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Empregos do hífen após o acordo ortográfico http://www.academia.org.

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Academia Brasileira de Letras

Empregos do hífen após o acordo


ortográfico
Evanildo Bechara [1]

A primeira questão formulada a esta seção diz respeito ao hífen, "campeão das
dúvidas": pára-lamas ou paralamas?, pára-quedas ou paraquedas?

Começamos por dizer que os primeiros ortógrafos das línguas modernas (as antigas
que lhes serviram de modelo não conheciam este diacrítico e as palavras se sucediam
na escrita sem espaço entre si) foram responsáveis pelas dificuldades com que hoje
lutamos. Em geral, a cada diacrítico se atribuiu uma função específica: o acento agudo
marca a vogal aberta da sílaba tônica (fé, avó, contará); o circunflexo assinala a vogal
fechada da sílaba tônica (vê, avô, câmara); o acento grave, a crase (vou à cidade),
fenômeno que era neste caso marcado na escrita com acento agudo (vou á cidade),
porque pela fusão de dois fonemas iguais resultava um só de timbre aberto.

No caso do hífen foram os ortógrafos acumulando funções distintivas de natureza


fonética, gramatical (distinção de classes de palavras), semânticas e até estilísticas, e
como não se serve bem a dois (muito menos a vários) senhores, o emprego do hífen
passou a ser um desafio para a normatização pelos ortógrafos, e uma infernização
para os utentes que dele precisavam ou assinalar, ou deixar de fazê-lo, na escrita.

O problema não é exclusivo atributo da nossa língua; os franceses, que sempre


serviram de modelo para tantas novidades introduzidas em Portugal e no Brasil,
também se veem neste mesmo apuro. Quando os ortógrafos da França, separando-se
da tradição das outras línguas românicas, começaram a se servir mais

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amiudadamente do traço de união para representar na escrita a avalanche de


neologismos compostos que designavam o progresso nas ciências, nas letras e na
tecnologia do séc. 19, eruditos e filólogos de visão os alertaram para as dificuldades
que viriam decorrentes do excesso da novidade.

Neste sentido, sugeriam a supressão do hífen, em favor da simples sucessão dos


elementos integrantes ou a soldura deles com alterações gráficas do primeiro
elemento quando terminava por letra muda. Tais conselhos e advertências partiam de
eruditos editores como Firmin-Didot (1868) e de filólogos como o acatadíssimo Arsène
Darmesteter (1874). A notável estudiosa francesa desses assuntos Nina Catach, no
livro Orthographe et lexicographie (Nathan, 1981), nos mostra como o hífen andou às
cabeçadas nos dicionários Littré (7ª edição, 1959), Petit Larousse Ilustre (1960) e
Robert (1970).

Entre as razões que justificariam a supressão do hífen estavam as inúmeras


dificuldades criadas por ele no plural de compostos, e na raiz dessas discussões
estaria o eco da solução apresentada em Portugal por Santos Valente e Francisco de
Almeida, em 1886: "As palavras assim justapostas podem unir-se numa só sem
precisão do hífen, quando a primeira é invariável (...)" (Orthographia Portugueza, pág.
64 n.1, com atualização da grafia). A ideia chegou até ao texto do acordo de 1986,
preliminar do texto aprovado em 1990.

Se tivéssemos seguido o caminho da audácia talvez tivéssemos contribuído para


normatizar mais inteligentemente dois quebra-cabeças da nossa língua: o emprego do
hífen e o plural de compostos, este último depois que os dicionários modernos
invadiram os domínios da gramática e começaram a fazer confusões.

Retornando à questão inicial, a Base XV do acordo acadêmico começa: "Emprega-se


o hífen nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e
cujos elementos de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem uma
unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio, podendo dar-se o caso
de o primeiro elemento estar reduzido." Segue-se exemplificação em que nosso caso
está representado pelos compostos com elemento verbal conta-gotas, finca-pé,
guarda-chuva.

E após a nota: "Obs. Certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa
medida, a noção de composição, grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva,
mandachuva, pontapé, paraquedas, paraquedismo, etc."

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O cuidado na redação "certos compostos" e "em certa medida" revela a falta de


estudos preliminares na área da lexicologia diacrônica e sincrônica do português para
determinar o afastamento da "noção de composição" dos termos listados, em
oposição a outros tranquila e confiantemente arrolados como evidentes compostos. É
questão delicada que constitui floresta virgem na investigação acadêmica. A
dificuldade começa entre os próprios ortógrafos e textos oficiais com a discordância
em assinalar aqueles compostos que "em certa medida" perderam a noção de
composição; para uns está nesse caso paraquedista; para outros, impõe-se aqui a
grafia com hífen. Por outro lado, como proceder diante de uma pequena lista de
exceção, como o fez o texto do acordo, listando apenas seis compostos aglutinados?

A nossa Academia, na impossibilidade de incluir outros compostos com as


características dos elencados, adotou as seguintes medidas à luz da prudência: a)
incluir na lista os possíveis derivados das exceções com o aval do acordo: se estavam
lado a lado paraquedas e paraquedista, poder-se-iam acrescentar paraquedismo,
paraquedístico; ao lado de pontapé, pontapear e pontapezinho. A outra fonte de
acréscimo à minguada lista de exceções viria com o aval da tradição ortográfica,
vigente nos dicionários e vocabulários portugueses e brasileiros: bancarrota,
cantochão, claraboia, montepio, passatempo, passaporte, rodapé, santelmo, varapau,
entre outros.

Se não foram assinalados no rol das exceções, continuam hifenados, dentro do que
dispõe a Base XV: para-choque, para-brisa, para-chuva, para-lama, manda-lua,
manda-tudo, ao lado de muitíssimos outros compostos evidentes.

O Estado de S. Paulo (SP) 01/02/2009

O Estado de S. Paulo (SP), 01/02/2009

URL de origem: http://www.academia.org.br/artigos/empregos-do-hifen-apos-o-acordo-ortografico

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