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Amal

E a viagem mais importante da sua vida

Por Carolina Montenegro


Ilustrado por Renato Moriconi

@Editora Caixote

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Capítulo 1 - Síria

Depois daquela noite fria de outono, tudo mudou para sempre na vida de Amal.
Naquela noite, choveram bombas.
Amal acordou com um estrondo alto e pensou que era um trovão.
— Amal! Onde você está? — seu avô gritou.
— Aqui, jaddi. — é como se diz “avô” em árabe. — Debaixo da minha
cama.
Os bombardeios vinham acontecendo já havia um tempo, mas não tão
fortes, e nem tão perto. O avô também entrou embaixo da cama, e ele e Amal
ficaram escondidos ali durante toda aquela terrível noite, enquanto as paredes
da casa tremiam.
— São como as tempestades de inverno, Amal. Daqui a pouco passa —
explicou o avô, depois de se ajeitar e abraçar a menina. Segurando a mão dela,
ele até esboçou um sorriso.
Amal se sentia segura na presença do avô, sempre. Durante as tais
tempestades de inverno da sua infância, quando as fortes chuvas não a
deixavam dormir, o avô contava histórias para ela. O jeito dele de falar, tranquilo
e cheio de confiança, a acalmava.
— Uma história bem longa, jaddi. — ela pedia. — E bonita, com heróis e o
mar.

Nessas noites de tempestade, antes da guerra, o avô pegava um livro na


estante da sala e lia para Amal. Sua voz era rouca e forte, e as histórias eram
tão extraordinárias, que Amal logo se esquecia dos trovões e dos raios que

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caiam do lado de fora.
Os seus contos preferidos eram os de Simbad, um corajoso marujo que
tinha vivido em Bagdá, no Iraque, séculos atrás. Simbad fez sete grandes
viagens pelo mundo, enfrentando monstros e tempestades de areia e
conhecendo povos que falavam línguas estranhas.
Amal fechava os olhos e ficava imaginando as histórias até cair no sono.
O Simbad, na imaginação de Amal, tinha a cara de seu avô quando
jovem. Aquele homem alto, bonito e corajoso, de bigode preto, que ela viu nas
fotografias da juventude dele. O avô também tinha sido marujo e o mar e os
livros eram as suas grandes paixões.
O avô era um homem sério, de poucos sorrisos, mas um enorme coração.
Ele criou Amal desde que ela era bebê. Quando os pais dela morreram na
Guerra do Iraque, o avô fugiu com a pequena órfã e eles foram viver em um
vilarejo na Síria.
— O berço de grandes civilizações, de antigos idiomas e de milenares
culturas. Um lugar mais antigo do que o tempo — era assim que o avô descrevia
a Síria.
Foi ensinando Amal a ler e a escrever que ele explicou à garota sobre
esses povos antigos: os assírios, os persas e os fenícios. Ela nunca foi a uma
escola, pois a mais próxima ficava a duas horas de caminhada, mas teve no avô
um grande professor. Um dia, ele disse:
— É nos livros que está o segredo da vida, Amal. Cada coisa no mundo
só existe porque é representada por uma palavra, um nome. E são as palavras
que fazem o homem eterno, porque elas vivem para sempre.
Na tal noite em que choveu bombas, no entanto, o avô não pegou
nenhum livro. Ele já havia trocado a maior parte deles por comida e outros itens
básicos. Ele vinha fazendo o que podia porque, com o acirramento da guerra,
precisou fechar as portas da sua venda de frutas. Não tinha mais como ganhar o
sustento deles e a situação era cada vez mais difícil.

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— Amal, você não pode mais ficar aqui. É muito perigoso. Você precisa
partir, e logo!
Partir? Amal não podia acreditar no que estava escutando. Era o dia
seguinte à grande chuva de bombas e o avô chegou com esse anúncio, de
supetão.
— Partir? Mas para onde vamos? — quis saber Amal.
— Você vai sozinha, minha neta. Eu estou muito velho, não posso lhe
acompanhar. Mas você tem que partir para viver. Seu nome significa
“esperança”, minha neta, veja só. Você vai, por mim e por seus pais. Você vai
descobrir o mundo, como Simbad. Vai ser a viagem mais importante da sua
vida.
O que ele dizia soava absurdo. Como eles poderiam se separar? Como
ele podia sugerir que ela fosse embora sem ele?
Amal não conseguia dizer uma só palavra. O coração dela batia tão
rápido. A ideia só não lhe parecia mais impensável porque, havia alguns meses,
as pessoas tinham começado a ir embora da Síria por conta da guerra. Famílias
inteiras, às vezes. Ou apenas mulheres com seus filhos. Em muitos casos,
crianças e adolescentes sozinhos. Isso aconteceria com ela também?

Fazia 12 anos que Amal vivia naquele vilarejo. Durante o inverno, nevava
e chovia muito. Já o verão era seco e muito quente. Mas era a primavera que
Amal mais gostava, por causa do cheiro de pão e de jasmim que havia pelas
ruas naquela época do ano. Era quando ela aproveitava para guardar jasmins
em uma caixinha de madeira, seu maior tesouro. Aquela era sua casa. Como ir
embora?
Amal sentiu uma lágrima escorrendo pela bochecha.
— Mas eu não quero ir sem você, jaddi — ela disse.
O avô abraçou Amal bem forte e, sem chorar, falou com toda a certeza do

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mundo:
— Eu vou estar sempre com você, minha neta, não se preocupe. Quando
precisar de alguma coisa, pense em mim. Também estarei pensando em você.
Mas, o mais importante é se lembrar do que disse Rumi, o maior poeta persa.
“Tudo o que há no universo está dentro de cada um de nós”. É isso. Pergunte e
ouça a si mesma sempre, Amal. Você encontrará a resposta — o avô dizia tudo
isso olhando-a nos olhos.
— Ah, leve isto com você — continuou o avô, entregando à menina um
objeto amarelo e branco, com a superfície ondulada, que Amal pensou ser um
tipo de pedra. Aquele objeto estranho deveria ser seu amuleto durante a
jornada.
Amal segurou bem forte o presente que o avô tinha acabado de lhe dar.
Entendeu, então, que não lhe restava escolha.

Amal não compreendia a guerra. O avô explicou para ela que, além desta, havia
tantas outras pelo mundo, e que sempre causavam muito sofrimento. Por que as
pessoas faziam isto umas com as outras?
— É mesmo muito difícil de entender, Amal. É uma questão sem resposta
fácil. Acho que as guerras existem, por um lado, porque há pessoas que não
conseguem chegar a um acordo. Mas principalmente porque, por outro lado,
elas podem ser vantajosas para alguns grupos poderosos, sabe? — disse o avô
com uma desesperança que doeu em Amal. — Mas vamos ter de continuar esta
importante conversa em outro momento, porque agora precisamos arrumar a
sua mochila. — continuou ele, enquanto se levantava, embora a neta ainda
tivesse tantas perguntas para fazer.
O que aconteceria a seguir era: Amal iria embora de carro com um amigo
do avô que estava de partida para o país vizinho, a Turquia. Só de cruzar a
fronteira Amal já estaria correndo menos perigo, o avô acreditava. Não era o

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modo ideal de se fazer aquela viagem, de carona e sozinha, mas o avô não
tinha dinheiro para tirar a neta do país de outra maneira. Da Turquia, ela
precisaria pegar um barco para a Grécia e, em seguida, outro barco para a Itália.
Lá, finalmente, ela encontraria seu tio Malik, o irmão do pai de Amal, que morava
na Sicília havia muitos anos.
— Repita comigo esse endereço, Amal. É importante que você decore o
nome do lugar onde vive seu tio Malik. Enviei uma carta a ele contando de sua
ida para lá. Ele estará esperando — afirmou o avô, entregando a ela um pedaço
de papel embrulhado em plástico. — E leve isso consigo.
Quando Amal abriu o bilhete, não conseguia entender nada.
— Mas isso está escrito em língua estrangeira, jaddi — disse Amal.
— Este é o endereço de seu tio escrito no alfabeto que se usa na
Europa, o romano. — ele explicou. Era muito diferente do alfabeto árabe, que
Amal conhecia. A menina se preocupou com tanto de desconhecido que ela teria
pela frente. Ela mal se lembrava do tio Malik, só do seu nariz grande e suas
pernas tortas. Tinham se visto somente uma vez, quando ele veio à Síria visitar
o avô. Mas isso já fazia muitos anos.

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Capítulo 2 – O começo da jornada: Turquia

Tinha chegado a hora de Amal se despedir do avô. Ela queria mais tempo, mas
o avô havia decidido que não dava mais para esperar. O conflito havia chegado
ao vilarejo deles. A única coisa que importava para o avô era tirar Amal de lá o
mais rápido possível.
Na hora da partida, um pouco antes do dia amanhecer, Amal entregou
para o avô a caixinha onde guardava suas pequenas flores brancas.
— Continue guardando elas para mim, jaddi. Não irão passar muitas
primaveras até que a gente se encontre de novo.
O avô tinha lágrimas nos olhos, mas sacudiu rápido a cabeça e elas não
caíram. Eles se abraçaram com força e Amal percebeu que o coração do avô
batia bem rápido. Ele também tinha medo. Ele a afastou e entregou a ela uma
bolsinha com o pouco dinheiro que tinha para ajudar na jornada.
Amal se encheu de coragem e entrou no carro. No banco de trás, já se
espremiam quatro mulheres e agora ela. No banco da frente, dirigindo, estava o
amigo do avô, e, ao lado, seu sobrinho, que era mais velho do que Amal. Todos
moradores do vilarejo.
Partiram. O rastro de poeira deixado pelo carro logo escondeu o avô, que
ficaria ali parado por mais algum tempo, antes de caminhar com os ombros
curvados de volta para casa. Naquele momento, Amal entendeu que as coisas
nunca mais seriam como antes. Apertou o pequeno amuleto nas mãos e fechou
os olhos. Ouviu a voz do avô clara e forte, dizendo uma só palavra: coragem!

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O caminho de carro do vilarejo de Amal, no norte da Síria, até a Turquia parecia


que não iria ter fim. Além do carro em que estava, muitos outros também faziam
o mesmo trajeto, cheios de mulheres e crianças. Eram famílias inteiras,
centenas de pessoas caminhando na mesma direção, rumo à fronteira, para
fugir da guerra. O coração de Amal batia cheio de esperança de que tudo daria
certo, porque assim planejou o avô.
De repente, o veículo quebrou no meio da estrada, ainda no norte da
Síria. Ali só havia horizonte e areia por todos os lados. E agora? Seriam eles
encontrados por soldados? Ou por rebeldes? Seriam atingidos por bombas? Ou
por disparos?
Uma das mulheres disse a Amal para não se preocupar, pois logo
encontrariam uma solução. Elas permaneceram no banco detrás do carro,
vigilantes. O homem que dirigia e seu sobrinho abriram o capô do carro para
tentar consertar, mas pareciam não saber o que fazer. O carro não pegava.
Amal não tirava os olhos da estrada. Passado algum tempo, uma
caminhonete apareceu e encostou do lado do carro. Os homens conversaram
sobre algo que ela não conseguia escutar. Foi só quando o amigo do avô lhes
contou que Amal entendeu: as mulheres e ela continuariam a viagem com
aquela carona.
Elas subiram na caçamba da caminhonete e viram o homem e seu
sobrinho ficarem cada vez menores, conforme elas se afastavam em alta
velocidade. Amal se sentia grata pela ajuda e, ao perceber esse sentimento
dentro do peito, escutou uma palavra forte: solidariedade. Era como se o avô
estivesse lembrando ela de que este continuava sendo um importante valor
entre os sírios, mesmo em meio ao medo e ao desespero impostos pela guerra.
Já estava quase anoitecendo quando chegaram à última cidade da Síria
antes da fronteira. O homem deixou Amal e as mulheres e seguiu viagem. Se
Amal e suas companheiras tivessem passaporte, o passo seguinte seria mais
simples: elas deveriam se dirigir ao posto de fronteira e sair do país de forma

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regular. Mas elas não tinham, como era comum acontecer em pequenas aldeias
da Síria. Portanto, precisavam tomar o caminho mais arriscado, que era
abandonar o país escondidas. Andaram, em silêncio, por uma trilha durante
duas horas. Foi quando Amal se deu conta de que durante o percurso tinha
trocado pouquíssimas palavras com aquelas mulheres. Mesmo assim, sabia que
devia seguir viagem com elas, porque, juntas, poderiam se ajudar. Chegaram
então à cerca de metal que separava os dois países. Lá, um homem as
aguardava e foi ele quem as ajudou a passar para o outro lado, cortando um
pedaço do alambrado com um grande alicate. Estava tudo combinado desde o
início.
Era isso, então? Amal havia conseguido sair da Síria? Quão diferente
seria aquele lugar de tudo o que ela já conhecia? Estava tão escuro que Amal
não sabia o que esperar, mas continuou caminhando mesmo assim. Foi só
quando clareou que ela percebeu que tinham chegado a um grande
acampamento de pessoas em busca de refúgio perto da cidade turca de
Gaziantep.

As mulheres cantavam em árabe e festejavam terem conseguido chegar


ali. Já Amal não entendia tanta alegria. Ela sentia alívio por estar em segurança,
isso sim, mas não alegria. As mulheres sírias queriam permanecer na Turquia,
como seus outros conterrâneos fugidos da guerra, e aguardar o fim do conflito
para, então, poderem retornar às suas casas. Mas, para Amal, era diferente.
Sua viagem estava apenas começando. As instruções de seu avô eram claras:
ela devia seguir até a Itália, não importando quanto tempo levasse para chegar
lá.
Os medos, junto com a saudade de casa, faziam o corpo de Amal doer.
Ela percebeu que estava faminta. O lanche que o avô tinha colocado na mochila
acabou no mesmo dia e ela já não tinha ideia de como arranjaria comida. Saiu
caminhando por entre as tendas do acampamento, levando, bem apertado na
mão, o seu amuleto.

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Amal deu voltas pelo acampamento durante todo o dia, perguntando-se


onde iria dormir e como arranjaria comida. Conforme o dia ia chegando ao fim,
mais preocupada ela ficava. Estava ficando escuro e frio.
Foi quando um menino de olhos amendoados e cabelos muito pretos e
lisos, aparentemente um pouco mais velho do que Amal, veio falar com ela. O
rosto dele estava queimado pelo sol, mas pelos braços ela percebia que ele
tinha a pele bem branca. Ele falou alguma coisa em um idioma que Amal não
entendia.
— Você é burra ou fala árabe? — perguntou, o menino, agora falando na
língua que Amal conhecia.
— Falo árabe, é claro — respondeu Amal, ofendida.
— Meu nome é Ali — disse o menino, olhando Amal dos pés à cabeça.
Ele enxergava uma menina muito nova, encolhida e de olhos bem abertos. Os
lábios dela estavam ressecados e a pele, pálida. — Você parece perdida —
continuou Ali. Ele conhecia a sensação muito bem. Não fazia muito tempo que
ele tinha estado nessa mesma situação, sozinho e com medo. Então perguntou:
— Está com fome? Se quiser, pode jantar com a gente.
Amal não sabia o que responder. Estava morrendo de fome, mas ela não
conhecia o menino e nem tinha gostado muito dele. Quem seria o “a gente” a
quem ele se referia? Sinceramente, a vontade dela era recusar e ir embora. Mas
que outra alternativa ela tinha? Agradeceu o convite de Ali e disse que estava
mesmo faminta. Chegando à tenda em que ele vivia, conheceu a família com
quem o menino morava.
— Eles não são meus pais — explicou Ali. — Mas, quando me viram
viajando sozinho, me acolheram como se eu fosse filho deles.
Ali explicou para Amal que, assim como ele, a família que o tinha recebido
era de uma minoria do Afeganistão, chamada Hazara, perseguida na guerra.
— O Afeganistão fica muito longe. Nós caminhamos durante meses para
chegar até a Turquia. Não tínhamos dinheiro para viajar de outro jeito. — contou

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o menino.
— Por causa do conflito, — emendou um dos novos companheiros de
viagem de Ali, um homem de seus quarenta anos — perdemos tudo o que
tínhamos lá no nosso país.
— Então vocês também estão fugindo da guerra, como eu — constatou
Amal.
— Eu, na verdade, estou indo conseguir ajuda para o meu irmão, que
está muito doente. Por causa da guerra, falta de tudo lá no Afeganistão,
principalmente remédios e hospitais. — disse Ali. — Vou para a Alemanha, onde
há médicos que sabem tratar essa doença que ele tem no sangue. Quando
chegar lá, vou convencê-los a buscar e cuidar do meu irmão porque eles vão
entender o quanto é grave. — explicou o menino. Ele carregava consigo os
exames médicos do irmão embrulhados em um plástico e bem colados ao corpo,
na parte de dentro do casaco. Do mesmo jeito que Amal carregava o endereço
do tio Malik.
— Eu não sabia que havia crianças de outros lugares viajando sozinhas.
Achei que era algo que estava acontecendo apenas na Síria. Não imaginei que
havia outras guerras tão terríveis quanto a que está acontecendo lá. — disse
Amal, enquanto comia apressada a sopa de lentilha. A comida ainda estava
muito quente, mas ela tinha muita fome.
— Há milhares e milhares de outras crianças. Aqui, no acampamento
mesmo, há muitas. Algumas são até menores que nós dois — Ali contou.
Amal se lembrou de ter mesmo visto muitas crianças enquanto caminhava
por entre as tendas. Sentiu uma pontada diferente no estômago. Não era mais
fome. Era tristeza.
O menino percebeu a mudança no rosto de Amal e tentou desviar o
assunto. Então perguntou a ela:
— Qual é a coisa que você mais gosta no mundo?
Amal se distraiu dos seus pensamentos tristes e se lembrou de casa:
— Ah, meu avô, suas histórias, os jasmins…
Ali não estava se saindo muito bem em sua tentativa de deixar Amal mais

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contente. Ele resolveu, então, contar histórias sobre o Afeganistão. Falou sobre
as coisas que mais gostava: pipas e romãs!
Andando de um lado para o outro, mostrava para Amal como tinha
empinado sua pipa em uma competição. Depois, contou do dia em que brincou
com os amigos de chutar romã como se fosse uma bola. Por causa de um chute
forte de Ali, a fruta vermelha explodiu e espalhou sementes por todos os lados.
Amal riu pela primeira vez desde que tinha saído de casa.
A família postiça de Ali ofereceu seu teto para Amal passar a noite. De
barriga cheia e distraída com as histórias de Ali, Amal adormeceu, encolhida.
Eram sete pessoas dividindo uma tenda.
No dia seguinte de manhã, acordou com o cheiro do chá e do pão quente.
— Bom dia, Amal! Venha se juntar a nós — chamou a mulher mais velha.
Ela se sentia grata. Conversou, riu e se deliciou com a comida recém-
preparada: um pedaço de pão e de um queijo que parecia o labneh, que Amal
comia em casa.
Enquanto ela se preparava para partir, Ali se aproximou:
— Sabe, Amal, eu acho que não teria sobrevivido se não fosse por esta
família. Aprendi que, tão importante quanto ajudar os outros, é aceitar ajuda.
Espero que encontre todo o auxílio que precisar pelo seu caminho, e que o saiba
aceitar.
Amal sorriu. Era Ali quem lhe dava o conselho, mas bem que podia ter
sido o avô a dizer aquelas sábias palavras. Abraçou Ali e agradeceu à toda
família de coração, pela acolhida e pelo aprendizado. E então se despediu.
Desejou ter trazido consigo jasmins, para deixar de presente, mas, na sua
pequena mochila havia apenas duas mudas de roupas e uma toalha.

Caminhando e pegando carona pela estrada, junto com outros milhares de sírios
que fugiam da guerra a pé: foi assim que Amal chegou, depois de alguns dias, à

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região de Esmirna. Pelo caminho, as pessoas se ajudavam, às vezes dividindo a
pouca comida que tinham, ou carregando aqueles que estavam doentes ou
cansados demais. Iam todos em direção ao mar, porque tinham o mesmo
objetivo, pegar um barco com o destino à Grécia.
Ah, Amal iria ver o mar pela primeira vez. Era o que ela mais queria:
conhecer o mar que seu avô tanto amava e que era o coração de muitas
histórias que ela ouvia desde pequena.
Quando avistou a água lá longe, e a cidade mais além, correu o mais
rápido que pode. Chegando à praia, caiu de joelhos na areia, boquiaberta.
— Quanta beleza pode caber em um lugar só? — ela se perguntava,
enquanto admirava as ondas, o vento, as gaivotas, os barcos que passavam
longe.
O barulho do mar era bonito como o silêncio. Levava os pensamentos de
Amal de volta para casa e para o avô.
Aos poucos, andando pela areia, ela reparou nos vários pequenos objetos
coloridos que havia pelo chão. Abaixou-se e, surpresa, notou que se pareciam
com seu amuleto. Não era uma pedra, afinal! Era uma daquelas cascas duras
que protegem os moluscos, que ela havia visto nos livros. Como se chamavam
mesmo? Conchas! Seu avô tinha lhe dado uma concha. Uma concha para
protegê-la e para indicar o caminho do mar!
— Uma concha! — Amal falou, rindo alto. — Jaddi, cheguei! E o mar é
ainda mais bonito do que eu podia imaginar! — gritou a plenos pulmões, entre
risadas e lágrimas.
O mar era azul, cristalino e calmo. Em nada parecia com o mar perigoso
das aventuras de Simbad ou dos pesadelos da menina. Amal largou o casaco e
os tênis na areia e foi logo colocar os pés na água. Era tão fria! Sentiu o gosto:
que salgada! Amal fechou os olhos, respirou fundo e se jogou no mar de roupa e
tudo. Foi um dos momentos mais deliciosos de sua vida.
Amal viu peixes, recolheu conchas, brincou na areia. Ficou o dia todo na
praia e só percebeu que o tempo tinha passado quando o sol começou a se pôr.
Era a primeira vez, desde o início da viagem, que tinha se esquecido de tudo e

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simplesmente brincado como uma criança.

Capítulo 3 – A travessia: Grécia

Da praia, Amal podia ver a cidade de Esmirna, que olhava para o mar e o
porto. Seguiu para onde estavam os barcos e lá encontrou um grupo que
também planejava atravessar para a Grécia. Havia tanta gente fugindo da guerra
por aquela rota que encontrar outras pessoas na mesma situação que a dela
não era difícil. Amal pediu para se juntar a elas e se informou sobre as
condições da viagem. Pegariam um barco clandestino porque não tinham nem
dinheiro e nem visto para entrar na Europa com um meio de transporte regular.
Para pagar por aquela travessia, Amal usaria todo o dinheiro que o avô tinha
dado a ela. Era tudo muito arriscado.
Mesmo assim, partiriam no dia seguinte.
Amal passou a noite sob uma grande ponte, junto com as outras pessoas
que aguardavam o barco. Uma delas era Layla, uma menina da sua idade que
também viajava sozinha. Layla tinha a pele e os olhos tão escuros quanto os
cabelos que ficavam escondidos, quase que por completo, embaixo de um véu
cor-de-rosa.
Amal se apresentou e perguntou de onde ela vinha.
— Somália, na África. E você?
Amal contou a ela sobre sua partida da Síria e a jornada até a Turquia.
Mas ela queria mesmo era saber mais sobre a Somália.

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— É um país muito distante daqui, onde há camelos, guerreiros e até
piratas — disse Layla. Amal percebeu que ela também gostava de contar
histórias.
— Piratas? Como os dos livros?
— Não, os de lá são muito piores. Eles existem por causa da guerra e das
situações difíceis que ela causa. Destruiu-se tudo lá no meu país. Minha família
perdeu até a casa onde morávamos. Tivemos de viver um tempo na rua, mas
por sorte, uns parentes nos acolheram. Até então, dava para levar. Mas foi
quando tentaram me casar com um homem de sessenta anos, aí eu fugi. —
disse Layla
— Que horror! Por que fariam isso? — perguntou Amal.
— Também achei um horror, mas lá o casamento de meninas com
homens muito mais velhos é comum. Os adultos acham que é uma boa ideia.
Dizem que o casamento ajuda a nos proteger.
— Mas por que eles pensam assim? — Amal queria entender como casar
crianças poderia ser bom.
— Bem, eles acham que o casamento é um jeito de dar um novo lar para
as meninas. E a verdade é que acaba impedindo que muitas passem fome. Mas
eu não queria isso para mim. Ah não. Meu sonho é estudar.
Amal simpatizou com Layla logo de cara. Ela tinha tantas histórias para
contar. Amal ouvia tudo impressionada. Layla já estava viajando havia meses,
tinha atravessado desertos e visto pirâmides e até os dervixes, que são uns
homens que rezam dançando e girando como piões para se aproximar de Deus.
Um espetáculo impressionante pelo jeito que Layla contava.
— Como é grande o mundo! Tem tantas coisas diferentes, que eu nunca
nem tinha imaginado — exclamava Amal. — Para onde você está indo?
Layla contou que planejava chegar à Suécia, onde uma tia sua vivia.
— Sabe onde fica? É lá no norte da Europa. Dizem que faz muito frio,
mas não me importo. Lá a minha tia vai me deixar estudar.
Elas passaram a noite conversando sobre suas aventuras e Amal ficou
muito grata por isso. Acabou se distraindo. Por momentos, não pensou nos

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perigos daquela travessia e nem no que encontraria lá do outro lado do mar.

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Na hora de embarcar, Amal surpreendeu-se com o tamanho do barco – que na


verdade, nem barco era, e sim um bote de borracha – e com a quantidade de
gente que precisaria caber nele. Cerca de cem pessoas lotariam a embarcação
precária: famílias inteiras, com mulheres grávidas e crianças.
Sequer havia colete salva-vidas para todos, apenas para os pequenos.
Apesar do preço da travessia ser tão alto, o barco era muito precário. Amal teve
tanto medo e se perguntou se deveria mesmo seguir viagem. Será que era isso
que o avô tinha em mente?
Amal olhou ao redor e percebeu que os demais integrantes, Layla
inclusive, não pareciam ter dúvidas quanto a embarcar. Pelo contrário. Brigavam
para subir no barco primeiro e escolher um lugar para sentar. Tentar a sorte na
Europa era melhor do que ficar, fosse qual fosse o risco que estavam correndo.
E os barqueiros se aproveitavam desse desespero das pessoas para lucrar.
Amal conseguiu se sentar perto de Layla, mas mal podia se mexer. O
barco partiu no final da tarde. Então um enorme silêncio substituiu a agitação do
embarque. Deviam estar todos tão apreensivos quanto Amal. Não demorou
muito para que só se visse mar e mais mar para todos os lados.
Conforme foi escurecendo, a ansiedade de Amal diminuía. Ela teve a
sensação de estar dentro de uma daquelas garrafas que são jogadas ao mar e
ficam flutuando por dias e noites sem rumo certo. Ao seu lado, Layla rezava
baixinho com medo do escuro e de tempestades, porque, assim como Amal, ela
não nadava muito bem.
Mas o tempo continuava bom e as ondas e os ventos não estavam muito
fortes. Engraçado, Amal começou a achar bonito o escuro do mar, porque era
como se a luz da lua e das estrelas brilhassem mais. Não havia como não
pensar no avô e nas histórias das viagens que ele havia feito como marujo. Teria

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ele visto um mar assim ou uma lua como aquela? Tais pensamentos deixavam
Amal contente, porque era como se ela, agora, partilhasse aventuras com o avô.
Dava para escutar um bebê chorando. Algumas pessoas tinham
conseguido dormir sentadas, mas Amal, por mais cansada que estivesse da
viagem, não conseguia. Ela ficou relembrando os tantos dias de caminhada, de
caronas, chuva, frio e fome.
Depois de horas no mar, Amal viu no horizonte uma luz que acendia e
apagava. Seria coisa da sua imaginação? Perguntou para o homem que pilotava
o barco e ele lhe explicou que era um farol, um sinal para ajudar os barcos a
encontrarem terra firme.
— Significa que estamos quase chegando.
Amal não podia acreditar, que alegria e que alívio ela sentia. Mesmo
assim, a menina tremia um pouco, de frio e de nervoso. Parecia, ao mesmo
tempo, tão longe e tão perto do farol. Ela passou as horas seguintes vendo a luz
crescer no horizonte.
— Terra, terra à vista! — a frase se repetia na cabeça de Amal, sem
parar. Ela só queria pisar em terra firme, chegar à Grécia, finalmente.
Foi quando aconteceu a explosão.

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O estrondo foi muito forte.


Para Amal, o barulho ensurdecedor parecia ter saído de baixo do barco.
Seria uma baleia? Um tubarão? Um monstro ainda mais assustador? Ela ficou
apavorada quando viu que o fundo do bote precário não tinha aguentado o peso
de tanta gente e havia rompido. Água entrava por todos os lados. Layla tinha
despertado assustada e agora gritava.
Ao redor, as pessoas se desesperaram e tentavam se agarrar a alguma
coisa para não afundarem. Só as crianças, como Amal e Layla, vestiam coletes
salva-vidas e quase ninguém sabia nadar. Logo não havia mais bote e Amal se

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debatia em meio às ondas, que, de tempos em tempos, abafavam os gritos e os
choros. Procurou Layla à sua volta, nadando por entre as pessoas, mas não a
encontrou. Precisou se afastar um pouco da multidão para que não tentassem
se segurar a ela em meio ao desespero.
Estava escuro. A água estava gelada. Era difícil respirar.
— Sinto muito, jaddi — pensou Amal, sofrendo ainda mais de pensar na
tristeza que sentiria o avô, se soubesse o que estava acontecendo com ela.
Fechou os olhos para se lembrar bem do rosto dele.
De olhos fechados, era como se o barulho estivesse diminuindo aos
poucos, se distanciando. Na sua cabeça, o avô lhe dizia algo que ela não
conseguia escutar:
— O que é, jaddi? Fale mais alto.
— Amizade, Amal. Amizade.
— Que coisa estranha para se dizer em um momento desses — pensou
Amal.
Ela tinha desistido de nadar e tentar se manter acima das ondas. Não
podia mais se mexer, seus braços estavam cansados e tinha câimbras nas
pernas.
— Que frio – pensava Amal.
Quando, de repente, Amal abriu os olhos de novo, ela ainda estava no
mar, e as pessoas continuavam gritando. Ela percebeu que havia desmaiado e
não fazia ideia de quanto tempo tinha ficado assim. Agora, um barco se
aproximava e apontava um farolete. Layla a abraçava por trás e a ajudava a
manter a cabeça para fora da água. Alguém gritava alguma coisa por um alto-
falante. Em seu ouvido, Layla se esforçava para dizer bem alto:
— Eles vieram nos socorrer! Estamos salvas! Aguente firme, Amal!
Amal desmaiou novamente. De medo, de fome, de mar.
Quando deu por si de novo, já estava deitada na areia. À sua volta, havia
duas pessoas vestidas de branco, olhando para ela. Seriam anjos? Assim que
Amal conseguiu se sentar e dizer que estava bem, eles se apressaram a acudir
outra pessoa. Muitas pessoas precisavam de ajuda na praia. Layla foi até Amal

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e a abraçou, rindo e chorando ao mesmo tempo:
— Fomos resgatadas, habibti! Vamos viver, querida!
Quando Amal desmaiou no mar, Layla salvou a vida dela.
— O bote estava perto da praia quando a explosão aconteceu. Foi a
sorte. As equipes de resgate conseguiram chegar logo ao barco. Eles me
ouviram gritar e nos salvaram — contou Layla, sem nem respirar para falar.
Depois dos primeiros socorros na areia, as meninas foram levadas para
um hospital na ilha grega de Lesbos. Já em terra firme,elas se faziam
companhia e era como se se conhecessem há muito tempo.
— Estou viva graças a você, Layla. Nunca me esquecerei disso.
— A amizade, Amal, é isso. É um dos sentimentos mais bonitos do
mundo. Não nasce com a gente, como acontece com o amor pela família.
Somos nós quem escolhemos nossos amigos. Tenho certeza de que você faria
a mesma coisa por mim.
Elas se abraçaram e choraram juntas.
— Quanta sorte eu tive! Apesar de tudo, a vida tem sido muito generosa
comigo — Amal falava para si mesma. Ela sabia que tantas outras pessoas não
tinham conseguido atravessar o mar.
Ela adormeceu naquela noite sentindo saudade do avô, mas feliz de estar
quentinha e segura no hospital. Ela queria acreditar que a parte mais perigosa
de sua aventura já tinha passado.

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Capítulo 4 – Itália

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Amal foi liberada do hospital em poucos dias e levada para um campo de


refugiados da região, onde havia muitas crianças. Lá, todos viviam em tendas e
contavam com a ajuda de organizações humanitárias, que distribuíam alimentos
e itens básicos de sobrevivência. As crianças desacompanhadas dormiam em
tendas separadas, que ficavam em uma área protegida do campo. Layla havia
chegado lá antes e veio receber a amiga. Ela estava feliz porque tinha
conseguido telefonar para a tia, na Suécia, para dar notícias.
— Agora é questão de tempo para eu ir me encontrar com ela! — disse
Layla.
Amal ficou feliz pela amiga, mas se entristeceu ao lembrar que não podia
falar com o avô tão facilmente assim. Ele não tinha nem telefone. Ela poderia
enviar uma carta pelo correio, mas levaria meses para chegar à Síria. Se
chegasse. Sua única esperança de falar com ele de novo era por meio de seu
tio, quando chegasse à Itália. Ele daria um jeito.
No dia seguinte à sua chegada, Amal foi chamada para conversar com as
autoridades gregas que cuidavam do campo. Eles queriam entrevistá-la e, para
isso, uma jovem intérprete síria traduzia a conversa. Ela era muito simpática e
Amal se sentiu aliviada por poder falar com alguém que conhecia o seu país. Já
os homens do governo grego, de terno e gravata, permaneciam muito sérios,
tomando nota de tudo. No final, explicaram a Amal que ela deveria ficar na
Grécia enquanto faziam seus documentos. Amal explicou que não podia, que as
instruções do avô eram de que ela seguisse para a Itália. Mas eles disseram
que, infelizmente, não poderiam fazer nada. Que ela só estaria liberada para ir
para outro país da Europa quando saíssem seus documentos de refugiada. Eles
repetiram, como que para reforçar: ela seria reconhecidamente uma refugiada.

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Pelo sorriso no rosto dos homens, aquela parecia ser uma boa notícia,
mas ela não entendia bem o seu significado.
— Significa que agora está protegida, Amal. Você não pode ser enviada
de volta à Síria contra sua vontade enquanto houver guerra lá, e vai receber
documentos para viver aqui, a salvo — explicou Sara, a intérprete.
Depois da entrevista com as autoridades, Amal e Sara caminharam e
conversaram por horas. Parecia que se conheciam há muito tempo. Sara tinha a
voz muito calma e os olhos grandes e verdes. Não devia ter mais do que 30
anos.
— Eu também fugi da guerra na Síria — contou. — Perdi meu pai em um
bombardeio e eu e minha mãe decidimos vir para cá com meus dois irmãos
menores. Nós vivemos aqui no campo e eu trabalho para conseguir algum
sustento para nós.
Ela mostrou a Amal uma tenda onde uma família preparava e vendia
rahat. Amal reconheceu imediatamente o perfume de açúcar queimado que
amava tanto. Sara comprou o doce e repartiu com Amal.
— Sara, eu nem sabia que refugiados tinham documentos e tal. E, menos
ainda, que havia tantas pessoas nesta situação.
— Pois é! É um direito estabelecido há muito, muito tempo e que ninguém
pode tirar de você — disse Sara. Na Síria, Sara era advogada.
Amal achou que devia sentir-se aliviada por, afinal, existir um lugar onde
ela seria protegida e estaria a salvo da guerra e dos perigos. Mas não era bem
assim. Ela sabia que sua jornada ainda não tinha terminado.

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Mesmo quando Amal e Layla já estavam acomodadas no campo, sempre que


possível, Sara ia até elas para conversar e saber como estavam. Amal gostava
da presença da intérprete. Sara se preocupava muito com as meninas que,
mesmo tão novas, estavam sozinhas no mundo. Sara sabia que era cada vez
mais comum crianças chegarem sozinhas ao campo, mas não conseguia se

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acostumar a essa realidade.
Um dia, chegou ao campo uma jornalista que queria entrevistar crianças
que viajaram sozinhas em busca de refúgio, para escrever sobre as
inacreditáveis aventuras pelas quais elas tinham passado e, assim, alertar o
mundo sobre as tristes histórias geradas pela crise migratória atual e pelas
guerras. Sara, então, apresentou Amal a ela.
— Esta jovem é muito corajosa e tem uma história e tanto para contar. —
disse Sara.
Era fácil reconhecer os jornalistas dentro do acampamento: eles usavam
coletes azuis-marinhos com o escrito “press”, que significa “imprensa” em inglês,
e eram quase sempre seguidos por muitas crianças curiosas. Eles vinham dos
mais diversos lugares do mundo, assim como os voluntários que prestavam
assistência às pessoas em situação de refúgio, e isso impressionou Amal.
— É porque a situação de quem precisa de refúgio é muito séria e
preocupa muita gente, no mundo inteiro — explicou a jornalista, que era
brasileira, quando Amal perguntou o que a tinha trazido até ali. Então a jornalista
encheu Amal de perguntas: queria saber sobre sua vida na Síria, sobre quem a
tinha ajudado a fugir, sobre seus planos para o futuro.
A menina contou que só estava esperando seus documentos ficarem
prontos para poder seguir viagem até a Itália. Ela também contou sobre seu tio
Malik e sobre as recomendações do avô.
— Que bom, Amal! É uma pena que a fila de espera desses documentos
seja tão longa, não é? Imagino que seja muito difícil esperar tantos meses, ainda
mais para uma menina sozinha.
— É... — disse Amal, desanimada, enquanto pensava “meses?”. Não
tinha passado por sua cabeça que teria de esperar tanto tempo. Achava que
receberia seus documentos a qualquer momento.
Amal se despediu dela ainda mais preocupada. E se os meses virassem
anos? Amal não podia esperar todo esse tempo. Tinha de continuar a viagem
até a Itália e encontrar seu tio.
Ela precisava dar um outro jeito. Estava decidido.

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14

Nos dias que se seguiram, Amal passou a maior parte do tempo pensando no
que fazer para chegar à Itália. Ficava lembrando do avô, enquanto segurava
bem forte o seu amuleto, querendo escutar uma nova palavra que desse a ela
uma ideia, uma solução. Mas, nada. Nenhum sinal.
Triste e desanimada, certo dia Amal parou para observar alguns meninos
brincando com uma bola improvisada, que parecia um pano velho enrolado com
vários sacos plásticos. A bola não quicava muito, mas fazia a alegria da
garotada, e ela achou isso engraçado. Alguns meninos chutavam a bola para um
lado do terreno e outros, para o outro. Era um jogo de futebol.
Amal percebeu que havia um menino que era muito melhor do que os
outros. Era o que mais corria e o que mais acertava. Ele era bem magro e ágil.
Enquanto ela assistia, de repente, a bola saiu de campo e foi parar em seus pés.
Não pensou duas vezes: mirou e chutou forte a bola na direção do garoto. Todos
os meninos ficaram impressionados. Amal não conhecia muito bem as regras do
jogo, mas chutar uma bola ela sabia, sim, porque brincava muito com o avô de
fazer malabarismos com laranjas, usando as mãos e os pés. Animados, os
meninos fizeram sinal para que ela entrasse na brincadeira. Quando Amal viu, lá
estava ela chutando a bola no meio das latas e gritando “gol” como os outros.
Quando acabou o jogo, o craque da turma veio conversar com Amal. Ele
se apresentou, chamava Samba, e contou a ela que futebol era uma das coisas
que ele mais gostava na vida.
— Foi meu pai que me ensinou a jogar. Ele também era muito bom no
jogo. Tanto que o sonho dele era ir para o Brasil e se tornar um jogador famoso.
Lá, ele me disse, todo mundo gosta de futebol. E de samba! Foi por isso que ele
me deu esse nome, que é comum no Senegal, mas no Brasil significa esse tipo
de música. — contou Samba, e depois acrescentou:
— Meu pai morreu faz tempo, sem nunca ter conhecido o Brasil. Mas eu

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vou, um dia. E vou ser um jogador famoso, entre os melhores!. — Samba falava
árabe com um pouco de dificuldade. Tinha aprendido durante o tempo que viveu
na Líbia.
— Brasil, é? — Era a segunda vez, em poucos dias, que ela ouvia falar
desse país tão longínquo. Amal falou para Samba sobre sua conversa com a
jornalista brasileira que entrevistava crianças refugiadas.
— Você também está sozinho, Samba?
Ele contou que havia alguns meses que tinha ido embora da pequena vila
de pescadores onde nasceu, no Senegal. Partiu por causa da pobreza em seu
país, mesmo motivo de tantos outros senegaleses.
— Depois que meus pais morreram, não tinha porque ficar. Eu passava
fome. Por isso vim para a Europa, porque um amigo da minha família prometeu
que me ajudará a fazer uma vida para mim. Não tive muita saída. Mas quando
juntar o meu dinheiro, é pro Brasil que eu vou.
— Senegal fica bem longe daqui, não é? — quis saber Amal.
— Sim, foi uma longa viagem. Primeiro, cruzei o deserto até a Líbia, e lá
fiquei por quase dois meses, mas não por vontade própria. Não via a hora de
sair de lá, aquele lugar é muito perigoso. Mas essa é uma longa história. Assim
que pude, peguei um barco rumo à Itália, que é onde vive o tal amigo que vai me
ajudar. Mas não consegui chegar lá e ainda quase morri. Viemos parar na
Grécia porque o nosso barco teve problemas e ficamos à deriva durante dias,
sem comida, sem nada — explicou o menino.
Amal não podia acreditar em como tinha sido difícil a vida de Samba até
então. Como ele podia ser tão sorridente mesmo assim? Ela poderia ficar horas
ouvindo suas histórias. Tinha tantas perguntas a lhe fazer.
— Quando cheguei aqui no campo, ninguém falava comigo. Demorei para
entender que era porque sou negro. Não há muitos negros na Grécia ou, pelo
menos, não neste lugar. Mas, como sou bom no futebol, as pessoas daqui
acabaram se esquecendo um pouco de que sou diferente delas — continuou
Samba.
Tolerância. De repente, e muito claramente, Amal se lembrou dessa

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palavra como se a estivesse ouvindo pela voz do avô. Foi ele que um dia lhe
ensinou que tolerância significava respeito por aqueles que são diferentes de
nós.
A conversa estava tão boa que Amal nem tinha se dado conta de que seu
joelho sangrava. Ela tinha caído durante o jogo, mas estava se divertindo tanto
que nem percebeu o machucado que tinha feito. Samba viu o sangue e disse
para ela, tentando fazer com que ela ficasse menos impressionada:
— Não se assuste, já vai passar. É só lavar e colocar um esparadrapo.
Olha que interessante: somos todos vermelho por dentro, não é mesmo?

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Quando Amal contou a Samba que precisava arranjar uma maneira de chegar à
Itália e encontrar seu tio Malik, o menino perguntou qual era o endereço dele.
Ela então mostrou o papel que carregava consigo e Samba deu um sorriso ainda
mais largo do que o de costume.
— Amal, eu estou indo amanhã mesmo para a Itália, onde mora aquele
amigo da minha família. Consegui lugar em um navio que parte para a Sicília
antes mesmo do sol nascer. De lá, sigo para Roma.
— Sicília é onde mora meu tio!
— Sim! — respondeu Samba, animado. — Você pode vir comigo.
Samba não podia ter dito palavras mais lindas, pensou Amal. Ela não
podia acreditar naquela coincidência. Era tanta sorte! Por outro lado, entrar em
um barco de novo para cruzar o oceano? De onde ela tiraria coragem? E o
dinheiro para pagar pela travessia?
— Calma, vamos em um navio de carga enorme. Um navio regular. Nada
desses botes superlotados. Nós é que iremos, digamos, clandestinamente. —
disse Samba, e então contou que um amigo havia lhe dado todas as dicas sobre
como entrar e passar desapercebido na embarcação.
Parecia loucura, mas Amal sentiu que era a coisa certa a fazer. Ela

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agradeceu ao novo amigo e disse que sim, ela iria. Era a chance dela.
Combinaram de se encontrar naquele mesmo lugar dali ao entardecer.
Amal correu para se despedir de Layla. Elas deram um abraço rápido, por
causa da pressa, mas bem apertado.
Depois, Amal foi até Sara.
— Tem certeza, Amal? É muito arriscado. Além disso, você só precisa
esperar seus documentos para poder viajar de forma regular — disse Sara,
insegura.
— Eu preciso ir. Tenho que encontrar meu tio. Não quero ficar aqui para
sempre. Não sabemos nem quando esses documentos vão ficar prontos.
Sara entendeu e, apesar de não concordar totalmente com a viagem, deu
a ela sanduíches para levar. Amal colocou a comida em um saco, junto com
algumas peças de roupa que haviam doado para ela, e partiu. Deixou o campo
sem sequer olhar para trás.
Quando anoiteceu, Samba e Amal logo subiram no enorme navio
cargueiro que os levaria para longe de lá. Era um navio vermelho e azul, com
quase 70 metros de comprimento, carregado com grandes contêineres.
— Precisamos nos esconder agora. Aquele meu amigo que trabalha aqui
no porto me disse que precisamos entrar enquanto eles estão carregando o
navio. Vamos ficar entre os contêineres, assim ninguém vai nos ver — explicou
Samba.
O amigo de Samba tinha falado que, durante a viagem, cerca de 10
marinheiros cuidariam da manutenção e do maquinário, e, por isso, eles teriam
de se esconder muito bem para não serem encontrados. Mas de noite, apenas
um dos marinheiros iria fazer guarda no deque externo, tornando mais fácil para
Amal e Samba circularem, se precisassem.
Foram cinco dias de viagem. Enquanto o sol não se punha, passavam o
dia escondidos entre os contêineres, conversando baixinho. Amal contou para
Samba tudo sobre a sua jornada até ali, e as pessoas interessantes que tinha
conhecido: Ali, Layla, Sara... Falou ainda sobre como sentia falta do avô.
Samba, por sua vez, enfim relatou o momento mais difícil da sua vida, que ele

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não gostava de contar para ninguém: ter sido capturado na Líbia e escapado por
pouco de ser escravizado.
— Escravizado? Como assim? — Amal quis saber, impressionadíssima.
— Atualmente, a Líbia está um lugar extremamente perigoso para nós,
migrantes — começou a explicar. — Existe muita violência desde que explodiu a
guerra lá, uns anos atrás.
Amal não conseguia nem responder, só olhava assustada enquanto o
menino contava.
— Uns grupos armados tomaram o controle do país e ganham dinheiro
explorando quem passa por ali. Eles aprisionam as pessoas em lugares no meio
do nada, sem água e sem comida. Às vezes, as pessoas são vendidas, como se
a escravidão ainda fosse permitida.
Assim como as histórias de Layla, o que Samba narrava parecia ter saído
de um dos livros do avô. Só que muito mais triste. Quando Samba terminou de
contar sobre sua passagem pela Líbia, eles ficaram um tempão em silêncio.
Sentiam tristeza quando lembravam das dificuldades. E tinham medo também,
por não saber o que os aguardava lá na Itália.
Ao perceberem que já tinha escurecido, resolveram dar uma volta para
espantar o baixo astral. A lua estava tão grande que sua luz se refletia nas
ondas e fazia o mar inteiro brilhar.
— Apesar dos seus perigos, que coisa linda é o mar — pensou Amal.

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Antes mesmo de o navio atracar no porto italiano, os dois já estavam


ansiosos e preparados para fugir. Sabiam que tinham que ser rápidos porque, se
fossem pegos, tudo estaria perdido. Eles tinham um combinado: se alguém
perceber sua presença, corra mais do que nunca.
E logo que chegaram à proa do navio, foram vistos por um marinheiro.
— Ei, vocês dois! O que estão fazendo aqui? — gritou ele.

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Amal e Samba correram loucamente. Correram tanto, que, quando deram
por si, estavam perdidos no meio daquela cidade desconhecida. Era Catânia,
com seus belos prédios tão antigos e suas calçadas pretas.
Quando finalmente pararam para recuperar o fôlego, Samba e Amal
ficaram impressionados com a beleza daquele lugar. Mas ao mesmo tempo, se
assustaram com todo o barulho e a bagunça. Como tinha gente na rua! Havia
pessoas dos mais diferentes tipos físicos, e que usavam todo tipo de
vestimentas. Parecia que ali havia gente vinda de todos os cantos do mundo e
tal mistura deixou Amal e Samba confusos. Eles não sabiam se estavam mais
assustados ou esfomeados.
Samba resolveu que precisavam dar um jeito de conseguir comida.
Entrou em uma padaria e, sem saber falar italiano, olhou nos olhos do padeiro e
apontou o pão, e depois a barriga, para mostrar que tinha fome, muita fome. Não
tinha ideia de como o homem reagiria. O dono do lugar olhou Samba e Amal de
cima a baixo.
— Prepare-se para correr, Amal. Ele pode querer nos chutar daqui —
disse Samba, sem desviar o olhar do homem. Ele já tinha passado por cada
situação durante a sua viagem, que agora estava sempre preparado para as
mais diferentes reações .
— Aspetta — disse o padeiro, fazendo um gesto com a mão para que
eles esperassem. Em poucos minutos, ele ofereceu a eles não só o pão, mas
sanduíches caprichosamente recheados.
— Panini — falou o generoso homem de sorriso amigável. Era assim que
se chamava aquela gostosura.
A refeição serviu como uma deliciosa comemoração do sucesso daquela
parte da viagem e também como um marco de esperança e alegria para a
despedida que eles não poderiam mais adiar.
— Agora eu sigo meu caminho, Amal — disse Samba, um pouco mais
cedo do que a menina esperava. — Cuide-se, minha amiga. Você já está perto
do seu destino. Seja feliz — continuou o menino com um sorriso. Ele ainda
tentaria pegar um ônibus para Roma naquela noite. — Nem que demore anos,

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um dia eu chego ao meu destino, Amal. A liberdade é a coisa mais importante
do mundo. Ela é maior do que qualquer fronteira.
Quando Samba foi embora, Amal finalmente percebeu que tinha chegado
ao destino que o avô tanto tinha desejado para ela. Agora ela precisava só
encontrar a casa do tio Malik, o que não deveria ser tão difícil assim para uma
menina que já tinha conseguido chegar até ali, sã e salva. De dentro do saco
plástico que tinha carregado durante toda a viagem, tirou o endereço do tio: Via
Reitano, 37 - 1º andar. Catânia, Sicília - Itália.
Ela então escolheu uma direção e foi andando. Pelo caminho, pedia
orientações para estranhos que passavam. Como não falava italiano, mostrava o
papel que o avô tinha escrito, e as pessoas respondiam com gestos.
Até que ela chegou.
E quando Amal se viu bem em frente ao endereço do tio, hesitou. Seu
coração estava tão acelerado! Ela sentia tantas coisas ao mesmo tempo.
— E se ele não estiver mais aqui? — Amal se perguntava. — E se ele
estiver, mas não quiser que eu fique? O que eu vou fazer?
Amal tinha muito medo. Era como se ela estivesse sentindo todo o medo
que havia passado durante a viagem de uma só vez. Parou e sentou na calçada
para pensar.
Ela precisava encontrar o tio não só por ela, mas pelo avô. Ele era a única
pessoa que poderia ajudá-la a realizar o grande sonho que ela tinha carregado
no coração, em silêncio, durante toda a viagem: trazer o avô para viver com ela
na Europa em segurança. Ele havia salvado a vida de Amal com sua coragem e
agora era a vez dela de fazer algo por ele.
Amal tocou a campainha. Ela ouviu alguém falando em italiano ao
interfone, mas ficou muda, sem saber o que responder. E aí viu a cabeça do tio
para fora da janela.
— Amal? — ele perguntou, incrédulo. E, ao perceber que era mesmo sua
sobrinha, gritou de novo e de novo. — Amal! Amal! Você chegou! Você
conseguiu!
Amal o ouviu descer correndo as escadas. Ele tinha um sorriso enorme

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no rosto. Levantou-a nos braços e a abraçou tão apertado. Ele tinha lágrimas
escorrendo pelo rosto.
— Que bom ver você, minha sobrinha! Há meses procurava notícias suas
por todos os cantos. Entre, entre. A minha casa é a sua casa. Eu a estava
esperando há tanto tempo! É o momento de sermos felizes de novo, Amal.
Amal olhava para o tio, sem conseguir falar. Ela estava feliz, é claro que
estava, mas tão triste ao mesmo tempo. Malik leu nos olhos da sobrinha a
tristeza que ela tentava disfarçar, e disse:
— Nós vamos dar um jeito de buscar o seu avô, Amal.
E Amal o abraçou bem forte.
Paz! Amal ouviu seu avô dizendo, no silêncio do seu peito. Salam,
habibti, salam. A paz era a coisa mais bonita do mundo. Ela se lembrava agora.

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