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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

ESCOLA DE BELAS ARTES

Rodrigo Rios Azevedo

À VISTA DAS PALAVRAS DE UM ARTISTA

Belo Horizonte
2019
E se, desse ato de se voltar para dentro de si, desse
aprofundamento em seu próprio mundo, resultarem versos, o
senhor não pensará em perguntar a alguém se são bons versos
[...] pois verá neles seu querido patrimônio natural, um pedaço e
uma voz de sua vida.
Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta
1) Introdução

No prólogo de A Imagem-Movimento, o filósofo francês Gilles Deleuze


(2018, p.11) designa certa dimensão teórica intrínseca ao fazer cinematográfico,
para ele os cineastas são aqueles que “pensam com imagens-movimento e com
imagens-tempo, em vez de conceitos”. Seguir este raciocínio pode nos levar a
investigar os pensamentos subterrâneos na obra de determinados cineastas,
pensamentos capazes de contaminar e se projetar nas imagens e nos sons de
um filme. Talvez mais, pode nos aproximar das ideias que residem no lastro
poético de cada construção artística.

É notável, no entanto, que alguns cineastas possuem escritos tão


fascinantes, célebres e potentes quanto seus filmes. Como exemplo, pode-se
destacar: dentre os teóricos russos, nomes como Vsevolod Pudovkin, Serguei
Eisenstein e Andrei Tarkovski; na França, os Cahiers du Cinéma também
possuem um legado relevante tanto nas palavras quanto no audiovisual; na
biografia do cinema brasileiro, nomes como o de Rogério Sganzerla surgem
quando destacam-se realizadores que conciliam a praxis e o exercício teórico
sobre a própria arte.

Existem também aqueles cineastas que não chegaram a normatizar uma


teoria, mas que, para além do que está imerso em seus filmes, compartilharam
suas reflexões em entrevistas, cartas, palestras, aulas ou mesmo em pequenas
anotações. Nessas fontes, encontram-se fragmentos de ideias complexas,
colocados em palavras por aqueles que caminham mais pelos terrenos das
imagens. Mas se pôr a ouvir o que estes artistas têm a dizer mostra-se, no geral,
uma atividade instigante e enriquecedora. Debruçar sobre suas colocações
verbais pode elucidar não apenas os contornos ocultos de seus trabalhos, mas
da arte em si. Muitas dessas colocações conseguem quebrar as molduras de
algumas obras, fazendo escorrer e pondo à vista parte do artesanato que as
construiu.

Jacques Aumont (2004, p. 11) – apesar de se deter em “examinar as


construções teóricas suficientemente elaboradas e explícitas, articuladas por
cineastas” – no livro As Teorias dos Cineastas, lança questões acerca da
quantidade, densidade e qualidade dos pensamentos deixados por cineastas
como Ernst Lubich, Friedrich Murnau e Alain Resnais, que não deixaram muitas
palavras sobre seus filmes.

Pode-se dizer que o iraniano Abbas Kiarostami dedicou sua vida aos
trabalhos artísticos – em destaque, pode-se citar a poesia, a fotografia e o
cinema –, mas nunca chegou a sistematizar uma teoria propriamente dita. É
possível perceber, ao estudar seus textos e as entrevistas que deu, que ele tinha
uma forma muito peculiar de olhar e interpretar o mundo e de enxergar certas
funcionalidades e forças das mais variadas formas de arte.

Diante disso, o presente trabalho destina-se a um breve percurso que


consiga externar, à vista das palavras de Abbas Kiarostami, sua perspectiva
sobre a sétima arte e, consequentemente, o que disso decorre. Em especial,
vamos nos deter no texto Duas ou três coisas que sei de mim. O objetivo aqui,
de certa forma, é costurar um texto tangencial a ideia das “teorias dos cineastas”,
que de acordo com André Rui Graça, Eduardo Tulio Baggio e Manuela Penafria
(2015, p.31), é um caminho metodológico pautado pela capacidade de “produzir
teoria do cinema através dos conceitos e reflexões por detrás do gesto de se
fazer cinema”.

2) Diante das palavras de um artista

O texto Duas ou três coisas que sei de mim1 foi lançado no Brasil pela
editora Cosac Naify, num livro que carrega no título o nome de Abbas Kiarostami.
Dentre outros textos presentes nessa edição, publicada em 2004, se destaca O
real cara e coroa, de Youssef Ishaghpour. Trata-se, portanto, de um livro onde
se entrecruzam as palavras de alguns exegetas e do próprio artista. O contraste
entre estes textos mostra-se muito interessante.

Se o texto de Ishaghpour extrai do cinema de Kiarostami um profundo


entrelaçamento entre realismo e ficção, além de exaltar a noção de

1Este texto é uma espécie de compilado de várias entrevistas dadas por Kiarostami ao longo de
10 anos: entre 1993 e 2003. Em especial, aqui reúnem-se vários fragmentos das conversas que
aconteceram entre o cineasta e os curadores Alberto Barbera e Elisa Resegott, que organizaram
pela primeira vez este material.
distanciamento na obra deste cineasta – sendo este último tópico, algo que
descende de seu trabalho como fotógrafo –, o texto cujas palavras são do próprio
Kiarostami segue um rumo bem diferente e aparece-nos muito mais como um
relato sensível da experiência do contato com a arte e de um aprendizado que
daí se originou.

A porta de entrada de Duas ou três coisas que sei de mim é uma


manifestação do realizador iraniano a respeito de uma inquietude que o moveu
em direção ao território das artes. Kiarostami (2004, p.181) diz ter se servido de
diversos instrumentos – “a pintura, as artes gráficas, a publicidade, a televisão,
o cinema, a fotografia, o vídeo, a poesia” – para dar conta do que, nas palavras
do artista, “ tem a ver com um problema de inquietude, com o fato de ter de
sobreviver de qualquer maneira e reagir a um profundo sentimento de
inadequação”. Essa reação, aliás, mostra-se permanente e passa a integrar e
mover a vida pessoal e artística deste diretor, isto é, tal reação se dá num fluxo
em que o transforma em conjunto com sua arte, esta que vai se
metamorfoseando, parecendo acompanhar as agitações do cineasta.

Alexandre Wahrhaftig (2015, p.1) abre sua dissertação de mestrado


versando sobre essa permanente inquietação em Kiarostami, que após filmes
como Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987) e Gosto de Cereja (1997), quis
fazer o que ele mesmo chamou de “filme de duas palavras” e, se distanciando
dos filmes narrativos que fazia até o momento, Kiarostami concebeu o filme Dez
(2002), onde a narratividade vista em seus trabalhos anteriores foi parcialmente
substituída, num gesto por onde o diretor apaga a “mise en scène em uma
acepção mais clássica e questiona a ideia de autoria”. Para Wahrhaftig, essa
inquietação se mantém e o diretor rompe mais firmemente a narratividade em
Cinco (2003), que seria um filme de “uma palavra”2.

Aonde ir depois de um filme de "uma palavra" como Cinco? Após voltar-


se ao movimento do mundo tensionando todos esses "termos opostos",
o caminho a seguir poderia muito bem ser a repetição do método, que
consistiria em seguir a trilha dessa curiosa contemplação manipulada,
variando apenas o material real sobre o qual o cinema se debruçaria.
Não foi isso que Kiarostami fez. Ele decidiu atravessar a tela do filme,
virar a câmera de costas para o mundo e de frente, agora, para o
próprio cinema (Ibid., p.2).

2Os títulos originais dos filmes citados neste paragrafo são, respectivamente: “Khane-ye Doust
Kodjast?”, “Ta'm e Guilas”, “Dah” e “Five Dedicated to Ozu”.
A filmografia de Kiarostami prosseguiu, até os seus últimos 24 Frames, se
transformando e provocando significativas reflexões até mesmo sobre o papel
do cinema. Isso parece ser um alicerce valioso para o realizador, algumas
questões pareciam servir de combustível para o desenvolvimento de seu
trabalho, questões como: até onde ir com o cinema? Para nós, talvez importe a
questão: O que, afinal era o cinema para esse diretor?

Kiarostami (Ibid.) diz não se lembrar de “nenhum sinal de vida cultural” em


sua família e não sabe ao certo como chegou a se tornar um realizador, ele
aponta para uma possível consequência de tudo isso: “Talvez seja por isso que
até agora não tenha conseguido encontrar uma definição de cinema”3. Não há,
portanto, uma noção cerrada do modo como ele classificava o cinema. O mais
próximo de definir essa arte é um conjunto de frases, em negativa, que ele é
capaz de traçar, ou melhor, o que ele consegue dizer é o que não gosta no
cinema. “Não gosto quando se limita a contar uma história[...] Não aceito que
subestime ou exalte o espectador. Não quero estimular a consciência do
espectador nem criar nele sentimentos de culpa”.

O desenvolvimento deste raciocínio, no texto aqui posto em foco, leva-


nos a uma conversa entre Abbas Kiarostami e o filósofo Jean-Luc Nancy4, onde
o cineasta diz que lhe incomoda certa relação fortemente intelectual que algumas
pessoas tem com os filmes, como se eles precisassem ser integralmente
compreendidos por um raciocínio lógico. Kiarostami (2016, p.42) compara,
então, o cinema com a poesia, dizendo que “a leitura de um poema estimula
nossa imaginação e nos convida a participar em sua completude”, já alguns
filmes parecem querer excluir o espectador de sua integralidade e servir apenas
como algo a ser interpretado, compreendido e, eventualmente, esquecido.
Kiarostami prossegue: “Acho que, para que seja considerado uma arte maior,
deve-se conceder ao cinema essa possibilidade de não ser compreendido”.

3 Todos os grifos do autor serão mantidos por este texto.


4 Como foi dito anteriormente, o texto Duas ou três coisas que sei de mim é uma compilação de
várias conversas de Kiarostami. Aqui, porém, acreditamos que vale apontar para o diálogo
original, feito com Nancy, e disponível no Catálogo Abbas Kiarostami: um filme, cem histórias,
livro feito para a mostra ocorrida no CCBB, de São Paulo no ano de 2016.
O estruturalismo, o pós estruturalismo, a semiótica ou a semiologia,
podem nos dar pistas interessantes sobre estas colocações de Kiarostami. De
fato, uma obra literária possui um tipo de porta aberta ao imaginário do leitor, as
palavras assumem formas imagéticas diferentes, dependendo do contato com
cada mente e dos diálogos com as memórias e vivências individuais de cada um
que lê determinadas palavras. Mas a especificidade do cinema parece mesmo
dificultar essa relação, e o faz, em algum sentido, facilitando o trabalho do
espectador, que, afinal, já lida com imagens prontas.

Sabe-se que a confiabilidade na tradição do ver e do visível nos direciona


a certas falsidades perigosas, como bem disse Jacques Lacan (1988, p. 92), ao
afirmar que “nesta matéria do visível, tudo é armadilha”. Esse tipo de ideia pode
ser encontrado nos mais variados exemplos cotidianos – por exemplo, na
recorrência dos assombros com coisas e pessoas que, descobre-se, são
diferentes do que aparentavam ser.

Tendo em mente esse entrelaçamento e confiabilidade no visível e, sendo


o cinema uma arte cujo alicerce são as imagens em movimento – o som só
chegaria mais tarde –, encontramos uma possível forma de compreensão do
fenômeno que parece incomodar Kiarostami. É como se o cinema, afinal, se
apresentasse, de forma quase mágica, à serventia de uma decifração do mundo,
quando, em verdade, o que acontece geralmente é apenas uma decifração da
própria narrativa. Edgar Morin (in XAVIER, 2003), numa tentativa de entender a
alma do cinema, aponta que essa mágica é apenas uma ilusão: projeção e
identificação, efeitos psicológicos muito potentes no espectador.

Ao retomar a obra do realizador iraniano, sabendo dessas colocações,


podemos compreender um pouco da transformação de seu cinema e de suas
desconstruções discursivas. Tomemos, a fim de exemplificar, Cópia Fiel (2010)5,
filme que parece sofrer um curto-circuito narrativo no meio de sua duração. Nesta
fita, a relação entre os protagonistas, interpretados por Juliette Binoche e William
Shimell, muda completamente: o casal aparentava ser de desconhecidos, agiam
como se estivessem encontrando-se pela primeira vez, de repente, passam a

5 Título original: “Copie Conforme”.


agir como se fossem casados, tivessem filhos e até mesmo a língua falada por
eles muda. Há, então, uma quebra da realidade ficcional ali proposta.

No já referido texto de Youssef Ishaghpour, mesmo tendo sido lançado


antes da estreia de Cópia Fiel, o autor já discorre acerca desse fenômeno que
desconstrói a narrativa do filme de 2011. Podemos, deste modo, perceber que
essa característica já estava presente em filmes anteriores e só é ressaltada em
Cópia Fiel. Para Ishaghpour, de forma coerente, os trabalhos de Kiarostami, mais
ou menos visivelmente, viam-se em rumos de “criar uma imagem do real, não na
intenção de contar uma história, mas do ponto de vista de uma poética da
restituição”. É como se a poética de Kiarostami estivesse menos interessada na
fidelidade do mundo do que em sua propriedade de cópia. O cineasta não está
querendo reproduzir o real, mas transportá-lo para uma realidade outra, para
uma existência em arte.

As quebras com a realidade servem ao propósito de afastar essa ideia de


transposição cristalina da realidade do mundo, mas preservando alguns
elementos fundamentais para se compreender essas relações humanas. O
cinema de Kiarostami parece estar vivo, se movimentando e se transformando
nos fluxos do espaço e do tempo em que é concebido.

Para concluir estes argumentos e essa visão de cinema, voltemos a Duas


ou três coisas que sei de mim, onde o realizador diz:

O espectador sempre tem a curiosidade de imaginar o que existe para


além de seu campo de visão: está acostumado a fazer isso
continuamente na vida quotidiana. Mas quando as pessoas entram
num cinema, por hábito deixam de ser curiosas e imaginativas e
simplesmente recebem o que lhes é oferecido. É isso o que procuro
mudar [...] As pessoas têm ideias diversas umas das outras, e eu não
quero que todos os espectadores completem o filme em sua
imaginação da mesma maneira, como se fossem palavras cruzadas
idênticas, independentemente de quem estiver resolvendo
(KIAROSTAMI, 2004, p.183).

2) Um diálogo entre Bazin e Kiarostami

André Bazin, não seria exagero afirmar, é um dos pensadores mais


influentes na sétima arte. Suas noções acerca do realismo no cinema, de sua
ontologia, ecoam pelos mais diversos cineastas, ao redor de todo o mundo. O
livro O que é o cinema? traz um compilado de alguns textos deste autor, dentre
eles há um chamado Montagem Proibida, onde Bazin (2014, p.90) afirma que “é
preciso que o que é imaginário na tela tenha a densidade espacial do real. A
montagem só pode ser utilizada aí dentro de limites precisos, sob pena de
atentar contra a própria ontologia da fábula cinematográfica”.

Montagem Proibida foi publicado na França, em 1956. Pouco mais de uma


década depois, em 1969, no Irã, Kiarostami entrava no Kanun, um instituto
voltado à produções feitas com o intuito de contribuir para o desenvolvimento
intelectual de crianças e adolescentes. Por muito tempo, Kiarostami foi o único
diretor a trabalhar no instituto e é aí que nasce seu primeiro filme: O pão e o beco
(1970)6, que conta a história de um garotinho que vê um cão na rua, começa a
brincar com o animal e, por algum tempo, é seguido por ele. Mais tarde, num
lugar muito distante de onde haviam se despedido, eles voltam a se reencontrar.
O relato é baseado num acontecimento real da vida do irmão do diretor.

Neste filme, Kiarostami teve um desentendimento com o diretor de


fotografia. O que aconteceu na filmagem, conta Kiarostami (2004, p.203), é que
“o cão não era adestrado e recusava-se a fazer o que lhe pediam”. O diretor
queria preservar, em um só plano, o garoto e o cão no espaço e no tempo do
acontecimento, já o diretor de fotografia apontava os benefícios do uso da
montagem e queria filmar determinada cena com vários cortes e
enquadramentos diferentes, Kiarostami queria um plano-sequência e ecoava,
sem que ele mesmo soubesse, André Bazin e a montagem proibida.

Para Bazin (Ibid.), “não é permitido ao realizador escamotear, com o


campo/contracampo, a dificuldade de mostrar aspectos simultâneas de uma
ação”.

Em consonância com o francês, Kiarostami (Ibid.) conta: “minha


predileção pelo plano-sequência resultava, já àquela altura, da necessidade de
poder acreditar no que se passa à frente de uma câmera”, necessidade
aparentemente de uma busca por algo da realidade que se possa agarrar ao
material fílmico – não a realidade em si, mas um algo visível da vida que se dá

6
Título original: “Nan va kuche”.
entre o tempo e o espaço. Ele ainda aponta que este desentendimento com o
diretor de fotografia – Fakhimi chegou a abandonar o set de filmagens sem dizer
nada ao realizador – foi algo muito benéfico para sua carreira, pois se ele não
tivesse mantido sua firme opinião nunca teria desenvolvido e aperfeiçoado o que
ele classifica como uma de suas principais características: “filmar uma cena
inteira num único enquadramento”.

A comparação entre Bazin e Kiarostami é provocativa. Eles trabalharam


com o cinema em ambientes muito diferentes, com referenciais absurdamente
distintos, mas parecem concordar em um aspecto fundamental e constituinte do
que é o cinema e como essa arte pode ser mais potente em seu movimento de
apreensão da humanidade e da natureza.

O pensamento de Bazin se dá detidamente em suas colocações teóricas,


em sua escrita, já o de Kiarostami aparece, como apontou Deleuze, inerente ao
seu conjunto poético. Porém, com o relato de Kiarostami acerca desse seu
desejo de preservar o plano único – mesmo que para isso houvesse um
rompimento com o diretor de fotografia e que o plano precisasse de quarenta
dias para ser gravado – podemos entrever sua consciência de ação e uma teoria
que não é menos pensada ou defendida que a conceituação do francês, dada
em palavras. O relato de Kiarostami sublinha uma teoria presente em suas
imagens.

3) Ecos da Revolução

“Com a chegada da Revolução, por cerca de quatro anos o cinema deixou


de existir no Irã. Por fim, até mesmo as salas de cinema foram destruídas,
incendiadas” (KIAROSTAMI, 2004, p.215).

Dentre as mais agudas vantagens de se pôr a ouvir, ou mesmo a ler, o


que os artistas contam sobre sua produção, está a possibilidade de reconhecer
o quão imbricada ela pode estar ao seu contexto político e social. Por vezes,
artistas são críticos da sociedade e do governo, por vezes dão forma a tantas
vozes que sofrem diante de decisões políticas que alteram e modelam a
sociedade em projetos governamentais que acabam por ferir tantas pessoas. A
arte vem sendo, há muito, uma forma de registrar e compreender a vida. E isso
parece se dar em dois níveis: o pessoal e o coletivo.

Olhando para o cinema de Kiarostami, podemos perceber o quão pessoal


é seu trabalho, o presente texto foi aberto ressaltando que sua arte se move
pelas questões que o fascinam e o inquietam. Ao mesmo tempo, é notável que
ali reside um trato com a sociedade iraniana como um todo.

No nível coletivo, o cinema como registro da existência se implica nas


consequências políticas, uma vez que elas reverberam por toda a sociedade, em
tantas e tantas vidas. Não é, como já vimos, um cinema que busca recompor,
em filme, a vida de um país inteiro, mas é um cinema que olha e que ouve
pessoas – sem nunca deixar de refletir sobre este gesto.

Close-up (1990)7 deve ser o exemplo mais célebre disto na obra deste
diretor. É um filme profundamente sensível sobre um farsante, alguém que
transformou a vida real em sua narrativa particular e como um ator passou a
interpretar outra pessoa: Hossain Sabzian se passou pelo cineasta Mohsen
Makhmalbaf e enganou uma família inteira, prometendo-lhes a participação em
um filme que nunca poderia realizar. Sabzian é preso, Kiarostami quer filmar o
julgamento, vai atrás desta história e conjuga realidade, ficção e encenação
como poucos filmes conseguem fazer. Por conta do caso, ou seja, de forma
indireta, o filme que Sabzian prometeu é feito, pelas mãos de Kiarostami.

Apesar da inegável força de Close-Up, ao propósito do presente tópico


serve mais trazer o filme Caso 1, Caso 2 (1979)8. Kiarostami (Ibid., p.214) diz
que a história desse filme é, como tantas outras, fruto de um acontecimento que
se desenrolou na escola de seu filho. Nas palavras do cineasta:

Um dia ele [meu filho] me contou que o professor expulsara um grupo


inteiro de estudantes, dizendo: ‘Se não me revelarem quem é o culpado
disso, punirei a todos’. Evidentemente, perguntei a ele sobre qual
deveria ser a sua atitude. Percebi que era uma boa ideia para explorar
[...] Decidimos visitar uma série de personalidades acadêmicas,
políticas e do cinema do momento para ouvir suas opiniões. Era o
último ano da era do xá. Íamos encontrar o diretor da televisão pública
para entrevistá-lo e mostrar-lhe o material, quando precisamente neste
dia estourou a Revolução [...] naqueles dias a situação se complicou.
Khomeini pronunciou um discurso famoso que convidava a delação: os

7 Título original: “Nema-ye Nazdik”.


8
Título original: “Ghaziye shekl-e aval, ghaziye shekl-e dovvom”.
professores tinham de denunciar os alunos e vice-versa, os vizinhos
tinham de denunciar os próprios vizinhos de porta, e assim por diante,
até entre os familiares. Inevitavelmente o filme foi censurado, pois fala
da liberdade.

Caso 1, Caso 2 é um filme que mudou ao longo de sua produção, a


destituição do poder dos xás pela instauração do fundamentalismo islâmico e a
transferência do poder governamental aos aiatolás contaminou a obra. A
censura escondeu o filme. Pessoas que ali haviam falado no valor da liberdade,
pregado sua importância passaram, na vida real, a apoiar as delações e os
fuzilamentos. Kiarostami (Ibid., 215) acredita que este possa ser o “filme mais
proibido do Irã, porque os homens de Estado mudaram de rosto, dizendo
incialmente uma coisa para depois fazer completamente o contrário e, portanto,
não querem ver essa sua transformação”.

As colocações de Kiarostami mostram como o fenômeno da arte é feito,


infere e resvala no nível pessoal e coletivo. O cineasta apontou que a censura
deste filme se deu não apenas porque aquelas informações podem provocar
alguma polêmica ou podem mesmo ser perigosas ao regime que se instaurou
após a Revolução. Não é para o caráter extremista da obra que Kiarostami
aponta e sim para as falsidades dos homens do Estado. Aqui, os farsantes não
são apaixonados por cinema, como era Sabzian, os farsantes são pessoas
poderosas e a censura do filme, Kiarostami escolhe dizer, é feita para que eles
mesmos não se reconheçam implicados em mentiras, o que desejam: que suas
imagens sejam esquecidas, suas incongruências apagadas pela censura.

É difícil encontrar e assistir Caso 1, Caso 2 – especialmente em boa


qualidade de exibição – para que de sua poética se extraia os pensamentos do
diretor. Mas trazer à vista as palavras de Kiarostami pode contribuir para que o
esquecimento tão desejado pela censura jamais aconteça.

Kiarostami não é nenhum revolucionário, claro, e não chegou a utilizar


seus filmes propriamente como uma ferramenta de oposição ao governo. Na
década de 1980, ele voltou a produzir filmes em território iraniano e ali gerou
algumas de suas obras mais renomadas. Mesmo sem este caráter
revolucionário, sua obra gerava disparos contra a censura rígida. Se as pessoas
e a natureza formam o conjunto que mais interessava ao cineasta, é comum que
transpareça em suas narrativas questões relacionadas ao governo que os cerca.
4) Conclusão

O encontro com as palavras e os escritos de um artista pode nos fornecer


um material muito rico para análise. O presente texto trouxe apenas alguns
trechos em que Abbas Kiarostami falou, de forma mais ampla, sobre seu
trabalho. Partindo desses trechos é possível notar como sua identidade artística
perpassa vários componentes de sua obra no cinema e como a política e a teoria
caminham juntos em sua estética. Aliás, olhar para suas colocações, nos
proporciona compreender como a arte é política em si mesma, muito em
consequência do que ela absorve do ambiente em que é concebida.

Não se tratou, vale sublinhar, de empreender uma busca para encontrar


respostas precisas e fechadas ou uma teoria dura sobre qualquer um de seus
trabalhos ou mesmo sobre seu cinema. Mais que tudo, percebeu-se a partir
desta breve análise que o cinema de Kiarostami possui um constante e variado
movimento de ruptura com o papel do espectador e uma autorreflexão
permanente. O constante em Kiarostami é, talvez sua inconstância, a mudança.

E, acreditamos, que o melhor jeito de concluir este texto é recorrendo mais


uma vez as palavras do cineasta. Desta vez, Kiarostami versava sobre um filme
específico, Vida e Nada Mais (1992)9, segundo filme da chamada trilogia de
Koker. Koker, aliás, não existe mais. Era um pequeno vilarejo de Gilan, no Irã,
onde foi filmado parte de Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, primeiro filme da
trilogia, que conta a trajetória do pequeno Ahmad para devolver ao seu amigo
um caderno apanhado por engano. Anos após as filmagens, precisamente no
dia 21 de junho de 1990, um terremoto destruiu toda essa região. Preocupado
com os garotos que haviam trabalhado em seu filme, Kiarostami viaja com o filho
para procurá-los. Essa viagem torna-se ficção; é encenada no segundo filme da
trilogia: Vida e Nada Mais. Ao falar sobre este filme, Kiarostami (2004, p.237)
acentua uma marca de seu cinema, ou melhor uma convicção: “a convicção de
que não existe uma ideia rígida e definitiva de cinema, mas que esta se constrói
conforme a realização de cada obra”.

9O filme também foi distribuído no Brasil com o título de “E a Vida Continua”. Título original:
“Va zendegi edame darad”.
5) Referências

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