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Dea Loher

O CANTO DE OLGA
OLGAS RAUM

Portuguiesisch von Marcos Barbosa


Salvador, 2004
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55.71.3282683, marcosbarbosa@hotmail.com

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PERSONAGENS

OLGA BENARIO
GENNY
ANA LIBRE
FILINTO MÜLLER

GUARDAS, ENFERMEIROS

1
MONÓLOGO I
DUETO I: INVENTIO
MONÓLOGO II
PAS DE DIABLE I
MONÓLOGO III
TRIO I: ACCUSATIO
MONÓLOGO IV
PAS DE DIABLE II
MONÓLOGO V
PAS DE DIABLE III
MONÓLOGO VI
DUETO II: NEGATIO
MONÓLOGO VII
TRIO II: DEMENTIA
MONÓLOGO VIII
QUARTETO
MONÓLOGO IX

EXITUS

2
MONÓLOGO I
Eu sou Olga. Esse é meu canto. Uma cela no Campo de Concentração de Ravensbrück.
Há quanto tempo estou aqui? Por quanto tempo vou ficar aqui, não sei. Estamos no
terceiro ano da Guerra. Assim a guerra dure, eu, Olga, permaneço aqui. A guerra pode
durar muito.

Be-na-rio. Bravo Eco Novembro Alfa Romeu India Oscar. Do ano de 1908. Agora faz 34
anos. O.L.G.A. Em letras finas, risco meu nome nas paredes. Arranho um mapa na minha
parede, o grande mapa mundi que me encerra e em continentes vastos marco os lugares
onde fui prisioneira e sou: 42 41 40 39 Campo de Concentração de Ravensbrück. 39 38
Campo de Concentração de Lichtenburg. 38 37 36 Presídio Feminino de Berlim. 36 Prisão
no Rio de Janeiro, Brasil.

Fui entregue pela polícia brasileira à GESTAPO, por que. Não deixar a memória se
apagar. Só se eu lembrar com exatidão, viverei o futuro. Prisão. Paredes cinzas. Falo
comigo mesma para não ficar louca. Mostro figuras a mim, me conto histórias. Aqui na
cabeça fica meu álbum de memórias. A cada dia lembrar de um acontecimento e
reconstruí-lo com exatidão.

Lá está o dia em que entrei para a proibida Juventude Comunista. Nome Nascimento Pai
Mãe Nacionalidade–: judia. Nacionalidade–: alemã. – Lá está o companheiro Otto Braun,
com quem me mudei de Munique a Berlim, para trabalhar na clandestinidade para o PC.
Eu tinha 17. Ele era meu amante.

Manter a cabeça fria agora. Não me deixar enganar pela memória. Lá está Luís Carlos
Prestes. Brasileiro. Cavaleiro da Esperança. Líder da resistência armada em seu país.
Contra a ditadura. Depois de anos de luta 24 25 26 27 foragido. Para Moscou. No exílio. –
Pai da minha filha. – Moscou: o único lugar no qual vivi algum tempo sem parar na prisão.
Até minha filha nasceu na prisão. Anita. Nomes, nomes, não deixar as pistas borrarem.
Eu precisei sair de Berlim porque. O Partido me enviou para Moscou no exílio porque.
Resgato o passado. Resgato minha mente. Resgato minha vida. Resgato a mim.

Moscou 1934. Prestes pertence ao Comitê Executivo da Internacional Comunista. Ir com


ele para o Brasil, retomar a luta que já se realizara, não é uma ordem. Mas uma missão.

Um ano depois de nossa chegada estou, lá também, em uma cela. Vivo numa cela junto
com Genny. Ela é romena. É jovem. Dezessete. Acusada de subversão política.

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DUETO I: INVENTIO
GENNY Não suporto mais o silêncio. Não acaba nunca essa espera? Obrigam a gente a
esperar. Fala. Olga, conta uma história para eu esquecer meu medo. Tenho medo dos
guardas de Filinto, medo, da próxima vez eles vêm me pegar. Talvez não me aconteça
nada. Talvez eles me poupem. Com você também não pode acontecer nada. Você tem
que me proteger. O que vai ser de mim se acontece alguma coisa com você? Conta,
Olga, me dá um talismã de palavras que ninguém possa tomar de mim. Palavras, para
eu me esconder embaixo, como se fosse um manto, como uma floresta. Ninguém me
encontra e eu vivo em segurança. Tenho medo, o medo já comeu um buraco na minha
cabeça, já me anestesiou, nada mais me toca. Conta de novo, me fala de antigamente.

OLGA Começo em Berlim. Eu era um pouco mais velha que você e morava em Berlim.

GENNY Sozinha?

OLGA Sozinha, não. O homem com quem eu vivia: Otto Braun.

GENNY Você amava ele?

OLGA Naquele tempo–

GENNY Continua.

OLGA A gente trabalhava, os dois. Partido Comunista. Ele, funcionário do partido, eu


ganhava dinheiro como–

GENNY – Datilógrafa.

OLGA – Secretária.

GENNY Continua. A prisão. A libertação.

OLGA A gente se encontrava sempre num barzinho. Em Neukölln. Operários. Discursos.


Leituras. Manifestações. Greves. Protestos.

GENNY E aí–

OLGA Prenderam nós dois. “Lesa Pátria”, a alegação contra Otto Braun. Eu deveria ser
cúmplice na Campanha pela Deposição da Aristocracia. Não conseguiram provar nada.
Dois meses fiquei detida em Moabit. Dezoito meses esperou Otto Braun pelo julgamento.
Libertamos ele. Em seis. Tirado do tribunal.

GENNY Armados?

OLGA Não estavam carregadas. Procuraram pela gente. Fugimos com passaportes
falsos para a Rússia.

GENNY Sua foto em todos os jornais.

OLGA Aprendi russo. Tomei a frente em muitos salões e fiz discursos. Fui eleita para o
Comitê Central.

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GENNY Ele–

OLGA Otto Braun foi embora. Outra mulher. Ela tinha tempo para ele.

GENNY Babaca. Esquece o Otto. Que rufem os tambores. Agora vem Luís Prestes. Que
rufem os tambores. Conta do Luís Prestes.

OLGA Num dia de inverno, na Rússia, Dimitri me chamou para ter com ele, era o
Secretário de nosso partido, Manuilski. Claro e direto, sem nenhuma expressão de
emoção, ele perguntou qual a minha visão sobre a luta. A “resistência”, no caso, a luta
popular na América do Sul. Eu disse, claro, claro, se em algum lugar chegou a hora,
então é lá – sinceramente eu não achava que a hora ainda era chegada e teria ficado
feliz se ele tivesse me mandado para a Alemanha, de volta a Berlim, para tapar a boca
dos babões de Hitler até sufocarem na baba marrom deles. Mas não foi isso que me
perguntou Manuilski. Prestes, no exílio em Moscou, insistia em voltar ao Brasil, para
depor lá o regime do ditador Vargas. A missão: Eu deveria ser a escolta pessoal de Luís
Carlos Prestes, garantir sua segurança. O Secretário me deu tempo para pensar.

GENNY O pessoal conta que você e Prestes se conheceram num baile, em Moscou,
numa noite gelada de inverno, quando a geada cobre tanto as vidraças, que não dá mais
para ver do outro lado, porque uma capa de gelo cobre a outra. Vocês com a maçã do
rosto vermelha de dançar e vestindo pouca roupa, porque o salão de baile estava
quente, com a fornalha de lenha acesa. Tão quente que escorria suor no corpete das
damas e a calça apertada colava no bumbum dos homens, mas, lá fora, lá fora estava
tão gelado que as vidraças ameaçavam espatifar.

OLGA Já tinha ouvido falar dele, do Capitão Luís Carlos Prestes, Cavaleiro da
Esperança, líder da Coluna Prestes, cujos homens eram guerrilheiros no Brasil, no
tempo da ditadura. Eu mesma era pára-quedista em Moscou, aprendi a pilotar, estava a
caminho de me tornar a melhor combatente paramilitar que havia na Rússia. Um dia,
como sempre, eu saltei – dez mil cinco mil dois mil metros de queda livre –, foi nesse dia,
depois do meu salto, que encontrei o capitão boliviano num cassino; ele falou assim do
capitão brasileiro: Ele tem a força de uma sucuri, que consegue enrolar um bezerro e
quebrar a espinha dele com o movimento de um músculo, e ainda é valente como uma
onça pintada e ágil feito um tatu, e da mesma forma um estrategista engenhoso, mas
antes da batalha, quando cada passo do ataque está traçado, é um santo: discursa para
seus homens e postam as mãos na prece mais impecável que jamais chegou aos
ouvidos de Deus: comanda ainda que até os cinco dedos mais gastos segurem o cano
do rifle. Lendários vinte e cinco mil quilômetros atrás de si, antes de precisarem se
dispersar e fugir para o estrangeiro. Foi assim que ele contou. Eu tive que rir: Se eu
fosse acreditar nas histórias que o povo conta, a América do Sul inteira num tom de
admiração – o tempo dos heróis tinha acabado há muito tempo, o boliviano queria entrar
para a história.

GENNY Foi um sinal. Um sinal do céu. Não, eu não sou supersticiosa, Deus é
testemunha. Ela faz o sinal cruz. Mas isso é destino. Você tinha que se apaixonar por
ele, só com as palavras do boliviano. Elas tiveram esse poder.

OLGA Eu não pensei nisso. Eu duvidei...

GENNY Quando vocês se viram pela primeira vez – você em pé, no salão de baile, ele
atravessou a porta –, dois pares de olhos, relâmpago, campo elétrico, um imã, nada mais
a fazer. Dizem que aconteceu naquele baile, e dali em diante vocês não queriam mais se

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separar. E nem iam ter conseguido, mesmo que quisessem. Inseparáveis. O Partido é o
primeiro a saber: Enviamos ela com ele, vai ser sua amante – sua escolta pessoal –,
nada chega à altura deles. Nada chega à altura do amor deles.

OLGA muito fria Aconteceu, já disse, no quartel general da Internacional Socialista. Numa
sala quase vazia, uma escrivaninha contra uma parede nua, à direita uma janela sem
cortina com vista prum beco. Manuilski não me disse uma palavra, me olhava
interrogando, eu fiz que sim. Sem mais demora ele conduz Prestes à sala. Era um
homem baixinho, delicado, muito magro, me estendeu a mão macia, seca, e me olhou
com hesitação nos olhos.

GENNY E aí – lua de mel em Estocolmo, Amsterdã, Paris, de cruzeiro de luxo para Nova
Iorque, sempre nas melhores suítes dos melhores hotéis, vôo sobre os Andes para a
América do Sul – Lima, Buenos Aires, depois São Paulo e, por fim, o Rio, o Rio...

OLGA Fuga, esconderijo, disfarce. – Nunca um caminho direto, sempre às escondidas.


Me procuram na Alemanha, procuram Luís no Brasil. Falsificar nomes, mudar os rostos.
– Nenhum lugar seguro, nenhum tempo tranqüilo, nenhum pensamento até o fim – Fuga,
esconderijo, disfarce. – Cada dia diferente. – De igual só o enganar. – Todo dia fuga
esconderijo disfarce. Acabou. Prenderam ele comigo e eu com ele. Agora acabou. Ela ri.
Esconder-se. Escondidos os dois em celas.

GENNY canta Ah, se tu soubesses

como sou tão carinhoso,

e o tanto que te quero,

e como é sincero o meu amor...

Escuridão.

O tique-taque de um relógio.

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MONÓLOGO II
Como se chegou à Revolução. 34 Rio de Janeiro: Os partidos de esquerda fundam uma
Aliança pela Libertação Nacional. Libertação da ditadura. Prestes assume a liderança. 35
Rio de Janeiro: O Governo proíbe a Libertação Nacional. Tumulto. Declaramos a
Revolução. O Governo declara estado de emergência. Mobiliza as forças armadas. A
Revolução se dissolve tão rápido quanto se propagou. Reprimida à força. Prisões em
massa. Na caça aos cabeças, a polícia brasileira tem aliados: A Intelligence Service. E a
GESTAPO.

Há interrogatórios. Prestes será condenado primeiro a 17 e depois a mais 30 anos de


prisão: 47 anos. Os que antes eram guerrilheiros mudaram de lado e agora executam
seus velhos companheiros. O chefe da polícia se chama Filinto Müller. Ainda não o
conheço bem. Não bem o bastante. Mas sei muita coisa sobre ele. Que lutou anos atrás
sob o comando de Prestes. Pela Revolução. E que foi condecorado por bravura.

Filinto Müller é meu interrogador. Quero despistá-lo tanto quanto possível. Confundi-lo
com um monte de histórias e me entregar. Mas Filinto não dá ouvido a história nenhuma.
Nem conta nenhuma história. Preciso ser muito controlada. Cuidado. Não sentir pavor.
Não se mostrar. Resgato o passado resgato minha mente resgato minha vida resgato a
mim. Não tenho medo. Não sou nenhuma vítima. É só não acreditar no torturador. Não
entregar nada à tortura. Nada. Nem uma palavrinha. Silêncio.

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PAS DE DIABLE I
FILINTO Supostamente você está grávida.

OLGA Estou, sim.

FILINTO A GESTAPO está bem informada a seu respeito. Você sabe do interesse
especial que Hitler tem por agentes comunistas, sua judia. A qualquer hora eu posso
extraditar você.

OLGA Eu sou casada com Prestes. Eu tenho nacionalidade brasileira. Eu vou ser mãe de
uma criança brasileira. Pela lei do seu país o senhor não pode me extraditar.

FILINTO Mentira. Seu passaporte é falso. Você não tem certidão de matrimônio. Você é
uma vagabundazinha, uma puta que Prestes tirou da lama pra ter com quem se
satisfazer, piranha. Hitler está exigindo um sacrifício seu, para cada judeu um sacrifício
de judeu. Talvez ele tome só o seu filho e deixe você viva. Você vai ter que sacrificar seu
filho para o senhor Hitler. Ele ri.

OLGA Eu não posso ser transportada. Estou grávida. Estou desnutrida. De noite eu
cuspo sangue. Eu não ia chegar viva na Alemanha. O bebê ia morrer comigo.

FILINTO E quem se importa? Um filho da puta a menos. Ele ri. Seu filho. Ele ri. Como é
que eu vou saber que você está grávida mesmo? Que essa criança não é invenção da
sua mente doente de judia, que você não vai em breve conseguir alguma saída triunfal?
Que essa criança é de Prestes, mesmo, que não é de qualquer crioulo suado que rasteja
aqui, de noite, feito um rato saindo da latrina pra te pedir: Trepa comigo, vem, dá pra
mim, e aí você, sua mulher coisa, vibrando, eletrizada, sem moral, sem decência, se
deleita, tremendo com a metida, um espantalho oco onde passa um vento quente, e aí
se incha toda, até que vem a calmaria, o tesão abranda, ela geme de cansaço, sem
nunca ter vontade própria, não pensa, é só corpo... Corpo... Ele ri.

OLGA serena Eu exijo um médico. Eu exijo um exame médico. O senhor não se engane.
Meu nome ainda está nos jornais. Eu sou estrangeira. Eles prestam atenção no que
acontece comigo. Quero ser levada para um hospital público, um hospital público. Quero
ser examinada lá.

FILINTO Brilhante idéia. Uma idéia brilhante, esse exame. Depois lembre que foi você
quem quis. Eu mesmo vou examinar você, para simplificar a coisa. Não precisa ter
medo, não, eu tenho muita experiência. Ele ri. Vou fazer com você o teste do sapo. Ele
ri. O Teste do Sapo para Reconhecimento Prematuro de Gravidez. 99% de certeza.
Mentira tem perna curta. Ele ri. Quando foi a última vez que você sangrou? Quando foi a
última vez que você escorreu esse seu ovo inútil, infértil, essa posta visguenta de
sangue, hein? – Responde! Pausa.

OLGA Já disse. Estou no segundo mês. No segundo mês.

FILINTO ri Bom. Muito bom. Instruindo. O teste pode ser realizado com sucesso de dez a
doze dias depois do atraso no sangramento. Pausa. De manhã você vai sentar na latrina
e deixar escorrer seu mijo. Pegue sua caneca ou seu prato e mije dentro. Aí você traz
pra mim sua urina fumacenta. Eu lhe dou um sapo, você segura ele com as duas mãos.
É um sapo homem, um macho. Ele senta no seu colo. Você tem que segurar bem ele, o
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detetor de mentira. Ele ri. Melhor do que qualquer detetor de mentira. Ele ri. Também
posso colher um pouquinho de sangue. Você dá para ele ou urina da manhã ou sangue,
ele gosta dos dois igualmente. Vamos supor que seja urina. Eu injeto sua urina no sapo,
o sapo macho recebe seu caldo amarelo para beber; alimento para a carne dele, para o
sangue, para o tesão. Você vai ficar lá, sentada, segurando ele. Sentindo aquela pele de
sapo na palma da mão, aquele monte de carocinho duro, verruguento. Vai durar seis
horas. Você vai sentir como o sapo macho muda: o pulmão bombeia com mais força, a
pupila vai dilatando, o corpo vai se contraindo e inchando, a pele fica macia, quente, as
verrugas mais pontudas, mais duras. – Se você estiver grávida mesmo, ele esguicha
sêmen no seu colo. – Ele ri. Depois de seis horas ele esguicha o sêmen dele no seu
colo. Gala de sapo. Ele ri.

OLGA Antes eu mijo em você. Dê a seu sapo quanto sangue meu você quiser. Você
pode me fazer falar, pode, mas eu vou falar de você, o tempo todo eu vou falar de você,
sem parar.

FILINTO Mas – esse meu pequeno experimento é tão inofensivo. Método cientificamente
reconhecido. Especialistas o utilizam, sumidades. Mais uma sugestão, para o seu bem.
Eu deixo inclusive você escolher o tipo do exame. – Você conhece o método das carpas
anãs?

OLGA Não. Não conheço. Não conheço nem quero ouvir nada a esse respeito. Não
quero ouvir nada.

FILINTO Ah vai, você vai ouvir, sim, minha cara Olga, você vai prestar muita atenção quer
você queira, quer não. O método das carpas anãs é muito bonito, muito charmoso. Você
vai gostar. Ele atende inclusive a padrões estéticos. Ele ri. A gente aguarda até você
chegar no terceiro ou quarto mês. Aí vamos ter duas carpas anãs, um casal. O macho
tem uma pele sedosa, brilhante, de escama verde. Eu injeto uma amostra da sua urina
embaixo da pele dele. Se você estiver esperando um menino, a cor da escama da carpa
muda. Bonito, né? Um indicador de sexo ambulante. A pele fica azul metálica, com uma
marca laranja, brilhosa. Ele ri. A gente faz a contraprova na fêmea: se tiver uma menina
crescendo na sua barriga, aí a cloaca dela cresce dois centímetros ele faz um gesto
obsceno, dois centímetros. Ele ri. Aí, se você quiser, minha cara Olga, você pode comer
as carpas depois. Você recebe elas assadas, em papel alumínio, servidas com garfo e
faca, garfo e faca de peixe, e com batata para acompanhar e manteiga derretida, bem
gordurosa, bem quentinha, e aí as cores delas vão cintilar, e a cloaca vai ficar crocante,
apontando pra cima. Ele ri. Você joga bem, Olga Benario, uma grávida ligeiro fica
enjoada, não é mesmo? Tão sensível. Está todo mundo avisado para cuidar de você. Em
todo caso eu já ouvi muita coisa sobre esse tal enjôo motivado pelas circunstâncias. Mas
não é geralmente de manhã cedo que ele vem?

OLGA Você é um canalha, Filinto. Você me dá nojo. Você quer o quê de mim? O que é
que eu tenho que fazer? Você gosta de deitar com mulher grávida? Ou é minha rejeição
que te excita? Eu já não valho nada, sou só uma prisioneira, um pedaço de carne. Será
que eu não estou doente demais pra você? Eu escarro em você, Müller. Escarro em
você e nessa sua vida imunda. Eu sou um caco de vidro. Você vai esfolar a mão em
mim, antes de me ter.

FILINTO Não vou, não, Olga. Não vou mesmo. Eu podia arrebentar você em pedacinho.
Todo dia, aqui, eu vejo como os corpos fortes quebram. Quem quebra sou eu. Mas você
eu não quero arrebentar, ainda não. Você tem que me querer, Olga Benario. Eu quero
que você aprenda a me amar. Você tem que me desejar mais do que ao Prestes. Eu sou
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forte, Olga. Teve vezes que numa noite eu amei cinco, seis mulheres, às vezes só três,
eu tinha um belo de um... músculo. E ainda tenho. As mulheres não agüentaram, não
conseguiram suportar tanta força, tanto poder. Algumas gemeram até morrer, outras se
arrebentaram com a barriga inchada, teve até uma que morreu definhando. Não
conseguia dormir nem comer, só pensava na minha cama. Ele ri.

OLGA E você acha que eu ia desejar isso? Você deve ser doente, Filinto, doente e
insano. Eu desprezo você. Não, eu não chego sequer a não desprezar você, mas eu
entendo o que Prestes disse a seu respeito: oportunista covarde. Arrivista. Traidor. E
sabe por que? Você sabe o porquê!

FILINTO Para você Luís Prestes está morto. Não existe mais. Eu extermino ele. Agora o
seu senhor sou eu. O que é que você pode saber, que eu não sei? Você vai me contar
tudo. Confiar em mim. Você e o bebê. Minha mulher e meu bebê. De você cuido eu. Eu
sou seu responsável.

OLGA Prestes me falou muito de você. Eu sei mais a seu respeito do que você imagina.
Conheço você mais do que você pensa. Você preferia esconder, você tem medo que
ainda apareça mais coisa, você queria desfazer o que está feito: Você – capitão da
Coluna Prestes, era um dos homens mais corajosos da Resistência, você mesmo, um
guerrilheiro!

FILINTO Não. Não. Eu sou corajoso. Eu sou corajoso. Eu lutei e venci, e fui promovido e
fui festejado, e bateram no meu ombro e pronunciaram meu nome com todo prazer.

OLGA Você lutou contra as tropas do governo, contra a ditadura. Você foi promovido a
major por seu sucesso, pela importância dos serviços prestados à Coluna Prestes.

FILINTO Sim. Sim. Eu era major. E agora sou muito mais. Tenho prisões cheias de
prisioneiros, meus prisioneiros. Antes eu não tinha nada. Agora todo dia eu vejo dúzias
deles de joelhos. Todos me amam, porque eu faço eles sentirem humildade, o que
significa vivenciar uma graça, alívio da consciência pela absolvição, libertação da alma,
perdão dos crimes. Eles têm que me amar, porque eu sei a verdade sobre eles, eu
descubro a verdade de cada um. Eu sou o deus deles. Quem amamos com mais fervor
que ao nosso Senhor?

OLGA Você se esgueirou de noite, feito um coiote com medo do fogo. Covarde. Deu a
Coluna Prestes por perdida. Você tinha medo da prisão, da tortura, da execução.

FILINTO Eu nunca fui covarde. Nunca me faltou bravura.

OLGA Porque você podia espancar. Com os homens da sua tropa atrás de você.

FILINTO Eu era major. Eu fui condecorado por força de vontade extremada.


Determinação. Tática. Ímpeto de perseverança.

OLGA E desertou. Instruiu inclusive seus homens a atravessarem a fronteira, a fugirem


como você para a Argentina, a trair a luta de Prestes.

FILINTO A coisa estava perdida. A luta tinha se tornado algo sem perspectiva. Eles
estavam em vantagem. Infinitamente mais fortes que nós.

OLGA Foi por isso que você pegou o dinheiro? Por isso que roubou os cem milhões de
réis da Coluna? O dinheiro que pertencia a todo mundo, amealhado por você para
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encher a cara com um bando de puta, seu canalha traidor? Foram esses os cem milhões
de réis que você ofereceu como recompensa pela cabeça de Prestes? Vocês
abocanharam ele mesmo sem recompensa. A sua vingança você não conseguiu
comprar.

FILINTO Estou do lado do mais forte, verdade, eu luto do lado do poder, do lado da lei. O
fraco não tem direito nenhum de existir. Só prevalece quem tem força de vontade. Eu
nunca mais vou ficar com o mais fraco. Um homem tem que saber qual é o lugar dele.

OLGA Você não tem força de vontade, Filinto Müller. Um oportunistazinho ordinário, um
merda. Eu cuspo em você. Um mentiroso que fica se enganando.

FILINTO Não tem nada mais repugnante do que essa ladainha auto-louvatória do povo,
que sempre acha que foi passado pra trás e fica batendo no peito e jogando na cara do
mundo essa choradeira de “eu eu eu”, como se a única verdade que existisse fosse a
deles, que estão sempre por baixo, que se jogam no chão pra chutar e espernear, pra
não ser pisoteado ou simplesmente escorraçado, como se só a fraqueza pudesse ser
verdade – e o desespero e o protesto – e nunca a força, o poder ou o dinheiro. Lá onde o
poder se assenta e onde a influência se estabelece a verdade também se espreita,
verdade muito maior e melhor que a desses oprimidos.

Eu não sou esse que você pensa. Eu podia deixar te matarem, Olga Benario. É só eu
mexer um dedo. Será que isso ia deixar você feliz, um fim rápido? Mas eu quero que
você fique bem. Eu vou ajudar você, você e o bebê na sua barriga, que vai ser brasileiro,
mesmo sendo judeu. Eu posso deixar você dar o bebê à luz aqui. Conseguir um
passaporte brasileiro para ele. Você é a mãe. Você vai poder ficar. A GESTAPO vai ter
que esquecer você. Prestes vai esquecer você, porque ele só vai conhecer xadrez. Eu
vou fazer isso. Vou salvar sua vida. Ele ri. Para a minha diversão. Ele ri. Para a minha
diversão. Ele ri. Para a minha diversão.

Escuridão.

O tique-taque de um relógio.

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MONÓLOGO III
Aí chega Ana. É noite. A luz acesa. Ela é jovem e bonita. Mesmo nessa luz amarelo mijo
ela é jovem e bonita. O nome dela é Ana Libre. Dela eu não espero nada. Ela está
resoluta. E como me odeia. Eu invejo esse ódio dela. Ela a verdade e eu a mentira,
simples assim. Eu quero ser resoluta. Ainda não tenho medo. A cela é muito estreita. Eu
sinto a criança na minha barriga e queria abortar. Abortar. Vou matar ela. Sair em
liberdade. Só. Matar. Matar. Matar. Se controle. Olga, mãe fraca da cabeça. Meu bebê vai
chorar pela primeira vez numa cela. E daí? Quem estiver seguro da sua causa vai
sobreviver. Quanto alguém pode estar seguro da sua causa? Haverá talvez traidores
entre nós? Apareçam! A verdade na luz e se ainda assim a penumbra for tanta, uma
lâmpada imunda, feito a daqui, dá bem pra tomar uma coisa pela outra. De manhã fede a
azedo o dedo que alguém enfiou por engano no penico em vez da água de rosa. Fazer o
quê? É preciso ter convicção do que se faz.

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TRIO I: ACCUSATIO
Dois guardas trazem Ana Libre.

GENNY Eu já tinha visto você. Hoje à tarde. Quando você chegou no transporte.

ANA –

OLGA Meu nome é Olga. Essa é a Genny.

GENNY Oi.

ANA –

OLGA Essa cama ainda está livre. É melhor você deixar suas coisas na sacola. Aqui não
tem armário.

GENNY É. Não tem armário.

OLGA Senta aí.

GENNY É. Senta aí.

ANA joga a sacola no chão e começa a remexer em seus pertences.

GENNY Você não é atriz? Eu acho que eu já vi você com aquele cantor... Como é o
nome? Eugênio?

OLGA Não disseram que ia chegar uma novata.

GENNY É, ninguém sabia de nada. Mas dificilmente eles dizem antes.

ANA –

OLGA Vai ficar um pouquinho apertado, mas logo a gente se ajeita.

GENNY Logo a gente se acerta.

ANA –

OLGA Você já foi interrogada? Você está aqui por que?

GENNY Também é prisioneira política? Eu estou presa por – “Subversão”.

ANA Cala essa porra dessa boca, Olga Benario! Tudo isso você sabe muito bem.

OLGA Eu? Como é que eu ia saber?

ANA Olga Benario! Ela cospe o rosto de Olga.

GENNY Que é isso? Está maluca? Você está pensando o quê?

ANA Você é a lambe-cu dela, né?

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OLGA E você, quem é?

ANA Quem sou eu? Quem sou eu? Eu vou transformar sua vida aqui num inferno, sua
delatora escrota. Não vai ficar de graça ter dado meu nome a eles, não, sua merdinha
vagabunda.

GENNY Que é que está havendo?

OLGA Como é? Eu – denunciei você? Quem disse isso?

ANA Quem terá sido? Quem é o maior canalha carrasco daqui? O grandão, o barrigudo,
o alemón Müllerrr.

GENNY Olga nunca ia fazer uma coisa dessa, nunca que ela ia entregar alguém pro
Filinto.

ANA Cala a boca, papagaio. Para Olga. Você acha que é muita coisa porque trepou com
o Prestes e todo mundo toma você por heroína, você me dá nojo, mas agora você vai pra
baixo porque pegaram você, acabou-se a vida de luxo, sua cobra.

OLGA Não fui eu. Isso é intriga do Müller.

ANA Por que eu devia acreditar em você? Qual é o motivo que Filinto tem de mentir pra
mim? Ele é canalha, mas uma mentira dessa não tem sentido nenhum. Alguém cantou
meu nome, por que não havia de ser você?

GENNY Olga não foi, eu conheço ela, ela não é delatora coisa nenhuma.

ANA Se você não ficar calada, sua rã, eu vou entupir sua boca.

OLGA Ele interrogou você?

ANA Para quê, se ele já sabe tudo?

OLGA O que foi que você fez?

ANA O que é que você quer ouvir? É para repetir o que você já contou a ele?

GENNY O que foi que você fez? O que foi?

ANA Joguei uma bomba de gás no quarto do ditador.

GENNY Sério?

OLGA Muito bem: Você desconfia de mim, eu desconfio de você. Uma espreita a outra e
a gente vai se enfraquecendo. Bom pro Filinto. Assim o trabalho fica mais fácil, quando
ele começar o interrogatório.

ANA E você acha que com esse truque você me engana? Eu acredito em você e começo
a tagarelar. É desse jeito que você consegue informação. Quantas prisioneiras já
meteram na cela de vocês?

OLGA Não subestime Filinto. Quando você começa a pensar, ele já está dois passos na
frente. Te cuida. E quando ele levar você para o interrogatório, só confie em você mesma.

14
GENNY Eu... Eu tenho medo do interrogatório. Da tortura.

ANA Eu não preciso do conselho de vocês. De mim vocês não vão ouvir mais nada.
Agora é boca pequena. Para ninguém queimar a língua.

OLGA Delatora... eu. Não dá para acreditar em uma palavra.

ANA Apaga a luz!

Escuridão.

O tique-taque de um relógio.

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MONÓLOGO IV
O único jeito de não ser heroína, nem mártir, nem vítima, é me fazer confessora,
colaboradora. Eu mesma torturo. Torturo cada um que atravessa meu caminho. Por fim a
mim mesma. Eu inclusive. Comecei em Luís Prestes, por fim chego a mim. Torturo meu
cérebro à morte. Cérebro morto. A saída é o vazio. O esquecer. Não lembrar mais. Não
lembro nada. O que eu já soube, se foi. Escapou pelos sulcos do cérebro. Sumiu. Minha
cabeça já é encaixe fino de placas de osso. Minha cabeça quebrada. Vida que foi pende
em cacos de osso até que o vento arranca fora. Girando em volta, cérebro tripa, por onde
peida no mundo, encharcada pele engelhada, largada num canto do mundo, apodrece
devagar, mofo nas rugas da pele, bolorenta. Foi você, OLGA, diz Filinto de pernas abertas
em cima de mim.

16
PAS DE DIABLE II
OLGA Eu sou uma traidora. Pausa. Traidora como você.

FILINTO Eu sabia, antes de te conhecer.

OLGA Eu não sabia que eu podia ser assim. Você me transformou nisso. Ana Libre
acredita em você, mesmo sabendo que você é um mentiroso.

FILINTO A verdade é uma carranca de demônio. Toda criatura foge dela.

OLGA Eu quero um interrogatório. Um interrogatório até o último grito.

FILINTO Até agora eu poupei você. Coisa pouca, preliminares. Você pensa mesmo que é
páreo? Se você insiste em experimentar mais...

OLGA Não. Eu não sou vítima. Eu posso ajudar você. Eu quero me ajudar. Eu ando pelos
corredores do presídio e vejo pessoas que eu vou interrogar. Eu ando pelas ruas da
cidade e vejo corpos de pessoas e cabeças de pessoas aonde eu vou me infiltrar. Eu
vou ser carrasco.

FILINTO Muito bem. Você vai confessar. Vai dar nomes. Eu vou trazer eles até você,
cabeças com nomes. Vão ficar na sua frente e você vai olhar pra eles e apontar e dizer:
É, esse aqui e aquela ali e aquele e aquela. E aí eu vou fazer eles falarem – como você.

OLGA Não. Não. Eu é que vou fazer isso. Você vai me dizer o que eu preciso fazer. Eu
faço tudo exatamente como você quer, mas deixa que eu faço. Você vai me mostrar. Vai
me instruir na crueldade e nos maus-tratos. Eu vou aprender com você. Não vou ser
vítima. Não vou me submeter à dor, vou infligir. Vão me temer e me repelir.

FILINTO Você vai ter que ficar onde está, Benario. Não dá para fazer de si mesmo
interrogador, a gente é feito. Não é um jogo em que se pode trocar à vontade o lado do
tabuleiro e a cor das peças. Eu lutei para chegar onde eu estou. Nada veio de presente.
Eu não escolhi o que eu me tornei, eu só busquei, sempre.

OLGA Tem razão, não é um jogo. Estou falando sério. Eu vou seguir você. Vou assumir
seu posto. Pausa. Você fica em pé, ali, na sua frente tem um homem sentado. Está com
os olhos vendados? Não, ele fita você. A sala é grande e ampla. Você precisa de
espaço. O relógio na parede está coberto com fita adesiva. Vocês têm muito tempo. O
homem vai começar a gritar. O momento exato é incerto, mas que ele vem é garantido.
O medo já está pintado na testa. Ele ainda se esforça pelo autocontrole, orgulho e
teimosia, mas a mão treme. Como você começa?

FILINTO O começo – eu preciso do cheiro dos corpos. Eu acho bom, o calor, cheiroso,
bicho tosado, sentir a pele deles, o desenho dos poros na ponta dos dedos, feito uma
colmeia de abelha. Às vezes eu afago e sinto a camada fria de suor, que devia proteger
as células. Aí eu bato. Eles não deviam começar a feder. Quando ficam com medo,
começam a feder. Entre eles há boas máquinas humanas. Reagem imediatamente. Eu
mostro os eletrodos, o amperímetro, os fios e a sonda e eles começam a feder. Não
todos. Esses são os interessantes, embora dificultem o trabalho: Os que não reagem
como previsto. Isso instiga. O funcionamento suave é perturbado. Mas uma máquina não

17
pode nunca competir com quem a opera. Eu vou sempre farejar o defeito dela e
consertar. E ela vai fazer o que eu quero, eu.

OLGA Eu vou me controlar. Vou ficar muito quieta. Me concentrar no meu trabalho. É
trabalho. Saber que o que eu faço é o certo. O outro na minha frente é um empecilho.
Empecilhos devem ser eliminados. Pensar em outra coisa, algo simples. Fui caçar e
acertei num pato, num coelho, num cervo. O corpo deles também é macio, flexível. No
estripar eu ainda sinto o calor do bicho morto. Com uma faca afiada abro um talho na
barriga, o corte começa entre as pernas e vai até a garganta. A pele com um rasgo largo.
Agarro as tripas, arranco elas do corpo e jogo fora. As pernas ainda tremem, mas o
coração não bate mais. É muito simples. Eu posso fazer isso sempre, uma vez atrás da
outra. É só um corpo. Morre ligeiro. O sangue escorre rápido. Escorre tão suave. Pausa.
Basta vencer uma resistência. Uma resistência pequenininha. Enfiar uma agulha no dedo
e espremer uma gota de sangue. Depois você passa devagarinho uma gilete nas costas
da mão, deixa a ponta acesa do cigarro chiar na mão, por fim encosta com o dedo nu no
fio elétrico. Só dói a primeira vez. Depois não dói mais nunca. Eu diminuo a dor,
deixando ela mais forte.

FILINTO Não quero machucar ninguém. Mas quando começa, eu não consigo mais voltar,
tenho que ir sempre em frente. Eu arranco tudo deles, a vontade, a vergonha e, por fim,
a vida. Às vezes eu acordo à noite porque escuto o barulho. O barulho, como dois ossos
se torcendo na junta, os tendões estalam, a cartilagem salta, eu puxo mais um pouco,
um arranque – a pele esfarrapa, tendões, gordura, o sebo da junta pendendo na cabeça
lisa dos ossos. Esse barulho acontece sempre à noite, range, estala e aí pára. E fica tão
silencioso, tão silencioso. Pausa. Aí eu deito de novo a cabeça no travesseiro e volto a
dormir.

OLGA Eu vou torturar bem. Minuciosamente. Planejadamente. Implacavelmente. Com


carinho. Com prazer. Delicadamente – em êxtase. Vou me embriagar nos gritos das
vítimas, as – ondas de sangue – as celas enchendo até o teto. Gritos que se batem nas
paredes, ecoando, ecoando, até que de todas as vozes fica um único grito, um grito, o
grito do torturado, que morre culpado, porque era. Pausa. Um mundo cheio de carrascos,
um mundo que rompe com o tabu da dor: Cedo a gente se acostuma com a normalidade
do sofrimento. Não é mais proibido nem condenável espancar, estuprar, matar. As
pessoas perderam o medo de causar dor um ao outro. Nós não temos mais escrúpulo de
machucar um ao outro. Pelo contrário, ao invés de um beijo na boca, um tapa na cara
está entre as melhores cortesias. Você espera que eu te bata e eu te bato e você grita de
prazer.

FILINTO É só uma convenção. Um pudor hipócrita, estabelecido através da educação.


Não existe de verdade. Ele ri.

OLGA E sua mulher? Seus filhos? Você educa seus filhos. Você acostuma eles a vencer
a resistência? Conta em casa o que faz com os presos? Que pendura eles no pau-de-
arara, que espreme os olhos, que arranca as unhas, que enfia fio elétrico quente no
pênis e dá choque nos membros? Acostuma eles com seus métodos, para depois não
ficarem com medo do pai e saberem de suas próprias possibilidades. Prepara eles com
cuidado para a tortura!

FILINTO Minha família não tem porra nenhuma a ver com você. Eu amo minha família.
Minha mulher me ama, me ama e me respeita, é, ela tem inclusive orgulho de mim e
pros meus filhos eu sou um santo.

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OLGA Como é que você explica a eles o prazer que você sente? O prazer em fazer o que
você faz? É o mesmo que um médico sente numa operação importante? O do
marceneiro que faz o trabalho do jeito que aprendeu? Ou – o prazer pelo medo da morte,
o que fede a sangue, a pus, a carne podre?

FILINTO Eu amo meus filhos. Eu amo e respeito minha mulher. Nunca ia fazer mal a eles.
A eles, não. Não senti nada fazendo isso. Não fiz nada.

OLGA gentil O que aconteceu? O que o senhor fez? O senhor torturou sua mulher?

FILINTO Não, não é verdade e, se aconteceu comigo, foi por engano, foi sem querer, não
foi porque eu quis, foi engano, acidente, eu não queria, ela bem que podia ter se
defendido afinal é minha mulher.

OLGA O que o senhor fez? Como foi que aconteceu?

FILINTO Ela... estava sentada numa cadeira. Em casa. Como você, aí.

OLGA O senhor – algemou ela?

FILINTO Eu só passei uma corda em volta do corpo. Foi tão fácil, fácil como sempre.
Aconteceu comigo. Eu não sabia que eu estava em casa.

OLGA E aí? O que o senhor fez com ela? O senhor a feriu?

FILINTO Foi, foi, eu feri ela. Eu puxei minha faca do bolso de dentro do casaco e destravei
a lâmina. Assim. Ela percebeu o estalo e gaguejou. Eu não escutava nada, só via a boca
dela se mexer. Eu só via minha faca, meu instrumento de trabalho, o fio, o rosto, o corpo
de uma mulher. Era como sempre. Como agora. Era uma estranha na minha frente e eu
tinha que fazer ela falar. Ela gritou. Eu não reconheci a voz. Eu tinha que fazer ela
confessar. Primeiro eu pensei que ela era fraca. Eu só ia ter que agarrar e ela ia me
contar tudo. Mas ela não dizia nada. Se ela ao menos falasse, eu tinha soltado.

OLGA O senhor a desamarrou, lembre. Ela gritou seu nome: Filinto. Era sua mulher. As
crianças estavam vendo, gritaram: Pai. O senhor os reconheceu, lembre.

FILINTO Não, não reconheci. Eu estava com minha faca na mão, com o gume afiado e
rondava a mulher que gritava e choramingava. Bati umas vezes na cara dela, para ela
parar com aquele nhenhenhém nojento. Olhei bem para ela e era uma estranha. Uma
mulher estranha. Quem era aquela mulher? Eu não sabia. Eu só sabia o que eu tinha
que fazer. Eu tinha uma missão. Não posso demonstrar fraqueza. Meus assistentes
esperam pelo meu sinal, eles esperam que eu diga o que eles têm que fazer.

OLGA O senhor ama sua mulher. O senhor Filinto nunca lhe faria mal. O senhor não fez
isso. Foi só um sonho. Um dos seus pesadelos. Invenção da sua mente.

FILINTO Ela suplicava. Eu fiquei com ódio. Eu não sou fraco, não sou covarde. Não me
deixo amolecer. Peguei minha faca e dei dois cortes cruzados no peito dela, assim e
assim, uma cruz no peito dela, que ela vai carregar para saber que tem que falar quando
eu quiser. O sangue começou a escorrer do corte. Eu afrouxei as cordas, ela estava
muda, eu saí dando uns talhos rápidos onde o corpo estava preso pela corda. O sangue
minava da pele. Ela caiu pra frente e deitou no chão. Apertou a mão nos seios cortados.
Aí eu reconheci. Era minha mulher. As crianças choramingando. – É Olga.

19
Escuridão.

O tique-taque de um relógio. Sobrepõe-no o bater de um coração.

20
MONÓLOGO V
O paradoxo da tortura, a tortura é: Não saiba nada, lembre que não era nada. Esquecer o
que foi. Eles têm que acreditar que você não sabe nada, mas você sabe tudo, tem que
guardar para si sua memória, lembrança, saber, para se manter você mesmo. Portanto: a
um só tempo esquecer e guardar a absoluta lembrança. Despistar o torturador para longe
de sua ultra-lembrança, de sua hiper-memória, diante dele, em cada momento, o sempre-
presente inanimado, o passado vazio REPRESENTAR.

A tortura é: para cada palavra dita, cada frase dita, encontrar uma palavra não dita, uma
frase não dita. É, para cada sílaba pensada, encontra uma outra não pensada, nem
mesmo imaginada, que seja quase verdadeira. Verdade e invenção nunca se deixam
equilibrar. Para cada história há uma outra. A verdade é constantemente sabotada pela
fantasia, pela força da imaginação. A verdade é a força da imaginação.

Ante cada frase falsa produzir uma verdadeira, tomar uma pela outra, do falso fazer
verdade, frases de verdade, homens de verdade. Na tortura com falsos homens homens
de verdade são feitos. Por fim de sua verdade morre o homem. Porque ele é de verdade,
porque na verdade foi, porque é, homem.

21
PAS DE DIABLE IIII
Dois guardas trazem Ana até Filinto. Eles permanecem de pé, à porta.

FILINTO Bom dia, Ana Libre, minha bela. Pausa. Minha flor do dia, hoje é dia de
maquiagem, de tratamento. Ele ri. Me chegou ao conhecimento que vocês protestariam
quanto ao excesso de gente nas celas apertadas. Pausa. Pulga... Percevejo... Rato...
Barata fazendo barulho à noite. Roc-roc-roc. Ele imita o barulho de rói-rói. Nojento.
Desconfortável. Pobrezinhas. Pobres pobres pobres moças. Ele ri. Aposto que vocês já
estão todas piolhentas, cobertas de parasitas, de aranhas tecendo teia grudenta no
cabelo de vocês, pulgas fazendo ninho nos pentelhos, se assentando para chocar, e as
mosquinhas de esgoto se aninhando no sovaco. Pausa. Você é igual a um viralatazinho
com minúsculas criaturinhas rastejando e se multiplicando na sua pele, você, hospedeira
de parasitas aproveitadores, até que um dia você seque, sugada até a morte; vai ser
jogada na água quente, a pele arrancada, direto pra panela... hummm, carne de
cachorro, preparada no agridoce... pequena iguaria, você... Ele ri. Mas isso é o que nós
queremos evitar, por enquanto, nós não queremos que um tão desapetitoso piolho
encravado caminhe pelo corredor. Deixa que eu espanto os insetos. Eu vou te deixar
bonita. Para os guardas. Minha paciente aqui gostaria de passar por um pequeno
tratamento. Ele ri.

Os guardas começam a despir Ana, que se debate violentamente. Ao invés de suas


roupas, cobrem-na com uma bata de cabeleireiro, que nem lhe chega aos joelhos. Ela é
de plástico e transparente, mas em muitos lugares riscada, embaçada ou manchada;
percebe-se que Ana não é a primeira a vesti-la. Filinto põe um avental cinza de
cabeleireiro, que os guardas abotoam atrás. Eles voltam a se posicionar próximo à porta.

FILINTO indicando uma cadeira a Ana Senta aí.

Ana derruba a cadeira com um chute. Os guardas, ante um gesto de Filinto, a levantam
novamente.

FILINTO Fique à vontade. Ele ri.

Ana dá um chute na cadeira. Os guardas a levantam, permanecem de pé, colados em


Ana. Filinto dá tapinhas no assento da cadeira. Ana repara nos guardas a sua volta,
senta. Os guardas voltam à porta. Filinto recebe deles uma tesoura de ponta. Ele testa o
corte: puxa um de seus fios de cabelo e o pica satisfeito no ar. Ele ri, aproxima a tesoura
de Ana e a acaricia com a ponta, corre-a pela cabeça de Ana, pelo nariz, boca, ombros,
nuca, braços, seios etc.

FILINTO Ana Libre, flor do dia, você tem um namorado, não é mesmo? Alto, magro, forte.
Pausa. Com certeza pegou você muitas vezes na saída do teatro. Conheceu você lá,
hum? Foi à apresentação e viu você... Julieta, Ofélia... Antígone... Ele ri. Pausa. Revele a
mim o nome dele, Julieta. Ele ri. O nome dele é Eugênio, não é? Ele ri. Ele escreveu
panfletos. Maus, maus panfletos, manifestos contra o governo, subversivos; incitou o
povo com seus discursos, o povo, que vocês convocaram clandestinamente com seus
tambores, em bares de periferia, no fundo dos restaurantes, de noite na praia. Me diga o
paradeiro dele agora, quem são os amigos de vocês, os comparsas, confie a mim...
Pausa. ... Agora eu sou seu namorado, Eugênio... Eu sou seu namorado...

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Ana começa a cantar com voz amedrontada. Filinto recebe dos guardas um par de luvas
de borracha, como as que se usa para tingir cabelos; ele as ajusta com prazer a cada um
de seus dedos.

ANA E à noite ele há de ir pra casa

e não me tornará a ver.

Pouco me conhecia

e talvez me ame ainda.

FILINTO Eu sou seu namorado–

ANA E um dia o meu laço vermelho

ele há de achar largado à porta.

E um dia ele há de ler sobre a parede:

Aonde foram os que sumiram.

FILINTO Eu sou seu namorado–

ANA Nos conhecemos pouco

e talvez me ame ainda

e um dia eu vou chegar em casa

e um dia vou voltar a vê-lo.

Às últimas palavras dela, Filinto toma-lhe mechas de cabelo e as corta com a tesoura de
ponta. Ri-se.

Escuridão.

Batidas de um coração.

23
MONÓLOGO VI
O que você vai dizer de mim depois? Que eu fui sua amante? Que eu era útil para você?
Que eu era fria? Que a gente não se suportava? Que era um tormento essa vida forçada
a dois? Que a gente teria saído dela com todo prazer se não fosse covarde demais para
isso? O que você vai dizer a eles da nossa filha? Um acaso do amor. Eles acreditam que
foi um grande, um violento amor. Você, Luís Carlos Prestes, e eu, Olga Benario. O que é
que eles sabem? O que é que se pode exigir deles? A gente ficou muito tempo só.
Vivendo a dois num esconderijo. Como numa ilha? O que você levaria para uma ilha
deserta? Pausa. Um homem. Não, de novo, deixa eu pensar mais um pouco. Pausa. Ela
ri.

Dois homens. Para enfiar eles alternadamente entre as minhas pernas. Ela ri. Eu não tive
escolha. Fiquei com o que estava lá. Fria fria fria você sempre me jogou na cara que eu
era fria. Pode ser que eu fosse, pode ser que eu seja. Pode ser, eu só estava com medo.
Mas será eu vou logo me atirar em qualquer perna-de-calça? Ajudaria de alguma coisa,
se eu tivesse te amado? Ainda em vida vão construindo seu mito. E eu? Eu fui a sedutora
amante de Luís Prestes, Cavaleiro da Esperança, que se deixou engravidar dele sem
pensar duas vezes. Ela não queria. Foi com ela que aconteceu, não com ele. Seria essa
minha contribuição para a revolução mundial? Eu tinha uma missão partidária a cumprir, a
qual acidentalmente se adequou à minha convicção e também não foi de todo inseparável
da minha inclinação humana. Talvez eu tenha te amado. Então eu também sou a prova
viva – ainda – de quão longe uma mulher pode ir hoje em dia. Um homem, uma filha, uma
carreira – talvez até a fama, tudo é possível. Eu também sou uma mensageira da
esperança. Vou trazer o futuro, para todas as moças, mulheres, mães. É esse o meu
papel nesse jogo. Se houver alguma biografia minha, nela eu vou ser bonita e sagaz e
brava e conseqüente e corajosa e de coluna sempre ereta. Vai ser a melhor prova de que
não existe mulher intelectual. Junto com os cabelos elas aparam o intelecto. Minha
história é: Eu vou morrer na câmara de gás. É isso que vão dizer à minha filha.

Para que ela me tome de exemplo, todas as crianças devem me tomar de exemplo. E
então serem como eu. Aí todas vão ter uma firme convicção e, por essa convicção, vão
morrer na câmara de gás. E se no fim os carrascos da câmaras de gás não tiverem mais
ocupação nem inimigo que eles possam sufocar, vão morrer todos do tédio de si mesmos.
E o mundo vai ficar vazio. E aí eu vou ter sucedido em extinguir a humanidade. Eu, o mito
do qual vivia o mundo.

Ela ri. Você tem razão. Eu era fria. Só raramente é que eu ria. Minha beleza era bem
ensaiada, feiúra caiada nota dez. Sempre gargarejei dentifrício por causa do mau hálito e
meu juízo nunca chegou a ser do tamanho de uma ervilha. Pausa. Amor? Ela gargalha.

24
DUETO II: NEGATIO
OLGA Genny Genny Genny. Eu seguro sua cabeça nas minhas mãos, acaricio você, seu
corpo deitado juntinho do meu, Genny. Conto história para você, contanto que Ana
esteja longe, contanto que o tempo esteja parado, contanto que estejamos sós. Repara.

GENNY Como minha mãe? Pra me acalentar?

OLGA Como uma mãe. De noite, quando troveja, para espantar o medo. Presta atenção,
é uma história do interior, onde só tem mato, morro e água e, de quando em vez, uma
ou outra casinha.

GENNY Onde?

OLGA Em Minas. A gente morou um tempo em Minas, eu e o Luís.

GENNY Na cidade, num esconderijo.

OLGA No interior. Um novo começo. A gente alugou um sitiozinho. Uma casa linda. Era
piso de pedra, lajota avermelhada, cortada em quadrado. A cada luz do dia mudava de
cor. Na frente da casa uma varanda de dormente. Quando chovia, o chão de terra batida
afundava nos sapatos e a gente jogava eles lá, largava eles até que desse para raspar a
capa de barro seco. Meio-dia os cachorros deitavam na varanda, na frente da porta. Se
algum estranho passasse ali perto, eles avançavam rosnando e disparavam contra ele,
feito dois demônios desgrenhados. Só Luís que conseguia acalmar eles. Quando
calçava a bota e pegava a espingarda, eles disparavam estrada abaixo, no caminho do
rio, e ficavam esperando cair alguma caça diante do focinho.

GENNY A casa era estreita, pequena. Vocês mal conseguiam se mexer. Dormiam no
chão.

OLGA A casa tinha três compartimentos. No pôr-do-sol, da rede a gente ficava olhando a
trilha que as formigas traçavam pelo quarto. Uma vez teve uma invasão de formiga
voadora vermelha. Elas entraram por uma das janelas do porão, marcharam pro canto
onde se cozinhava, entraram numa vasilha de goiabada e saíram pelo outro lado, até
que finalmente subiram pela parede, passando pelo pau do papagaio, deixando a pobre
da Rosita quase maluca. Ela tagarelou “morrebichomorre”, até ficar rouca, aí desistiu e
fugiu pra acácia na frente da casa. Pausa. Na sala grande tinha um forro embutido de
dormente, aonde se chegava com uma escada. A gente dormia lá em cima.

GENNY Vocês foram procurados, seguidos, observados. Filinto estava no rastro de


vocês. Nenhum lugar seguro, nenhum tempo de descanso, nenhum pensamento até o
fim–

OLGA Uma vez a gente foi assaltado enquanto dormia. A porta e a janela tinham ficado
abertas. Os ladrões vieram de noite e levaram tudo que encontraram na sala: panela, um
saco de banana passa, um rádio. Eram nordestinos indo para o Sul, mendigos famintos,
gente pela qual lutávamos.

GENNY Vocês não tinham espaço. Não podiam se deslocar. Porque estavam na pista de
vocês, rostos procurados, ninguém podia ver, ninguém podia reconhecer vocês. A

25
comida era trazida em segredo, sair só de madrugada, nunca dormir, ficar sempre
alerta–

OLGA Ao redor da casa tinha um bananal, mas não era a gente que cuidava. Na casa
não tinha água encanada e a gente precisava ir buscar com balde no rio que irrigava a
plantação–

GENNY Não é verdade–

OLGA Eu tinha o ombro roxo, do peso da vara–

GENNY O que você está dizendo não é verdade.

OLGA Luís tinha construído um chuveiro um logo atrás da casa: duas varas grandes de
bambu, amarradas e enfiada uma na outra, desviando a água de um riachinho–

GENNY Eu conheço isso de outro jeito, um jeito melhor–

OLGA Eu ficava um tempão ao pé do muro onde terminava o cano, escutando a água


correr no meu corpo–

GENNY Mentira, mentira.

OLGA Ela falava comigo quando batia na nuca e escorria pelo pescoço, pelo ombro,
pelos seios, murmurava entrando no umbigo, respingava no cotovelo, na coxa, no
joelho–

GENNY Mentira, mentira, tudo mentira. Cala a boca. Acaba logo de vez com essa
conversa. Eu não quero mais ouvir seu conto de fada. Chega. Eu não sou sua filha, para
você ter que me ninar.

OLGA Você tem é que prestar muita atenção em mim, quando eu tiver alguma coisa pra
contar. Você acha que eu falo pra me divertir, sua coração de galinha, você lá sabe de
nada, choramingando de noite, rangendo dente enquanto eu tiro sangue da língua pra
pensar em alguma história pra lhe contar, pra ver se você pára com sua choradeira e
começa a ser gente, a ser uma mulher que olha na cara, mas você não consegue, sua
fracote, escondida debaixo da minha saia mordendo a ponta do lençol em vez de
arranjar um homem, sua meninazinha burra, chorona nojenta–

GENNY Não, eu não quero mais ouvir você, cala a boca, quem você pensa que é para
achar que pode me fazer ter coragem, eu não quero mais ouvir suas histórias, tudo
enganação, tudo mentira, você não é melhor, não é diferente de ninguém aqui, eu não
quero ficar igual a você, não quero ter que morrer, eu tenho medo, eu tenho medo, e
você, você brinca, você conversa, Olga, eu não acredito em nenhuma palavra sua, você
nunca existiu, nem você nem esse seu Luís, pra que foi que prenderam a gente, por que
eu tenho que ficar aqui, por que–

OLGA Então é assim. Então é assim. Pois então eu vou lhe dizer como foi. Preste
atenção, mais essa vez, você não é mais criança, pode tranquilamente ouvir a verdade.
Calma, fica calma e presta atenção: Por coisa de um ano foi tudo bem. Casa no Rio.
Clara. Espaçosa. Amigos. Saídas, ainda que sempre com cuidado. E aí desaparecer.
Esconder num abrigo estreito, escuro, abafado. Meses. Sem poder nunca se arriscar a ir
na rua. Sem ver ninguém. Porta e janela trancada, pra nenhum passante ouvir nossa
voz. Só acendendo luz num quarto vedado, pra ninguém ver nossa sombra. Vez por
26
outra eu não sabia se era noite ou se era dia, e às vezes eu acordava no meio da noite
pensando que estava sendo sufocada–

GENNY Nem fonte, nem rio ali perto para pegar água, o ombro roxo do peso da vara...

OLGA De noite a gente podia sair no pátio estreito, que tinha um muro mais ou menos da
nossa altura; a gente se cobria com uma manta e usava chapéu, com medo que algum
vizinho reconhecesse nosso sexo ou nossa cara, de noite quando a gente andava ali,
em círculo, de noite... Um vez por semana vinha um companheiro e trazia pão e queijo e
leite. O resto do tempo a gente vivia de conserva. Ele trazia jornal também, o nome do
Prestes sempre estava lá e a descrição de uma mulher desconhecida.

GENNY Uma casa linda. Um novo começo. O piso de pedra, lajota avermelhada, Varanda
de dormente. Os cachorros na porta. Caçada na beira do rio. Ela ri. É nisso que você
quer acreditar.

OLGA A gente tinha muito medo de ser encontrado. A gente não sabia por mais quanto
tempo ia agüentar. Aí nosso companheiro parou de vir e a gente entendeu que ele tinha
sido preso. De noite a gente espreitava cada passo e de dia tremia cada vez que uma
criança chorava.

GENNY Assalto enquanto dormiam. Portas e janelas abertas. Histórias de ladrão. Ela ri.
Eles levam o que encontram: panela, banana, rádio. Nordestinos indo pro Sul, famintos,
cansados... Gente pela qual lutávamos. Ela gargalha.

OLGA Durou catorze dias. Uma noite eles arrombaram a porta. A gente arrebentou uma
janela, quis fugir, as ruas todas cheias de soldados com metralhadora automática à
mostra, uniformes em todos os jardins e em todos os telhados. Eles tinham passado a
semana vasculhando a cidade. Ela ri. Eles prenderam Luís ainda em roupa de dormir... e
descalço... e eu gritei “Não atirem, pelo amor de Deus não atirem”... e arrastaram ele
pela rua assim mesmo como estava, junto com dois meganhas, um de cada lado, eles
de uniforme e de coturno pesado e Luís descalço... de pijama, mãos ao alto.

Escuridão.

Batidas de um coração.

27
MONÓLOGO VII
Meu coração é uma gaiola. Mas no meu colo você pousou a semente da sua ninhada,
Luís Prestes. Cresce na minha barriga esse pássaro. Logo ele vai sair do ovo, o pequeno
escolhido, o bichinho atrevido. Vai ficar prisioneiro. Vai ficar prisioneiro para sempre.

Temos que falar. Ele quer fazer a gente falar. Ele quer que a gente cale. Quem for mudo,
fica louco. Se você chegar a viver eu vou lhe contar. Você nunca vai conhecer nosso
vizinho de cela. É um tenente da força aérea. Ele atendeu um pedido meu. Uma vez. Em
segredo. Na caminhada no pátio. Ele desenhou para mim os aviões da força aérea,
desenhou com um toco de lápis cinza nuns restos de papel. Sabe o que eu fiz com eles?
Sua mãezinha toma conta de você. Avião de combate, de lançamento, de ataque,
bombardeiro, avião de caça: caça diurna e caça noturna, e ainda o pequenininho para
salto de pára-quedista, dá uns desenhos lindos. Genny desfez uma manta velha e bordou
os aviões de combate, de lançamento, de ataque, bombardeiro, o de caça e o de pára-
quedas no seu babador, na blusinha e no calçãozinho. Nossa cela está toda enfeitada
com brinquedinhos de criança, brinquedos de guerra. Na nossa cela a força aérea
balança pendurada num varal esperando pra ser vestida. Você vai ficar linda nela. Igual
às criancinhas limpinhas e elegantes que vão passear no parque de mão dada com a
governanta. Domingo. Quando elas podem passear.

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Trio II: Dementia
Dois guardas trazem Ana de volta à cela. Os cabelos dela bem curtos, como se
devorados. As mesmas roupas de antes do corte de cabelo têm, no entanto, partes ao
avesso, botões trocados etc. Ana está perturbada e mal percebe o mundo à sua volta.
Genny grita.

OLGA baixinho Ana. Pausa. Que foi que... que foi que fizeram com você... Pausa. Puta
que pariu, Ana, o que foi que fizeram com você?

GENNY Ana... Pausa. Ah, meu Deus ah meu Deus ah minha Santa Virgem Maria.

OLGA encosta em Ana com cuidado Ana... meu amor...

ANA inquieta Eugênio... Eugênio...

OLGA Ela está dizendo o quê?

GENNY É o namorado dela.

OLGA tenta outra vez acariciá-la Ana, meu amorzinho, meu amorzinho...

ANA Eugênio, vai embora, vai embora, eu não quero mais ver você, vai embora, você me
machuca... não...

OLGA Pronto... Pronto... sou eu, sou eu, Eugênio, seu namorado, Estou aqui com você,
anda, segura minha mão, confia em mim, sou eu, seu namorado...

ANA Não não não... Sai, me solta, sai daqui... Eu não amo mais você, você me obriga,
não me larga, me solta, por favor, me solta... não...

Genny e Olga percebem o que aconteceu; Olga desvencilha-se de Ana.

GENNY Filinto!

OLGA Eu devia matar ele.

GENNY É, a gente devia fazer isso e amanhã ao invés dele um novo, ou dois, ou um
bando inteiro.

OLGA Então pega uma faca afiada e rasga a veia, primeiro a minha, depois a sua, pra
esguichar logo o sangue todo e ele matar a sede até morrer.

ANA Vermelha

a luz em frente a porta

Perdi meu lenço de cabelo

Não tenho mais como encontrá-lo

29
Perdi também o meu amado

Não tenho mais como encontrá-lo

Vermelha

a luz em frente à porta

se ele encontrá-lo

será meu

Ela ri.

Escuro.

Batidas de um coração

30
MONÓLOGO VIII
Estava tão mal preparada para esse dia, quando ele veio. Eu pensava que eu não
conseguia mais me defender. Eu teria deixado acontecer, sem resistência. Meu bebê vai
nascer na Alemanha. Eles vieram para me pegar e me levar para o navio. O navio com a
suástica na bandeira está ancorado no porto e espera por mim, para viajar comigo para a
Alemanha. Devo fazer uma viagem por mar. Mas meus colegas de prisão querem impedir
isso. Eles não querem deixar eu ir. De cela em cela, entre todos os prisioneiros, há um
código: Quando eles vierem levar Olga vão enfrentar um motim. O navio com a bandeira
da suástica está ancorado desde ontem no porto. Desde ontem a gente está acordado,
espreitando os passos de Filinto. Enfim: longos passos pelo corredor. Um dois três um
dois três. Filinto Müller, a pancada da bota dele, dois três, os ajudantes dele, a sola dura
de cada um. Eu já escuto a batucada, começando baixinho, se propagando com Filinto,
antes e depois dos passos dele. Batucada, batucada. Prato de alumínio na porta da cela,
sapato de madeira nas barra da grade, punho nu contra a parede, a palma da mão no
chão, colher, garfo, copo no cano de ferro, primeiro abafado, depois mais alto, mais alto
mais alto mais rápido, rápido, os gritos de “Pega Filinto Müller, taca fogo nele!” no passo,
no passo, Filinto vai mais ligeiro, tangem ele, as celas todas de pé, os guardas em pânico
no corredor, batendo de cacetete nas celas, pegam os cachorros, dessa vez é sem
sentido, derrubam eles no grito “Pega Filinto Müller, taca fogo nele!” Genny também
batuca, batuca feito uma fera, corre de parede a parede, da porta à parede e volta, bate
em tudo. Ela grita “Vai, Ana, batuca, batuca, batuca, tudo depende disso, do quanto você
batuca, tem que batucar feito uma louca”. Ana entende. Ela pega o penico, olha se está
vazio. Emborca ele e diz “Esse é meu tambor”. Ela sobe na cama, começa a batucar.
Senta ereta, de olho aberto pra frente. Não vê nada. Ela, ela também escuta os passos
chegando mais perto. E batuca. “Mais alto, Ana, mais alto”. Eles não escutam nada. Mais
alto. Ana batuca mais alto. E vai mais rápido também, mais rápido. Começa a zunir. Faz
um zunido. Zunido grave de bicho. Devagar ela abre a boca e deixa escapar um som
terrível. Mais alto. Mais alto. Ela grita. Ela grita ela grita ela grita ela grita. Eu tapo o
ouvido, aperto a mão no ouvido com toda a força que eu tenho. A batucada triunfa. Ele
recua. Ele vai embora. Um dois três. Os dois seguem ele. Dois três. A batucada festeja.
As celas dançam. Música. A batucada é música. Fim.

31
QUARTETO
OLGA Da segunda vez vão conseguir. Da segunda vez, Filinto vai ser mais esperto. Não
vai cometer o mesmo erro duas vezes. Ele vai vir de novo, vai vir quando a gente menos
esperar. O navios no porto não hasteiam mais bandeira nenhuma. Nenhum tem nome
alemão. Mas no entanto um deles vai para a Alemanha, com o capitão alemão. Eu já
parei de lutar.

Ana tem uma latinha vazia de conserva à sua frente e está entretida em jogar pedrinhas
dentro dela. Por um tempo, tudo que se escuta são seus estalos monótonos.

GENNY observa Ana por um tempo e então a atiça Tique taque tique, o tempo passa torto
e junto a gente entorta. Pausa. Para Olga. Não tinha uma promessa? De um
passaporte? Do direito de permanência?

OLGA Eu vou pensar em vocês quando eu olhar pras roupinhas do bebê. Em vocês
duas. Toda vez que eu tirar alguma coisa da sacola e vestir no bebê eu vou lembrar que
foram vocês que costuraram.

Passos. Entram Filinto e dois enfermeiros.

FILINTO Chegou a hora. Vou deixar você ir para o hospital. Você vai ser examinada.
Afinal, é o que você sempre quis. Para dar tudo certo na hora do parto. Ele ri.
Marchando.

GENNY Isso é uma cilada. Ele não vai levar você pro hospital. Olha pra eles. Eles têm
cara de enfermeiro? Você não vai conseguir se defender.

OLGA Eles não se demoram.

FILINTO Fim de jogo.

ANA Meu namorado. Ela ri. Estão vendo? Meu namorado chegou. Ela se aproxima de
Filinto. Meu amado, meu amado, dança a ciranda ao meu lado, nessa vida, nessa vida,
eu que sou sua querida. Não está me reconhecendo? Está me reconhecendo? Pausa.
Quem me dera uma faquinha, amolada feito rinha, quem me dera um facão, pra cortar
teu coração.

Filinto faz sinal para os guardas segurarem Ana. Olga se adianta e puxa ela para longe.

OLGA Vem cá, Ana, me ajuda, tem umas coisas que eu quero empacotar.

ANA Ele deve morrer, morrer ele deve, minha senhora, porque busca a boca de outra, ou
porque não é aquele pelo qual o tomo? Por ciúme ou precisão. Quem me dera uma
faquinha, amolada feito rinha...

OLGA Aqui, pega isso e isso e empacota.

ANA Eu nunca fui criança. Para quê você quer ter uma? Não tem papel para criança.
Todos sentimentalóides.

FILINTO Nada de empacotar. Perda de tempo. Sem carga a gente segue mais fácil.

32
GENNY Ela, ela não vai com vocês. Ela não pode ir. Vocês querem matar ela.

FILINTO Indicando os enfermeiros, fala a Genny Quer que lhe dêem um sedativo?

OLGA Está tudo bem, Genny. – Só um par de sapato. Uma manta para o bebê. Um
pente.

FILINTO Conduzindo!

GENNY Olga!

ANA Olha, na palha, que se escondeu ali, é a pequena Suse, que nunca mais vai rir...
Ah, esqueci completamente de contar as notas, agora vou ter que começar tudo de
novo...

Escuridão.

Batidas de um coração.

33
MONÓLOGO IX
Me trouxeram para Hamburgo. O navio se chamava La Coruña. Eu ficava no porão, numa
cabinezinha de madeira, e escutava os passos dos homens sobre a minha cabeça. De
noite tinha um que às vezes me deixava subir no convés, feito um cachorro que se deixa
ir mijar na esquina, e aí eu via as estrelas e sentia o cheiro do mar. Fresco. Três semanas
de viagem. Em alto mar. Tudo água. Sede. E o mar indo assim: revolto. Tudo balançava
pra cima e pra baixo. Eu vomitava e vomitava e só tinha as mãos para limpar a baba
fedida. Na minha barriga uma vida gritava: Fome. Não se parou em nenhum porto.
Ninguém podia me encontrar. Me aguardavam no cais. Um carro da GESTAPO, grade
nas janelas, me trouxeram para Berlim. Era lá a minha cela. Um quarto só para mim. Uma
cama de alvenaria. Minha barriga feito um barril. Eu deitei no cimento e dei à luz um bebê
Anita. Assim. Minha filha Anita. Eu tinha uma filha Anita e estava na prisão. Me permitiram
ficar com ela na minha cela, enquanto eu pudesse dar de mamar. Nisso foram catorze
meses. Um ano e dois meses. Todo dia eu colocava a cesta dela por uma hora no pátio.
Ar fresco. A primeira coisa que ela viu: minha cela. Minha paredes. Lá ela aprendeu a
andar. Minha cela media quatro passos e meio de adulto por dois e meio. Quantos passos
de criança. Ela ainda podia ter aprendido a soletrar: O.L.G.A. Decifrar a escrita na minha
parede. Anita se foi. Meu bebê se foi. Levaram ela embora e me trouxeram pro campo. Há
três anos estou no campo de concentração. Há três anos ela está com parentes em Paris.
Ou será no México? Não sei. Alguém está tomando conta dela. Agora ela está com um,
dois, três, quatro, cinco anos e vai esquecer sua mãe.

34
EXITUS
Estou sozinha.
Este é meu – canto.
Unidade de extermínio.
Cheguei até aqui.
Bernburg.
Chamo o lugar pelo nome.
Sou Olga, estou sozinha.
Esse é meu canto vazio.
Uma – câmara.
E sinto o cheiro do gás. Dizem que é inodoro.
Estão errados.
Vou inspirar bem fundo. Meus pulmões se enchem pelas últimas vezes com gás Ciclone-
B.
O mar e amendoeiras são o que eu inspiro.
Esperei tanto pelo mar
tão bom o ar daqui tão fresco
não é abafado, como o da minha casa
em minha cela
eu desabrocho
sinto vertigem
o ar puro faz
corar as faces
fico mais leve
coça a garganta
eu abro bem os olhos sobre a vasta vasta terra
meu coração bate calmo
Leve eu sigo viva
Inspiro outra vez
Escuridão.

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