos pelo FGTS às despesas do Programa Minha
Casa, Minha Vida.
Felizmente, as “pedaladas fiscais” foram quitadas no final de 2015 (em 30
de dezembro). Reconhecendo o entendimento perfilhado pelo TCU, a União
pagou R$ 72,375 bilhões em passivos junto a bancos públicos e ao Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Do total, R$ 55,572 bilhões se referem
aos passivos de 2014 e R$ 16,803 bilhões a obrigações de 2015. Ao que
parece, não irão mais pedalar, ao menos fiscalmente.
Importante marco fiscal do ano que findou - sob aplauso de muitos e alvo
de críticas por parte de outros - foi a promulgação da Emenda Constitucional nº
86/2015, derivada da “PEC do Orçamento Impositivo”, a qual estabelece que
1,2% das receitas correntes líquidas da União serão de execução obrigatória
pelas emendas parlamentares, sendo 50% deste valor destinado à saúde.
Através dessa Emenda à Constituição, insere-se na já complexa equação do
jogo democrático do modelo presidencialista de coalizão uma nova variável na
relação orçamentária entre os Poderes Executivo e Legislativo.
De toda forma, espera-se que o interesse público nacional se sobreponha
aos interesses individuais, políticos ou partidários e as emendas parlamentares
individuais não prevaleçam em detrimento de programas regionais ou nacionais
ou mesmo afetem o imprescindível equilíbrio fiscal.
Não obstante essa vinculação parcial do orçamento para as emendas
parlamentares, lamentavelmente o Congresso Nacional não superou suas
divergências e ainda não aprovou o Projeto de Lei nº 06/2015-CN, que trata da
Lei do Plano Plurianual para o quadriênio 2016-2019, apesar de a Constituição
estabelecer que a vigência do PPA se dê a partir de 1º de janeiro.
Também estamos ainda sem a Lei Orçamentária Anual para o corrente
ano, apesar do Projeto de Lei nº 07/2015-CN já ter sido aprovado no
Congresso Nacional desde 17/12/15. É importante lembrar que a Constituição
determina que o orçamento anual tenha vigência a partir do primeiro dia de
cada ano, pois sem lei orçamentária não é possível gastar, já que é vedada a
realização de qualquer despesa não prevista em lei, proibição essa inclusive
presente no Código Penal (art. 359-D).
A partir de uma interpretação jurídica "duvidosa" de que, na falta de uma
lei orçamentária aprovada tempestivamente, pode-se prorrogar a anterior ou
executar provisoriamente o seu projeto de lei na proporção de 1/12 avos, desde
que isto esteja previsto na LDO, a aprovação do orçamento tem ocorrido
recorrentemente nos meses de fevereiro, março ou abril. Até já houve ano
(1994) em que a aprovação se deu apenas em novembro!
Nos EUA, o mesmo "jeitinho" não ocorre. A legalidade orçamentária é
levada a sério e, na falta de lei orçamentária e de consenso com o Congresso,
nem um centavo é gasto e o Governo implementa o "Shutdown", com a
paralisação temporária de serviços públicos secundários - que não chega a
passar de três semanas - até que venha a edição de lei autorizando gastos.
Não se trata de uma mera formalidade ou rigorismo técnico, mas sim do
mínimo respeito às leis e ao comando constitucional e da deferência aos
princípios republicano e democrático. Afinal, como já dizia Rui Barbosa, a
Constituição não contém meros conselhos, avisos ou lições. Mas, enfim, quem
perde com o atraso e a improvisação orçamentária? Ora, é a sociedade a mais
prejudicada. Com um orçamento público improvisado - sem LOA e nem PPA -,
não se consegue levar adiante as políticas públicas estabelecidas, os planos e
programas sociais ou os investimentos públicos necessários. A incerteza e a
instabilidade financeira só agravam a situação fiscal, que já é de déficit e de
desequilíbrio.
A propósito, em relação à dívida pública, o ano que passou foi
caracterizado pela sua crescente elevação, sobretudo com aumento dos juros
e encargos, devido à ampliação dos gastos e queda na arrecadação. Tal
situação ensejou a volta dos debates sobre a teoria da “dominância fiscal”, em
que a emissão de títulos públicos acaba sendo a primeira alternativa para
fechar as contas, e faz o ajuste fiscal superar a política monetária como melhor
- e talvez único - instrumento para controlar a inflação.
Mas não foram apenas os Poderes Executivo e Legislativo os
protagonistas na seara do Direito Financeiro no ano passado. Merece também
destaque o Poder Judiciário, já que, em agosto de 2015, por unanimidade, o
Plenário do STF decidiu, no julgamento do RE 592.581, que o Poder Executivo,
ao exercer o seu múnus, não pode ignorar os preceitos da Constituição sob o
argumento das limitações orçamentárias e da reserva do possível.
Neste importante precedente, o STF afastou categoricamente os
tradicionais - e abusivamente repetidos - argumentos da reserva do possível e
da violação ao princípio da separação de poderes como justificativa para não
cumprimento de direitos constitucionalmente afiançados relacionados à
dignidade humana. Concluíram os Ministros que o Poder Judiciário pode impor
à Administração Pública a obrigação de realizar obras de reforma e melhorias
em presídios para garantir a dignidade da pessoa humana e o respeito à
integridade física e moral do preso, como forma de preservar a integridade dos
detentos.
Enfim, a expectativa é de que o ano de 2016 seja de desafios e de
consolidação do ordenamento jurídico-fiscal como importante instrumento de
desenvolvimento social e econômico. Temas como aprovação da
Desvinculação das Receitas da União (DRU), retorno da cobrança da CPFM,
legalização dos jogos de azar como nova fonte de arrecadação, ajuste fiscal,
impeachment por afronta à lei orçamentária, dentre outros assuntos do Direito
Financeiro estarão na ordem do dia e serão acompanhados de perto por nós
ao longo deste novo ano que se inicia.
Onze princípios orçamentários para uma gestão
responsável

Publicado em 04/02/2016
No dia 15 de janeiro passado, a Lei Orçamentária Anual de 2016 (Lei nº
13.255/16) foi publicada. Como sabemos, esta é a lei que define e autoriza a
realização das despesas pelo Estado para todo o ano, a partir da estimativa de
receita.
A propósito, não se pode esquecer que a lei orçamentária anual já foi
considerada pelo Ministro do STF Carlos Ayres Britto, no julgamento da ADI
4.048, a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abaixo
da Constituição.
Como vivemos um difícil período de desaceleração da economia, com
uma crescente carga fiscal e excessiva elevação da dívida pública, juntamente
com a eclosão de diversos escândalos de corrupção, de desvio de recursos e
de má gestão no setor público, que agravam ainda mais a já conhecida
incapacidade do Estado brasileiro em garantir aos seus cidadãos o acesso aos
serviços básicos e essenciais de saúde, educação, assistência social,
segurança pública, dentre outros, os temas fiscais vêm gerando maior
preocupação na sociedade e ganhando espaço de destaque nos noticiários em
geral.
Recentemente, assistimos a inúmeras discussões sobre o orçamento
público deste ano, especialmente em relação aos mais de R$ 800 milhões
destinados ao fundo partidário e aos R$ 10 bilhões para emendas
parlamentares, quanto à meta de superávit de R$ 30 bilhões e acerca da
utilização da CPMF ainda não aprovada e da repatriação de dinheiro mantido
no exterior, com o objetivo de fechar as contas. Além disso, também estão em
pauta estudos sobre a aprovação do jogo no Brasil como nova fonte de
arrecadação e a votação da emenda constitucional para a Desvinculação de
Receitas da União (DRU), além das sempre lembradas reformas
previdenciária, tributária e trabalhista.
Para auxiliar os debates, apresentamos e analisamos os denominados
“princípios orçamentários” que parametrizam a atividade financeira.
Diversamente do que se imagina, eles não derivam do bom senso ou de regras
contábeis, mas sim são previstos pelo Direito Financeiro de maneira expressa,
seja na Lei nº 4.320/1964 (Lei Geral dos Orçamentos), seja principalmente na
Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).
O primeiro princípio orçamentário a ser citado é o do equilíbrio fiscal, a
nos indicar que, para toda despesa, deve existir uma receita a financiá-la,
evitando déficits orçamentários crescentes que prejudiquem as contas
presentes e futuras. Afinal, gastos elevados com juros da dívida pública
drenam boa parte dos recursos que poderiam ir para a saúde, educação,
segurança pública, investimentos etc.
Entretanto, cabe esclarecer que não se trata de mera equação financeira
em que se busca uma igualdade numérica ou um "empate" entre receitas e
despesas, devendo ser encarado como um conjunto de parâmetros que
confiram às contas públicas a necessária e indispensável estabilidade e
sustentabilidade fiscal.
O segundo princípio orçamentário que se menciona é o da
responsabilidade, estabelecendo que as estimativas de receitas devem ser
reais e concretas, sob pena de sua não arrecadação frustrar despesas e
programas planejados. Em um momento de desaceleração da economia, com
queda na produção e aumento do desemprego, a redução na arrecadação
tributária deve ser adequadamente considerada.
Como desdobramento temos o princípio orçamentário da limitação, que
condiciona a realização de despesas e a utilização de créditos ao montante
previsto no orçamento, lembrando que a Constituição Federal (art. 167) veda o
início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual, assim
como proíbe a abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia
autorização legislativa e sem indicação dos recursos correspondentes, dentre
outras vedações.
Na sua esteira, temos o importante princípio orçamentário da legalidade,
o qual determina que a Administração Pública realize suas atividades sempre a
partir das previsões de receitas e das autorizações de despesas. Falando em
despesas públicas, estas devem ser realizadas de acordo com o que foi
previsto e autorizado no orçamento, sob pena de se configurar uma conduta
ilícita, prevista no art. 315 do Código Penal, que tipifica o ato de "Dar às verbas
ou rendas públicas aplicação diversa da estabelecida em lei". O Código Penal
ainda tipifica os crimes contra as finanças públicas nos artigos 359-A a 359-H,
com destaque para o art. 359-D, que impõe a pena de reclusão, de 1 (um) a 4
(quatro) anos, para quem "ordenar despesa não autorizada por lei". Porém,
mais relevante é a limitação prevista no inciso II do art. 167 da Constituição
Federal, que veda "a realização de despesas ou a assunção de obrigações
diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais". Temos,
também, o art. 15 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que considera como "não
autorizada, irregular ou lesiva ao patrimônio público" a geração de despesas
em desacordo com a lei.
Outro princípio que merece destaque é aquele que informa que o
orçamento deve ser transparente, coibindo a existência de despesas obscuras
ou imprecisas, em que as previsões de receitas, despesas, renúncias fiscais ou
programas sejam facilmente compreensíveis para todos, tanto para o cidadão
interessado como para os órgãos de fiscalização. Afinal, já vimos que "pedalar"
não faz bem para a saúde fiscal.
Como subprincípios derivados da transparência, temos os princípios
orçamentários da publicidade e da tecnicidade. O primeiro indica que o
orçamento deverá ser divulgado através de todos os meios oficiais de
comunicação, inclusive pela Internet, além de ser publicado em Diário Oficial. O
segundo impõe ao orçamento características que permitam ao usuário sua
ampla compreensão, quais sejam: I – uniformidade ou padronização na
apresentação dos seus dados, possibilitando ao usuário realizar comparações
e análises; II – clareza na evidenciação do seu conteúdo; III – especificação na
classificação e na designação das suas informações, preconizando a
identificação de todas as rubricas de receitas e despesas, apresentando-as de
maneira analítica e detalhada.
Mais um relevante princípio orçamentário é o do planejamento ou
programação, que revela o atributo de instrumento de gestão que o orçamento
possui, devendo apresentar programaticamente o plano de ação do governo
para o período a que se refere, integrando, de modo harmônico, as previsões
da lei orçamentária, da lei do plano plurianual e da lei de diretrizes
orçamentárias. Este princípio revela as diretrizes, metas e prioridades da
Administração Pública, inclusive os programas de duração continuada.
Por sua vez, o princípio orçamentário da exclusividade veda que a lei
orçamentária trate de qualquer outra matéria que não seja referente a receitas
e despesas. Assim, a lei do orçamento anual deverá se prestar, apenas e
exclusivamente, a prever as receitas e autorizar as despesas do Estado,
impossibilitando a inclusão na lei orçamentária de matérias estranhas às
receitas e despesas, que muitas vezes acabavam sendo inseridas por
manobras políticas para se implementarem práticas populistas ou para atender
a pressões do poder. A inclusão desses assuntos estranhos no orçamento,
prática que não era exclusivamente brasileira, ficou comumente conhecida por
"caudas orçamentárias" ou, na expressão usada por Rui Barbosa, "orçamentos
rabilongos".
O princípio orçamentário da unidade determina que a lei orçamentária
seja uma só, reunindo todas as receitas e despesas do Estado, a fim de
permitir uma análise global, proporcionando um controle mais efetivo. Já o
princípio orçamentário da universalidade indica que todos os valores,
independentemente de sua espécie, natureza, procedência ou destinação,
deverão estar contidos no orçamento como sendo um plano financeiro global.
O princípio orçamentário da anualidade indica que o prazo de vigência
da lei orçamentária será anual, devendo esta ser elaborada, votada e aprovada
anualmente. Portanto, este princípio reflete a periodicidade do orçamento.
Há, ainda, o princípio orçamentário da não vinculação de receitas dos
impostos, o qual impede, em regra (com as ressalvas constitucionais), a
vinculação do produto da arrecadação dos impostos - e não dos demais
tributos - a uma destinação específica, seja para uma despesa, um órgão ou
um fundo. Seu objetivo é permitir que o Estado tenha liberdade e flexibilidade
para aplicar os recursos dessa espécie de receita pública de impostos onde for
mais conveniente e necessário, sem estar adstrito a uma despesa previamente
vinculada, garantindo-se, assim, o custeio das despesas que se forem
realizando ao longo do exercício financeiro, inclusive as urgentes, imprevistas
ou extraordinárias.
A propósito desse princípio, tema relevante que iremos abordar em
breve é o da DRU – Desvinculação de Receitas da União (de impostos e
contribuições), que vinha sendo estabelecida na base de 20% da respectiva
arrecadação, conforme as diversas emendas constitucionais que trataram do
tema até o final de 2015, e que, pela PEC 87/2015, pretende-se seja
prorrogada novamente e elevada a 30%.
Enfim, os princípios orçamentários influenciam a elaboração dos projetos
das leis orçamentárias e a posterior aprovação pelo Poder Legislativo, facilitam
a interpretação pelos usuários e interessados e, finalmente, permitem sua
execução de maneira mais ampla e eficaz. Mas, sobretudo, são eles que, na
seara financeira, traduzem e dão efetividade aos valores constitucionais mais
caros da nossa República.
Prós e contras da Desvinculação das Receitas da União

Publicado em 03/03/2016

Um importante tema de Direito Financeiro que entrará em breve na


pauta de discussão no Congresso Nacional, e por isso passará a frequentar os
noticiários do país, é o da Desvinculação das Receitas da União, conhecida
como DRU, objeto da PEC nº 78/2015, que propõe prorrogar até 31/12/2023 as
desvinculações de recursos constitucionalmente vinculados a despesas
específicas (os chamados "recursos carimbados"), majorando-as de 20% (EC
nº 68/2011) para 30%.
O mecanismo constitucional da Desvinculação de Receitas da União
(DRU) foi instituído – no artigo 76 do ADCT, inicialmente pela EC nº 27/2000 –
para permitir que 20% (vinte por cento) das receitas vinculadas da União
fossem destinadas de maneira livre e flexível pelo Governo, com a justificativa
de propiciar uma alocação mais adequada de recursos orçamentários, além de
não permitir que determinadas despesas ficassem com excesso de receitas
vinculadas, enquanto outras áreas apresentassem carência de recursos,
possibilitando, ao final, o financiamento de despesas “incomprimíveis” sem
endividamento adicional da União.
Isso porque o volume de vinculações de recursos financeiros no
Orçamento Geral da União foi se elevando muito ao longo das décadas, a partir
de inúmeras emendas constitucionais que alteraram o relativo equilíbrio
financeiro do texto original, levando a União a buscar outras fontes de recursos
(no caso, a dívida pública) para arcar com o pagamento de despesas
obrigatórias quando dispunha de recursos excedentes em outros itens. Tais
vinculações, somadas a gastos em boa medida inexoráveis – pagamento de
pessoal, benefícios previdenciários, contrapartidas de empréstimos externos –
restringiam a capacidade do governo federal em alocar recursos de acordo
com suas prioridades sem trazer endividamento adicional para a União.
Naquele cenário, o Poder Executivo propôs ao Congresso Nacional em
1994 um projeto de emenda à Constituição que autorizava a desvinculação de
20% de todos os impostos e contribuições federais, formando uma fonte de
recursos livre de carimbos. Foi criado, então, o Fundo Social de Emergência,
posteriormente denominado Fundo de Estabilização Fiscal, que vigorou até 31
de dezembro de 1999. A partir do ano 2000, foi reformulado e passou a se
chamar DRU – Desvinculação de Receitas da União, tendo sua última
prorrogação aprovada pelo Congresso Nacional até 31 de dezembro de 2015,
pela Emenda Constitucional nº 68/2011.
Neste momento, o mecanismo da DRU não está mais vigendo, razão do
tema encontrar-se dentro das prioridades da pauta de “ajustes fiscais” do
Governo Federal.
Segundo o texto da Proposta de Emenda à Constituição nº 87/2015,
uma vez aprovado, o artigo 76 do ADCT passará a vigorar da seguinte
maneira: “São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro
de 2023, trinta por cento da arrecadação da União relativa às contribuições
sociais, sem prejuízo do pagamento das despesas do Regime Geral da
Previdência Social, às contribuições de intervenção no domínio econômico, às
taxas e à participação no resultado da exploração de recursos hídricos para
fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais, já instituídas
ou que vierem a ser criadas até a referida data, e às destinações a que se
refere a alínea “c” do inciso I do caput do art. 159 da Constituição. Parágrafo
único. Excetuam-se da desvinculação de que trata o caput a arrecadação da
contribuição social do salário-educação a que se refere o § 5º do art. 212 da
Constituição, a participação no resultado da exploração de petróleo ou gás
natural e as transferências aos Estados, Distrito Federal e Municípios previstas
no § 1º do art. 20 da Constituição.”
Conforme sua exposição de motivos, essa PEC “altera a forma de
cálculo da DRU, de forma a limitar seu alcance e aumentar sua efetividade”.
Percebe-se que a nova proposta, além de majorar de 20% para 30% a
desvinculação das receitas das Contribuições Sociais e das CIDEs, não mais
menciona os impostos, mas passam a integrar o mecanismo as receitas dos
Fundos Constitucionais FCO/FNE/FNO, das Taxas e das Compensações
Financeiras da União de Recursos Hídricos e Minerais. Ficam fora da
desvinculação o salário-educação, destinado ao financiamento de programas,
projetos e ações voltados para o financiamento da educação básica pública, e
a distribuição do resultado da exploração de petróleo ou gás natural aos
Estados, DF e Municípios.
Antes de apresentarmos os argumentos pró e contra, é importante
recordarmos que a Constituição Federal, no seu artigo 167, inciso IV, já
disciplina o princípio orçamentário da não vinculação dos impostos, ao
prescrever ser vedada "a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou
despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a
que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e
serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e
para realização de atividades da administração tributária, como determinado,
respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de
garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art.
165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo". O referido § 4º diz que "é
permitida a vinculação de receitas próprias geradas pelos impostos a que se
referem os arts. 155 e 156, e dos recursos de que tratam os arts. 157, 158 e
159, I, a e b, e II, para a prestação de garantia ou contragarantia à União e
para pagamento de débitos para com esta".
Dos dispositivos mencionados, é importante destacar que o § 2º do art.
198 da Constituição traz a exceção para a aplicação anual de recursos
mínimos em ações e serviços públicos de saúde (dispositivo regulamentado
pela LC nº 141/2012). Por sua vez, o parágrafo único do art. 204 faculta a
vinculação de certo percentual das receitas tributárias (o que inclui receita de
impostos) a programa de apoio à inclusão e promoção social, proibindo,
entretanto, a aplicação desses recursos no pagamento de despesas com
pessoal e encargos sociais, serviço da dívida ou de qualquer outra despesa
corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados. Já o
art. 212 determina a aplicação de percentual mínimo da arrecadação de
impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino.
Pois bem, o principal argumento da linha que é favorável à DRU é o da
flexibilidade orçamentária, na medida da necessidade de maior
discricionariedade alocativa como instrumento de gestão governamental, para
garantir autonomia ao Poder Executivo na definição das prioridades de gastos
conforme suas pretensões e objetivos.
Os seus defensores afirmam que a DRU seria uma importante
ferramenta na gestão da política fiscal ao permitir que recursos que estejam
disponíveis em algum órgão ou instituição sejam destinados para outras
finalidades, além de facilitar o cumprimento da meta de superávit primário.
Segundo os Ministérios do Planejamento e da Fazenda, a DRU é necessária
"pois evita que determinadas áreas fiquem com excesso de recursos
vinculados, enquanto outras apresentem carência de recursos".
Um dos questionamentos daqueles que são contrários à DRU está
baseado na excessiva concentração de poder financeiro nas mãos da União, o
que já vinha se desenvolvendo com o aumento progressivo da carga tributária
das contribuições sociais e econômicas (que são receitas federais), e no fato
de que a DRU somente potencializaria essa concentração, fenômeno que traz
reflexos negativos ao pacto federativo e ao necessário equilíbrio distributivo
entre recursos e atribuições dos entes.
Porém, o principal argumento contrário é o de que a desvinculação das
receitas da União, sobretudo àquelas relativas às contribuições sociais, além
de afetar a própria natureza do tributo vinculado, reduz os recursos disponíveis
destinados ao atendimento dos direitos sociais e fundamentais do cidadão,
retirando daquela alocação específica, constitucionalmente vinculada a direitos
relacionados ao mínimo existencial e à dignidade da pessoa humana (por
exemplo: saúde e educação), o percentual da DRU, que acaba sendo utilizado
em outras despesas e finalidades menos nobres e até mesmo para a
realização de superávit fiscal.
Enfim, sendo ou não aprovada a renovação da DRU pelo Congresso,
tomando de empréstimo as recentes e sábias palavras do Ministro do STF
Marco Aurélio Mello, fato é que "a Constituição precisa ser um pouco mais
amada". Se a Lei Maior elege certos direitos como prioritários, devemos nos
acautelar de que o mecanismo da DRU, embora não afete diretamente a
obrigação de cumprimento dos percentuais mínimos constitucionais para
direitos sociais (tais como saúde e educação), não acabe por transformar estes
percentuais de valores mínimos em montante máximo, pois as vicissitudes
experimentadas por tais setores em nosso país não devem jamais ser
olvidadas.
Desonerações tributárias valem a pena?

Publicado em 07/04/2016

A eficácia de políticas de concessão de incentivos fiscais através de


mecanismos de desonerações e renúncias de receitas tributárias, objetivando
estimular e desenvolver determinados segmentos econômicos e sociais, é um
tema sempre recorrente.
E este assunto se torna ainda mais controvertido quando se tem
noticiado ultimamente que o volume financeiro de tais medidas - tanto no
governo federal, como em muitos estados e municípios - chega a atingir
algumas centenas de bilhões de reais nos últimos anos, afetando a saúde das
contas públicas.
No fundo, a questão que está por trás dessa temática remonta à velha
indagação de quem é capaz de melhor utilizar e destinar o dinheiro em função
dos interesses e necessidades públicas: o Estado ou o particular?
Na realidade, o efeito financeiro de uma renúncia de receita e de um
gasto é o mesmo, já que aquele determinado recurso financeiro cujo ingresso
era esperado nos cofres públicos deixa de ser arrecadado por força de alguma
espécie de renúncia fiscal. Por isso, a expressão usual atribuída em inglês a
esses benefícios é "Tax Expenditure", a qual pode ser traduzida como "gasto
tributário".
Esses mecanismos se operacionalizam, essencialmente, através de
anistias, remissões, subsídios, créditos fiscais, isenções, redução de alíquotas
ou base de cálculo. Exemplos clássicos são os da Zona Franca de Manaus,
SUDAM e SUDENE, REPORTO, REINTEGRA, REPETRO, desonerações
pontuais de tributos incidentes na industrialização (IPI), na circulação (ICMS)
ou em serviços (ISS) para estimular o consumo, ou na folha de pagamentos,
para estimular a empregabilidade.
O efeito potencial esperado pelo Estado - favorecimento a determinados
setores, atividades ou regiões - é o incentivo à adoção de uma determinada
prática ou conduta do beneficiário do incentivo, que ofereça e gere um ganho à
comunidade diretamente relacionada ou à sociedade em geral. Já o efeito
concreto, sob o ponto de vista da Fazenda Pública, é a redução na
arrecadação e, para o particular beneficiado, é o aumento da disponibilidade
econômica e financeira.
O que se questiona, porém, é se esses incentivos fiscais são mais ou
menos eficientes em relação aos subsídios ou transferências financeiras
diretas, ponderando se o custo dos incentivos fiscais concedidos gera como
contrapartida os resultados esperados (custo/benefício), e se esses resultados
são equivalentes ou superiores aos da aplicação direta dos subsídios ou
transferências financeiras. Noutras palavras: deixar de arrecadar determinados
tributos em certas circunstâncias gera um resultado superior do que aplicá-los
diretamente?
Ocorre que, em um país com as características do Brasil – de
dimensões continentais e repleto de diferenças regionais econômicas, sociais e
culturais –, estruturado como federação, outra inquietude se revela
preocupante nessa temática: a guerra fiscal entre os entes federativos, disputa
que ocorre na busca da atração de investimentos, empreendimentos e recursos
privados para o seu respectivo território, a partir da concessão de incentivos
fiscais, com o objetivo de gerar mais renda, empregos, crescimento econômico
e desenvolvimento local.
Os críticos alertam que, como não há comprovação quantitativa de que
os resultados dos investimentos realizados são superiores ao valor das
renúncias concedidas, haveria dúvidas se a aplicação direta dos recursos
abdicados geraria maior benefício para aquela sociedade em vez da concessão
direta dos estímulos.
Ademais, a eficácia econômica desta conta financeira deve levar em
consideração que o maior desenvolvimento de determinada localidade
favorecida pelos incentivos fiscais gerará, naturalmente, um aumento
populacional e maior demanda por serviços públicos, especialmente os de
saúde, segurança, transporte e saneamento, acarretando, por decorrência, um
maior gasto da máquina estatal.
Sob a ótica do equilíbrio federativo, outro questionamento surge, na
medida em que os entes federativos mais desenvolvidos detêm maior
capacidade para oferecer benefícios e suportar por mais tempo as renúncias
fiscais, atraindo para si número superior de investimentos, prejudicando ainda
mais os entes menos desenvolvidos.
E, sob a perspectiva nacional e a partir de uma visão global da
federação, não haveria um ganho efetivo, mas apenas o deslocamento dos
investimentos de um local para outro. Além disso, a multiplicação e banalização
da prática acarreta a perda da eficácia do estímulo, com a inexorável redução
global da arrecadação.
No lado empresarial as críticas também surgem. Uma delas é relativa à
questão do desequilíbrio concorrencial, decorrente da desvantagem
competitiva imposta às empresas não agraciadas pelos benefícios fiscais.
Questiona-se também a eficiência alocativa dos fatores de produção, uma vez
que o empreendimento se estabelecerá em localidade escolhida unicamente
por força dos benefícios fiscais e não pelas suas características próprias,
deixando de considerar fatores como o distanciamento do seu mercado
consumidor e de fornecedores, custos de transporte e logística, a deficiência de
qualificação da mão de obra e de infraestrutura etc.
No viés ideológico, o debate ganha colorido e com reflexos políticos, ao
se ponderar que o direcionamento dos recursos públicos oferecidos ao setor
privado cria uma imagem de Estado interventor e diretivo, se comparado à
ideia de Estado liberal, no caso de este, ao invés de vincular a aplicação de
recursos, simplesmente transferir para o setor privado a decisão de alocação
de recursos originários das renúncias fiscais nas áreas que indicar como
prioritárias.
Sem desconsiderar a necessidade de otimização dos resultados
pretendidos por uma ou outra via, fato é que, enquanto os subsídios ou
transferências diretas de recursos financeiros são obrigatoriamente registrados
nos orçamentos pelo valor efetivamente despendido, como espécie de despesa
pública – o que demanda uma reavaliação anual da conveniência e interesse
da sua manutenção –, os montantes financeiros dos incentivos fiscais
concedidos através de renúncias não são claramente quantificados e, por
consequência, não são adequadamente registrados nas peças orçamentárias,
dificultando seu controle e percepção do resultado, não apenas pelo gestor
público, como também, e principalmente, pela sociedade. Os mais críticos
chegam a chamar esta situação de “caixa preta das renúncias fiscais”, dadas
as dificuldades em se identificarem os destinatários das benesses, os valores
renunciados e, mais ainda, os resultados positivos obtidos.
Pautada pelos ideais de transparência e de controle fiscal, a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000), vislumbrando o mesmo efeito
matemático entre a renúncia de receita e um gasto, sabiamente atribui às
renúncias de receitas igual importância a que dá às despesas públicas. Aliás, a
LRF logo no seu artigo 1º expressamente consignou que a responsabilidade na
gestão fiscal pressupõe, dentre outras medidas, “a obediência a limites e
condições no que tange a renúncia de receita” (§1º).
Diante desta norma legal (e não mera recomendação ou boa prática
orçamentária), para conferir maior racionalidade, controle e transparência, a
LRF determinou em seu artigo 14 que a concessão ou ampliação de incentivo
ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá
estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no
exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao
disposto na lei de diretrizes orçamentárias, bem como observar pelo menos
uma das seguintes condições: I – demonstração pelo proponente de que a
renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, e de que
não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de
diretrizes orçamentárias; II – estar acompanhada de medidas de compensação,
por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas,
ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
Ficam ressalvadas desta regra as alterações das alíquotas dos impostos
previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153 da Constituição Federal de 1988 (II,
IE, IPI e IOF), dada a sua natureza extrafiscal.
Essas exigências, aliás, acompanham a previsão do art. 165, § 6º, da
Constituição, o qual impõe que o projeto de Lei Orçamentária Anual seja
acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e
despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios
de natureza financeira, tributária e creditícia.
Independentemente dos aspectos e convicções ideológicas, econômicas
e jurídicas, existem experiências de sucesso e também de fracasso nas
políticas de concessão de incentivos fiscais, devendo cada uma delas ser
avaliada e considerada individualmente.
Não obstante, sempre que decidir adotá-la, o administrador público
deverá observar e respeitar as regras jurídicas para a sua concessão,
sobretudo aquelas previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal (artigos 1º e 14)
e na Constituição Federal (art. 165), para que interesses ideológicos ou
políticos não se sobreponham ao interesse público e afetem o equilíbrio e a
saúde das contas públicas, prejudicando, ao final, o cidadão.
Avanços e retrocessos nos 16 anos da Lei de
Responsabilidade Fiscal

Publicado em 05/05/2016

Hoje, dia 05 de maio de 2016, a Lei Complementar nº 101/2000,


denominada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), completa exatos 16 anos
de vigência. Embora haja muito que se comemorar nesse período, devemos
reconhecer que a sua observância e respeito por nossos governantes têm
deixado muito a desejar.
Após um virtuoso ciclo positivo e ascendente de ajustes nas finanças do
país na sua primeira década de vigência, que se materializou pela
reorganização das contas públicas e busca pelo equilíbrio fiscal, desenha-se,
infelizmente, um retrocesso fiscal nos últimos anos, que se espera seja logo
superado.
A atual realidade é a de que a gestão fiscal responsável, imperativo que
fundamenta a LRF, vem sendo olvidada pelas três esferas federativas. Apesar
de a lei ter sido instituída para estabelecer um código de conduta aos gestores
públicos, pautada em padrões internacionais de boa governança e voltada para
a preservação da coisa pública, tendo a probidade e a conduta ética do
administrador público como deveres jurídicos positivados, o que temos visto
ultimamente não reflete minimamente o espírito da res publica.
A esperança de mudança de postura do administrador público tem se
demonstrado inalcançada diante da realidade de inúmeras unidades da
federação que não vêm conseguindo pagar os salários e aposentadorias de
seus servidores, honrar os contratos de seus fornecedores, e nem garantir
minimamente os serviços públicos essenciais como saúde, educação e
segurança pública.
Já tivemos oportunidade de destacar (O Globo, 20/4/2016) que se veem
hoje dezenas de bilhões de reais sendo renunciados por políticas de
desoneração fiscal sem a devida compensação financeira, como exige a LRF
(art. 14). As despesas com pessoal dos entes vêm ultrapassando em muito os
limites previstos em lei (art. 19, LRF). O desequilíbrio financeiro e o
descumprimento de metas fiscais tornam-se rotina em vilipêndio da regra fiscal
(arts. 1º e 4º da LRF). O assustador gigantismo da dívida pública afronta os
princípios legais que a regem (arts. 30 e 31 da LRF). E a falta de planejamento
e de respeito às leis orçamentárias as tornam peças de ficção shakespeariana.
Este cenário não era o esperado para estes 16 anos de LRF. Políticas
populistas e eleitoreiras, despesas desprovidas de qualidade e de legitimidade,
desequilíbrio entre receitas e despesas públicas, geração de déficits
impagáveis, ciclo orçamentário irreal, desconexo e desprovido de efetividade
são práticas que não podem mais perdurar numa nação que pretenda o bem-
estar dos seus integrantes e a criação de uma sociedade mais digna e justa.
Não apenas para dar efetividade à política de estabilização fiscal que se
implementava em fins da década de 1990 e início de 2000, e para
regulamentar dispositivos da Constituição Federal de 1988 que demandavam
uma lei complementar sobre matérias financeiras, a promulgação da LRF foi
instituída para apresentar um novo marco regulatório fiscal no Brasil, baseado
no planejamento, na transparência, no controle e equilíbrio das contas públicas
e na imposição de limites para determinados gastos e para o endividamento.
A partir da lei, pretendeu-se conferir maior efetividade ao ciclo
orçamentário, ao regular e incorporar novos institutos na lei orçamentária anual
e na lei de diretrizes orçamentárias, voltadas para o cumprimento das metas
estabelecidas no plano plurianual. Desejou-se impor a cobrança dos tributos
constitucionalmente atribuídos aos entes federativos para garantir sua
autonomia financeira, estabelecendo-se condições na concessão de
benefícios, renúncias e desonerações fiscais. Buscou-se obrigar a indicar o
impacto fiscal e a respectiva fonte de recursos para financiar aumentos de
gastos de caráter continuado, especialmente em se tratando de despesas de
pessoal. Fixaram-se limites para a ampliação do crédito público com vistas ao
controle e redução dos níveis de endividamento. E criaram-se sanções de
diversas naturezas em caso de descumprimento das normas financeiras.
No cenário internacional, especialistas e organismos multilaterais já
enalteceram o Brasil ao editar a LRF, considerando-a uma das mais
abrangentes e austeras do mundo. Mas a adoção de uma lei de
responsabilidade fiscal não foi uma exclusividade brasileira. Diversos países do
mundo – como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Áustria, Bélgica, Nova
Zelândia – passaram por situações que, igualmente, demandaram ações nesse
sentido e acabaram por desenvolver e inserir nos seus ordenamentos jurídicos
normas dessa natureza. Na América Latina, Argentina, Brasil, Chile,
Colômbia, Equador e México adotaram leis de responsabilidade fiscal,
especialmente por pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco
Internacional de Desenvolvimento (BIRD), como contrapartida aos acordos
financeiros firmados.
Merecem destaque também os três pilares que fundam a LRF: o
planejamento, a transparência e o equilíbrio fiscal.
O planejamento orçamentário foi devidamente organizado na LRF ao se
impor a implementação de um ciclo fiscal caracterizado pela responsabilidade
gerencial de longo prazo e pela qualidade do gasto público, com a devida
legitimidade conferida pela assim chamada trindade orçamentária: plano
plurianual (PPA), a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e a lei orçamentária
anual (LOA). Dentro deste escopo, o acompanhamento de resultados do
orçamento foi outro grande marco da LRF, já que de nada adiantava um
orçamento financeiro bem elaborado e dimensionado, se este não produzisse
resultados concretos e visíveis. Associar os números orçamentários às metas
propostas e mensurar se estas foram alcançadas é uma das virtudes do novo
ciclo orçamentário.
A transparência fiscal na prestação de contas foi desenhada de forma
exemplar na LRF, com a obrigação de divulgação em veículos de fácil acesso,
inclusive pela Internet, das finanças e dos serviços públicos, possibilitando a
qualquer cidadão acompanhar diariamente informações atualizadas sobre a
execução do orçamento e obter informações sobre recursos públicos
transferidos e sua aplicação direta (origens, valores, favorecidos). Mas além da
disponibilização de informações, a LRF criou novos controles contábeis e
financeiros aplicáveis isonomicamente aos Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário, aos Tribunais de Contas e Ministério Público, os quais são obrigados
a publicar suas demonstrações fiscais. Portanto, transparência e controle na
gestão passam a ser um binômio constante a partir da LRF.
Também foi indiscutível a contribuição da LRF para a busca do equilíbrio
das finanças públicas no Brasil nos três níveis da federação. Não apenas no
que se refere ao saneamento e reorganização da dívida pública, como também
quanto aos mecanismos de limitação de gastos e a criação de metas de
superávit fiscal.
Por outro lado, há, ainda, mecanismos legais previstos na LRF não
regulamentados – tais como o Conselho de Gestão Fiscal (art. 67) e a
imposição de limites para a dívida pública federal – e outros que merecem ser
revisitados, especialmente aqueles relativos à eficácia das regras das
limitações com despesa de pessoal que, não obstante as previsões legais
constantes da LRF, continuam gradativamente a se expandir.
Não se esqueça também da necessária padronização e harmonização
conceitual para se permitir a devida aplicação e efetividade da norma,
mormente em razão de que os Tribunais de Contas, sobretudo dos Estados,
ainda não têm uma interpretação uniforme de vários dispositivos da LRF, e os
ditos "atalhos interpretativos" vêm permitindo a alguns gestores públicos
encontrarem caminhos alternativos para superar as limitações e condicionantes
da lei e, sobretudo, para não verem aplicadas contra si as sanções pelo seu
descumprimento.
Enfim, o que podemos dizer nestes 16 anos de vigência é que a Lei de
Responsabilidade Fiscal é uma obra jurídica dinâmica e inacabada, que exige
constante evolução e aperfeiçoamento. Garantir sua efetividade, permitindo a
discussão da qualidade e dimensionamento das receitas e das despesas, com
o necessário controle das finanças públicas, faz parte de um projeto de
desenvolvimento nacional sustentável.
Do tributo ao crédito público – uma nova realidade
fiscal

Publicado em 02/06/2016

Em abril deste ano, o STF iniciou o julgamento de mérito sobre a fórmula


de cálculo – se incidem juros simples ou capitalizados – para o pagamento da
dívida pública dos Estados com a União (MS 34.023, MS 34.110 e MS 34.122),
tendo sido suspenso por 60 dias com a recomendação da Corte para que as
partes iniciassem tratativas na busca de um acordo. Recentemente, a imprensa
noticiou que os Governadores de Estado iniciaram mais uma rodada de
negociações com a União sobre o tema, agora já com a participação da nova
equipe econômica do Governo interino do Presidente Temer.
Mas o pano de fundo desta demanda judicial é a atual realidade
brasileira de crescimento desordenado da dívida pública, adotando-se o crédito
público como alternativa complementar de receita, já que a arrecadação
tributária vem se mostrando insuficiente para cobrir os gastos estatais.
Não se nega que este mecanismo seja um relevante instrumento de
financiamento do Estado no Brasil como também em grande parte das nações.
Não obstante, a sua utilização deve ser realizada de maneira equilibrada e
sustentável, mormente em um país como o nosso, cujas taxas de juros são
historicamente astronômicas, o que dificulta sobremaneira a sua solvência.
As fontes de recursos públicos de que o Estado brasileiro se utiliza
podem se originar: a) do patrimônio estatal: da exploração de atividades
econômicas por entidades estatais ou do seu próprio patrimônio, tais como as
rendas do patrimônio mobiliário e imobiliário do Estado, receitas de aluguel e
arrendamento dos seus bens, de preços públicos, compensações financeiras
da exploração de recursos naturais e minerais (royalties), de prestação de
serviços comerciais e de venda de produtos industriais ou agropecuários; b) do
patrimônio do particular: pela tributação, aplicação de multas e penas de
perdimento, recebimento de doações, legados, heranças vacantes etc.; c) das
transferências intergovernamentais: relativa à repartição das receitas tributárias
transferidas de um ente diretamente para outro ou através de fundos de
investimento ou de participação; d) dos ingressos temporários: através dos
empréstimos públicos, ou da utilização de recursos transitórios em seus cofres,
como os depósitos em caução, fianças, operações de crédito por antecipação
de receitas etc.
No Brasil, os tributos já foram, até bem pouco tempo, a principal fonte de
receitas públicas. Porém, atualmente, a maior representatividade da
arrecadação está nas receitas financeiras decorrentes das operações de
crédito, chegando a ultrapassar 50% do orçamento. O restante, menos de 10%
do total, decorre das receitas de natureza patrimonial, industrial, de serviços,
alienação de bens etc.
As operações de crédito público - também denominadas de ingressos
temporários - se concretizam através de contratos, sejam eles específicos e
diretos entre o credor e o devedor, sejam eles operacionalizados através da
emissão pulverizada de títulos públicos (p. ex., Bônus do Tesouro Nacional,
Obrigações do Tesouro Nacional, Letra Financeira do Tesouro Nacional, Nota
do Banco Central e Letra do Tesouro Nacional). Temos, ainda, a operação de
crédito por antecipação de receita, que se trata de uma autorização para que o
tesouro público possa contrair uma dívida de curto prazo, a ser liquidada
quando da entrada do numerário referente a uma receita pública futura a ela
vinculada, destinando-se a atender a insuficiência momentânea de caixa.
Importante esclarecer que é comum encontrarmos uma distinção entre
as receitas públicas e os ingressos públicos, não se considerando estes
últimos como uma receita pública propriamente dita, já que são entradas
temporárias ou meramente transitórias, com obrigação de posterior devolução.
Este entendimento caracteriza como receita pública apenas as entradas
definitivas nos cofres públicos.
De acordo com dados do Banco Central, a dívida bruta dos governos,
tomadas conjuntamente as três esferas da Federação, girava em torno de 57%
em 2013, 63% em 2014 e 66% em 2015. Segundo o Projeto de Lei de
Diretrizes Orçamentárias para 2017, encaminhado ao Congresso no último dia
15 de abril, a previsão do percentual da dívida pública bruta para os próximos
anos girará em torno de 75% do PIB, o que revela um crescimento significativo
e preocupante, sobretudo diante de um cenário de desaceleração da
economia, queda na arrecadação e déficit fiscal.
O tamanho da dívida pública - hoje em torno de R$ 2,9 trilhões - não é
por si só o elemento preocupante, mas sim a qualidade do seu custo. Desde
julho de 2015 a taxa SELIC está em 14,25% ao ano, sendo certo que a cada
0,25 ponto percentual de majoração a despesa com juros sobe cerca de R$ 6
bilhões. Nos últimos 12 meses, o Brasil pagou cerca de R$ 500 bilhões em
juros da dívida.
É importante lembrar que a Lei de Responsabilidade Fiscal possui um
capítulo próprio para tratar da temática da dívida pública (arts. 29 a 42), com o
objetivo de administrar o crescente e desproporcional passivo da dívida pública
existente no momento da sua edição, bem como controlar o endividamento
público futuro, de maneira a permitir o crescimento sustentado do Estado
brasileiro. Segundo a Exposição de Motivos da LRF, dentre outros
propósitos, a lei "tem como objetivo a drástica e veloz redução do déficit público
e a estabilização do montante da dívida pública em relação ao Produto Interno
Bruto da economia".
Para tanto, a LRF estabelece inúmeras regras fiscais que impactam a
gestão da dívida pública nos três níveis de governo: federal, estadual e
municipal. Inicia fixando conceitos básicos de dívida pública. Determina limites
para endividamento e operações de crédito, prevendo regras para a
recondução da dívida aos limites de endividamento, na busca do equilíbrio
fiscal. E sistematiza as normas para a realização das operações de crédito,
inclusive das conduzidas pelo Banco Central, além de prever regras sobre
garantias das operações.
Exatamente para realizar estes ideais, o art. 30 da LRF prevê a
necessidade de fixação de limites para a dívida pública e para as operações de
crédito, que serão fixados em percentual da receita corrente líquida para cada
esfera de governo e aplicados igualmente a todos os entes da Federação,
constituindo, para cada um deles, limites máximos, sendo seu atendimento
verificado quadrimestralmente.
Cabe registrar que, infelizmente, até o momento, os limites globais da
dívida consolidada da União ainda não foram fixados, sendo estes
estabelecidos apenas para Estados, DF e Municípios (Resoluções 40 e 43 do
Senado Federal). O Projeto de Resolução 84, de 2007, que encaminhava ao
Senado Federal proposta de limites globais para o montante da dívida
consolidada da União, fixava o limite para a Dívida Consolidada Líquida da
União em valor equivalente a 3,5 vezes a Receita Corrente Líquida, e
estabelecia como penalidade para o descumprimento do limite a proibição para
contratar novas operações de crédito. Ocorre que a tramitação do PRS
84/2007 não foi ainda concluída e a União permanece sem um limite máximo
para sua dívida, não obstante a obrigação constitucional e legal para a fixação,
transcorridos mais de 27 anos desde a promulgação da Constituição e 16 anos
desde a publicação da LRF.
Em um país como o Brasil, com um dos mais elevados custos do mundo
de manutenção da dívida pública (juros e encargos), o respeito ao equilíbrio
fiscal e a obtenção contínua de resultado superavitário são condições
essenciais para que se possa reduzir a dívida pública, evitar legar às futuras
gerações um fardo excessivo de pagamento de contas atuais, bem como
redirecionar este gasto de centenas de bilhões de reais em despesas
financeiras com o que realmente é importante para uma nação que pretende o
bem-estar da sua população: atendimento dos serviços públicos fundamentais
e dos direitos sociais.
Estado de calamidade financeira e a Lei de
Responsabilidade Fiscal

Publicado em 07/07/2016

Um assunto fiscal que vem ocupando recorrentemente o noticiário nas


últimas semanas, com amplo destaque e gerando grande inquietação, é a
decretação do estado de calamidade pública no âmbito financeiro do Estado do
Rio de Janeiro. Entretanto, não vimos ainda a abordagem dessa questão em
relação à previsão normativa do "estado de calamidade pública" constante
expressamente da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000), cabendo-
nos, assim, trazer ao debate esta questão.
O Governo do Estado do Rio de Janeiro publicou, no dia 17 do mês
passado, em edição extraordinária do Diário Oficial estadual, o Decreto nº
45.692/2016, através do qual se declarou o estado de calamidade pública no
âmbito da administração financeira fluminense.
O cenário fiscal que justificou tal regime era representado
financeiramente, pelo lado da receita, por uma queda anual na arrecadação,
que se repetia desde 2012, no montante de cerca de R$ 3 bilhões em royalties
e participações especiais, e de quase R$ 4 bilhões de ICMS; já pelo lado da
despesa, verificou-se, entre os anos de 2009 e 2015, um crescimento nos
gastos com pessoal da ordem de R$ 5,5 bilhões e, no mesmo período, um
aumento de R$ 6,2 bilhões com despesas de inativos e pensionistas. Já quanto
à dívida pública do Estado do Rio de Janeiro para com a União, o salto foi
olímpico, partindo de R$ 57,6 bilhões em 2010 para o patamar de R$ 101,4
bilhões em 2015.
Dos números para o mundo concreto, a realidade não poderia ser
diferente: atrasos recorrentes nos pagamentos do pessoal ativo, inativo e
pensionistas; inadimplência perante os fornecedores; paralisações e greves em
diversos órgãos e instituições estaduais; escolas, hospitais e segurança pública
com dificuldades de funcionamento mínimo.
Diante do contexto, os principais fundamentos que constaram
expressamente do decreto a justificar o estado excepcional de calamidade
financeira foram: a grave crise econômica que assola o Estado fluminense; a
queda na arrecadação do ICMS, dos royalties e das participações especiais;
que esforços de reprogramação financeira já haviam sido empreendidos; a
preocupação em honrar os compromissos para os Jogos Olímpicos de 2016;
as dificuldades na prestação de serviços públicos essenciais com a
preocupação de eventual colapso nas áreas da saúde, educação, segurança,
mobilidade e gestão ambiental.
Como consequência desse regime excepcional e com base naquelas
justificativas, o decreto autorizou a adoção de medidas necessárias à
racionalização de todos os serviços públicos essenciais, a serem
regulamentadas a partir da edição, pelas respectivas autoridades competentes,
de atos normativos específicos.
Podemos inferir que este decreto, além de chamar a atenção de toda a
nação para a grave situação financeira em que se encontra o Estado do Rio de
Janeiro, visou a respaldar as autoridades públicas estaduais para que pudessem
tomar decisões e adotar medidas de natureza administrativa de caráter urgente e,
em certos casos, até mesmo drásticas, especialmente para permitir a regular e
satisfatória realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, sem que os
respectivos gestores públicos respondessem administrativamente por
irregularidades decorrentes de tais ações.
E, de fato, este recurso surtiu efeito, já que, no dia 21/06/2016, o Governo
Federal editou a Medida Provisória nº 734/2016, pela qual se concede um apoio
financeiro de R$ 2,9 bilhões ao Governo Estadual do Rio de Janeiro. Tais
recursos, desprovidos de necessidade de restituição, serão liberados em parcela
única e destinados a auxiliar as despesas com Segurança Pública do Estado
do Rio de Janeiro decorrentes da realização dos Jogos Olímpicos e
Paraolímpicos que se iniciam em agosto do corrente ano. E, com o aval do
Tribunal de Contas da União, que reconheceu o caráter de urgência na despesa
não prevista no orçamento, editou-se a Medida Provisória nº 736, de 30/06/2016,
através da qual o Governo Federal abriu crédito extraordinário em favor de
transferências a Estados, Distrito Federal e Municípios, naquele mesmo valor.
Feita esta contextualização da decretação de estado de calamidade
pública no âmbito financeiro do Estado do Rio de Janeiro, e sem realizar
qualquer juízo de valor a respeito do enquadramento da crise financeira como
hipótese de calamidade pública (já muitos argumentam que o conceito
abarcaria exclusivamente fatos naturais), nos cabe agora analisar as
disposições legais previstas na LRF que tratam da situação.
A Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece em seu artigo 65 que "na
ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no
caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e
Municípios, enquanto perdurar a situação: I - serão suspensas a contagem dos
prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23, 31 e 70; II - serão
dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho
prevista no art. 9º".
Portanto, a LRF permite, com a decretação de calamidade pública pelo
Poder Executivo - mas desde que reconhecida formalmente pela respectiva
Casa Legislativa -, afastar temporariamente algumas das suas exigências.
Assim, diante desta situação e atendida a condição legal, a LRF autoriza a
suspensão temporária (e enquanto se mantiver esta situação): a) da contagem
dos prazos de controle para adequação e recondução das despesas de
pessoal (arts. 23 e 70) e dos limites do endividamento (art. 31); b) do
atingimento das metas de resultados fiscais e; c) da utilização do mecanismo
da limitação de empenho (art. 9º).
Não obstante essas benesses fiscais que a LRF excepcionalmente
prevê para o caso de decretação de estado de calamidade pública,
estranhamente, até o presente momento, não se verificou o reconhecimento
formal de tal estado por parte da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, tal
como exigido pelo caput do referido artigo 65 da LRF como condição para
fruição das excepcionalidades fiscais acima descritas.
Cabe registrar que a falta de reconhecimento pela Assembleia
Legislativa não afeta a validade e a eficácia do decreto do estado de
calamidade pública. Tal ausência apenas tem o condão de impedir que o
Estado possa se beneficiar da suspensão temporária daqueles rígidos
mecanismos da Lei de Responsabilidade Fiscal que visam a garantir o
equilíbrio fiscal.
A condição, na seara da responsabilidade fiscal, de reconhecimento
formal pelo Poder Legislativo do ato do Poder Executivo de decretação da
calamidade pública decorre do princípio da democracia fiscal, pelo qual os
representantes do povo são chamados - em nome da sociedade - a autorizar a
adoção de um regime de exceção na aplicação das normas gerais e regulares
constantes da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Por fim, espera-se que, em um Estado Democrático de Direito como o
nosso, a comunhão de interesses e esforços republicanos entre os Poderes
supere a polarização entre eles, a fim de garantir a efetividade dos direitos
mínimos a que fazem jus todos os cidadãos brasileiros.
Limite prudencial nas despesas públicas de pessoal

Publicado em 04/08/2016

A crise financeira que vem assolando inúmeros entes da federação


brasileira - desde a União, até inúmeros Estados e diversos Municípios - tem
trazido ao debate uma antiga e importante questão: a desmedida elevação dos
gastos públicos com despesas de pessoal. Dados recentes publicados pelo
Tesouro Nacional apontam, em relação aos 26 estados e DF, para um
crescimento médio destas despesas da ordem de quase 40% no último ano.
Tal preocupação não é nenhuma novidade e foi um dos principais focos
de atenção da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000)
desde a sua edição, ao regulamentar a previsão constante no artigo 169 da
Constituição Federal, que dispõe: "a despesa com pessoal ativo e inativo da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder
os limites estabelecidos em lei complementar".
A partir da LRF, as despesas de pessoal são condicionadas a outros
requisitos além daqueles que a Constituição já impunha. Sua realização passa
a exigir uma estimativa de impacto orçamentário e a comprovação de que seu
gasto não afetará as metas de resultados fiscais, bem como a demonstração
da sua adequação à lei orçamentária e compatibilidade com o plano plurianual
e lei de diretrizes orçamentárias.
Ainda, a lei veda a realização de aumento da despesa com pessoal nos
cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato do titular do respectivo
Poder ou órgão. Criam-se, também, limites de gastos globais e de gastos por
poder ou órgão, fixados com base na receita líquida corrente, cujo atendimento
deverá ser verificado quadrimestralmente. A propósito de tais limites, instituiu-
se um mecanismo de limite prévio, na base de 95% dos valores estabelecidos
como teto de despesa de pessoal, para resguardar o volume máximo de gastos
e não excedê-los.
Este percentual máximo de 95% é denominado de limite prudencial de
gastos com pessoal, e está previsto no parágrafo único do artigo 22 da LRF.
Tal mecanismo - dotado de efeito acautelatório e preventivo - funciona como
uma espécie de "sinal de perigo", não apenas para alertar o poder público da
aproximação dos limites máximos, mas, principalmente, por impor ao gestor
restrições de gastos que evitem seu atingimento.
Assim, quando atingido o percentual de 95% do limite de gastos com
pessoal, estará vedado ao Poder ou órgão que houver incorrido no excesso: I –
conceder vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a
qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal
ou contratual, ressalvada a revisão geral anual da remuneração dos servidores
públicos prevista no inciso X do art. 37 da Constituição; II – criar cargo, emprego
ou função; III – alterar estrutura de carreira que implique aumento de despesa;
IV – prover cargo público, admitir ou contratar pessoal a qualquer título,
ressalvada a reposição decorrente de aposentadoria ou falecimento de
servidores das áreas de educação, saúde e segurança; V – contratar hora extra,
salvo no caso de convocação extraordinária do Congresso Nacional em caso
de urgência ou interesse público relevante (inciso II do § 6º do art. 57 da
Constituição) e as situações previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias.
A LRF estabelece a frequência quadrimestral para a aferição e
acompanhamento do cumprimento dos limites máximos globais para as
despesas de pessoal ativo e inativo de todos os Poderes e entes federativos,
tal como previsto nos seus artigos 19 e 20. Assim, a referida verificação, a
cargo dos Tribunais de Contas, juntamente com o sistema de controle interno
de cada Poder (art. 59, inciso III; § 1º, inciso II e § 2º, LRF), se realizará ao final
dos meses de abril, agosto e dezembro (art. 22, caput), levando em
consideração o disposto no artigo 18, § 2º, o qual estabelece que a despesa
total com pessoal será apurada somando-se a realizada no mês em referência
com as dos onze imediatamente anteriores, adotando-se o regime de
competência.
Cumpre lembrar que o conceito de despesa com pessoal estabelecido
pela LRF não depende da natureza do vínculo empregatício. Assim, as
despesas com servidores, independentemente do regime de trabalho a que
estejam submetidos, integram a despesa total com pessoal e compõem o
cálculo do limite de gasto com pessoal. Consideram-se incluídos tanto
servidores efetivos, como cargos em comissão, celetistas, empregados
públicos e agentes políticos.
Ademais, o conceito também não depende de avaliação jurídica sobre a
legalidade ou não da contratação. Assim, tanto as contratações por tempo
determinado para atender necessidade temporária de excepcional interesse
público, como as que poderão vir a ser contestadas à luz do instituto
constitucional do concurso público, por exemplo, deverão ser registradas na
despesa com pessoal, independentemente da verificação da legalidade ou
validade das contratações.
Além disso, este conceito de despesa bruta com pessoal tem caráter
exemplificativo e inclui "quaisquer espécies remuneratórias", inclusive
"vantagens pessoais de qualquer natureza" atribuídas a ativos, inativos e
pensionistas, bem como outras despesas com pessoal decorrentes de
contratos de terceirização, aplicando-se o princípio da prevalência da essência
sobre a forma. Inclui, também, despesas de natureza previdenciária, tais como
encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de
previdência.
Portanto, a despesa total com pessoal é considerada pelo somatório
dos gastos do ente da Federação - de quaisquer dos três níveis federativos -
com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos,
cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com
quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas
e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões,
inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de
qualquer natureza, assim como encargos sociais e contribuições recolhidas
pelo ente às entidades de previdência.
E, atendendo ao disposto no art. 169 da Constituição, que estabelece a
necessidade de fixação por lei complementar de limites máximos para as
despesas de pessoal ativo e inativo de todos os Poderes e entes federativos,
os arts. 19 e 20 da LRF preveem que: a) a despesa total com pessoal (limites
globais), não se computando aquelas excetuadas nos §§ 1º e 2º do art. 19, em
cada período de apuração e em cada ente da Federação, não poderá exceder
os percentuais da receita corrente líquida, conforme os a seguir discriminados:
I – União: 50% (cinquenta por cento); II – Estados: 60% (sessenta por cento);
III – Municípios: 60% (sessenta por cento); b) a repartição dos limites globais
anteriormente citados não poderá exceder os seguintes percentuais de limites
por poder, órgão e ente federativo: I – na esfera federal: a) 2,5% (dois inteiros e
cinco décimos por cento) para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas da
União; b) 6% (seis por cento) para o Judiciário; c) 40,9% (quarenta inteiros e
nove décimos por cento) para o Executivo; d) 0,6% (seis décimos por cento)
para o Ministério Público da União; II – na esfera estadual: a) 3% (três por
cento) para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas do Estado; b) 6% (seis
por cento) para o Judiciário; c) 49% (quarenta e nove por cento) para o
Executivo; d) 2% (dois por cento) para o Ministério Público dos Estados; III – na
esfera municipal: a) 6% (seis por cento) para o Legislativo, incluído o Tribunal
de Contas do Município, quando houver; b) 54% (cinquenta e quatro por cento)
para o Executivo.
Como se pode perceber, as despesas de pessoal são consideradas pela
LRF como um dos aspectos mais relevantes dos gastos estatais, disciplinando
o tema com detalhamento e rigor, definindo e impondo limites para esses
gastos às três esferas federativas, de forma a evitar o comprometimento de
grande parte, ou mesmo toda a receita de órgão ou ente público, em sacrifício
dos recursos destinados a direitos fundamentais ou sociais, investimentos ou a
implantação de políticas públicas. Avançado e salutar mecanismo fiscal, o
limite prudencial para os gastos com pessoal não pode ser olvidado pela
Administração Pública e nem pelos respectivos órgãos de controle.
O teto dos gastos públicos

Publicado em 01/09/2016

A grave conjuntura das contas públicas pela qual o Brasil vem passando
se evidencia pela geração de um déficit de até R$170 bilhões neste ano de
2016, circunstância que é ainda agravada pelo crescimento insustentável da
dívida pública federal, a qual deixou, cinco anos atrás, a casa dos 50% do PIB
para alcançar o alarmante patamar de 70% do PIB no próximo ano, com viés
de alta ilimitada. Tais fatos acarretaram inequivocamente a perda da confiança
dos agentes econômicos e o rebaixamento de nota de risco (o que conduz ao
aumento das taxas de juros), comprometendo a capacidade de crescimento do
país, reduzindo os investimentos públicos e prejudicando a geração de
empregos.
Por isso, providências governamentais são esperadas para a retomada
do crescimento econômico e recondução da situação financeira ao equilíbrio
fiscal.
Uma dessas providências é a recente Proposta de Emenda
Constitucional nº 241/2016, conhecida por PEC dos Gastos Públicos, que
institui o Novo Regime Fiscal para todos os Poderes da União (Executivo,
Judiciário e Legislativo, inclusive o Tribunal de Contas da União, o Ministério
Público da União e a Defensoria Pública da União), bem como órgãos federais
com autonomia administrativa e financeira, incluindo as entidades da
administração pública federal direta e indireta, os fundos e as fundações
instituídos e mantidos pelo Poder Público e as empresas estatais dependentes.
Segundo a proposta de emenda constitucional, serão incluídos os
artigos 101 a 105 no ADCT, através dos quais se estabelecerá, por vinte
exercícios financeiros, um limite de gastos individualizado para a despesa
primária total em cada ano (excluídas as relativas à dívida pública) para cada
Poder, corrigida apenas pela variação do Índice Nacional de Preços ao
Consumidor Amplo - IPCA, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE.
Ou seja, enquanto viger o modelo do Novo Regime Fiscal, não poderá
haver crescimento real das despesas públicas federais, e o gasto de 2017 se
limitará às despesas de 2016, corrigidas pela inflação deste ano, e assim
sucessivamente nos anos seguintes.
Estarão fora do referido limite de gastos: I - as transferências
constitucionais estabelecidas pelos art. 20, § 1º (compensações financeiras aos
entes federados pela exploração de recursos naturais e minerais), art. 157 a
art. 159 (repartição de receitas de tributos como IR, IPI e ITR) e art. 212, § 6º
(cotas estaduais e municipais da arrecadação da contribuição social do salário-
educação) da Constituição; bem como as despesas referentes ao art. 21, inciso
XIV (manutenção dos serviços públicos e de segurança do Distrito Federal) da
Lei Maior, e as complementações de que trata o art. 60, caput, inciso V, do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (complementação pela União de
Fundos de Educação); II - os créditos extraordinários a que se refere o art. 167,
§ 3º, da Constituição (despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes
de guerra, comoção interna ou calamidade pública); III - as despesas com a
realização de eleições pela justiça eleitoral; IV - outras transferências
obrigatórias derivadas de lei que sejam apuradas em função de receita
vinculadas; e V - as despesas com aumento de capital de empresas estatais
não dependentes.
E, como medida punitiva em caso de descumprimento do limite, aplicar-
se-ão, no exercício seguinte, ao Poder ou ao órgão que o descumprir, as
seguintes vedações: I - à concessão, a qualquer título, de vantagem, aumento,
reajuste ou adequação de remuneração de servidores públicos, inclusive do
previsto no inciso X do caput do art. 37 da Constituição, exceto os derivados de
sentença judicial ou de determinação legal decorrente de atos anteriores à
entrada em vigor da Emenda Constitucional que instituiu o Novo Regime Fiscal;
II - à criação de cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa;
III - à alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa; IV -
à admissão ou à contratação de pessoal, a qualquer título, ressalvadas as
reposições de cargos de chefia e de direção que não acarretem aumento de
despesa e aquelas decorrentes de vacâncias de cargos efetivos; e V - à
realização de concurso público.
É importante esclarecer que um dos motivos de tal determinação ser
veiculada por uma emenda constitucional está na ideia da separação dos
poderes e na garantia da respectiva autonomia de cada um deles, evitando-se
que o Poder Executivo tenha discricionariedade para, sozinho, fixar os limites
aos demais.
Como se vê, a tese central que está por detrás desta PEC é a de se
estabilizar o crescimento da despesa primária, limitando o ritmo da evolução
das despesas públicas segundo a variação da inflação, evitando o crescimento
real dos gastos de maneira desmedida, arbitrária, muitas vezes pautado por
interesses e pressões políticas. Isso porque, no período entre os anos 2008-
2015, a despesa cresceu 51% acima da inflação, enquanto a receita evoluiu
apenas 14,5%.
Contudo, a maior preocupação que surge com essa proposta - não
obstante louvarmos toda e qualquer medida que imponha responsabilidade
fiscal e razoabilidade nos gastos públicos - é a imposição de limitação ao
crescimento dos gastos com saúde, educação e demais direitos sociais e
fundamentais. Sabemos que a saúde e a educação possuem percentuais
constitucionais mínimos. No entanto, estes não podem ser restringidos e nem
convertidos em percentuais máximos, afinal, a pretendida limitação financeira
poderá trazer ainda mais restrições orçamentárias e, por decorrência, mais
prejuízos para a sociedade nesses importantes setores.
Propomos a reflexão sobre outras medidas alternativas que nos vêm à
mente neste momento, tais como: a) a manutenção do crescimento das
despesas públicas prioritárias, com a fixação de teto apenas para as despesas
consideradas como “secundárias”; b) a inclusão de um percentual de
crescimento anual para despesas prioritárias, como educação, saúde e demais
direitos fundamentais, a ser agregado à variação inflacionária.
A primeira proposta alternativa que apresento envolve considerar uma
limitação orçamentária apenas aos “gastos-meio” (aparato estatal),
preservando-se os “gastos-fim” (despesas com direitos sociais e
fundamentais). Noutras palavras, teríamos a priorização dos interesses
públicos primários sobre os interesses públicos secundários. Assim, enquanto
os primeiros estão relacionados à atuação estatal para o atendimento de
necessidades dos cidadãos, como educação, saúde, segurança, os segundos
voltam-se para o atendimento de necessidades internas da máquina
burocrática, de modo que a Administração Pública possa funcionar
devidamente.
A outra proposta alternativa que trago à reflexão envolveria uma
pequena alteração na PEC nº 241/2016, incluindo-se um crescimento nominal
às despesas fundamentais (educação, saúde e direitos sociais), mantendo-se o
teto de gastos, sem que se tenha que alterar o núcleo do projeto de emenda
constitucional apresentado.
Não obstante a reflexão sobre essas duas propostas alternativas, uma
terceira parece-me imprescindível: estender a limitação dos gastos públicos,
seja como vierem, aos demais entes federados, ou seja, aos Estados, Distrito
Federal e Municípios, e, assim, cumprir em todas as esferas federativas o
mandamento imperativo de respeito e fiel observância da Lei de
Responsabilidade Fiscal, que já traz o mecanismo de metas fiscais (art. 4º, §
1º, LRF), instituto vilipendiado nos últimos anos.
Não podemos nos esquecer de que o Estado não possui um fim em si
mesmo - e nem existe para atender interesses individuais, setoriais ou político-
partidários -, mas, sim, constitui um instrumento a serviço do cidadão, para que
este detenha as condições mínimas para seu florescimento humano. Um dos
dogmas da visão contemporânea acerca do fenômeno estatal, que é também
uma de suas glórias, reside exatamente em não nos olvidarmos de que o
Estado está ordenado ao ser humano, e não ao revés.
Os Tribunais de Contas e o poder cautelar de
indisponibilidade de bens

Publicado em 06/10/2016

O Tribunal de Contas da União (TCU) e, no âmbito de cada ente


federativo, os respectivos Tribunais e Conselhos de Contas, estão entre os
mais importantes órgãos de controle externo das finanças públicas no país,
assumindo ultimamente um protagonismo ímpar na fiscalização dos recursos
públicos.
Nesse contexto, temos acompanhado algumas das recentes decisões
cautelares tomadas pelo Plenário do TCU no sentido de tornar indisponíveis
bens e recursos financeiros de empresas e de seus gestores, suspeitos de
superfaturamento de preços em obras e contratos que envolvem recursos
públicos, visando a garantir o ressarcimento ao erário caso comprovadas as
irregularidades ao final do processo.
Entretanto, dúvidas vêm surgindo a respeito da competência destes
tribunais, desprovidos de natureza jurisdicional que são, para exercerem esta
função cautelar, típica do Poder Judiciário. Por essa razão, o momento é
oportuno para empreendermos uma breve análise desses órgãos de controle
externo que desempenham atividade tão indispensável para a aplicação do
direito financeiro brasileiro e, em seguida, abordar a controvérsia.
A existência e o funcionamento desses órgãos de fiscalização e controle
não é uma exclusividade brasileira. Na Itália, existe a Corte dei Conti, para
controlar e julgar os gastos e as contas públicas. Na França, há a Cours des
Comptes, criada por Napoleão I para julgar todos os obrigados a prestar
contas. Na Inglaterra, existe o Public Accounts Committee, formado por
integrantes da Câmara dos Comuns, para verificar as contas, controlar o
orçamento e intervir nos serviços administrativos. Nos Estados Unidos, o
controle é feito pelo Congresso, através de uma comissão fiscalizadora
chamada de General Accounting Office, que dispõe de poderes para se opor à
ação administrativa, apreciando o mérito e a legalidade da despesa a ser
efetuada.
Cabe ao Tribunal de Contas atuar na fiscalização contábil, financeira,
orçamentária, operacional e patrimonial do Estado, incluindo aí os seus
Poderes e as respectivas entidades da administração direta ou indireta,
alcançando os administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e
valores públicos, além das pessoas físicas ou jurídicas, que, mediante
convênios, acordos, ajustes ou outros instrumentos, apliquem auxílios,
subvenções ou recursos repassados pelo Poder Público.
Quanto à natureza jurídica desse órgão, considera-se que cada Tribunal
de Contas seria uma instituição estatal independente, não estando subordinado
a nenhum dos Poderes, nem mesmo ao Legislativo, ao qual, segundo a
literalidade do art. 71 da Constituição, presta auxílio na atividade de controle
externo. A este respeito, o Min. Celso de Mello, na ADI 4.190-MC, afirmou que
"os Tribunais de Contas ostentam posição eminente na estrutura constitucional
brasileira, não se achando subordinados, por qualquer vínculo de ordem
hierárquica, ao Poder Legislativo, de que não são órgãos delegatários nem
organismos de mero assessoramento técnico".
Por sua vez, sobre a natureza das decisões e julgamentos proferidos
pelos Tribunais de Contas, entende-se que possuem caráter administrativo e
não jurisdicional (este último é característico do Poder Judiciário). Isto porque,
embora este órgão possua a nomenclatura de "tribunal", seus membros
detenham as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e
vantagens de membros do Judiciário (§ 3º, art. 73 da CF/88) e a Constituição
utilize o verbo "julgar" para designar uma de suas competências (inciso II, art.
71), considera-se que os Tribunais de Contas não ostentam função jurisdicional
propriamente dita, uma vez que suas decisões produzem apenas a coisa
julgada administrativa, que pode ser revista pelo Poder Judiciário, em razão da
cláusula de inafastabilidade da jurisdição prevista no art. 5º, inc. XXXV da
CF/88.
Este modo de ver é corroborado pelos julgamentos dos MS nº 25.116 e
MS nº 28.061-AgR pelo Plenário do STF, que cassaram decisões do TCU por
não garantirem o contraditório e ampla defesa em processos administrativos
em que estes eram obrigatórios. Ademais, o acórdão do Tribunal de Contas da
União que resulte em imputação de débito ou multa, ao ser executado como
título executivo extrajudicial (art. 71, §3º da Constituição combinado com art. 1º
da Lei nº 6.822/80 e art. 24 da Lei Orgânica do TCU - Lei nº 8.443/92),
tramitará segundo o rito de execução previsto no Código de Processo Civil para
títulos desta natureza (art. 585, VIII, CPC). Contudo, fica dentro do âmbito de
discricionariedade do administrador público (mera faculdade) inserir tais multas
nos registros da dívida ativa, hipótese na qual será gerada uma certidão de
dívida ativa a ser executada obrigatoriamente mediante o procedimento
previsto na Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/1980).
Sobre as funções a serem exercidas pelos Tribunais de Contas, estas
cortes detêm as seguintes: fiscalizadora, opinativa, julgadora, sancionadora,
corretiva, consultiva, informativa, ouvidora e normativa. É precisamente das
funções julgadora e sancionadora que deriva a controvérsia - sobre a qual
passaremos a tratar abaixo - a respeito do bloqueio cautelar de bens e
recursos financeiros que o TCU vem adotando.
A medida de decretação de indisponibilidade de bens pelo Tribunal de
Contas da União encontra previsão legal expressa no art. 44, §2º da Lei nº
8.443/1992 (Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União), ao estabelecer que
"poderá o Tribunal [...] decretar, por prazo não superior a um ano, a
indisponibilidade de bens do responsável, tantos quantos considerados
bastantes para garantir o ressarcimento dos danos em apuração."
A possibilidade de o Tribunal de Contas da União decretar a
indisponibilidade de bens de pessoas envolvidas em utilização indevida de
recursos públicos é aceita pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro como
decorrência do poder do TCU de expedir medidas cautelares para prevenir
lesão ao erário e garantir a efetividade de suas decisões, poder cautelar este
implícito nas atribuições que lhe foram conferidas pelo art. 71 da Constituição
(MS 24.510 - Plenário). Esta também foi a posição assentada, por exemplo, no
MS 33.092, julgado em 24/03/2015, em que a Segunda Turma do STF manteve
a indisponibilidade de bens decretada pelo TCU no ruidoso caso da aquisição,
pela Petrobras, da Refinaria de Pasadena (EUA).
No citado MS 24.510, o Plenário do STF reconheceu assistir ao Tribunal
de Contas um poder geral de cautela, que se consubstancia em prerrogativa
institucional decorrente das próprias atribuições que a Constituição
expressamente outorgou à Corte de Contas para seu adequado funcionamento
e alcance de suas finalidades. Nesse julgado, o Ministro Celso de Mello
acentuou, com propriedade, que o poder cautelar também compõe a esfera de
atribuições institucionais do Tribunal de Contas, decorrentes das múltiplas e
relevantes competências que lhe foram diretamente outorgadas pelo próprio
texto da Constituição, reconhecendo, ainda que implicitamente, a titularidade
de meios destinados a viabilizar a adoção de medidas cautelares vocacionadas
a conferir real efetividade às suas deliberações finais, permitindo, assim, que
se neutralizem situações de lesividade, atual ou iminente, ao erário público.
Considerou o Ministro, neste ponto, em ordem a legitimar tal entendimento, a
formulação que se fez em torno dos poderes implícitos, cuja doutrina,
construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre
caso McCULLOCH v. MARYLAND (1819), enfatiza que a outorga de
competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento
implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos
fins que lhe foram atribuídos. Assim, o exercício do poder de cautela, pelo
Tribunal de Contas, destina-se a garantir a própria utilidade da deliberação final
a ser por ele tomada em ordem a impedir que o eventual retardamento na
apreciação do mérito da questão suscitada culmine por afetar, comprometer e
frustrar o resultado definitivo do exame da controvérsia.
Ademais, a Primeira Turma do STF inclina-se pela solução de que, por
serem públicos os recursos atingidos, todo e qualquer envolvido (agente
público ou privado) em possível lesão ao erário pode vir a ter seus bens
declarados indisponíveis, de modo que sejam apurados os danos e haja, ao
fim, bens suficientes no patrimônio dos envolvidos para responder pelo valor
pecuniário da condenação a ser imposta pelo Tribunal de Contas (MS 24.379).
A exceção a este posicionamento provém do Ministro Marco Aurélio,
que, no MS 24.379, foi voto vencido, ao decidir que "a atuação do Tribunal
refere-se aos administradores, como previsto na Carta da República. [...] não
cabe ao Tribunal de Contas da União impor sanção a particular, quer
determinar a particular, com essa força a que aludi de transformar o
pronunciamento em título executivo, a devolução de importâncias".
Aliás, as recentes decisões monocráticas do Ministro Marco Aurélio no
MS 34.357 (31/08/2016), MS 34.392 (06/09/2016) e MS 34.410 (14/09/2016),
que concederam pedidos liminares autorizando a livre movimentação de bens
indisponibilizados pelo TCU, estão em linha com a visão isolada e minoritária
do referido Ministro quanto ao tema, e provavelmente sofrerão reforma quando
levadas a julgamento colegiado.
Infelizmente, a malversação do Erário tem sido ao longo dos anos um
fato comum no Brasil e precisa ser diuturnamente combatida, seja pelos
Tribunais de Contas, pelo Ministério Público, pelo Poder Judiciário ou mesmo
pelo cidadão, não importando quem seja o artífice de tal peleja. Afinal, o
interesse público envolvido nas atividades financeiras do Estado enseja a
preocupação de todos nós na garantia da melhor aplicação dos recursos
públicos. Em um Estado Democrático de Direito como o nosso, o controle fiscal
representa um fundamental instrumento para garantir a realização dos
objetivos da nossa República.
Por fim, não podemos olvidar as palavras de Montesquieu, no seu
clássico "O espírito das leis", quando alertava que "todo homem que tem em
suas mãos o poder é sempre levado a abusar dele, e assim irá seguindo, até
que encontre algum limite".
A simbiótica relação entre o Direito Financeiro e o
Tributário nos 50 anos do Código Tributário Nacional

Publicado em 03/11/2016

Há pouco mais de uma semana, o Código Tributário Nacional (Lei nº


5.172, de 25/10/1966) completou meio século em nosso ordenamento jurídico
e, no próximo dia 1º de janeiro de 2017, terá alcançado 50 anos de vigência
com o significativo marco de que nenhum de seus dispositivos tenha sido, até
hoje, declarado inconstitucional (embora alguns não foram recepcionados pela
CF88).
Nestas cinco décadas, foi possível assistir aos efeitos do tempo e do
legislador sobre o CTN. Merece lembrança a mudança de fundamento
constitucional do sistema tributário nacional, da Emenda Constitucional nº
18/1965 para a Constituição Federal de 1988, que recepcionou o Código
materialmente como Lei Complementar. Não podemos nos esquecer também
das alterações que ocorreram nesse período em diversos dos seus artigos, tais
como aquelas mais remotas, decorrentes do Decreto-lei nº 406/1968, que
suprimiram as regras relativas ao ICMS e ao ISS (hoje regulados pela LC nº
87/1996 e LC nº 116/2003), assim como as mais recentes, derivadas da Lei
Complementar nº 143/2013, que modificaram as normas sobre os fundos de
participação, critérios de distribuição de recursos, cálculo e pagamento de
quotas aos Estados e Municípios. Tivemos também as relevantes mudanças
introduzidas pela Lei Complementar nº 104/2001 (com normas antielisivas,
sobre parcelamento e dação em pagamento etc.), e pela Lei Complementar nº
118/2005 (com novas regras sobre a recuperação do crédito tributário, sobre a
interpretação do prazo prescricional para repetição do indébito etc.).
Inequivocamente, o desenvolvimento do Direito Tributário como ciência
e disciplina autônoma e metodologicamente estruturada se deu a partir da
década de 1960, com a edição da Emenda Constitucional nº 18/1965 e da
própria Lei nº 5.172/1966, que instituiu o Código Tributário Nacional.
A partir desse contexto, materializava-se um efetivo descolamento
entre o Direito Tributário e o Financeiro, até então integrantes de uma mesma
especialidade, com o desenvolvimento de ampla e farta doutrina e
jurisprudência sobre aquela área jurídica que havia sido recém-reorganizada,
cuja temática ganhava cada vez mais espaço na academia e nos tribunais de
todo o país.
Não obstante, não podemos nos olvidar de que o Direito Financeiro,
disciplina que tem por objeto a atividade financeira do Estado, foi a origem do
Direito Tributário, tal como se diz, no relato bíblico, que Eva foi criada a partir
de uma costela de Adão. Apesar disso, a relação entre ambas nunca deixou
de existir, afinal, o Direito Financeiro e o Direito Tributário são especialidades
jurídicas interdependentes e que se comunicam contínua e simbioticamente,
embora nunca tenham se confundido.
A despeito de toda a relevância jurídica que o Direito Tributário
merecidamente possui como estatuto protetivo da liberdade do cidadão perante
o Estado - garantindo o equilíbrio entre a liberdade e a justiça fiscal e entre
direitos fundamentais e capacidade contributiva -, este cuida de apenas uma
dentre as várias espécies de receitas estatais sobre as quais versam as
finanças públicas: a receita tributária. Por sua vez, o Direito Financeiro é o
ramo jurídico que orienta e regula toda a atividade financeira do Estado, que
envolve as funções de arrecadar, gerir e gastar os recursos públicos e, assim,
inserida na primeira delas está a receita tributária, objeto do Direito Tributário.
Além da sua importância, desenvolvimento, complexidade ou da mera
convenção de ordem pragmática ou didática, podemos aventar algumas
outras justificativas para esse desdobramento disciplinar, de modo a
fundamentar a ascensão do Direito Tributário à categoria de especialidade
jurídica autônoma.
Primeiramente, é importante lembrar que, enquanto o Direito
Financeiro tem em suas normas um destinatário próprio, isto é, o
administrador público - no exercício do seu múnus na atividade financeira -, o
Direito Tributário disciplina a relação jurídica entre o cidadão e o Estado
(Fazenda Pública), limitando o seu poder de tributar, para garantir o respeito
aos direitos fundamentais do contribuinte.
Noutras palavras, o Direito Financeiro irá normatizar todos os atos e
procedimentos para a realização da arrecadação pública em sentido amplo, a
gestão desses recursos, o respectivo gasto público e a elaboração e
execução do orçamento público, constituição e gestão da dívida pública, tudo
isso parametrizado por princípios específicos e por normas como a Lei Geral
dos Orçamentos (Lei nº 4.320/1964), a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº
101/2000), dentre outras, direcionando a conduta daqueles servidores
públicos que agem em nome da Administração Pública durante a realização
da atividade financeira. Por sua vez, o Direito Tributário estabelecerá as
normas de uma relação jurídica específica - a relação tributária - entre o
cidadão e o Estado, pautada por princípios jurídicos específicos da tributação,
como a legalidade tributária, a capacidade contributiva, a anterioridade, a
progressividade, o não-confisco etc.
Além de destinatários diversos, devemos considerar que a relação
tributária contém em si um latente estado de conflito entre a Fazenda Pública
e o cidadão, circunstância potencializada pelo fato de que a tributação é,
inequivocamente, uma exceção ao princípio da propriedade privada, sendo o
tributo, atualmente, a principal fonte de receitas públicas. Basta lembrarmos
que a tributação abusiva de certos governantes ensejou inúmeras revoluções
ao longo da história da humanidade para chegarmos à inexorável conclusão
de que um ramo do Direito específico, científica e metodologicamente
autônomo para disciplinar esta relação, há muito tempo se fez necessário.
Ora, se o Estado é chamado a dar efetividade às normas constitucionais
e a assumir cada vez mais políticas públicas que atendam às necessidades
coletivas, a outra face da moeda só pode ser a premência de recursos
financeiros para fazer frente a estes gastos. Assim, como o Estado
contemporâneo tem nos tributos relevante fonte de receitas, a Administração
buscará cada vez mais sofisticar o seu sistema tributário visando ampliar a
arrecadação, seja a partir da criação de novas espécies tributárias ou pela
majoração das já existentes, além de afinar os meios de recuperação do
crédito fiscal. Todavia, a necessidade crescente de recursos originários da
tributação faz emergir, infelizmente, uma mentalidade arrecadatória por parte
de agentes do Fisco, e eventuais desconsiderações das garantias do
contribuinte pela própria Administração Tributária passam a ser fatos comuns.
Tal cenário conduz à necessidade de o Estado brasileiro possuir um
ramo do direito autônomo, suficientemente complexo e capaz de normatizar as
relações jurídicas de natureza tributária e atender aos anseios do cidadão-
contribuinte, com a garantia dos seus direitos fundamentais na realização da
atividade tributária.
Hoje, o Direito Tributário já tem alicerçada a sua fundamental função no
ordenamento jurídico brasileiro, atuando autonomamente, porém ao lado do
Direito Financeiro na realização do que podemos denominar de justiça fiscal
em sentido amplo, oferecendo ao cidadão e aos governos os mecanismos
necessários para a criação de uma sociedade mais digna e justa.
Ambos - Direito Tributário e Direito Financeiro - são faces de uma
mesma moeda, e de nada adiantará a preocupação direcionada a apenas um
em detrimento do outro. Se estes 50 anos do Código Tributário Nacional nos
presentearam com a consolidação do ordenamento tributário, esperemos que
os próximos anos tenham o Direito Financeiro como protagonista ou, ao
menos, coadjuvante, da transformação da justiça fiscal em justiça social.
As novas desvinculações de receitas dos Estados e
Municípios

Publicado em 01/12/2016

A recente Emenda Constitucional nº 93, de 08 de setembro de 2016,


conferiu uma substancial modificação ao mecanismo de desvinculação de
receitas da União, não apenas aumentando o seu percentual de 20% (vinte por
cento) para 30% (trinta por cento), mas também alterando as receitas atingidas
e estendendo o referido mecanismo aos Estados, Distrito Federal e Municípios,
criando a DRE e DRM.
Na Proposta de Emenda à Constituição nº 4/2015 (proposta original),
assim como nas Propostas nº 87/2015 e 112/2015 a ela apensadas, todas da
Câmara dos Deputados, não havia previsão de desvinculação de receitas de
Estados e Distrito Federal (DRE) e dos Municípios (DRM), mas tão somente da
tradicional desvinculação da União (DRU). Entretanto, ainda na Câmara dos
Deputados, foi apresentada, em 08/12/2015, a Emenda Aditiva nº 3/2015 à
proposta original, que previa as referidas DREs e DRMs. No substitutivo
adotado pela Comissão Especial constituída para a aprovação desta PEC, a
inovação da emenda aditiva foi incorporada, ainda que separada em dois
artigos distintos (arts. 76-A e 76-B), sendo ao final aprovada com estes dois
novos institutos. A proposta foi recebida no Senado, já com a previsão de DRE
e DRM, sob a classificação de Proposta de Emenda à Constituição nº 31/2016,
tendo sido aí também aprovada.
Assim sendo, em relação à União (DRU), passam a ser desvinculados
de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023, trinta por cento da
arrecadação da União relativa às contribuições sociais, sem prejuízo do
pagamento das despesas do Regime Geral da Previdência Social, às
contribuições de intervenção no domínio econômico, às taxas, já instituídas ou
que vierem a ser criadas até a referida data (art. 76, ADCT).
Por sua vez, em relação aos Estados e ao Distrito Federal (DRE/DF),
ficam desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023,
30% (trinta por cento) das suas receitas relativas a impostos, taxas e multas, já
instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e
respectivos acréscimos legais, e outras receitas correntes. Excetuam-se da
desvinculação: I - recursos destinados ao financiamento das ações e serviços
públicos de saúde e à manutenção e desenvolvimento do ensino de que
tratam, respectivamente, os incisos II e III do § 2º do art. 198 e o art. 212 da
Constituição Federal; II - receitas que pertencem aos Municípios decorrentes
de transferências previstas na Constituição Federal; III - receitas de
contribuições previdenciárias e de assistência à saúde dos servidores; IV -
demais transferências obrigatórias e voluntárias entre entes da Federação com
destinação especificada em lei; V - fundos instituídos pelo Poder Judiciário,
pelos Tribunais de Contas, pelo Ministério Público, pelas Defensorias Públicas
e pelas Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal (art. 76-A,
ADCT).
E, finalmente, em relação aos Municípios (DRM), ficam desvinculados de
órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023, 30% (trinta por cento)
das suas receitas relativas a impostos, taxas e multas, já instituídos ou que
vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos
acréscimos legais, e outras receitas correntes. Excetuam-se da desvinculação:
I - recursos destinados ao financiamento das ações e serviços públicos de
saúde e à manutenção e desenvolvimento do ensino de que tratam,
respectivamente, os incisos II e III do § 2º do art. 198 e o art. 212 da
Constituição Federal; II - receitas de contribuições previdenciárias e de
assistência à saúde dos servidores; III - transferências obrigatórias e
voluntárias entre entes da Federação com destinação especificada em lei; IV -
fundos instituídos pelo Tribunal de Contas do Município (art. 76-B, ADCT).
Como sabemos, o mecanismo constitucional das desvinculações – seja
a DRU, a DRE ou a DRM - tem por objetivo permitir que parcelas das receitas
vinculadas pudessem ser geridas e destinadas de maneira livre e flexível pelos
governos, propiciando uma alocação mais adequada de recursos
orçamentários, além de não permitir que determinadas despesas restassem
com excesso de receitas vinculadas, enquanto outras áreas apresentassem
carência de recursos, possibilitando, ao final, o financiamento de despesas
"incomprimíveis" sem endividamento adicional pelo ente. Noutras palavras,
obtém-se uma fonte de recursos livre de "carimbos" (ou seja, verbas livres de
serem destinadas a uma finalidade específica).
Além, é claro, da majoração do percentual de 20% para 30% no
montante das desvinculações e da sua extensão aos Estados, Distrito Federal
e Municípios, foram modificações veiculadas pela EC nº 93/2016 a introdução
da desvinculação aos três entes incidente também sobre as taxas, além dos
impostos para Estados, DF e Municípios, mantidas as desvinculações sobre as
contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico para União.
A respeito da majoração do percentual – de 20% para 30% –, já tivemos
oportunidade de nos manifestar anteriormente (na época ainda em fase de
debates na Câmara dos Deputados, antes da PEC 31/2016 e meses antes da
promulgação da EC nº 93), externando a nossa preocupação no sentido de que
o aumento no percentual de desvinculações poderia reduzir os recursos
disponíveis destinados ao atendimento dos direitos sociais e fundamentais do
cidadão, retirando daquela alocação específica, constitucionalmente vinculada
a direitos relacionados ao mínimo existencial e à dignidade da pessoa humana
(por exemplo: saúde e educação), o respectivo percentual da desvinculação, o
que poderia acabar sendo utilizado em outras despesas e finalidades menos
nobres.
Quanto à ampliação do mecanismo das desvinculações de receitas para
os Estados, Distrito Federal (DRE) e Municípios (DRM), a justificativa para a
sua adoção se baseou na superação da rigidez dos orçamentos dos entes
subnacionais, que dispõem de menor poder tributário que a União, cuja DRU já
vinha sendo renovada há mais de uma década e meia. Segundo a exposição
de motivos da Emenda Aditiva nº 3/2015, "os Municípios, os Estados e o
Distrito Federal estão sujeitos a uma estrutura orçamentária e fiscal com
elevado volume de despesas obrigatórias, tais como as relativas a pessoal e a
benefícios previdenciários, além de expressiva vinculação das receitas
orçamentárias", sendo necessário fornecer-lhes instrumentos a permitir "que
uma parte das receitas não fique sujeita a vinculações, podendo ser alocadas
no orçamento com maior flexibilidade."
Por sua vez, em relação à desvinculação de parcela de receitas das
taxas - tributo contraprestacional cujo fato gerador contempla uma atividade
estatal específica e divisível realizada em favor do contribuinte ou colocada à
sua disposição –, o tema merece cautela e reflexão.
Por um lado, na época da instituição da DRU (EC nº 27/2000), vozes
questionaram a sua constitucionalidade em relação à desvinculação das
receitas das contribuições sociais, justamente em razão de que o mecanismo
supostamente violaria a própria natureza do tributo vinculado. Por outro,
entendia-se que não seria a destinação do produto da arrecadação que
caracterizaria um tributo, mas sim a sua finalidade, conforme dispõe o próprio
art. 4º do Código Tributário Nacional.
Todavia, em relação às taxas, a questão não é tão simples e a
discussão não reside apenas no plano teórico, já que a taxa consubstancia o
tributo contraprestacional por excelência, sendo o valor cobrado limitado ao
custo da atividade estatal que lhe dá causa, como entendido pela doutrina e
jurisprudência, e dirigindo-se a cofre público “específico” relacionado com
aquela atividade estatal realizada ou colocada à disposição do contribuinte.
Assim, por exemplo, o valor arrecadado pela Taxa de Incêndio é, normalmente,
destinado diretamente (ou por algum fundo específico) ao Corpo de Bombeiros,
financiando sua manutenção e custeio, inclusive sua estruturação, a compra de
equipamentos e o treinamento. No caso da taxa, desvincular parcela destes
recursos poderá ter o nefasto resultado prático de afetar consideravelmente o
atendimento e a qualidade da respectiva atividade estatal por ela financiada.
Por fim, devemos lembrar que a flexibilidade na gestão orçamentária
decorrente dos mecanismos da desvinculação de receitas, agora ampliado aos
três níveis federativos (DRU, DRE e DRM), não pode prejudicar ou reduzir os
recursos disponíveis ao atendimento dos direitos sociais e fundamentais do
cidadão, razão principal da existência do Estado.
Austeridade e federalismo municipal

Publicado em 05/01/2017

Assistimos no início desta semana aos discursos dos prefeitos eleitos


que tomaram posse. Na sua grande maioria, a retórica envolvia promessas de
austeridade fiscal, de redução de gastos supérfluos e de aumento da
arrecadação. Fórmula básica de uma gestão responsável, tal como apregoado
pela Lei de Responsabilidade Fiscal, e que se espera que não seja mero
cacoete de políticos que recém saíram de suas campanhas eleitorais.
Entretanto, em um país como Brasil que adota o modelo de Estado
Federal, de dimensões continentais, repleto de desigualdades regionais de
natureza econômica, social, cultural e populacional, e com cerca de 5.570
municípios, as dificuldades se revelam muito mais complexas, dentro do que
denominamos de federalismo fiscal municipal.
O federalismo fiscal é a expressão financeira da forma com que os entes
federativos se organizam e se relacionam na realização de suas atribuições,
enfrentando e harmonizando as tensões decorrentes de estruturas
heterogêneas, a partir de uma multiplicidade de interesses e de diferenças
particulares.
No artigo 30, a Constituição Federal conferiu as atribuições exclusivas
aos Municípios. Dentre estas, temos a organização e a prestação, direta ou sob
o regime de concessão ou permissão, dos serviços públicos de interesse local,
incluído o de transporte coletivo; a manutenção de programas de educação
infantil e de ensino fundamental; a prestação de serviços de atendimento à
saúde da população; a promoção do adequado ordenamento territorial do solo
urbano; e a promoção e proteção do patrimônio histórico-cultural local. Isto sem
falar em segurança pública, meio ambiente e saneamento, assistência social
etc.
E, para garantir a plena e efetiva realização destas funções, a Carta
Constitucional lhes assegura fontes próprias de recursos financeiros, que
advêm, essencialmente, da partilha patrimonial, da competência tributária para
a instituição e cobrança de tributos e das transferências financeiras
intergovernamentais obrigatórias e voluntárias.
Para que essa estrutura federativa do Estado brasileiro seja adequada
para todo o país e, sobretudo, para os seus cidadãos, deve haver um
necessário equilíbrio entre as responsabilidades e funções constitucionalmente
atribuídas aos municípios e os recursos financeiros a eles dedicados. Afinal,
como diz o brocardo, “quem dá os fins, dá os meios”, ou, em outra formulação,
“a Constituição não dá com a mão direita para tirar com a esquerda”. Do
contrário, não se atingirá o objetivo final da nação: o atendimento das
necessidades do povo e a realização do bem comum. Conferir um rol de
atribuições e responsabilidades aos municípios – um poder-dever estatal de
realizar – sem fornecer recursos suficientes para a sua efetivação é frustrar o
próprio texto constitucional. E não podemos esquecer que é no município que a
realidade do cidadão acontece.
Além de recursos patrimoniais próprios, das taxas (p.ex. de coleta de
lixo, de licença de atividade etc.), dos impostos municipais (ISS, IPTU e ITBI) e
da Contribuição de Iluminação Pública, a Constituição – reconhecendo o
desequilíbrio e insuficiência financeira – lhes conferiu outra importante fonte de
recursos, que se origina da repartição das receitas tributárias da União e dos
Estados.
Assim, segundo o texto constitucional (arts. 157-160), das receitas
tributárias da União e dos Estados, aos municípios caberá a totalidade (100%)
do produto da retenção na fonte do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF)
sobre rendas e proventos por eles pagos (administração direta e indireta
municipal), bem como 50% do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural
(ITR), relativos aos imóveis neles situados, sendo que esse percentual será de
100% se o imposto for fiscalizado e cobrado pelo próprio Município (art. 158,
incisos I e II, CF/1988).
Também serão destinados aos municípios 50% sobre o que for
arrecadado pelos Estados, referentes ao Imposto sobre a Propriedade de
Veículos Automotores (IPVA) e 25% referentes ao Imposto sobre a Circulação
de Mercadorias e Serviços (ICMS), sendo 3/4 na proporção do valor adicionado
nas operações realizadas em seus territórios e 1/4 conforme dispuser a lei (art.
158, incisos III e IV, CF/1988). Ainda, os Estados transferirão aos Municípios
25% dos 10% que receberem a título de transferência do Imposto sobre
Produtos Industrializados (IPI) e também 25% dos 29% que receberem a título
de transferência da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico sobre
Petróleo e demais combustíveis (art. 159, §§ 3º e 4º, CF/1988).
E, em complemento, recebem também recursos originários do Fundo de
Participação dos Municípios (FPM), aos quais são transferidos 22,5% do
produto da arrecadação da União do Imposto de Renda (IR) e do Imposto
sobre Produtos Industrializados (IPI) (art. 159, inciso I, alínea b, CF/1988),
sendo mais 1,0% do produto arrecadado desses impostos destinado ao fundo
municipal, entregue no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano
(art. 159, inciso I, alínea d, CF/1988), e outro 1% (um por cento) do produto
desses impostos ao Fundo de Participação dos Municípios, entregue no
primeiro decêndio do mês de julho de cada ano (art. 159, inciso I, alínea e,
CF/1988).
Apesar desta variedade de recursos, ainda assim a realidade dos
municípios no Brasil é de insuficiência financeira para realizar suas atribuições,
em descompasso entre meios e fins. E esta situação só se agrava quando se
está diante de municípios de pequeno porte, de até 20 mil habitantes, que
representam mais de 2/3 dos entes municipais no país.
Inequivocamente há um problema existente no federalismo fiscal
municipal brasileiro decorrente do balanceamento entre a distribuição de
receitas e atribuições dos entes, e dos critérios de distribuição de recursos
entre eles, sendo desejável o adequado balanceamento entre as competências
impositivas próprias (poder tributário individual de cada ente) e as
transferências intergovernamentais obrigatórias (transferências de receitas
tributárias).
É imperioso reconhecer a necessidade de um aperfeiçoamento dessa
partilha, a partir de uma precisa calibragem, para não apenas oferecer recursos
equitativamente suficientes àqueles entes subnacionais executarem
satisfatoriamente as suas atribuições, como também, e principalmente, para
estimulá-los a um desenvolvimento sustentável local, e não gerar – como se
tem visto – uma “acomodação” financeira que acaba por incentivar o
indesejável surgimento de novos municípios, em que meros agrupamentos de
vilarejos passam a reivindicar seu reconhecimento como Município, a fim de
obter direitos de recebimento de fundos de repasse, e tudo isso sem o
necessário cálculo prévio de sua contribuição nas receitas.
Este aspecto revela ainda outra preocupação: a do não exercício da sua
competência tributária – a não instituição e cobrança de impostos – por parte
de alguns Municípios, que passam a se apoiar no financiamento originário dos
recursos advindos da repartição constitucional das receitas tributárias. No
entanto, enquanto muitos outros países que adotam o mesmo modelo
federativo procuram estimular a arrecadação de tributos locais próprios com a
diminuição dos repasses verticais, “grants-in-aid”, subsídios etc., o Brasil vem
incremento das transferências intergovernamentais.
E, infelizmente, a nossa legislação fiscal não é categórica para obrigar o
exercício da competência tributária em sua plenitude, apesar do artigo 11 da
Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) estabelecer como requisitos
essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva
arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da
Federação, ficando vedada a realização de transferências voluntárias para o
ente que assim não o fizer quanto aos seus impostos.
Enfim, em tempos em que se iniciam as novas gestões municipais, o
que se espera de um país imenso como o Brasil – que revela os ideais de
unidade a partir da coexistência harmônica e pacífica da multiplicidade de seus
integrantes –, é a possibilidade de se conciliar a descentralização fiscal com a
redução das desigualdades regionais, propiciando uma virtuosa autonomia
financeira e independência política, com a busca do desenvolvimento
socioeconômico responsável e equilibrado, sem descuidar dos direitos
fundamentais do cidadão. Esta, a nosso ver, é a regra de ouro que deve ser
perseguida pelos novos prefeitos.
O controle de constitucionalidade das leis
orçamentárias

Publicado em 01/02/2017

Por muitos anos, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o controle


concentrado e abstrato de constitucionalidade de leis e atos normativos
realizado por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade - prevista no artigo
102, I, “a” da Constituição Federal - dependeria das características de
abstração e generalidade da norma questionada. Assim, a Corte Suprema
somente conhecia da ADI proposta em relação a lei, ainda que pleno o seu
caráter formal, se esta também detivesse um caráter material de ato normativo
genérico e abstrato.
Neste sentido, em relação às leis orçamentárias, o STF não admitia seu
controle concentrado e abstrato de constitucionalidade por meio de ADI, por
entender que constituíam meras peças administrativas de caráter concreto,
desprovidas de normatividade, abstração, generalidade e impessoalidade.
Afirmava, por exemplo, que a lei de diretrizes orçamentárias, que tem objeto
determinado e destinatários certos, assim sem generalidade abstrata, é lei de
efeitos concretos, que não está sujeita à fiscalização jurisdicional no controle
concentrado (ADI 2.484-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento 19/12/2001,
DJ de 14/11/2003); e que os atos de legislação orçamentária - sejam os de
conformação original de orçamento anual, sejam os de alteração dela, no curso
do exercício - são exemplos paradigmáticos de leis formais, isto é, de atos
administrativos de autorização, por definição, de efeitos concretos e limitados,
o que os subtrairia da esfera objetiva de controle abstrato de
constitucionalidade pelo STF (ADI 1.716, DJ de 23/03/1998).
Esta forma de pensar do STF, no sentido de que, devido a seu conteúdo
político e não normativo (como a destinação de recursos ou a vinculação de
verbas a programas de governo), não seria cabível o questionamento das leis
orçamentárias através de ADI, tinha como um de seus fundamentos a velha
premissa - a nosso ver equivocada - de que as leis orçamentárias teriam
natureza de lei formal e não de lei material, razão pela qual não se poderia
adentrar na análise de seu conteúdo.
Porém, a partir do julgamento da ADI 2.925-DF (em 19/12/2003), iniciou-
se um processo de revisão jurisprudencial, momento em que o STF passou a
admitir ADI em face de leis orçamentárias, superando o seu posicionamento
tradicional - que ainda ecoava neste julgado através do voto da relatora
originária Ministra Ellen Gracie - que entendia “estar-se diante de ato
formalmente legal, de efeito concreto, portador de normas individuais de
autorização”. Não obstante, o Ministro Marco Aurélio (em seu voto vencedor),
colocando a semente da mudança de entendimento na Corte sobre o tema,
afirmou que mostrava-se adequado o controle concentrado de
constitucionalidade quando a lei orçamentária revela contornos abstratos e
autônomos, abandonando o campo da eficácia concreta.
Neste importante julgado, além do Ministro Gilmar Mendes, que
reconhecia a substancialidade do dispositivo da lei orçamentária impugnada, o
Ministro Cezar Peluzo asseverou que, como se tratava de norma típica de
competência, guardava todas as características de norma geral e abstrata,
razão por que conheceu do mérito da ação. Por sua vez, o Ministro Carlos
Ayres Britto, depois de afirmar que a lei orçamentária seria para a
Administração Pública, logo abaixo da Constituição, a lei mais importante de
nosso ordenamento jurídico, pugnou que: “(...) acho que têm esses caracteres,
sim, da lei em sentido material, ou seja, lei genérica, impessoal e abstrata. (...)
A abstratividade, diz a teoria toda do Direito, implica uma renovação, não digo
perene, porque, aqui, está limitada por um ano, mas a renovação duradoura
entre a hipótese de incidência da norma e a sua consequência”. Finalmente, o
Ministro Mauricio Corrêa considerou presente a abstração da norma que
afastaria a jurisprudência então vigente da Corte de ausência de controle
abstrato de constitucionalidade de leis orçamentárias.
A partir deste momento, o debate desloca-se da forma para o conteúdo
e o Supremo Tribunal Federal passa a analisar com outros olhos o conteúdo
das leis orçamentárias postas em questionamento pela via da ADI. Se até
então a regra da unanimidade da Corte era sempre pela impossibilidade de se
admitir o controle concentrado e abstrato de leis orçamentárias, após o
julgamento desta ADI, ainda que por maioria de votos, se afasta o STF de sua
posição anterior, não apenas sob o argumento da importância da lei
orçamentária dentro do ordenamento jurídico brasileiro, mas também passando
a identificar o seu conteúdo material, ainda que de maneira restrita.
A tese do acolhimento da ADI em face de lei orçamentária é também
abrigada no julgamento da ADI nº 4.048-MC (em 14/05/2008), que teve como
relator o Ministro Gilmar Mendes. Neste julgamento, o Ministro Carlos Ayres
Britto acompanhou o voto vencedor fazendo interessante menção à distinção
que o art. 102, I, “a” da Constituição realiza entre lei e ato normativo, e afirmou
que a lei seria o ato primário de aplicação da Constituição, que inova a ordem
jurídica por justamente estar logo abaixo da Constituição, e que esse seria o
caso da lei orçamentária. Nas palavras do mesmo Ministro, ao resgatar o valor
da lei orçamentária, “no fundo, abaixo da Constituição, não há lei mais
importante para o país, porque a que mais influencia o destino da coletividade”.
Por sua vez, no julgamento da ADI nº 3.949-MC (14/08/2008), o Ministro
Gilmar Mendes reconheceu que "a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
não andou bem ao considerar as leis de efeito concreto como inidôneas para o
controle abstrato de normas" e, com base em precedentes, manifesta o seu
entendimento no sentido de que "essa nova orientação é mais adequada
porque, ao permitir o controle de legitimidade no âmbito da legislação ordinária,
garante a efetiva concretização da ordem constitucional".
Na decisão monocrática em caráter liminar na ADI nº 4.663, de relatoria
do Ministro Luiz Fux, em que se discutia, dentre outros assuntos, a
possibilidade de haver questionamento de lei orçamentária por uma ADI, a
posição da evolução jurisprudencial é reforçada no sentido de ser admissível a
impugnação de lei de diretrizes orçamentárias em sede de controle abstrato de
constitucionalidade, por força da mudança de orientação jurisprudencial.
Finalmente, mais recentemente, no julgamento da ADI 5.449-MC
(10/03/2016), o Plenário do STF, consolidando o seu entendimento, afirmou ser
possível a impugnação, em sede de controle abstrato de constitucionalidade,
de leis orçamentárias. Consignou o relator do acórdão, o saudoso Ministro
Teori Zavascki, que “leis orçamentárias que materializem atos de aplicação
primária da Constituição Federal podem ser submetidas a controle de
constitucionalidade em processos objetivos”.
Ao superar a sua defasada concepção de que haveria uma suposta
ausência de normatividade, abstração e generalidade nas leis orçamentárias -
ainda que estas sejam casuísticas e dotadas de temporariedade -, o STF passa
a absorver os bons ventos dos novos tempos, deixando para trás a obsoleta
influência da teoria do jurista germânico Paul Laband (de meados do século
XIX), o qual forjou a tese da natureza de lei formal do orçamento público como
mero ato administrativo autorizativo, passando a reconhecer materialidade e
substancialidade ao seu conteúdo.
Mais do que isso, ao se admitir a ADI em face de leis orçamentárias,
vemos que a constitucionalização do Direito Financeiro já está florescendo no
próprio STF.
Choque de realidade e os relatórios das finanças
públicas

Publicado em 02/03/2017

Todos os anos, o mês de fevereiro é um período de revelações fiscais,


em que são divulgados os relatórios de gestão fiscal do último quadrimestre do
ano, juntamente com a versão consolidada do ano que se encerrou. Porém, as
notícias da real situação financeira dos entes acabam ofuscadas pelas festas
de carnaval, relegando-se a segundo plano a consciência fiscal do cidadão.
Tomando como exemplo, verificamos os dados referentes a 2016
publicados no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro (e muitos outros
estados estão em similar condição de calamidade financeira), em que se pode
constatar a seguinte situação: a) foram aplicados apenas R$ 3,75 bilhões em
saúde, equivalente a 10,35% da receita, quando a Constituição Federal e a Lei
Complementar 141/2012 impõem um mínimo de 12%; b) os gastos com a folha
de servidores atingiram o montante de R$ 33,4 bilhões, correspondendo a 72%
da Receita Corrente Líquida (RCL) do Estado do Rio de Janeiro (que totalizou
R$ 46,2 bilhões), 20% acima do teto-limite de 60% estabelecido na Lei de
Responsabilidade Fiscal; c) a previdência estadual encerrou o ano com um
déficit de R$ 11,5 bilhões; d) o nível de endividamento está em astronômicos
232% da RCL, com uma dívida consolidada de R$ 107,2 bilhões de reais.
Contudo, o nosso propósito de hoje não é analisar nem criticar os
assustadores números da atual situação fiscal - diga se passagem, calamitosa
- do Estado do Rio de Janeiro, mas sim chamar atenção para um relevante
instrumento de cidadania e transparência fiscal que são os relatórios
financeiros que a Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece e coloca à
disposição do cidadão para identificação do panorama financeiro dos entes
federados.
Importante lembrar que a transparência ressaltada pela LRF destina-se
a promover o acesso e a participação da sociedade em todos os fatores
relacionados com a arrecadação financeira e a realização das despesas
públicas, havendo uma seção própria na lei com este objetivo (Seção I do
Capítulo IX). Basicamente, podemos destacar os seguintes mecanismos de
transparência contidos na lei: a) incentivo à participação popular na discussão
e na elaboração das peças orçamentárias, inclusive com a realização de
audiências públicas; b) ampla divulgação por diversos mecanismos, até por
meios eletrônicos, dos relatórios, pareceres e demais documentos da gestão
fiscal; c) disponibilidade e publicidade das contas dos administradores durante
todo o exercício; d) emissão de diversos relatórios periódicos de gestão fiscal e
de execução orçamentária.
Aliás, a transparência fiscal não pode ser vista apenas sob a ótica da
divulgação e do acesso à informação, mas seu conceito deve ser
compreendido de maneira abrangente, abarcando outros elementos tais como
responsividade, accountability, combate à corrupção, prestação de serviços
públicos, confiança, clareza e simplicidade.
Dentre os mecanismos de transparência fiscal, destacamos o Relatório
Resumido de Execução Orçamentária (RREO) e o Relatório de Gestão Fiscal
(RGF), cujo objetivo é permitir que, cada vez mais, a sociedade e os diversos
órgãos de controle conheçam, acompanhem e analisem o desempenho da
execução orçamentária.
O primeiro deles, o RREO, vem previsto no art. 52 da LRF para dar
efetividade ao comando constitucional do art. 165, § 3º, o qual determina que o
Poder Executivo publique, até trinta dias após o encerramento de cada
bimestre, o Relatório Resumido da Execução Orçamentária. Este relatório
abrangerá os órgãos da administração direta e entidades da administração
indireta de todos os poderes, que recebam recursos dos orçamentos fiscal e da
seguridade social, inclusive sob a forma de subvenções para pagamento de
pessoal ou de custeio em geral ou de capital, excluídos, no último caso,
aqueles provenientes de aumento de participação acionária.
Este relatório será composto de: I – balanço orçamentário, que
especificará, por categoria econômica, as: a) receitas por fonte, informando as
realizadas e a realizar, bem como a previsão atualizada; b) despesas por grupo
de natureza, discriminando a dotação para o exercício, a despesa liquidada e o
saldo; II – demonstrativos da execução: a) das receitas, por categoria
econômica e fonte, especificando a previsão inicial, a previsão atualizada para
o exercício, a receita realizada no bimestre, a realizada no exercício e a
previsão a realizar; b) das despesas, por categoria econômica e grupo de
natureza da despesa, discriminando dotação inicial, dotação para o exercício,
despesas empenhada e liquidada, no bimestre e no exercício; c) despesas, por
função e subfunção.
Além da transparência fiscal, o RREO atende ao espírito da LRF,
especialmente quanto ao disposto nos arts. 1º, 4º, 8º, 11, 15, 32, 42 e 43, no
sentido de orientar sobre o equilíbrio entre receitas e despesas, a limitação de
empenho e movimentação financeira, a não geração de despesas
consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público, bem
como os critérios para criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação
governamental que acarrete aumento de despesa. Orienta, ainda, sobre o
cumprimento de metas de resultado primário ou nominal, sobre a instituição,
previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência
constitucional do ente, sobre a contratação de operações de crédito,
disponibilidades de caixa, restos a pagar, dentre outras disposições, visando
sempre à responsabilização do titular de Poder ou órgão no que se refere à
gestão dos recursos e patrimônio públicos.
Já o art. 54 da LRF introduz no sistema fiscal brasileiro o Relatório de
Gestão Fiscal (RGF), através do qual se permite realizar o controle, o
monitoramento e a publicidade do cumprimento, por parte dos entes
federativos, dos limites estabelecidos pela LRF, quais sejam, aqueles definidos
em percentuais da Receita Corrente Líquida (RCL) a respeito das despesas
com pessoal, dívida consolidada líquida, concessão de garantias e contratação
de operações de crédito.
A periodicidade estabelecida pela LRF para o RGF é quadrimestral,
devendo ser publicado e disponibilizado ao acesso público, inclusive em meios
eletrônicos, até trinta dias após o encerramento do período a que corresponder.
Prazo que, para o primeiro quadrimestre, encerra-se em 30 de maio, para o
segundo quadrimestre, em 30 de setembro e, para o terceiro quadrimestre, em
30 de janeiro do ano subsequente ao de referência.
Esse relatório abrangerá a administração direta, autarquias, fundações,
fundos, empresas públicas e sociedades de economia mista, incluindo os
recursos próprios, consignados nos orçamentos fiscal e da seguridade social,
para manutenção de suas atividades, excetuadas aquelas empresas que
recebem recursos exclusivamente para aumento de capital oriundos de
investimentos do respectivo ente.
O Relatório de Gestão Fiscal conterá demonstrativos comparativos dos
limites da LRF com informações relativas à despesa total com pessoal, dívida
consolidada, concessão de garantias e contragarantias de valores, operações
de crédito, bem como as medidas corretivas adotadas ou a serem adotadas
caso ultrapassados quaisquer dos limites previstos na LRF. No último
quadrimestre, também serão acrescidos os demonstrativos referentes ao
montante da disponibilidade de caixa em trinta e um de dezembro e às
inscrições em Restos a Pagar. Em todos os demonstrativos do Relatório de
Gestão Fiscal, as receitas e despesas intraorçamentárias deverão ser
computadas juntamente com as demais informações, não havendo, portanto, a
necessidade de segregação em linhas específicas.
Deixar de divulgar o RGF constitui infração administrativa contra as leis
de finanças públicas, punida com multa pessoal de trinta por cento dos
vencimentos anuais do agente que lhe der causa (art. 5º, § 1º, da Lei
10.028/2000), além de impedir que o ente receba transferências voluntárias e
contrate operações de crédito.
Mas a divulgação destes relatórios e outros demonstrativos fiscais não é
suficiente. Mesmo entre operadores do Direito, tais relatórios são, por vezes,
ilustres desconhecidos. O Estado brasileiro deve realizar um amplo programa
de educação e conscientização fiscal a fim de estimular o cidadão a
compreender os seus direitos e deveres cívicos, concorrendo para o
fortalecimento do ambiente republicano e democrático.
Sanções contra a irresponsabilidade fiscal

Publicado em 05/04/2017

Infelizmente, estamos a ver que a desobediência ao tripé orçamentário –


equilíbrio fiscal, transparência e planejamento orçamentário – vem gerando
uma severa e grave situação financeira para diversos Estados brasileiros,
fulminando a saúde das contas públicas e prejudicando toda a sociedade.
O advento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000) trouxe a
lume, no âmbito do Direito Financeiro, uma preocupação que se insere na
discussão da teoria geral do direito: o que fazer quando uma determinada
norma jurídica proibitiva não é cumprida espontaneamente?
Por isso, a LRF, que tem por escopo estabelecer normas de finanças
públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, prevê a punição à
irresponsabilidade fiscal de diversas formas, as quais podem ser agrupadas em
dois níveis ou espécies: a) sanções institucionais; e b) sanções pessoais.
As sanções institucionais são de natureza financeira e atingem o próprio
ente federativo, órgão ou poder que descumprir uma regra que lhe foi imposta
em matéria financeira. Essas punições consistem em três tipos: 1) suspensão
de transferências voluntárias (exceto para a saúde, assistência social e
educação); 2) suspensão de contratação de operações de crédito; 3)
suspensão de obtenção de garantias.
O objetivo principal destas sanções, as quais recaem sobre os próprios
entes federados, é compelir o respectivo ente a cumprir as determinações
legais em matéria de responsabilidade fiscal, por meio da ferramenta de
restrição ao acesso a recursos financeiros vindos daquelas operações.
Contudo, em que pese o caráter pedagógico desta espécie de sanção, é
a população em geral do ente federado aquela mais afetada, pois poderá não
receber os bens e serviços que deveriam ser prestados pelo Estado se este
não mais dispuser dos recursos necessários a partir das restrições
mencionadas.
Apenas para exemplificar, uma das sanções institucionais é aquela
presente no art. 23, § 3º da LRF, ao estatuir que, se o ente não reduzir o
excesso de despesa de pessoal previsto no art. 20 no prazo legal (em dois
quadrimestres, sendo pelo menos 1/3 no primeiro), este não poderá: I –
receber transferências voluntárias; II – obter garantia, direta ou indireta, de
outro ente; III – contratar operações de crédito, ressalvadas as destinadas ao
refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas
com pessoal.
Já as sanções pessoais, como o próprio nome indica, são aplicáveis
diretamente à pessoa do agente público que violar a legislação fiscal.
Apresentam diversas naturezas e são previstas em leis esparsas, sem prejuízo
de uma aplicação cumulativa, em razão da relativa independência das esferas
penal, civil e administrativa.
É o art. 73 da LRF que estabelece serem as infrações a seus
dispositivos punidas pessoalmente ao agente infrator segundo o Decreto-Lei nº
2.848/1940 (Código Penal), a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950 (Lei de
Crimes de Responsabilidade das autoridades da União e dos Estados e que
regula o respectivo processo de julgamento), o Decreto-Lei nº 201/1967 (que
dispõe sobre a responsabilidade dos prefeitos e vereadores) e a Lei nº
8.429/1992 (que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos
casos de improbidade administrativa), bem como de acordo com as demais
normas da legislação pertinente.
Assim, em primeiro lugar, temos as sanções pessoais de natureza
política, as quais ensejam a suspensão dos direitos políticos e a perda de
cargo eletivo ou função pública. A suspensão de direitos políticos pode variar
entre 3 e 10 anos, a depender da gravidade da infração, sendo prevista nos
três incisos do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92)
como sanção por atos ímprobos, dentre os quais se encontram tipificados
alguns de natureza financeira, como o de realizar operação financeira sem
observância das normas legais e regulamentares ou aceitar garantia
insuficiente ou inidônea (art. 10, VI); conceder benefício fiscal sem a
observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie
(art. 10, VII); ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em
lei ou regulamento (art. 10, IX); agir negligentemente na arrecadação de tributo
ou renda (art. 10, X); liberar verba pública sem a estrita observância das
normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular
(art. 10, XI).
Por sua vez, a sanção pessoal de perda do cargo eletivo ou função
pública por meio de julgamento político encontra previsão nos seguintes
diplomas que definem os “crimes” de responsabilidade (na verdade, infrações
político-administrativas) das respectivas autoridades públicas: a) Decreto-Lei nº
201/1967 para prefeitos e vereadores; b) Lei nº 1.079/1950 para Presidente da
República, Ministros de Estado, Procurador-Geral da República e seus
respectivos equivalentes estaduais; bem como Ministros do STF e Presidentes
de todos os Tribunais, dentre outras autoridades.
Exemplo recente de aplicação da sanção de perda de cargo eletivo se
deu no julgamento do processo de impeachment da ex-Presidente da
República Dilma Rousseff, em que o Senado Federal entendeu que a ex-
Presidente cometeu os crimes de responsabilidade consistentes em contratar
operações de crédito com instituição financeira controlada pela União e editar
decretos de crédito suplementar sem autorização do Congresso Nacional,
previstos no artigo 85, inciso VI e art. 167, V da Constituição Federal, bem
como no artigo 10, itens 4, 6 e 7, e artigo 11, itens 2 e 3 da Lei 1.079/1950,
ficando assim condenada à perda do cargo de Presidente da República
Federativa do Brasil.
A perda da função pública também pode se dar por ato de improbidade
administrativa, como previsto nos três incisos do art. 12 da Lei de Improbidade
Administrativa (Lei nº 8.429/92). Mas, neste caso, a perda da função é
decretada por decisão de natureza jurisdicional e não por juízo político feito
pelas Casas Legislativas.
As sanções de natureza administrativa e cível, além da mencionada
perda da função pública por decisão judicial, podem ser: a) a imposição do
pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial,
em caso de enriquecimento ilícito (art. 12, I, Lei nº 8.429/1992), de até duas
vezes o valor do dano, no caso de lesão ao erário (art. 12, II, Lei nº 8.429/1992)
ou de até cem vezes o valor da remuneração do agente nos atos que atentam
contra os princípios da Administração Pública (art. 12, III, Lei nº 8.429/1992); b)
a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou
incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por
intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, por prazos de dez,
cinco ou três anos; c) perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao
patrimônio; d) ressarcimento integral do dano ao Erário.
A Lei nº 10.028/2000, em seu art. 5º, prevê ainda uma multa de 30% dos
vencimentos anuais do agente que der causa a violações contra as leis de
finanças públicas nas hipóteses previstas em seus quatro incisos. Tal infração
administrativa será processada e julgada pelos Tribunais de Contas.
Por fim, existem as sanções pessoais de natureza penal, encontrando
fundamento no Código Penal, que sofreu relevantes alterações pela Lei nº
10.028/2000, chamada de “Lei dos Crimes Fiscais”, e inseriu no Código Penal
um capítulo específico para os Crimes Contra as Finanças Públicas, instituindo
oito tipos penais próprios (art. 359-A até art. 359-H).
Antes da promulgação dessa lei, as condutas reputadas como
criminalmente atentatórias às finanças públicas eram punidas essencialmente
com base no art. 315 do Código Penal (emprego irregular de verbas ou rendas
públicas).
As condutas tipificadas como crimes contra as finanças públicas pelo
Código Penal podem ser assim sintetizadas: contratação de operação de
crédito, sem autorização legislativa; inscrição de despesas não empenhadas
em restos a pagar; assunção de obrigação no último ano do mandato ou
legislatura que não possa ser paga no mesmo exercício financeiro; ordenação
de despesa não autorizada por lei; prestação de garantia graciosa; não
cancelamento de restos a pagar inscritos em valor superior ao permitido em lei;
aumento de despesa total com pessoal no último ano do mandato ou
legislatura; oferta pública ou colocação de títulos no mercado sem previsão
legal.
Todas as condutas apresentam previsão para o infrator de penas
privativas de liberdade de detenção ou reclusão, podendo ser substituídas por
penas restritivas de direitos ou multa nos casos autorizados pelo art. 44 do
Código Penal. Trata-se de crimes dolosos e, em sua maioria, independem da
produção de resultado danoso, classificando-se como crimes formais.
Apesar de considerarmos a tipificação penal feita pela Lei nº
10.028/2000 uma positiva evolução legislativa, criticamos a adoção pelo
legislador da orientação do direito penal mínimo, ao fixar penas brandas ao
infrator, viabilizando a aplicação de medidas alternativas à prisão.
Se todas estas sanções forem corretamente aplicadas diante da violação
das normas das finanças públicas, teremos uma razoável proteção da
sociedade contra atos de irresponsabilidade fiscal dos gestores públicos. Do
contrário, continuaremos a assistir à má-gestão das finanças públicas e o
verdadeiro penalizado será o cidadão.
A reforma da previdência e a LRF

Publicado em 04/05/2017

O tema em voga mais debatido nas últimas semanas é o da reforma da


previdência social. Há quem seja radicalmente contra e, por outro lado, há
também aqueles que pregam a sua urgente e imperiosa necessidade.
Os argumentos existem para ambos os lados, desde o déficit das contas
da previdência (embora haja quem diga ser superavitária); a questão
demográfica, que envolve o aumento da expectativa de vida e, por decorrência,
o crescente número de beneficiários (idosos inativos) em inversa proporção -
decrescente - do número de pessoas que contribuem (jovens ativos), dentro de
um modelo em que os que estão atualmente trabalhando custeiam os
benefícios daqueles que estão aposentados; sem deixar de mencionar os
grupos considerados “privilegiados”, com idade de aposentadoria reduzida,
possibilidade de acumulação e com valores de benefícios acima da média etc.
Dentre as principais mudanças que estão em debate, temos: fixação da
idade mínima para requerer a aposentadoria tanto para homens como para
mulheres; elevação do tempo de contribuição, com regra de transição e
“pedágio”; regras distintas para trabalhadores da iniciativa privada (INSS), do
setor público, trabalhador rural, categorias específicas (professores, policiais,
militares etc.); fim da “fórmula 85/95”; obrigação da reforma no âmbito dos
Estados e Municípios; criação de fundos de previdência complementar
obrigatórios; vedação à acumulação de benefícios; elevação da alíquota da
contribuição; fim da paridade de reajuste entre ativos e inativos etc.
Muito brevemente, o Congresso Nacional concluirá os debates e
aprovará a reforma da previdência social, aperfeiçoando o nosso modelo de
uma maneira que, assim se espera, melhor atenda às necessidades da
sociedade brasileira.
Independentemente disso, não podemos olvidar que a Lei de
Responsabilidade Fiscal dedica um dispositivo próprio para o tema da
seguridade social (art. 24, LRF), dentro da ideia de equilíbrio das contas
públicas. E, como sabemos, a previdência social encontra-se dentro deste
contexto, afinal, segundo o art. 194 da Constituição Federal, a seguridade
social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes
Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde,
à previdência e à assistência social.
Os valores e benefícios pagos à população em geral relativos à saúde
(Lei 8.080/1990), à previdência social (Lei 8.213/1991) e à assistência social
(Lei 8.743/1993) deverão possuir uma fonte de custeio própria, pois a
seguridade social será, nos termos do art. 195 da Constituição, financiada por
toda a sociedade, de forma direta e indireta, mediante recursos provenientes
dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e
das seguintes contribuições sociais: I – do empregador, da empresa e da enti-
dade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e
demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à
pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a
receita ou o faturamento; c) o lucro; II – do trabalhador e dos demais segurados
da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão
concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; III –
sobre a receita de concursos de prognósticos; IV – do importador de bens ou
serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.
Conforme estabelece a LRF (art. 24), nenhum benefício ou serviço
relativo à seguridade social – incluindo os benefícios ou serviço de saúde,
previdência e assistência social, inclusive os destinados aos servidores
públicos e militares, ativos e inativos, e aos pensionistas – poderá ser criado,
majorado ou estendido sem a indicação da fonte de custeio total, nos termos
do § 5º do art. 195 da Constituição, atendidas ainda as exigências do art. 17 da
própria lei, ou seja, deverão ser acompanhados de estimativa de impacto
orçamentário-financeiro trienal, da indicação da origem dos recursos que a
suportarão, da comprovação de que não afetarão as metas fiscais e de um
plano de compensação mediante aumento permanente de receitas ou
diminuição de despesas. Entretanto, é dispensado da referida compensação o
aumento de despesa decorrente de: I – concessão de benefício a quem
satisfaça as condições de habilitação prevista na legislação pertinente; II –
expansão quantitativa do atendimento e dos serviços prestados; III – rea-
justamento de valor do benefício ou serviço, a fim de preservar seu valor real.
Mas, ao que parece, diante das dificuldades financeiras que o país vem
atravessando e do caos fiscal em que muitas unidades da federação se
encontram (sobretudo o Estado do Rio de Janeiro), o dispositivo em comento
deixou de ter a devida atenção pelos governantes, para evitar que se
concedam vantagens, benefícios ou aumentos de gastos sem que se indique a
origem dos recursos orçamentários que irão atender às novas despesas.
Ora, sem soar repetitivo, é importante ressaltar que a norma contida no
artigo 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal tem a finalidade de garantir o
equilíbrio fiscal, face ao caráter contributivo das despesas previdenciárias com
aposentadorias e pensões conferido pela Emenda Constitucional 20/1998, na
medida em que condiciona a criação, majoração ou ampliação de despesas da
seguridade social à indicação da sua fonte de custeio, tal como já dispunha a
Constituição Federal (art. 195, § 5º), além de, por se tratar de despesa
obrigatória de caráter continuado, impor as exigências cautelares estabelecidas
na LRF, tais como a sua estimativa financeira, a indicação da origem dos
recursos que as financiarão, a demonstração de que não irão prejudicar as
metas fiscais estabelecidas e de um plano de compensação financeira
mediante aumento permanente de receitas ou diminuição de despesas.
Não se pode desconsiderar – e a nossa Constituição já nos diz isso em
seu art. 194 – que a seguridade social compreende um conjunto integrado de
ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a
assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social,
com base na universalidade da cobertura e do atendimento; na uniformidade e
equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; na
seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; na
irredutibilidade do valor dos benefícios; na equidade na forma de participação
no custeio; na diversidade da base de financiamento; e no caráter democrático
e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com
participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do
Governo nos órgãos colegiados.
Além disso, assume fundamental importância nesse momento o princípio
da transparência: como exige o art. 4º, §2º, inc. IV, "a" da LRF, o Anexo de
Metas Fiscais inserido na LDO deve conter avaliação da situação financeira e
atuarial dos regimes geral de previdência social (RGPS) e próprio dos
servidores públicos (RPPS).
Quanto ao RPPS, o demonstrativo da situação financeira e atuarial, a
ser feito por todos os entes federados, conterá as receitas e as despesas
previdenciárias, discriminando as intraorçamentárias, bem como as
classificando por categoria econômica. As informações deverão abranger os
valores relativos aos três últimos exercícios anteriores ao ano de elaboração da
LDO. A avaliação atuarial deve ser feita com base no Demonstrativo da
Projeção Atuarial do RPPS publicado no Relatório Resumido de Execução
Orçamentária do último bimestre do ano anterior ao da edição da LDO.
Eventuais mudanças nos cenários socioeconômicos que ensejem revisão das
variáveis consideradas nas projeções atuariais implicam a elaboração de novas
projeções. A importância desse demonstrativo está na transparência em
relação à preservação do equilíbrio financeiro e atuarial segundo as boas
práticas de contabilidade e atuária, como ressalta o art. 69 da LRF, de modo que
tais informações não podem constituir - especialmente nos Estados e
Municípios - uma caixa-preta inexpugnável aos olhos da sociedade.
Por isso, esperamos todos que, na condução desta reforma da
previdência social, os nossos representantes no Parlamento conjuguem o
espírito de equilíbrio sustentável das contas públicas, previsto na Lei de
Responsabilidade Fiscal, com os objetivos republicanos da nossa pátria, com
os anseios da sociedade e dos menos afortunados, tudo conforme os valores
liberais e sociais da nossa Constituição Federal.
A corrupção como despesa pública

Publicado em 01/06/2017

A corrupção em altíssimo grau na esfera pública tem sido assunto que


não abandona o noticiário recente. Infelizmente, as notícias não são
propriamente novas: a situação assume contornos endêmicos em nosso país
desde a colonização. Mas a corrupção não é um fenômeno brasileiro e
acompanha a história das sociedades, seja no setor público ou no privado. A
triste realidade da humanidade, mostrada pela história, é a de que, em todos os
lugares e culturas, sempre houve quem corrompesse e quem fosse
corrompido.
O Brasil já vivenciou e enfrentou diversos casos de corrupção que
drenaram dezenas de bilhões de reais dos cofres estatais em detrimento do
interesse público e em benefício de interesses particulares. Apenas para citar
alguns casos relevantes, lembramos: a) Anões do Orçamento (década de
1980); b) Construção do TRT-SP (década de 1990); c) Fraude no INSS
(década de 1990); d) Quebra do Banco Marka/FonteCindam (em 1999); e)
Máfia dos Precatórios (década de 1990); f) Zelotes (caso do CARF, em 2015)
e; g) Lava-Jato (caso da Petrobras e seus desdobramentos, em favor de
partidos políticos - de 2015 até hoje).
A corrupção sistêmica e constante em uma nação produz o efeito
maléfico de desviar para terceiros parcela dos recursos públicos que deveriam
ser destinados à sociedade, seja pelo superfaturamento e respectiva elevação
nos custos de obras, investimentos, aquisição de bens e serviços fundamentais
para a população (por exemplo, na compra de medicamentos, de merendas
etc.), seja através da não arrecadação de receitas pela concessão de
incentivos fiscais indevidos, desprovidos de efetivo interesse público e
concedidos em troca de benefícios pessoais, sobretudo os de natureza
pecuniária.
Portanto, sob a ótica fiscal, a corrupção adquire natureza de despesa
pública de duas formas: a) como custo adicional nos gastos públicos, pelo
superfaturamento dos preços contratados; b) como renúncia de receitas
públicas, na modalidade de “Tax Expenditure” ou gasto tributário, outorgada a
título de incentivos fiscais através de anistias, remissões, subsídios, créditos
fiscais, isenções, redução de alíquotas ou base de cálculo.
Diante desse quadro, há quem diga que a corrupção deveria se
equiparar a crime hediondo, pois corruptor e corrompido se equivalem ao
ladrão, ao homicida, ao criminoso que dilapida os cofres públicos e atinge
mortalmente o coração da moralidade pública administrativa, pois, com a sua
conduta ilícita, fere a um número incalculável de pessoas que muitas vezes
dependem, para a sua sobrevivência, dos recursos financeiros que são
desviados para seus bolsos e contas no exterior.
Tramita na Câmara dos Deputados proposta da Comissão de Legislação
Participativa (PL 6665/16) que aumenta as penas para diversos crimes de
corrupção e os transforma em crime hediondos, cuja pena deve ser cumprida
inicialmente em regime fechado, sendo insuscetíveis de anistia, graça, indulto e
fiança. Dentre as alterações da proposta, o crime de peculato – quando o
funcionário público apropria-se de dinheiro ou bem de que tem a posse em
razão do cargo, ou o desvia – passará a ser punido com pena de reclusão de 4
a 12 anos e multa (atualmente, a pena mínima é de reclusão de dois anos). E a
pena para a corrupção passiva – solicitar ou receber, para si ou outra pessoa,
vantagem indevida em razão da função pública – também passaria a ser
punida com reclusão de 4 a 12 anos e multa (hoje a pena prevista é de
reclusão de 2 a 12 anos e multa). Ainda, o crime de tráfico de influência –
solicitar, exigir, cobrar ou obter vantagem ou promessa de vantagem, para
influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função –
passará a ter pena de reclusão de 4 a 8 anos e multa (a pena atual é de
reclusão 2 a 5 anos e multa) e a corrupção ativa – oferecer ou prometer
vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou
retardar ato de ofício – passaria a ser punida com reclusão de 4 a 12 anos e
multa (a pena mínima atual é de reclusão de dois anos e multa).
A ONG Transparência Internacional, que define corrupção como “o
abuso do poder confiado para fins privados”, divulga anualmente um ranking de
corrupção mundial, tendo o Brasil aparecido, no ano passado (2016), na 79º
posição (empatado com a Bielorrússia, China e Índia), numa lista de 176 países
(estando em primeiro lugar a Dinamarca e a Nova Zelândia, e em último a
Somália). Em relatórios anteriores sobre a situação da corrupção no Brasil, a
Transparência Internacional (TI) relaciona como maiores desafios para o
combate à corrupção no Brasil: (i) a corrupção no governo e nos partidos
(partidos políticos e o Poder Legislativo são percebidos como as instituições
mais afetadas pela corrupção); (ii) o setor privado, submetido a agências
regulatórias, que aumentam a propensão a tentativas de suborno; (iii) o
financiamento de campanhas políticas; (iv) a corrupção nos níveis estadual e
municipal; (v) contratações para grandes obras públicas. Em relatório global, a
Transparência Internacional destaca o escândalo da Petrobras (Operação Lava
Jato), a queda e fuga do ex-presidente da Ucrânia Viktor Yanukovych em 2014 e a
corrupção na FIFA sobre a compra de votos na escolha de sedes da Copa do
Mundo.
Em um estudo realizado pelo Fundo Monetário Internacional (Corruption:
Costs and Mitigating Strategies), estimou-se que o custo da corrupção giraria
em torno de 2% do PIB mundial (US$ 2 trilhões em 2015). Já em estudo
divulgado pela FIESP (Corrupção: custos econômicos e propostas de
combate), o custo da corrupção no Brasil giraria, por ano, entre 1,38% e 2,3%
do PIB, o que, em valores para o ano de 2016, atingiria a monta de 120 bilhões
de reais, isto é, recursos que deixam de ser canalizados para importantes
setores dos direitos sociais e fundamentais como saúde, educação, transporte,
segurança pública e outros. Segundo o estudo, a corrupção pode prejudicar
seriamente o desempenho econômico de um país. Entre uma série de
problemas, a corrupção afeta as decisões de investimentos, limita o
crescimento econômico, altera a composição dos gastos governamentais,
causa distorções na concorrência, abala a legitimidade dos governos e a
confiança no Estado. Por meio desses fatores, a corrupção compromete a
competitividade do país, na medida em que aumenta o custo do investimento
produtivo e prejudica a estabilidade do ambiente de negócios.
É de se registrar que o Ministério Público Federal apresentou à
sociedade brasileira, no ano de 2016, as “10 Medidas de Combate a
Corrupção” (Projeto de Lei nº 4850/2016), que se encontra atualmente no
Senado Federal, e que visa aprimorar a prevenção e o combate à corrupção e
à impunidade. As propostas (em seu texto original) objetivam transparência,
prevenção, eficiência e efetividade, e buscam, entre outros resultados: a) evitar
a ocorrência de corrupção (via prestação de contas, treinamentos e testes
morais de servidores, ações de marketing/conscientização e proteção a quem
denuncia a corrupção); b) criminalizar o enriquecimento ilícito; c) aumentar
penas da corrupção e tornar hedionda aquela de altos valores; d) agilizar o
processo penal e o processo civil de crimes e atos de improbidade; e) fechar
brechas da lei por onde criminosos escapam (via reforma dos sistemas de
prescrição e nulidades); f) criminalizar caixa dois e lavagem eleitorais; g)
permitir punição objetiva de partidos políticos por corrupção em condutas
futuras; h) viabilizar a prisão para evitar que o dinheiro desviado desapareça; i)
agilizar o rastreamento do dinheiro desviado; j) fechar brechas da lei por onde o
dinheiro desviado escapa (por meio da ação de extinção de domínio e do
confisco alargado).
Em todos os lamentáveis casos concretos de corrupção ocorridos nas
últimas décadas em nosso país, podemos encarar tais ilícitos como um custo
financeiro adicional falsamente declarado, que se equipara e tem o mesmo
efeito de uma despesa pública a afetar o orçamento estatal, prejudicando o
equilíbrio fiscal e, principalmente, retirando dos cofres públicos os recursos que
deveriam ser destinados aos direitos sociais e fundamentais da população.
Mas não basta aumentar as penalidades de tais crimes. É necessário
que o cidadão participe mais ativamente das questões fiscais, cobrando das
autoridades e órgãos públicos maior transparência, fiscalização, prestação de
contas, repressão e responsabilização dos gestores públicos e de todos
aqueles que, de alguma maneira, participam ativa ou passivamente de
esquemas fraudulentos que desviem os recursos públicos da sua destinatária
única: a sociedade.
Véu da ignorância ou educação fiscal?

Publicado em 04/07/2017

Hoje, a sensação é, ao mesmo tempo, uma mescla de alegria em


perceber que o Direito Financeiro vem ocupando cada vez mais espaço nos
debates sociais, políticos, econômicos e jurídicos; e de perplexidade ao
identificar uma passividade e apatia generalizadas da sociedade diante de
tantas situações indigestas na seara fiscal. Desde o impeachment de uma
presidente por questões orçamentárias até o descumprimento deliberado da
Lei de Responsabilidade Fiscal, culminando na “quase falência” de muitos
Estados, vive-se como se um véu da ignorância fosse o remédio para o
distanciamento diante dessas ocorrências, na crença de que sempre haverá
outrem para se preocupar, questionar e solucionar essas graves questões.
O problema está em deixar a “res publica” ser tratada como se fosse
coisa de ninguém, abrindo-se espaço para que malfeitores a tratem como “cosa
nostra”, parafraseando-se o saudoso gênio Roberto Campos.
O resultado atual disso é evidente e ocupa as páginas frontais de todos
os jornais: corrupção inimaginavelmente enraizada no setor público; loteamento
dos órgãos e empresas estatais por apadrinhados desqualificados em vez de
técnicos especializados; transformação dos orçamentos públicos - leis de foro
constitucional - em peças de ficção e de panfletagem político-partidária;
desequilíbrio fiscal generalizado e escolhas infaustas na alocação de recursos
públicos, desembocando em uma sociedade desprovida dos serviços públicos
mínimos e básicos como saúde, educação e segurança pública.
Mas se as questões fiscais são tão relevantes e determinantes para o
desenvolvimento de uma sociedade mais digna e justa, o que faz a população
distanciar-se com tanta indiferença? Quiçá a sociologia ou a psicologia possam
explicar ou teorizar sobre as razões pelas quais o cidadão brasileiro, conquanto
reconheça que algo pode afetar tanto a sua vida, recuse-se a participar.
Independentemente das justificativas, uma coisa parece-nos irrefutável:
que a educação fiscal, em todas as suas faces - seja a tributária ou a financeira
-, tem sido menoscabada por todos nós, sobretudo pelos governantes. E, como
consequência, devemos reconhecer que a culpa da irresponsabilidade fiscal
generalizada que hoje ganha tamanha visibilidade não é exclusivamente do
gestor público, devendo também ser assumida e dividida por cada um de nós,
por termos nos omitido por tanto tempo.
A educação fiscal deve ser compreendida como uma abordagem
didático-pedagógica capaz de interpretar as vertentes financeiras da
arrecadação e dos gastos públicos, estimulando o cidadão a compreender o
seu dever de contribuir solidariamente em benefício do conjunto da sociedade
e, por outro lado, a estar consciente da importância de sua participação no
acompanhamento da aplicação dos recursos arrecadados, com justiça,
transparência, honestidade e eficiência, minimizando o conflito de relação entre
o cidadão contribuinte e o Estado arrecadador. A educação fiscal deve tratar da
compreensão do que é o Estado, suas origens, seus propósitos e da
importância do controle da sociedade sobre o gasto público, através da
participação de cada cidadão, concorrendo para o fortalecimento do ambiente
democrático.
É urgente e imperioso incluir como objetivo primordial dentro das
políticas públicas fiscais a promoção e a institucionalização da educação fiscal
em nível escolar e universitário para proporcionar maior conscientização social
da importância desse tema e para que haja o efetivo exercício da cidadania,
visando ao constante aprimoramento da relação participativa e consciente
entre o Estado e o cidadão e da defesa permanente das garantias
constitucionais.
O relevante Programa Nacional de Educação Fiscal, já existente em
nível federal e estadual, deve ter maior efetividade e amplitude para que possa
produzir os efeitos concretos desejados e para não ser relegado ao mero papel
coadjuvante de mais uma boa intenção governamental que não atinge o seu
desiderato e público final: o cidadão. Para os que não o conhecem, tem por
base os seguintes fundamentos:
a) na educação, o exercício de uma prática pedagógica que objetiva
formar um cidadão autônomo, reflexivo e consciente de seu papel, capaz
de contribuir para a transformação da sociedade;
b) na cidadania, o estímulo ao fortalecimento do poder do cidadão para o
exercício do controle democrático do Estado, incentivando-o à
participação coletiva na definição de políticas públicas e na elaboração
de leis para sua execução;
c) na ética, a opção pelos caminhos que nos levem à adoção de
condutas responsáveis e solidárias, que privilegiem sempre o bem
comum;
d) na política, a decisão de compartilhar os conhecimentos adquiridos
sobre gestão pública eficiente, eficaz e transparente quanto à captação,
à alocação e à aplicação dos recursos públicos, com responsabilidade
fiscal e ênfase no conceito de bem público como patrimônio da
sociedade;
e) no controle social, o foco na disseminação dos conhecimentos e
instrumentos que possibilitem ao cidadão atuar no combate ao
desperdício e à corrupção;
f) na relação Estado-Sociedade, o desenvolvimento de um ambiente de
confiança entre a Administração Pública e o cidadão, oferecendo-lhe um
atendimento respeitoso e conclusivo, com ênfase na transparência das
atividades estatais;
g) na relação Administração Tributária-Contribuinte, o estímulo ao
cumprimento voluntário das obrigações tributárias e ao combate à
sonegação fiscal, ao contrabando, ao descaminho e à pirataria.
Infelizmente, apesar disso tudo, a grande verdade é que tais objetivos e
pretensões não têm se materializado a contento.
A prova disso encontra-se no próprio mundo jurídico brasileiro, em que
grande parte dos estudantes e profissionais atuantes pouco conhece da
disciplina do Direito Financeiro. Esse ramo do direito não é considerado pelo
MEC como disciplina obrigatória para o currículo de graduação nas faculdades
de direito nacionais (com raras exceções: são matérias obrigatórias, por
exemplo, na USP e na UERJ), bem como a OAB não o inclui no programa do
edital do seu importante Exame de Ordem, não cobrando uma questão sequer
a respeito, apesar de a temática possuir um capítulo próprio na Constituição
Federal, a qual dispõe em diversos de seus artigos sobre assuntos como
orçamento público, tribunais de contas, receitas e despesas públicas, dentre
tantas outras importantes normas jurídicas acerca das finanças públicas.
Um exemplo da consequência de tal cenário, e sem adentrar no mérito
político da questão, foi aquilo a que assistimos durante o julgamento do
impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em que, salvo poucas
brilhantes e bem fundamentadas manifestações, como as do professor da USP
José Maurício Conti e do Procurador de Contas Júlio Marcelo de Oliveira,
vimos argumentações rasas, pueris e desprovidas de conhecimento jurídico do
Direito Financeiro-Orçamentário, inclusive em falas de alguns que se
intitulavam professores de Direito Financeiro, os quais, de maneira arrogante e
maliciosa, foram capazes de distorcer perante sua plateia os princípios jurídico-
financeiros mais basilares, tais como o da anualidade orçamentária, que
acabou sendo desfigurado. Aliás, a própria peça inicial do pedido de
impeachment, apesar do vasto e profundo conhecimento jurídico dos seus
signatários em suas respectivas áreas de especialização, poucas linhas gastou
para fundamentar com a densidade e profundidade necessárias a matéria
orçamentária de Direito Financeiro ali tratada.
A preocupação com a difusão das normas do Direito Financeiro no
âmbito jurídico foi recentemente revelada durante o 4º Congresso Internacional
de Direito Financeiro, realizado em Fortaleza sob a organização do Tribunal de
Contas do Estado do Ceará, que, juntamente com a Sociedade Brasileira de
Direito Financeiro, divulgou a “Carta de Fortaleza”, manifesto no qual se propõe
que a disciplina jurídica seja considerada e incluída pelo MEC como matéria
obrigatória no currículo de graduação das Faculdades de Direito, bem como
que o Conselho Federal da OAB passe a incluir no edital e cobrar a disciplina
em seu Exame de Ordem. A proposta já conta com diversos apoios de
importantes instituições e pessoas, dentre as quais a ATRICON (Associação
dos Membros dos Tribunais de Contas), o CNPGC (Conselho Nacional de
Procuradores-Gerais de Contas), a FEBRAFITE (Federação Brasileira dos
Fiscais de Tributos Estaduais), a AJUFERJES (Associação de Juízes Federais
dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo), o NEFIT (Núcleo de Finanças
e Tributação da UERJ) e o IRBCONTAS (Instituto Rui Barbosa).
Portanto, percebe-se que a educação fiscal, por todas as suas formas e
manifestações, possui um importante e determinante papel no desenvolvimento
da cidadania fiscal, virtude imprescindível para qualquer nação que pretenda o
bem-estar dos seus integrantes, pois será por meio dela que este cidadão,
conhecedor dos seus direitos e deveres, demandará ao governante o
cumprimento adequado do seu múnus para que se possa ter, ao final, uma
verdadeira justiça fiscal acompanhada de justiça social.
A função parlamentar no orçamento público e o déficit
democrático

Publicado em 03/08/2017

Até o final deste mês de agosto esgota-se o prazo do Poder Executivo


Federal para encaminhamento do projeto de lei orçamentária anual ao Poder
Legislativo, para deliberação e aprovação parlamentar, a fim de que seja
devolvido e sancionado até o encerramento da sessão legislativa e tenha a sua
imprescindível vigência no primeiro dia do próximo ano.
Revela-se neste diálogo entre poderes - constitucionalmente desenhado
- o ideal da democracia fiscal pela participação popular no orçamento através
dos seus representantes eleitos.
Mas, infelizmente, na prática brasileira, os valores republicano e
democrático no processo orçamentário não se têm materializado. Não obstante
os encômios à democracia fiscal orçamentária, num país em que prevalece a
mecânica do presidencialismo de coalizão, a legítima participação dos
representantes das unidades federativas no Poder Legislativo durante o
processo de elaboração e aprovação das leis orçamentárias nem sempre se
faz adequada, sobretudo por decorrência de pressões pela inclusão de dotação
orçamentária destinada a atender às bases eleitorais por meio das emendas
parlamentares. Essa situação, que se repete não apenas na União, mas
também em diversos Estados e Municípios, em muitas circunstâncias acarreta
um aumento de gastos e desequilíbrio fiscal.
Um exemplo concreto disto foi a aprovação, no dia 13 de julho passado,
em votação simbólica e às pressas para permitir o início do recesso do
legislativo federal, do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) da
União para o ano de 2018 (Projeto de Lei nº 01/2017-CN), prevendo um déficit
de mais de 130 bilhões de reais. Pode-se também citar a tão noticiada “troca
de favores”, através da liberação de verbas orçamentárias para emendas
parlamentares, na votação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) que
buscava a rejeição do parecer sobre a autorização da Câmara de Deputados
para que a denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o Presidente
da República fosse julgada pelo Supremo Tribunal Federal.
Não se pode negar que as mencionadas emendas parlamentares fazem
parte legítima do processo orçamentário. Podem ser apresentadas ao projeto
de lei orçamentária, configurando propostas formuladas por parlamentares com
o objetivo de alterar o projeto original, de modo a influenciar na destinação dos
gastos públicos em função de suas ideologias e compromissos políticos,
suprimindo, modificando ou adicionando determinadas rubricas orçamentárias.
Todavia, tais propostas deveriam contemplar um verdadeiro interesse
republicano.
Prevalece, contudo, em nosso regime presidencialista de coalizão, a
concorrência do jogo político dentro do processo de aprovação e execução das
leis orçamentárias, gerando um nefasto desequilíbrio fiscal e uma evidente falta
de preponderância das despesas que realmente são prioritárias, a partir da
persistência de interesses individuais em detrimento do estabelecimento de
verdadeiros programas e planos de políticas públicas.
É importante lembrar que, segundo a Constituição, as emendas ao
projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente
podem ser aprovadas caso: I - sejam compatíveis com o plano plurianual e com
a lei de diretrizes orçamentárias; II - indiquem os recursos necessários,
admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa, excluídas as que
incidam sobre: a) dotações para pessoal e seus encargos; b) serviço da dívida;
c) transferências tributárias constitucionais para Estados, Municípios e Distrito
Federal; ou III - sejam relacionadas: a) com a correção de erros ou omissões;
ou b) com os dispositivos do texto do projeto de lei. (§§ 2º e 3º do art. 166,
Constituição).
As origens do orçamento público como documento democrático e
representativo da vontade do povo na alocação de recursos remontam à
Magna Carta inglesa de 1215, na qual se vislumbra o embrião do processo de
transmutação do modelo de regimes absolutistas para o Estado de Direito, em
que as receitas e os gastos do governante passam a ser definidos pelo
Parlamento. Historicamente, o controle do Parlamento sobre as finanças do
governante se deu primeiramente na sua face arrecadatória (tributação) e, só
posteriormente, foi estendido para a orçamentária (despesa).
Porém, somente com o desenvolvimento do constitucionalismo e o
controle do Poder Legislativo sobre o Executivo, e com o advento das
instituições de governo representativo, é que se inicia a evolução do sistema
orçamentário no Velho Mundo, modelo que se espraia para a grande maioria
das nações. Remonta, assim, ao advento do controle do Parlamento sobre a
Coroa, a partir da insatisfação popular sobre as escolhas do rei. Por outro lado,
há quem sustente, em postura crítica, que o controle da despesa pública
praticado através da votação do orçamento surge, na realidade, como
instrumento de interferência política da classe dominante e não como
mecanismo propriamente popular e democrático.
Não obstante, percebe-se que o orçamento público, ao longo dos
séculos, transformou-se em um instrumento de relacionamento político entre o
governante e o Parlamento nos Estados de Direito modernos. Parte-se da
concepção de que a estrutura organizatória-funcional dos poderes financeiros
passa a conceber, para além da mera autorização arrecadatória, a proposição
orçamentária da despesa pública, que embora esteja inicialmente em mãos do
governante, deve também ser submetida ao Parlamento - formado por
representantes dos cidadãos - para autorização da execução de gastos na
forma de lei.
Apesar disso, vivemos em um contexto de "desvalorização
orçamentária", sobretudo pelo déficit decorrente de uma inefetiva participação
parlamentar. A isso, soma-se a relativização dos efeitos materiais das leis
orçamentárias, mormente pela influência da teoria do jurista germânico Paul
Laband (século XIX) que conferiu à lei orçamentária natureza de mera lei
formal. Este modo de ver as coisas, infelizmente, ainda influencia e causa
miopia em muitos atores das finanças públicas no Brasil nos dias atuais, o que,
a nosso ver, tende ao retrocesso de todo o processo evolutivo da seara fiscal,
fato que merece uma releitura a partir da consideração de todo o conjunto de
nossos preceitos constitucionais de natureza orçamentária.
Se, por um lado, devemos ter em mente que não se pode conferir
poderes ilimitados ao Poder Executivo para elaborar e executar o orçamento
público conforme seus interesses e conveniência, contingenciando,
remanejando ou cancelando despesas, de maneira a monopolizar ilegítima e
artificialmente o processo orçamentário, por outro, não se pode reduzir o papel
do Poder Legislativo a mero "carimbador" no processo orçamentário, e nem
este servir para realizar apenas certos interesses individuais, fato que não se
coaduna com o modelo republicano brasileiro nem com a dignidade do
exercício da função legiferante própria daquele Poder.
Não podemos olvidar que o cidadão é parte diretamente interessada e
ativa nas questões orçamentárias. Afinal, no Estado contemporâneo, o cidadão
possui não só uma gama de deveres, mas também de direitos fiscais, que
permitem a sua participação, ainda que de maneira indireta, na formulação das
políticas públicas, passando pelo dispêndio dos recursos, até o controle da
execução orçamentária.
E, ao final, para garantir a efetividade dos direitos humanos e sociais, e
materializá-los em bens e serviços oferecidos à coletividade, o Estado
dependerá de uma atividade financeira conduzida em observância aos
preceitos e normas constitucionais das finanças públicas, tendo o orçamento
público papel capital nesta tarefa, este que é um relevante instrumento de
planejamento, gestão e controle financeiro, ao contemplar a participação
conjunta dos Poderes Executivo e Legislativo, tanto na sua elaboração e
aprovação, quanto no controle da sua execução, configurando um instituto
fundamental no Estado Democrático de Direito.
Indesejável guerra fiscal e a LC 160/2017

Publicado em 06/09/2017

No dia 8 de agosto passado, foi publicada a Lei Complementar nº


160/2017, editada com a finalidade de minimizar os efeitos negativos da
concorrência fiscal estadual, mas sem descuidar da segurança jurídica e
expectativa legítima despertada nos contribuintes. Assim, permitiu a
convalidação de incentivos fiscais concedidos no passado sem a aprovação do
Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) e a remissão dos créditos
tributários decorrentes, bem como apresentou novas regras para inibir a
prática, inclusive com sanções financeiras decorrentes da Lei de
Responsabilidade Fiscal aplicadas ao Estado que conceder ou mantiver os
incentivos fiscais em desacordo com a LC nº 24/75.
Esse tema não é novo. Mas dada a iniciativa da legislação citada, a
questão merece voltar a debate, sobretudo diante da atual situação fiscal de
desequilíbrio e de déficits que a União e a grande maioria dos Estados-
membros vivencia.
Apenas para citar o caso da União, recentemente foi amplamente
divulgado o montante estimado da desoneração fiscal federal ("gastos
tributários"), girando em torno de 285 bilhões de reais para o corrente ano de
2017. São consideradas desonerações tributárias todas e quaisquer situações
que promovam presunções creditícias, isenções, anistias, reduções de
alíquotas, deduções, abatimentos e diferimentos de obrigações de natureza
tributária. Tais desonerações, em sentido amplo, são justificadas pelos
governos por supostamente servir a diversos fins: simplificar e/ou diminuir os
custos da administração; promover a equidade; corrigir desvios; compensar
gastos realizados pelos contribuintes com serviços não atendidos pelo governo;
compensar ações complementares às funções típicas de Estado desenvolvidas
por entidades civis; promover a equalização das rendas entre regiões; e/ou, g)
incentivar determinado setor da economia.
Segundo os dados fornecidos pela Secretaria da Receita Federal
(Relatório "Demonstrativo de Gastos Tributários PLOA 2017"), esses benefícios
fiscais estão assim distribuídos: a) Agricultura - R$ 26,58 bilhões (9,33% do
total): Desoneração Cesta Básica: R$ 17,58 bilhões; Exportação da Produção
Rural: R$ 6,26 bilhões; Seguro rural: R$ 218 milhões; Zona Franca de Manaus: R$
1,24 bilhão; b) Assistência Social - R$ 12,73 bilhões (4,47% do total):
Aposentadoria de Declarante com 65 Anos ou Mais: R$ 6,44 bilhões; Automóveis
- Pessoas Portadoras de Deficiência: R$ 367 milhões; Cadeira de Rodas e
Aparelhos Assistivos: R$ 244 milhões; Dona de Casa: R$ 240 milhões; Entidades
sem Fins Lucrativos - Associação Civil: R$ 2,7 bilhões; Entidades sem Fins
Lucrativos - Filantrópica: R$ 1,39 bilhão; c) Ciência e Tecnologia - R$ 10,1 bilhões
(3,55% do total): Despesas com Pesquisas Científicas e Tecnológicas: R$ 1,48
bilhão; Informática e Automação: R$ 5,76 bilhões; Inovação Tecnológica: R$ 2,05
bilhões; d) Comércio e Serviços - R$ 82,78 bilhões (29% do total): Simples
Nacional: R$ 64,09 bilhões; Zona Franca de Manaus: R$ 17,19 bilhões; e) Cultura
- R$ 1,83 bilhão (0,64% do total): Atividade Audiovisual: R$ 282 milhões;
Entidades sem Fins Lucrativos - Cultural: R$ 163 milhões; Programa Nacional de
Apoio à Cultura: R$ 1,35 bilhão; RECINE: R$ 10,7 milhões; f) Desporto e Lazer -
R$ 706 milhões (0,25% do total): Entidades sem Fins Lucrativos - Recreativa: R$
258 milhões; Incentivo ao Desporto: R$ 235 milhões; Olimpíadas: R$ 212 milhões;
g) Direitos da Cidadania - R$ 753 milhões (0,26% do total): Fundos da Criança e
do Adolescente: R$ 346 milhões; Fundos do Idoso: R$ 87 milhões; Horário
Eleitoral Gratuito: R$ 319 milhões; h) Educação - R$ 14,17 bilhões (4,98% do
total): Creches e Pré-Escolas: R$ 21 milhões; Despesas com Educação: R$ 4,29
bilhões; Entidades Filantrópicas: R$ 4,54 bilhões; Entidades sem Fins Lucrativos -
Educação: R$ 3,61 bilhões; PROUNI: R$ 1,32 bilhão; Transporte Escolar: R$ 6
milhões; i) Energia - R$ 4,14 bilhões (1,46% do total): Biodiesel: R$ 65 milhões;
Gás Natural Liquefeito: R$ 666 milhões; Regime Especial de Incentivos para o
Desenvolvimento da Infraestrutura: R$ 2,41 bilhões; Termoeletricidade: R$ 740
milhões; j) Habitação - R$ 11,25 bilhões (3,95% do total): Financiamentos
Habitacionais: R$ 2,19 bilhões; Minha Casa, Minha Vida: R$ 582 milhões;
Poupança: R$ 8,43 bilhões; k) Indústria - R$ 35,13 bilhões (12,34% do total):
Inovar-Auto (indústria automobilística): R$ 1,21 bilhão; Petroquímica: R$ 1,09
bilhão; Setor Automotivo: R$ 2,49 bilhões; Simples Nacional: R$ 18,9 bilhões;
SUDAM: R$ 1,84 bilhão; SUDENE: R$ 2,71 bilhões; Zona Franca de Manaus: R$
6,42 bilhões; l) Saúde - R$ 36,01 bilhões (12,64% do total): Assistência Médica,
Odontológica e Farmacêutica a Empregados: R$ 5,08 bilhões; Despesas Médicas:
R$ 12,69 bilhões; Entidades Filantrópicas: R$ 6,82 bilhões; Entidades sem Fins
Lucrativos - Assistência Social e Saúde: R$ 3,79 bilhões; Medicamentos: R$ 5,31
bilhões; Produtos Químicos e Farmacêuticos: R$ 2,13 bilhões; m) Trabalho - R$
43,17 bilhões (15,16% do total): Aposentadoria por Moléstia Grave ou Acidente:
R$ 10,75 bilhões; Benefícios Previdenciários e FAPI: R$ 4,45 bilhões;
Desoneração da Folha de Salários: R$ 17,03 bilhões; Indenizações por Rescisão
de Contrato de Trabalho: R$ 5,99 bilhões; MEI - Microempreendedor Individual:
R$ 1,55 bilhão; Incentivo à Formalização do Emprego Doméstico: R$ 685 milhões;
n) Transporte - R$ 4,99 bilhões (1,75% do total): Embarcações e Aeronaves: R$
1,46 bilhão; Leasing de Aeronaves: R$ 787 milhões; Motocicletas: R$ 107
milhões; TAXI: R$ 219 milhões; Transporte Coletivo: R$ 1,66 bilhão.
A pergunta que devemos realizar é: será que todos esses benefícios fiscais
cumprem adequadamente o seu papel e oferecem à sociedade brasileira o retorno
pretendido? Ou seria melhor o próprio Estado aplicá-los diretamente e destinar
tais recursos ao objetivo final?
A situação se torna ainda mais delicada quando estamos diante de
renúncias fiscais concedidas por Estados-membros e que acabam gerando uma
indesejável guerra fiscal ao tentarem atrair para o seu território empresas e
empreendimentos através de desonerações tributárias e créditos financeiros,
fenômeno conhecido como "guerra fiscal".
Cabe registrar que a prática estadual se materializou a partir da efetiva
descentralização da federação e da autonomia concedida aos entes pela
Constituição de 1988, uma vez que, no período anterior, do regime militar de
1964, prevalecia o modelo centralizador nas mãos do Governo central, pouco
remanescendo em termos de arrecadação e de investimentos para Estados e
Municípios.
Apesar do ganho político gerado na propaganda positiva em favor do
administrador público que "ganha" o duelo fiscal, com argumentos que vão
desde aumento de empregos, desenvolvimento local, incremento da
arrecadação futura e desconcentração industrial, as críticas à guerra fiscal são
inúmeras e de diversas ordens e natureza.
Em primeiro lugar, deve-se reconhecer que, apesar de um ente se
beneficiar no curto prazo com o redirecionamento do empreendimento ao seu
território em detrimento do outro, o que por si só já não é algo efetivamente
eficiente, a partir de uma visão global, a federação como um todo é que perde,
não apenas pela desarmonia federativa, mas também pela privação dos
recursos financeiros renunciados. Ademais, há o perigo da banalização da
prática, com a multiplicação indevida do fenômeno e a perda da eficácia do
estímulo, com a inexorável redução global de arrecadação.
Além disso, não há comprovação quantitativa de que os resultados dos
investimentos alocados após o redirecionamento do empreendimento sejam
superiores ao valor das renúncias concedidas, deixando dúvidas se a aplicação
direta dos recursos abdicados geraria maior benefício para aquela sociedade
em vez da concessão dos estímulos. E a eficácia econômica desta conta
restará ainda mais duvidosa se levarmos em consideração que o maior
desenvolvimento daquela localidade gerará, naturalmente, um aumento
populacional e maior demanda por serviços públicos, especialmente os de
saúde, segurança, transporte e saneamento, acarretando, por decorrência, um
maior gasto da máquina estatal.
Outrossim, em um país com uma desigualdade regional evidente, o
mecanismo potencializa ainda mais o desequilíbrio fiscal na federação, uma
vez que os entes federativos desenvolvidos são os mais capazes de oferecer
melhores benefícios e suportar por mais tempo as renúncias fiscais, atraindo
para si maior número de investimentos e prejudicando ainda mais os entes
menos desenvolvidos.
Há, ainda, a questão da insegurança jurídica para o contribuinte
decorrente da concessão de benefícios fiscais concedidos de forma unilateral
por Estados e que acabam sendo desconsiderados por outras unidades da
federação, gerando dúvidas sobre a validade dos benefícios aproveitados, com
os reflexos tributários (estorno de crédito e cobrança da diferença não
recolhida).
Ainda, sob a ótica empresarial, além da questão concorrencial
decorrente da desvantagem competitiva imposta às empresas não agraciadas
pelos benefícios fiscais, há que se questionar a eficiência alocativa dos fatores
de produção, uma vez que o empreendimento se estabelecerá em localidade
escolhida por força dos benefícios fiscais e não pelas suas características
próprias, desconsiderando-se, muitas vezes, fatores como o distanciamento do
seu mercado consumidor e de fornecedores, custos de transporte e logística, a
deficiência de qualificação da mão de obra e de infraestrutura etc.
Voltando à questão da LC 160/2017, devemos lembrar que, nos termos
do artigo 155, §2º, inciso XII, alínea "g" da Constituição Federal de 1988, é a
Lei Complementar nº 24/1975 que dispõe sobre os convênios para a
concessão e revogação de isenções do ICMS celebrados e ratificados pelos
Estados e pelo Distrito Federal, no âmbito do CONFAZ.
Porém, não obstante a obrigatoriedade da realização de convênios para
a concessão destes benefícios fiscais, diversos Estados já os concederam
unilateralmente (muitos julgados inconstitucionais), revelando a face negativa
da guerra fiscal na esfera estadual, não apenas sob a ótica da indevida
renúncia de receitas tributárias, mas também pela insegurança jurídica gerada
aos contribuintes que aproveitaram o benefício fiscal concedido (por exemplo, a
dúvida sobre a validade do crédito de ICMS tomado pelo destinatário das
mercadorias).
A propósito, em recente concessão de liminar na ADI 5.467, o relator
Ministro Luiz Fux, ao suspender a eficácia de normas do Estado do Maranhão
que concedem crédito presumido do ICMS para empresas participantes de
programa de incentivo ao desenvolvimento econômico, afirmou que "a
instituição unilateral de benefício fiscal estimula a guerra fiscal e representa
risco ao equilíbrio do pacto federativo".
A LC 160/2017 traz em seu bojo mecanismo - via convênio em que a
unanimidade de votos não é exigida (arts. 1º e 2º) - de legalização de
incentivos fiscais concedidos por Estados de maneira unilateral (sem anuência
do CONFAZ), além do perdão das infrações fiscais decorrentes de autuações
em face de contribuintes que aproveitaram os benefícios e créditos tributários
concedidos indevidamente. Interessante é ver que a norma, com a finalidade
de coibir a prática pelos Estados de concessões unilaterais de benefícios
fiscais, adota sanções financeiras decorrentes da Lei de Responsabilidade
Fiscal para os que o fizerem, a saber: a) não poderão receber transferências
voluntárias, b) não poderão obter garantia de outro ente; c) não poderão
realizar operações de crédito (art. 6º).
No fim do dia, o que se pode concluir disso tudo é que, além de
insegurança jurídica, dentro de um modelo federativo que deveria ser cooperativo
e não competitivo, a guerra fiscal parece trazer mais efeitos negativos do que
positivos. Ou, ao menos, contabilizando-se o seu custo-benefício, ainda não se
conseguiu demonstrar cabalmente um saldo positivo para o cidadão e para a
sociedade brasileira.
O Pacto Fiscal Europeu e a experiência portuguesa

Publicado em 04/10/2017

Hoje, exploraremos a experiência europeia na adoção de mecanismos


para garantir a sustentabilidade financeira e orçamentária entre integrantes da
União Europeia, bem como as práticas incorporadas por Portugal em sua
legislação fiscal, na busca de bons exemplos que possam ser seguidos pelo
Brasil.
Em 2 de março de 2012, foi assinado o Tratado sobre Estabilidade,
Coordenação e Governança na União Econômica e Monetária pelos Estados-
Membros da União Europeia (excetuando-se República Tcheca e Reino Unido,
e a Croácia, que ingressou na União Europeia após a assinatura do Tratado).
O referido tratado ficou conhecido em língua portuguesa pela nomenclatura
genérica de Pacto Fiscal Europeu, entrando em vigor no dia 1º de janeiro de
2013.
Podemos identificar três bases ou objetivos do tratado: 1) promover a
disciplina fiscal-orçamentária mediante um pacto orçamentário; 2) reforçar a
coordenação das políticas econômicas dos Estados-parte; 3) melhorar a
governança fiscal da área do euro. Estas metas, por sua vez, se alinham à
realização dos objetivos da União Europeia em matéria de crescimento
sustentável, emprego, competitividade e coesão social.
No campo da disciplina fiscal, ao estabelecer uma "regra de equilíbrio
orçamental" e medidas corretivas, pretende-se que a situação orçamentária
dos Estados-parte seja equilibrada ou superavitária, evitando-se déficits
orçamentais excessivos. Assim, o equilíbrio fiscal é o pilar central do tratado,
considerando-se que as políticas econômicas individuais de cada Estado
signatário são questões de interesse comum e não podem ser conduzidas de
maneira isolada. Neste aspecto, desde já podemos fazer uma analogia do
nosso modelo federativo de cooperação com a união dos Estados-membros
europeus.
Em termos concretos, fixaram-se parâmetros numéricos no Pacto,
reconhecendo-se a necessidade de reforçar que o déficit orçamentário não
exceda 3% do Produto Interno Bruto (PIB) e que a dívida pública não exceda
60% do PIB. Considera-se atingida a desejada situação de estabilidade
orçamentária se o saldo estrutural anual das administrações públicas (grosso
modo, a diferença entre receitas e gastos públicos, sem levar em conta efeitos
de medidas excepcionais e de variações cíclicas da economia) tiver atingido o
objetivo de médio prazo específico de cada país, com um limite de déficit
estrutural de 0,5% do PIB a preços de mercado. Dando um exemplo
simplificado para compreensão, se o PIB de um Estado é de 200 bilhões de
euros, e suas receitas são de 50 bilhões de euros, deverá gastar, no máximo,
51 bilhões de euros (0,5% de 200 bilhões de euros = 1 bilhão de euros).
Ademais, sempre que a relação entre a dívida pública e o PIB for
significativamente inferior a 60% e os riscos para a sustentabilidade a longo
prazo das finanças públicas forem reduzidos, o limite para o objetivo de médio
prazo fixado pode atingir um déficit estrutural de, no máximo, 1,0% do PIB,
como uma espécie de sanção premial ou estímulo àquelas nações que
controlarem o crescimento de sua dívida pública. Valendo-nos do exemplo
simplificado acima, se o PIB de um Estado é de 200 bilhões de euros, e suas
receitas são de 50 bilhões de euros, mas sua dívida pública é de apenas 100
bilhões de euros (50% do PIB), então poderá gastar, no máximo, 52 bilhões de
euros (1% de 200 bilhões de euros = 2 bilhões de euros).
Outrossim, existe também previsão de acionamento automático de
mecanismo de correção caso constatado um desvio significativo do objetivo de
médio prazo ou da trajetória de ajustamento. Se a relação entre a dívida
pública e o PIB de uma Parte Contratante exceder o valor de referência de
60%, a Parte Contratante deve reduzir tal valor a uma taxa média de um
vigésimo por ano como padrão de referência, até alcançar o limite desejado.
O acompanhamento das metas será realizado pela Comissão Europeia,
que apresentará periodicamente às Partes Contratantes um relatório sobre as
disposições adotadas por cada uma delas para manter o equilíbrio orçamental
nos percentuais estabelecidos. Se a Comissão concluir no seu relatório, após
ter dado à Parte Contratante em causa oportunidade de apresentar as suas
observações, que essa Parte Contratante não cumpriu as metas, uma ou mais
Partes Contratantes proporão uma ação no Tribunal de Justiça da União
Europeia. Independentemente do relatório da Comissão, uma Parte
Contratante, se considerar que outra Parte Contratante não cumpriu as metas,
pode igualmente propor uma ação no Tribunal de Justiça. Em ambos os casos,
o acórdão do Tribunal de Justiça é vinculativo para as partes no processo, as
quais tomam as medidas necessárias à execução do acórdão no prazo fixado
pelo Tribunal de Justiça, sendo certo que o seu descumprimento pode levar à
propositura de uma ação no Tribunal de Justiça para requerer a imposição de
sanções pecuniárias sobre a Parte Contratante inadimplente, que não pode ser
superior a 0,1% do seu PIB.
Em complemento, são instituídas as Cimeiras do Euro informais, com
participação dos Chefes de Estado ou de Governo das Partes Contratantes
cuja moeda seja o euro, juntamente com o Presidente da Comissão Europeia,
sendo convidado o Presidente do Banco Central Europeu. Tais encontros
realizam-se quando necessário (mas ao menos duas vezes por ano) a fim de
serem debatidas questões relacionadas com as responsabilidades específicas
que as Partes Contratantes cuja moeda seja o euro partilham no tocante à
moeda única, outras questões relativas à governança da área do euro e às
regras que lhe são aplicáveis, e as orientações estratégicas para a condução
das políticas econômicas para uma maior convergência na área do euro.
Interessante registrar o compromisso de que as regras de equilíbrio
orçamental fossem (e assim o foram) internalizadas em cada ordenamento
jurídico nacional, através de disposições vinculativas e de caráter permanente,
de preferência a nível constitucional, no prazo de um ano a partir da vigência
do Tratado, devendo seu cumprimento ser observado em todo o ciclo
orçamentário interno.
Nesse aspecto, passamos a apresentar brevemente algumas das
medidas adotadas por Portugal em decorrência do Pacto Orçamental Europeu
(e do antecessor Pacto de Estabilidade e Crescimento), merecendo destaque
para a adequação normativa realizada na sua "Lei de Enquadramento
Orçamental - LEO" (Lei n. 151/2015), diploma legal que tem por objeto a
fixação das normas gerais do orçamento público português, papel similar ao da
Lei n. 4.320/1964 do direito financeiro brasileiro.
A propósito, restou expressa tal adequação no art. 6º da LEO, a qual
passou a prescrever que o "quadro jurídico fundamental da política orçamental
e da gestão financeira, concretizado na presente lei, resulta da Constituição da
República Portuguesa e das disposições do Tratado sobre o Funcionamento da
União Europeia, do Pacto de Estabilidade e Crescimento em matéria de défice
orçamental e de dívida pública e, bem assim, do disposto no Tratado sobre a
Estabilidade, Coordenação e Governação da União Económica e Monetária".
Na busca do equilíbrio orçamentário sustentável, merecem destaque
alguns preceitos fixados na legislação portuguesa. Nesse sentido, o primeiro é
o art. 10º da LEO, que expressamente se refere ao princípio da estabilidade
orçamental, conceituando-o como "uma situação de equilíbrio ou excedente
orçamental" e advertindo que a concretização do princípio da estabilidade
depende do cumprimento das regras orçamentais numéricas estabelecidas na
própria LEO. Por sua vez, o art. 11º faz referência ao princípio da
sustentabilidade, entendido como capacidade de financiar todos os
compromissos, assumidos ou a assumir, com respeito pela regra de saldo
orçamental estrutural e da dívida pública.
Interessante dispositivo é o previsto no art. 13º da LEO, que contempla o
princípio da equidade na distribuição de benefícios e custos entre gerações, de
modo a não onerar excessivamente as gerações futuras, salvaguardando suas
legítimas expectativas através de uma distribuição equilibrada dos custos pelos
vários orçamentos num quadro plurianual. Para tanto, o relatório e os
elementos informativos que acompanham a proposta de lei do Orçamento do
Estado devem conter as informações sobre os impactos futuros das despesas
e receitas públicas sobre os compromissos do Estado e sobre
responsabilidades contingentes.
Outrossim, incorporaram-se as metas numéricas do Pacto Fiscal
Europeu no art. 20º da LEO, prevendo a regra do saldo orçamental estrutural,
tendo por objetivo alcançar um limite de déficit estrutural de 0,5% do PIB a
preços de mercado; e sempre que a relação entre a dívida pública e o PIB for
significativamente inferior a 60% e os riscos para a sustentabilidade a longo
prazo das finanças públicas forem reduzidos, o limite para o objetivo de médio
prazo poderá atingir um déficit estrutural de, no máximo, 1% do PIB. Mas
enquanto não for atingido o objetivo de médio prazo, o ajustamento anual do
saldo estrutural não poderá ser inferior a 0,5% do PIB, e a taxa de crescimento
da despesa pública, não computadas as medidas extraordinárias, temporárias
ou discricionárias do lado da receita, não poderá ser superior à taxa de
referência de médio prazo de crescimento do PIB potencial (tais índices
econômicos nacionais e suas metodologias de cálculo deverão ser aprovados
pela União Europeia). Enquanto não for atingido o objetivo de médio prazo, as
reduções discricionárias de elementos das receitas públicas devem ser
compensadas por reduções da despesa, por aumentos discricionários de
outros elementos das receitas públicas ou por ambos, conforme definido no
Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Para complementar a racionalidade fiscal, o art. 21º da LEO fixou que
eventuais excedentes da execução orçamental deverão ser usados
preferencialmente na amortização da dívida pública enquanto se verificar o
descumprimento do limite da dívida pública. Uma vez alcançado o limite
desejado, os excedentes serão destinados à constituição de uma reserva de
estabilização, destinada a desempenhar uma função anticíclica em contextos
de recessão econômica.
Sobre a dívida pública, o art. 25º da LEO estabelece o valor de
referência de 60% do PIB, ficando o Governo obrigado a reduzir o seu
montante quando este exceder tal limite.
Em termos concretos, analisando-se a evolução anual do percentual da
dívida pública portuguesa em relação ao PIB, percebe-se que esta aumentou
consideravelmente nos últimos quinze anos, quase triplicando desde o ano
2000 até os dias atuais. Contudo, a partir de 2013 passou a manter-se estável,
embora no elevado patamar de 130%, ainda muito acima dos 60% indicados
pelo Pacto Fiscal Europeu e pela Nova Lei de Enquadramento Orçamental. Por
sua vez, em relação aos déficits anuais que Portugal vem registrando, segundo
os dados divulgados, este teria sido de 2,1% para o ano de 2016, ou seja,
abaixo dos 3% previstos como limite no Pacto Fiscal Europeu, mas ainda
acima do limite de déficit estrutural de 0,5% do PIB, o que exigirá um grande
esforço de austeridade fiscal por parte do Estado português.
Entretanto, apesar destes números ainda estarem aquém do pretendido,
ao que nos parece, os reflexos das recentes mudanças na legislação fiscal
portuguesa demonstram produzir os seus primeiros efeitos positivos na saúde
e estabilização das contas públicas lusitanas. Uma efetiva sinalização de que
há exemplos que podem ser avaliados e considerados pelo Brasil e, quem
sabe, futuramente seguidos.
Diretrizes orçamentárias da OCDE

Publicado em 07/11/2017

O orçamento público como instrumento de planejamento, gestão e


controle financeiro, que define e revela as políticas públicas a serem adotadas
e implementadas pelo Estado para atender às necessidades da sociedade, há
muito deixou de ser um documento meramente técnico e contábil, tornando-se
instituto jurídico fundamental para qualquer nação fundada no Estado
Democrático de Direito que busque o bem-estar dos seus integrantes.
A preocupação com a boa governança orçamental vem se espraiando
pelo mundo todo diuturnamente. Em nosso texto anterior tivemos a
oportunidade de apresentar os principais aspectos do Tratado firmado no seio
da União Europeia, conhecido por “Pacto Orçamental Europeu”, que influenciou
o ordenamento jurídico-fiscal dos seus signatários na busca pela
sustentabilidade das finanças públicas.
Hoje, analisamos as diretrizes orçamentárias recomendadas pelo
Conselho de Governança Orçamental da OCDE, a partir da publicação em
2015 de um trabalho elaborado pelo “SBO - Working Party of Senior Bugdet
Officials”, no qual são apresentados 10 princípios orçamentários, com o
objetivo de orientar as boas práticas sobre toda a atividade orçamentária,
provendo os gestores públicos de instrumentos para aprimorar os seus
sistemas orçamentários, visando causar um impacto positivo na vida dos
cidadãos.
A OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico – é uma organização internacional fundada em 1961, com sede em
Paris e integrada por 35 países, cuja missão, segundo a própria organização, é
a de “promover políticas que aperfeiçoem o bem-estar econômico e social das
pessoas ao redor do mundo”. Além dos países-membros, a OCDE conta com a
participação de uma série de Estados na condição de observadores ou
participantes de suas comissões, grupos de trabalho, regimes ou programas.
Aceitando os princípios da economia de mercado, a OCDE promove
diálogos entre governos no sentido de dividir experiências e procurar soluções
para problemas comuns, por meio da investigação das situações que movem
as mudanças econômicas, sociais e ambientais; da mensuração da
produtividade e fluxos globais de comércio e investimentos; da análise e
comparação de dados para prever tendências futuras; bem como do
estabelecimento de padrões e recomendações em uma grande gama de
temas, que vão desde a agricultura à tributação, inclusive opinando sobre a
saúde das finanças públicas como base para um crescimento econômico
sustentável.
Nos termos da referida publicação de 2015, o orçamento é um
documento de política central do governo, que mostra como anual e
plurianualmente os objetivos serão priorizados e alcançados. Paralelamente a
outros instrumentos de política governamental - tais como leis, regulamentos e
ações conjuntas com outros atores da sociedade -, o orçamento visa
transformar planos e aspirações em realidade. Mais do que isso, o orçamento é
um contrato entre cidadãos e Estado, apresentando como os recursos são
obtidos e alocados para a entrega de serviços públicos. A experiência dos
últimos anos, em nível internacional, demonstra a forma como um bom
orçamento é apoiado pela sociedade, desde que baseado nos pilares de
governança pública moderna: transparência, integridade, abertura,
participação, responsabilidade e planejamento para atingir os objetivos.
Neste contexto, segundo a OCDE, o escopo destas recomendações é
reunir as lições de mais de uma década de trabalho do SBO, juntamente com
as contribuições e observações do Comitê de Governança Pública, bem como
aquelas da comunidade internacional em matéria de orçamento, fornecendo
uma visão geral e concisa das boas práticas em toda o espectro da atividade
orçamentária, especificando, em particular, os dez princípios de boa
governança orçamentária que oferecem orientação clara para projetar,
implementar e melhorar os sistemas orçamentários.
Assim, os referidos “10 princípios orçamentários” materializados por
recomendações estabelecidas pela OCDE podem assim ser sintetizados: 1.
Gerenciar os orçamentos dentro de limites claros, credíveis e previsíveis para a
política fiscal; 2. Alinhar os orçamentos com as prioridades estratégicas de
médio prazo do governo; 3. Conceber o quadro de orçamento de capital para
atender às necessidades nacionais de desenvolvimento de forma econômica e
coerente; 4. Assegurar que os documentos e dados do orçamento sejam
abertos, transparentes e acessíveis; 5. Proporcionar um debate inclusivo,
participativo e realista sobre as opções orçamentais; 6. Apresentar uma
contabilidade abrangente, precisa e confiável das finanças públicas; 7.
Planejar, gerenciar e monitorar a execução do orçamento ativamente; 8.
Certificar que o desempenho, a avaliação e a relação custo-benefício sejam
partes integrantes do processo orçamentário; 9. Identificar, avaliar e gerenciar
com prudência a sustentabilidade a longo prazo e outros riscos fiscais; 10.
Promover a integridade e a qualidade das previsões orçamentais, planos fiscais
e implementação orçamentária através de uma rigorosa garantia de qualidade
no processo, incluindo auditoria externa independente.
Segundo a recomendação nº 1, os orçamentos públicos deverão: a)
possuir mecanismos e procedimentos para apoiar, de maneira prudente, os
governos na implantação de políticas econômicas cíclicas neutras ou
anticíclicas; b) estar comprometidos com uma política fiscal sólida e
sustentável; c) possuir regras fiscais claras, verificáveis e compreensíveis pelo
cidadão; d) aplicar a gestão orçamentária com recursos para cada ano,
considerando um horizonte fiscal de médio prazo, e com metas orçamentárias
globais para assegurar que todos os elementos das receitas, despesas e
políticas econômicas sejam consistentes e gerenciados em conformidade com
os recursos disponíveis.
De acordo com a recomendação nº 2, os orçamentos públicos deverão:
a) desenvolver um processo orçamentário mais sólido de médio prazo, além do
tradicional ciclo anual; b) estruturar as dotações orçamentárias de forma que
correspondam prontamente aos objetivos nacionais; c) reconhecer a possível
utilidade de um quadro de despesas no médio prazo, alinhado com as
restrições orçamentais anuais; d) possuir previsões realistas de despesas,
sendo correspondentes com os objetivos e planos estratégicos nacionais; e)
estreitar a relação entre a autoridade orçamentária e as instituições
governamentais, dadas a interdependência entre o processo orçamentário e a
realização de políticas governamentais; f) implementar processos regulares de
revisão e ajustes orçamentários.
Conforme a recomendação nº 3, os orçamentos públicos deverão: a)
considerar os planos de investimento de capital para suprir as lacunas de
capacidade econômica, desenvolvimento de infraestrutura e das necessidades
e prioridades setoriais e sociais; b) realizar uma avaliação prudente dos custos
e benefícios de tais investimentos no longo prazo, conforme a prioridade entre
vários projetos; c) avaliar as decisões de investimento, seja através da
obtenção de capital tradicional ou de um modelo de financiamento privado,
como as parcerias público-privadas; d) estimular o desenvolvimento de um
quadro nacional de apoio ao investimento público, com capacidade de avaliar e
gerenciar os grandes projetos de capital, dotado de um estatuto jurídico,
administrativo e regulatório estável; e) coordenar os planos de investimento
entre níveis nacionais e subnacionais de governo; f) integrar o orçamento de
capital dentro do plano fiscal geral de médio prazo do governo.
Pela recomendação nº 4, os orçamentos públicos deverão: a) possuir e
apresentar relatórios claros e reais, dotados de apresentação e explicação dos
impactos das medidas orçamentárias, tanto nas receitas como nas despesas
públicas; b) ser rotineiramente publicados de maneira completa e conferir
amplo acesso ao cidadão, organização civil e demais partes interessadas; c)
adotar demonstrações de dados que permitam a avaliação de programas e
coordenação de políticas em níveis nacionais e subnacionais de governo.
Seguindo a recomendação nº 5, os orçamentos públicos deverão: a)
oferecer oportunidades para que o parlamento e seus comitês se envolvam
com o processo orçamentário em todas as principais fases do ciclo orçamental;
b) facilitar o envolvimento dos parlamentares, dos cidadãos e das organizações
da sociedade civil no debate das questões orçamentárias; c) proporcionar
clareza sobre os custos e benefícios relativos às despesas públicas, seus
programas e renúncias fiscais; d) assegurar que as principais decisões sejam
tomadas dentro do processo orçamentário.
Para atender a recomendação nº 6, os orçamentos públicos deverão: a)
contabilizar, de forma abrangente e correta, todas as despesas e receitas, sem
que haja omissão de dados; b) apresentar uma visão panorâmica e completa
das finanças públicas, abarcando todos os níveis de governo e a área central e
subnacional; c) possuir uma contabilidade de forma que se demonstrem os
custos e benefícios financeiros das decisões de orçamento; d) adotar um
modelo compatível com as normas contábeis do setor privado; d) evidenciar os
programas públicos que são financiados por meios não tradicionais, como
parcerias público-privadas.
Visando cumprir a recomendação nº 7, os orçamentos públicos deverão:
a) ter a plena e fiel realização das dotações orçamentárias pelos respectivos
órgãos públicos; b) possuir controles e monitoramento dos desembolsos de
caixa, com uma clara regulamentação dos papéis, responsabilidades e
autorizações de cada instituição e pessoa responsável; c) permitir, ainda que
de maneira limitada, alguma flexibilidade à execução orçamentária, sempre
dentro dos limites de autorizações parlamentares, sendo necessária
autorização legislativa para a realocação de recursos e reafetações mais
significativas; d) elaborar relatórios de execução orçamentária, dentro de um
modelo de prestação de contas que evidencie o desempenho e a relação de
custo-benefício, para informar futuras dotações orçamentárias.
Para dar efetividade à recomendação nº 8, os orçamentos públicos
deverão: a) ajudar o parlamento e os cidadãos a entender não apenas o que
está sendo gasto, mas os serviços públicos que estão realmente sendo
entregues, incluindo os níveis de qualidade e eficácia; b) apresentar
rotineiramente informações de desempenho relativas às dotações financeiras,
com indicadores de resultado e de metas para cada programa, permitindo a
fiscalização e responsabilização; c) permitir a comparação dos resultados com
padrões (benchmarks) internacionais; d) realizar um balanço periódico das
despesas com os respectivos objetivos e prioridades, levando em consideração
os resultados de avaliações.
A fim de ser implementada a recomendação nº 9, os orçamentos
públicos deverão: a) adotar mecanismos para promover a manutenção dos
planos orçamentários e mitigar o potencial impacto dos riscos fiscais e, assim,
promover um desenvolvimento estável das finanças públicas; b) identificar,
classificar e quantificar os riscos fiscais, incluindo passivos contingentes; c)
explicitar os mecanismos de gestão desses riscos; d) publicar um relatório
sobre a sustentabilidade a longo prazo das finanças públicas.
Por último, conforme a recomendação nº 10, os orçamentos públicos
deverão: a) investir continuamente nas habilidades e capacidade do pessoal
administrativo para desempenhar suas funções orçamentais de forma eficaz; b)
permitir a criação e participação de instituições fiscais independentes para
realizar o exame imparcial e conferir credibilidade ao orçamento; c) reconhecer
e facilitar o papel da auditoria interna independente como uma salvaguarda da
integridade dos processos orçamentários e da gestão financeira; d) promover o
papel dos sistemas de controle interno e externo na auditoria fiscal.
Nas palavras da OCDE, o orçamento público é uma pedra angular na
arquitetura da confiança entre os Estados e seus cidadãos. Embora ainda não
seja integrante da OCDE, recentemente o Brasil formalizou sua solicitação de
ingresso nesta importante organização internacional e, para tanto, talvez fosse
um eficaz “cartão de visitas” e operosa demonstração de boas intenções
incorporar ao processo orçamental brasileiro tais recomendações, garantindo
que a governança orçamentária seja uma das medidas que possa realizar uma
significativa transformação social.
Efeitos econômicos no orçamento público

Publicado em 05/12/2017

Da mesma maneira que a receita pública, sobretudo a tributária, possui


uma função extrafiscal ou regulatória, a dimensão da despesa pública e a sua
alocação no orçamento público também terão efeitos na economia.
A finalidade precípua das receitas públicas é a arrecadatória, a fim de
obter recursos a serem destinados aos cofres públicos. Entretanto, outro efeito
arrecadatório se dá pela extrafiscalidade, instituída para intervir indiretamente
na sociedade ao induzir comportamentos, tais como: redistribuir riquezas;
proteger a indústria ou o mercado interno; desencorajar o consumo de
supérfluos e produtos nocivos à saúde; facilitar o desenvolvimento regional;
estimular a utilização da propriedade no âmbito de sua função social; realizar
ajustes monetários; combater a inflação; etc.
Com as despesas, o mesmo ocorre. Além de atingir o seu fim primário,
qual seja, atender às necessidades públicas primárias e secundárias, conforme
sua alocação no orçamento público, a despesa, dependendo do seu volume e
destinação, poderá gerar propositadamente efeitos na economia.
Para tanto, a Economia Política é o ramo das ciências sociais que tem
por objeto o estudo da realidade social e dos fatores econômicos, de modo a
definir as finalidades e prioridades estatais de acordo com o ambiente jurídico,
econômico e social no qual se está inserido, elencando os meios financeiros
mais adequados para a sua efetivação. Esta área colabora com as finanças
públicas e com o Direito Financeiro na definição das escolhas alocativas.
Na Escola Econômica clássica, Adam Smith apresenta, com a obra
"Investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações", a teoria
liberal do laissez-faire, pela qual o Estado não deve interferir na vida
econômica, deixando a "mão invisível" das forças do mercado atuar em prol do
indivíduo e da sociedade. Sua escola tem sequência com David Ricardo,
através do seu livro "Princípios da economia política e tributação", Jean-
Baptiste Say por seu "Tratado de economia política" e John Stuart Mill, com o
seu "Princípios de economia política". Nesse contexto, a função de produzir o
bem-estar era de responsabilidade do próprio mercado, não havendo espaço
para se falar em intervenção do Estado na economia ou na sociedade.
Importante relembrar que, na faceta jurídica, foi através das
Constituições modernas e de suas ideologias de liberdade que se
fundamentaram as ideias do liberalismo econômico, no qual o mercado
possuiria leis naturais e o equilíbrio seria alcançado de forma espontânea, sem
qualquer tipo de interferência estatal. Mas as distorções e desequilíbrios
socioeconômicos provenientes desse sistema puderam ser facilmente notados
ao longo do tempo, devido, sobretudo, às emergentes relações empresariais de
natureza mercantil e industrial. Aqui, a imperiosa necessidade de lucratividade
crescente impunha, dentre outros métodos, a busca de complexos mecanismos
jurídicos para a otimização financeira dos empreendimentos, acarretando,
consequentemente, a utilização desvirtuada do ordenamento normativo,
subvertendo-se valores pela abusiva distorção dos meios e formas legais para
se alcançar objetivos meramente pecuniários.
Com a realidade da segunda metade do século XIX de grande
desigualdade social e econômica, os ideais do socialismo ganham força como
reação aos princípios liberais da Escola Clássica, tendo em Karl Marx seu
grande expoente, ao propor ideias revolucionárias de um Estado autoritário e
interventor contra o modelo capitalista, principalmente através de sua obra "O
Capital". Em paralelo, a "Grande Recessão" econômica da década de 1930
colocou em xeque a ideologia liberal e trouxe novamente ao debate o papel do
Estado na economia e na sociedade para a busca do bem-estar social.
É a partir dessa conjuntura que o peso do Estado passa a ser maior e o
processo de crescimento das despesas públicas se torna protagonista do
desenvolvimento social e econômico, tendo Adolph Wagner desempenho
proeminente na escola econômica ("Lei de Wagner"), ao correlacionar o
crescimento do nível de renda com os aumentos dos gastos estatais e da
promoção do bem-estar em períodos de desenvolvimento econômico.
Nesse cenário, a contribuição de John Maynard Keynes ("The General
Theory of Employment, Interest and Money", 1936) foi determinante, ao propor
políticas fiscais compensatórias e de aumento de déficit público e dos gastos
públicos como complemento ao consumo privado em períodos recessivos e de
superávit para conter a inflação. Segundo ele, o Estado deveria assumir uma
postura mais ativa e intervencionista - com aumento de gastos em geral e
sobretudo de investimentos - para movimentar a economia e superar as
insuficiências de demanda do setor privado, sem se preocupar
momentaneamente com a austeridade e equilíbrio orçamentários.
A partir dele, houve grande contribuição de Alvin H. Hansen, através do
seu livro "Fiscal policy and business cycles", que orientou todo o
desenvolvimento, dentro das finanças públicas, da denominada "teoria da
política fiscal". Posteriormente, vem Richard Musgrave consolidar os princípios
das finanças públicas com a sua obra "Public finance", sintetizando as
atribuições estatais na promoção do ajustamento da alocação de recursos e da
distribuição de renda, bem como na manutenção da estabilidade econômica.
Por sua vez, James M. Buchanan teoriza e conceitua "bem público" no seu livro
"Public finance in democratic process", especialmente diante da complexidade
do controle dos gastos públicos, da participação do indivíduo no processo
decisório dos dispêndios e da efetivação do bem-estar social.
Nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, com a
crise mundial de 1973, a descrença na capacidade do modelo de Estado-
providência em solucionar os problemas econômicos e demandas sociais,
juntamente com a situação fiscal "falimentar" de muitas nações, foi o ambiente
propício para o desenvolvimento das teses neoliberais, lideradas pelas Escola
Austríaca de Friedrich Hayek (The Pure Theory of Capital) e Ludwig von Mises
(Human Action: a Treatise on Economics) e pela Escola de Chicago de Milton
Friedman (Capitalism and freedom). Defendem a austeridade fiscal,
privatizações, livre-concorrência e redução da intervenção estatal, sem,
contudo, abrir mão de políticas sociais quando as demandas desta natureza
não puderem ser atendidas pela iniciativa privada.
Contemporaneamente, a Economia Política assiste ao avanço de uma
nova escola, denominada de neo-desenvolvimentismo ou novos keynesianos,
que tem como protagonistas Joseph Stiglitz e Amartya Sen, os quais pregam a
complementaridade entre o Estado e o mercado para estruturar e permitir o
desenvolvimento sustentado e uma melhor distribuição de renda, dentro de um
modelo que propõe novos paradigmas na produtividade da economia global,
tendo como foco a equidade social.
Esta nova corrente de pensamento econômico ganha especial destaque
com a crise mundial de 2008, que obrigou as nações mundiais, sobretudo os
Estados Unidos da América e as integrantes da União Europeia, a agirem de
maneira intensa, através de políticas fiscais e monetárias - como a concessão
de incentivos tributários, redução da taxa de juros, incremento nos gastos
públicos etc. - para garantir a estabilidade do sistema financeiro e reagir diante
da redução da demanda e do consumo.
Questões como aumento populacional e de expectativa de vida, assim
como empregabilidade e inovações tecnológicas, além de variáveis ambientais,
todas estas passam a integrar a equação que a Economia Política deverá
considerar para fins de elaboração orçamentária numa nova realidade.
Assim, percebe-se que as profundas transformações globais do mundo
atual, caracterizado por uma complexa dinâmica social e econômica que vem
se potencializando no presente século XXI, passam a exigir uma reformulação
do papel do Estado, sem, contudo, assumir um viés interventivo como aquele
do Estado-providência do pós-Segunda Guerra Mundial, e nem com as feições
do modelo neoliberal das décadas de 1980 e 1990. Adota-se uma postura
intermediária, nem de descompromisso e apatia, nem de onipotência e
centralização. Objetiva-se planejar e criar políticas públicas de longo prazo,
tanto para promover uma efetiva redução da desigualdade social, bem-estar da
população e garantia dos direitos mínimos fundamentais, como para permitir o
desenvolvimento sustentado dos setores público e privado, com estímulos de
natureza econômica e fiscal.
E, mais uma vez, merece destaque o orçamento público - através da sua
componente despesa pública - como instrumento de promoção e justiça social.
Transparência fiscal e reforma da previdência

Publicado em 03/01/2018

A reforma da previdência é um polêmico assunto que tem frequentado


diariamente os noticiários em todo o país, sendo hoje, inegavelmente, um tema
de extrema importância para a nossa sociedade, sobretudo se pensarmos na
imperiosa busca pela sustentabilidade financeira diante do aumento da
expectativa de vida do brasileiro e do ideal ético de equidade intergeracional,
pelo qual não se deve impor às gerações futuras um excessivo ônus financeiro
da dívida contraída no passado, de maneira que haja uma justa e proporcional
distribuição entre diferentes gerações dos benefícios obtidos com a atividade
estatal e dos custos para o seu financiamento.
A acalorada discussão decorre do embate de duas posições
fundamentais: por um lado, o Governo Federal afirma reiteradamente que a
previdência é deficitária, fazendo-se necessária uma urgente reforma; por
outro, vozes se levantam dizendo o contrário, a saber, que ela seria
superavitária, mas que as receitas que deveriam financiar exclusivamente a
previdência acabam sendo utilizadas para custear outras áreas da seguridade
social, como saúde e assistência, gerando a conta negativa.
Como sabemos, a Previdência Social é financiada, essencialmente, com
recursos das contribuições sobre a folha de salários dos trabalhadores
empregados, em que contribuem tanto o empregador quanto o empregado,
incluindo-se os servidores públicos. Mas devemos nos indagar por que não se
consegue visualizar facilmente a vinculação e a destinação desses recursos
para a previdência social.
Sem querer aqui emitir qualquer juízo de valor - político, jurídico ou
financeiro - sobre a necessidade ou não de uma reforma da previdência,
pretendemos trazer a lume um tema que subjaz a esta celeuma: a falta de
transparência fiscal, que impede ao cidadão brasileiro obter informações
fidedignas sobre as contas públicas e, no caso específico, sobre os resultados
da previdência, de modo a chegar por si só a uma conclusão acerca da
necessidade da reforma tal como proposta.
O conceito de transparência fiscal envolve não somente a ampla
divulgação das contas públicas, mas, principalmente, que as previsões
financeiras e orçamentárias, tanto de receitas, despesas, renúncias ou
programas, sejam dispostas de maneira facilmente compreensível para todos,
não apenas para o seu executor, mas também para o cidadão interessado e,
inclusive, para os órgãos de controle e fiscalização. Pretende, sobretudo, coibir
a existência de despesas obscuras ou a inclusão de verbas, programas,
projetos ou benefícios fiscais imprecisos ou inexplicáveis que, por falta de
clareza ou transparência, possam induzir a erro ou serem manipulados para
atender a objetivos diversos dos originalmente previstos e aprovados. Não à
toa, o § 6º do art. 165 da Constituição Federal determina que o projeto de lei
orçamentária seja acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito,
sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões,
subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia.
Devemos registrar que um dos grandes méritos da Lei de
Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) foi o de estimular o exercício da
cidadania na área financeira, através dos mecanismos de transparência que
ela criou e regulamentou. Além de instituir relatórios específicos para a gestão
fiscal – Relatório Resumido de Execução Orçamentária, Relatório de Gestão
Fiscal e Prestação de Contas – e determinar sua ampla divulgação, inclusive
por meios eletrônicos, incentiva a participação popular nas discussões de
elaboração das peças orçamentárias e no acompanhamento da execução
orçamentária através de audiência pública.
Nesse sentido, o artigo 48-A da LRF (introduzido pela Lei Complementar
nº 131/2009) impõe que os entes da Federação disponibilizem a qualquer
pessoa física ou jurídica o acesso a informações: I – quanto à despesa: todos
os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da execução da
despesa, no momento de sua realização, com a disponibilização mínima dos
dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou
ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e,
quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado; II – quanto à receita: o
lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive
referente a recursos extraordinários.
E, na mesma linha, a recente Lei Complementar nº 159/2017, que
instituiu o Regime de Recuperação Fiscal dos Estados e do Distrito Federal,
estabeleceu, para orientação na sua aplicação, dentre outros, os princípios da
transparência das contas públicas e da confiança nas demonstrações
financeiras (§ 1º do art. 1º).
É imprescindível para a materialização da consciência e cidadania fiscal
que haja transparência nas relações entre o Estado e o cidadão, especialmente
na atividade financeira, devendo oferecer-se maior clareza e abertura tanto na
legislação tributária como na elaboração e execução do orçamento. Conhecer
os seus direitos e deveres é o mínimo que o cidadão-contribuinte pode e deve
exigir do Estado.
O constitucionalista e Ministro do STF Gilmar Mendes nos recorda que a
transparência fiscal decorre da própria Constituição, estando vinculada ao ideal
de segurança orçamentária. Nas suas palavras, o “princípio da transparência
ou clareza foi estabelecido pela Constituição de 1988 como pedra de toque do
Direito Financeiro. Poderia ser considerado mesmo um princípio constitucional
vinculado à ideia de segurança orçamentária. Nesse sentido, a ideia de
transparência possui a importante função de fornecer subsídios para o debate
acerca das finanças públicas, o que permite uma maior fiscalização das contas
públicas por parte dos órgãos competentes e, mais amplamente, da própria
sociedade. A busca pela transparência é também a busca pela legitimidade”.1
A transparência não se expressa apenas pela quantidade de
informações, mas também pela sua qualidade, objetividade, inteligibilidade e,
sobretudo, utilidade, não devendo ser encarada apenas sob a ótica do acesso
à informação, mas seu conceito deve ser compreendido de maneira
abrangente, abarcando outros elementos tais como responsividade,
accountability, combate à corrupção, prestação de serviços públicos, confiança,
1
MENDES, Gilmar Ferreira. Comentário ao art. 48 da LRF. In: MARTINS, Ives Gandra da
Silva; NASCIMENTO, Carlos Valder do. (Org.). Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal.
São Paulo: Saraiva, 2001. p. 334.
clareza e simplicidade.
Para permitir a compreensão do cidadão, as contas públicas devem
possuir as seguintes características técnicas: I – uniformidade ou padronização
na apresentação dos seus dados, possibilitando ao usuário realizar
comparações e análises; II – clareza na evidenciação do seu conteúdo; III –
especificação na classificação e na designação das suas informações,
preconizando a identificação de todas as rubricas de receitas e despesas,
apresentando-as de maneira analítica e detalhada.
Valendo-nos da clássica noção de pacto social do qual o cidadão é
parte, parece-nos inquestionável conceder-lhe o direito de ter amplo acesso às
informações essenciais para participar ativamente na gestão das finanças
públicas e, por consequência, nas decisões mais relevantes para o país. Afinal,
será o cidadão-contribuinte que pagará esta conta.
Shutdown e democracia orçamentária

Publicado em 01/02/2018

Recentemente, assistimos à paralisação temporária dos serviços


públicos considerados "não essenciais" de responsabilidade do governo federal
norte-americano, devido ao impasse instaurado entre os partidos Republicano
e Democrata em relação à aprovação do orçamento público da União no
Congresso dos EUA. Mais precisamente, o Senado recusou a proposta de
aprovação de uma dotação orçamentária suplementar enquanto o orçamento
público definitivo não fosse aprovado, o que deveria ter ocorrido até o final do
mês de setembro, uma vez que o ano fiscal norte-americano se inicia em 1º de
outubro.
Esta foi a 19ª vez que tal fato ocorreu naquele país, sendo a primeira do
governo de Donald Trump. A última vez havia sido em 2013, durante o governo
de Barack Obama. O impasse desse ano entre ambos os partidos girou, pelo
lado democrata, em torno da questão da regularização dos "dreamers", jovens
imigrantes que chegaram aos EUA ainda crianças e que continuam sem a
documentação definitiva para permanência no país; ao passo que republicanos
demandavam um aumento de gastos militares para o ano de 2018.
O mecanismo de shutdown americano faz com que atividades públicas
tidas como não essenciais - como, por exemplo, parques nacionais, bibliotecas,
museus e pontos turísticos - tenham o seu funcionamento suspenso e os
respectivos funcionários públicos sejam impedidos de se apresentarem ao
trabalho, entrando numa espécie de "licença temporária sem vencimentos".
Isso se dá porque, assim como no Brasil, nos EUA vige o princípio
constitucional da legalidade orçamentária, previsto no art. 1º, Seção 9,
Cláusula 7, da Constituição dos Estados Unidos da América, segundo o qual
"dinheiro algum poderá ser retirado do Tesouro senão em consequência de
dotação determinada em lei".
As regras gerais orçamentárias dos EUA se encontram previstas nos §§
1.101 ao 1.126 do "U.S. Code - Title 31" (codificação das leis federais), que
incorporou a legislação orçamentária conhecida por "Budget and Accounting
Act". A aprovação do orçamento público federal nos EUA se dá pela
apresentação, no início de cada ano, da proposta anual de orçamento pelo
Presidente ao Congresso, o qual deverá analisá-la, votá-la e aprová-la, para,
ao final, ser sancionada pelo Presidente, distribuindo, assim, as dotações
orçamentárias nas leis denominadas de "Appropriation Bills".
Pelo que se vê, o processo de elaboração e aprovação das leis
orçamentárias americanas contempla a participação conjunta do Poder
Executivo e do Legislativo, dentro do modelo de democracia fiscal
orçamentária, tal como ocorre no Brasil. Entretanto, nós não possuímos o
mecanismo de shutdown, embora tenhamos também o imperativo da
legalidade orçamentária, segundo a qual não poderá haver nenhuma despesa
sem a devida e regular previsão legal que a autorize. Nesse sentido, o inciso I
do art. 167 da Constituição Federal de 1988 proíbe o início de programas ou
projetos não incluídos na lei orçamentária anual. Igualmente, segundo o art. 6º
da Lei nº 4.320/1964, todas as despesas devem constar da lei orçamentária.
No Brasil, também acontece de o exercício financeiro se iniciar sem que
tenha sido aprovado o projeto de lei orçamentária. Essa situação de "anomia
orçamentária" infelizmente não é rara, tendo se tornado comum, ano após ano,
a aprovação das leis orçamentárias no âmbito federal nos meses de fevereiro
ou março, quando tal fato deveria ocorrer necessariamente ao fim do mês de
dezembro do ano anterior. Merece lembrança o que ocorreu em 1994, quando
a lei orçamentária daquele ano (Lei nº 8.933, de 09 de novembro de 1994) veio
a ser aprovada somente no mês de novembro, com um atraso de 11 meses.
Embora não haja qualquer previsão legal ou constitucional expressa
para disciplinar esta situação, a solução para a situação de falta de lei
orçamentária decorre da utilização temporária, na proporção mensal de 1/12
avos (duodécimos), da proposta de lei orçamentária ou da prorrogação da lei
orçamentária do ano anterior, a partir da interpretação por analogia do art. 32
da Lei nº 4.320/1964, que trata da hipótese de não envio da lei orçamentária
pelo Chefe do Executivo no prazo estipulado e que, neste caso, permite a
utilização da lei orçamentária então vigente, desde que a lei de diretrizes
orçamentárias assim o autorize.
A relevância de que o orçamento seja efetivamente votado e aprovado
pelo Poder Legislativo - devendo-se evitar os expedientes provisórios como
aquele dos duodécimos - conecta-se às origens do orçamento público como
documento democrático e representativo da vontade do povo na alocação de
recursos. Já a Magna Carta inglesa de 1215 o aponta, podendo-se nela ver os
primeiros vestígios do processo de transmutação para o Estado de Direito, em
que as receitas do governante passam a ser definidas por um conselho de
notáveis do reino, embrião do Parlamento inglês. Historicamente, o controle do
Parlamento sobre as finanças do governante se deu primeiramente na sua face
arrecadatória (tributação) e, só posteriormente, foi estendido para a
orçamentária (despesa).
Somente com o desenvolvimento do constitucionalismo, com o controle
do Poder Legislativo sobre o Executivo e com o advento das instituições de
governo representativo é que se inicia o desenvolvimento do sistema
orçamentário no Velho Mundo, modelo que se espraia para a grande maioria
das nações.
A mencionada democracia fiscal orçamentária se revela no processo de
elaboração e execução do orçamento público que, ao longo dos séculos,
transformou-se em um mecanismo de relacionamento político e democrático
entre o governante e o Parlamento. Chega-se, nos Estados de Direito
contemporâneos, à formulação de que a estrutura organizatório-funcional dos
poderes financeiros passa a conceber - além da mera autorização
arrecadatória - a proposição orçamentária da despesa pública em mãos do
governante, mas submetida sua aprovação aos membros do Parlamento como
representantes dos cidadãos, de modo que haja autorização para execução
dos gastos por meio de uma lei.
Não obstante os encômios à democracia fiscal orçamentária, em um
país como o Brasil, em que prevalece a mecânica do presidencialismo de
coalizão, a legítima participação dos representantes parlamentares durante o
processo de elaboração e aprovação das leis orçamentárias traz reflexos e
complexidade na sua conclusão, muitas vezes em decorrência de pressões
pela inclusão de dotações orçamentárias destinadas a atender às suas bases
eleitorais por meio das emendas parlamentares. Essa situação, além de
envolver longo processo de negociação e, por vezes, atrasos na edição das
leis orçamentárias, acarreta um aumento de gastos e desequilíbrio fiscal.
Assim, no processo orçamentário, tanto aqui no Brasil como nos EUA,
revela-se uma grande tensão entre os interesses individuais, regionais ou
partidários e a necessidade de sua submissão ao interesse nacional e coletivo,
sob pena de invertermos os valores e objetivos constitucionalmente previstos e
deturparmos a finalidade precípua do orçamento público - a realização do gasto
público de forma racional e eficiente-, tendo como maior prejudicado o cidadão
que ficará sem os serviços públicos a que faz jus.
Receitas variáveis e despesas correntes: uma equação
furada

Publicado em 01/03/2018

O bom senso nos diz que, para financiar gastos constantes, ou seja, as
chamadas despesas públicas correntes, o gestor deverá utilizar apenas as
receitas públicas igualmente constantes, não sendo adequado recorrer a
receitas variáveis, inconstantes ou eventuais; do contrário, em algum momento,
a conta poderá não "fechar".
Esta lógica cartesiana encontra-se prevista, de maneira transversa, na
Constituição Federal, no inciso III do artigo 167, ao dispor ser vedada "a
realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas
de capital", ou seja, o uso do crédito público (espécie de ingresso temporário e
variável de recursos financeiros) deverá destinar-se aos investimentos apenas,
evitando o endividamento para cobrir despesas correntes, como, por exemplo,
a remuneração de servidores públicos. Igual vedação encontra-se no inciso I
do parágrafo 1º do artigo 35 da Lei de Responsabilidade Fiscal.
O noticiário tem chamado esta vedação de "regra de ouro fiscal", sendo
uma das três "âncoras" do equilíbrio fiscal, ao lado do teto de gastos e da meta
de resultado primário.
Pois bem, é possível identificar como um dos motivos da grave crise
financeira vivida nos últimos anos, por exemplo, pelo Estado do Rio de Janeiro,
o aumento desgovernado de gastos correntes, sobretudo com despesas de
pessoal, a partir da bonança financeira advinda da elevada arrecadação de
royalties do petróleo, em período em que o preço do barril ultrapassava os 100
dólares entre os anos de 2011 e 2014.
Ocorre que, nos anos seguintes, com a queda do preço dessa
commodity, cujo barril chegou a estar valendo menos de 30 dólares no final de
2015 e início de 2016, as receitas passaram a ser deficitárias em relação aos
gastos assumidos, frustrando, assim, o equilíbrio da equação entre receitas e
despesas.
Como sabemos, as receitas públicas podem ser classificadas como
sendo ordinárias ou extraordinárias, conforme a periodicidade do seu ingresso.
Se houver regularidade e constância, estaremos falando de receitas públicas
ordinárias, como é o caso dos tributos pertencentes ao sistema tributário
nacional, cuja arrecadação será sempre previsível diante da frequência de sua
entrada nos cofres públicos. Por outro lado, se o ingresso for eventual e
circunstancial, estaremos diante das receitas públicas extraordinárias, como no
caso dos empréstimos compulsórios, dos impostos extraordinários ou das
doações, que ocorrem em momentos ocasionais, sem serem dotados de
perenidade no sistema financeiro estatal. Por sua vez, podemos considerar
como receitas públicas variáveis aquelas que, ainda que arrecadadas com
certa constância, apresentam valores alternáveis, sofrendo mutação conforme
os ciclos econômicos, como é o caso de royalties e participações especiais
pela exploração de petróleo.
Já pelo lado da despesa pública, temos as despesas correntes, que se
caracterizam por serem contínuas, rotineiras ou periódicas. São dotações
destinadas, por exemplo, ao pagamento do funcionamento ou manutenção da
estrutura estatal (máquina administrativa), à remuneração de inativos, ao
pagamento de juros etc. Essas despesas podem ser subdivididas, por sua vez,
em despesas de custeio e transferências correntes. Já as despesas de capital
caracterizam-se por serem eventuais, ou seja, desprovidas de periodicidade,
podendo ser de três espécies: investimentos, inversões financeiras ou
transferências de capital.
A importância da distinção entre as espécies de receitas e despesas
ganha relevo na elaboração do orçamento público, pois, para que o Estado
possa elaborar o seu orçamento e determinar os investimentos a serem
realizados, as despesas públicas e os demais gastos em um determinado
período, é necessário dispor de mecanismos de previsibilidade das receitas.
Assim, para buscar atender à regra do equilíbrio fiscal, nem sempre será
possível levar em consideração as receitas extraordinárias e variáveis no
cálculo orçamentário, diante da sua eventualidade e imprevisibilidade. Exemplo
disso é a inadequada utilização de receitas originárias do recebimento de
royalties de petróleo (receita variável) para o pagamento de despesas de
natureza continuada, como as de pessoal ativo e inativo (despesa fixa).
Essa previsibilidade financeira que decorre das receitas ordinárias está
expressamente disposta na Lei de Responsabilidade Fiscal, uma vez que
encontramos no seu texto a seguinte determinação: “Constituem requisitos
essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva
arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da
Federação” (art. 11).
Ao mesmo tempo que não se podem vincular despesas constantes a
receitas eventuais ou variáveis, sob pena de gerar um desequilíbrio nas contas
públicas e o consequente déficit fiscal orçamentário, não é recomendável que
se tenha um excedente de receitas públicas sem a respectiva despesa,
implicando um acúmulo de recursos financeiros sem uma efetiva aplicação nas
necessidades coletivas. Trata-se de um equilíbrio complexo e necessário no
Estado Fiscal contemporâneo que o administrador público deve
constantemente buscar.
Agora assistimos à recuperação do preço do barril de petróleo, que
chega à casa dos 70 dólares, aliada ao aumento da produção da Petrobras na
área do pré-sal, o que gera uma estimativa de arrecadação de 13,8 bilhões de
reais para o Estado do Rio de Janeiro e seus municípios para o corrente ano
de 2018, valor 25% maior do que no ano passado (R$ 11 bilhões em 2017) e
mais do que o dobro do arrecadado em 2016 (R$ 6 bilhões).
Neste contexto, espera-se que a amarga lição do passado sirva para o
futuro, não apenas para o Estado do Rio de Janeiro, mas para todas as demais
unidades da federação. E que o gestor público consiga - assim como no sonho
bíblico do faraó do Egito narrado no capítulo 41 do livro de Gênesis a respeito
das 7 vacas gordas e 7 vacas magras, simbolizando 7 anos de fartura seguidos
de 7 anos de penúria - sanear as contas públicas, não cometendo mais o
pecado de utilizar receitas variáveis para fazer frente às despesas correntes,
sob pena desta equação "furar" novamente.
Gastos públicos na ótica da sociedade e da
Constituição

Publicado em 03/04/2018

Sempre nos perguntamos em que são pautadas as escolhas feitas pelos


governantes em relação aos gastos que serão realizados com o dinheiro
público ao longo de sua gestão.
De fato, parte das suas prioridades acabam sendo antecipadas nas
promessas de campanha eleitoral, em regra seguindo os ideais (político,
econômico e social) de cada candidato. Uma vez eleitos e no exercício do
cargo público - presidente, governador ou prefeito -, suas escolhas passam a
ser pautadas também com base nas limitações orçamentárias e nos seus
interesses políticos.
Não obstante, devemos nos indagar se a definição da despesa pública a
ser prevista no orçamento público e posteriormente executada pelo governante
é de natureza discricionária ou vinculada, e se atende aos anseios da
sociedade e aos valores e direitos fixados na Constituição.
Recentemente, foi divulgada uma pesquisa de opinião pública 2 acerca
das prioridades mais urgentes sob o ponto de vista do cidadão brasileiro. Em
primeiro lugar, 49,3% dos ouvidos declararam a sua preocupação em acabar
com a corrupção; em segundo lugar, 45,4% disseram que a prioridade deveria
ser melhorar a educação; em terceiro lugar, 42% afirmaram como urgente
melhorar a saúde pública; em quarto lugar, 29,5% das opiniões preocuparam-
se com a melhoria na segurança pública; na sequência, em percentuais
menores, a atenção estava voltada para a geração de empregos, a redução
dos impostos, o controle da inflação, o aperfeiçoamento da infraestrutura e
outros.
Não nos espanta que o combate à corrupção esteja em primeiro lugar de
preocupação, uma vez que a sociedade brasileira já compreende que o desvio
ilegal de recursos públicos drena (para o bolso do corrupto) o dinheiro que
deveria estar sendo empregado em todas as demais necessidades públicas,
tais como educação, saúde e segurança, prioridades estas identificadas nesta
pesquisa como majoritárias. A propósito do tema, já tive oportunidade de expor
que, na perspectiva fiscal, a corrupção adquire natureza de despesa pública,
sobretudo como custo adicional nos gastos públicos, pelo superfaturamento
dos preços contratados (pois o empresário incorporará aos custos do contrato
com a Administração Pública o valor a ser pago em corrupção).
Mas a manifestação popular exposta na referida pesquisa também está
em linha com o texto constitucional, que cria direitos inúmeros para os
cidadãos e, por decorrência, fixa deveres para o Estado, cuja efetivação
dependerá de recursos financeiros que estejam previstos no orçamento
público.
Podemos destacar alguns exemplos dessas previsões constitucionais. O

2
Fonte: Instituto Ideia Big Data.
texto do art. 6º categoricamente afirma que “são direitos sociais a educação, a
saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição”; mais adiante, o art. 194
expressamente define que “a seguridade social compreende um conjunto
integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade,
destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à
assistência social”; igualmente, o art. 196 prevê que “a saúde é direito de todos
e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal
e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”;
na mesma linha, o art. 204 estabelece que “as ações governamentais na área
da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da
seguridade social”; por sua vez, o art. 205 define que “a educação, direito de
todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”; o art.
208, ainda tratando da educação, prevê que “o acesso ao ensino obrigatório e
gratuito é direito público subjetivo“ e ressalva que “o não oferecimento do
ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa
responsabilidade da autoridade competente”; encontramos, no art. 215, a
previsão no sentido de que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos
direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará
a valorização e a difusão das manifestações culturais”; ainda, o art. 217 prevê
ser “dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais,
como direito de cada um (...)”; com a mesma ênfase, o art. 225 reconhece que
“todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e futuras gerações”.
Como sabemos, ao tempo da promulgação da Constituição de 1988, tais
previsões funcionavam como meros parâmetros a serem seguidos e objetivos a
serem atingidos pelo administrador público, indicando as prioridades na
programação da realização das despesas públicas, fato que, por si só, já
deveria conduzir as escolhas do governante.
Porém, atualmente, com o reconhecimento e solidificação da efetividade
normativa dos preceitos constitucionais, e com a ampliação e o fortalecimento
do exercício dos direitos de cidadania, já está consolidada no Direito
contemporâneo brasileiro a possibilidade de o cidadão exigir do Estado -
inclusive judicialmente - a realização dessas despesas públicas, especialmente
quando se referirem a Direitos Sociais e Fundamentais.
Ademais, o próprio conceito de 'discricionariedade' dos atos
administrativos passou nos últimos anos por uma forte revisão no seu
conteúdo, perdendo a sua grande margem de subjetivismo e liberdade de
escolha que até então lhe caracterizava, passando o seu mérito e motivação a
estarem vinculados aos princípios e valores constitucionais no âmbito das
decisões administrativas, condicionando as opções do governante através
deste novel "poder-dever".
Por isso, é legítimo afirmar ser possível entender que as despesas
públicas são cada vez mais priorizadas e determinadas por comandos
jurídicos, e cada vez menos consideradas deliberações de natureza política e
discricionária. Ou seja, as despesas públicas não se originam, exclusivamente,
de deliberações única e exclusivamente apoiadas nas convicções, ideologias e
aspirações do governante, mas, sim, decorrem, em grande parte das vezes,
das imposições existentes nas diversas prescrições normativas de nosso
ordenamento jurídico, especialmente aquelas de índole constitucional. E ainda
mais se estes dispositivos estiverem em sintonia com os anseios populares,
fato refletido no resultado da aludida pesquisa de opinião.
Portanto, temos duas vozes - a da Constituição e a do cidadão - a
clamar em total harmonia - como numa sinfonia clássica - por uma priorização
dos gastos públicos em saúde, educação e segurança pública, em detrimento
de gastos supérfluos ou de secundária importância, como diuturnamente
vemos ocorrer.
Daí o porquê de se poder afirmar que emerge uma nova linha
contemporânea ‒ à qual nos filiamos ‒ a entender que a natureza da despesa
pública, tanto na sua escolha como na sua realização, é, em sua essência, de
origem jurídico-constitucional.
Orçamento inflado e irreal

Publicado em 09/05/2018

Há muito tempo escutamos que os orçamentos públicos “são peças de


ficção”. Esta ideia foi verbalizada pelo Ministro do STF Marco Aurélio Mello no
julgamento da ADI nº 4.663 (15.10.2014), que, em tom de tom de crítica à não
exequibilidade do orçamento, afirmou em seu voto que: “A lei orçamentária
ganha, então, contornos do faz de conta. Faz de conta que a Casa do Povo
aprova certas destinações de recursos, visando às políticas públicas, sendo
que o Executivo tudo pode, sem dizer a razão”.
Infelizmente, esta é uma realidade constante em nosso país, e uma das
razões que talvez justifique esta nefasta prática é a desconsideração das leis
orçamentárias como leis de verdade – imperativas e cogentes -, sendo
encaradas pelos governantes como meros atos administrativos passíveis de
elaboração em descompasso com a realidade e a sua respectiva execução
sendo mitigada por contingenciamentos imotivados. A isso se soma uma
participação neste processo, pelo Poder Legislativo, por vezes pautada em
interesses eleitoreiros ou setoriais, em detrimento do interesse nacional.
Acrescente-se a isso o descaso em relação aos preceitos da Lei de
Responsabilidade Fiscal.
Tomemos como exemplo concreto o orçamento público federal aprovado
e em vigor no corrente ano de 2018, que considerou em seu projeto de lei
(elaborado pelo Poder Executivo) uma série de receitas que sequer haviam
sido aprovadas pelo Congresso, além de renúncias fiscais que tiveram o seu
alcance ampliado (pelo Poder Legislativo), acarretando em ambas as situações
um grave desequilíbrio financeiro ao orçamento.
A primeira ocorrência se deu no dia 3 de abril corrente, quando o
Congresso derrubou o veto do Presidente da República ao projeto que instituía
o Refis para micros e pequenas empresas que optaram pelo Simples (regime
simplificado de tributação), o qual havia sido aprovado pelo Senado no final de
2017. Ocorre que o veto do presidente Michel Temer tinha como justificativa a
violação da Lei de Responsabilidade Fiscal ao não prever a origem dos
recursos que cobririam as renúncias fiscais. Com o afastamento do veto
presidencial, estima-se que o programa tenha gerado uma renúncia fiscal – e
consequente déficit ao orçamento – no montante de 7,5 bilhões de reais.
Na mesma data, o Congresso adotou igual procedimento, rejeitando o
veto presidencial a certos dispositivos do projeto de lei PLC nº 165/2017 que
deu origem à Lei 13.606/2018, a qual institui o Programa de Regularização
Tributária Rural, conhecido por Refis Rural, que permite a renegociação das
dívidas de produtores rurais. Entre os vetos cancelados está o aumento de
25% para 100% de desconto das multas e encargos sobre os débitos
acumulados com o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural), além
de ter sido restabelecida pelos parlamentares a redução das contribuições dos
empregadores à Previdência, de 2,5% para 1,7% da receita proveniente da
comercialização dos produtos. A desoneração fiscal decorrente deste programa
acarreta um déficit ao orçamento de cerca de 10 bilhões de reais.
Outro fato negativo que desestabilizou ainda mais as contas públicas
deste ano foi a não conversão em lei, pelo Congresso Nacional, da Medida
Provisória nº 806/2017, apesar de duas vezes prorrogada, cujo ganho na
arrecadação em 2018 era esperado em 10,7 bilhões de reais. A referida MP
alterava a tributação do Imposto de Renda sobre fundos financeiros chamados
exclusivos, com alíquotas entre 15% e 22,5%, dependendo do prazo das
aplicações. Destinados a grandes clientes, estes fundos, que são fechados e
não têm livre adesão, pagam IR apenas no fechamento ou no resgate das
cotas. Mas, de acordo com a MP, o imposto passaria a ser cobrado todos os
anos, como ocorre com os demais fundos de investimentos, ocasionando
aumento na tributação.
Temos também ainda pendente de votação o projeto de lei de
reoneração da folha de pagamentos (PL nº 8.456/2017). Conforme os cálculos
do governo, a aprovação da proposta resultaria em uma redução da renúncia
fiscal da ordem de R$ 12,585 bilhões em 2018. A política de desoneração da
folha começou em 2011 e foi lançada pelo governo Dilma Rousseff com o
objetivo de estimular a geração de empregos no País e melhorar a
competitividade das empresas. O benefício se dá por meio da substituição da
cobrança de uma contribuição previdenciária de 20% sobre a folha de
pagamento das empresas, por um porcentual sobre o faturamento da empresa.
Inicialmente, a alíquota variou entre 1% e 2%. Hoje, varia entre 1% e 4,5%,
dependendo do setor. Mas estes valores renunciados estão pesando nas
contas públicas e a aprovação da reoneração já se encontra com bastante
atraso, o que acarreta maior desequilíbrio nas contas.
Há ainda a não conversão da Medida Provisória nº 805/2017, que
perdeu sua eficácia em 8 de abril de 2018 (embora já estivesse suspensa por
decisão do Ministro do STF Ricardo Lewandowski). Esta MP adiava para 2019
o reajuste dos servidores públicos federais, bem como elevava de 11% para
14% a contribuição previdenciária dos funcionários públicos – ativos e
aposentados – que ganham acima de R$ 5,3 mil. A expectativa da área
econômica era de que essa medida geraria uma arrecadação extra de R$ 6,6
bilhões em 2018.
Por fim, não podemos deixar de lembrar que o Governo federal contava
com o valor de cerca de 12 bilhões de reais referente à privatização da
Eletrobrás (via aumento de capital e consequente diluição da participação da
União), por meio do PL nº 9.463/2018, que está emperrado no Congresso até o
momento.
Se contarmos apenas estas “expectativas” de receitas que acabaram por
não se materializar, juntamente com a elevação nos valores das renúncias
fiscais concedidas, chegamos a uma monta de quase R$ 60 bilhões, o que
acarreta um significativo déficit no orçamento de 2018, implicando uma série de
contingenciamentos que prejudicam, no final das contas, o cidadão que fica
sem os serviços públicos necessários.
Dito isto, voltamos ao que expusemos no início deste texto: que os
orçamentos públicos são elaborados a partir de receitas incertas e que sequer
existem ao momento da aprovação do projeto de lei orçamentária, afetando,
por consequência, o outro lado desta moeda, vale dizer, a execução das
despesas públicas fica prejudicada.
Orçamentos públicos com valores de receitas e despesas irreais
esbarram no princípio da sinceridade orçamentária, mandamento que visa
coibir os orçamentos realizados em desacordo com a realidade econômica e
social, com base em receitas “superinfladas” e despesas inexequíveis, muitas
vezes motivadas por fins eleitoreiros.
Por tudo o que se disse, não é disparatado se questionar onde estaria o
ideal de boa-fé, de transparência e de veracidade daqueles que elaboram,
aprovam e executam um orçamento público irreal e inconsistente, violador das
regras da Lei de Responsabilidade Fiscal e, sobretudo, repleto de promessas
que não se realizam, frustrando ao final as expectativas do cidadão.
Novos municípios e a velha preguiça fiscal

Publicado em 13/06/2018

Todos sabemos que o Brasil possui dimensões continentais, sendo a


quinta nação em extensão no mundo e capaz de abrigar em seu território
quase a totalidade das nações europeias. A nossa diversidade social, cultural e
econômica se encontra representada, localmente, nos atuais 5.570 municípios.
Mas ao ler o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 137/2015, que
estabelece regras para a criação de novos municípios, recentemente aprovado
por unanimidade pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados - e que,
em breve, poderá ser levado ao Plenário daquela Casa Legislativa -, proponho
uma reflexão sobre se realmente são necessários outros tantos.
Segundo o mencionado projeto de lei, o processo de emancipação será
iniciado com requerimento à Assembleia Legislativa do respectivo estado,
desde que o documento seja subscrito por 20% dos eleitores da área, em caso
de criação ou desmembramento de município, ou de 3% dos eleitores de cada
um dos municípios envolvidos, em caso de fusão ou incorporação. Entre os
critérios exigidos para a criação está a necessidade de a população do novo
município e do que foi desmembrado ser de, pelo menos, 6 mil habitantes nas
regiões Norte e Centro-Oeste; 12 mil habitantes no Nordeste; e 20 mil no Sul e
no Sudeste.
Segundo o IBGE (2017), quase 70% dos municípios brasileiros possuem
menos de 20 mil habitantes e cerca de 1.200 tem menos de 5.000 habitantes,
sendo que Serra da Saudade (MG) é o município brasileiro de menor
população, com apenas 812 habitantes, seguido de Borá (SP), com 839
habitantes, e Araguainha (MT), com 931 habitantes. Por sua vez, em termos de
capacidade financeira, apenas agregando-se os 64 municípios de maior PIB,
estes concentram aproximadamente a metade do PIB nacional. Em
contrapartida, os 1.353 municípios que, em 2015, pertenciam à última faixa de
influência sobre as riquezas do país responderam por aproximadamente 1% do
PIB. Identificou-se que o PIB per capita do município mais rico do país chega a
ser 190 vezes maior que o do município mais pobre.
No ano passado, foi divulgado um levantamento feito pela Confederação
Nacional de Municípios em que foram ouvidos 80% dos municípios brasileiros
(4.434) e se identificou que 63% das prefeituras não conseguiriam fechar as
contas de 2017 no azul. Além disso, 26% municípios já ultrapassavam os
limites de gastos com despesas de pessoal e outros 41% estavam em vias de
ultrapassar o teto. Por sua vez, 47% iriam terminar o ano com atraso no
pagamento de fornecedores, 45% tinham obras de creches ou postos de saúde
paralisadas e 15% planejavam atrasar os salários de dezembro dos
funcionários públicos no momento da pesquisa.
A questão fiscal dos municípios brasileiros é muito preocupante,
sobretudo porque se percebe que grande parte deles depende financeiramente
da redistribuição constitucional e obrigatória das receitas tributárias. Isso
porque, de tudo que é arrecadado nacionalmente em termos de tributos, a
União fica com cerca de 67%, os Estados com 26% e os municípios somente
com 7%.
A mencionada redistribuição de receitas tributárias tem como objetivo
estabelecer um menor desequilíbrio financeiro entre as unidades da federação
e garantir as suas respectivas autonomias política, administrativa e financeira.
Nesse sentido, a Constituição prevê que aos Municípios caberá a totalidade
(100%) do produto da retenção na fonte do Imposto de Renda Retido na Fonte
(IRRF) sobre rendas e proventos por eles pagos (administração direta e
indireta municipal), bem como 50% do Imposto sobre a Propriedade Territorial
Rural (ITR), relativos aos imóveis neles situados, sendo que esse percentual
será de 100% se o imposto for fiscalizado e cobrado pelo próprio Município (art.
158, incisos I e II, CF/1988). Além disso, também serão destinados aos
Municípios 50% sobre o que for arrecadado pelos Estados, referentes ao
Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e 25%
referentes ao Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS),
sendo 3/4 na proporção do valor adicionado nas operações realizadas em seus
territórios e 1/4 conforme dispuser a lei (art. 158, incisos III e IV, CF/1988).
Ainda, os Estados transferirão aos Municípios 25% dos 10% que receberem a
título de transferência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e
também 25% dos 29% que receberem a título de transferência da Contribuição
de Intervenção no Domínio Econômico sobre Petróleo e demais combustíveis
(art. 159, §§ 3º e 4º, CF/1988). Destaca-se, ainda, que ao Fundo de
Participação dos Municípios (FPM) serão transferidos 22,5% do produto da
arrecadação da União do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) (art. 159, inciso I, alínea b, CF/1988), sendo que mais
1,0% do produto arrecadado desses impostos será destinado ao fundo
municipal, entregue no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano
(art. 159, inciso I, alínea d, CF/1988), e outro 1% (um por cento) do produto
desses impostos ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue
no primeiro decêndio do mês de julho de cada ano (art. 159, inciso I, alínea e,
CF/1988), na forma do estabelecido pela Emenda Constitucional nº 84/2014.
Um exemplo dessa dependência dos repasses constitucionais – o que
chamo de “preguiça fiscal” – está na ausência de cobrança do IPTU, uma vez
que cerca de 2.000 municípios sequer regulamentaram a sua arrecadação.
O não exercício da competência tributária – a não instituição e cobrança
de impostos – por parte de alguns Municípios baseia-se na ideia de não ser
obrigatória a utilização desse poder. Isso porque a doutrina clássica sempre
caracterizou o exercício da competência tributária como sendo de natureza
facultativa. O Código Tributário Nacional reconhece essa característica no seu
art. 8º, ao estabelecer que “o não exercício da competência tributária não a
defere a pessoa jurídica de direito público diversa daquela a que a Constituição
a tenha atribuído”.
Apesar disso, devemos indagar: como é possível realizar
adequadamente as políticas públicas e atender às necessidades públicas
constitucionalmente asseguradas sem a totalidade dos recursos financeiros
que seriam oriundos de uma competência tributária que acaba por não ser
exercida a partir de uma facultatividade do ente federativo? Não nos parece
aceitável caracterizar como sendo plenamente facultativo o exercício da
competência tributária se isso puder comprometer o cumprimento das
obrigações estatais, prejudicando, ao final, a própria sociedade.
Nosso entendimento é o de que, embora não haja qualquer ilegalidade
propriamente dita à luz do nosso ordenamento jurídico, esse comportamento
seria inadequado e enfraqueceria a ideia da autonomia financeira dos entes
federativos (parte do ideário do federalismo fiscal). Ademais, contraria o
objetivo principal da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000), qual
seja, o da gestão fiscal responsável: o art. 11 dessa lei estabelece como
requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição,
previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência
constitucional do ente da federação, ficando vedada a realização de
transferências voluntárias para o ente que assim não o fizer quanto aos seus
impostos (art. 11, parágrafo único).
Manter adequadamente a oferta dos serviços públicos para a população
e custear a máquina administrativa apenas com os recursos oriundos dos
repasses obrigatórios não deve ser tarefa fácil. Certamente, algo será
sacrificado. Ora, apesar de existirem com a finalidade de atender às
necessidades públicas e a sua população, inequivocamente, cada município
precisará de recursos financeiros suficientes para arcar com a sua estrutura
governamental de acordo com as suas realidades, pois contará com: a) uma
prefeitura, integrada por um prefeito, um vice-prefeito, suas assessorias e
respectivas secretarias de fazenda, de saúde, de educação, de transportes, de
segurança, dentre outras; b) uma casa legislativa, cuja câmara de vereadores
terá no mínimo 9 vereadores, cada qual com seu gabinete e estrutura material
e de servidores; c) um conjunto de órgãos públicos que atendam à população
em serviços de transporte coletivo, de educação infantil e ensino fundamental,
de atendimento à saúde, de planejamento e controle urbano, de limpeza de
lixo, de segurança pública etc.
Feitas essa colocações, resta-nos indagar se a política de emancipação
municipal é realmente necessária para a população local. Acaso não seria
possível a realização de um estudo e reorganização destas unidades a partir
da cooperação administrativa, reduzindo-se a máquina e o funcionalismo
afetado aos fins indiretos, para, então, concentrar os recursos financeiros nas
finalidades diretas - em mais escolas, mais hospitais, ampliação do
saneamento básico e segurança pública? Deixo aqui esta minha reflexão.
Imprescindibilidade do planejamento dos gastos
públicos

Publicado em 18/07/2018

Vivemos um momento extremante sensível nas contas públicas do


Brasil, não apenas para a União, mas também para Estados e Municípios.
Além disso, encontramo-nos em uma quadra político-jurídica de incertezas e de
perplexidades que afetam ainda mais a área fiscal em ano eleitoral.
Um exemplo disso está na série de preocupantes notícias a respeito da
dita “pauta-bomba” do Congresso Nacional, que poderá trazer um déficit fiscal
ainda maior do que já temos, em montante adicional para além de 70 bilhões
de reais, a partir da aprovação de inúmeras medidas, tais como: parcelamento
das dívidas previdenciárias dos produtores rurais: R$ 13 bilhões; renúncia fiscal
com o marco regulatório do transporte de cargas: R$ 8,6 bilhões; perda de
arrecadação com a venda direta de etanol do produtor para o posto de
combustíveis: R$ 2,4 bilhões; transferência de servidores dos ex-territórios federais
para a União: R$ 2 bilhões; manutenção de benefícios fiscais para o setor de
refrigerantes: R$ 1,78 bilhão; fim da cobrança de conta de luz para famílias de
baixa renda: R$ 742 milhões; e anistia de multas de trânsito e judiciais contra
transportadoras na greve dos caminhoneiros: R$ 715 milhões.
Esse tipo de conduta do Poder Legislativo, que certamente tem como
objetivo atender as pressões das “bases” dos parlamentares em ano eleitoral, não
apenas vem causando inquietação na opinião pública, como também vai de
encontro a todo o planejamento orçamentário realizado pelo Poder Executivo para
o corrente ano e os subsequentes.
O planejamento é um dos pilares fundamentais do orçamento público dentro
de um sistema jurídico-fiscal que preze pela eficiência e moralidade nos gastos,
visando atingir objetivos que atendam ao interesse público. Trata-se de um
processo permanente, dinâmico e sistematizado de gestão, composto de um
conjunto de ações coordenadas e integradas, pelo qual se estabelece
antecipadamente o que se pretende realizar e quais metas se busca alcançar,
com o escopo de se obter um resultado satisfatório e desejado. Procura-se,
pelo planejamento, responder as seguintes questões básicas: onde queremos
chegar e como atingiremos nossos propósitos?
Noutras palavras, não planejar adequadamente enseja gastar mal o
dinheiro público, em prioridades imediatistas e muitas vezes subjetivas ou de
conveniência circunstancial (eleitoreira ou em troca de apoio político), e
também com projetos que sequer serão concluídos.
Afinal, quantos empréstimos públicos onerosos precisaram ser feitos por
falta de planificação de caixa? Quantas obras foram iniciadas e, depois,
paralisadas, por ausência de recursos ou erros em seus projetos? Quantos
déficits se fizeram por superestimativa de receita orçamentária? Quantos
projetos se frustraram por falta de articulação programática com outros
empreendimentos governamentais? Quantos servidores foram admitidos em
setores não prioritários? Quantas aquisições de medicamentos ou alimentos
foram realizadas em volume superior ao necessário para o período, ensejando
a perda de sua validade? Quantas renúncias fiscais ou subsídios concedidos
foram realizados sem o devido estudo sobre o custo-benefício para a
sociedade?
Recentemente, a Confederação Nacional da Indústria (CNI), com base
em dados de 2017 fornecidos pelo Ministério do Planejamento,
Desenvolvimento e Gestão, publicou interessante estudo, intitulado “Grandes
obras paradas: como enfrentar o problema?”, em que realiza levantamento
sobre a ineficiência dos gastos públicos em investimentos de infraestrutura,
identificando que há 2.797 obras paralisadas no país, inclusive nas áreas de
saneamento básico (serviços de água e esgoto), creches e pré-escolas e até
mesmo Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e Unidades de Pronto
Atendimento (UPAs).
Os números apontados de obras paralisadas são: a) Aeroportos: 16; b)
Ferrovias: 5; c) Hidrovias: 5; d) Mobilidade urbana: 8; e) Portos: 6; f) Rodovias:
30; g) Saneamento básico: 447; h) Creches, pré-escolas e quadras esportivas
nas escolas: 1362; i) UBSs e UPAs: 156; j) Outros: 762.
A partir das análises, o referido estudo traz as seguintes conclusões: a)
o investimento em infraestrutura no Brasil é insuficiente e não pode ser
desperdiçado em obras paralisadas; b) as paralisações são causadas por
falhas na contratação e na execução dos projetos pelo setor público; c) é
necessário avaliar caso a caso quais obras vale a pena levar adiante e quais
obras devem ser reavaliadas, para minimizar as perdas; d) para reduzir as
paralisações, é necessário melhorar o planejamento, a capacitação das
equipes responsáveis pelos projetos e os sistemas de controle. Por fim,
sintetiza com a constatação de que “O Brasil investe pouco em infraestrutura e
parte do que investe acaba preso em obras paralisadas, que consomem
recursos e não geram benefícios”.
Percebe-se que a interrupção de boa parte dessas obras não ocorre
apenas por falta de recursos financeiros decorrentes de contingenciamentos
emergenciais originados de crises financeiras circunstanciais enfrentadas pelos
entes federativos, mas principalmente por: falta de análise do custo-benefício e
do modelo de concessão antes da elaboração e publicação do edital de
licitação, gerando projetos fadados ao insucesso; falhas no projeto básico, que
somente são descobertas durante a execução das obras com uma série de
empecilhos que as tornarão mais complexas e custosas; erros nos
cronogramas estabelecidos; dificuldades burocráticas, sobretudo em órgãos de
regulação (por exemplo, urbano, fundiário e ambiental) ou órgãos de controle
(TCU, MPF, CGU etc.), que impedem a continuidade da obra; falta de
fiscalização na execução dos empreendimentos; interferência política; falta de
qualificação técnica ou abandono das empresas contratadas; corrupção etc.
Também se percebe que parte desses projetos, principalmente os
relativos ao saneamento básico para oferecer água e esgoto, referem-se às
chamadas “obras invisíveis”, em que a população não consegue perceber e
visualizar a olho nu o resultado, o que gera desinteresse de certos políticos que
desejam sempre mostrar os “monumentos” que deixaram. Além disso, muitos
destes políticos, nos períodos em que exerceram governos, por questões
ideológicas e com descaso ao erário, optaram por não concluir obras iniciadas
por seus antecessores.
Esses dados são estarrecedores e comprovam a falta de planejamento
na execução de projetos fundamentais para um país repleto de carências, não
apenas de infraestrutura para o desenvolvimento econômico, mas
principalmente para a materialização de direitos humanos constitucionalmente
assegurados diretamente relacionados com a dignidade da pessoa humana,
tais como o saneamento básico, creches, escolas, hospitais, dentre outros.
Tratar com displicência tais investimentos é fazer tabula rasa das
previsões orçamentárias constantes no Plano Plurianual (PPA). Recorde-se de
que é exatamente o Plano Plurianual - o qual se conecta à Lei de Diretrizes
Orçamentárias - que estabelece, de forma regionalizada, as diretrizes, os
objetivos e as metas da Administração Pública para as despesas de capital e
outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração
continuada. Compreende as prioridades dessa mesma Administração Pública,
incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente e
orientando a elaboração da lei orçamentária anual que se responsabiliza pela
execução do PPA.
Conclui-se que um planejamento orçamentário bem elaborado permite
uma execução eficiente e uma política fiscal de resultados concretos e visíveis
para a sociedade, materializando políticas públicas anteriormente
estabelecidas e oferecendo à sociedade os bens e serviços necessários à
dignidade dos cidadãos que a compõem.
Contas públicas desordenadas: há luz no fim do túnel?

Publicado em 09/08/2018

Que as contas públicas brasileiras vão de mal a pior todos nós já


sabemos. Mas o cenário não para de piorar, já que, ano após ano, o déficit
fiscal – despesas maiores que receitas – se acumula de maneira crescente.
Estima-se para o corrente ano de 2018 um déficit de cerca de R$ 160
bilhões e, no acumulado dos últimos anos, chega-se à monta de R$ 260
bilhões. Para o próximo ano de 2019, a estimativa é de um déficit de quase R$
140 bilhões. Já para 2020, o valor negativo calculado gira em torno de R$ 110
bilhões e, em 2021, ficará, segundo estudos do próprio Governo federal, em R$
70 bilhões. Tudo isso somado atingirá um “singelo” valor acumulado de
aproximadamente R$ 580 bilhões de saldo negativo.
E quando se gasta mais do que se arrecada, o caminho é “tampar o
buraco” com operações de crédito (empréstimos públicos). Neste cenário, para
custear a dívida bruta do governo geral (União, Estados, Municípios, DF e
empresas estatais), que atualmente chega a R$ 5,2 trilhões – ou seja, 77,2%
do PIB –, paga-se apenas de juros mais de 40 bilhões de reais por mês. Por
sua vez, a dívida pública federal sozinha está em cerca de R$ 3,75 trilhões. Em
termos comparativos com países de igual nível de renda, estudos indicam que
o nosso endividamento é considerado o dobro dos demais.
Imagine-se quanto este montante de dinheiro representaria em termos
de possibilidades de gastos com saúde, educação e segurança mensalmente
caso não fosse direcionado para financiar uma dívida pública. E esta situação
não nos parece circunstancial ou momentânea, já que cada vez mais ficamos
dependentes do crédito público para que os governos possam honrar os seus
compromissos.
Como já pudemos analisar este tema anteriormente, cada vez mais
percebemos que o Estado brasileiro se torna dependente da dívida pública,
uma vez que a arrecadação tributária (impostos, taxas e contribuições) não tem
sido suficiente para custear os dispêndios públicos. Nesta malsinada trilha, em
breve veremos que o Estado se tornará “um fim em si mesmo”, já que quase
todos os recursos financeiros serão drenados para custear a máquina pública,
deixando-se de atender à sua finalidade principal de existência: a sociedade e
as suas necessidades coletivas.
Não é à toa que parte considerável dos preceitos da Lei de
Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) dirige-se para a realização do bom e
velho equilíbrio fiscal. Com igual ideal, em busca de equilíbrio e austeridade,
em 2012 foi assinado o Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e
Governança na União Econômica e Monetária por Estados-Membros da União
Europeia, para garantir a sustentabilidade de suas dívidas públicas e a
realização de superávits fiscais para reduzi-las.
Nunca é demais lembrar que o princípio orçamentário do equilíbrio fiscal
recomenda que, para toda despesa, haja uma receita a financiá-la, a fim de
evitar o surgimento de déficits orçamentários crescentes ou descontrolados que
possam prejudicar as contas públicas presentes e futuras. Tal princípio
representa a verdadeira estabilidade financeira e é um dos pilares do
crescimento sustentado do Estado.
O equilíbrio das contas públicas tem sido considerado como a “regra de
ouro” da Lei de Responsabilidade Fiscal. A sua previsão legal encontra-se no §
1º do art. 1º da LRF, que estabelece a ação planejada e transparente para a
prevenção de riscos e a correção de desvios capazes de afetar o equilíbrio das
contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre
receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange à
renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e
outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por
antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em restos a pagar.
Com igual sentido, o art. 4º, inciso I, letra a da mesma Lei Complementar nº
101/2000 determina que a lei de diretrizes orçamentárias disponha sobre o
equilíbrio entre receitas e despesas.
Nesse sentido, a LRF prevê uma série de medidas para garantir o
equilíbrio fiscal, tais como a fixação de limites para o endividamento e para as
despesas de pessoal, condições rígidas para a renúncia de receita e para a
criação de despesas de caráter continuado, bem como providências que
devem ser adotadas caso as metas fiscais possam ser afetadas e o indesejado
desequilíbrio ocorra, como é o exemplo da regra da limitação de empenho
prevista no art. 9º da LRF.
Além de um porvir sombrio em termos de contas públicas – com todos
os seus efeitos deletérios na economia e sociedade –, os nossos pré-
candidatos à Presidência, em suas campanhas, têm apresentado uma série de
soluções que podem ser consideradas “irreais”, sobretudo aquelas promessas
de que vão miraculosamente reduzir os tributos, ampliar os serviços públicos,
aumentar o salário mínimo e aposentadorias, além de acabar com a corrupção
e o privilégio de certas categorias públicas, mas tudo isso sem dizer como.
Também entram em suas pautas as privatizações e a extinção de estatais, a
reforma da previdência e tributária, o aumento de crédito para aquecer a
economia, a tributação de heranças e dividendos, dentre outras.
Gostamos muito de mágica, mas apenas daquela de entretenimento, em
que o ilusionista tira da cartola um coelho e corta a sua bela assistente em mil
e um pedaços dentro de um baú. Mas, em se tratando dos rumos do país,
ainda prefiro ouvir a verdade nua e crua: que uma vez eleitos, irão reequilibrar
as contas públicas com muito suor e dificuldade, com seriedade, moralidade,
respeito às leis e à Constituição, com a redução de gastos públicos
desnecessários e mal dimensionados, com a priorização do interesse público e,
quiçá, até com o aumento da tributação, apesar da impopularidade que tal
medida sempre porta consigo.
E, ao fim, perceber que os nossos presidenciáveis reconhecem que o
cobertor é curto e que não existe almoço grátis, para que possamos ter a
esperança de que, no fim deste túnel, haja luz, e que esta não seja o farol de
um trem descarrilado vindo em nossa direção.
Gestão prudencial nos gastos com pessoal

Publicado em 20/09/2018

A situação fiscal dos inúmeros municípios brasileiros é, hoje, muito


preocupante.
E uma das primeiras medidas mais comuns que um gestor – seja público
ou privado – adota diante de uma situação de desequilíbrio financeiro é a
contenção de gastos, a partir de uma premissa simplória: a gestão responsável
impõe reduzir as despesas para que se possa ter uma receita suficiente para
custeá-las, sobretudo aquelas de natureza continuada.
Porém, não é o que os gestores do Município do Rio de Janeiro vêm
realizando, sobretudo em relação a uma significativa despesa para os cofres
públicos: a despesa de pessoal.
Segundo o relatório do Laboratório de Análise de Orçamentos e Políticas
Públicas (Lopp) do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, a folha de
pagamentos saltou quase 50% (cinquenta por cento) nos últimos anos, indo de
R$ 8,4 bilhões gastos com pessoal, em 2013, para R$ 12,5 bilhões em 2017.3
O custeio de pessoal na cidade do Rio corresponde hoje a 52,88% da
sua receita corrente líquida, percentual elevado suficiente para atingir em breve
- caso nada seja feito para melhor administrá-lo - o limite de 54% que a Lei de
Responsabilidade Fiscal estabelece. Essa situação também ocorre em outras
unidades federativas, indica o relatório citado, ao identificar que 21 cidades
fluminenses ultrapassaram o limite legal de despesas com pessoal no ano
passado, e outras 30 ficaram acima do limite prudencial de 95% do teto
(51,3%), conforme estabelecido pela LRF.
Dentre as despesas públicas em geral, as despesas de pessoal são
consideradas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) como um dos
aspectos mais relevantes dos gastos estatais, dedicando um capítulo
específico à matéria.
Para a LRF, a despesa total com pessoal é considerada pelo somatório
dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas,
relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e
de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como
vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da
aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas
extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais
e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência (art. 18, LRF).
Mesmo antes de a LRF tratar do tema, a Constituição Federal de 1988 já
impunha algumas condições para a realização das despesas com pessoal: a)
possuir prévia dotação orçamentária e não exceder os limites estabelecidos em
lei complementar (art. 169, CF/1988); b) ser vedada a vinculação ou
equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de
3
Cabe registrar que houve, por parte da Casa Civil da Prefeitura do Rio de Janeiro,
questionamento em relação ao valor apresentado no relatório LOPP, acima dos R$ 11 bilhões
calculados pela Controladoria Geral do Município.
remuneração de pessoal do serviço público (art. 37, XIII, CF/1988); c) os
acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados
nem acumulados para fins de concessão de acréscimos ulteriores (art. 37, XIII
e IV, CF/1988).
Para dar efetividade às previsões constitucionais, a LRF apresenta os
seguintes requisitos que deverão ser observados para a criação, majoração ou
prorrogação de despesas de pessoal: a) como despesa de natureza
continuada, deverá ser precedida de uma estimativa de impacto orçamentário e
de comprovação de que não afetará as metas de resultados fiscais,
demonstrando-se sua adequação à lei orçamentária e compatibilidade com o
plano plurianual e lei de diretrizes orçamentárias (arts. 16 e 17, §§ 1º e 2º,
LRF); b) será vedado ato de que resulte aumento da despesa com pessoal
expedido nos cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato do titular do
respectivo Poder ou órgão (parágrafo único do art. 21, LRF); c) deverá ser
verificado quadrimestralmente o atendimento aos limites previstos na lei (art.
22, LRF); d) observância às consequências no atingimento do chamado “limite
prudencial”, no percentual de 95% dos valores estabelecidos como teto de
despesa de pessoal (parágrafo único do art. 22, LRF).
Atendendo ao disposto no art. 169 da Constituição, que estabelece a
necessidade de fixação por lei complementar de limites máximos para as
despesas de pessoal ativo e inativo de todos os Poderes e entes federativos,
os arts. 19 e 20 da LRF preveem que:
a) a despesa total com pessoal (limites globais) – não se computando
aquelas excetuadas no § 1º do art. 19 –, em cada período de apuração e em
cada ente da Federação, não poderá exceder os percentuais da receita
corrente líquida, conforme os a seguir discriminados:
I – União: 50% (cinquenta por cento);
II – Estados: 60% (sessenta por cento);
III – Municípios: 60% (sessenta por cento);
b) a repartição dos limites globais anteriormente citados não poderá
exceder os seguintes percentuais de limites por Poder, órgão e ente federativo:
I – na esfera federal: a) 2,5% (dois inteiros e cinco décimos por cento)
para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas da União; b) 6% (seis por
cento) para o Judiciário; c) 40,9% (quarenta inteiros e nove décimos por cento)
para o Executivo; d) 0,6% (seis décimos por cento) para o Ministério Público da
União;
II – na esfera estadual: a) 3% (três por cento) para o Legislativo, incluído
o Tribunal de Contas do Estado; b) 6% (seis por cento) para o Judiciário; c)
49% (quarenta e nove por cento) para o Executivo; d) 2% (dois por cento) para
o Ministério Público dos Estados;
III – na esfera municipal: a) 6% (seis por cento) para o Legislativo,
incluído o Tribunal de Contas do Município, quando houver; b) 54% (cinquenta
e quatro por cento) para o Executivo.
A LRF também estabelece que, se esses limites específicos para os
Poderes, órgãos e entes federativos forem ultrapassados, o percentual
excedente terá de ser eliminado nos dois quadrimestres seguintes, sendo pelo
menos um terço no primeiro. Uma vez não alcançada a redução no prazo
estabelecido, e enquanto perdurar o excesso, o ente não poderá: I – receber
transferências voluntárias; II – obter garantia, direta ou indireta, de outro ente;
III – contratar operações de crédito, ressalvadas as destinadas ao
refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas
com pessoal.
Entretanto, mesmo antes de se chegar aos valores máximos para as
despesas de pessoal, a LRF instituiu um valor prévio, considerado como um
“limite prudencial”, no percentual de 95% dos montantes máximos previstos na
lei para, quando atingido, gerar efeito acautelatório e preventivo, vedando-se
ao Poder ou órgão que houver incorrido no excesso:
I – conceder vantagem, aumento, reajuste ou adequação de
remuneração a qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de
determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do
art. 37 da Constituição;
II – criar cargo, emprego ou função;
III – alterar estrutura de carreira que implique aumento de despesa;
IV – prover cargo público, admitir ou contratar pessoal a qualquer título,
ressalvada a reposição decorrente de aposentadoria ou falecimento de
servidores das áreas de educação, saúde e segurança;
V – contratar hora extra, salvo no caso do disposto no inciso II do § 6º do
art. 57 da Constituição e as situações previstas na Lei de Diretrizes
Orçamentárias (art. 22, LRF).
Assim, esse mecanismo denominado limite prudencial funciona como
um “sinal de perigo”, não apenas para alertar o poder público da aproximação
dos limites máximos quando se chegar a 95% deles, mas, principalmente, por
impor ao gestor restrições de gastos que evitam seu atingimento.
Diante de uma crise financeira da magnitude como a que estamos
vivendo, providências básicas como a diminuição de gastos e priorização do
necessário em detrimento do supérfluo é o caminho óbvio que qualquer um
com bom senso buscaria trilhar. E, no serviço público, como em regra não se
pode demitir ou reduzir a remuneração, o mínimo que se esperaria do gestor
seria – temporariamente – não contratar novos servidores e nem aumentar o
salário dos demais, buscando-se estimular e maximizar a utilização do pessoal
já existente.
Está na hora de os gestores públicos perceberem que a administração
com responsabilidade fiscal é fixada em uma lei e não um mero
aconselhamento; e de os governos entenderem que a Constituição estabelece
que a educação, a saúde, a segurança pública e os investimentos – e não a
própria máquina estatal – são prioridades em uma sociedade que pretende o
mínimo bem-estar dos seus integrantes.
30 anos da Constituição Financeira e Tributária

Publicado em 04/10/2018

Passadas três décadas da promulgação da Constituição conhecida por


todos como carta “cidadã”, esta já é a terceira Constituição mais longeva da
história de nosso país, atrás apenas da Constituição do Império e da primeira
Constituição Republicana. Sua maioridade já foi conquistada e agora caminha
para entrar com ambos os pés na vida adulta.
Esses 30 anos da Constituição Federal de 1988 devem oportunizar aos
brasileiros e aos operadores do Direito motivos não apenas para celebrar a
data, mas, principalmente, para reconhecer os efeitos positivos de ordem
política, jurídica, econômica e, sobretudo, social, que estas três décadas nos
abonaram, ao consolidar a transição de um regime autoritário para o
democrático, sobretudo com a inserção e garantia dos direitos humanos
fundamentais e dos direitos sociais, solidificando o Estado Democrático de
Direito.
E, na seara financeira e tributária, o seu texto original, nascido na
Assembleia Constituinte, buscou reconstituir o sistema tributário nacional de
acordo com as necessidades de um Estado que se redesenhava, com uma
revisão na redistribuição das competências tributárias entre os entes
federativos e a devida repartição de receitas financeiras, necessárias diante
daquela nova “equação”, a permitir a execução das respectivas atribuições,
solidificando a autonomia dos Estados e Municípios, minimizando os
desequilíbrios regionais e ampliando o rol dos direitos e das garantias dos
contribuintes. Paralelamente, estabeleceu maiores amarras ao poder estatal de
tributar, concedendo ao Direito Financeiro e Tributário a efetividade dos valores
de segurança jurídica, de liberdade e de igualdade, imprescindíveis para um
Estado Democrático Fiscal de Direito, que naquele momento renascia.
A nova ordem instituída com a promulgação da Constituição Federal de
1988 introduziu significativa evolução em praticamente todos os campos
jurídicos, inclusive no Direito Financeiro. Como ocorreu com todos os demais
ramos jurídicos, o Direito Financeiro também sofreu os efeitos benfazejos da
irradiação constitucional sobre a disciplina, sendo possível falar atualmente,
com tranquilidade, de uma verdadeira constitucionalização do Direito
Financeiro. Nessa nova forma de encará-lo, não pode mais ser vislumbrado
como uma especialidade envolta apenas em números e voltada meramente
para um tecnicismo contábil e formalista, em que reinava uma primazia do
aspecto técnico em detrimento do axiológico, por vezes visto como um domínio
reputado exótico e distante pelos juristas em geral.
Vários de seus institutos não somente passam a ser previstos
textualmente na Constituição, mas todos eles, onde quer que estejam
expressos, tomam forma a partir dos princípios e valores constitucionais
(conformação constitucional), deixando claro que o aspecto jurídico-
constitucional agora é protagonista, e não mero coadjuvante, das grandes
discussões financeiras do cenário nacional.
Nesse contexto, a Constituição, após estabelecer os objetivos do Estado
brasileiro no seu art. 3º, instituiu em seu texto o sistema de normas financeiras,
necessário e suficiente para realizá-los. Podemos agrupar essas normas
financeiras nos seguintes temas: a) competência normativa sobre a matéria
financeira (arts. 24, 48, 52, 62 e 68); b) hipóteses de intervenção por
descumprimento das obrigações financeiras (arts. 34 e 35); c) formas de
fiscalização da atividade financeira (arts. 21, 70, 71 e 74); d) sistema tributário
nacional (arts. 145 a 156 e 195); e) repartições de receitas tributárias (arts. 157
a 162); f) normas gerais sobre as finanças públicas e sistema monetário (arts.
163 e 164); g) disposições relativas ao orçamento (arts. 165 a 169).
Identificamos no seu atual texto um hibridismo em seu perfil e claramente
uma constante tensão entre os valores sociais e os liberais, que influenciam
sobremaneira a figura de um Estado atuante como o brasileiro. Ao conceder
maior efetividade aos valores sociais constitucionalmente previstos, criam-se
inúmeros deveres a serem implementados. Mas diante destas pretensões,
grande volume de recursos financeiros - originários essencialmente dos tributos
- fazem-se mais que necessários para se possibilitar atingir tais objetivos.
E, neste momento, deparamo-nos com a difícil tarefa de equalizar as
limitações financeiras do Estado brasileiro e as dificuldades de gestão pública,
com a necessidade de desenvolver a economia, extirpar a pobreza e as
desigualdades, fomentar a livre iniciativa, tudo de forma justa e solidária, sem
violar os direitos dos indivíduos e sem abrir mão dos valores sociais.
Assim, para atender a todas as demandas, os governos se deparam com
o velho dilema do “cobertor curto”: de um lado, a pressão e o apelo social para
o aumento dos gastos públicos; de outro, as limitações financeiras e a
necessidade de se encontrar fontes alternativas para custear as novas
despesas, além de se evidenciar as distorções advindas da má gestão do
Erário.
A expectativa de mudança de postura do gestor público infelizmente tem
se demonstrado ainda utópica e, em certos casos, convertida em pesadelo,
diante da realidade de inúmeras unidades da federação que sequer
conseguem pagar os salários e aposentadorias de seus servidores, honrar os
contratos de seus fornecedores, e nem garantir minimamente os serviços
públicos essenciais como saúde, educação e segurança pública.
Infelizmente, o que se vê hoje são dezenas de bilhões de reais sendo
renunciados por políticas de desoneração fiscal sem a devida compensação
financeira. As despesas com pessoal dos entes vêm perigosamente se
aproximando (ou mesmo ultrapassando) dos limites previstos em lei. O
desequilíbrio financeiro e o descumprimento de metas fiscais tornam-se rotina
em vilipêndio da regra fiscal. O assustador gigantismo da dívida pública vai
além do razoável, trazendo reflexos preocupantes na questão da equidade
intergeracional. E a falta de planejamento e de respeito às leis orçamentárias
as tornam peças de ficção shakespeariana. As nefastas consequências dessas
práticas não são apenas a inflação, o desemprego e o retrocesso no
desenvolvimento do país, mas, principalmente, a falta de perspectiva de um
futuro melhor.
O fato é que sempre houve maior preocupação com a arrecadação das
receitas públicas, especialmente a tributária, do que com a gestão e a
aplicação de tais recursos. Os gastos públicos acabavam sempre por ficar em
segundo plano de importância se comparados com a tributação, mas, hoje, o
foco está sendo redirecionado, ganhando destaque o Direito Financeiro como
ferramenta de mudança social, capaz de direcionar positivamente os atos dos
governantes e influenciar para melhor a vida em sociedade.
Apesar dos inúmeros avanços nas finanças públicas nesse período,
passamos agora por um momento de retrocesso. Ninguém esperava viver essa
época de celebração com expressões como “pedaladas fiscais”, “contabilidade
criativa” e “manobras financeiras” assumindo diariamente as capas de todos os
jornais, tudo isso aliado a um potencial desequilíbrio fiscal e a incontestável
incapacidade, momentânea, de cumprimento de metas fiscais.
Para ilustrar esse quadro, trazemos alguns números. A evolução da carga
fiscal saiu de 22,4% do PIB em 1988 e hoje está na casa dos 33% do PIB.
Além disso, nos últimos quatro anos, o Brasil vem acumulando déficits
primários: 20,5 bilhões em 2014, 126,4 bilhões em 2015, 167,4 bilhões em
2016 e 126 bilhões em 2017. Ademais, estima-se que o governo federal
concederá benefícios fiscais ao longo deste ano de mais de R$ 300 bilhões em
tributos, sem que haja mecanismo claro de controle do retorno efetivo para a
sociedade.
Neste ano de 2018, a dívida pública em relação ao PIB chegou a quase
80% (isto é, 30% a mais que a média de economias emergentes). Assim, sem
a diminuição de gastos ou aumento de arrecadação, a tendência é de
descontrole do endividamento público, que poderá ultrapassar os 100% do PIB
(o PIB em 2017 foi de R$ 6,6 trilhões).
Políticas populistas e eleitoreiras, despesas desprovidas de qualidade e
de legitimidade, desequilíbrio entre receitas e despesas públicas, geração de
déficits impagáveis, ciclo orçamentário irreal, desconexo e desprovido de
efetividade são práticas que não podem mais perdurar numa nação que
pretenda o bem-estar dos seus integrantes e a criação de uma sociedade mais
digna e justa.
Na seara fiscal, ressaltamos que o orçamento público ainda é pouco
conhecido pela população. Apesar disso, desempenha o papel de um dos mais
relevantes instrumentos de planejamento e controle financeiro, contemplando,
hodiernamente, a participação conjunta do Poder Executivo e do Legislativo,
tanto na sua elaboração e aprovação, como também no controle da sua
execução, configurando um instituto fundamental no Estado Democrático de
Direito contemporâneo. É mais do que um documento meramente técnico, uma
vez que revela as políticas públicas adotadas pelo Estado ao procurar atender
às necessidades e interesses da sociedade, conjugando-as com as pretensões
e possibilidades de realização dos cofres públicos.
Neste aspecto, o orçamento público pode passar a constituir uma
ferramenta de mudança social, sendo o cidadão convocado a participar
ativamente deste fundamental processo, no que hoje comumente é
denominado por cidadania fiscal.
O nível de conhecimento da real importância dos orçamentos públicos
ainda é muito incipiente no Brasil, mas é por intermédio deles que se torna
claro em que o governo está usando os recursos obtidos dos cidadãos. É por
isso que a conscientização sobre o papel do orçamento e a participação social
em sua elaboração se demonstram importantes neste processo, pois de nada
adiantaria um orçamento público – documento de previsão de receitas e
autorização de despesas – desprovido de legitimidade e de efetividade.
Mas há muito ainda em que evoluir, para se retomar o ciclo virtuoso de
mudanças institucionais, a fim de consolidar a sustentabilidade e estimular o
desenvolvimento econômico e social.
Assim sendo, nestes 30 anos encontramos um panorama perfeito para o
debate e a reflexão à luz dos valores que a justiça fiscal reclama. Um cenário
repleto de acertos e desacertos, com propósitos dignos de aplausos e outros
com desígnios eivados de máculas imperdoáveis, cujas consequências, em
alguns casos, chegam até mesmo a malferir os direitos e garantias
fundamentais.
O conturbado momento econômico e político exige suplantar as divisões
políticas e ideológicas para permitir uma profunda reflexão e mudança na
nossa cultura fiscal. Se a tributação é o preço da liberdade na sociedade
moderna e o orçamento é o reflexo da atividade estatal, o respeito às leis
orçamentárias com responsabilidade fiscal é instrumento republicano de
mudança social, de ordem e de progresso.
Rejeição do orçamento italiano e um alerta para o
Brasil

Publicado em 08/11/2018

No dia 23 de outubro passado, assistimos a uma situação inédita no


cenário fiscal da Zona do Euro: a rejeição pela Comissão Europeia da proposta
de orçamento italiano para o ano de 2019.
A reprovação ocorreu porque, no projeto orçamentário italiano, consta
uma previsão de déficit de 2,4% do Produto Interno Bruto (PIB), além de incluir
37 bilhões de euros de despesas extras e a redução de impostos. Ou seja:
aumento de gastos e redução na arrecadação, medidas que elevarão ainda
mais a dívida pública italiana, que atualmente corresponde a 131% do PIB,
tendo a Itália a segunda maior dívida pública do bloco, atrás apenas da Grécia,
que recentemente passou por grave crise financeira.
Dentre as novas despesas previstas, o projeto de orçamento da Itália
estabelece a denominada “renda de cidadania”, que se trata de um benefício
mensal para desempregados ou cidadãos que recebam até 780 euros por mês,
incluindo aposentados. Ainda está previsto o gasto de 6,7 bilhões de euros
para reverter uma reforma previdenciária, introduzindo a chamada “cota 100”,
que permitirá ao cidadão retirar-se do mercado de trabalho ao completar 100
anos na soma da idade com tempo de contribuição. Além disso, o governo
criará um fundo de 1,5 bilhão de euros para ressarcir poupadores prejudicados
pela quebra de bancos, reduzirá as alíquotas do imposto de renda sobre
pequenas empresas e perdoará dívidas fiscais de até mil euros contraídas
entre 2000 e 2010.
A crítica ao orçamento veio acompanhada de um pedido de revisão com
prazo de três semanas, cabendo eventual aplicação de sanções pecuniárias de
até 0,2% de seu PIB caso não atendidas as recomendações. Contudo, o vice-
primeiro-ministro italiano, Matteo Salvini, manifestou discordância quanto ao
entendimento da Comissão Europeia e afirmou que a Itália não pretende
realizar qualquer reavaliação.
O fato não causou surpresa, já que, em maio passado, a União Europeia
já havia solicitado ao governo italiano que reduzisse seu déficit estrutural para
no máximo 0,6% do seu PIB; todavia, não houve acolhimento do pedido.
Mas não foi apenas a Itália a sofrer questionamentos de natureza
orçamentária, uma vez que Portugal também teve pedido de esclarecimentos
(mas ainda não chegou ao ponto de rejeição) por parte da União Europeia, que
busca garantir a estabilidade financeira dos membros do bloco e evitar
contaminação e risco para outras economias.
Tal preocupação está fundamentada no Tratado sobre o Funcionamento
da União Europeia (TFUE), o qual requer que os Estados-Membros encarem
as suas políticas econômicas como uma questão de interesse comum, ao
estipular que as políticas orçamentárias sejam orientadas pela necessidade de
finanças públicas sólidas e que as políticas econômicas não ponham em risco
o bom funcionamento do bloco.
E é aqui que chegamos ao ponto em que podemos circunstanciar esta
situação europeia com a nossa realidade, uma vez que, tal como na federação
brasileira, que tem cada ente subnacional como parte de um todo, igualmente a
União Europeia, dotada de diversas características típicas do federalismo, deve
procurar mecanismos para agregar a diversidade de seus membros e
coordenar suas políticas fiscais a fim de salvaguardar a solidez das finanças
públicas dos países soberanos que a integram, tudo em um contexto em que
se prestigie o crescimento sustentável, emprego e coesão social.
Este tipo de “controle fiscal externo” entre a União Europeia e as nações
que a compõem decorre da própria ideia de bloco, ao considerar que as
políticas econômicas e monetárias individuais de cada integrante são questões
de interesse coletivo e não podem ser conduzidas de maneira isolada, sob
pena de contagiar e prejudicar a todos os demais, sobretudo devido às
diferenças individuais e particulares nas dimensões econômicas e capacidades
financeiras dos seus componentes.
Grécia, Espanha, Portugal, Itália e Irlanda são exemplos de nações que
passaram recentemente por graves crises econômicas, com dificuldades
financeiras para garantir a sustentabilidade de suas dívidas públicas e a
realização de superávits fiscais, enfrentando elevados índices de desemprego
e sofrendo com baixa competitividade industrial e comercial, além de certa
instabilidade social.
Diante daquele cenário, diversas providências comunitárias foram
adotadas, como o Pacto de Estabilidade e Crescimento, o Tratado de
Estabilidade, Coordenação e Governação, o Semestre Europeu, o "Six-pack" e
o "Two-pack", dentre outras medidas financeiras que impuseram uma nova
realidade orçamental aos países da União Europeia nos últimos anos.
Assim, a rejeição do orçamento italiano pela União Europeia se fez no
bojo deste contexto de controle das finanças dos países que a integram, e foi
fundada no artigo 7º do Regulamento nº 473/2013, que estabelece disposições
para melhorar o acompanhamento das políticas orçamentárias na área do euro,
conforme o que prevê o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) ao
estabelecer regras de prevenção e correção dos déficits excessivos das
administrações públicas.
Embora legítima a preocupação da União Europeia com a necessidade de
se garantir estabilidade financeira e orçamentária de todos os seus membros,
surge a crítica a respeito de suposta violação à soberania desses países, ao
argumento de se retirar do respectivo Poder Legislativo local a autonomia na
condução de uma de suas mais importantes atividades: a orçamentária.
De fato, a questão não é simples, mas entendemos, em breve resumo,
que não haveria uma real mitigação ao conceito de soberania individual, já que,
ao decidir integrar-se ao bloco, cada nação o fez através de sua livre escolha,
sendo esta chancelada por deliberação conjunta dos seus poderes executivo e
legislativo, estes que são compostos por representantes eleitos do povo.
Ademais, há que se mencionar que não haveria uma transferência
propriamente dita a qualquer instituição externa da tarefa própria de definir o
orçamento e suas rubricas, mas apenas a obrigação de respeitar, na sua
elaboração e execução, a aplicação de regras quanto a metas de déficit e de
dívida pública, sem que haja qualquer restrição ao cumprimento das
obrigações internas e ao atendimento das necessidades da sociedade.
E tais medidas impostas não são de natureza subjetiva ou circunstancial,
mas, sim, baseadas em preceitos de boa governança fiscal, que visam
detectar, prevenir e corrigir tendências econômicas indesejáveis como déficits
orçamentários ou níveis de dívida pública excessivos, que podem prejudicar o
crescimento e colocar em risco as economias.
De tudo que se viu, e apesar das razões de cada parte ou de críticas que
eventualmente se coloquem, o importante é compreender que o impasse
surgido entre a União Europeia e a Itália pode servir como alerta e exemplo
para o Brasil, já que aquilo que se busca implementar é, tão somente, a
observância de preceitos de responsabilidade fiscal aplicados ao orçamento
público.
Afinal, qualquer nação contemporânea que tenha como finalidade e
objetivo únicos o atendimento das necessidades fundamentais do cidadão e
preze pela utilização racional e responsável dos recursos financeiros
arrecadados aos cofres públicos – de maneira a conferir-lhes uma destinação
justa e criteriosamente definida a partir das prioridades sociais e constitucionais
– deverá organizar as suas finanças e estabelecer políticas públicas a fim de
que possam ser sustentáveis no longo prazo.
O controle dos subsídios fiscais na realização das
políticas públicas

Publicado em 20/12/2018

Recentemente foi editado o Decreto nº 9.588 de 27/11/2018 que instituiu


o Comitê de Monitoramento e Avaliação dos Subsídios da União.
Este instrumento de controle vem em boa hora, já que no final do ano de
2018, antes da chegada do recesso, inúmeros benefícios fiscais não
considerados no orçamento vêm sido aprovados no Congresso e concedidos
para diversos setores da economia. Tais medidas têm sido referidas pelo
noticiário no contexto das chamadas “pautas-bomba”, uma vez que devem
impactar negativamente as contas públicas no ano vindouro.
Para citar apenas um caso, vimos a aprovação e recente sanção
presidencial do Rota 2030, incentivo fiscal dado para a indústria
automobilística. Trata-se de um programa que visa incentivar o
desenvolvimento tecnológico, competitividade, inovação e segurança veicular,
e a proteção ao meio ambiente, o qual gerará um gasto tributário (renúncia
fiscal) de cerca de R$ 6,6 bilhões em 2019, a partir da redução de alíquota do
IPI de até 2%, da isenção do imposto de importação e da dedução de certas
despesas na apuração do IRPJ e CSLL.
Todavia, este é apenas um exemplo dentre vários outros, cuja soma
está estimada em mais de 370 bilhões de reais no ano que vem, valor que
ultrapassa 5% do PIB, dentro de um orçamento de receitas/despesas
estabelecido de R$ 3,381 trilhões.
Como o efeito financeiro de uma renúncia fiscal é o mesmo de um gasto
público, para evitar o desequilíbrio fiscal, não podemos nos olvidar que a Lei de
Responsabilidade Fiscal fixa regras e condições para a concessão de qualquer
desoneração. Neste sentido, a referida norma prevê:
Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou
benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia
de receita deverá estar acompanhada de estimativa do
impacto orçamentário-financeiro no exercício em que
deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao
disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos
uma das seguintes condições:
I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi
considerada na estimativa de receita da lei orçamentária,
e de que não afetará as metas de resultados fiscais
previstas no anexo próprio da lei de diretrizes
orçamentárias;
II – estar acompanhada de medidas de compensação, no
período mencionado no caput, por meio do aumento de
receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação
da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou
contribuição.
Apenas a título de esclarecimento terminológico, dentro do conceito
geral de “incentivo ou benefício fiscal” temos diversas modalidades, tais como
anistias, remissões, subsídios, créditos fiscais, isenções, redução de alíquotas
ou base de cálculo. Faço este alerta pois é comum no linguajar do dia a dia
encontrarmos referência de qualquer uma destas espécies dentro do mesmo
gênero que equivocadamente leva a alcunha de “subsídios”.
Novamente estamos diante do velho debate acerca de quem é capaz de
utilizar melhor recursos financeiros em benefício do interesse público: se é o
Estado, arrecadando tributos e aplicando-os em bens e serviços para a
população; ou se é o particular (empresas), ao receber benefícios fiscais e
utilizar a redução destes custos para favorecer a economia e a sociedade.
Afinal, pelo lado das finanças do Estado há uma redução na
arrecadação, ao passo que pelo lado das empresas, haveria um aumento da
disponibilidade econômica e financeira. E o seu efeito esperado pelo incentivo
concedido é a adoção de uma determinada prática ou conduta do beneficiário
que gere um ganho para a comunidade diretamente relacionada ou a
sociedade em geral.
Ou seja, deve-se ponderar se o custo dos incentivos fiscais concedidos
gera em contrapartida os resultados esperados (custo/benefício).
É neste momento que entra no palco o referido Decreto nº 9.588/18, ao
instituir o Comitê de Monitoramento e Avaliação dos Subsídios da União
(CMAS), de natureza consultiva, com a finalidade de monitorar e avaliar, de
forma contínua, as políticas públicas financiadas por subsídios da União,
principalmente quanto aos seus impactos fiscais e econômicos, de forma a
orientar a ação estatal para a geração de valor à sociedade, em consonância
com as boas práticas de governança pública.
De forma pormenorizada, cabe ao Comitê: I – monitorar e avaliar
políticas públicas financiadas por subsídios da União, com a colaboração dos
órgãos gestores dessas políticas; II – estabelecer cronograma de avaliação de
políticas públicas financiadas por subsídios da União, observados os critérios
de materialidade e relevância; III – solicitar informações aos órgãos gestores
sobre políticas públicas financiadas por subsídios da União, em especial
aquelas necessárias ao monitoramento e à avaliação; IV – consolidar as
informações de que trata o inciso III; V – implementar medidas com vistas a
conferir publicidade às suas atividades, de modo a assegurar a transparência
ativa de seus atos e a adoção de boas práticas de governança; VI – orientar os
órgãos gestores quanto à utilização de metodologias de avaliação das políticas
públicas financiadas por subsídios da União, inclusive quanto à coleta e ao
tratamento dos dados necessários; VII – recomendar aos órgãos gestores
critérios técnicos para a elaboração de estudos de viabilidade de propostas de
políticas públicas financiadas por subsídios da União; VIII – cientificar o Comitê
Interministerial de Governança – CIG, instituído pelo Decreto nº 9.203, de 22
de novembro de 2017, sobre a lista de políticas públicas financiadas por
subsídios da União que serão objeto de avaliação em determinado período e
sobre o resultado dessa avaliação; IX – encaminhar aos Ministros de Estado
dos órgãos representados no CMAS, quando couber, proposições de
aprimoramento ou de alteração no arcabouço normativo de políticas públicas
financiadas por subsídios da União, monitoradas ou avaliadas, com a indicação
de alternativas para a ação estatal, dos seus riscos e dos possíveis impactos; e
X – expedir os atos necessários ao exercício de suas competências.
Não obstante a relevância da atividade do novo Comitê, é de se registrar
que já cabia ao Tribunal de Contas da União, nos termos do artigo 70 da
Constituição Federal, a fiscalização das subvenções e renúncias de receitas.
Enfim, diante do atual cenário político, econômico e fiscal pelo qual
passamos, pode-se dizer que nunca será demais a criação de novos
instrumentos e mecanismos de controle das contas públicas, sobretudo no
caso de concessão de subsídios do Estado ao particular, já que não é incomum
deixar de identificar se a política pública financiada pela desoneração fiscal
atingiu o seu objetivo final, o que eventualmente pode acarretar um gasto ao
erário sem a respectiva contrapartida, sendo a sociedade e o cidadão os
grandes perdedores deste jogo.
O gasto com as execuções fiscais inúteis

Publicado em 17/01/2019

Como se sabe, a ação de execução fiscal é a medida judicial utilizada


pela Fazenda Pública – União, Estados, Distrito Federal e Municípios – para
cobrar a dívida ativa tributária ou não tributária dos seus devedores, regida pela
Lei nº 6.830/1980, diploma conhecido por Lei de Execuções Fiscais (LEF).
Apesar de a sua função ser a de cobrar dívidas vencidas e não pagas e
arrecadar forçadamente o que o contribuinte deveria ter pagado
espontaneamente, gerando acréscimo financeiro aos cofres públicos, percebe-
se que as Fazendas Públicas, há décadas, vêm ignorando os princípios da
eficiência, da moralidade e da razoabilidade, ao ajuizarem milhares de
execuções fiscais de valores irrisórios, cujo custo de movimentação do Poder
Judiciário acaba sendo maior que o valor cobrado, ou mesmo de cobrança de
valores razoáveis, porém sem que o devedor seja localizado ou sem que este
possua bens suficientes para a quitação do débito.
Estas hipóteses representam o que chamo de execução fiscal inútil: uma
cobrança que gerará mais gastos do que o que se pretende arrecadar.
E esse gasto, como se verá mais adiante, não é desprezível, pois
representa dezenas de bilhões de reais com processos de cobranças judiciais
que, após anos e anos tramitando, findam sem qualquer resultado.
Além disso, é avassalador o número de execuções fiscais que abarrotam
o Judiciário com processos desnecessários, congestionando os tribunais de
todo o país e acarretando uma morosidade excessiva, hoje a grande
deficiência do aparelho judicial brasileiro. Afinal, nada mais perverso do que a
injustiça de ter o seu direito violado e ver o seu processo judicial – legítimo
instrumento de solução de conflitos – estagnado em um oceano de litígios, sem
esperança de um célere desfecho, tendo como nefasta consequência o
desrespeito aos princípios constitucionais da duração razoável do processo, da
efetividade da prestação jurisdicional, da igualdade e da eficiência.
A constatação de que grande parte das ações de execuções fiscais que
tramitam hoje se caracteriza pela baixa probabilidade de pagamento do crédito
fiscal pelo devedor-executado está revelada no Relatório Justiça em Números
2018 (ano-base 2017), publicado anualmente sob a coordenação do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ). O relatório indica que os processos de execução
fiscal são os principais responsáveis pela alta taxa de congestionamento do
Poder Judiciário, ao afirmar que:
“os processos de execução fiscal representam,
aproximadamente, 39% do total de casos pendentes e 74%
das execuções pendentes no Poder Judiciário, com taxa de
congestionamento de 91,7%. Ou seja, de cada cem processos
de execução fiscal que tramitaram no ano de 2017, apenas 8
foram baixados.”
E, sobre a baixa recuperabilidade do crédito tributário nestas execuções
fiscais, o referido relatório assinala:
“Historicamente as execuções fiscais têm sido apontadas como
o principal fator de morosidade do Poder Judiciário. O
executivo fiscal chega a juízo depois que as tentativas de
recuperação do crédito tributário se frustraram na via
administrativa, provocando sua inscrição na dívida ativa. Dessa
forma, o processo judicial acaba por repetir etapas e
providências de localização do devedor ou patrimônio capaz de
satisfazer o crédito tributário já adotadas, sem sucesso, pela
administração fazendária ou pelo conselho de fiscalização
profissional. Acabam chegando ao Judiciário títulos de dívidas
antigas e, por consequência, com menor probabilidade de
recuperação.”

Este elevado percentual de execuções fiscais, que chega a quase 40%


do total das ações que tramitam, nos mostra claramente que o maior cliente do
Poder Judiciário, individualmente considerado, é o próprio Estado brasileiro.
Tal deficiência na cobrança judicial de créditos fiscais já havia sido
percebida e demonstrada através de Nota Técnica publicada em 2011 pelo
IPEA. Tal Nota analisou o custo e tempo do processo de execução fiscal
promovido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), identificando
que a duração média de tramitação é de 9 anos, 9 meses e 16 dias, e que
apenas cerca de 1/3 das execuções fiscais federais são bem sucedidas,
deixando a maior parte – 2/3 delas – sem qualquer tipo de pagamento. Neste
sentido, o documento afirma:
“Em que pesem todos os obstáculos, o grau de sucesso das
ações de execução fiscal promovidas pela PGFN é razoável,
uma vez que em 25,8% dos casos a baixa ocorre em virtude do
pagamento integral da dívida, índice que sobe para 34,3% nos
casos em que houve citação pessoal”.
Se adotarmos os percentuais identificados nos referidos relatórios do
CNJ e IPEA – 40% dos processos são execuções fiscais, sendo 2/3 delas
infrutíferas – como valores estatísticos representativos da realidade processual
em todo o Brasil (Justiça federal, estadual e municipal) e considerando-se a
importância de R$ 90.846.325.160 (constante no “Justiça em Números 2018”)
como despesa com o Poder Judiciário em 2017, chega-se ao montante de 24,2
bilhões de reais gastos com a movimentação de ações de execuções fiscais
desnecessárias naquele ano. Ou seja, nos últimos 10 anos se gastaram em
todo o Poder Judiciário nacional mais de 240 bilhões de reais com processos
ineficazes a seu propósito.
Portanto, trata-se de um processo caro, demorado e com taxa de
recuperação relativamente baixa. Fazendo uma analogia com recentes
palavras do Ministro do STF Luís Roberto Barroso, "o Judiciário custa caro e é
ineficiente", e as execuções fiscais são um dos – se não o maior – exemplo
disto.
Não negamos que temos aqui um dilema real: se, por um lado, a
cobrança da dívida ativa é indispensável, por outro, em boa parte dos casos
não se consegue sequer encontrar o devedor – por exemplo, na dissolução
irregular da empresa – ou bens que possam ser penhorados.
Não se propõe que o Estado abra mão de seus créditos tributários pura
e simplesmente, mas sim que encontre alternativas e formas mais racionais,
eficientes e econômicas de cobrar, as quais nem sempre precisarão passar
pela via da execução fiscal. O sistema atualmente adotado é custoso demais,
sendo ineficiente não apenas em termos financeiros, mas também por
prejudicar o Poder Judiciário, dado o ingente volume de demandas que o
movimentam e o congestionam, sem um retorno adequado.
Neste ponto, devemos registrar que os esforços em nível federal para
tornar mais eficiente e eficaz a cobrança da dívida ativa da União é louvável. A
Lei nº 10.522/2002 vem sendo paulatinamente atualizada para autorizar a
PGFN a não constituir créditos tributários e não ajuizar execuções fiscais de
baixo valor, ou deixar de recorrer de ações judiciais cuja temática já possui
precedentes judiciais vinculantes fixados pelos Tribunais Superiores, impondo
também à Secretaria da Receita Federal (SRF) a vedação à constituição de
créditos tributários nesta última hipótese (arts. 18-29). No mesmo sentido prevê
a Portaria PGFN nº 502/2016, que dispensa a apresentação de contestação,
oferecimento de contrarrazões e interposição de recursos nos processos que
versarem sobre teses já consolidadas pela sistemática da repercussão geral
(STF) e do recurso repetitivo (STJ).
Medidas similares a estas deveriam ser estendidas e implementadas
pelos Estados e Municípios, lembrando que contamos com mais de 5.500
municípios, em que os recursos materiais e humanos disponíveis para a
cobrança da dívida ativa costumam ser diminutos fora das capitais. Ademais,
como aponta o relatório do CNJ, as cobranças perante o Judiciário estadual
representam 85% das execuções fiscais em tramitação. Segundo consignou:
“O maior impacto das execuções fiscais está na Justiça
Estadual, que concentra 85% dos processos. A Justiça Federal
responde por 14%; a Justiça do Trabalho, 0,31%, e a Justiça
Eleitoral apenas 0,01%”.
Outro projeto da PGFN que devemos elogiar, bem como sugerir a sua
extensão aos Estados e Municípios, é o ajuizamento seletivo de execuções
fiscais, que somente serão propostas se diligências prévias administrativas
indicarem a existência de bens capazes de responder pela dívida, a partir de
sistema interno de rating do devedor, dividida a classificação em A, B, C e D,
sendo os débitos da classificação "A" como de alta probabilidade de
recuperação, e os do padrão "D" como irrecuperáveis, tal como estabelece o
novo art. 20-C da Lei 10.522/2002 (inserido pela Lei 13.606/2018).
O critério da recuperabilidade do crédito tributário deve ser invocado
para que se desista de milhares e milhares de execuções fiscais que, sem
localização do devedor ou de seus bens, certamente serão, ao final,
infrutíferas.
Portanto, o Estado brasileiro terá que repensar sua forma de cobrar seus
créditos. Isso não apenas contribuirá com a redução do abarrotamento do
Judiciário, auxiliando-o a cumprir o mandamento constitucional de prestar
jurisdição de maneira célere, mas também propiciará maior racionalidade,
economicidade e eficiência na arrecadação.
Colapso nas contas estaduais

Publicado em 14/02/2019

A crise fiscal nas contas dos estados vem se agravando a cada dia e se
espraiando por diversas unidades da federação. Não à toa, sete estados já
decretaram calamidade financeira (Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas
Gerais, Roraima, Rio Grande do Norte, Mato Grosso e Goiás).
As dificuldades se revelam em diversas áreas, seja na saúde, educação,
segurança e investimentos. Vemos escolas sem professores ou merendas,
hospitais sem estrutura para exames e internação, sem medicamentos e
médicos, policiamento incipiente, dentre outras mazelas.
Um dos principais problemas dos estados é o elevado volume das
despesas de pessoal (gasto com funcionalismo público), que têm ultrapassado
o limite legal previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Mas esta
dificuldade não é uma exclusividade estadual, uma vez que, juntos, União,
Estados, DF e Municípios gastam cerca de 13,5% do PIB nacional apenas com
pagamento com previdência e folha de servidores, bem acima da média
mundial.
Não bastasse o volume elevado, muitos estados vêm adotando critérios
distintos para a contabilização das despesas com pessoal, prática que vem
sendo muitas vezes considerada uma “maquiagem fiscal” para esconder a
gravidade da situação. Uma das técnicas adotadas para se enquadrarem
dentro do limite da LRF – que é de 60% da receita corrente líquida (art. 19, II)
com despesas de pessoal – é a de excluir da contabilização de gastos com
pessoal aqueles com servidores inativos e terceirizados, prática que os
tribunais de contas deveriam coibir e que deveria ser objeto de uniformização
de seus entendimentos. A propósito, segundo apuração da Secretaria do
Tesouro Nacional, quase 2/3 dos estados já ultrapassam o referido limite de
gastos.
Outra prática irregular que os estados têm indevidamente adotado é a
utilização de receitas variáveis – sobretudo as de royalties de petróleo e
minério – para o pagamento de despesas fixas, como a folha de pagamentos
de pessoal.
Ora, se durante a alta das commodities a receita extra for direcionada
para realizar concursos públicos e aumentar os quadros, ou para conceder
aumento no valor das remunerações, em período de quedas nos preços a
arrecadação diminui, porém o gasto fixo continuará elevado. E isto se viu
materializar claramente no Estado do Rio de Janeiro, quando da queda no
preço do barril do petróleo. Por isso, receitas extraordinárias e variáveis só
podem ser utilizadas para gastos eventuais, como os de investimentos.
Além disso, a situação se agrava diante da vedação constitucional da
concessão de empréstimos, inclusive por antecipação de receita, pelos
Governos Federal e Estaduais e suas instituições financeiras, para pagamento
de despesas com pessoal ativo, inativo e pensionista, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios (art. 167, X), o que limita as possibilidades de auxílio
financeiro a esses entes federados.
Assim como fez o Rio de Janeiro, os demais estados em crise buscam
ingressar no Regime de Recuperação Fiscal a fim de reduzir o pagamento das
suas dívidas com a União por alguns anos até que consigam restabelecer a
sua saúde financeira. Todavia, para a sua adesão, duros requisitos são
exigidos, o que vem impedindo a adoção desta medida de maneira mais
generalizada.
Outra tentativa é a negociação de uma flexibilização das exigências e
contrapartidas previstas na Lei Complementar 156/2016, que estabeleceu o
Plano de Auxílio aos Estados e ao Distrito Federal e medidas de estímulo ao
reequilíbrio fiscal. Através desta LC, a União ficou autorizada a adotar, nos
contratos de refinanciamento de dívidas celebrados com os Estados e o Distrito
Federal, um prazo adicional de até duzentos e quarenta meses para o
pagamento das dívidas refinanciadas, desde que contivessem, em determinado
prazo, o crescimento das suas despesas primárias, ficando limitadas à variação
inflacionária, de maneira semelhante ao que foi estabelecido no modelo de teto
de gastos federal.
Ocorre que, dos 19 estados que ingressaram no referido Programas de
Reestruturação e de Ajuste Fiscal, mais da metade encontram-se em grave crise
financeira e em vias de serem excluídos do benefício, perdendo o prazo
alongado de 20 anos para o pagamento das dívidas e os respectivos
descontos.
Há, ainda, um movimento de pedido de socorro feito por diversos
governadores ao Supremo Tribunal Federal, a fim de que a Corte aprecie em
breve a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2238, para revogar a
suspensão deferida em medida cautelar e declarar constitucionais os
parágrafos 1º e 2º do artigo 23 da LRF. Tais dispositivos permitem o corte de
gastos de pessoal, ao estabelecer que, se a despesa total com pessoal
ultrapassar os limites legais, dentre outras providências, como a redução em
pelo menos vinte por cento das despesas com cargos em comissão e funções
de confiança e a exoneração dos servidores não estáveis (parágrafo 3º, art.
169, CF/88), o percentual excedente terá de ser eliminado nos dois
quadrimestres seguintes, sendo pelo menos um terço no primeiro, seja: a) pela
extinção de cargos e funções ou pela redução dos valores a eles atribuídos; b)
ou pela redução temporária da jornada de trabalho com adequação dos
vencimentos à nova carga horária.
Percebe-se que os nossos governantes parecem não querer implementar
os necessários ajustes nas contas públicas sobretudo por se tratarem de
medidas não populares. Além desta falta de responsabilidade fiscal – que se
revela pelo recorrente desrespeito às regras da própria LRF –, vê-se que
alguns tribunais de contas vêm fechando os olhos para inúmeras
irregularidades, além de uma postura paternalista do Poder Judiciário, que vem
proferindo decisões beneficiando estados fiscalmente irresponsáveis,
dispensando-os do cumprimento de certos compromissos financeiros.
Espera-se que os novos Governadores tenham coragem de pagar o preço
político e assumam a responsabilidade de corrigir os erros de seus sucedidos,
ministrando remédios mesmo que amargos, para que a doença fiscal não se
torne fatal.
Desafios da inteligência artificial nas finanças públicas

Publicado em 21/03/2019

O badalado autor israelense Yuval Noah Harari, na sua recente obra “21
Lições para o Século 21”, com propriedade afirmou que:
“No século XXI, o desafio apresentado ao ser humano
pela tecnologia da informação e pela biotecnologia é
indubitavelmente muito maior do que o desafio que
representaram, em época anterior, os motores a vapor, as
ferrovias e a eletricidade.” (p. 40)
“Com a evolução da Inteligência Artificial, talvez
cheguemos a um ponto em que as finanças não farão sentido
nenhum para os humanos. Dá para imaginar um governo que
aguarda humildemente um algoritmo aprovar o seu orçamento
ou sua reforma fiscal?” (p. 25)
De fato, não vivemos mais como antes. Ferramentas de inteligência
artificial nos cercam a cada dia. Em breve, a revolução da tecnologia da
informação, da biotecnologia e da inteligência artificial alterarão os paradigmas
que conhecemos.
Basta lembrar que o Netflix, a AppleTV e o GloboPlay vêm devastando o
mercado de locadoras de vídeo; que o Spotify, TuneIn e AppleMusic estão
prejudicando sobremaneira as rádios FM; que o Google acabou com as
Páginas Amarelas e as boas e velhas enciclopédias; que o Airbnb está
concorrendo fortemente com os hotéis; que o Whatsapp está prejudicando
substancialmente as operadoras de telefonia fixa e móvel; que os Smartphones
vêm eliminando as câmeras fotográficas e respectivas revelações em papel;
que o Uber e a Cabify estão revolucionando o sistema de transportes urbanos
e rivalizando com os táxis; que sites como OLX e Mercado Livre eliminaram os
tradicionais classificados de jornal e o antigo “Jornal Balcão”; que o
armazenamento de dados em nuvem praticamente acabou com a necessidade
de pendrives; que os aplicativos bancários estão extinguindo suas agências
físicas; que as criptomoedas colocam em xeque o sistema bancário tradicional;
e que assistentes virtuais como SIRI (Apple), Google Assistent (Google) e
Alexa (Amazon) têm nos tornado dependentes de suas facilidades.
Nas finanças públicas, as ferramentas tecnológicas com algoritmos
inteligentes podem em muito colaborar com eficiência e racionalidade na
arrecadação, na gestão e no controle das contas públicas.
Uma de suas aplicabilidades está precisamente no manejo automatizado
das ações de execução fiscal, medida de recuperação do crédito tributário que
a cada dia percebemos se tornar mais custosa e ineficiente.
Em artigo recente, identificamos que há um excessivo número de
execuções fiscais tramitando atualmente - cerca de 40% de todos os processos
judiciais, segundo relatório do CNJ - e que abarrotam o Poder Judiciário com
cobranças movidas pelo próprio Estado, as quais se caracterizam pela baixa
probabilidade de pagamento do crédito tributário pelo executado. Além de
durarem em média quase 10 anos, possuem um índice de sucesso de apenas
1/3 das ações movidas, sendo 2/3 delas infrutíferas.
Além de não cumprirem a sua função na arrecadação, geram um gasto
financeiro adicional pela movimentação da máquina judicial e administrativa
com processos inúteis.
Por isso, inevitável dizer que não há outro caminho que não contemple a
Inteligência Artificial como sendo, no futuro próximo, protagonista nas relações
entre Fisco e Contribuinte.
A presença de “robôs”, ou seja, ferramentas dotadas de inteligência
artificial, já começa a despontar na área jurídica. Contudo, quando falamos em
algoritmos inteligentes, não estamos nos referindo ao modelo computacional
tradicional de inputs-outputs (conhecido por “algoritmos programados”), mas,
sim, àqueles sistemas que são capazes de simular o raciocínio humano, o
aprendizado e a nossa tomada de decisões.
Hoje, mais do que coletar dados, aprender com eles, apresentar
resultados e tomar decisões, esses algoritmos “não programados” podem criar
novos algoritmos complementares a partir do algoritmo raiz, sem a
necessidade da intervenção humana.
A tecnologia da informação de agora, que une a biotecnologia e a
inteligência artificial, através de tecnologias como a Machine Learning e Natural
Language Processing, é capaz de ir além do mero processamento de dados,
conseguindo, de maneira autônoma, se autoajustar para resolver problemas
novos dentro de cenários imprevisíveis, a partir da seleção e compreensão de
dados que são coletados no Big Data.
Isso lhe permite aprender com suas próprias experiências, deduzir
autonomamente e até criticar, possibilitando estabelecer uma conversa, criar
uma sinfonia, jogar xadrez e até mesmo identificar personalidades, desejos e
sentimentos humanos.
Na seara jurídica, essas ferramentas de inteligência artificial são capazes
de ler documentos e contratos, apresentar relatórios descritivos ou críticos,
identificar tendências de resultado de julgamentos, elaborar peças processuais
e até sugerir decisões judiciais.
Já podemos identificar algumas possibilidades da inteligência artificial em
nossos dias: 1º) advogados-robôs que auxiliam o cidadão na defesa dos seus
direitos, assim como colaboram com advogados em suas tarefas jurídicas; 2º)
mediadores-robôs que colaboram na intermediação em conciliações; 3º) juízes-
robôs capazes de identificar e sugerir ao magistrado a melhor decisão para o
caso concreto, ou mesmo substituí-lo no julgamento do processo; 4º) auditores-
robôs com competência para auxiliar e realizar o controle e a fiscalização das
contas públicas e dos créditos tributários.
Uma das grandes possibilidades da inteligência artificial será no auxílio ao
sistema judicial para facilitar o processamento e a tomada de decisão pelo juiz-
humano com o auxílio do juiz-robô, acelerando o julgamento dos milhares de
processos que abarrotam os nossos tribunais.
A assistência ao magistrado realizada por um algoritmo inteligente se
dará não apenas para ler as peças processuais e elaborar relatórios, mas
também para identificar a legislação e a jurisprudência aplicáveis ao caso
concreto, oferecendo, também, um diagnóstico de tendências de resultados em
julgamentos de casos similares.
Inequivocamente, a computação cognitiva poderá colaborar na condução
de milhares de cobranças de créditos tributários que o nosso sistema judicial
possui. Será capaz não apenas de intermediar uma solução amigável antes do
ajuizamento da ação de execução fiscal, como também de localizar o devedor
e seus bens, inclusive por suas manifestações em redes sociais ou vínculos
com concessionárias de serviços públicos em qualquer parte do país.
A partir dessas tarefas preparatórias, a ferramenta de inteligência artificial
poderá sugerir à Fazenda Pública a medida de cobrança mais adequada diante
das circunstâncias fáticas identificadas: seja uma mera notificação de
cobrança, o protesto da CDA ou mesmo o ajuizamento da ação.
É razoável imaginar que a própria ação de execução poderá ser
elaborada e proposta através de um sistema robotizado e movimentado por um
fluxo automatizado por algoritmos, sendo interligado com os Correios, Banco
Central, Detran, Registro de Imóveis, Receita Federal e cadastro de créditos
como Serasa, o que permitirá ao próprio robô realizar as medidas constritivas
para a recuperação do crédito tributário.
Poderá, ainda, ajudar na solução de dois típicos “gargalos” nas
execuções fiscais: a) controlar os pedidos de parcelamentos de contribuintes
que interrompem o curso da ação ao suspender a exigibilidade do crédito
tributário, avaliando as condições para a sua adesão, bem como acompanhar o
pagamento das parcelas; b) avaliação da prescrição da ação, tanto no
momento do ajuizamento do executivo fiscal, como a prescrição intercorrente
durante o seu curso, podendo-se extinguir milhares de cobranças que restam
esquecidas nas prateleiras.
Ou seja, podemos em breve vir a ter uma execução fiscal cobrada por
procuradores-robôs e julgada por juízes-robôs.
Para ilustrar este cenário, foi noticiada uma experiência recente,
implementada no ano passado pela 12ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no que se refere ao uso de inteligência
artificial para acionar o sistema de bloqueio de bens de devedores de tributos
municipais. Enquanto pela forma tradicional um servidor de vara judicial leva
em média 30 minutos para acionar os sistemas BACENJUD, RENAJUD e
INFOJUD, a ferramenta de inteligência artificial da 12ª Vara realizou - de uma
só vez - ordens de bloqueios em mais de 6.600 execuções fiscais, obtendo a
penhora integral em 1.512 processos e parcial em 1.157.
Por sua vez, o Tribunal de Justiça de Pernambuco desenvolveu um
sistema de inteligência artificial, batizado de ELIS, voltado aos processos
executivos fiscais em Recife. Em um projeto-piloto realizado em novembro
passado, o sistema ELIS, em apenas 3 dias, avaliou 5.247 processos,
classificando de forma precisa a competência das ações, as divergências
cadastrais, erros no cadastro e prescrições. De todas as ações ajuizadas,
identificou que 4.447 poderiam continuar tramitando, 640 estavam prescritas,
160 continham erro no cadastro da dívida ativa, 16 eram de competência
estadual e 14 apresentavam dados divergentes. Em 15 dias, o sistema é capaz
de realizar a triagem de 80 mil processos, enquanto a mesma quantidade de
processos leva em média 18 meses para ser feita por servidores do tribunal.
Outra iniciativa no Poder Judiciário vem do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, com o seu robô chamado RADAR, ferramenta que tem a capacidade
de identificar recursos com idênticos pedidos no âmbito do TJ-MG e que já
foram objeto de decisões com eficácia vinculante por tribunais superiores, ou
mesmo já pacificadas no âmbito do TJ-MG. A partir da identificação, é
elaborada pelo próprio sistema uma minuta de voto padrão para aquele tema,
aplicando a jurisprudência adequada em todos os recursos identificados em um
julgamento conjunto.
O Supremo Tribunal Federal também já dispõe de um robô de inteligência
artificial que se chama VICTOR, em homenagem ao Ministro Victor Nunes Leal,
responsável no passado pela sistematização das Súmulas do STF, o que
facilitou a aplicação de teses fixadas nos julgamentos. Este robô analisa os
recursos extraordinários que chegam ao Supremo com o objetivo de identificar
se tratam de temas que já foram decididos pela Corte no âmbito da
repercussão geral, para fins de aplicação da solução ao caso concreto, com a
eventual devolução do processo ao Tribunal de origem ou a rejeição do recurso
extraordinário. A ideia é de que, nos próximos anos, o sistema Victor seja
implantado nos Tribunais locais, de modo a evitar que recursos subam ao STF
desnecessariamente, sendo aplicada localmente a decisão dada em
repercussão geral.
A propósito, é importante noticiar que, no final do ano passado, o CNJ
decidiu criar um laboratório de inteligência artificial para desenvolver uma
política nacional de implantação de ferramentas inteligentes, assim como para
disciplinar o acesso aos dados depositados nos bancos de dados dos tribunais
brasileiros.
A advocacia pública e privada também já pode contar com alguns
sistemas de inteligência artificial, tais como: i) o LOOPLEX, para gestão de
processos de contencioso de massa em escritórios e automação de
documentos jurídicos como petições e contratos; ii) o JUSTTO, para a solução
amigável de litígios, realizando arbitragem e negociação; iii) a Dra. LUIZA,
sistema de inteligência artificial desenvolvido para utilização por procuradorias
que precisam gerenciar processos jurídicos de massa, o qual já está sendo
utilizado pela Procuradoria Geral do Distrito Federal; iv) e o SAPIENS,
pertencente à Advocacia Geral da União, para auxiliar o procurador na
produção de peças, inclusive sugerindo teses de defesa para cada caso
concreto a partir de precedentes encontrados.
Os Estados Unidos já contam com várias ferramentas de inteligência
artificial, sendo as mais conhecidas: i) o COIN – Contract Intelligence: que
assessora instituições financeiras na análise de crédito para concessão de
empréstimos; ii) o ROSS Intelligence da IBM, que foi considerado o primeiro
advogado de inteligência artificial, para auxiliar o usuário ao oferecer-lhe
soluções jurídicas, a partir da análise das leis, precedentes e documentos,
assim como para realizar a previsão de resultado de litígios e a identificação de
padrões decisórios; iii) o COMPAS – Correctional Offender Management
Profilling for Alternative Sanctions, utilizado nos EUA para avaliar o risco de
reincidência dos acusados, cujos resultados são utilizados para a fixação da
sentença criminais.
Merece também registro a experiência realizada pela Universidade de
Chicago ao criar, em 2014, um algoritmo que foi capaz de prognosticar os
resultados de julgamentos da Suprema Corte americana, com uma taxa de
sucesso que beirou os 70%, ao analisar 7.700 julgados proferidos entre os
anos de 1816 a 2015.
Saindo do Judiciário para a administração e fiscalização da arrecadação e
gasto de recursos públicos, vários exemplos de uso de algoritmos cognitivos
podem ser dados.
A Secretaria da Receita Federal iniciou recentemente o uso de
inteligência artificial nas delegacias especializadas de julgamentos, para
realizar a leitura dos autos administrativos, a identificação da defesa do
contribuinte e, ao final, redigir um relatório acompanhado de uma proposta de
minuta de decisão. Possui também um sistema cognitivo inteligente chamado
de SISAM - Sistema de Seleção Aduaneira por Aprendizagem de Máquina -,
aplicado na fiscalização na entrada e saída de bens comerciais em portos e
aeroportos. Já para fins de fiscalização de pessoa física viajante, noticia-se que
a Receita possui um sistema de inteligência artificial capaz de: i) identificar a
relação de passageiros que aterrissam por voo; ii) comparar o peso da
bagagem de cada um na ida com o peso de suas malas na volta; iii) realizar o
cruzamento de dados com os gastos de seu cartão de crédito e aquisição de
papel moeda nas suas operações de câmbio. Tudo isso auxiliado por um
sistema de reconhecimento facial instalado no setor de desembarque em
alguns aeroportos brasileiros.
O TCU possui o sistema ALICE – acrônimo de Análise de Licitações e
Editais. Trata-se de uma ferramenta automatizada que analisa editais de
licitações e atas de pregão eletrônico, com objetivo preventivo de evitar
possíveis irregularidades. Diariamente acessa o Comprasnet, Portal de
Compras do Governo Federal. A partir daí, colige dados dos diversos editais de
licitação e atas de pregão publicados e testa parâmetros para verificar
eventuais irregularidades. Identificando algum caso suspeito, envia e-mail para
a secretaria responsável pela fiscalização com o alerta respectivo.
Juntamente com Alice, o TCU possui outros dois sistemas: SOFIA
(Sistema de Orientação sobre Fatos e Indícios para o Auditor) e MONICA
(Monitoramento Integrado de Controle de Aquisições).
A expectativa é a de que, nos próximos anos, esses sistemas sejam
cedidos a Estados e Municípios, para auxílio em suas próprias fiscalizações.
Cabe também o registro de que o Tribunal de Contas do Estado do Rio de
Janeiro já possui um sistema de inteligência artificial denominado IRIS,
acrônimo de Indicador de Riscos, com a finalidade de identificação de indícios
de irregularidades, impropriedades ou simplesmente um risco maior de que o
referido contrato venha a apresentar problemas em sua execução.
Como se percebe, a Inteligência Artificial no Direito já é uma realidade
que tende a se potencializar a cada dia.
Mas a eficiência e a capacidade de realizar as tarefas que a inteligência
artificial nos oferece precisa ser dotada de critérios sólidos e transparentes de
justiça na tomada das decisões, sobretudo diante dos chamados hard cases,
em que surgem conflitos de normas, e em que a filosofia jurídica é uma
ferramenta importante para quem toma a decisão.
Além disso, não se pode esquecer a importância da neutralidade, da
transparência e da auditabilidade dos códigos-fonte do algoritmo utilizado, uma
vez que são requisitos para garantir e controlar a legitimidade e bom
funcionamento dessas ferramentas.
É um imperativo que a inteligência artificial seja regulada para evitar que
seja utilizada em desrespeito aos princípios da impessoalidade e moralidade,
para que não possua em suas operações escolhas subjetivas, vieses,
ideologias ou preconceitos de qualquer natureza.
Aqui estamos diante do que vem sendo denominado de “moralidade
algorítmica”, que deverá parametrizar os desenvolvedores da inteligência
artificial. Do contrário, a opacidade nestas operações poderá ser equiparada à
violação ao due process of law.
No âmbito fiscal, é importante lembrar - e para a inteligência artificial o
mesmo se aplica - que a eticidade dos atos da Administração Tributária e dos
Órgãos de Controle e Fiscalização é objeto constante de apreciação, sobretudo
no que se refere à aplicação da boa-fé objetiva e do princípio da confiança
legítima.
Se o desafio que enfrentamos hoje é o da convivência com tantos
sistemas de inteligência artificial em nosso dia a dia, certamente o desafio de
amanhã será, para o direito tributário e financeiro, buscar a certeza de que a
inteligência artificial saiba respeitar, republicanamente, os direitos fundamentais
dos contribuintes.
Desmistificando a limitação de empenho

Publicado em 04/04/2019

Em 15 de fevereiro deste ano, o Governo Federal publicou no Diário


Oficial da União o Decreto nº 9.711, que dispôs sobre a programação
orçamentária e financeira e estabeleceu o cronograma mensal de desembolso
do Poder Executivo federal para o exercício de 2019, dentre outras
providências.
Já na semana passada, esse decreto foi alterado pelo Decreto nº 9.741,
de 29 de março de 2019, para realizar uma série de “limitações de empenho”,
medida também conhecida como “contingenciamento” nas despesas
orçamentárias. Através deste decreto, foi realizado um bloqueio nos gastos no
montante de R$ 34,955 bilhões, sendo R$ 5,372 bilhões a título de
“contingenciamento temporário” para futuros ajustes (fora do conceito de
limitação de empenho). O objetivo do bloqueio de gastos é o de não
ultrapassar os R$ 139 bilhões de déficit fiscal previsto no orçamento para o ano
de 2019.
Dentre as áreas atingidas, citamos a da Educação, que sofreu um
contingenciamento de R$ 5,839 bilhões; a Defesa, que teve R$ 5,107 bilhões
bloqueados; na Infraestrutura, foram cortados R$ 4,302 bilhões; e o Ministério
de Minas e Energia teve uma limitação de 3,768 bilhões. Também foram
bloqueados R$ 2,9 bilhões das denominadas emendas parlamentares
impositivas individuais e de bancadas.
Este texto pretende explorar de maneira didática este importante instituto
de responsabilidade fiscal denominado de limitação de empenho, fazendo a
sua distinção para o popularmente conhecido contingenciamento de gastos.
Como a lei orçamentária estabelece dotações específicas, em cada área,
em um valor total para ser gasto ao longo de todo o ano, em seguida à sua
edição, o Poder Executivo precisa publicar um decreto que estabeleça a
execução mensal do orçamento público. Isto vem previsto no artigo 8º da Lei
de Responsabilidade Fiscal, o qual determina que, em até trinta dias após a
publicação dos orçamentos, o Poder Executivo estabelecerá a programação
financeira e o cronograma de execução mensal de desembolso, conforme o
que for previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Esta é a finalidade do primeiro decreto que citamos no início do texto:
estabelecer o quantum mensal a ser gasto em cada despesa posta no
orçamento público.
Ocorre que a despesa pública é fixada no orçamento a partir de uma
previsão de receita que deverá financiá-la.
Ora, a previsão de receitas nada mais é do que uma estimativa de
arrecadação resultante de certa metodologia de projeção adotada, processada
através de fórmulas matemáticas e estatísticas que envolvem inúmeras
variáveis, que vão desde a mera atualização monetária das receitas anteriores,
até a avaliação do comportamento da economia nacional e estrangeira em
cada segmento e as eventuais mudanças na legislação. Levam-se, ainda, em
consideração os dados econômicos, como o Produto Interno Bruto Real do
Brasil – PIB real; o crescimento real das importações ou das exportações; a
variação real na produção mineral do país; a variação real da produção
industrial; a variação real da produção agrícola; o crescimento vegetativo da
folha de pagamento do funcionalismo público; o crescimento da massa salarial;
o aumento na arrecadação como função do aumento do número de fiscais no
país ou mesmo do incremento tecnológico na forma de arrecadação; etc.
Portanto, como a previsão de receita é uma mera estimativa, ainda que a
partir de critérios e metodologias racionais, esta pode se realizar em montante
inferior ou superior ao inicialmente estimado. Se houver excedente, haverá
superávit fiscal, mas se a arrecadação frustrar as expectativas e se der em
valor menor do que o estimado, isso poderá gerar um déficit indesejado.
Com a intenção de buscar o equilíbrio fiscal, para acompanhar a evolução
financeira entre arrecadação e gastos ao longo do exercício financeiro, a
Constituição Federal prevê no §3º do seu artigo 165 que o Poder Executivo
publicará, até trinta dias após o encerramento de cada bimestre, Relatório
Resumido da Execução Orçamentária (RREO).
O RREO, disciplinado no artigo 52 da LRF, conterá: I - balanço
orçamentário, que especificará, por categoria econômica, as: a) receitas por
fonte, informando as realizadas e a realizar, bem como a previsão atualizada;
b) despesas por grupo de natureza, discriminando a dotação para o exercício,
a despesa liquidada e o saldo; II - demonstrativos da execução das: a) receitas,
por categoria econômica e fonte, especificando a previsão inicial, a previsão
atualizada para o exercício, a receita realizada no bimestre, a realizada no
exercício e a previsão a realizar; b) despesas, por categoria econômica e grupo
de natureza da despesa, discriminando dotação inicial, dotação para o
exercício, despesas empenhada e liquidada, no bimestre e no exercício; c)
despesas, por função e subfunção.
Portanto, ao final de cada bimestre, já é possível saber se a arrecadação
estimada correspondeu ao valor previsto ou se esta foi em montante
insuficiente, o que importará uma contenção de gasto.
Ocorrendo tal situação, o artigo 9º da LRF determina que, se verificado ao
final de um bimestre que a realização da receita poderá não comportar o
cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no
Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato
próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação
de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei
de diretrizes orçamentárias. E, no caso de restabelecimento da receita prevista,
ainda que parcial, a recomposição das dotações cujos empenhos foram
limitados dar-se-á de forma proporcional às reduções efetivadas (§ 1º).
Entretanto, não serão objeto de qualquer limitação as despesas que constituam
obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao
pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes
orçamentárias (§ 2º).
Portanto, a limitação de empenho nada mais é do que uma espécie de
“fechamento de torneira” nos gastos públicos determinado por lei, quando se
verificar que a arrecadação ocorreu em montante inferior do que o previsto.
Este mecanismo é derivado do budget sequestration do modelo fiscal norte-
americano, que impõe uma contenção nos gastos públicos, em despesas
consideradas discricionárias, quando a receita correspondente não se realizar
como originalmente previsto na proposta orçamentária.
Assim, enquanto o Decreto nº 9.711/19 estabelecia a programação
mensal de gastos para o ano, o Decreto nº 9.741/19 realizou cortes nos gastos
a título de limitação de empenho, por determinação expressa da LRF.
Diferentemente desta situação, temos os contingenciamentos comuns,
que também são cortes nos gastos, mas não por imposição legal, e sim por
decisões discricionárias do Poder Executivo, por vezes motivadas por fins
políticos ou na busca de austeridade fiscal.
A realização desses contingenciamentos discricionários sofre críticas,
tanto por fazer sobrepor a vontade do Poder Executivo em detrimento da
previsão de gastos contida na lei orçamentária votada e aprovada pelo Poder
Legislativo, como por transformar as leis orçamentárias em meras “peças de
ficção”, com toda a carga que isso implica ao não se executar uma lei aprovada
pelos representantes do povo reunidos em Parlamento. Afinal, a partir do
contido nas leis orçamentárias, os governos sinalizam para a sociedade a
realização de uma série de investimentos e políticas públicas, os quais, ao não
se efetivarem, acabam por frustrar as expectativas do cidadão quando os
contingenciamentos não obrigatórios são implementados, muitas vezes até de
maneira imotivada.
De toda forma, a limitação de empenho prevista no artigo 9º da Lei de
Responsabilidade Fiscal - diferentemente do contingenciamento discricionário -
constitui uma obrigação legal do gestor público - em nome do equilíbrio e da
responsabilidade fiscal -, e não uma mera faculdade a partir do bom senso.
Esse instituto é fundamental para a boa administração dos recursos
públicos e, quando é realizado, mais do que zelar pela saúde das contas
públicas, sinaliza que há respeito pelos institutos e imperativos da LRF.
As promessas de campanha eleitoral presentes na Lei
do Plano Plurianual

Publicado em 09/05/2019

Ao longo do segundo semestre do ano passado, assistimos no horário


eleitoral por todo o país, em rádio e TV, às campanhas dos candidatos aos
governos dos Estados e Federal.
As suas promessas eleitorais eram de todas as naturezas. Mas,
essencialmente, representavam, como sempre, variações sobre o mesmo
tema, indo de propostas a cortes nos tributos até ampliação do acesso e oferta
à educação e saúde, reforço na segurança pública e ampliação de
investimentos em obras de infraestrutura e saneamento, dentre outras.
Mas, a fim de saber se essas promessas serão levadas a cabo para se
tornarem realidade, antes de termos que aguardar o fim dos mandatos dos
governantes eleitos - e verificar o que foi ou não feito -, podemos buscá-las no
documento orçamentário que materializa tais propostas governamentais para o
seu mandato, qual seja, a Lei do Plano Plurianual (PPA), e verificar se as
mesmas lá estão contempladas.
O projeto de lei do PPA, tanto da União como dos 26 Estados e DF, está
em gestação neste início de governo, para que seja encaminhado pelo
respectivo chefe do Poder Executivo ao Poder Legislativo do ente federativo
até o dia 31 de agosto. Após o encaminhamento, segue-se a análise, votação e
aprovação até o final do primeiro ano do mandato, para poder viger a partir do
início do próximo exercício e pelos quatro anos seguintes, até que o próximo
governo eleito faça o mesmo.
Ou seja, a Lei do PPA vige por quatro anos, iniciando do primeiro dia do
segundo ano de mandato governamental e indo até o último dia do primeiro
ano do mandato seguinte. Desta maneira, cria-se um elo entre os planos
plurianuais na sequência dos governos, de modo a não interromper
abruptamente a condução dos planos estabelecidos, permitindo-se em cada
mandato avaliar o que foi feito pelo antecessor e, eventualmente, dar ou não
continuidade aos projetos.
Tais prazos revelam uma de suas características fundamentais: a
continuidade administrativa das metas e programas. Afinal, interromper certos
(bons e necessários) programas pode trazer prejuízos na oferta de bens ou de
serviços essenciais à população, sobretudo para as camadas mais
necessitadas.
Por isso, o atual momento é crítico para os novos governantes, uma vez
que é recomendável - apesar de haver divergências ideológicas ou de
propostas políticas, econômicas ou sociais - que haja muito cuidado na
avaliação e revisão de programas e políticas públicas na elaboração de um
novo PPA.
Podemos dizer que a Lei do Plano Plurianual - lei de natureza formal e
conteúdo material - é responsável pelo planejamento estratégico das ações
estatais no médio e longo prazo, influenciando e vinculando a elaboração da lei
de diretrizes orçamentárias (planejamento operacional) e da lei orçamentária
anual (execução).
O seu conteúdo estabelece metas e programas e orienta os gestores dos
gastos e na aplicação dos investimentos.
Como gênese do modelo da nossa atual Lei do Plano Plurianual,
identificamos na Carta de 1967 a sua origem, a partir de uma previsão próxima
àquela que temos hoje, ao introduzir no processo orçamentário o denominado
OPI – Orçamento Plurianual de Investimentos, de duração trienal, que a ele
vinculava as despesas de capital, nos termos de lei complementar (parágrafo
único, art. 63, CF/67), bem como as despesas previstas na lei orçamentária
anual que ultrapassassem o exercício fiscal.
A sua atual previsão constitucional encontra-se no § 1º do artigo 165 da
Constituição Federal de 1988, que expressamente cria a Lei do Plano
Plurianual, ao prever que “a lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de
forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública
federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as
relativas aos programas de duração continuada”.
Essa citada norma se refere, em primeiro lugar, às despesas de capital,
que incluem os investimentos, as inversões financeiras e as transferências de
capital. Logo depois, alude aos programas de duração continuada, entendidos
como aqueles cujo prazo de duração ultrapasse um exercício financeiro.
Como se vê, trata-se de uma lei cujo objeto é, essencialmente, a
programação global de médio e longo prazo para uma integração nacional,
voltada ao desenvolvimento nacional e regional.
A característica do plano plurianual, de ser uma programação de médio e
longo prazo, impõe a regra constitucional de que nenhum investimento cuja
execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia
inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão, sob pena de
crime de responsabilidade (§ 1º, art. 167, CF/88).
Em se tratando da União, a Constituição Federal estabelece a articulação
da sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando o
desenvolvimento e a redução das desigualdades regionais (art. 43, CF/88). A
sua compatibilização com o plano plurianual vem prevista no artigo 165, § 7º,
ao determinar que “os orçamentos previstos no § 5º, I e II, deste artigo,
compatibilizados com o plano plurianual, terão entre suas funções a de reduzir
desigualdades inter-regionais, segundo critério populacional”. Outrossim, os
planos e programas nacionais, regionais e setoriais serão elaborados em
consonância com o plano plurianual (§ 4º, art. 165, CF/88).
Por sua vez, as emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos
projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso sejam
compatíveis com o plano plurianual (e com a lei de diretrizes orçamentárias),
nos termos do § 3º, do art. 166. Da mesma forma, as emendas ao projeto de lei
de diretrizes orçamentárias não poderão ser aprovadas quando incompatíveis
com o plano plurianual (§ 4º, 166, CF/88).
A Lei nº 4.320/1964 não faz qualquer menção à lei do plano plurianual,
uma vez que é anterior à Constituição de 1988 que instituiu a lei do PPA.
Todavia, essa nossa “lei geral dos orçamentos” já estabelecia uma
programação trienal para receitas e despesas de capital.
Por sua vez, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) traz um importante
dispositivo sobre o controle da despesa pública, qual seja, o artigo 16, o qual
prevê que qualquer aumento da despesa deverá, dentre outras condições, ser
compatível com o plano plurianual.
Ainda sobre o PPA na LRF, cabe registrar que o seu projeto previa no
artigo 3º (vetado) mudanças nos prazos de elaboração e votação do projeto de
lei do plano plurianual, assim como possuía um Anexo de Política Fiscal, em
que seriam estabelecidos os objetivos e metas plurianuais de política fiscal a
serem alcançados durante o período de vigência do plano, demonstrando a
compatibilidade com as premissas e objetivos das políticas econômica nacional
e de desenvolvimento social.
Todavia, através da Mensagem 627, de 4 de maio de 2000, a Presidência
da República manifestou o seu veto parcial ao dispositivo, tanto em relação à
mudança de prazos de elaboração e votação do projeto de lei do plano
plurianual, que eram reduzidos expressamente no caput e no § 2º, como em
relação à previsão no § 1º da instituição do Anexo de Política Fiscal. Entendeu-
se que a redução de prazos prejudicaria a sua elaboração e votação, e que a
supressão do Anexo não ocasionaria prejuízos, considerando-se que a lei de
diretrizes orçamentárias já prevê a apresentação de Anexo de Metas Fiscais,
contendo, de forma mais precisa, metas para cinco variáveis - receitas,
despesas, resultados nominal e primário e dívida pública -, para três anos,
especificadas em valores correntes e constantes.
Apenas para exemplificar o conteúdo típico de uma Lei de Plano
Plurianual em nível federal, enquanto aguardamos o projeto do próximo PPA,
citamos o vigente PPA do período de 2016-2019 (Lei nº 13.249/2016), que
resultou em 54 programas temáticos, que apontavam os caminhos a serem
percorridos pela ação do governo federal até 2019, por meio de seus 303
objetivos, com 1.132 metas e 3.094 iniciativas, de forma articulada com 28
diretrizes estratégicas e 4 eixos estratégicos. O valor global do PPA, para o
conjunto dos 4 anos entre 2016 e 2019, atingiu o montante de R$ 6,89 trilhões,
incluindo recursos orçamentários e financiamentos extraorçamentários. Este
tinha por prioridades: metas inscritas no Plano Nacional de Educação;
Programa de Aceleração do Crescimento - PAC; Plano Brasil sem Miséria -
PBSM. E como diretrizes: I - O desenvolvimento sustentável orientado pela
inclusão social; II - A melhoria contínua da qualidade dos serviços públicos; III -
A garantia dos direitos humanos com redução das desigualdades sociais,
regionais, étnico-raciais, geracionais e de gênero; IV - O estímulo e a
valorização da educação, ciência, tecnologia e inovação e competitividade; V -
A participação social como direito do cidadão; VI - A valorização e o respeito à
diversidade cultural; VII - O aperfeiçoamento da gestão pública com foco no
cidadão, na eficiência do gasto público, na transparência e no enfrentamento à
corrupção; e VIII - A garantia do equilíbrio das contas públicas.
Assim, em cada novo governo, o PPA espelhará os programas, políticas
públicas e metas estabelecidos pelo novo gestor, indicando os caminhos a
serem percorridos para o seu atingimento, tudo com base nas suas ideologias,
pretensões e objetivos que pretende realizar durante a sua gestão, conforme
os compromissos manifestados e firmados na eleição.
Mas não podemos nos olvidar de que o PPA não é suficiente para
produzir efeitos sozinho, pois, ao ser uma lei de programação de governo,
dependerá, essencialmente, das leis orçamentárias anuais, as quais deverão
concretizar as políticas e programas nele previstas.
É exatamente aqui que encontramos o ponto crucial para o cidadão
brasileiro: devemos estar atentos tanto ao projeto de lei do Plano Plurianual,
que será em breve encaminhado aos nossos representantes no Legislativo,
para exigir a inserção das promessas eleitorais feitas, bem como a sua
execução na Lei Orçamentária Anual, ambas que serão apreciadas ao longo do
segundo semestre desse ano.
Mais um plano de equilíbrio fiscal

Publicado em 13/06/2019

O Regime de Recuperação Fiscal instituído pela Lei Complementar


159/2017 para permitir o ajuste das contas dos Estados que vêm passando por
crise financeira não produziu os efeitos esperados. Apenas três Estados se
candidataram ao programa: Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Entre esses, apenas o Rio de Janeiro se enquadrou nas suas regras, sem,
contudo, ter conseguido ainda superar as dificuldades financeiras.
Hoje, percebe-se que a situação fiscal dos entes subnacionais é bem
mais grave e atinge várias outras unidades federativas, sobretudo no que se
refere ao desequilíbrio fiscal decorrente do excessivo gasto com despesas de
pessoal.
Enquanto a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) estabelece, no
seu artigo 19, inciso II, o limite de 60% da receita corrente líquida (RCL) para
as despesas de pessoal dos Estados, alguns já se aproximam dos 80% da
RCL. É o caso de Minas Gerais, que encerrou o ano de 2018 com o percentual
de 79,18%. O Mato Grosso do Sul em 76,77% da RCL, o Rio Grande do Norte
em 72,07% da RCL e o Rio de Janeiro em 70,80%. No total, hoje, são 14
Estados que ultrapassam o limite legal.
Um novo e complementar plano emergencial de socorro do Governo
Federal para Estados e Municípios já foi encaminhado ao Congresso Nacional
na forma de projeto de lei complementar.
Trata-se do “Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal” (PEF), que busca a
recuperação da capacidade de pagamento (CAPAG) no atual mandato dos
governadores e, no caso dos Municípios, no período de quatro anos dos
prefeitos que iniciarão seus mandatos em 2021. O plano traz, ainda, mudanças
nas regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) e na LC 156/2016,
a qual autorizou a renegociação da dívida dos Estados com a União.
Pelo PEF, busca-se permitir que Estados sem capacidade de pagamento
(CAPAG, sem nota A ou B) tenham acesso a empréstimos com garantias da
União, desde que façam um ajuste fiscal para recuperar a sua capacidade de
pagamentos (nota A ou B) até 2022.
O plano tem como ponto central o indicador de performance de
capacidade de pagamento conhecido como “poupança corrente” (receita
corrente menos despesa corrente), tendo como fórmula obrigatória o aumento
real da arrecadação e o corte real de gastos. Se cumpridas todas as metas e
compromissos pactuados no PEF, o ente estará qualificado para empréstimos
com garantia da União segundo as regras ordinárias vigentes. A liquidez será
um indicador complementar a ser avaliado.
Portanto, a exigência do PEF aos Estados e Municípios será a melhoria
dos dois indicadores que atestam a capacidade de pagamento do ente:
poupança corrente e liquidez. Para aqueles com problemas no indicador de
poupança corrente, esta deverá melhorar gradualmente até atingir 5% da
arrecadação. Para os que se encontram com problemas de liquidez, a
disponibilidade de caixa deverá ser elevada até ultrapassar o volume das
obrigações de curto prazo.
A garantia para os empréstimos no âmbito do PEF será parcelada ao
longo de 3 ou 4 anos e, apenas com a melhora observada na poupança
corrente a cada ano, o ente estadual ou municipal fará jus às fatias adicionais
dos empréstimos com garantia da União.
Para aderir ao PEF, os Estados terão que cumprir três de um conjunto de
oito possibilidades propostas: 1 - Autorização para privatização de empresas
dos setores financeiro, de energia, de saneamento ou de gás, com vistas à
utilização dos recursos para quitação de passivos; 2 - Redução dos incentivos
ou benefícios de natureza tributária em 10% no primeiro exercício subsequente
ao da assinatura do Plano e suspensão das concessões de novos incentivos
ou benefícios tributários pelo período de duração do PEF; 3 - Revisão do
regime jurídico único dos servidores da administração pública direta, autárquica
e fundacional, para suprimir os benefícios ou as vantagens não previstos no
regime jurídico único dos servidores públicos da União; 4 - Adoção do teto dos
gastos limitados ao IPCA ou à variação anual da receita corrente líquida, o que
for menor; 5 - Eliminação das vinculações de receitas de impostos não
previstas na Constituição Federal, bem como das vinculações que excedem
aos limites previstos na Constituição Federal; 6 - Adoção do princípio de
unidade de tesouraria, observado o disposto no art. 43 da LC 101/2000, com
vistas a implementar mecanismos de gestão financeira centralizada junto ao
Tesouro do Poder Executivo; 7 - Adoção, conforme diretrizes estabelecidas
pela Agência Nacional de Petróleo (ANP), de medidas voltadas à prestação de
serviço de gás canalizado; e 8 - Contratação de serviços de saneamento
básico de acordo com o modelo de concessões de serviço público previsto na
Lei nº 8.987/1995 e, quando houver companhia de saneamento, a adoção do
seu processo de desestatização.
Embora não sejam exigidas medidas específicas em relação à folha de
pessoal, para que um ente federativo consiga passar de uma situação de
poupança negativa para positiva em quatro anos, será imperioso estabelecer
um forte controle no crescimento da despesa com pessoal (ativo e inativo), o
que hoje tem sido reconhecido como um dos principais gargalos fiscais,
juntamente com a questão previdenciária.
No bojo do PEF, há também algumas previsões de mudanças nas regras
estabelecidas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Uma delas é o aumento do prazo atualmente em vigor (artigo 23 da LRF)
para que a unidade federativa volte a se enquadrar no limite de 60% da RCL
com despesa de pessoal. Dos atuais dois quadrimestres para que o ente
retorne ao patamar de 60%, passará a contar com cinco anos para voltar a se
adequar a este percentual, sendo o excesso reduzido ao ritmo de 20% ao ano.
Outra mudança altera o texto do artigo 18 da LRF, deixando expresso que
cada Poder terá que computar na sua despesa com pessoal a despesa com os
inativos e os valores retidos para pagamentos de tributos e quaisquer
retenções. Isso porque muitos Estados e Municípios excluem essas despesas
do cálculo do limite de gasto de pessoal para que contabilmente fiquem dentro
do limite legal de 60%.
Propõe-se, ainda, a introdução de um novo inciso III ao artigo 21 da LRF,
para vedar aumentos salariais parcelados cujo impacto se dê fora do mandato
do respectivo governante. Tal medida evitará que o governante seguinte herde
e tenha que suportar os reajustes salariais concedidos por seu antecessor.
Há também proposta de modificação nos artigos 23 e 51 da LRF, para
evitar que o descumprimento de limites e obrigações da LRF por um Poder ou
órgão imponha penalidade aos demais Poderes ou órgãos do mesmo ente.
Outra medida reside no aumento dos prazos de validade da verificação
dos limites e das condições para a concessão de garantia pela União,
alterando-se o artigo 32 da LRF.
Por fim, a atual vedação prevista no artigo 42 da LRF para que o titular de
Poder ou órgão, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contraia
obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele,
ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja
suficiente disponibilidade de caixa para este efeito, passaria a ser estendida
para todos os anos do mandato. Esta medida visa ao controle do saldo de
restos a pagar, quando obrigações financeiras são criadas sem que haja
disponibilidade de caixa para o pagamento. Mas essa mudança só terá
validade a partir de 2026 para Estados e Distrito Federal, e a partir de 2024
para Municípios.
O PEF também traz mudanças nas regras de renegociação da dívida dos
Estados com a União (que foi autorizada por meio da LC 156/2016),
aumentando em mais dois anos o prazo para que consigam cumprir o limite de
expansão da despesa primária corrente limitada ao IPCA (originariamente para
2018 e 2019).
O ajuste na saúde das contas públicas não pode depender de programas
de socorro fiscal sucessivos, como proposto pelo anterior Regime de
Recuperação Fiscal ou pelo atual e complementar Plano de Promoção do
Equilíbrio Fiscal.
Corre-se o risco de vermos ocorrer na área das finanças públicas o
mesmo que observamos na área tributária através dos sucessivos programas
de parcelamento “REFIS”, já que a sinalização ao contribuinte devedor ou ao
ente federativo com desequilíbrio fiscal é a mesma: “não se preocupe, pois em
breve haverá um novo plano de socorro”.
Infelizmente, atitudes dos governantes como maquiar as contas públicas
ou simplesmente ignorar as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal ainda
têm sido corriqueiras.
A cultura de responsabilidade fiscal e de equilíbrio nas finanças públicas é
um imperativo que deve ser perseguido continuamente pelo gestor público,
como medida indispensável para que o Estado possa realizar a sua função:
oferecer bens e serviços essenciais a uma vida digna do cidadão.
Emenda Constitucional nº 100: a certeza da
impositividade orçamentária

Publicado em 04/07/2019

No final do mês de junho passado foi promulgada a Emenda


Constitucional nº 100, que alterou os artigos 165 e 166 da Constituição
Federal, para tornar obrigatória a execução da programação orçamentária
proveniente de emendas de bancada de parlamentares de Estados ou do
Distrito Federal.
Segundo a nova previsão constitucional, a execução obrigatória das
emendas de bancadas seguirá as mesmas regras das emendas individuais –
as quais já eram impositivas desde a alteração introduzida pela EC nº 86/2015
– e corresponderão a 1,0% (um por cento) da receita corrente líquida (RCL)
realizada no exercício anterior. Fica expressamente ressalvado, entretanto, que
tais despesas não serão de execução obrigatória nos casos dos impedimentos
de ordem técnica. Mas, para o ano de 2020, quando está previsto o início da
produção de efeitos da norma, este montante será excepcionalmente de 0,8%
(oito décimos percentuais) da RCL.
Não custa recordar que essas “emendas parlamentares” são rubricas
previstas no Orçamento que o Congresso Nacional direciona para a realização
de projetos escolhidos pelos deputados e senadores.
Apesar de o foco da EC nº 100/2019 ser a execução obrigatória das
emendas de bancadas estaduais e distrital (e assim está literalmente ementado
no texto publicado no DOU de 27/06/2019, página 1), a partir de uma leitura
mais atenta à redação desta emenda constitucional, percebemos que um de
seus dispositivos – o novo § 10 do artigo 165 – impõe à Administração, sem se
limitar às emendas parlamentares (como originariamente proposto na PEC
02/2015), o dever de executar obrigatoriamente as programações
orçamentárias, para garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade.
Não obstante sempre termos nos manifestado pela obrigatoriedade da
execução orçamentária na sua integralidade desde o texto original da
Constituição Federal de 1988 (exceto nos casos de restrições financeiras,
legais, técnicas ou materiais), a nós nos parece que esta mudança
constitucional afasta de vez qualquer dúvida sobre o caráter meramente
“autorizativo” do orçamento público, como muitos sustentavam, e reconhece,
de maneira expressa e literal, o modelo de execução obrigatória integral do
orçamento público, tradicionalmente conhecido por “orçamento impositivo”.
Quem sabe o velho estigma de que os orçamentos no Brasil são “peças de
ficção” pode começar a ser superado?
Aliás, isso foi exatamente o que manifestou o presidente do Congresso
Nacional, Davi Alcolumbre (DEM-AP), quando da sua promulgação, ao afirmar
que “o Orçamento é peça fundamental na condução da coisa pública e não
pode ser uma mera formalidade ou obra de ficção”. Segundo ele, deve refletir
as necessidades das unidades federadas e ser definido em debate aberto e
transparente no Parlamento.
É importante registrar que a primeira proposta que deu origem à EC nº
100/2019 adveio da PEC nº 02/2015 da Câmara dos Deputados, que visava
tornar obrigatória apenas a execução da programação orçamentária oriunda de
emendas coletivas ao projeto de lei orçamentária no limite de 1% da receita
corrente líquida (RCL) prevista no projeto encaminhado pelo Poder Executivo.
Essa medida, segundo a justificativa exposta por seus autores, teria o condão
de restabelecer o equilíbrio entre os Poderes na definição das políticas
públicas, pois o Executivo estaria deixando de priorizar as programações
orçamentárias derivadas de emendas, pelo simples fato de serem originadas
do Poder Legislativo.
Ocorre que, durante a sua tramitação, a proposta de emenda
constitucional sofreu significativas alterações na Comissão Especial
encarregada da análise do mérito da matéria, qual seja, a Comissão Especial
da Execução Obrigatória das Emendas ao Orçamento. Os dispositivos
incluídos no art. 165 ampliaram consideravelmente o escopo de aplicação da
norma original, ao expandir o dever de execução aos programas e metas
prioritárias do orçamento.
A este respeito, importante justificativa da referida Comissão Especial foi
assim apresentada:
“(...) O orçamento impositivo permite ao Legislativo e à
sociedade exigir dos órgãos de execução as providências
necessárias à viabilização das ações, o que inclui a adoção de
cronograma de análise dos projetos e programas, a identificação de
impedimentos e demais medidas saneadoras, inclusive
remanejamentos (...).
Obviamente, não pode ser exigida do gestor a execução de
programações com impedimento de ordem técnica ou legal,
ressalvando-se ainda eventual necessidade de limitação fiscal
necessária à manutenção da política fiscal. De outra parte, os
órgãos de execução passam a ter o ônus de executar o programa de
trabalho ou justificar a sua impossibilidade. Esse é o diferencial do
novo modelo, fato que valoriza a elaboração e o acompanhamento
do orçamento público. No modelo autorizativo o ordenador não se
considerava responsável pela execução, tampouco se via obrigado a
justificar a inação, cultura que favorece a inércia e a falta de
eficiência do setor público (...).
Não faz sentido, portanto, definir responsabilidade ou dever de
execução apenas para as programações incluídas por emendas,
uma vez que, teoricamente, o interesse público e do próprio
Legislativo está na execução de todas as políticas públicas
veiculadas pelo orçamento aprovado, e não apenas de subconjunto
incluído pelas emendas (...).”
Posteriormente, já no Senado Federal, como PEC 34/2019, o parecer da
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) já observava a característica da
impositividade orçamentária da proposta ao dispor o seguinte:
“Como se observa pela tramitação da proposta, o escopo inicial
foi modificado de tal forma a ampliar o propósito original. A inclusão
das alterações no art. 165 da Constituição Federal transcendem as
emendas parlamentares atingindo todo o orçamento público. Parece-
nos trazer à pauta mais uma vez a discussão sobre a impositividade
integral do orçamento público.”
Igual constatação foi reconhecida na Nota Técnica nº 42/2019 da
Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal, que
assim se manifestou na sua introdução:
“Como será visto adiante, um possível, mas não necessário,
desdobramento da proposta é a mudança do modelo orçamentário
brasileiro, que passaria de autorizativo para impositivo (se não
totalmente, ao menos de parcela relevante, além das programações
oriundas das emendas de bancada). Essa possibilidade, por si só,
demonstra a relevância da matéria e deixa patente a necessidade de
uma discussão aprofundada.”
Não obstante, a supramencionada nota técnica optou por não se
posicionar de maneira categórica, porém, de maneira implícita indicou
entendimento contrário, no sentido de entender que ainda assim o orçamento
público no Brasil continuaria a ser meramente autorizativo, in verbis:
“A definição da natureza jurídica dos orçamentos públicos do
Brasil é tema bastante controverso. Na visão majoritária, considera-
se que o orçamento público possui caráter autorizativo, ou seja, o
Poder Legislativo autoriza as despesas que podem ser realizadas
pelos Poderes da República. Portanto, o caráter cogente da lei
orçamentária estaria relacionado ao fato de que somente as
despesas nela autorizadas poderiam ser executadas. Assim, a lei
orçamentária não impõe, salvo no que se refere às despesas
obrigatórias, a execução integral das programações, mas estabelece
o limite inicial até o qual a despesa poderá ser executada
(empenhada, liquidada e paga). Há, no entanto, quem defenda que
tal percepção não teria amparo no ordenamento jurídico brasileiro,
presente ou passado, uma vez que esse entendimento estaria
contrariando dispositivos da Constituição, da Lei 4.320, de 17 de
março de 1964, da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, e
da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, dado que a execução das
autorizações orçamentárias seria naturalmente de interesse público
e impositiva”.
Pois bem, o tema do orçamento impositivo merece algumas reflexões, e
aproveitamos o ensejo para expô-las.
Primeiro, se, por um lado, essa ideia retiraria a flexibilidade de que o
administrador público necessita para conduzir sua atividade, mormente pela
impossibilidade fática de identificar e prever com antecedência todas as
despesas públicas, por outro, resgataria a credibilidade e a importância do
orçamento como documento formal de planejamento do governo, que muitas
vezes sofre diante dos recorrentes descumprimentos das suas previsões,
chegando a ser considerado de forma pejorativa uma simples “carta de
intenções”.
Há, ainda, aqueles que criticam o modelo autorizativo do orçamento por
entenderem haver uma redução de importância no papel do Poder Legislativo
nas questões orçamentárias. Justificam a afirmação ao mencionar que o Poder
Executivo, além de possuir o poder de veto no orçamento, pode simplesmente
não executar determinadas despesas sem ter de submeter esta decisão ao
debate, sobretudo quando da publicação do decreto de execução orçamentária
no início de cada exercício fiscal.
Outra questão relevante que não se pode perder de vista refere-se ao
equilíbrio orçamentário. Se as receitas públicas são apenas prováveis (não são
certas e determinadas), já que a arrecadação de recursos financeiros pelo
Estado depende de uma série de fatores que podem oscilar em determinados
períodos, como se poderia tornar a totalidade da despesa pública obrigatória
sem se ter a certeza do seu financiamento? A resposta para esta indagação
está na aplicação do mecanismo de limitação de empenho, previsto no artigo
9º da Lei de Responsabilidade Fiscal, que determina o contingenciamento
quando a receita não se realizar exatamente como originariamente prevista.
Mais uma ponderação que se apresenta diz respeito ao nosso modelo de
presidencialismo de coalizão. Isso porque o orçamento impositivo, apesar de
possuir elevado valor no processo orçamentário brasileiro – ao ampliar a
democracia fiscal e propiciar maior participação dos representantes da
sociedade no Poder Legislativo durante a determinação das políticas públicas –
, dependeria da superação de uma série de dificuldades políticas a fim de que
a aprovação das leis orçamentárias não fosse emperrada anualmente, ou não
gerasse um nefasto desequilíbrio fiscal, a partir da prevalência de interesses
individuais em detrimento de programas e planos nacionais decorrentes do
modelo de federalismo fiscal cooperativo. Porém, nesse aspecto, a solução
deve advir do princípio republicano, em que o interesse geral e nacional deverá
se sobrepor aos interesses individuais, setoriais ou partidários.
Ademais, se, por um lado, devemos ter em mente que não se pode
conferir poderes ilimitados ao Poder Executivo para elaborar e executar o
orçamento público conforme seus interesses e conveniência, contingenciando,
remanejando ou cancelando despesas, de maneira a monopolizar ilegítima e
artificialmente o processo orçamentário, por outro, não se pode reduzir o papel
do Poder Legislativo a mero "carimbador" no processo orçamentário, e nem
este servir para realizar apenas certos interesses individuais, fato que não se
coaduna com o modelo republicano brasileiro nem com a dignidade do
exercício da função legiferante própria daquele Poder.
Também, não podemos nos olvidar de que, em momento algum, a
Constituição utiliza o verbo “autorizar” para a execução do orçamento público.
Muito pelo contrário, adota o verbo “fixar” a despesa pública, tal como consta
no § 8º do artigo 165, vez que temos expressamente consignado que “a lei
orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à
fixação da despesa”.
Já tivemos oportunidade de nos manifestar anteriormente no sentido de
que, infelizmente, vivemos em um contexto de "desvalorização orçamentária",
sobretudo pelo déficit decorrente de uma inefetiva participação parlamentar. A
isso, soma-se a relativização dos efeitos materiais das leis orçamentárias,
mormente pela influência da teoria do jurista germânico Paul Laband (século
XIX) que conferiu à lei orçamentária natureza de mera lei formal.
É necessário compreender que o orçamento público impositivo é um
instrumento democrático e fundamental para o desenvolvimento da nação
brasileira, e que a execução em sua plenitude, ressalvadas as limitações
legais, financeiras ou técnicas, é um imperativo para a efetivação do princípio
da dignidade da pessoa humana. Do contrário, insistir em ler o novo texto do §
10 do artigo 165 da Emenda Constitucional nº 100/2019 como “mais do
mesmo” – e não como a consagração da impositividade – configuraria um
grande retrocesso de todo o processo evolutivo da ciência orçamentária.
Receitas insuficientes, novos impostos e as revoluções
tributárias

Publicado em 01/08/2019

Como sabemos, os desejos e as necessidades humanas são ilimitados,


mas a possibilidade financeira estatal de atendê-los é restrita. No Brasil, assim
como em grande parte das nações do mundo contemporâneo, a desigualdade
econômica e a concentração de riquezas são avassaladoras.
Neste contexto, recentemente, um grupo de bilionários norte-americanos
apresentou um manifesto no sentido de serem favoráveis à tributação sobre
suas grandes fortunas. Os signatários da carta justificaram a sua louvável
motivação em contribuir com mais tributos a partir de uma responsabilidade
moral e republicana para com a sociedade, como instrumento de redistribuição
de riqueza.
Aqui no Brasil, temos a previsão constitucional, no artigo 153, VII, do
denominado “imposto sobre grandes fortunas”. Porém, passados mais de 30
anos de vigência da Constituição, até hoje esse imposto não foi instituído,
apesar de alguns projetos de lei complementar tramitarem no Congresso há
décadas, a passos de cágado.
De fato, a questão é deveras controvertida. Se, por um lado, a
desigualdade econômica em nosso país é imensa, e o nosso atual modelo
fiscal privilegia os mais ricos, uma vez que o sistema tributário brasileiro é
baseado na incidência sobre o consumo de bens e serviços, o que acaba por
penalizar os mais pobres; por outro lado, a carga tributária sobre as empresas
já é excessivamente elevada, e aumentar a cobrança de impostos sobre o
patrimônio ou renda daqueles que geram empregos e movem a economia pode
provocar uma fuga dos investidores ou aumento de planejamentos fiscais
agressivos e, ao fim, resultar em um “tiro que saiu pela culatra”. Além desse
dilema, há, ainda, a questão conceitual: o que é uma “grande fortuna” e como
estabelecer critérios objetivos e justos para a sua tributação?
Não podemos negar que há um delicado equilíbrio entre o poder de
tributar e a liberdade do cidadão, e o bolso costuma ser a parte mais sensível
do corpo humano. Por isso, a tributação foi a causa de diversas revoluções.
Uma das primeiras revoltas localiza-se ainda na Idade Média, mais
precisamente na Grã-Bretanha, nos albores do século XIII. Trata-se da revolta
da nobreza e clero britânicos contra os abusos – sobretudo na cobrança de
impostos – perpetrados pelo rei João Sem-Terra (John Lackland), culminando
na assinatura de um acordo entre o rei, os nobres e o alto clero (a Magna Carta
Libertatum – Grande Carta das Liberdades de 1215), garantindo direitos e
instituindo a obrigação de consentimento de nobreza e alto clero para a criação
ordinária da tributação.
Talvez a Revolução da Era Moderna que apresentou, de forma mais
marcante, a influência da tributação em sua causa motivadora tenha sido a
Revolução Americana. Diretamente oriunda de uma série de normas aprovadas
pelo Parlamento inglês impondo novos tributos às colônias norte-americanas,
tais exações foram sistematicamente repelidas e não pagas pelos colonos,
acirrando os ânimos em ambos os lados do Atlântico. A partir daí, as agressões
entre as partes começaram a escalar, levando ao início da guerra de libertação
americana, que desembocaria na Declaração de Independência de 4 de julho
de 1776, com reconhecimento formal da independência em 1783, pelo Tratado
de Paris, portanto, menos de 20 anos após a desobediência civil tributária
original contra o Stamp Act (lei de cobrança de tributo mediante uso de selos).
Dessa Revolução originou-se também a Constituição Americana de
1787 (vigente a partir de 1789), a Lei Fundamental ainda em vigor que maior
influência tem sobre o constitucionalismo ocidental e verdadeiro monumento
legislativo. Em seu texto, no art. 1º, seção 8, consagra-se o leitmotiv da
Revolução de que apenas os representantes do povo podem concordar com a
criação de tributos: “O Congresso terá o poder de lançar e arrecadar taxas,
encargos, impostos e tributos, pagar as dívidas e prover à defesa comum e o
bem-estar geral dos Estados Unidos.”
Por sua vez, a Revolução Francesa, com seus ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade, é considerada a mãe de todas as revoluções
modernas, tendo sido a revolta que maior impacto causou mundialmente na
história dos últimos três séculos. Não à toa, quando se fala em Iluminismo, a
mente ocidental se remete imediatamente à França e a pensadores como
Rousseau, Voltaire, Diderot e D’Alembert.
Contudo, para além de uma história das ideias que plasmaram a
Revolução Francesa, existe um substrato financeiro e tributário na gênese
desse importante movimento, cujas tensões nessas áreas tiveram
imprescindível papel nos eventos que culminaram com a queda do Ancien
Régime e do absolutismo monárquico francês.
Em primeiro lugar, deve-se salientar que a França, desde o século XVII,
envolveu-se em diversas guerras com elevados custos para o erário francês,
despesas estas que tiveram de ser arcadas por meio da tributação ou da
ampliação da dívida pública por meio de empréstimos tomados pelo Estado
francês. Em segundo lugar, os gastos com a manutenção da casa real também
eram bastante elevados, sendo o mais emblemático deles aquele referente à
ampliação do majestoso Palácio de Versalhes, sob o rei Luís XIV, alcunhado o
“Rei-Sol”.
Por meio da tributação, a carga fiscal recaía principalmente sobre os
ombros do Terceiro Estado (composto por comerciantes, mercadores,
artesãos, camponeses). No Ancien Régime francês, estava vigente um regime
de privilégios (privilèges) e isenções tributárias em favor do clero (Primeiro
Estado) e da nobreza (Segundo Estado) que estabelecia uma desigualdade
considerável entre os súditos do reino. Para tornar a situação ainda mais
problemática, havia isenções estabelecidas em favor de certas cidades do
reino, onde por vezes residiam membros da alta burguesia, com elevado poder
aquisitivo, mas que eram isentos do tributo da taille em razão do domicílio. E
ainda isenções pessoais obtidas por alguns membros do Terceiro Estado.
Mesmo em alguns tributos a todos impostos, como a capitation (capitação,
cobrado per capita ou por cabeça), as alíquotas aplicáveis variavam, sendo
menos pesadas para os nobres. O clero, por sua vez, não pagava a capitation.
Em terras tupiniquins, a mais importante tentativa de revolta de
independência no Brasil foi a Inconfidência ou Conjuração Mineira de 1789,
ocorrida na região aurífera da então colônia portuguesa do Brasil. Seu nome
decorre do fato de os conjurados terem sido reputados desleais e infiéis (esse
o significado da palavra “inconfidente”) à Coroa portuguesa, cometendo o crime
de “lesa-majestade” então previsto nas Ordenações Filipinas para aqueles que
agissem de forma aleivosa e traiçoeira contra a pessoa do rei ou o Estado.
Nessa revolução, também as questões de ordem tributária atuaram
como mola propulsora da atividade revoltosa, devido aos excessos na
tributação da exploração dos minerais preciosos (sobretudo o ouro) na colônia
brasileira, que incidia sob a forma de quintos, isto é, a quinta parte (20%) do
valor dos minerais preciosos, devida à Coroa portuguesa.
Além da tributação sobre o ouro, metais e pedras preciosas, surgiu
também a prática da sonegação fiscal, que se operava de diversas maneiras,
como pelo trânsito do ouro e minerais preciosos em caminhos e rotas não
oficiais, para fugir dos pontos de controle e cobrança (daí o nome do tipo penal
tributário do “descaminho”) e pelo artifício de escondê-los dentro de imagens
sacras (origem da expressão “santo do pau oco”) que circulavam com os
clérigos, os quais não eram obrigados a aceitar revistas nas barreiras
alfandegárias.
Em razão da dificuldade de determinação do montante efetivamente
produzido (sobretudo em virtude da sonegação fiscal), o rei português D. João
V, em 1715, aceitou a proposta feita pelos habitantes de Vila Rica (principal
centro da área das minas) para que fossem pagas 30 arrobas de ouro anuais
ao erário português, num sistema de tributação conhecido como fintas, isto é, a
fixação de um valor fixo a ser pago dentro de um determinado período de
tempo. Porém, em 1719, a Coroa buscou implantar um sistema que lhe
pareceu mais efetivo e com maior potencial de rentabilidade, a saber, a
determinação da criação de Casas de Fundição, às quais deveria ser levado o
ouro extraído em pó ou pepitas para ser transformado em barras contendo o
selo real, sendo já descontado o quinto, isto é, a quinta parte (20%) do valor do
ouro entregue à Casa de Fundição, como parcela tributada devida à Coroa.
Passados 30 anos após a morte de Tiradentes no reinado de D. Maria I,
o Brasil, pelas mãos de D. Pedro I, neto da mesma rainha, torna-se enfim
independente da metrópole portuguesa, ao mesmo tempo em que também a
América Espanhola vai se libertando.
Tanto na revolta dos barões ingleses, como na Revolução Americana e
Francesa, assembleias são formadas em que se decidem relevantes e tensas
questões sobre a tributação. Na Inconfidência Mineira, só não se produziu um
documento jurídico final que também tratasse da tributação em virtude da
frustração prévia da revolta. Mas o germe da independência já estava
inoculado na colônia portuguesa, de tal modo que a própria casa real dos
Bragança, percebendo o momento histórico, procurou capitanear o movimento
separatista em 1822.
Para o bem, todas essas revoltas acarretaram o desenvolvimento de
práticas político-institucionais e documentos jurídicos limitativos dos poderes
dos governantes, garantidores da liberdade e da forma justa de tributação,
materializados em cartas de direitos ou em Constituições que hoje inspiram e
influenciam o nosso contemporâneo Estado Democrático de Direito.
Porém, não podemos nos olvidar do que disse o Chief Justice John
Marshall, Presidente da Suprema Corte dos EUA, no caso McCulloch v.
Maryland: “the power to tax involves the power to destroy” – “o poder de tributar
envolve o poder de destruir”.
O debate sobre uma efetiva reforma tributária (com ou sem a instituição
de um imposto sobre grandes fortunas) é imprescindível para o
desenvolvimento do nosso país. Porém, mais relevante ainda é o debate sobre
a qualidade no gasto público. Do contrário, o sentimento de insatisfação dos
cidadãos – o mesmo que impulsionou os movimentos históricos mencionados –
tende a se reproduzir, propiciando o surgimento de novos períodos de
instabilidade e incerteza que certamente não são desejados para a nossa
nação.

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