RESUMO
Este artigo tem por objetivo relacionar algumas especificidades do patrimônio edificado recente, de modo a
fornecer subsídios para reflexões e práticas futuras com vistas à preservação de nossos monumentos. A
tarefa foi conduzida tendo por referência uma breve análise histórica de algumas características da relação
entre documentação, arquitetura e monumentos na Renascença e na transição entre os séculos XVIII e XIX.
Os temas relacionados são então consolidados na forma de um apanhado dos consensos atuais de valoração,
conservação e restauro de monumentos em geral. Este arcabouço é então instrumentalizado na tentativa de
se levantar ou refutar as particularidades do patrimônio recente afetas ao tema, comprovando, propondo ou
refutando pequenas hipóteses levantadas dialéticamente, perpassamos os seguintes tópicos: sistema
produtivo heteronômico de base documental, autoria, autenticidade, obsolescência e reprodutibilidade. Da
análise feita, conclui-se que é necessário considerar de modo integrado documento e monumento recentes,
de modo a refundar as bases produtivas de ambos.
Narramos esta pequena anedota por sua similaridade a outros artefatos e mesmo
categorias inteiras de feitos humanos – sobretudo aqueles da Era Industrial – que são
admiráveis, são significativos, devem ser tratados como patrimônio, mas cuja essência
dificulta sua valoração e seu tratamento segundo os preceitos vigentes de restauro de
monumentos. Evidentemente, a especificidade é a regra e não a exceção ao se tratar de
restauro e conservação, e uma narrativa própria é fundada a cada bem preservado.
Entretanto, é necessário estabelecer convenções que regulamentem tudo o que concerne
ao interesse público. Novas categorias de bens patrimoniais vêm sendo criadas nos últimos
vinte anos, com suas características conceituais próprias, de modo a agregar objetos de
natureza diversa do patrimônio edificado tradicional, por assim dizer. Foram instituídos o
Patrimônio Imaterial e o Patrimônio Industrial, por exemplo, estabelecendo sistemas de
valores capazes de abranger as mais diversas realizações do homem. Acreditamos ser
este o caso do patrimônio recente – ou Patrimônio Moderno –, no qual se inscreve a
arquitetura. O caráter valorativo diferenciado de uma realização recente induz à adoção de
princípios próprios de qualificação, documentação, conservação e restauro. E contribuir
para a elucidação dessas especificidades é o nosso objetivo neste texto.
Do mesmo modo que a luz de Livermore, a arquitetura recente é fadada à morte certa por
obsolescência. A consciência da efemeridade dos valores culturais, materiais e de uso ali
envolvidos faz de sua experiência uma urgência vital e de seu restauro uma tarefa
paradoxal. Ao mesmo tempo a aparência e a estrutura características da materialidade da
obra de arte tradicional são aqui complementadas pela concepção inicial da obra moderna,
expressado por princípios projetados claramente por seus autores através de desenhos e
textos que constituem sua base documental, dentro de um sistema produtivo . Sua
documentação, portanto, passa a integrar a obra conferindo-lhe sentido próprio. Este é
nosso argumento, que pretendemos desenvolver estabelecendo algumas relações entre
arquitetura recente, patrimônio e documentação.
1
Para informações sobre a lâmpada e sobre a cidade, ver: < http://www.centennialbulb.org > e
< http://www.ci.livermore.ca.us/ >. Acesso em 31 jul. 2008.
2
Butterworth-Heinemann Series in Conservation and Museology. Oxford/Burlington: Elsevier.
Cabem todos estes postulados para os edifício do século XX? Vejamos alguns casos:
Contratar o autor de uma obra tombada para seu restauro garante autenticidade à
intervenção? Como autenticar componentes e elementos construtivos produzidos
tecnologias superadas no dia-a-dia? À guisa de pátina, devemos conservar metais
oxidados, panos-de-vidro manchados e plásticos deformados? Os equipamentos e
instalações que hoje constituem mais da metade do custo de uma obra devem ser tratados
como obras de arte passíveis de restauro? A impertinência quase axiomática de algumas
destas questões de natureza prática expõe a inadequação de alguns princípios
consagrados do restauro, quando aplicados a objetos de natureza moderna. É necessário,
portanto, investigar quais definições passam a viger nesta realidade distinta. E esta busca
deve, naturalmente, ter início na busca dos valores fundadores da arquitetura e do
patrimônio recentes.
3
A rigid, universally agreed principle is that all treatment should be adequately documented. There is also
general agreement that structural and decorative falsification should be avoided. (…) LINDSTRUM, Derek.
Series editors’ preface. In JOKILEHTO, A history of architectural conservation,p. xii.
4
The first is the principle of reversibility of processes, which states that a treatment should normally be such
that the artefact can, if desired, be returned to its pre-reatment condition even after a long lapse of time. (...)
The second, intrinsic to the whole subject is that as far as possible decayed parts of an artefact should be
conserved and not replaced. The third is that the consequences of the ageing of the original materials (for
example ‘patina’) should not normally be disguised or removed. In JOKILEHTO, A history of architectural
conservation, p. xii.
Fazia-se necessário aos arquitetos, portanto, a constituição de uma gramática própria que
surtisse o efeito retórico desejado pelas famílias dominantes. Em 1414, na abadia suíça de
Constança, Poggio Bracciolini encontra uma nova versão manuscrita – e supostamente
mais autêntica - do já conhecido tratado do arquiteto romano Vitruvius, os Dez Livros de
Arquitetura. Escrito originalmente no século I a.C., o livro era acompanhado por ilustrações,
perdidas pouco a pouco nas sucessivas cópias feitas por monges em todo o medievo até
chegar ao exemplar que Bracciolini popularizou na Itália – ausência compensada pela
prodigalidade descritiva do texto de Vitruvius. Uma segunda fonte era a própria arquitetura
medieval das cidades italianas, em que sempre pôde ser verificado um sabor clássico – e.g.
arcos plenos, capitéis segundo os gêneros romanos, etc. O terceiro aporte para os
arquitetos renascentistas seria evidentemente a medição in loco dos monumentos
remanescentes do Império, e com este intento dirigiram-se sobretudo a Roma, onde
realizaram diversos levantamentos. Tal foi o caso, por exemplo, de Brunelleschi, Alberti,
Palladio e Serlio.
A reflexão sobre os levantamentos iconográficos de obras antigas foi, praticamente,
uma regra geral entre os arquitetos do período e muitos deles que se dedicaram
também à tratadística apresentam referências específicas, nos seus textos, sobre a
influência dos cadastros e levantamentos na sua formação profissional. 7
5
BOLTSHAUSER, História da Arquitetura, p.1879-1880.
6
En Italie comme en Grèce, chaque republique s’efforça de purpasser les autres par l’éclat de ses
monuments; mais tandis que les républiques grecques n’admettaient que pour les monuments publics les
manifestations de l’art, em Italie les grandes familles confondirent leur gloire avec celle de la cité même et
attachèrent leur souvenir aux entreprises qui devaient immortaliser leur patrie et leur siècle. In CHOISY,
Histoire de l’Architecture, p.682.
7
OLIVEIRA, A documentação como ferramenta de preservação da memória, p.14-15
8
OLIVEIRA, Desenho de arquitetura pré-renascentista. p.23-37.
9
Veja-se por exemplo as afirmações de Robin Evans: Although the geometric principle of parallel projection
was understood in late antiquity, Claudius Ptolemy having described it in a work on sundials around AD 300,
evidence of its use in architectural drawing is not found until the fourteenth century. The earliest more or less
consistent orthographic projection of a building to have survived is a large, detailed elevation of the Campanile
of S. Maria del Fiore, preserved in the Opera del Duomo in Siena and thought to be a copy of an original by
Giotto, produced after 1334. In EVANS , Translations from Drawing to Building, p.166.
Alberto Pérez-Gómez faz coro com Evans: Prior to the Renaissance, architectural drawings were rare,
certainly in the sense that is familiar to us. In the Middle Ages, architects did no conceive of a whole building
and the very notion of scale was unknown. In PELLETIER et PÉREZ-GÓMEZ, Architectural representation
and the perspective hinge, p.8.
Neste segundo sentido, como nos alerta Alois Riegl, é significativo que tenham sido
tomadas as primeiras medidas (particularmente a bula promulgada por Paulo III em 28 de
novembro de 1534) para a preservação dos monumentos ao mesmo tempo em que o valor
artístico e histórico dos monumentos antigos era descoberto. 13 Esta nova valoração da
história operada pelas sociedades do quattrocento, sobre um fundo nacionalista, coloca os
arquitetos daquele tempo na ambígua posição de preservar a antiguidade com valor
presente, 14 de modo a legitimar a sua própria construção. A partir de então,
Toda obra de arte é ao mesmo tempo – e sem exceção – uma obra histórica no
desenvolvimento das artes visuais e, a rigor, não se pode ser substituída por um
10
Cf. CARREIRA, Estudos de iconografia medieval: o caderno de Villard de Honnecourt, Lâminas 30-33.
11
We can design perfect forms of buildings in our mind, without the help of any materials.” In ALBERTI, De re
aedificatoria, I, 8, P.56. apud BORSI, Leon Battista Alberti, p.328.
12
The careful enquiry into the origins of the arts, their underlying principles, and the ways they develop. In
ALBERTI, De re aedificatoria, I, 8, P.56. apud BORSI, Leon Battista Alberti,, p.329. E Alberti demonstra
confiança plena em seu método historigráfico: There was not the least Remains of any ancient Structure, that
had any Merit in it, but what I went and examined, to see if any Thing was to be learned form it. Thus I was
continually searching, considering, measuring and making draughts of every Thing I could hear of, till such
Time as I had made myself perfect Master of every Contrivance or Invention that had been used in those
ancient Remains; and thus I alleviated the Fadigue of writing, by the Thirst and Pleasure of gaining Information.
In ALBERTI De re Aedificatoria. apud KRUFT, A History of Architectural Theory, p.42.
13
It is highly significant that the first measures for the preservation of monuments (particularly the bull issued
by Paul III on November 28, 1534) were taken at the same time that the artistic and historical value of ancient
monuments was being discovered. RIEGL, The modern cult of monuments, p.626.
14
Usaremos recorrentemente neste textos os “valores” dos monumentos, conforme codificados por Alois
Riegl em seu texto: culto moderno aos monumentos, seu caráter e sua origem, escrito em 1903: valores
memoriais (ou comemorativos, ou rememorativos): valor de antiguidade, valor histórico e valor memorial
intencional (Erinnenrungswerte: Alterswert, historischer Wert, gewolter Erinnerungswert). Valores presentes:
valor de uso, valor artístico, valor de novidade e valor artístico relativo (Gegenswartwerte: Gebrauchswert,
Kunstwert, Neuheitswert, relativer Kunstwert). Ver . RIEGL, The modern cult of monuments e A history of
architectural conservation, p.21.
Esta idéia de arte é constituída a partir de regras formais estritamente determinadas, não
apenas pelos escritos remanescentes da antiguidade, mas também por indução e
comprovação de seus valores a partir da medição dos próprios edifícios históricos. Esta
apropriação possui um duplo viés: utilizam-se os próprios capitéis, medalhões, frisos,
esculturas e mármore da Roma antiga nos edifícios novos, agora desenhados segundo
aquelas regras. É uma atitude de conservação de valores e destruição da matéria. Ao
mesmo tempo, este idealismo leva os arquitetos a negar o passado próximo medieval, que
passa a ser redesenhado e encoberto com elementos clássicos projetados de modo a
ocultá-los. Tal é o caso do Tempio Malatestiano construído por Alberti a partir de 1449
sobre uma igreja franciscana medieval existente, ou da Basílica de Vicenza, construída por
Palladio cem anos mais tarde. Paradoxalmente, parte deste passado eram as próprias
técnicas construtivas quase vernaculares ainda vigentes – sobretudo em alvenaria de
tijolos 16 – que continuavam sendo usadas e ocultas sob máscaras de pedra. Como aponta
Choisy, renovar a construção artificialmente monolítica dos grandes edifícios romanos teria
sido impossível; a imitação se sustenta somente pela ornamental. 17 E o edifício, como um
desenho, torna-se a representação de uma idéia.
15
Every work of art is at once and without exception a historical development of the visual arts. In the strictest
sense, no real equivalent can ever be substituted for it. Conversely, every historical monument is also an art
monument, because even a secondary literary monument like a scrap of paper with a brief and insignificant
note contains a whole series of artistic elements – the form of the piece of paper, the letters, and their
composition – which apart from their historical value are relevant to the development of paper, writing, writing
instruments etc. in RIEGL, The modern cult of monuments, p.622.
16
En fait de construction, ce que la Renaissance a de romain se réduit à quelques procédés antiques qui
s’étaient perpétués à travers le moyen âge : la structure de briques ou de menus moellons, et l’idée de traiter
cetter structure indépendamment des ornements qui lá décorent. In CHOISY, op.cit., p.679.
17
Renouveler la construction artificiellement monolithe des grands édifices romains eût été l’impossible ;
l’imitation ne porte que sur le vêtement ornemental. In CHOISY, op.cit., p.679.
18
Cf. CARPO, Architecture in the age of printing. p.9.
Sobretudo ao longo do século XVIII, o estudo das antiguidades torna-se uma ciência
difundida por toda a Europa. E ironicamente, os edifícios romanos que haviam ganhado
interesse como instrumentos de afirmação de culturas nacionais assumem o primeiro papel
de patrimônio universal. Arquitetos, historiadores e artistas ingleses, franceses, alemães e
austríacos passam a viajar sistematicamente à Itália e à Grécia para conhecer os
monumentos antigos. E quanto mais trabalhos e estudos publicavam, mais se avançava em
precisão nos levantamentos das antiguidades. Tal é o caso da obra de Giambatista Piranesi
(1720-1778), com sua Antichità Romane, publicadas em 1756; ou de The Antiquities of
Athens, publicado por Athenian Stuart e Nicholas Revett à mesma época, além dos
mencionados catálogos e cadernos não publicados.
19
Renaissance treatises define architectural “orders” (columns, capitals, lintels, etc.) that are singularly lacking
in material weight. What are they made out of? Wood, marble, stone, brick, stucco? How are they made? By
whom? With what instruments? At what price? The books don’t tell us. CARPO, Architecture in the age of
printing. p.7.
20
Cf. JOKILEHTO, A history of architectural conservation. p.21.
21
CHOAY, A alegoria do patrimônio. p.65-66.
3. CONSERVAÇÃO E RESTAURO
22
OLIVEIRA, A documentação como ferramenta de preservação da memória, p.19.
23
Expressão de Lucio Costa em COSTA, Lucio. A arquitetura de Antônio Francisco Lisboa Revelada no risco
original da capela franciscana de São João del Rei” apud PASSAGLIA, A influência do movimento moderno
...., p.36.
24
Esse tipo de cenário é recorrentemente verificado pelos autores da bibliografia que trata da representação
arquitetônica. Podemos citar, por exemplo, Mário Mendonça (OLIVEIRA, Desenho de arquitetura
pré-renascentista, p. 16-17), Louise Pelletier e Alberto Pérez-Gómez. (PELLETIER et PÉREZ-GÓMEZ,
Architectural representation and the perspective hinge, p.82-83) e Robin Evans. (EVANS, Translations from
drawing to building, p.173-179).
25
DOURADO, Conservação ou invenção? p.143.
Com base neste tipo de estudo que a documentação e publicação das intervenções de
restauro procedidas torna-se prática convencionada. A partir das recomendações de
Winckelmann, Bartolomeo Cavaceppi, restaurador de esculturas, publicava seus restauros,
indicando quais partes haviam sido restauradas e quais eram antigas, caso isso não fosse
evidente nos desenhos. 29
26
DOURADO, Conservação ou invenção? p.142.
27
This brief thus became the first official nomination of an officer in charge of protection of classical
monuments. Later Raphael was succeeded by others as commissioners of monuments, who included some of
the most important cultural personalities in Tome, such as Bellori, Winckelmann, Canova. In JOKILEHTO, A
history of architectural conservation. p.33.
28
Winckelmann, instead, claimed that one had properly described old statues, and that the description of a
statue must demonstrate the reason for its beauty and indicate the particular features of the artistic style. He
rested his judgement on facts that he had verified himself, on the basis of a comparative study, including an
accurate analysis and a description of all types of works of art, and drawing on available written documents,
especially from classical literature. In JOKILEHTO, A history of architectural conservation. p.61.
29
Published his restorations, and indicated which were the parts restored and which antique, if this was not
evident from the drawings. JOKILEHTO, A history of architectural conservation. p.62.
30
DOURADO, Conservação ou invenção? p.143.
31
Cf. JOKILEHTO, A history of architectural conservation. p.79-89.
32
Una delle ragioni per le quali il restauro dell’Arco di Tito è giudicato esemplare e in tutto rispondente agli attuali
concetti, è quella del impiego, per ogni parte aggiunta, di um materiale diverso da quello originario. Così come per il
Colosseo e per altri edifici in travertino viene impiegato il laterizio, qui accanto al marmo viene usato il travertino. Così
riesce immediata la percezione delle parti aggiunte, mentre nessun turbamento ne consegue per la proporzione
dell’insième. In CESCHI, Teoria e storia del restauro. p.42. (grifo nosso)
33
Cf. JOKILEHTO, A history of architectural conservation, p.307.
34
Restaurer un édifice, ce n’est pas l’entretenir, le réparer ou refaire, c’est le rétablir dans un état complet qui
peut n’avoir jamais existé à un moment donné. VIOLLET-LE-DUC. Dictionaire Raisonné. V. VIII. p.14. Usamos
a tradução de Odete Dourado para o verbete restauro. in VIOLLET-LE-DUC, Restauro, p.4.
35
VIOLLET-LE-DUC, Restauro, p.29.
36
The various histories of Portuguese architecture, like most histories of art, all are written on the assumption
that period, place and style are interchangeable: as any given place in any defined period, it is assumed that
there exists only one style. Thus, Mannerism is taken as the style of the sixteenth century in Europe; Baroque
style fills the seventeenth century. By this venerable system, which is at least as old as Vitruvius and Pliny, one
place at one period can have no more than one “style”. In KUBLER, Portuguese plain architecture, p.4.
37
Cf. JOKILEHTO, A history of architectural conservation. p.153.
38
Do not let us deceive ourselves in this important matter; it is impossible, as impossible as to raise de dead,
to restore anything that has ever been great or beautiful in architecture. In RUSKIN, The seven lamps of
architecture. p.199.
39
RIEGL, The modern cult of monuments, p.631-634.
40
The cult of age-value compels one to maintain monuments of recent times in use precisely so as to
safeguard their continued usefulness. Practical use-value corresponds aesthetically to newness value: for its
own sake, age-value will have to tolerate, in the present state of its development, a certain degree of
newness-value in modern works. RIEGL, The modern cult of monuments, p.644.
O primeiro consenso diz respeito ao que deve ser preservado. No que nos concerne aqui,
John Summerson – com a lucidez que lhe era característica – sistematiza brevemente os
edifícios 41 que merecem proteção:
1. O edifício que é uma obra de arte: o produto de uma mente excepcional.
2. O edifício que não é uma criação excepcional nesse sentido, mas carrega de
modo marcante as virtudes características da escola artística que o produziu.
5. O edifício cuja única virtude é, por si só, trazer à tona a perspectiva histórica em
algum período sombrio da modernidade. 42
41
Na Convenção sobre a salvaguarda do patrimônio mundial, cultural e natural, por exemplo, o patrimônio é
dividido como Patrimônio Cultural e Patrimônio Natural, incluindo-se portanto a questão ecológica, para além
da cultural. O Patrimônio Cultural, por sua vez, é dividido em monumentos, conjuntos e sítios. O Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, por sua vez, subdivide os bens patrimoniais em Patrimônio Material
e Patrimônio Imaterial, podendo , de acordo com o Decreto-Lei n.25/1937, ser inscritos em quatro Livros do
Tombo: Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, Livro do Tombo Histórico, Livro do
Tombo das Belas-Artes e Livro do Tombo das Artes Aplicadas. Tratamos aqui somente dos monumentos,
de modo a tornar a argumentação possível, o que não significa desconsiderar as demais categorias.
42
1. The building which is a work of art: the product of a distinct and outstanding creative mind.
2. The building which is not a distinct creation in this sense but possesses in a pronounced form the
characteristic virtues of the school of design which produced it.
3. The building which, of no great artistic merit, is either of significant antiquity or a composition of fragmentary
beauties welded together in the course of time.
4. The building which has been the scene of great events or the labours of great men.
5. The building whose only virtue is that in a bleak tract of modernity it alone gives depth in time.
SUMMERSON, The Past in the future. In _____ . Heavenly mansions, p.221.
43
A Carta de Atenas não deixa margem a dúvidas, em seu artigo II: a conferência aprovou unanimemente a
tendência geral que consagrou nessa matéria um certo direito da coletividade em relação à propriedade
privada. CURY. Cartas patrimoniais. p.14.
44
Normalmente é nesta expropriação que residem os conflitos jurídicos envolvendo o patrimônio, onde vale
sempre lembrar máxima de Ruskin: We have no right whatsoever to touch them. They are not ours. They
belong partly to those who built them, and partly to all the generations of mankind who are to follow us.
RUSKIN, The seven lamps of architecture. p. 201.
45
Carta do Restauro, CURY. Cartas patrimoniais. p.157.
46
Carta de Veneza in CURY. Cartas patrimoniais. p.92.
47
Cf. CURY. Cartas patrimoniais. p.319-328.
48
GOMIDE et al. Manual de elaboração de projetos. p.15.
A arquitetura que conhecemos como moderna é – ou pretendeu ser – a única filha legítima
da industrialização do mundo ocidental: Sigfried Giedion 51 a situa como conseqüência
natural das novas tecnologias construtivas, dos novos materiais e de uma nova concepção
de espaço-tempo. Sabe-se, por outro lado, que as mesmas tecnologias geraram outras
arquiteturas – na maior parte das vezes negligenciadas pelos manuais de história da
arquitetura. Vejamos algumas delas.
Nas Américas e na Europa, os estilos históricos (clássico, gótico, eclético etc) nunca
deixaram de existir, tendo mesmo voltado às práticas de vanguarda com o nome de
pós-modernismo nas décadas de 1970 e 1980. Uma fatia desta produção passou a operar
49
Carta de Atenas, in CURY. Cartas patrimoniais. p.17.
50
Carta de Veneza in CURY. Cartas patrimoniais. p.95.
51
Cf. GIEDION, Space, time and architecture.
Há, é claro, as diversas correntes ligadas diretamente à genealogia das vanguardas dos
anos vinte, como o próprio Brazilian Style - conhecido entre nós como Escola Carioca –, ou
o brutalismo inglês (diferente do brasileiro), ou o deconstrutivismo e o minimalismo da
década de 1990, a recente arquitetura holandesa, dentre tantos outros. Passaram-se
setenta e cinco anos da publicação de Vers une Architecture por Le Corbusier e, mesmo
nos países desenvolvidos, a construção civil não se tornou a indústria sonhada pela
vanguarda heróica. Nos últimos trinta anos, mesmo a organização industrial taylorista
começou a ruir, explodida em redes de prestação de serviços. Talvez por esta
impossibilidade, novos discursos modernos foram articulados. Vejamos alguns deles:
Após a Segunda Grande Guerra, Le Corbusier passou a realizar a arquitetura que mais
tarde se chamaria de brutalismo, caracterizado pelo uso de materiais in natura e sobretudo
o uso de concreto aparente – béton brut em francês. No Brasil, a partir da arquitetura de
Villanova Artigas e de Oscar Niemeyer, foi uma corrente bastante difundida até os dias de
hoje.
52
Cf. < http://www.kpf.com > ; < http://www.hok.com > ; < http://www.som.com > . Verficar sobretudo as
tipologias de hotéis e casas de espetáculos.
53
Cf. AMARAL, Aracy (org.). Arquitectura neocolonial: América Latina, Caribe, Estados Unidos. São Paulo:
Memorial/Fondo de Cultura Económica, 1994. 336p.
Mesmo nas Minas Gerais do Brasil colonial, o desenho era utilizado com esta dupla
finalidade. Conforme nos informa Sylvio de Vasconcellos:
Os edifícios mais importantes de Vila Rica, como de toda a Colônia, obedecem
sempre os prospectos previamente elaborados e sujeitos à aprovação da Coroa.
Estes riscos, em escala adequada, acompanhados de seu “petipé”, medem-se em
palmos e são, em geral, desenhados a traço, em aguadas, coloridos ou não, sobre
papel branco ou pergaminho, tal como o que “Se comprou ao Livreiro para os
Riscos” a Matriz do Pilar em 1727 (cit. A.P.M. – Livro 4º da Receita e Despesa da
Irmandade do SS. Sacramento, 30). Vez por outra aparecem perspectivas
axonométricas, facilitando o entendimento do conjunto das fachadas principal e
laterais. Para os interiores, ocorrem cortes detalhados ou esquemáticos. 56
54
Philosophical issues affecting preservation and design. In PRUDON, Preservation of modern
architecture.p.23.
55
We have considered, with a sense of urgency, the continuing deterioration of conditions of shelter and
human settlements. At the same time, we recognize cities and towns as centres of civilization, generating
economic development and social, cultural, spiritual and scientific advancement. We must take advantage of
the opportunities presented by our settlements and preserve their diversity to promote solidarity among all our
peoples. In UNITED NATIONS. The Habitat agenda: Istanbul Declaration on Human Settlements. p.1.
56
VASCONCELLOS, Sylvio de. Arquitetura particular em Vila Rica, p.95. Apud PASSAGLIA, A influência do
movimento da arquitetura moderna..., p. 36.
57
PASSAGLIA, A influência do movimento da arquitetura moderna..., p. 45.
Não podemos eximir o papel ativo do documento nesse caso. Afinal, em sua origem
histórica, a criação dos documentos constituiu uma necessidade para o exercício do poder.
63
O sistema documental de produção de arquitetura com vistas à extração de
mais-valia, portanto, é uma especificidade da arquitetura recente, independentemente
de sua feição. A este arranjo denominaremos simplesmente sistema heteronômico.
Vimos como, a partir da Renascença, inicia-se uma nova relação entre patrimônio,
arquitetura e desenho. E o desenho, que servia ao projeto e ao cadastro, aproximou
Brunelleschi da antiguidade, e foi o mesmo a objetivá-la cientificamente no século XVII.
Este distanciamento crítico do patrimônio e da arquitetura teve seus efeitos na configuração
definitiva do sistema produtivo do espaço construído tal como funciona até os dias de hoje:
trata-se de um sistema de base documental que perpetua as relações de poder. Vejamos
algumas dessas conseqüências para os monumentos decorrentes desse processo,
conforme produzidos no século XX.
A valoração biográfica, por assim dizer, vem sendo amplamente disseminada. São notáveis
os tombamentos não de conjuntos urbanos recentes, mas de conjuntos de obras de autores
modernos. Como narra Theodore Prudon: a estatura de [Frank Lloyd] Wright na arquitetura
americana coloca o seu impacto na preservação no mesmo patamar que Le Corbusier na
França, ou Alvar Aalto (1898-1976) na Finlândia: todos são arquitetos representativos cujo
conjunto da obra é protegido devido a sua proeminência. 66 O mesmo ocorre no Brasil com
a obra de Oscar Niemeyer, que teve vinte e três obras tombadas pelo IPHAN em Brasília
em dezembro de 2007, quando da comemoração de seu centenário. 67
Entretanto, no caso do patrimônio recente, a valoração com base no critério de autor ocorre
somente em um sentido: o de legitimar publicamente o interesse privado, expressado
através dos direitos autorais. De fato, a Convenção de Berna para a proteção das Obras
Literárias e Artísticas (1979) – que abrange a arquitetura – assegura:
1- Independentemente dos direitos patrimoniais do autor, e inclusive depois da
cessão desses direitos, o autor conservará o direito de reivindicar a paternidade da
obra e opor-se a qualquer deformação, mutilação ou outra modificação da mesma,
ou a qualquer atentado à mesma que cause prejuízo a sua honra ou sua reputação.
65
Reportamo-nos aqui à definição de Brandi, para quem: A matéria como epifania da imagem dá, portanto, a
chave do desdobramento, apenas esboçado e agora definido como estrutura e aspecto. BRANDI. Teoria da
restauração. p.36.
66
PRUDON, Preservation of modern architecture, p.18.
67
Cf.< http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=13799&sigla=Noticia&retorno=detalheN
oticia >. Acesso em 4 ago.2008.
68
1) Independientemente de los derechos patrimoniales del autor, e incluso después de la cesión de estos
derechos, el autor conservará el derecho de reivindicar la paternidad de la obra y de oponerse a cualquier
deformación, mutilación u otra modificación de la misma o a cualquier atentado a la misma que cause perjuicio
a su honor o a su reputación.
2) Los derechos reconocidos al autor en virtud del párrafo 1) serán mantenidos después de su muerte, por lo
menos hasta la extinción de sus derechos patrimoniales, y ejercidos por las personas o instituciones a las que
la legislación nacional del país en que se reclame la protección reconozca derechos. (…)
La protección concedida por el presente Convenio se extenderá durante la vida del autor y cincuenta años
después de su muerte. in OMPI, Convenio de Berna para la Protección de las Obras Literarias y Artísticas.
Art.6bis e 7.
69
Já desenvolvemos o tema da relação entre público e privado na arquitetura em texto anterior. Ver
MACEDO, Algumas funções públicas da arquitetura.
70
No Brasil, os direitos autorais são regidos pela lei 9.610/98. Em nosso país, o prazo de vigência é ainda
maior que na Convenção de Berna, no caso dos direitos patrimoniais. Segundo o Art. 41 daquela: Os direitos
patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de seu
falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil. No caso dos direitos morais, o prazo é indefinido mas
são assegurados os mesmos direitos do autor a seus sucessores. (Art.24, §1º). Cf. BRASIL, Lei 9.610 de 19
de fevereiro de 1998.
71
BRASIL, Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.. art.26.
72
Carta de Atenas in CURY, Cartas patrimoniais. p.14.
73
Consultation with the original architect can, after all, complete the historical record. In practice, however, the
original architect or architectural firm may approach the building as a new design challenge rather than as
conservation project: at issue is to achieve a technically acceptable preservation solution, not a more
contemporary reinterpretation of the design. For that reason, Le Corbusier (1887-1965) would not have been
the right preservation architect for the Villa Savoye nor would the addition of a new building in Brasília by Oscar
Niemeyer (b.1907) automatically be a good idea. PRUDON, Preservation of modern architecture, p.37.
74
IPHAN, Portaria nº 314, de 08 de outubro de 1992. in IPHAN, Plano Piloto 50 anos, p.58-63.
75
Cf. PESSOA, Brasília e o tombamento de uma idéia.
Assim, caso a obra de arquitetura recente seja valorada não em sua materialidade, mas
como produto de uma mente excepcional – para usar a expressão de Summerson –, tem-se
que o repúdio da autoria por seu criador ou por seus sucessores potencialmente levaria ao
cancelamento de seu tombamento, por perda de autenticidade. Afinal, deixando de
pertencer ao autor, a obra perderia os atributos valorados.
7. OBSOLESCÊNCIA
Se os elevados índices de informalidade da construção civil de nosso país podem –
potencialmente – constituir uma fuga, mesmo que inadvertida, das benesses e malefícios
do sistema heteronômico, certamente não escapam à similaridade material para com
aquelas produzidas de acordo com a organização do trabalho vigente. Primeiramente
porque a mão-de-obra heterônoma adotará uma técnica derivada dos canteiros de obra
tecnológicos 78 – um exemplo claro desse fenômeno pode ser observado na abundância de
76
DISTRITO FEDERAL, Decreto nº 10.829 de 14 de outubro de 1987. Art.1 in IPHAN, Plano Piloto 50 anos,
p.64-69.
77
BRANDÃO. Linguagem e arquitetura: o problema do conceito.
78
Milton Vargas estabelece a diferença entre os conceitos de técnica e de tecnologia: A técnica é, assim,
uma habilidade humana de fabricar, construir e utilizar instrumentos. É tão antiga quanto a humanidade,
admitindo-se a idéia de certos antropólogos de que um fóssil só pode ser considerado humano se ao lado dele
forem encontrados instrumentos [...].
As técnicas modernas, nas quais já estão incorporados os conhecimentos empíricos de origem científica,
aparecem durante o Renascimento, quando homens, como Leonardo da Vinci, não a distinguem das Belas
Artes e nem hesitam em aplicar, na solução de seus problemas, alguns conhecimentos científicos, obtidos da
experiência direta.
Outros materiais da edificação recente, pela natureza industrial de sua estrutura, também
atingem a obsolescência. Tal é o caso das portas e esquadrias, dos pisos e revestimentos
plásticos e têxteis, e do mobiliário integrado em geral – divisórias, poltronas de teatros e
auditórios etc. Afinal, os produtos industrializados dependem de empresas que os
A tecnologia, por fim, só pode ter vigência depois do estabelecimento da Ciência moderna, principalmente
pelo fato dessa cultura ser um saber que, apesar de teórico, deve necessariamente ser verificado pela
experiência científica. In VARGAS, História da técnica e da tecnologia no Brasil, p.15-16.
79
Cf. MACEDO, Da matéria à invenção, p.68-76.
80
Dados extraídos da experiência profissional do autor como projetista e de MASCARÓ. O custo das
decisões arquitetônicas. p.139.
85
Para Prudon parece sugerir isso em algumas passagens como a seguinte: for modern architecture,
authenticity relies on the continuity of the original design intent more often tna on the preservation of the
original materials. In PRUDON, Preservation of modern architecture, p.44.
86
In our modern view, the new artifact requires flawless integrity of form and color as well as of style; that is to
say, the truly modern work must, in its concept and detail, recall earlier works as little as possible. In RIEGL,
The modern cult of monuments. p. 644.
87
BRANDI, Teoria da restauração, p.54.
88
Les cathédrales étaient blanches parce qu’elles étaient neuves, Les villes étaient neuves ; on en construisait
de toutes pièces, en ordre, régulières, géometriques, d’après des plans. La pierre de France fraîche de taille
était éclatante de blancheur, comme avaient été luisantes de granit poli les Pyramides d’Égypte. Sur toutes les
villes ou les bourgs encerclés de murailles neuves, le gratte-ciel de Dieu dominait la contrée. O l’âvait fait aussi
haut qu’on avait pu, extraordinairement haut. C’égeit un acte d’optimisme, un geste de courage, un signe de
fierté, un preuve de maîtrise ! en s’adressant à Dieu, les hommes ne signaient pas leur abdication. LE
CORBUSIER, Quand las cathedralles étaient blanches, p.12.
Mário Mendonça acima remete ainda a um outro modo pelo qual a documentação pode ser
usada como ferramenta de preservação da memória: a possibilidade de reconstrução
figurativa em desenho, maquetes ou tecnologia computacional, trazendo à tona a forma
vera poupando a matéria original e sua história. Desde as reconstruções ideais de
reconstrução em desenho do Castelo de Coucy, apenas imaginada por Vitet, 90 até as
Unbuilt Masterworks de Loius Kahn feitas por Kent Larson em computação gráfica, o
potencial didático e especulativo dessa estratégia é ilimitado. 91 Mário Mendonça nos
lembra que não se deve cair na tentação de acreditar que a imagem pode substituir
satisfatoriamente o artefato representativo da nossa memória. Seria aceitar que uma
fotografia pudesse tomar o lugar da pessoa ou objeto do nosso afeto. No caso da
arquitetura, o fosso das dificuldades alarga-se mais ainda, porque nada, mas nada mesmo,
pode substituir a relação de escala dos edifícios com o seu observador, nada pode
‘substituir a concreta realidade da pedra, do cimento, do ferro, das leis físicas que governam
o organismo estático e das precípuas solicitações que deles se irradiam’. 92
89
O próprio Prudon retrocede e reconhece que algumas obras melhor que outras registram a passagem do
tempo. Cf. PRUDON, Preservation of modern architecture, p.42.
90
“Concluindo aquilo que diz respeito aos monumentos e à sua conservação, deixai-me aqui dizer ainda,
Senhor Ministro, algumas palavras a propósito do monumento talvez mais estupendo e mais preciosode todos
aqueles de que acabo de falar, e do qual me proponho a tentar o restauro. Em verdade, é um restauro para o
qual não serão necessárias nem pedras, nem cimento, mas somente algumas folhas de papel. Reconstruir,
ou antes restituir, no seu conjunto, e nos mínimos detalhes, uma fortaleza da Idade Média, reproduzir a sua
decoração interna até ao seu mobiliário, em uma palavra, restituir a sua forma, a sua cor, e, se ouso dizer, a
sua vida primitiva, tal é o projeto que me ocorreu à mente logo ao entrar na muralha do Castelo de Coucy.”
VITET. Apud VIOLLET-LE-DUC, Restauro, p.11.
91
Cf. LARSON, Kent. Louis Kahn: unbuilt masterworks. New York: Monacelli Press, 2000. 232p.
92
OLIVEIRA, A documentação como ferramenta de preservação da memória, p.13. Com citação de Luigi
Vagnetti.
93
Cf. FITCH, Historic preservation, p.1.
94
BENJAMIN, A obra de arte na era de sua reprodutbilidade técnica. p.168-169.
95
The system of five Renaissance orders, as defined in particular in the Fourth Book (1537) of Sebastiano
Serlio, was a catalog of graphic components that were standardized and repeatable – what Benjamin would
have called “designed for repoducibility”. Every element in this system was designed for being reproduced
wholesale and then assembled or reassembled with other matching elements. Recomposition was governed
by a set of rules (the instructions for the use of the system) that might be more or less complex according to
cases. This “architectural method” imposes a simplified theory of design and inevitably leads to the repetition of
a certain number of identical components. But this process of graphic, or typographic, reproduction had
nothing to do with the material manufacturing of the architectural object. In CARPO, Architecture in the age of
printing. p.7.
O exemplo mais célebre deste tipo de cenário talvez seja a Villa Savoye, de autoria de Le
Corbusier (Poissy, França, 1929). Antes mesmo de sua conclusão, devido a problemas com
a impermeabilização no toit-jardin, suas paredes já apresentavam infiltrações. Tendo sido
usada como residência por apenas dez anos, a casa chegou até nossos dias atravessando
diversos ciclos de decrepitude e restauro. 96 Não nos enganemos, entretanto, com esta
fragilidade. Arquitetos de todo o mundo acorrem a Poissy para visitar a Villa Savoye. Mas,
principalmente, muito mais arquitetos de todo o mundo realizaram obras materialmente
consistentes na estrutura de sua imagem a partir da documentação da Villa Savoye,
conforme publicada centenas de vezes. Se retornarmos aos motivos enumerados por John
Summerson para se valorar um monumento como tal, constataremos que simultaneamente
a residência de Poissy atende a todos: não apenas se trata de um monumento, portanto: é
um monumento excepcional. E escolhemos este exemplo propositadamente: afinal, uma
residência cotidiana só pôde tornar-se um monumento quando inserida no contexto cultural
permitido pela publicação de sua documentação. Nesse sentido, a documentação do banal
passa a significar justamente sua monumentalização.
A partir da difusão do sistema heteronômico, virtualmente qualquer objeto pode ser alçado
à categoria de monumento, independentemente de haver sido projetado para a
reprodutibilidade ou não. O cotidiano se monumentaliza numa relação ambígua: as casas
são objetos anônimos no contexto urbano em que se encontram, mas tornam-se
monumentos a serem copiados por profissionais do mundo inteiro que tomam contato com
ela através dos livros e revistas de arquitetura. Estes últimos, sim, são protótipos de um
sistema cultural de reprodução artística. Não vem ao acaso a célebre anedota narrada por
Niemeyer: Lembro Gropius, depois de visitar minha casa nas Canoas: ‘Sua casa é muito
bonita, mas não é multiplicável’ E eu a olhá-lo condescendente: ‘ Como se diz bobagem
com ar de coisa séria. 97 Niemeyer estava certo, mas não pelos motivos que acreditava:
mesmo que uma duplicata fosse impossível, sua casa era multiplicável em seus princípios.
Formas livres, transparência e integração com a natureza e com o paisagismo nada mais
eram que algumas das características do que ficou conhecido como brazilian style,
difundido e replicado da Austrália à Inglaterra.
96
Cf. PRUDON, Preservation of modern architecture, p.214-220.
97
NIEMEYER, Os caminhos da arquitetura, p.36.
AGRADECIMENTOS
Dedico este artigo aos amigos Leandro Campos, Juliana Nery e Rodrigo Baeta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARTIGAS, João Batista Vilanova. Caminhos da Arquitetura. 4ed. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
240p.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica: primeira versão. In:
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 255 p. [10.reimp.1996];(Obras Escolhidas, 1)
BORSI, Franco. Leon Battista Alberti. Trad. Rudolf G. Carpanini. New York: Harper & Row, 1977.
397p.
BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. Trad. Beatriz Kühl. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. 261p.
BRASIL. Lei 6.610 de 19 de fevereiro de 1998. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília,
DF, p.3. Disponível em < https://legislacao.planalto.gov.br >. Acesso em 4 ago.2008.
CARPO, Mario. Architecture in the age of printing: orality, writing, typography, and printed images in
the history of architectural theory. Trad. Sarah Benson. Cambridge/London: MIT Press, 2001. 246p.
CESCHI, Carlo. Teoria e storia del restauro. Roma: Mario Bulzoni Editore, 1970. 225p.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Trad. Luciano Machado. São Paulo: Estação
Liberdade / UNESP, 2001. 282p.
CHOISY, Auguste. Histoire de l’architecture. Paris: Inter-livres, 1991. p.288 (Edição fac-símile).
CURY, Isabelle (org.). Cartas patrimoniais.. 3.ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004. 408p.
DOURADO, Odete. Conservação ou invenção? Notas sobre uma relação ambígua. In CARDOSO,
Luiz Antonio Fernandes et OLIVEIRA, Olívia Fernandes (orgs.). (Re)Discutindo o Modernismo:
universalidade e diversidade do movimento moderno em arquitetura e urbanismo no Brasil.
Salvador: Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, 1997. p.139-146.
FITCH, James Marston. Historic Preservation: Curatorial Management of the Built World. 2ed.
Charlotesville/London: University of Virginia Press,1990. 433p.
FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 456p.
GIEDION, Sigfried. Space, time and architecture: the growth of a new tradition. Cambridge: Harvard
University, 1944. 601p.
KRUFT, Hanno-Walter. A history of architectural theory: from Vitruvius to the present. Trad. Ronald
Taylor, Elsie Callander e Antony Wood. New York: Princeton Architectural Press. 706p.
KUBLER, George. Portuguese plain architecture: between spices and diamonds, 1521-1706.
Middletown, Connecticut: Wesleyan University Press, 1972. 315p.
LE CORBUSIER. Quand les cathédrales étaient blanches: voyage au pays des timides. Paris :
Gonthier, 1971. 248p. (Bibliothèque Meditations)
MACEDO, Danilo Matoso. Algumas funções públicas da arquitetura. MDC – Revista de Arquitetura
e Urbanismo. Belo Horizonte/Brasília, n.3, p.14-21, mar. 2006.
NIEMEYER, Oscar. Os caminhos da arquitetura. In: Piracema. Rio de Janeiro, n.1, p.36-40, 1993.
OMPI. Convenio de Berna para la Protección de las Obras Literarias y Artísticas. Paris:
Organización Mundial de la Propiedad Intelectual, 1886-1979. 29p. Disponível em: <
http://www.wipo.int> . Acesso em 4 ago. 2008.
MASCARÓ, Juan Luis. O custo das decisões arquitetônicas. 3ed. Porto Alegre: JLM, 2004. 180p.
PESSOA, José Simões de Belmont. Brasília e o tombamento de uma idéia. In: SEMINÁRIO
DOCOMOMO BRASIL, 5, 2003, São Carlos. Disponível em: < http://www.docomomo.org.br> .
Acesso em 4 ago. 2008.
PRUDON, Theodore H. M. Preservation of modern architecture. Hoboken: John Wiley & Sons.,
2008. 577p.
RIEGL, Aloïs. The modern cult of monuments: it´s character and its origin. Trad. Kurt Forster e Diane
Ghirardo. IN HAYS, K. Michael. Oppositions reader. New York: Princeton Architectural Press, 1998.
p.621-651
RUSKIN, John. A lâmpada da memória. Trad. Odete Dourado. Salvador: Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, 1996. 50p. (Pretextos, b, 2)
_________. The seven lamps of architecture. London: J.M. Dent & Sons/ New York: E.P. Dutton &
Co., 1907. 228p. (Everyman's Library, 207); [6.reimp.1940]
SUMMERSON, John. Heavenly mansions and other essays on architecture by John Newenham, Sir
Summerson. New York/London : W. W. Norton [1963], 253p.
VARGAS, Milton. (Org.) História da técnica e da tecnologia no Brasil. São Paulo: Universidade
Estadual Paulista/ Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, 1994. 412p.
UNITED NATIONS. The Habitat Agenda: Istanbul Declaration on Human Settlements. Istanbul:
United Nations Human Settlement Programme, 1996. 3p. Disponível em:
< http://www.unhabitat.org> . Acesso em 4 ago. 2008.