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A responsabilidade subjetiva na formação do psiquismo1

Bartyra Ribeiro de Castro2

Responsabilidade subjetiva! Este é o termo a ser considerado sempre que falamos de


formação do psiquismo e, falar disto é dizer que nós nos formamos enquanto sujeitos a partir de
relações e de atos que envolvem responsabilidades. Todos nós!

Para preparar esta fala para vocês, recorri a um autor que é absolutamente precioso aos
analistas, em um artigo que data de antes da publicação do texto príncipes da fundação da
Psicanálise – A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud, em 1900. Ao final, revelo seu
nome, ou já estará dito...

Para estabelecermos as premissas da constituição subjetiva, precisaremos, sempre,


considerar o elemento fundamental da precocidade humana. Estou em meio a pediatras. Vocês
sabem perfeitamente a que me refiro. O animal humano é absolutamente precoce ao nascer.
Depende, PARA TUDO, de quem lhe dispensa cuidados. Depende, então, igualmente, deste
outro para saber de seu lugar no romance familiar, para estabelecer a comunicação e para pautar
a sua entrada no mundo através da linguagem. Isto funda a realidade psíquica.

Este entrelaçamento entre o bebê e seus cuidadores pode ser com ou sem implicação
afetiva. Quando é sem, em seu extremo, vocês bem o sabem, temos o hospitalismo – descrito
tão perfeitamente por René Spitz. É a resposta ao vazio absoluto de aporte de afeto naquele
trazido à luz.

Mas a nossa história começa, mesmo, bem antes de nós. Gerações nos antecedem. O
mundo não começa com o nosso nascimento... há os nossos pais, os pais de nossos pais, os pais
destes e de lá para trás, muita coisa. Compomos uma linha geracional que nos contextualiza e
nos localiza num desejo, ou numa falta deste. Na verdade, somos filhos de alguns tantos
segredos. Nem tudo nos é contado. Alguma coisa percebemos, achamos intrigante, ou mesmo
estranho, mas, haverá sempre muita coisa não dita em cada história. E teremos que nos haver,
também, com isto.

Pois bem, então, responsabilidade subjetiva implica, necessariamente, pais e criança. A


máxima de que ‘filho de peixe, peixinho é’ serve para peixes. Não para humanos. Talvez, para
nós, algo que nos sirva seja da ordem do ‘filho feio não tem pai’! Quando os filhos saem
próximos ao esperado, são maravilhosos, mas quando tomam um rumo bastante distante do que
se idealizava, nos parecem muito estranhos ou ‘puxaram o lado de lá’. Cruamente: não
brotamos num jardim. Nascemos no berço de nossa linhagem. E isto diz respeito ao quanto cada
um de nós, está completamente implicado na criação de nossos filhos e certamente, nas decisões
que tomamos quanto ao que somos e fazemos de nossas próprias vidas.

Mas, os bebês nascem! E há, nesse corpinho, uma sobrecarga de energia a ser
descarregada que será tomada pelo “complexo paterno” (o meio aonde chega cada criança), que

1
Palestra proferida na Jornada de Pediatria da SOESPE – Sociedade Espiritossantense de Pediatria, 19 de maio de 2018.
2
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/Associação Mundial de Psicanálise, Coordenadora do PIPA (e rabiola) –
Vitória.

1
deverá nomear a descarga desta energia. O organismo humano é incapaz de promover, sozinho,
a satisfação necessária a esta descarga. Será sempre, preciso que o outro o ajude. Assim, o
desamparo inicial surge como fonte primordial3dos princípios morais trazidos pela assistência
alheia4. Então, de início, há o grito. Um grito sem sentido. Sinal de uma urgência que causa
desprazer. Alguém dirá: é fome! Vou dar de mamá! Vem a satisfação. Junto desta, o colo, o
olhar, a voz... o “que lindo que você é!!! Tem cara de joelho, mas é o mais lindo que já vi! É
meu filho!

Ou não! Infelizmente, ou felizmente - dependendo de por onde tomamos –, a cena nem


sempre é esta e, mesmo que seja, jamais se repetirá da mesma forma. Nasce o sentimento de
nostalgia no humano...

É fome! (que guloso!), é cólica! (coitadinho!), é sono! (só apagar a luz que ele dorme!
Tão bonzinho!!!), é pirraça! (este menino é impossível!!! Igual ao pai!). Esta nomeação da
descarga mapeia o corpo da criança e, juntamente com isto, carreia os sentimentos e os afetos.
Falas, gestos, começam a desenhar a realidade e a localizá-lo no romance familiar. A criança
aprende a amar seu próprio corpo a partir do olhar da mãe. A partir do que ela vê neste olhar.
Depois, do que ela ouve. A criança ama o que ela vê neste olhar – uma interpretação!

Toda a nossa atividade psíquica inicia-se nos estímulos corpóreos e há todo um caminho
a ser percorrido para a formação do pensamento humano: antecedentes familiares, nascimento,
grito, nomeação, gestos, afetos, que geram uma experiência de satisfação e uma alucinação
prazerosa. Se a interpretação coincidir: é fome! Sim, mamá! Satisfação!Se não (o que deve
acontecer na maioria das vezes!), a criança se frustrará e deverá abrir mão da alucinação de
prazer para criar uma solução para este problema gerado pelo mal-entendido radical que está
sempre posto entre um e outro. Entre som e sentido. Sentido é interpretação.

A satisfação é precondição essencial5 do sono, inclusive. A criança dorme tranquila


quando satisfeitas as suas necessidades. Mesmo os adultos são assim, “adormecem com
facilidade depois da refeição e da cópula” 6.

Esta relação intrínseca entre a criança e quem dela cuida responde pela construção dos
afetos e das lembranças. Pelas escolhas de objeto de prazer e de desejo, pelo interesse
despertado pelas discrepâncias. Responde igualmente pelas inibições e pelo estabelecimento da
consciência.

Já passamos por isto. E, muitos aqui, de ambos os lados. Quantas vezes o choro foi de
cólica e oferecemos mais peito, pois entendemos que seria fome? Ou o contrário? Ou era fome e
somente trocamos a fraldinha muito encharcada? – era desconforto!!!!! (e o mamá não veio!!).
Na criança, a saída buscada para se fazer compreender pelo adulto, funda uma identidade de
pensamento, inaugurando juízos de existência e de atribuição, como predicados às experiências
vividas; jamais se afastando das marcas deixadas pelas nomeações do outro em seu corpo. É isto
que funda a realidade para nós. Uma realidade essencialmente psíquica.

Isto quer dizer que nós nos colocamos no mundo e o interpretamos a partir de uma
herança transgeracional que nos atravessa, do que elaboramos sobre esta, sobre as pessoas que

3
Freud, S. Projeto para uma psicologia científica, IMAGO ED. Vol. I, p. 422.
4
Idem, p.422.
5
Idem, p.444.
6
Idem, p.444

2
nos cercam e sobre nós mesmos. É a resposta, mais ou menos resiliente, ao desamparo
primordial. Assim sendo, primeiramente vivemos a dor, efeito da necessidade de descarga de
energia. Depois, qualquer outra coisa.

O humano tende à inércia para fugir do desprazer. Mas inércia é morte. E é isto mesmo
que funda o psiquismo. Sim, este dilema que pode ser mortífero, nos funda como humanos –
diferentemente de qualquer outro animal!, e passaremos toda a nossa vida, nos debatendo com
isto. Mais ou menos bem-sucedidos.

Viver é imensamente complexo!

“Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo...”,como já


nos disse Guimarães Rosa, em Grandes Sertões.

Para concluir, vou revelar o autor e o texto base do que trouxe para vocês: Sigmund
Freud e seu “PROJETO PARA UMA PSICOLOGIA CIENTÍFICA” – ou, para nós,
psicanalistas, simplesmente ‘O Projeto”, de 1895, somente publicado post morten, em 1950.
Neste texto, estão os alicerces fundadores, não de uma psicologia científica, por fim, mas de um
saber sobre a subjetividade humana – a Psicanálise. Este texto ainda nos vale como norte para a
estruturação do psiquismo, como vimos, e nos serve para pensar muitos desdobramentos
clínicos essenciais na direção dos tratamentos psicanalíticos.

Este texto, dirigido aos médicos, foi deixado inacabado pelo autor que, ele mesmo, anos
depois, tentou destruí-lo, pois era um crítico implacável de seus próprios escritos. Foi
encontrado anos após a sua morte e motivou seus seguidores a publicá-lo, encarando todo o
desafio que sempre foi estabelecer um manuscrito freudiano, cheio de notas e de abreviaturas,
mas considerando o valor epistêmico deste escrito em relação ao rumo que tomou todo o saber
psicanalítico construído posteriormente.

E eu, fui me inspirar nas ideias e interpretações deste outro tão especial para mim, para
construir a minha fala aos médicos que aqui estão hoje.

Muito obrigada pela oportunidade de fazê-lo.

Muito obrigada pelo convite! Foi uma honra!

Abril de 2018

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