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Literatura Brasileira

Poética
Material Teórico
A poesia sacra, lírico-amorosa e satírica de Gregório de Matos

Responsável pelo Conteúdo:


Profa. Ms. Helba Carvalho

Revisão Textual:
Prof. Ms. Malu Rangel
A poesia sacra, lírico-amorosa e satírica
de Gregório de Matos

• Introdução

• O Processo de Catequização no Brasil

·· Nesta unidade, faremos uma reflexão sobre a poesia de


Gregório de Matos no contexto do Brasil-Colônia. Além disso,
discutiremos as principais características da época, o Período
Barroco, no século XVII, envolvendo as questões sociais,
religiosas, históricas e literárias presentes.

Atenção

Para um bom aproveitamento do curso, leia o material teórico atentamente antes de realizar as
atividades. É importante também respeitar os prazos estabelecidos no cronograma.

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Introdução

Ponto de Partida

(Disponível em http://pt-br.mouse.wikia.com/wiki/1-_O_Barroco. Acesso em 19/07/2013).

Observe e analise a imagem acima. Como você a interpreta? Observe cuidadosamente as


cores e as formas. O que ela te faz lembrar? A pintura nos remete a um paradoxo, no qual
o sagrado e o profano estão inseridos. Ela nos revela a oposição entre o claro e o escuro, a
representação do Bem e do Mal, do pecado e do perdão, representados por meio do amor entre
o homem e a mulher e também pela figura escura de um abutre, que representa o profano.
Tais paradoxos e dualidades marcaram a arte barroca e estão presentes na obra literária do
poeta Gregório de Matos (século XVII), conhecido pelo epíteto de “Boca do Inferno”, cuja vida
e obra estudaremos nessa unidade.

Contexto Histórico
Antes de entrarmos na obra poética de Gregório de Matos, vamos conhecer um pouco
dos aspectos históricos e culturais da época colonial. Sabemos que quanto mais informações
obtivermos a respeito do contexto histórico, maior será o nosso poder de apreciação e
entendimento da obra literária. Vamos entender e interpretar esse conceito de Barroco, que é
revestido por influências religiosas e mudanças de pensamento da época.
Como todos sabem, o homem dos séculos XVI e XVII encontrava-se envolto nos dogmas
da Igreja Católica, principalmente. As dualidades e os paradoxos regiam sua vida, que se
concretizava por meio de regras a serem seguidas, obedecidas e controladas pelo Clero em
nome da fé cristã.
Os fatos que deram início aos conflitos entre o homem e a Igreja, aconteceram, mais
precisamente, a partir da fusão da religião com a política, ou seja, da união do Estado e da
Igreja. Como você deve se lembrar, aprendemos, desde o Ensino Fundamental, que essas duas

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Unidade: A poesia sacra, lírico-amorosa e satírica de Gregório de Matos

instituições, na época, sempre foram sinônimo de poder e riqueza e, para manter essa união e
poder, se utilizavam de meios controladores e punitivos para com a sociedade. As consequências
desses desmandos distanciavam a Igreja cada vez mais da sua verdadeira missão, que era difundir
e expandir a fé cristã católica, de acordo com os ensinamentos morais deixados por Jesus por
meio da Bíblia. A Igreja e o Estado concretizavam força e poder e, por isso, controlavam a vida
não só das camadas populares como também da classe de letrados, filósofos e aristocratas.
Nesse período, surge uma nova classe social na Europa, a burguesia, classe dos comerciantes,
contrária ao poder e as imposições da Igreja. Contudo, o ponto que deflagrou o conflito do
homem com a igreja aconteceu quando o Papa Leão X declarou que qualquer cristão poderia
comprar o perdão por seus pecados por meio do pagamento de indulgências.
Essa declaração desencadeia a Reforma Protestante, quando Martinho Lutero rompe com
a igreja e passa a combater seus ideais. Muitos países da Europa se convertem a essa nova
doutrina, porém Portugal e Espanha conservam sua fé cristã. Em 1542, o Concílio de Trento
reúne os líderes da Igreja e criam uma série de medidas tomadas pela Contrarreforma, com o
propósito de combater o movimento dos protestantes, expandir a religião católica e estendê-la
às colônias no Oriente e Ocidente. Esse período é marcado por conflitos, perseguições e mortes.
A Inquisição, criada pelo Tribunal do Santo Ofício, combate os judeus e islâmicos, considerados
pecadores, além de atuar como investigadores de pessoas suspeitas de heresia e bruxaria e
punir os fiéis rebeldes que passam a praticar as novas doutrinas protestantes.
Esse momento de angústia e perseguições não só atingia as classes instruídas, mas, também,
as camadas populares. Nesse momento da História, a população não aceita mais ser comandada
pelos dogmas impostos pela Igreja e busca autonomia. Percebemos, aqui, que o homem desejava
se libertar das imposições da Igreja e do Estado, mas não desejava libertar-se da fé cristã.

Caso você queira saber mais sobre esse período de conflitos e mudanças,
assista ao filme Martim Lutero, a Reforma Protestante no youtube:
• https://www.youtube.com/watch?v=Z9E-9tBIpY8.

Para revitalizar o poder da Igreja Católica, criou-se a Companhia de Jesus, composta por
jesuítas, que eram responsáveis pela catequização das populações nas colônias do continente
americano e asiático. O resultado disso foi a conversão de um grande número de pessoas na
doutrina católica, resgatando o prestígio da Igreja.

O Processo de Catequização no Brasil


No Brasil, a catequização ocorreu de maneira muito conturbada, pois as pessoas enviadas
de Portugal para colonizar o Novo Mundo pertenciam a uma classe de desajustados, que não
desejavam se enraizar na Colônia mas, sim, explorá-la, enriquecer e retornar à terra natal. À
medida que esses homens se estabeleciam, começavam a perceber que no Brasil, ainda que
Colônia de Portugal, devido às diferenças culturais e religiosas dos nativos, a rigidez quanto aos
ensinamentos e dogmas da Igreja Católica originários da cultura da Europa, em muitos casos,
eram suspensos. A população, ao ser catequizada nas colônias, passava por um processo de
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conversão religiosa, pois já tinham suas crenças ligadas aos mitos. Como aprendemos, índios
e negros já carregavam suas tradições, cultuavam os elementos da natureza (Sol, Lua, etc.)
e imagens que, para os olhos da Igreja católica, eram consideradas símbolos de cultos pagãos.
Em meio a todo esse processo de adaptação entre povos de diferentes culturas religiosas, os
portugueses começaram a criar vínculos com essa nova terra e, a partir da formação de famílias,
se enraizaram. Seus filhos, de forma preconceituosa, eram chamados de “mazombos” pela
Coroa de Portugal.
Conforme Roncari (2005, p.97), os colonos portugueses contavam com uma vida dupla: de
um lado, o controle rígido da Igreja católica e da cultura europeia e, do outro, a necessidade de
absorver e entender os costumes e crenças das populações indígenas e africanas da Colônia. Em
meio a essa nova realidade, impregnada de conflitos existenciais, os portugueses esforçavam-se
para manter a vida familiar de acordo com os dogmas da Igreja e as Lei do Estado de Portugal
e, em contraponto, relacionar-se com a cultura dos escravos e índios.
A literatura surge em meio a esse contexto de Reforma e Contrarreforma, Protestantismo,
catequização e controle da Igreja Católica na vida de todos. Assim observa Roncari:

(...) devido a dificuldade de alguém colocar-se ou sequer pensar-se fora


da órbita desse poder criado pela associação entre a Igreja e monarquias
absolutista; e, em parte , pela própria política da Igreja de controlar
e colocar a arte, em geral, e a literatura, em particular, a serviço da
propaganda e promoção de símbolos, valores e sentimentos religiosos. (...)
todo livro ou publicação deveria receber a aprovação e licença da Mesa
do Santo Ofício da Inquisição para não ser censurado (...) e propagar a fé
católica. (2005, p.97)

Nosso primeiro momento nesta unidade de estudo foi, então, conhecermos um pouco da
história da Europa, mais especificamente de Portugal, e, também, do Brasil Colônia nos séculos
XVI e XVII.

Nesse segundo momento de estudo, vamos entender e conhecer melhor as características do


Barroco. A partir das leituras anteriores, podemos observar que o estilo barroco nasce em meio
a conflitos entre o homem, a Igreja, o Estado, as grandes descobertas ultramarinas e o contato
com diversas culturas.

Como afirma Alfredo Bosi, “o Barroco passa por todo esse impacto dentro de um mundo
preso à Contrarreforma (...) em luta com os novos ideais do Protestantismo” (BOSI, 1994, p.29).
Vale lembrar que a arte barroca reflete a tensão entre o Teocentrismo e o Antropocentrismo.
No primeiro, Deus é centro do todas as coisas e, no segundo, ocorre uma inversão de papéis. É
nesse conflito entre a razão e a emoção que o estilo barroco nasce.

Roncari (2005, p.97) define a literatura no Brasil no século XVII como “útil e agradável”,
destinada ao homem branco à serviço dos valores e interesses religiosos, além de ser responsável
por propagar a fé cristã e os sentimentos da Igreja. Não podemos esquecer também que a
circulação de livros e/ou qualquer manifestação artística eram controladas pelo Santo Ofício da
Inquisição que tinha poder para liberar ou censurá-las. Por isso, muitas vezes, os artistas eram

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Unidade: A poesia sacra, lírico-amorosa e satírica de Gregório de Matos

obrigados a expressar seus sentimentos de acordo com ensinamentos e dogmas da Igreja e do


Estado. Mesmo com esse controle, a manifestação artística, no caso, a literatura, não poderia
ignorar e descartar esse ambiente social de insatisfação e abuso de poder que impediam o
homem de agir, pensar e o tornava refém da Igreja Católica. Porém, alguns escritores e pintores
revelaram e manifestaram esse lado de libertação e rebeldia do homem.

Também não podemos ignorar que a literatura era destinada aos proprietários rurais, senhores e
donos de fazendas que conservavam uma vida no campo e estruturavam sua vida na colônia em
meio as plantações de algodão, cana de açúcar e tabaco. Esse proprietário de terras não só guardavam
o poder e controle de suas famílias como também de todos os que viviam e trabalhavam para eles,
tais como: mulher, filhos, escravos, empregados domésticos, agregados que deviam obediência para
ter proteção. Não era permitido a nenhum deles possuir uma vida independente.

Roncari afirma:

O grande proprietário rural, na figura do pai e senhor estendia domínio


e autoridade sobre o conjunto de seus familiares e homens livres que
precisavam (...) submeter-se a ele, muitas vezes, decidindo seus destinos;
os escravos,(...) seu mando era absoluto (...) vida e morte. (1995, p.99)

Como pensarmos em vida literária em uma sociedade tão rústica?


Quando pensamos nessa sociedade em formação no Brasil, descobrimos que poucos
frequentavam os colégios dos jesuítas e, quando o faziam, eram os que pretendiam seguir
carreira eclesiástica. Alguns proprietários rurais contratavam professores particulares, mas o
aprender ler e escrever não era permitido para as mulheres, por exemplo, que aprendiam
apenas a lavar, a coser e a fazer renda.

A vida social acontecia em algumas cidades litorâneas como Salvador, na Bahia, que era o centro
do poder político e administrativo da Colônia, onde ficava o Senado da Câmara, o governador geral
e os grandes representantes da autoridade da Coroa portuguesa no Brasil, além de Pernambuco,
no Recife. Nessas cidades se estabeleciam comerciantes e os proprietários rurais que possuíam casas
nesses centros, utilizadas para passar temporadas. Algumas pessoas viviam na cidade: brancos e
mestiços livres, que viviam de ofícios como os de alfaiate, marceneiro, ourives, ferreiro, santeiro,
oficiais das tropas, soldados, serviçais, etc. Trabalhavam, ainda, nas casas das autoridades e senhores
de terras. Para os escravos e africanos, a regra no campo e na cidade não sofria nenhuma alteração:
independente do tipo de serviço, continuavam escravizados.

No Brasil do século XVII, as práticas literárias germinaram nesse ambiente “urbano” da Bahia
e de Recife, envolvidas por uma sociedade de base rural que se relacionava com as tribos
indígenas e africanas e continuava a carregar as raízes da cultura europeia. Essa convivência
com diferentes raças, costumes, religiões e crenças causaram certa tensão, e o universo literário
da época se perpetuou entre duas vertentes: a do sagrado e a do profano. No período, a poesia é

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considerada um exercício presente no cotidiano: criavam-se trovas, glosas, romances em versos,
desafios, poesias satíricas, trocas de cartas e leitura de sermões nas igrejas. Podemos dizer que
a prática literária estava ligada, de forma intrínseca, à oratória, pois, na sua maioria, os gêneros
textuais citados eram recitados, declamados e pregados por mestres da oratória, visto que a
maioria da população não sabia ler nem escrever. É nesse período que a literatura passa a fazer
parte da vida urbana. O poeta Gregório de Matos ganha fama e destaque no meio literário e
agrada ao público em geral.

Nesta unidade da disciplina Literatura Brasileira, que estuda a poética, vamos nos concentrar,
agora, na poesia e estilo de Gregório de Matos, cujos poemas são de cunho lírico-amoroso,
filosófico, religioso e satírico.

Em um primeiro momento, vamos trabalhar a definição do sagrado e do profano presente


na poesia gregoriana. Para esse entendimento, selecionamos o livro O Sagrado e o Profano: a
essência das religiões, baseado nas leituras de Rudolf Otto, livro que analisa a experiência das
religiões, escrito por Mircea Eliade que, por meio de um estudo fenomenológico e histórico,
procura nos mostrar a relação do homem com os fatos religiosos desde os primórdios, e
como essa visão foi se transformando perante o modo de pensar e agir do homem moderno e
materialista. Estamos no mundo da dualidade e do paradoxo: do sagrado e do profano, do Bem
e do Mal, do céu e do inferno, do pecado, do perdão divino carregado de punições e castigos,
e é nesse berço que a poesia de Gregório de Matos se concretiza e enraíza.
Antes de mergulharmos entre esses dois mundos, o do homem religioso e o do homem não-
religioso, devemos conhecer um pouco sobre a definição e importância do Mito.
Você pode definir e entender o que significa a palavra “mito”? E por que essa definição é
importante para esse estudo?
Podemos dizer que os mitos foram criados para compreendermos melhor a nossa existência,
e estão diretamente ligados a eventos religiosos.
Desde os primórdios, os mitos existem. Pensamos, então, que segundo seus ensinamentos,
narrados e protagonizados por entes sobrenaturais e ligados a fatos reais, somos o que somos.
E, por meio das historias sagradas de deuses e semideuses, conseguimos compreender melhor
a nossa origem e, ao mesmo tempo, somos ensinados e doutrinados a seguir algumas regras
primordiais para nossa convivência e relação com o outro.
Devemos pensar que, através do mito, muitos de nossos atos, considerados sagrados ou
não, se repetem durante toda a nossa existência. E os repetimos porque fomos doutrinados a
acreditar que isso é verdadeiro. Por isso, uma série de eventos narrados nos tempos míticos são
rememorados e permanecem nos dias de hoje. Os ritos acontecem em diferentes religiões e têm
como base o primeiro ensinamento, a primeira narração.
De maneira geral, para realizarmos um ritual, precisamos conhecer a sua “origem”. Isto é: o
mito narra como ele foi efetuado pela primeira vez e o modo como aconteceu .
Vamos pensar em algo próximo a nós, a comemoração do Ano Novo, por exemplo. Não
importa qual calendário é seguido pelos povos, mas o mundo comemora essa data desde os
tempos antigos. O homem arcaico passou a comemorar essa data para encerrar um ciclo e
começar outro, além de estar relacionada às plantações e às colheitas. Todos nós comemoramos
essa passagem, não importa a religião, agradecemos ao ser supremo “Deus” por todas as nossas
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Unidade: A poesia sacra, lírico-amorosa e satírica de Gregório de Matos

conquistas e fazemos nossos pedidos para o ano que começa. Cada religião segue um ritual e é
nessa forma de comemorar e agradecer que entenderemos a definição do sagrado e do profano.

Para Pensar
As pessoas criadas no catolicismo, no Ano Novo, seguem um ritual: assistem a uma missa , rezam e
agradecem a Deus pela vida e saúde do ano que passou e do que virá, porém alguns rituais inseridos
nessa comemoração, influenciados por outras religiões, que para a Igreja são considerados profanos,
foram aceitos e incorporados à comemoração. Muitos católicos oferecem presentes a Iemanjá, pulam
sete ondas para ter sorte, brindam com drinques e bebidas alcoólicas, que segundo a ideia arcaica,
traz vitalidade e saúde, e fazem barulho (o estouro dos fogos de artifício afastam os perigos) –
esses atos, na Antiguidade, representavam atos purificadores. Mesmo sendo uma festa pagã , é
comemorada no mundo todo.

Esses eventos acontecem desde o princípio, e o homem arcaico, através dos mitos, narra essas
comemorações. Porém, para ele, todo e qualquer rito tinha uma explicação; ou seja, ele sabia
o porquê daquela cerimônia. No mundo moderno, o homem, muitas vezes, segue ritos sem
entender sua origem, simplesmente porque deve seguir os costumes religiosos de sua família ou
porque absorveu tal costume, que faz parte do viver em sociedade, faz parte da cultura do lugar.

“Viver” os mitos implica, pois, uma experiência verdadeiramente


“religiosa”, pois ela se distingue da experiência ordinária da vida quotidiana.
A “religiosidade” dessa experiência deve-se ao fato de que, ao ritualizar
os eventos fabulosos, exaltantes, significativos, assiste-se novamente às
obras criadoras dos Entes Sobrenaturais; deixa-se de existir no mundo de
todos os dias e penetra-se num mundo transfigurado, aurora, impregnado
da presença dos Entes Sobrenaturais. Não se trata de uma comemoração
dos eventos míticos, mas de sua reiteração. O indivíduo evoca a presença
dos personagens dos mitos e torna-se contemporâneo deles. Isso implica
igualmente que ele deixa de viver no tempo cronológico, passando a
viver no Tempo primordial, no Tempo em que o evento teve lugar pela
primeira vez. É por isso que se pode falar no “tempo forte” do mito: é
o Tempo prodigioso, “sagrado”, em que algo de novo, de forte e de
significativo se manifestou plenamente. Reviver esse tempo, reintegrá-
lo o mais freqüentemente possível, assistir novamente ao espetáculo
das obras divinas, reencontrar os Entes Sobrenaturais e reaprender sua
lição criadora é o desejo que se pode ler como em filigrana em todas as
reiterações rituais dos mitos. Em suma, os mitos revelam que o mundo, o
homem e a vida têm uma origem e uma história sobrenaturais, e que essa
história é significativa, preciosa e exemplar.
(Disponível em <http://pt.scribd.com/doc/60591375/Mircea-Eliade-
Mito-e-Realidade>. Acesso em 17 de julho de 2013).

Conforme vimos, pode-se dizer que as festividades do Ano Novo nos coloca entre duas
direções: a manifestação do sagrado que acontece através de atos religiosos e agradecimentos
ao “Pai” e também a manifestação do profano, com ritos que não pertencem e não são
aceitos na fé cristã. Porém, as duas modalidades, o sagrado e o profano, convivem num mesmo
espaço. Entenda, aqui, que as festividades religiosas estão ligadas aos mitos, e que a oposição,

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o profano, só pode se concretizar se tivermos a presença do sagrado.
Assim, Mircea Eliade (1992, p.62) observa que toda festa religiosa, todo Tempo Litúrgico,
se refere à ritualização de um evento sagrado, indefinidamente recuperável e repetível, por
isso é considerado circular. Aqui podemos pensar na missa, uma festa religiosa, na qual somos
convidados especiais de Jesus Cristo e o nosso anfitrião é Deus, o Pai todo poderoso. Nessa
reunião, adoramos, agradecemos e glorificamos Pai e Filho, além de pedirmos graças e perdão
por nossas imperfeições e pecados.
Então, como viver o sagrado em um mundo moderno, dessacralizado? Segundo Mircea
Eliade (1992, p.15), “o sagrado e o profano constituem as duas modalidades de ser e existir
no Mundo”. O homem moderno e religioso deseja manter-se nesse universo sagrado, porém
vive em um mundo dessacralizado, individualista, insensível e materialista e, devido a esse
distanciamento de Deus, o profano torna-se parte da realidade.
Agora que conhecemos o contexto histórico, social, político e religioso, estamos prontos para
entender e analisar as poesias de Gregório de Matos. Para darmos início ao estudo, que tal
começarmos por uma poesia sacra, cuja temática é de cunho religioso? Leia o poema com
bastante atenção e reflita sobre como a presença do paradoxo sagrado e profano e a questão
religiosa permeiam todo o texto. Observe que o conflito do homem barroco está presente no
fazer poético de Gregório de Matos.

Aplicando a teoria na prática

A Christo S. N. Crucificado estando o poeta na


última hora de sua vida.
Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer,
Animoso, constante, firme e inteiro:
Neste lance, por ser o derradeiro,

Pois vejo a minha vida anoitecer;


É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai, manso Cordeiro.

Mui grande é o vosso amor e o meu delito;


Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,


Que, por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.

(Disponível em <http://literaturaaprendiz.blogspot.com.
br/2011/02/meu-deus-que-estais-pendente.html>. Acesso em
15/07/2013)

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Unidade: A poesia sacra, lírico-amorosa e satírica de Gregório de Matos

O soneto sacro “A Christo S. N. Crucificado estando o poeta na última hora de sua vida”, de
Gregório de Matos, revela a tensão que o homem moderno e religioso dos séculos XVI e XVII
vivia diante de um mundo dessacralizado e materialista. Neste soneto, fica evidente a presença
temática do pecado x perdão. O eu-lírico, consciente de seus pecados, ora diante da imagem
de Jesus crucificado e deseja ser perdoado. Para isso, o poeta elabora um jogo de ideias
através dos versos que, segundo seu pensamento, podem convencer Deus de que o verdadeiro
culpado de sua perdição é o próprio viver em um mundo degradado, carregado de devassidão,
que o influencia a sair do espaço sagrado para viver no profano. Devido ao sistema de vida
na Colônia ser instável, o mesmo impunha a todos um conflito existencial, que oscilava entre o
Bem e o Mal pois somente assim conseguiriam sobreviver.
Na primeira estrofe do poema, o eu-lírico revela que está diante da imagem de Cristo crucificado e
onipotente, em busca do perdão pelos pecados cometidos. O uso das antíteses, figura de linguagem
muito utilizada no Barroco, encontra-se presente. São imagens de “viver” e “morrer”, que marcam
a transitoriedade da vida. “Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,/Em cuja lei protesto de
viver,/Em cuja santa lei hei de morrer,/Animoso, constante, firme e inteiro”: No último verso, o eu-
lírico utiliza os adjetivos “animoso”, “constante”, “firme” e “inteiro” para demonstrar que, mesmo
em pecado, continua forte e valente, certo de que será perdoado.
Na 2ª estrofe, o eu-lírico, de forma racional, reconhece a efemeridade da vida: “a morte é certa”
e se aproxima. Declara e reforça que é um pecador e cobra que Deus o redima de seus pecados, já
que a missão do divino é perdoar o filho. “Neste lance, por ser o derradeiro,/Pois vejo a minha vida
anoitecer;/ É, meu Jesus, a hora de se ver/A brandura de um Pai, manso Cordeiro.”
O termo carpe diem reaparece e trata de mostrar a importância de aproveitar a vida, pois
o tempo passa logo. Esse tema, já muito utilizado pelos poetas árcades, significa “aproveite o
dia”, expressão latina presente na obra do pensador Horácio, poeta lírico e satírico, filósofo da
Roma Antiga e grande inspirador da escola literária do Arcadismo.
Na 3ª estrofe do poema de Gregório de Matos, o eu-lírico confessa que tanto o amor divino
como seus pecados são grandes, mas, mesmo assim, o amor de Deus é infinito para absolvê-
lo de todas as culpas: “Mui grande é o vosso amor e o meu delito;/Porém pode ter fim todo o
pecar,/E não o vosso amor que é infinito.”
Por fim, na última estrofe do poema, o eu-lírico, diante de tantos conflitos existenciais e
sentimentos negativos, suaviza sua culpa e suplica para Deus, que é só amor, que o salve e
o livre dos pecados cometidos por viver em um mundo caótico e profanado. Observe: “Esta
razão me obriga a confiar,/Que, por mais que pequei, neste conflito/Espero em vosso amor de
me salvar.”
Lembramos que a supremacia do profano sobre o sagrado representa os dois modos de ser
do homem no mundo. Diante disso, entendemos que o pecador só pode ser perdoado por Deus,
infinito amor, caso realmente peque. Assim, entendemos que as dualidades fazem parte de um
mundo conflituoso e imperfeito e tais dualidades se refletem nas atitudes e comportamentos
do homem moderno religioso e não-religioso. Ambos necessitam acreditar na existência do Pai
Deus e de seu filho Jesus Cristo para livrar o homem de todos os pecados.
Vimos aqui um pouco da poesia sacra de Gregório de Matos, cuja vertente conceptista e
sacra tenta seduzir o leitor e, para isso, valoriza o conteúdo através de um jogo de ideias, com
raciocínio lógico e racional que facilita a apreciação do texto. As comparações acontecem por
meio da utilização de metáforas, hipérboles e analogias. Nesse momento, o homem busca a
razão e a fé para encontrar respostas quanto a sua existência no Cosmo.
Sobre a segunda parte da análise, importa dizer, em primeiro lugar, que a poesia satírica
de Gregório de Matos lhe concebeu o epíteto de “Boca do Inferno”. O autor critica, de forma
contundente, os problemas sociais, políticos, econômicos e religiosos que se apresentavam no

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Brasil Colônia, mais especificamente na Bahia dos séculos XVI e XVII. Porém, não podemos
esquecer que a vertente crítica desse gênero poético não perdoava ninguém: autoridades como
políticos e ordens religiosas (padres e freiras), a nobreza, a burguesia, pobres, negros, índios,
mulatos, mestiços, enfim, todos eram alvo de difamação.
Cabe dizer que a poesia lírica gregoriana, ao tematizar o amor obsceno, busca inspiração
nas mulheres negras e índias, que, devido aos costumes naturais e simples de viver em meio à
natureza, eram vistas pelo homem branco como objetos de prazer e representação do pecado e
do amor carnal. O poema a seguir retrata o preconceito do poeta em relação à mulher negra,
colocando-a como objeto sexual e na condição de serva do homem branco. Perceba que o
poema se constrói por meio de uma linguagem popular, na qual Gregório de Matos revela o
desejo carnal e o desrespeito por outras raças, no caso, negros. Observe durante a leitura que
as imagens criadas reforçam o desejo sexual do poeta. A presença do profano perpassa todo o
poema, mas para o poeta desejar uma mulher na condição de serva não significa pecar, pois ele
a enxerga como um objeto, algo inferior que pode ser usado.

Indo o poeta passear pela ilha da cajaiba, encontrou lavando roupa a mulata Annica
e lhe fez este romance.

Achei Anica na fonte


lavando sobre uma pedra
mais corrente, que a mesma água,
mais limpa, que a fonte mesma.
Salvei-a, achei-a cortês,
falei-a, achei-a discreta
namorei-a, achei-a dura,
queixei-me, voltou-se em penha.
Fui dar à Ilha uma volta,
tornei à fonte, e achei-a:
riu-se, não sei se de mim,
e eu ri-me todo p’ra ela.
Dei-lhe segunda investida,
e achei-a com mais clemência,
desculpou-se com o amigo,
que estava entonces na terra.
Conchavamos, que eu voltasse
na segunda quarta-feira,
que fosse à costa da Ilha,
e não pusesse o pé em terra,
Que ela viria buscar-me
com segredo, e diligência,
para na primeira noite
lhe dar a sacudidela.
Depois de feito o conchavo
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Unidade: A poesia sacra, lírico-amorosa e satírica de Gregório de Matos

passei o dia com ela,


eu deitado a uma sombra,
ela batendo na pedra.
Tanto deu, tanto bateu
co’a barriga, e co’as cadeiras,
que me deu a anca fendida
mil tentações de fodê-la.
Quando lhe vi a culatra
tão tremente, e tão tremenda,
punha eu os olhos em alvo,
e dizia, Amor, paciência.
O sabão, que pelas coxas
corria escuma desfeita,
dizia-lhe eu, que seriam
gotas, que Anica já dera.
Porque segundo jogava
desde a popa à proa, a perna,
antes de eu lhe ter chegado,
entendi, que se viera.
De quando em quando esfregava.”
a roupa ao carão da pedra,
e eu disse “mate-me Deus
com puta, que assim se esfrega.”
Anica a roupa torcia,
e torcendo-a ela mesma,
eu era, quem mais torcia,
que assim faz, quem não pespega.
Estendeu a roupa ao sol,
o qual, levado da inveja
por quitar-me aquela glória,
lha enxugou a toda a pressa.
Recolheu Anica a roupa,
dobrou-a, e pô-la na cesta,
foi para casa.(...)

(Disponível em http://www.literaturabrasileira.ufsc.
br/documentos/?action=download&id=28602#-1.
Acesso em 13 de julho de 2013).

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Vamos conhecer agora a poesia satírica de Gregório de Matos que caracteriza, mais
precisamente, o comportamento das pessoas e de autoridades da época.

Epílogos
Que falta nesta cidade? ... Verdade.
Que mais por sua desonra? ... Honra.
Falta mais que se lhe ponha? ... Vergonha.

O demo a viver se exponha,


Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade, onde falta
Verdade, honra, vergonha.

(...)
Quais são meus doces objetos? ... Pretos.
Tem outros bens mais maciços? ... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos? ... Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,


Dou ao demo o povo asnal,
Que estima por cabedal
Pretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos? ... Meirinhos.


Quem faz as farinhas tardas? ... Guardas.
Quem as tem nos aposentos? ... Sargentos.

Os círios lá vêm aos centos, (círios-sacos de farinha)


E a terra fica esfaimada,
porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda? ... Bastarda.


É grátis distribuída? ... Vendida.
Que tem, que a todos assusta? ... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa


O que El-Rei nos dá de graça,
Que anda a justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia? ... Simonia. (venda de coisas


sagradas)
E pelos membros da Igreja? ... Inveja.
Cuidei, que mais se lhe punha? ... Unha. (unha-
avareza,tirania, opressão)
17
Unidade: A poesia sacra, lírico-amorosa e satírica de Gregório de Matos

Sazonada caramunha! (Experimentada lamentação!)


Enfim, que na Santa Sé
O que se pratica, é
Simonia, inveja, unha.

E nos frades há manqueiras? ... Freiras.(manqueira-


Vícios, defeitos; doença infecciosa)
Em que ocupam os serões? ... Sermões.
Não se ocupam em disputas? ... Putas.
Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões, e putas.

O açúcar já se acabou? ... Baixou.


E o dinheiro se extinguiu? ... Subiu.
Logo já convalesceu? ... Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal lhe cresce,
Baixou, subiu, e morreu.

A Câmara não acode? ... Não pode.


Pois não tem todo o poder? ... Não quer.
É que o governo a convence? ... Não vence.

Quem haverá que tal pense,


Que uma Câmara tão nobre
Por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence!

(Disponível em <http://valiteratura.blogspot.com.
br/2010/08/discreta-e-formosissima-maria-enquanto.
html> Acesso em 13/07/2013)

O professor de literatura e músico José Miguel Wisnik musicou este poema de


Gregório de Matos para algumas apresentações de peças no Teatro Oficina e,
depois, em shows próprios. Veja no seguinte link:
http://www.youtube.com/watch?v=m4J1OZExWAc - (Acesso em 01/04/2014)

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Neste poema satírico, Gregório de Matos mostra, de forma categórica, a desordem em que
se vivia no Brasil Colônia, especialmente na Bahia. O poeta acentua os vícios negativos de uma
sociedade na qual portugueses, negros escravos, índios, mulatos e mestiços eram obrigados a
conviver e a criar uma nova sociedade. Percebemos que o eu-lírico, que também representa a
voz do poeta, encontra-se revoltado e indignado com os desmandos do governo que explora
a terra e a sociedade em benefício de seus interesses e enriquecimento próprio. Para acentuar
seu tom de crítica ao sistema, Gregório de Matos, por meio dos epílogos, elabora perguntas e
respostas que tratam de assuntos que, na época, não agradaram à Igreja e ao Estado. Entenda,
aqui, que os epílogos nada mais são que versos interrogativos que se encerram com a resposta
final. Observe: “Que falta nesta cidade?................Verdade” (pergunta e resposta). Cabe
ressaltar que esse tipo de formação de versos é uma característica do estilo Barroco. A rima
presente na formação do poema, inclusive, tem como objetivo acentuar e produzir um eco
denunciador na voz do eu-lírico.
Entenda que cada verso e estrofe desse poema se referem a uma lista de críticas diretas ao
governo, autoridades, policiais, militares e membros da Igreja com o propósito de denunciar
a desonestidade, a corrupção, a incompetência e os maus-tratos sofridos pela população. Ao
mesmo tempo em que denuncia incompetência das autoridades, o poeta também se mostra
preconceituoso em relação aos negros, índios, mestiços e mulatos. A discriminação é notada
quando essas pessoas são comparadas a objetos e animais: “Quais são os seus doces objetos?....
Pretos, / Tem outros bens mais maciços?.....Mestiços/Quais destes lhe são mais gratos?...Mulatos./
Dou ao demo os insensatos/ dou ao demo o povo asnal(...)”.
Na sequência, o eu-lírico declara a existência de uma justiça vendida que trabalha em
benefício do Estado e da Igreja. Não bastasse isso, ressalta a imoralidade dos membros do clero.
Inclusive a linguagem utilizada pelo poeta concretiza a ideia da desonestidade, do descaso e da
incompetência das autoridades portuguesas.
Para encerrar a imagem, o poeta denuncia a péssima situação da Bahia, mostrando a
decadência e a crise que assolavam não só os donos de terras, mas também toda população
de ricos e pobres. Enfim, a crise econômica aconteceu pela incompetência daqueles que
controlavam a sociedade: o Governo e a Igreja. “O açúcar já se acabou? ... Baixou./E o dinheiro
se extinguiu? ... Subiu./Logo já convalesceu? ... Morreu./À Bahia aconteceu/O que a um doente
acontece: Cai na cama, e o mal lhe cresce,/Baixou, subiu, e morreu.” O poeta para expressar e
representar o coletivo da época, compara a instabilidade financeira com uma doença que não
tem cura. “A Câmara não acode? ... Não pode./Quem haverá que tal pense/Que uma câmara
tão nobre/Por ver-se mísera, e pobre/Não pode, não quer, não vence!” O poeta encerra o poema
declarando a decadência e a miséria econômica que se instalava na Colônia, mais exatamente
dirigida à Bahia, e denuncia a impossibilidade de alcançar uma nova organização social, política
e econômica em um mundo que foi corrompido e profanado por interesses financeiros de uma
falsa autoridade e sociedade portuguesa que imperava sobre as classes menos favorecidas.
A seguir, analisaremos o soneto “Lágrimas de Amor: Fogo e Neve”, se refere à poesia lírico-
amorosa gregoriana, que é construída em torno de conflitos e contradições do poeta como amor
e sofrimento, amor e pecado, amor espiritual e amor carnal. Podemos encontrar nesse soneto
a presença das características do Cultismo, que é uma linha de pensamento que descreve
o mundo por meio de sensações e sentidos marcados por figuras de linguagem (antítese e
a sinestesia), muito bem arranjadas pelo poeta para reforçar o amor e o desejo, ou seja, as

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Unidade: A poesia sacra, lírico-amorosa e satírica de Gregório de Matos

dualidades do homem barroco. A mulher é representada pelo poeta de maneira dual: por um
lado como anjo e por outro como um demônio que leva o eu-lírico à perdição que, por sua vez,
também caracteriza o sagrado e o profano.

Lágrimas de Amor: Fogo e Neve

Ardor em firme coração nascido


Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:

Tu, que em um peito abrasas escondido;


Tu, que em um rosto corres desatado; (incontido)
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal em chamas derretido.

Se és fogo como passa brandamente,


Se és neve, como queima com porfia? (insistência)
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania, (equilibrar o domínio do Amor)


Como quis que fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.”

(Disponível em http://www.usinadeletras.com.br/
exibelotexto.php?cod=3289&cat=Ensaios&vinda=S.
Acesso em 13/07/2013)

A linguagem rebuscada valoriza as descrições e sentimentos do poeta. Como podemos


observar, o soneto se forma por meio das oposições: quente/frio, fogo/neve, vermelho/
branco, incêndio/água, ardor/pranto, rio/fogo, fogo/brando, neve/queima, neve/ardente. As
ideias contrárias dialogam com cada verso para mostrar o pensamento conflituoso entre o
prazer pagão e a fé religiosa. A inconstância traduzida nas oposições encontradas no soneto,
demonstram a impossibilidade e o distanciamento da amada, por isso a metáfora do fogo e
da neve. Pensamos: o fogo representa o desejo carnal, o ardor no coração e a neve, o lado
espiritual, a pureza e o arrependimento. Nesse caso, dois tipos de amores se revelam e dialogam
através da dimensão visual da palavra: “Incêndio em mares de água disfarçado;/Rio de neve
em fogo convertido”. Observe nesses versos que o poeta sufoca esse sentimento de desejo que
cresce de forma incontrolável, porém não pode ser consumado. A expressão da angústia é
percebida na formação de palavras sinestésicas e de efeito visual e tátil: “Se és fogo, como
passas brandamente,/Se és neve, como queimas com porfia?/ Mas ai, que andou Amor em
ti prudente!”. O conflito entre o corpo e a alma, aqui, é concretizado pelo poeta na voz do
eu- lírico: “Pois para temperar a tirania,/Como quis que aqui fosse a neve ardente,/Permitiu
parecesse a chama fria.”. A musa do poeta é retratada como anjo e fonte de perdição e pecado
do homem barroco.
20
Perceba que os poemas analisados guardam a maioria dos elementos caracterizados na
poesia do período Barroco. O poeta, em sua obra, mostra a relação da sociedade portuguesa
com a sociedade colonial, formada por escravos negros, índios, mulatos e mestiços, de forma
que o poder do homem branco português predomine sobre as outras raças. Outra questão
presente na poesia de Gregório de Matos é a crítica e o desprezo que o poeta sentia pelos dogmas
da Igreja Católica e clérigos que dominavam, de forma arbitrária, a vida das pessoas da época.
Apresenta a vida do homem em um mundo dessacralizado, que se traduz em oposições como:
Bem/Mal; Deus/Diabo; amor/ódio, pureza/pecado, espírito/matéria. Enfim, a poesia de Gregório
de Matos é construída em um mundo contraditório e ambíguo: Reforma/Contrarreforma, Razão/
Fé, Teocentrismo/Antropocentrismo.
Nosso estudo em torno do Barroco termina aqui. Porém, não se esqueça de visitar os sites
indicados para saber mais a respeito e refletir sobre a formação da sociedade colonial brasileira
em um mundo de tensão, dualidades e corrupção.

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Material Teórico
A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e
Gonçalves Dias

Responsável pelo Conteúdo:


Profa. Ms. Helba Carvalho

Revisão Textual:
Prof. Ms. Malu Rangel
UNIDADE: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

Região da Arcádia Espaço bucólico, Harmonia


Homem e Natureza Retomada Cultura Greco-romana Vida pastoril
Onde vivem Pastores e poetas e Equilíbrio

Arcadismo

... no Brasil

Exploração do ouro e pedras Revolta das elites Inconfidência Mineira


preciosas

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UNIDADE: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

Poeta Árcade Natureza revela O “eu” do poeta

Pastor Glauceste e Pastora Nise


Cláudio Manuel da Costa
Estética clássica, medieval, renascentista e barroca

Simplicidade e requinte na linguagem

Razão e Emoção

Impossibilidade do amor, Dor e sofrimento

Amor à terra natal. Descreve a paisagem rústica

Regiões montanhosas, Penha e penhascos

Dureza da pastora e sofrimento do pastor

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UNIDADE: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

Poeta Romântico Poeta romântico

Poesia sentimental: dor e sofrimento


Gonçalves Dias
Exaltação da paisagem nativa

Eu-lírico em conformidade com a Natureza

Sentimento nacionalista

Visão idealizada da pátria

Visão idealizada da mulher (desejo e prazer)

Impossibilidade da realização do amor

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UNIDADE: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

Poesia satírica Cartas Chilenas Poeta Árcade Poesia lírica simples e direta

Valorização da cultura greco-romana


O poeta denúncia os desmandos do Governador
Menezes (Vila Rica) Tomás Antonio Gonzaga
Amor à terra Vila Rica

Tomás é Critilo escreve as cartas Paisagem bucólica

Doroteu as recebe Pastor Dirceu e Pastora Marília

Fanfarrão é a caricatura do governador Menezes Amor sinônimo de tranquilidade harmonia

Cartas circulam anonimamente em Vila Rica No campo, Dirceu e Marília compartilham o amor

Os relatos identificam os poderosos Poesia doméstica

Critica aos poderosos Pastor deseja casar-se e ter família

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UNIDADE: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

Equilíbrio e harmonia

Revela e representa os sentimentos do poeta


Natureza
Representa: alegria, dor, sofrimento e angústias do eu- lírico e do poeta

Lugar onde vive o poeta, o eu-lírico e o pastor

Revela o “eu” do poeta

Pastor e pastora se encontram em harmonia

Fugere urbem – Fuga da cidade

Locus amoenus – lugar ameno

Carpe diem – aproveite o dia, a vida é fugaz

Iluminismo: o Homem ligado à Natureza

Resposta para a existência humana

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A poesia de Cláudio Manuel da Costa,
Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

• A poesia de Cláudio Manuel da Costa,


Tomás Antônio Gonzaga
e Gonçalves Dia

· Nesta unidade, faremos uma reflexão sobre a poesia árcade


de Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga
no contexto do Brasil Colônia. Além disso, discutiremos as
características principais da época, envolvendo as questões
sociais, ideológicas, históricas e literárias presentes no século
XVIII em comparação com a poesia do romântico Gonçalves
Dias, do século XIX.

É necessário que você leia com atenção os textos disponibilizados, visite os sites sugeridos,
leia obras importantes da bibliografia (principalmente aquelas que estão na biblioteca
eletrônica da Universidade) e procure estabelecer relação entre a teoria e a prática, já que
você perceberá que os textos foram concebidos com muitos exemplos. Não se esqueça,
ainda, de interagir com o seu tutor questionando sobre os pontos que não ficaram muito
claros para você. Esse diálogo é fundamental no processo de aprendizagem.

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Unidade: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

Contextualização

Pensando no Arcadismo, que retoma a Antiguidade greco-romana nos termos Carpe diem
(aproveite o dia), Fugere urbem (fuga da cidade) e Locus amoenus (lugar ameno e agradável,
valorização da natureza, busca por um cenário bucólico), você acredita que em uma sociedade
contemporânea, tecnológica e com valores efêmeros como a dos dias atuais, o homem
conseguiria processar significados árcades? Como essa relação se processa?

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A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga
e Gonçalves Dias
Jean-Antoine Watteau, Peaceful Love, óleo sobre tela, 1718.
Vamos começar esta unidade revendo
um pouco sobre o estilo Barroco que, como
vimos, representava o mundo de conflitos
existenciais do homem marcados pela Reforma
e pela Contrarreforma. O homem não queria
mais se sujeitar aos seguimentos e doutrinas
impostas pela Igreja e pelo Estado e aspirava
pela liberdade de seus pensamentos, emoções
e vontades. Somente no século XVIII, com a
ascensão da classe burguesa, esta nova visão
de mundo se concretizou.

Por conta das ideias da Ilustração/ Iluminismo, de origens inglesa e francesa, o século
XVIII atravessou um momento de transição e mudanças. Algumas tendências ideológicas
marcaram esse período, entre elas: a exaltação da Natureza, a relação homem e universo, o
homem em equilíbrio e em harmonia com o espaço natural. A ampliação do conhecimento
e do saber, a liberdade do pensamento, as ideologias e a racionalidade humana se
integraram. O restabelecimento da religião em benefício do bem-estar da sociedade e
não como um meio de controlar e punir o homem também foi uma mudança importante.
O resgate da confiança popular em relação aos políticos e autoridades governamentais
também deve ser destacado.

Os estudos filosóficos fundem-se a um racionalismo e empirismo nas Letras e estão


impregnados de orientações metodológicas do racionalismo francês. As ideias defendidas
nas Enciclopédias, com Voltaire e Rousseau, por exemplo, negam o universo hierárquico do
Absolutismo e seguem as ideias Iluministas. Voltaire enfatiza a razão e a racionalidade do
homem e Rousseau coloca a emoção em primeiro plano, seguida pela razão. Ambos os filósofos
têm a liberdade que o homem estabelece com a Natureza como base de pensamento. Temos,
ainda, a Física de Newton e a Filosofia de Kant, cujos ideais projetam no homem mudanças
que estabelecem maior proximidade com o meio natural. Nasce, assim, uma relação intrínseca
entre Homem e Natureza.

O estudioso Antonio Candido (1993, p.54), a respeito desse período, destaca a presença
da lei natural na concepção do que é o homem e o universo. A citação abaixo esclarece seu
ponto de vista:
“(...) correntes do século XVIII amaciam-se de algum modo por sentimento muito
mais agudo dos fenômenos naturais; e aquilo que se chamava de preferência
universo passa a chamar-se natureza. (...) O conceito de natureza vai englobando
o instinto, o sentimento, cujas manifestações, subordinadas a princípio, avultavam
ao ponto de promoverem, em Literatura, explosões emocionais que desmancham
de todo a clara linha da Razão. (...) a Natureza aparece como convite à sinceridade
(...) a expressão direta do que o poeta sente (...)”.

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Unidade: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

O Arcadismo surge para representar o lado racional, claro e verossímil da versão do Iluminismo,
que busca respostas nos fenômenos naturais para entender o mundo. O poeta árcade encontra
equilíbrio e harmonia na vida simples que é definida como bucolismo. Os poetas desejam fugir
da cidade para o campo e aproveitar o dia. O pensamento clássico de Horácio Carpem Diem
permanece no Arcadismo com o propósito de alertar o homem para efemeridade da vida.
E como viver com simplicidade em um momento de tantas ideias novas?
Se pensarmos no Brasil Colônia, o século XVIII foi marcado pela descoberta e exploração
do ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, momento que trouxe riqueza e fortuna para
os colonos proprietários de terras. Nessa nova vida, como consequência dessa descoberta,
os colonos saíram do isolamento nas fazendas e engenhos e fixaram residência nas cidades
e vilas. Devido a essa mudança, o comércio se expandiu, pois os colonos tornaram-se
dependentes das mercadorias, que até então, produziam nos locais onde moravam como isso
se ampliou o comércio e a relação interpessoal entre vilas, cidades e outras regiões, inclusive
com pessoas de outras nações que se estabeleceram na Colônia. Esta nova maneira de viver
proporcionava aos colonos certo conforto e ócio. No contato com outras pessoas, começaram
a ter uma vida social que exigia certa polidez, conhecimentos nas Artes e nas Letras, que
aquele homem rústico do engenho e fazenda não necessitava no seu isolamento rural. A
facilidade de enriquecimento, através da extração do ouro e pedras preciosas, facilitava que
enviassem os filhos para estudar na Europa.
Perceba que a Coroa Portuguesa controlava a exploração do ouro e pedras preciosas
e continuava a controlar a vida da colônia. Os escravos e negros seguiam sofrendo nas
mãos dos colonos portugueses. Os mestiços, chamados de mazombos, eram tratados com
preconceito. Enfim, as restrições e os controles da Coroa não permitiram aos colonos
maiores autonomia e liberdade.
Note que a situação da Europa e do Brasil é diferenciada: na Europa, o homem, através
das ideias Iluministas, conquista seu espaço como indivíduo livre para tomar decisões e fazer
escolhas sem a intervenção da Igreja e Estado. No Brasil, longe de qualquer contato com a
Europa, continuamos impedidos de nos relacionarmos com outras culturas que não fosse
à portuguesa. Advirto que Portugal, na época, não aceitava que nenhum navio estrangeiro
atracasse nos portos brasileiros, e, os navios que partiam da Colônia, só poderiam seguir destino
para Portugal. Diante desse quadro, entendemos porque o desenvolvimento social, político e
cultural do Brasil ocorreu tardiamente.
As novas tendências árcades chegam ao Brasil por intermédio dos intelectuais, escritores e
poetas, filhos de portugueses, nascidos no Brasil e enviados à Universidade de Coimbra para
formação acadêmica.
Vamos, agora, entender essa influência cultural na poesia árcade brasileira e como nossos
poetas sentiram e expressaram o mundo rústico e colonial ao “novo gosto” literário, o Arcadismo,
nos moldes europeu.
Leia a declaração de Gonzaga: Se houvesse por minha parte de lhe fazer alguma
censura só me queixaria, não do que fez, mas do que deixou de se fazer; quisera
eu que em vez de nos debuxar no Brasil cenas da Arcádia, quadros inteiramente
europeus, pintam-se os painéis com as cores do país onde as situou. Oh! Quanto
não perdeu a poesia nesse fatal erro! (CANDIDO, 1993, p.67).

8
Para Candido, muito da originalidade da literatura brasileira se perdeu, na época, devido a
forte influência dos modelos europeus na formação dos poetas e escritores brasileiros, que por
falta de um nacionalismo e amor à terra natal, não conseguiam produzir uma poesia puramente
nativa e nacionalista, mas, sim, impregnada de um modelo e estética de padrões clássicos
eruditos da Europa.

Para melhor aprofundamento e compreensão da poesia árcade e romântica escolhemos os


escritores: Claudio Manuel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga e o romântico Gonçalves Dias,
que expressam os sentimentos e as emoções diante de uma paisagem originalmente brasileira e
tropical com tendências poéticas firmadas na tradição clássica portuguesa.

O poeta Claudio Manuel da Costa, mineiro, talvez seja o que mais proclamou, em suas poesias,
os valores e emoções de sua terra natal Mariana, Minas Gerais, com marcas da estética clássica,
renascentista e barroca. Para o poeta, a passagem do Barroco para o Arcadismo representou
uma forte mudança de pensamento e estética que Roncari (1995, p.227) chama a arte da
razão. Uma poesia organizada que revela emoções e sentimentos concretizados na razão. Para o
poeta, a poesia lírica e bucólica deve libertar-se dos excessos de metáforas, antíteses, linguagem
rebuscada, paradoxos do Barroco e, buscar-se traduzir ao “novo gosto” do Arcadismo brasileiro,
que procura de maneira simples, natural e suave traduzir o novo sentimento e complexidade do
homem que deseja se afastar, e ao mesmo tempo despreza as inutilidades e os exageros da vida
na cidade e sonha com uma Natureza perfeita.

O crítico literário Antonio Candido (1993, p.42) elaborou uma fórmula para explicar a
base do Arcadismo: Arcadismo + Classicismo Francês + herança-greco-latina + tendências
setecentistas que, segundo ele, variam de acordo com cada país, mas guardam características
que independem de lugar como o culto da sensibilidade, a fé na razão, a fé na ciência e
na resolução dos problemas sociais todos referenciados e expressos de forma racional na
Natureza para manifestar a verdade do homem moderno. A poesia pastoril, como tema,
revela por meio da delegação poética um pastor fictício, a imagem do homem urbano, que
se afastou da vida natural e campestre para viver na cidade, mas esta se tornou um cenário
de frustração e euforia perdida. Na poesia árcade, o pastor evoca os mitos da idade de ouro,
pois deseja libertar-se da artificialidade civilizada e voltar a contemplar a vida simples em
contato com a Natureza.

No Brasil, a poesia pastoral adotou uma personalidade poética rústica que permitiu
exprimir uma situação de contraste cultural, valorizando os costumes europeus e ao mesmo
tempo a situação local.

Claudio Manuel da Costa elabora uma poesia de formação rústica para expressar a paisagem
de sua terra natal Mariana. Homem marcado por decepções, denunciado como inconfidente e
preso. Na prisão, escreve poemas que expressam suas emoções, dores, injustiças e sofrimentos
por meio de seu pastor Glauceste de e sua pastora Nise.

Durante a leitura dos poemas entramos em contato com um poeta que reflete a natureza
de sua terra natal como tentativa de imortalizá-la. Notem a forte influência do Classicismo
português do Renascimento e do Barroco na obra do poeta.

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Unidade: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

III (Sonetos) [Este é o rio, a montanha é esta]

Este é o rio, a montanha é esta,


Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.

Tudo cheio de horror se manifesta,


Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.

Oh quão lembrado estou de haver subido


Aquele monte, e às vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!

Tudo me está a memória retratando;


Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.

Como bem observa Roncari (1995, p.242), Claudio Manuel da Costa, em seus sonetos, cria
um paralelismo para falar dos sentimentos e angústias do pastor. Observe que cada estrofe
mantém semelhanças na sua formação semântica e sintática: Este é o rio, a montanha é esta/
Estes os troncos, estes os rochedos. Quando descreve a paisagem nativa, de forma bastante
melancólica e sofrida, observa que a paisagem da sua terra natal não combina com as imagens
guardadas em suas lembranças. Ao retornar de Portugal, o poeta observa que a paisagem
de antes não é mais a mesma: devido ao progresso, sofreu transformações que para ele são
negativas e através de seu pastor revela essa insatisfação: Tudo cheio de horror se manifesta,/Rio,
montanha, troncos, e penedos;/Foi cena alegre, e urna é já funesta./ Tudo me está a memória
retratando;/Que da mesma saudade o infame ruído /Vem as mortas espécies despertando.
Devemos perceber que a poesia árcade valoriza a paisagem nativa. No caso, a paisagem
descrita por Claudio Manuel da Costa, é a mineira, e, por isso, ele deve ser considerado um
poeta telúrico. Além disso, conserva um estilo poético refinado ao modo dos moldes portugueses
devido a sua formação em Coimbra. No soneto, o poeta não aboliu as rimas, mas os poetas
árcades desprezavam-nas para seguirem o modelo clássico. A linguagem é clara, racional, direta
e requintada, pois o árcade sempre preza o equilíbrio, a harmonia, a razão e apresenta como
modelo a Natureza, lugar onde o homem busca e encontra a purificação e libertação da vida
urbana. Agora, veja outro soneto:

XIII (Sonetos) [Nise? Nise? onde estás? Aonde espera]


Nise? Nise? onde estás? Aonde espera
Achar-te uma alma, que por ti suspira,
Se quanto a vista se dilata, e gira,
Tanto mais de encontrar-te desespera!

Ah se ao menos teu nome ouvir pudera


Entre esta aura suave, que respira!
Nise, cuido, que diz; mas é mentira.
Nise, cuidei que ouvia; e tal não era.

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Grutas, troncos, penhascos da espessura,
Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde,
Mostrai, mostrai-me a sua formosura.

Nem ao menos o eco me responde!


Ah como é certa a minha desventura!
Nise? Nise? onde estás? aonde? aonde?

Neste soneto XIII, Claudio Manuel procura ilustrar o pastor como vítima do amor da pastora
Nise. Nesse universo bucólico, o amor é tudo que o pastor deve preocupar-se, o restante são
inutilidades e não completam sua vida. Retoma o modelo clássico de um locus amoenus, ou
seja, um local ameno, tranquilo para viver ao lado de sua pastora. Porém, o pastor se sente
desamparado, abandonado e desesperadamente busca por sua amada: Nise? Nise? onde
estás? Aonde espera/Achar-te uma alma, que por ti suspira,/Se quanto a vista se dilata, e gira,/
Tanto mais de encontrar-te desespera!. As exclamações e interrogações revelam as dúvidas e
os apelos do pastor. Nas estrofes seguintes, o pastor continua a implorar para que a pastora o
ouça, porém é ignorado. Notem que a Natureza reflete os sentimentos do pastor em relação
a ela. Não esqueçamos que na poesia de Claudio as penhas, grutas, rochedos, referem-se à
paisagem nativa de Minas Gerais, sua terra natal. Para o pastor, as penhas, troncos e penhascos
representam a dureza da pastora para com ele. Grutas, troncos,/penhascos da espessura,/ Se
o meu bem, se a minha alma em vós se esconde. O soneto se encerra com as ressonâncias
(repetições), que enfatizam a busca continua pela pastora.

Soneto XIV
Quem deixa o trato pastoril amado
Pela ingrata, civil correspondência,
Ou desconhece o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado.

Que bem é ver nos campos transladado


No gênio do pastor, o da inocência!
E que mal é no trato, e na aparência
Ver sempre o cortesão dissimulado!

Ali respira amor sinceridade;


Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Um só trata a mentira, outro a verdade.

Ali não há fortuna, que soçobre;


Aqui quanto se observa, é variedade:
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!

No soneto XIV, Claudio Manoel da Costa, na voz do pastor, elabora um paralelo entre a vida
na cidade e no campo. Ao falar da cidade, o pastor declara que a vida é ingrata, mas no campo
encontra a paz, equilíbrio, gratidão, amor e afeto. Como vimos em nossos estudos, o Arcadismo
é a retomada do equilíbrio do homem com a Natureza de forma racional. Aqui o afastamento do
homem da cidade para o campo é mostrado por comparações e oposições, herança do barroco.

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Unidade: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

Quem deixa o trato pastoril amado/Pela ingrata, civil correspondência,/Ou desconhece o rosto
da violência,/Ou do retiro a paz não tem provado. Neste trecho o pastor crítica o homem que
deixa o campo e parte para a cidade. Que bem é ver nos campos transladado / No gênio do
pastor, o da inocência! /E que mal é no trato, e na aparência /Ver sempre o cortesão dissimulado.
Nesses versos, observa-se que o homem da cidade é falso e dissimulado, enquanto que o pastor
é pureza e inocência: Para o pastor viver na cidade e tornar-se falso e mentiroso. Ali respira amor
sinceridade;/Aqui sempre a traição seu rosto encobre;Um só trata a mentira, outro a verdade. As
oposições reforçam, reconhecem e confirmam as diferenças entre a vida na cidade e no campo
e a mudança de caráter do homem devido às exigências da convivência em meio social e de
interesses. Mesmo não sendo um texto barroco, tal evidência de oposições aparecem nos textos
de Claudio Manoel da Costa, que passou por essa transição do Barroco para o Arcadismo: Ali
não há fortuna, que soçobre;/Aqui quanto se observa, é variedade: /Oh ventura do rico! Oh
bem do pobre! Ao final o pastor esclarece que a cidade oferece bens materiais aos homens à
custa de falsidades e mentiras, mas o campo oferece uma variedade de bens que se sobressaem
à matéria, o amor, o equilíbrio, a racionalidade e a harmonia. Notem que o poeta se inspira
na expressão fugere urbem que significa: a fuga da cidade, do escritor latino Horácio, para o
encontro do homem com a Natureza.
Vejamos um outro soneto:

Soneto XXII

Neste álamo sombrio, aonde a escura


Noite produz a imagem do segredo;
Em que apenas distingue o próprio medo
Do feio assombro a hórrida figura;

Aqui, onde não geme nem murmura


Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,
Sentado sobre o tosco de um penedo,
Chorava Fido a sua desventura.

Às lágrimas a penha enternecida


Um rio fecundou, donde manava
D’ânsia mortal a cópia derretida.

Abalava-se a penha comovida;


Fido, estátua da dor, se congelava
A natureza em ambos se mudava;

Você sabe por que o Arcadismo também é conhecido como Neoclassicismo?


Isto ocorre porque os poetas árcades resgataram a cultura clássica greco-romana e revalorizaram
os recursos estilísticos da mitologia pagã, porém não como uma crença, na qual se acreditava nos
mitos, mas sim, como um recurso para a construção e beleza do texto poético. Lembre-se que na
tradição clássica a Arte representava uma cópia da Natureza. No soneto XXII, temos a presença das
figuras mitológicas Zéfiro e Fido: brando em fúnebre arvoredo,/ Chorava Fido a sua desventura.

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Zéfiro na mitologia representava os ventos mais destruidores e violentos da natureza, porém é
descrito num estado de calma e brandura, em oposição a sua verdadeira natureza, encontra-se
num estado de calma e equilíbrio, porém o adjetivo fúnebre remete, talvez, a uma insatisfação
de Zéfiro por negar seu próprio temperamento violento e destruidor. Fido, uma tragicomédia
pastoral, em que elfos e ninfas se retiram da vida glamorosa das cidades da Renascença e buscam
conforto nas paisagens campestres da Arcádia.
Conforme estudamos, o poeta árcade busca nas paisagens bucólicas refúgio da cidade. A
imagem da penha (pedra) é rompida pelo rio, a dureza da pedra e do pastor Fido mudam:
A natureza em ambos se mudava;/ Abalava-se a penha comovida;/ Fido, estátua da dor, se
congelava/a natureza em ambos se mudava. A presença da penha nos sonetos de Claudio
Manoel pode representar a dureza da pastora para com o pastor.

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Caso queira saber mais sobre Pastor Fido consulte: http://www.italianmadrigal.com/
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Quando falamos dos sentimentos pela terra natal, apego à Natureza e à paisagem nativa do
Brasil Colônia, lembramos do poeta romântico Gonçalves Dias. Poderíamos, aqui, apresentar
sua biografia para apreendermos melhor sua obra. Pelo Prólogo, o qual vemos abaixo, o poeta
apresenta aos leitores a expressão lírica do seu eu:
Dei o nome de PRIMEIROS CANTOS às poesias que agora publico, porque
espero que não serão as últimas.Muitas delas não têm uniformidade nas estrofes
(...)adotei todos os ritmos da metrificarão portuguesa, e usei deles como me
pareceram quadrar melhor com o que eu pretendia exprimir.(...) foram
compostas em épocas diversas – debaixo de céu diverso – e sob a influência de
impressões momentâneas.(...) nas margens viçosas do Mondego e nos píncaros
enegrecidos do Gerez – no Doiro e no Tejo – sobre as vagas do Atlântico, e
nas florestas virgens da América. Escrevia-as para mim, e não para os outros;
contentar-me-ei, se agradarem; e se não... é sempre certo que tive o prazer de
as ter composto.
Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena
política para ler em minha alma, reduzindo à linguagem harmoniosa e cadente o
pensamento que me vem de improviso, e as idéias que em mim desperta a vista
de uma paisagem ou do oceano – o aspecto enfim da natureza. Casar assim o
pensamento com o sentimento – o coração com o entendimento – a idéia com
a paixão – colorir tudo isto com a imaginação, fundir tudo isto com a vida e
com a natureza, purificar tudo com o sentimento da religião e da divindade, eis
a Poesia – a Poesia grande e santa – a Poesia como eu a compreendo sem a
poder definir, como eu a sinto sem a poder traduzir.
O esforço – ainda vão – para chegar a tal resultado é sempre digno de louvor;
talvez seja este o só merecimento deste volume. O Público o julgará; tanto
melhor se ele o despreza, porque o Autor interessa em acabar com essa vida
desgraçada, que se diz de Poeta.
Rio de Janeiro –julho de 1846.

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Unidade: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

Depois da leitura acima, podemos mergulhar na produção poética de Gonçalves Dias que
é marcada por ideias e impressões momentâneas dos lugares por onde passou e viveu. Na
juventude, Gonçalves Dias levou uma vida dupla e solitária, entre Brasil e Portugal (Coimbra)
onde completou seus estudos. O afastamento da terra natal, da mãe mestiça e carinhosa, a
morte do pai português e o fato de ser filho natural e mestiço numa terra escravocrata, fizeram-
lhe uma alma sofrida, melancólica e solitária.
Para Roncari (1995, p.304) Gonçalves Dias é considerado um dos poetas que nasceu com
dom para sê-lo e o resultado da sua poesia está intrinsecamente ligado a dor e ao sofrimento
que viveu na juventude e o preconceito que o acompanhou durante toda sua vida. O poeta
recusa o mundo degradado em que vive (eu senti, eu vivi, eu sofri) e no campo da Natureza,
canta e exalta a paisagem que observa e, neste momento, sente-se irmanado com ela. O poeta
aprecia os detalhes, principalmente o que há de mais pitoresco, em lugar de descrever o espaço
cidade. Roncari declara: “O mesmo homem que recusa um mundo pequeno demais para
acomodar sua alma grande é capaz de exaltar aquela outra parte do mundo, a da natureza, que
ele desconhece, mas que imagina ampla e exuberante (...) daí a admiração pelo exótico (...) ele
deixa-se de ser cantor de si mesmo e tornar-se bardo da natureza e dos heróis que vivem nela.”
(1995, p.303-304)
Vamos sentir na poesia de Gonçalves Dias uma expressão da alma que não delega ao pastor,
como faziam os árcades, as dores do mundo, pois é o poeta que sofre e revela a intensidade de
suas dores para o leitor.
Gonçalves Dias é conhecido principalmente por sua poesia Canção de Exílio, na qual expõe
as dores do eu lírico distante de sua terra natal que observa e compara a paisagem de Portugal
com a paisagem nativa brasileira. Os versos revelam que, segundo a visão do poeta, não existe
lugar mais bonito como a sua terra Natal e a saudade toma conta de seu espírito. O poeta
lamenta e sofre, assim como Claudio Manuel da Costa, por meio de seu pastor, desenvolve
nas suas poesias. O pastor de Claudio ora sofre por amor ora sofre por se sentir inadequado ao
sistema social imposto pela coroa portuguesa. Os dois poetas buscam equilíbrio na Natureza e
sofrem a rejeição e o preconceito por parte da sociedade.
Agora, vamos conhecer o poeta Gonçalves Dias, cujo valor poético está além da Canção
de Exílio. Para isso selecionamos a poema indianista O Canto do Piaga em que um espectro
anuncia aos índios a chegada dos portugueses. Ao contrário da carta de Pero Vaz Caminha, a
chegada e o encontro com os índios foi sinônimo de dor e sofrimento. Logo no início do poema,
Piaga, pajé da tribo, se depara com a imagem de um espectro repulsivo que o apavora. Vemos
que o poeta buscou no gênero fantástico mostrar a chegada das naus dos portugueses trazendo
dor, sofrimento e morte às tribos indígenas.

Ó Guerreiros da Taba sagrada,


Ó Guerreiros da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.

Esta noite — era a lua já morta —


Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

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(...)
Era feio, medonho, tremendo,
Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!

Na parte II, o terrível espectro solicita ao pajé que


interprete os sinais enviados pela natureza.

Tu não viste nos céus um negrume


Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?

Tu não viste dos bosques a coma


Sem aragem — vergar-se e gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?
(...)
Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá!

Em seguida, descreve a chegada dos monstros, as caravelas, através do mar. O interessante


é que o poeta Gonçalves Dias descreve as caravelas por meio da própria natureza, sendo essa
um monstro que brota do mar. A descrição, o terror nos remete à imagem do filme Piratas do
Caribe, quando o navio pirata brota das águas.

Pelas ondas do mar sem limites


Basta selva, sem folhas, e vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente


—Brenha espessa de vário cipó —
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; é só!

Negro monstro os sustenta por baixo,


Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando — lá vão.

Nas duas últimas estrofes, o poeta expõe o sentimento de insatisfação em relação aos
portugueses e à maneira vil como colonizaram o Brasil. Cada verso, rimado, acentua a magoa
e a revolta contra os homens brancos portugueses e colonizadores que, na voz do eu lírico, são
classificados como cruéis, covardes e impiedosos que só trouxeram dor, sofrimento, escravidão
e destruição da civilização indígena.

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Unidade: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

(..)
Esse monstro. . . — o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?


Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade —


Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente
Profanar Manitôs, Maracá.

Vem trazer-vos algemas pesadas,


Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!

Fugireis procurando um asilo,


Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se.
Vendo os vossos quão poucos serão.
Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá!

Entenda que o poema acima, de forma bastante realista, descreve a ruína e a destruição
dos índios pelos portugueses. Nele, Gonçalves Dias rejeita o universo imaginário criado pelo
escrivão Pero Vaz de Caminha na carta, que relata o Descobrimento do Brasil. Gonçalves Dias
demonstra claramente seus sentimentos, emoções e valores como homem mestiço e poeta.
Por essa poesia, confirma-se o exposto no prólogo lido: Gonçalves Dias critica e condena
diretamente os portugueses sem se preocupar com os julgamentos exteriores à sua obra que,
com certeza, na época, não agradaram aos portugueses. O leitor partilha da emoção e do
sofrimento do poeta por viver num mundo degradado.
Este mesmo sentimento de insatisfação, inconformidade, solidão, dor e sofrimento são
compartilhados pelos dois poetas Claudio Manuel da Costa e Gonçalves Dias. Acrescenta-se a
isso, o isolamento dos dois poetas, Claudio pela prisão e Gonçalves pelo preconceito. Quanto
ao estilo e conteúdo poético ambos revelam a paisagem nativa como personagem dos poemas.
Agora, sairemos desse universo da emoção e sofrimento do “eu” para conhecermos a
obra do poeta árcade, de meia idade, Tomás Antonio Gonzaga, que viveu em Mariana, Minas
Gerais, grande parte de sua vida ao lado do amigo, guia e orientador Claudio Manuel da Costa.
Ao compararmos os dois poetas árcades, precisamos perceber alguns contrastes na formação
de suas poesias. Primeiramente, Claudio Manuel da Costa em seus sonetos, ainda conserva
marcas da poesia barroca, uma poesia amaneirada. Conforme Roncari (1995, p.268-269) o
seu contemporâneo, Tomás Antonio Gonzaga, produz um estilo de poesia simples e direto com
um vocabulário acessível aos leitores; grande parte de suas obras foram produzidas enquanto o
poeta estava em cárcere privado por fazer parte do movimento da Inconfidência Mineira.

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Antonio Candido (1993, p.113) ressalta que o amor e apego à terra, que Tomás Antonio
Gonzaga sentia por Minas Gerais, mais precisamente por Vila Rica, terra onde viveu, talvez o
tenha influenciado e contribuído por interessar-se pela Inconfidência Mineira, fato esse que o
levou à prisão. Porém, seu papel como participante da luta pela liberdade do povo brasileiro da
opressão de Portugal foi muito pequeno e vagamente marginal.
Ao compararmos as pastoras de Claudio Manuel e Antonio Gonzaga, percebemos que a
pastora Nise, de Claudio Manuel da Costa, que não sabemos se existiu na realidade para
o poeta, representa nos seus sonetos dor, desprezo e sofrimento do pastor. Em contraponto,
Marília de Dirceu, nas liras de Gonzaga, está ligada profundamente a experiência pessoal do
poeta. De tal modo que para compreendermos seu fazer poético, necessitamos conhecer um
pouco de sua vida pessoal. Homem maduro de quarenta anos, que se apaixona pela jovem
Doroteia de 17 anos. Para o poeta, a impossibilidade desse amor era certa, principalmente pela
diferença de idade e pela jovem pertencer a uma família tradicional mineira que, para afastá-
la de Gonzaga, manda Dorotéia para fora de Vila Rica. Segundo Tomás Brandão, em Antonio
Candido (1993, p.118), quando o poeta escreve a lira “Eu, Marília, não sou nenhum vaqueiro”
essa pode ter sido produzida em resposta a família de Doroteia que impediu a realização desse
amor. A moça retorna a Vila Rica casada.
A grande decepção amorosa sofrida por Gonzaga é representada na poesia e no estilo árcade:
amor, paz, equilíbrio e harmonia num espaço bucólico, no qual pastor e pastora buscam a
realização do Amor e o afastamento da cidade. Afirma Roncari (1995, p.269): “As diferenças de
idade, de condição de fortuna entre Tomás e Dorotéia, se transferem para o pasto e a pastora,
Dirceu e Marilia; assim como o cenário físico e social de Minas invade o locus amoenus da poesia
arcádica.” Por essa razão, muitas vezes, poeta e pastor se confundem com Tomás e Dirceu e
Marília com Doroteia, pois estamos falando do real e do fictício que se fundem na composição
poética. Temos, então, duas histórias que caminham juntas e que têm como tema central o
amor de Dirceu por Marília e, através deles podemos conhecer o poeta Antonio Gonzaga e sua
amada Doroteia. Vamos conhecê-las:

Lira XIV
(...)Ornemos nossas testas com as flores.
E façamos de feno um brando leito,
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Gozemos do prazer de sãos Amores.
Sobre as nossas cabeças,
Sem que o possam deter, o tempo corre;
E para nós o tempo, que se passa,
Também, Marília, morre.

Com os anos, Marília, o gosto falta,


E se entorpece o corpo já cansado;
triste o velho cordeiro está deitado,
e o leve filho sempre alegre salta.
A mesma formosura
É dote, que só goza a mocidade:
Rugam-se as faces, o cabelo alveja,
Mal chega a longa idade.

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Unidade: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

Que havemos de esperar, Marília bela?


Que vão passando os florescentes dias?
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
E pode enfim mudar-se a nossa estrela.
Ah! Não, minha Marília,
Aproveite-se o tempo, antes que faça
O estrago de roubar ao corpo as forças
E ao semblante a graça.

Na primeira estrofe da lira XV, o pastor nos apresenta uma imagem pastoril, onde o pastor
Dirceu propõe para a pastora a união desse amor (...) Ornemos nossas testas com as flores./E
façamos de feno um brando leito,/Prendamo-nos, Marília, em laço estreito, /Gozemos do prazer
de sãos Amores./Sobre as nossas cabeças,/Sem que o possam deter, o tempo corre. Nessa lira,
observamos que o eu-lírico resgata a ideia contida na expressão latina carpe diem, do poeta latino
Horácio que diz para aproveitarmos o momento presente intensamente, pois a vida é breve. O
pastor Dirceu, na lira, ao dialogar com Marília, tenta alertá-la para a efemeridade da vida. O
tempo passa, a velhice toma conta do corpo e um dia todos morrem, inclusive Marília. Sem que
o possam deter, o tempo corre;/E para nós o tempo, que se passa,/Também, Marília, morre. Com
os anos, Marília, o gosto falta,/E se entorpece o corpo já cansado;/triste (...).Em sequência, com
muita delicadeza e cuidado,o pastor expõe a respeito do processo de envelhecimento do corpo.
E, ao final, pergunta a pastora: Que havemos de esperar, Marilia Bela?/(...) aproveite o tempo,
antes que faça/ o estraga de roubar ao corpo as forças,/e ao semblante a graça. Observem como
o poeta trabalha a linguagem com simplicidade e aborda um tema que tão pouco nos agrada,
“a velhice e a morte”. Note que Tomás Antonio Gonzaga não utiliza a forma rigorosa de soneto
e, sim, buscou as formas mais variadas de redondilhas menores (sete sílabas) aos decassílabos.
De acordo com Roncari (1995, p.270), o amor aparece em Marília de Dirceu numa dimensão
terrena onde o tempo é imparcial a todos e a velhice é certa.

Lira XV

A minha bela Marília


Tem de seu um bom tesouro;
Não é, doce Alceu, formado
Do buscado
Metal louro.
É feito de uns alvos dentes,
É feito de uns olhos belos,
De umas faces graciosas,
De crespos, finos cabelos;
E de outras graças maiores,
Que a natureza lhe deu:
Bens, que valem sobre a terra
E que têm valor no Céu.
Eu posso romper os montes,
Dar às correntes espaçosos
Nos caudosos
Turvos rios.
Posso emendar a ventura
Ganhando astuto a riqueza;

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Mas, ah! caro Alceu, quem pode
Ganhar uma só beleza
Das belezas, que Marília
No seu tesouro meteu?
Bens, que valem sobre a terra,
E que têm valor no Céu.

Da sorte que vive o rico


Entre o fausto alegremente,
Vive o guardador do gado
Apoucado,
Mas contente.
Beije pois torpe avarento
As arcas de barras cheias:
Eu não beijo os vis tesouros,
Beijo as douradas cadeias,
Beijo as setas, beijo as armas
Com que o cego Amor venceu:
Bens, que valem sobre a terra,
E que têm valor no Céu.

Ama Apolo, e o fero Marte;


Ama, Alceu, o mesmo Jove:
Não é, não, a vã riqueza,
Sim beleza,
Quem os move.
Posto ao lado de Marília
Mais que mortal me contemplo:
Deixo os bens, que aos homens cegam,
Sigo dos Deuses o exemplo:
Amo virtudes, e dotes;
Amo enfim, prezado Alceu,
Bens, que valem sobre a terra,
E que têm valor no Céu.

Na lira XXXV, Gonzaga estabelece um diálogo com Alceu, pseudônimo do poeta árcade
José de Alvarenga Peixoto. Note que todo o poema se desenvolve em torno de Marília e de
Alceu. O pastor contempla e descreve a beleza e as virtudes da pastora de forma encadeada,
esclarece que nada, ouro e riqueza têm mais valor que o amor que sente pela pastora. Para
o poeta, os bens materiais deixam o homem cego e privados de valores espirituais, mas
o amor, sim, esse bem maior, vale tanto na terra como no céu. Posto ao lado de Marília/
Mais que mortal me contemplo: /Deixo os bens, que aos homens cegam,/Sigo dos Deuses o
exemplo: /Amo virtudes, e dotes;/Amo enfim, prezado Alceu,/Bens, que valem sobre a terra,
/E que têm valor no Céu. Para ele, esse bem é Marília, inspirada na sua amada Doroteia e
considerada por muitos o mito feminino na literatura brasileira. O poeta compara a vida
do rico e a do pastor e conclui que viver é amar Marília. Para Roncari (1995, p.271), o
amor é mais valioso do que os bens materiais, no caso, a poesia se refere à exploração do
ouro e pedras preciosas que tornam o homem vazio de sentimentos e insaciável pelo poder
e riqueza. Para o poeta, “a reunião do amor, da beleza com o poeta e a poesia pode criar
algo que supere o tempo e alcance a eternidade; e isto nenhuma riqueza pode comprar.”

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Unidade: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

Da sorte que vive o rico/Entre o fausto alegremente,/Vive o guardador do gado/Apoucado,


Mas contente. Neste trecho, estabelece que ambos, rico e pobre, são felizes, mas o guardador
rebanho, que tem uma vida bucólica e rústica, é feliz na mesma intensidade daquele que
possui um tesouro material. Percebam que as alusões mitológicas retomam a tradição clássica
e aparecem na lira para apontar que os deuses viviam através da força do amor e não das
riquezas, aqui, os sentimentos sobressaem a razão material e diz: Ama Apolo, e o fero Marte;
/Ama, Alceu, o mesmo Jove: /Não é, não, a vã riqueza, /Sim beleza,/Quem os move./Posto
ao lado de Marília/Mais que mortal me contemplo: /Deixo os bens, que aos homens cegam,
/Sigo dos Deuses o exemplo: Amo virtudes, e dotes; /Amo enfim, prezado Alceu,/Bens, que
valem sobre a terra, /E que têm valor no Céu. Enfim, o poema todo se firma no amor. Ao
falar do amor que sente por Marília, o poeta/pastor inclui temas relacionados ao momento
histórico vivido em Vila Rica, Minas Gerais, a exploração do ouro e de pedras preciosas.
Para falar de amor e idílio, Tomás Antonio Gonzaga busca uma linguagem simples e sem as formas
rigorosas do soneto clássico que vimos em Claudio Manuel da Costa. Apesar dessa simplicidade sem
adornos e exigências do estilo da época, o Arcadismo emprega uma linguagem amorosa cortês e
elegante que se enquadra perfeitamente na forma poética gonzaganiana. A linguagem se relaciona
ao “natural” e permite ao leitor produzir imagens de uma paisagem simples, pastoril, pura, ingênua,
rural e rústica, que compõe o universo romântico do pastor e da pastora. Na lira seguinte, 53, o
pastor Dirceu descreve a beleza de Marília através da natureza e, para compor esse ambiente, cita o
ouro, comparando-o ao cabelo de sua pastora. Esse momento de descrição e de beleza na voz do
pastor é quase mágico, pois a pastora e a Natureza se fundem, tornando-se um só.

Lira 53
(...)Os teus olhos espalham luz divina,
a quem a luz do Sol em vão se atreve;
papoila ou rosa delicada e fina
te cobre as faces, que são cor da neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! não, não fez o Céu, gentil pastora,
para glória de amor igual tesouro!
Graças, Marília bela
Graças à minha estrela!

Nesta lira, Dirceu pede a Marília que o conduza ao idílio e que, naquele ambiente bucólico,
vivam intensamente o amor até que a morte os separem. Segundo Roncari (1995, p.272), “o
amor aparece como um idílio que serve de base para o poeta pastor projetar uma vida retirada
das atribuições e conflitos do mundo. Num meio ameno, no campo, ele e sua amada se bastam.”

Irás a divertir-te na floresta,


sustentada, Marília, no teu braço:
aqui descansarei a quente sesta,
dormindo um leve sono em teu regaço;
enquanto a luta jogam os pastores,
e emparelhados correm nas campinas,
toucarei teus cabelos de boninas,
nos troncos gravarei os teus louvores.
Graças, Marília bela

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graças à minha estrela!
Depois que nos ferir a mão da morte,
ou seja neste monte, ou noutra serra,
nossos corpos terão, terão a sorte
de consumir os dous a mesma terra.
Na campa, rodeada de ciprestes,
lerão estas palavras os pastores:
“Quem quiser ser feliz nos seus amores,
siga os exemplos, que nos deram estes.”
Graças, Marília bela
graças à minha estrela

Ao final da lira, o poeta declara que a verdadeira felicidade está no amor e, que todos devem
seguir o exemplo do pastor e da pastora: “Quem quiser ser feliz nos seus amores, /siga os
exemplos, que nos deram estes: “Graças, Marília bela/graças à minha estrela.”
Na lira 54, o poeta revela seu cansaço e angústia de viver na Colônia. Aqui, Gonzaga mostra
sua insatisfação de viver como um homem letrado em meio aos processos jurídicos. Aqui, o
pastor e a pastora encontram-se na cidade.

Tu não verás, Marília, cem cativos


tirarem o cascalho e a rica terra,
ou dos cercos dos rios caudalosos,
ou da minada serra.
Não verás separar ao hábil negro
do pesado esmeril a grossa areia,
e já brilharem os granetes de oiro
no fundo da bateia.
Não verás derrubar os virgens matos,
queimar as capoeiras inda novas,
servir de adubo à terra a fértil cinza,
lançar os grãos nas covas.
Não verás enrolar negros pacotes
das secas folhas do cheiroso fumo;
nem espremer entre as dentadas rodas
da doce cana o sumo.
Verás em cima da espaçosa mesa
altos volumes de enredados feitos;
ver-me-ás folhear os grandes livros
e decidir os pleitos.
Enquanto revolver os meus consultos,
tu me farás gostosa companhia,
lendo os fastos da sábia, mestra História,
e os cantos da poesia.
Lerás em alta voz, a imagem bela;
eu, vendo que lhe dás o justo apreço,
gostoso tornarei a ler de novo
o cansado processo.
Se encontrares louvada uma beleza,
Marília, não lhe invejes a ventura,
que tens quem leve à mais remota idade
a tua formosura.

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Unidade: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

Compreenda que mesmo na colônia, em meio ao trabalho, a leitura de processos, a fuga


do pastor/ poeta está em Marília: Enquanto revolver os meus consultos,/tu me farás gostosa
companhia,/lendo os fastos da sábia, mestra História,/e os cantos da poesia./ Lerás em alta
voz, a imagem bela/eu, vendo que lhe dás o justo apreço,/gostoso tornarei a ler de novo o
cansado processo.
Para Candido (1993, p.113), as liras amorosas de Gonzaga são chamadas de domésticas, pois
o desejo do poeta em relação à musa Marília é simples: formar um lar, ter uma vida conjugal e
envelhecer ao lado da pastorinha e ter uma família. Nesse sentido, nas poesias líricas amorosas,
a pastora Marília aparece como noiva e esposa e jamais como uma mulher idealizada e distante
do pastor, como a Nise de Claudio e a mulher amada em Gonçalves Dias. Nas poesias árcades
e românticas, as mulheres eram figuras idealizadas pelos poetas. Lembremos que talvez, por
ser um quarentão, o poeta, na voz do pastor Dirceu, não hesita em convidar a pastorinha para
viverem em comunhão, longe dos preconceitos e imposições da sociedade numa vida pastoril.
Antonio Gonzaga pode ser considerado um homem maduro, de paixão forte e assumida, que na
poesia não se intimida em compartilhar com o leitor, através do pastor Dirceu, a profundidade
e a sinceridade do amor que cultivava por Doroteia e traduzido em Marília.
Dando continuidade aos estudos de Tomás Antonio Gonzaga, não podemos nos esquecer
da poesia satírica do poeta, as Cartas Chilenas, agrupadas em treze cartas trocadas entre Chile
e Espanha. Os dois países serviram como pano de fundo para que Gonzaga pudesse criticar
e denunciar de forma incisiva os abusos cometidos pelo governador Luiz da Cunha Pacheco
de Menezes, que governou Minas de 1783 à 1788. Assim, Portugal, Lisboa, Coimbra, Minas
Gerais e Vila Rica, nas cartas, lemos como Espanha, Madrid, Salamanca, Santiago e Chile.
Nas cartas, o governador Menezes aparece com o pseudônimo de Fanfarrão Minésio, Matos é
Matúsio,Silvério é Silverino, Ribeiro é Robério . O autor das cartas, Tomás Antonio Gonzaga,
como Crítilo, destina as cartas a Doroteu. O protagonista dos poemas era o Fanfarrão Minésio,
figura ilustre, prepotente, abusiva e sobretudo não obedecia as leis da Coroa. De acordo com
Cândido (1993, p.155), as cartas chilenas circulavam em cópias manuscritas, as mesmas eram
peça de primeira ordem para delatores, acusadores e juízes.

CARTA l0ª
Em que se contam as desordens maiores que Fanfarrão
fez no seu governo.
Quis, amigo, compor sentidos versos
A uma longa ausência e, para encher-me
De ternas expressões, de imagens tristes,
A banca fui sentar-me, com projeto
5 – De ler, primeiramente, algumas obras
No meu já roto, destroncado Ovídio.
Abri-o nas saudosas alegrias

10 – Na passagem que fez ao Ponto Euxínio


Encontro aqueles versos que descrevem
As ondas decumanas; de repente
Me sobe ao pensamento que estas eram
Do nosso Fanfarrão imagem viva.
(...)20 – Nos musgosos rochedos com mais força.
Assim o nosso chefe não descansa
De fazer, Doroteu, no seu governo,

22
Asneiras sobre asneiras e, entre as muitas,
(...)A contar as asneiras desumanas
Do nosso Fanfarrão ao caro amigo.
(...)A Junta, Doroteu, a quem pertence
Evitar contrabandos, prende, envia
A sabia Relação do Continente
45 – A trinta delinqüentes, para serem
Castigados conforme os seus delitos.
Entende o nosso chefe que esta Junta
Não devia mandar aos malfeitores
Sem sua autoridade e, dela, toma
50 – O mais estranho, bárbaro despique.
Manda embargar aos presos na cadeia
Do nosso Santiago, e manda ao pobre
Do condutor meirinho que os sustente,
Assistindo, também, aos que enfermarem,
55 – Com médicos, remédios e galinhas.
Acaba-se o dinheiro que lhe deram
Para fazer os gastos do caminho;
Recorre, neste aperto, ao bruto chefe,
Expõe-lhe que não tem com que alimente
60 – Ao menos a si próprio; pede e roga
(...)Do chefe a compaixão; antes lhe ordena
65 – Que assista, como dantes, aos culpados
De todo o necessário, na enxovia;
Que, a faltar-lhe o dinheiro para os gastos,
Ou que o peça, ou que o furte. (...)

A sátira, bem pensada, do honrado Critilo-Gonzaga mostra as arbitrariedades do Governador


Fanfarrão-Menezes. Em forma de monólogo, o poeta confidencia a Doroteu as injustiças
cometidas, conservando um sentimento de revolta, indignação e ressentimento.
Para entendermos melhor o processo de construção poética de Gonzaga nas Cartas
Chilenas, selecionamos a décima carta, na qual Critilo relata, com um forte tom de indignação,
o desrespeito ao meirinho (oficial de justiça) cometido pelo Fanfarrão, ao amigo Doroteu.
Inclusive pede que o amigo o perdoe por desabafar e contar tantas asneiras. Note-se que
o poeta- Critilo-Gonzaga, para dar início ao relato de mais um dos abusos e desrespeito do
governador Fanfarrão-Menezes, menciona que, ao ler o poema de Ovídio, que tece a imagem
da fúria do mar, nas ondas e rochedos, movido por um sentimento de ódio, acaba por remeter
as imagens aos desmandos do governador. Nos musgosos rochedos com mais força./Assim o
nosso chefe não descansa/De fazer, Doroteu, no seu governo,/Asneiras sobre asneiras e, entre
as muitas,/Que menos violentas nos parecem. Em sequência discorre ao amigo o desrespeito
do governador as ordens e decisões dos órgãos vigentes. Desordens que pareçam impossíveis:
A Junta, Doroteu, a quem pertence/ evitar contrabandos, prende, envia/A sabia Relação do
Continente/45 – A trinta delinqüentes, para serem/Castigados conforme os seus delitos./
Entende o nosso chefe que esta Junta/Não devia mandar aos malfeitores/Sem sua autoridade
e, dela, toma/50 – O mais estranho, bárbaro despique./Manda embargar aos presos na cadeia/
Do nosso Santiago, e manda ao pobre/Do condutor meirinho que os sustente,/ Para fazer
os gastos do caminho;/Recorre, neste aperto, ao bruto chefe,/Expõe-lhe que não tem com
que alimente/ Do chefe a compaixão; antes lhe ordena/ Que, a faltar-lhe o dinheiro para os
gastos,/Ou que o peça, ou que o furte.
23
Unidade: A poesia de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Gonçalves Dias

Diante do exposto, entenda que Tomás Antonio Gonzaga, nas Cartas Chilenas, manifestava sua
revolta através de Critilo, que explodia e declarava não entender por que aos fidalgos, aos homens
do governo era permitido desrespeitar as leis. Interessante é que essa insatisfação e indignação
de Tomás-Critilo se eterniza na sociedade brasileira. Sabemos que muitos governadores,
principalmente no Nordeste do Brasil, são as próprias caricaturas do Fanfarrão Minésio.
No Brasil colonial, assim como fez Gregório de Matos, Tomás Antonio Gonzaga encontra na
sátira uma arma poderosa para criticar os desmandos morais e administrativos do Governo.
Ambos por suas convicções políticas foram perseguidos e presos, mas deixaram marcas históricas
que documentam o cenário do Brasil do século XVII e XVIII.
Ao longo desta unidade conhecemos dois poetas árcades e um romântico, Tomás Antonio
Gonzaga e Claudio Manuel da Costa e o romântico Gonçalves Dias que resgataram temas
clássicos e algumas filosofias do mundo antigo para assim manifestarem ideias iluministas
e inovadoras no homem moderno: razão, natureza e verdade. Os temas mais recorrentes
foram: fugere-urbem, lócus amoenus e carpe diem, todos para concretizar a nova visão e
pensamento do homem. Para concretizar essa liberdade no pensar e agir, a Natureza se torna
sua aliada, pois é nela que o homem pode viver em harmonia e encontrar respostas para sua
existência. Por outro lado o homem que vive na cidade só encontra dor, sofrimento e disputa
de poder, por isso deseja fugir para o campo e somente nesse espaço poderá encontrar
equilíbrio, harmonia, amor e explicações racionais para os fenômenos que ocorrem a sua
volta. É exatamente o que os poetas retratam por meio de seus pastores e pastoras envoltos
em uma paisagem nativa de sua terra natal.

24
Literatura Brasileira
Poética
UNIDADE: A Poesia de Castro Alves e de Jorge de Lima: A Temática Afro-Brasileira

Romantismo Poesia romântica no Brasil século XIX

Contexto Histórico Europa Contexto Histórico Brasil

• Revolução Francesa • Independência do Brasil 1822


• Revolução Industrial • Amor à pátria
• Ascensão da Burguesia • Nacionalismo
• Industrialização • Miscigenação (aceitação)
• Capitalismo • Mão-de-obra escrava

Missão do Poeta romântico brasileiro


• Cantar a terra natal
• Mostrar a realidade regional
• Criar uma poesia pura
• Cantar todas as raças
• Cultuar a Natureza
• Denunciar os problemas sociais
• Principal tema a escravidão
• Valorizar os sentimentos e emoções

Autores: Castro Alves - Jorge de Lima (poeta modernista e não romântico)

Castro Alves (Romantismo) Jorge de Lima (Modernismo)


Temática da escravidão, poesia com traços de Apreciador da cultura do negro africano. Sua poesia
retórica política, poeta com recursos imagísticos e se traduz nos costumes, crenças, músicas e danças
verbais que dão efeito a poesia. Profundo que o homem branco assimilou e incorporou na sua
sentimento poético, emoção sincera pelos negros. cultura. Assim, como Castro Alves, denuncia as
Castro Alves denuncia a escravidão com dor e injustiças cometidas pelos brancos.
sofrimento.

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Material Teórico
A Poesia de Castro Alves e de Jorge de Lima: A Temática Afro-
Brasileira

Responsável pelo Conteúdo:


Profa. Ms. Helba Carvalho

Revisão Textual:
Profa. Ms Malu Rangel
A Poesia de Castro Alves e de Jorge de
Lima: A Temática Afro-Brasileira

• O Romantismo e seu contexto

• A Procura Romântica por uma Literatura Nacional

·· Seja bem-vindo à unidade A poesia de Castro Alves e de


Jorge de Lima da disciplina Literatura Brasileira: Poética.
Nesta unidade, faremos uma reflexão sobre a representação
do escravo negro na poesia romântica de Castro Alves e na
poesia modernista de Jorge de Lima no contexto brasileiro.
Além disso, discutiremos as características principais da
época, envolvendo as questões sociais, ideológicas, históricas
e literárias presentes no século XIX em comparação com a
poesia de Jorge de Lima, do século XX.

Atenção
Para um bom aproveitamento do curso, leia o material teórico atentamente antes de realizar as
atividades. É importante também respeitar os prazos estabelecidos no cronograma.

5
Unidade: A Poesia de Castro Alves e de Jorge de Lima: A Temática Afro-Brasileira

Contextualização

Após nossos estudos sobre o negro africano, notem que temos duas visões de poetas de
tempos e épocas diferentes. Castro Alves busca apresentar o negro de forma idealizada. Jorge
de Lima quer contar e denunciar os maus-tratos contra os negros, porém procura enfatizar a
gratidão e respeito pela contribuição afro descendente para a formação de nossa cultura.
Pensando nisso em nossa atualidade, como o Brasil demonstra esta gratidão pelo povo negro,
e de que maneira percebemos que sua cultura realmente foi e está sendo valorizada?

6
O Romantismo e seu contexto

Vamos nos deter agora em breves comentários sobre o Arcadismo, período que consistiu na
busca do natural e simples com esquemas rítmicos graciosos, que se ajustam a temas bucólicos
nas quais o homem encontra harmonia e equilíbrio na Natureza. Você pode se perguntar: “por
que essa retomada de ideias do Arcadismo? “”.
Entendam que o período romântico que vamos estudar, na primeira metade do século XIX,
se estabelece a partir de uma organização e formação com base nos princípios europeus, pois
escritores e artistas bebiam nas fontes europeias e por isso adotavam o estilo do outro. Vamos
refletir um pouco sobre o contexto histórico da Europa e do Brasil recém-independente de
Portugal para captarmos a realidade de cada um.
Na Europa, nos séculos XVIII e XIX, encerramos com a derrota de Napoleão Bonaparte,
que buscava criar uma grande Europa sob o domínio francês. Esse período é marcado pela
ascensão da burguesia e a queda do regime absolutista. No restante da Europa, presenciamos
a Revolução Industrial, momento esse das construções de fábricas e a formação de uma nova
classe: a operária. Nessa nova estrutura industrial, surgem duas classes opostas: burgueses
(donos de fábricas) e os operários.
Enquanto no Brasil, a realidade era outra, não de batalhas por conquistas de terras e poder,
mas uma luta pela liberdade. Em 1822, o Brasil conquista sua independência e nasce o desejo
de encontrar uma identidade própria, sem a influência de Portugal e dos modelos europeus.
Já percebemos, em estudos anteriores, que cada fase literária guarda traços inerentes à sua
época: transformação histórica, política, social, econômica, cultural e linguística. Além disso,
algumas ideias transpassam de um período a outro, criando um encadeamento de ideias no
período literário posterior. Logo, o Romantismo também carrega marcas de períodos anteriores
a ele, como já citamos, porém as temáticas abordadas nos poemas são observadas por outra
perspectiva, sentimento e emoção.
Encontramos, aqui, um momento literário no qual os poetas e escritores procuram expressar
a consciência nacional do país, com homens livres que buscam sua identidade e guardam seus
valores e particularidades, até, então, reprimidos pela colônia portuguesa e, agora, conquistados
pela Independência do Brasil.
Segundo Roncari (2005, p.277-78), no Romantismo, escritores, poetas e pintores revelam
uma literatura brasileira sem tantas influências da cultura europeia e buscam uma literatura
nacional “pura”. A missão do Romantismo é trazer essa nacionalidade, a identidade e as
particularidades de cada nação e região, cada qual com sua realidade e, não mais inspirar-se
nos modelos clássicos europeus. Assim, pastores, pastoras, musas, ninfas, deuses e deusas,
personagens idealizadas em um molde europeu, concebem lugar às personagens e aos eu-líricos
inspirados na figura e paisagem da terra natal. No Brasil, a figura do índio, do negro, do escravo
e do mulato no Romantismo são partes integrantes e fixadas em uma paisagem ora rústica,
ora selvagem, ora urbana, mas sempre brasileira. O poeta, agora, deseja revelar ao mundo as
peculiaridades de cada região dessa nação livre e jovem, que se difere das outras na língua e
cultura indígena e na própria mistura de raças.

7
Unidade: A Poesia de Castro Alves e de Jorge de Lima: A Temática Afro-Brasileira

Observem que na poesia romântica brasileira ressalta-se a presença de índios (as), negros(as)
e mestiços, que para o poeta são figuras que merecem estar presentes no espaço literário, não mais
como sinônimos de exclusão, inferioridade, preconceito e descaso, mas como parte integrante
da formação da sociedade brasileira e fazem parte da construção desse “novo mundo”.
Para Roncari (2005, p.281), o Romantismo deseja romper com o passado colonial impregnado
com marcas e tradições da Europa. Para cada região, poetas e escritores tentam consolidar as
características e peculiaridades de cada lugar: “Esse envolvimento com os problemas do tempo e
da nação deu à literatura brasileira uma capacidade de descobrir e revelar o país nos seus contrastes,
diferenças sociais e regionais, culturais, religiosas e políticas. (RONCARI, 2005, p.284).”
Dando sequência à reflexão, lembremos que no período do Arcadismo, o poeta apresenta
regiões campestres que remetem a imagens da Grécia antiga, onde pastores e pastoras viviam
em harmonia, paz e equilíbrio. Agora, no Romantismo essa indefinição temporal e abstrata
muda de perspectiva: os personagens, o eu-lírico, o espaço concreto (cidade e campo), tempo
e ambientação se concretizam através dos costumes de cada região. Conforme Roncari (2005,
p.284), o escritor torna-se um grande observador para depois concretizar sua obra. Logo,
romances e poesias representam os sentimentos e realidades de uma nação jovem que começa
a construir uma história.
Nesse período, o escritor busca não só expressar os problemas como também procura
soluções. Alguns eram radicais quanto às soluções dos problemas, fossem eles sociais ou
políticos, conferindo sua crítica e criando, muitas vezes, um desconforto para o público leitor.
Por isso, muito dos escritos literários são como documentos históricos que relatam em detalhes
a vida da população brasileira, desde os povos indígenas até a aristocracia e por intermédio
desses textos podemos reconstruir e pensar a realidade brasileira da época.

“Romantismo (...) seus escritos(...) constituem as primeiras tentativas de


pensar e representar o país como um todo, como um organismo social
e cultural específico, fruto de tradições e lutas.(...)a preocupação com a
organização social e institucional e a disposição para participar de suas
soluções.(RONCARI, 2005, p.285)

A partir dessas exposições, como podemos, então, definir o Romantismo?


Para Roncari (2005, p.285-286), conceituar o Romantismo é algo bastante problemático,
pois esse movimento realiza uma ruptura com a tradição literária, além de introduzir uma
variedade temática: o individualismo, a morte, o sofrimento, a solidão, religião, valorização da
terra natal, nacionalismo e a exaltação do amor. Devido a essa diversidade, a conceituação é
bastante delicada. Percebam que o Romantismo não se resume em sentimentos e emoções,
mas expressa características que marcam o homem da época, suas crenças, seus valores éticos,
sua cultura e costumes, enfim, o romântico procura expressar o ser e o meio na sua totalidade.
Assim, podemos concluir que esse período está ligado a emoções e sentimentos amorosos, a
construção e organização da nacionalidade e identidade até, então, desconhecida, pois como
colônia de Portugal, o Brasil absorveu a cultura do “outro”, os portugueses, e a necessidade de
despertar no povo brasileiro o amor pela terra natal.

8
Vejam como o Romantismo é extenso e se concretiza por meio de várias vertentes e
pensamentos. Acrescento que, não podemos nos perder no momento histórico e social da
Europa e Brasil, pois são completamente opostos e com problemáticas diferentes.
Observem que o país sai de um regime colonial, mas convive com o regime escravista.
Devido a isso, escritores e poetas tinham de aproveitar os elementos nacionais e criar uma
“nova poesia” com conteúdo e temática brasileiros e mostrar a importância de construirmos
uma nação independente, valorizar a nossa beleza natural, os índios, negros e mestiços, além
de manifestar as injustiças políticas e, principalmente, as atrocidades cometidas contra negros e
índios. Nasce um forte sentimento de patriotismo, que se concentra em torno da Independência
do Brasil e nos fatores que foram expostos acima.

A Procura Romântica por uma Literatura Nacional


Como foi muito bem anunciado por Antonio Candido no livro Formação da Literatura Brasileira
(1993, p.11-15), os poetas românticos exprimiam em seus escritos temas de celebração à pátria,
ao indianismo, à natureza e tentavam abranger todos os temas que se referiam à nacionalidade e
identidade nacional. Os poetas mostram as tradições de cada região: eles devem manifestar em toda
a poesia nacional as tradições, as instituições do povo, seus costumes e tentar harmonizar a relação
índio e português, dessa forma o poeta conseguirá ser compreendido pelos leitores. Teoricamente, e
conforme o critico literário Antonio Candido, é importante observar que o Romantismo se intitulou
na Europa como o “despertar das nacionalidades”, por isso a grande importância dessa renovação
literária, principalmente em países novos e naqueles que recém conquistaram a independência, o
espírito nacionalista torna-se uma manifestação e exaltação da vida.
Roncari (2005, p.291) compartilha do mesmo pensamento de Antonio Candido, e a ideia de
que cada nação deve receber uma poesia própria é reforçada no período romântico. Ambos os
críticos, em seus estudos, destacam o livro do viajante e intelectual francês Ferdinand Denis que,
em 1826, escreve um Resumo da História Literária do Brasil, no qual relata a beleza das terras
brasileiras e apresenta a ideia de país novo e procura justificar o atraso cultural, social e político
da nação. Ferdinand Denis afirma que, com o amadurecimento, o Brasil será no futuro uma
grande nação. Leia e perceba a emoção e sentimento de Ferdinand em relação ao Brasil:

(...) Nessas belas paragens, tão favorecidas pela natureza, o pensamento


deve alargar-se como o espetáculo que se lhe oferece; majestoso,
graças às obras-primas do passado, tal pensamento deve permanecer
independente, não procurando outro guia que a observação. Enfim, a
América deve ser livre tanto na sua poesia como no seu governo. (...) Se
essa natureza é mais esplendorosa que a da Europa, que terão, portanto,
de inferior aos heróis dos tempos fabulosos da Grécia (...) Se os poetas
dessas regiões fitarem a natureza, se penetrarem da grandeza que ela
oferece, dentro de poucos anos serão iguais a nós, talvez nossos mestres.
(DENIS,1978,p.36-37, apud RONCARI,2005,p.292-293)

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Unidade: A Poesia de Castro Alves e de Jorge de Lima: A Temática Afro-Brasileira

Neste fragmento, vimos que Denis exalta a grandeza do Brasil, ainda jovem demais para ser
comparado a outras nações. Para o viajante, o caminho de inspiração e realização dos poetas se
concentra na natureza deslumbrante, exótica a ser revelada nas artes e como parte desse meio
natural os indígenas e negros.

Nessa mesma linha de raciocínio, o escritor José de Alencar descreve o que seria o fazer
poético brasileiro. Segundo ele, antes de qualquer criação poética, o poeta deve esquecer suas
ideias civilizadas e racionais, para alcançar essa nova poesia, pois para integrar-se, meditar,
refletir num meio natural, o mesmo deve despir-se de tudo que lembre civilização e ideias
racionais, dessa forma florescerá uma poesia que canta o Brasil.

(...)Deus que me fizesse esquecer por um momento as minhas idéias


de homem civilizado.(...)embrenhar-me-ia por essas matas seculares;
contemplaria as maravilhas de Deus, veria o sol (...) seu mar de ouro, a
lua (...) no azul do céu; ouviria o murmúrio das ondas e o eco profundo
e solene das florestas.E se tudo isto não me inspirasse (...)quebraria a
minha pena com desespero, mas não a mancharia numa poesia menos
digna de meu belo e nobre país.(ALENCAR, Cartas sobre a Confederação
dos Tamoios. Apud COUTINHO, A. Caminhos do pensamento crítico. Rio
de Janeiro/Brasília: Pallas/INL, 1980. V.1 p.81).

Em contrapartida, o historiador Francisco Adolfo Varnhagen, representante de um tipo


conservador de Brasil, desenvolve uma crítica e afirma que os poetas não devem deixar-se
levar por essa ideia de pátria relacionada à Natureza e à figura do índio. Para o historiógrafo,
os índios não passavam de bárbaros “caterva de canibais”, inclusive amaldiçoa os poetas que
produzem uma poesia indianista na qual o herói é um índio. Conforme seus princípios e ideais,
o poeta deve promover e exaltar a civilização branca e outras raças devem permanecer em um
nível de inferioridade. Aqui temos um conservador que deseja permanecer na mesma estrutura
social e política consentida nos moldes portugueses:

[...].ostentar patriotismo exaltando as ações de uma caterva de canibais


que vinha assaltar a colônia de nossos antepassados só para os devorar
[...].para o louvarmos, para o magnificarmos pela religião, para promover
a civilização; e para exaltar o ânimo a ações generosas [...].;e serão
amaldiçoadas (os poetas) (...)e infeliz do que dela serve para injuriar
sua raça, seus correligionários, e porventura a memória de seus próprios
avós!(VARNHAGEN, Florilégio da Poesia Brasileira, Rio de Janeiro,
Academia de Letras, 1987, p.44-45, apud RONCARI, 2005, p.296-297).

Conforme Roncari (2005, p.298-299), Machado de Assis pactua da mesma ideia de Álvares
de Azevedo, expressando também que a nacionalidade literária, não necessariamente, deve se
desenvolver no ambiente da terra natal do escritor, e acrescenta que a poesia e prosa se traçam
por vieses que nos transportam a várias nações e lugares, isso é resultado das relações entre os
povos. Nas artes, temos o poder de viajar do particular para o universal e revelar a identidade
de uma nação.
10
Lembremos que o poeta romântico Gonçalves Dias mantém uma forte relação com os
poetas árcades, observamos um eu lírico na sua poesia que canta a natureza, no entanto, é um
poeta romântico na medida em que exalta a terra natal com saudades, destacando sua beleza e
idealizando os indígenas brasileiros.

Para Roncari (2005, p.363), a poesia de Gonçalves Dias se afirma como um dos pilares mais
importantes do fazer e pensar poesia.

Como lidar com os problemas sociais, os preconceitos de raças nos quais negros africanos, índios
e mazombos são excluídos do convívio social? Como viver em um país mestiço que nega sua origem
e raça? Qual o papel do negro em uma sociedade que o enxerga como objeto e mercadoria?

Roncari (2005, p.471) reafirma que a sociedade brasileira é miscigenada, porém a cor da
pele classifica a posição do indivíduo em uma sociedade brasileira escravista e preconceituosa.

O Romantismo terá a incumbência de declamar e discursar sobre essas temáticas que geravam
discussões na época. Falemos da temática da escravidão e da barbárie cometida contra os negros.

Para esse estudo e análise, vamos refletir, em um primeiro momento, sobre a poesia romântica
de Castro Alves e do poeta modernista Jorge de Lima. Poetas de período e estilo literário
diferentes que reconhecem a importância do negro na formação da sociedade brasileira.

Para Alfredo Bosi (1994, p.122), o poema é obra humana: enquanto humano está sempre
em função dialógica, vem de um ser-em-situação que fala a outros, ou seja, comunica-se com
outros e empenha-se em um mundo intersubjetivo, pelo menos dual (autor-leitor).

Castro Alves nos revela esse fazer poético, com uma poesia carregada de emoção e sentimento,
com tom de oratória, ritmo, sentidos abertos, imagens da natureza e originalidade. Poeta
abolicionista que escreve as injustiças cometidas pelos homens brancos em relação aos negros
e, ao mesmo tempo, procura difundir o valor, a beleza e força do povo africano na sociedade.

Antonio Candido (2007, p.584) classifica Castro Alves como um poeta humanitário, que
canta o negro escravo. Mostra que a especificidade de sua obra está na identificação do poeta
com o ritmo da vida social da época, determinando a referida projeção dos dramas do eu
sobre o mundo. O poeta é um homem desajustado que expressa na sua poesia seus conflitos
e contradições interiores em relação ao meio. Para ele, a escravidão está ligada à alienação
humana e será uma constante luta entre o bem e o mal.

Vamos, agora, analisar o poema Lucas, de Castro Alves. Nele, o poeta não canta a dor e
sofrimento do negro escravo, mas procura idealizar a beleza e força da raça negra, mesmo na
condição de escravo.

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Unidade: A Poesia de Castro Alves e de Jorge de Lima: A Temática Afro-Brasileira

Lucas
QUEM FOSSE naquela hora,
Sobre algum tronco lascado
Sentar-se no descampado
(...)
Um belo escravo da terra
Cheio de viço e valor...
Era o filho das florestas!
Era o escravo lenhador !
Que bela testa espaçosa,
Que olhar franco e triunfante!
E sob o chapéu de couro
Que cabeleira abundante!
De marchetada jibóia
Pende-lhe a rasto o facão...
E assim... erguendo o machado
Na larga e robusta mão...
Aquele vulto soberbo,
— Vivamente alumiado, —
Atravessa o descampado
Como uma estátua de bronze
Do incêndio ao fulvo clarão.

Desceu a encosta do monte,


Tomou do rio o caminho...
E foi cantando baixinho
Como quem canta pra si.

Era uma dessas cantigas


Que ele um dia improvisara,
Quando junto da coivara
Faz-se o Escravo — trovador.

Era um canto languoroso,


Selvagem, belo, vivace,
Como o caniço que nasce
Sob os raios do Equador.

12
Eu gosto dessas cantigas,
Que me vem lembrar a infância,
São minhas velhas amigas,
Por elas morro de amor...
Deixai ouvir a toada
Do — cativo lenhador —

E o sertanejo assim solta a tirana,


Descendo lento pra a servil cabana...

(Disponível em http://www.astormentas.
com/pt/poema/5112/lucas,
Acesso em 18/11/2013)

Observem que Castro Alves, no poema, tece versos carregados de imagens que acondicionam
a força discursiva do poema e evidencia a bravura, a força e a beleza do africano, comparando-o
com uma estátua de bronze. Por isso, podemos considerá-lo um objeto estético elevado que faz
parte da vida cotidiana e que não está somente em condição de inferioridade. Conforme Roncari
(2005, p.467), “essa inversão de valores teve por base o preconceito e uma compreensão muito
restrita da poesia”. Notem que os adjetivos manifestam imagens de um escravo idealizado pelo
poeta. “Um belo escravo da terra /Cheio de viço e valor.../(...)Era o escravo lenhador ! /Que bela
testa espaçosa,/Que olhar franco e triunfante/(...)/ E assim... erguendo o machado/Na larga e
robusta mão...Aquele vulto soberbo (...).”. Tais recursos tentam incorporar o negro à literatura.
Antonio Candido (2007, p.591) reafirma que Castro Alves tenta encaixar os negros nos padrões
da sensibilidade branca. Para isso idealiza o negro por meio de traços físicos e morais fortes e
positivos para apresentá-los ao público leitor e dar-lhe uma dignidade lírica.
O poema também procura representar, na figura do escravo Lucas, a condição do negro não
como um objeto de exploração e trabalho, mas sim, um ser provido de qualidades, sentimentos
e beleza que devem ser consideradas e respeitadas. No poema, esses elementos humanizam-
no em relação à visão do homem branco, que o trata como mercadoria. Percebam que Castro
Alves, além de enaltecê-lo, também o assenta em uma posição de trovador, “Faz-se o Escravo —
trovador. /Era um canto languoroso,/Selvagem, belo, vivace.” Como aprendemos, os trovadores,
na sua maioria, eram homens nobres que compunham poemas para serem cantados em feiras,
festas e castelos no final da Idade Média. Com isso, procura atribuir à Lucas a sensibilidade
burguesa, como ser igual aos demais, mas não o liberta da condição de escravidão.
Entendam que ao tecer essa pintura em versos, constatamos que sem as descrições da
Natureza, do escravo Lucas, os recursos sonoros, imagísticos e verbais não se alcançaria a beleza
poética de Castro Alves. Aqui, o poeta procura apresentar, através de um sentimento romântico,
uma mudança de visão em relação ao negro africano e busca na Natureza uma parceira para
essa nova poesia negra. Mesmo que seja uma construção idealizada do escravo Lucas, vê-lo com
humanidade pode transformar a visão e pensamento de uma sociedade branca e miscigenada
altamente preconceituosa e que nega suas verdadeiras raízes negras.
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Unidade: A Poesia de Castro Alves e de Jorge de Lima: A Temática Afro-Brasileira

Assim como Castro Alves, o poeta modernista Jorge de Lima, do século XX, traz, em sua
criação poética, a temática do negro-africano. Uma poesia com ritmo folclórico marcada por
um forte regionalismo.
Diferente de Castro Alves, Jorge de Lima expressa não a condição inferior de escravo do negro,
mas sobretudo a importância da raça negra no país. Conta os costumes, as superstições, as crenças,
as danças e tudo que o negro africano apresentou para o Brasil e outras nações. Temos um poeta
que deseja cantar a alma do negro e a negritude sem idealismo, mas mostrar um negro de cabelo
carapinha, expressão forte e grossa e não o negro idealizado de Castro Alves.
Para compreender este novo gosto literário de Jorge Lima, vamos ler o poema Olá Negro.
Nele, o poeta nos oferece uma visão panorâmica da assimilação dos costumes negros na
formação das sociedades.

Olá! Negro
Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos
e a quarta e quinta gerações de teu sangue sofredor
tentarão apagar a tua cor!
E as gerações destas gerações quando apagarem
a tua tatuagem execranda,
não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!
Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi,
negro-fujão, negro cativo, negro rebelde
negro cabinda, negro congo, negro ioruba,
negro que foste para o algodão de U.S.A.,
para os canaviais do Brasil,
para o tronco, para o colar de ferro, para a canga
de rodos os senhores do mundo;
eu melhor compreendo agora os teus blues
nesta hora triste da raça branca, negro!

Olá, Negro! Olá, Negro!

A raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro!


E és tu que alegras com os teus jazzes,
com os teus songs, com os teus lundus!
Os poetas, os libertadores, os que derramaram
babosas torrentes de falsa piedade
não compreendiam que tu ias rir!
E o teu riso, e a tua virgindade e os teus medos e atua bondade
mudariam a alma branca cansada de todas as
ferocidades!

14
Olá, Negro! Olá, Negro!

Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi


Que traíste as Sinhás nas Casas-Grandes,
Que cantaste para o Sinhô dormir,
Que te revoltaste também contra o Sinhô;
Quantos séculos há passado
E quantas passarão sobre a tua noite,
Sobre as tuas mandingas, sobre os teus medos, sobre tuas alegrias!

Olá, Negro! Olá, Negro!

Negro que foste para o algodão de U.S.A.,


ou que vieste para os canaviais do Brasil,
quantas vezes as carapinhas hão de embranquecer
para que os canaviais possam dar mais doçura à
Olá, Negro!
Negro, ó antigo proletário sem perdão,
Proletário bom,
Proletário bom!
Blues,
Jazzes,
Songs

Lundus...
Apanhavam com vontade de cantar,
choravas com vontade de sorrir,
com vontade de fazer mandinga para o branco
ficar bom,
para o chicote doer menos,
para o dia acabar e negro dormir!
Não basta iluminares hoje as noites dos brancos
com teus jazzes,
com tuas danças, com tuas gargalhadas!
Olá, negro! O dia está nascendo!
O dia está nascendo ou será tua gargalhada que
vem vindo?

Olá, Negro! Olá, Negro!

Vejam que neste poema, Jorge de Lima, de maneira bastante realista, trata a questão do negro
inserido na sociedade. Nos primeiros versos, declara que mesmo que a cor negra se misture a
outras dando origem a uma raça miscigenada, com pele mais clara, a alma e os costumes
africanos jamais se apagarão: “E as gerações destas gerações quando apagarem/a tua tatuagem

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Unidade: A Poesia de Castro Alves e de Jorge de Lima: A Temática Afro-Brasileira

execranda,/não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!/Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi,
negro-fujão, negro cativo, negro rebelde/ negro cabinda, negro congo, negro ioruba.” Através
de um processo de rapsódia, evoca nomes e raças de negros para dar embalo à vocação. Em
sequência, canta que o negro é alegre e premia a alma branca que o barbarizou com música
e alegria. “A raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro!/E és tu que alegras com os teus
jazzes,/não compreendiam que tu ias rir!/E o teu riso, e a tua virgindade e os teus medos e a
tua bondade/mudariam a alma branca/ cansada de todas as ferocidades. Notoriamente, Jorge
de Lima demonstra um sentimento de gratidão ao negro. Observem que o poeta tem simpatia
pela cultura africana e, principalmente, exalta a música negra, com os “Blues, jazzes, songs,
lundus” e acrescenta, que o negro cantava sua dor e alegria. “Apanhavam com vontade de
cantar,/ choravas com vontade de sorrir/com vontade de fazer mandinga para o branco ficar
bom.” Nesse último verso, Jorge de Lima inclui as crenças dos africanos e denuncia as injustiças
cometidas. Nos últimos versos, declara que a noite dos brancos é iluminada com a música
e a dança do negro e compara o nascer do dia com a gargalhada do negro. Para finalizar
o poema, utiliza o refrão “Olá negro!” como uma forma de cumprimentar e agradecer aos
negros-africanos pela colaboração na construção da nação brasileira.
Segundo Bosi, Jorge de Lima é criador de uma poesia regionalista, com uma linguagem
intuitiva, uma leitura desencadeada, que lembra as narrativas populares e conta a história de
um escravo, com repetições e rimas que aparecem em forma de cifrão, dialoga com passado e
presente. Um poema com linguagem simples e objetiva que transmite um forte conhecimento
sobre o que é humano e denuncia a difícil condição do negro no Brasil.
Baseado nos estudos de Alfredo Bosi e Luiz Roncari, é preciso reconhecer que as obras de
Castro Alves e Jorge de Lima criaram a poesia negra no Brasil. O primeiro, Castro Alves, busca
na temática do negro expor a escravidão, os maus-tratos e abusos sofridos. Poeta romântico
que expressa a beleza do homem negro de forma idealizada, mas na condição de escravo.
O segundo, Jorge de Lima, apresenta versos que não incidem apenas sobre a condição do
negro como escravo, mas de um povo que muito nos ofereceu e ressalta a sua importância na
formação da sociedade brasileira. Por isso, seus versos contam os costumes, as crenças, a dança,
a música e a alegria contagiante do negro que encanta a todos.
Para Jorge de Lima, a gratidão a eles não está apenas na produção e formação da economia
brasileira, mas também nos hábitos e costumes transmitidos à sociedade. Acrescenta-se que o
poeta também denuncia a condição de exploração e preconceito contra o negro no Brasil, mas
de forma menos acentuada. No conjunto, os escritos de Jorge de Lima e Castro Alves servem
de documento para a historia dos negros africanos na sociedade brasileira

16
Material Teórico
A representação da morte na poesia de Álvares de Azevedo,
Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira

Responsável pelo Conteúdo:


Profa. Ms. Helba Carvalho.

Revisão Textual:
Profa. Ms. Malu Rangel.
UNIDADE: A representação da morte na poesia de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira

Álvares de Azevedo – Poeta Ultrarromântico Cruz e Sousa – Poeta Simbolista

Sentimentos do poeta: pessimismo, mergulha no eu interior, fuga da Sentimentos do poeta: pessimismo, inconformismo, solidão, perda dos filhos (tuberculose)
realidade,sentimentalismo exarcebado, expressão de dor, sofrimento, abandono, fantasia, e morte da esposa. Sofre o preconceito da cor negra.
delírios e devaneios.
Morte - Caminho para a felicidade que não viveu. Desejo de transcender e libertar seu espírito
Amor – a mulher amada, ser divino, símbolo de pureza e virgindade, idealização platônica. agoniado.
Encontros nos sonhos e delírios do poeta. Realização do amor após a morte.
Características da poesia: explora a subjetividade, o impreciso, o espiritual , o sinestésico , a
Morte - fim do sofrimento e das desilusões da vida terrena. palavra é a sublimação do sofrimento manifestado no eu lírico.

Belo e o feio - revelam a alma humana. Adjetivos e substantivos de efeito reproduzem a tensão do poeta.

Ironia e humor - capta a experiência cotidiana através de imagens grotescas e expressa o A cor branca, palavras luminosas e translúcidas transcendem à purificação e desejo de
lado cômico do poeta misturado à insatisfação de viver no mundo que o cerca (crítica social). libertação do espírito para outra esfera.

Augusto dos Anjos – Poeta Pré-modernista Manuel Bandeira – Poeta Modernista

Sentimentos do poeta: Angústia e consciência da fatalidade da morte que leva à Sentimentos do poeta: Poeta solitário e de saúde frágil. O fantasma da morte o acompanha
decomposição do corpo. durante a vida.

O eu lírico traduz a podridão do mundo. Na infância contraiu tuberculose.

Poeta observa a vida cotidiana e retira dela a matéria de sua poesia.


Poesia violenta com vocabulário científico que traduz o processo de dissolução do homem.
Características da poesia: Apresenta situações do cotidiano, interioriza e reflete a vida.
Verme- símbolo da destruição do corpo. Linguagem simples e marcante.

Imagens chocam o leitor. Memória pessoal.

Reflexão lírica de dimensão universal sobre a morte.


Realidade da vida é a MORTE.
Morte: libertação da matéria e do espírito.

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A representação da morte na poesia de Álvares
de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e
Manuel Bandeira

• A representação da Sociedade no Romantismo

• A morte na Visão do Romântico

·· Nesta unidade, faremos uma reflexão sobre a temática


da morte na poesia romântica de Álvares de Azevedo
analisando-a comparativamente com poemas de poetas de
outras estéticas literárias, como a do simbolista Cruz e Sousa,
a do pré-modernista Augusto dos Anjos e a do modernista
Manuel Bandeira. Além disso, discutiremos as características
principais da época, envolvendo algumas questões biográficas
sobre os poetas, e também fatores sociais, ideológicos,
históricos e literários presentes no século XIX e no século XX.

Recomendamos que siga o seguinte roteiro para que tenha um melhor aproveitamento da unidade:
1. Leia o conteúdo teórico da disciplina;
2. Leia o mapa mental do conteúdo teórico;
3. Assista à apresentação narrada;
4. Faça a atividade de sistematização;
5. Faça a atividade de aprofundamento;
6. Leia o material complementar;
7. Formule suas dúvidas ao tutor da disciplina por meio do módulo Mensagens do blackboard
ou ainda por meio do fórum de dúvidas da disciplina;
8. Procure ler as obras indicadas na bibliografia, principalmente aquelas que estão
disponíveis na biblioteca eletrônica da Universidade, isso irá colocar você em contato
com diferentes visões sobre o problema, além de fornecer a você um repertório maior de
conceitos sobre os poetas estudados e as características de suas obras.

5
Unidade: A representação da morte na poesia de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira

Contextualização

No Romantismo, conhecemos um pouco da poesia de Álvares de Azevedo, que possui forte


atração pela morte – desdobrada do pessimismo, tédio, morbidez e autodestruição – uma
poesia melancólica e tediosa que demonstra o cansaço de viver do poeta. Na sua obra, o
poeta exprimiu de maneira sarcástica e apaixonada os hábitos e costumes da sociedade. Dois
personagens de uma peça de teatro que representam a alma perturbada do poeta: Macário –
representa o Álvares de Azevedo byroniano, ateu, desregrado, irreverente e universal; Penseroso
– representa o Álvares de Azevedo sentimental, crente, estudioso e nacionalista. Colocando um
dos personagens situado em São Paulo e o outro, na Itália, o poeta cria a pátria da sua realidade
e a da sua fantasia. Penseroso crítica Macário por não engajar-se ao nacionalismo paisagista
e indianista da época, enquanto o outro declara ter vocação para as tendências e as ânsias
de horizontes humanos, supernacionais. Penseroso, com sua fragilidade, morre melancólico e
Macário debruça-se com Satã e observa nos outros moços a materialização da sua interioridade.
Na modernidade, podemos encontrar, por exemplo, no músico e compositor Renato Russo
tal espírito conflituoso presente na obra de Álvares de Azevedo. Como podemos relacionar e
comparar o poeta e o músico, principalmente o lado psicológico e social? A morte para Renato
Russo também representa libertação e a música uma fuga da realidade? É preciso sublinhar que
Renato Russo, no final da vida, consumido pela doença, expõe ainda mais sua interioridade.

Assista a esses vídeos como sugestão:


»» http://www.youtube.com/watch?v=uYCPuIqTgiQ
»» http://www.youtube.com/watch?v=8X6DnczDbD8

6
A representação da Sociedade no Romantismo

A pintura de Friedrich, “Viajante acima da


neblina”, representa bem o homem do século
XIX, um ser conflituoso que busca, por meio
da reflexão, ajustar-se ao mundo materialista.
A Natureza, para ele, torna-se um lugar de
busca e reflexão sobre o novo mundo. Esse
ser atormentado procura, nas reminiscências,
refletir sobre seu próprio eu e sua condição no
mundo, pois está dominado pelo progresso
e imposições exigidas por uma sociedade
individualista na qual tornou-se apenas um
símbolo de mercadoria.
Na poesia romântica da segunda geração,
o Ultrarromantismo, encontramos tal indivíduo
representado por um eu-lírico dicotômico (amor
e medo, dor e sofrimento, impulso e timidez,
solidão e tédio, insatisfação e inquietação,
tristeza e melancolia) e com subjetividade
profunda na qual volta-se para si mesmo em
busca de seu verdadeiro eu interior, como uma
Fonte: Viajante acima da neblina, Caspar David Friedrich, óleo
sobre tela, 1818. espécie de fuga da realidade vivida, porém,
mesmo nos seus devaneios, mantém sua
consciência e racionalidade. Antonio Candido (1993, p.30) declara que o espírito romântico
se fortalece de pessimismo e sadismo. Tudo que representa, para a geração romântica, uma
contradição de valores éticos, políticos e sociais deve ser tratado dramaticamente na poesia e
no romance, pois expressa o próprio sujeito nas suas virtudes e defeitos.
Vamos, agora, identificar e compreender esse processo de mudança na caracterização do
homem moderno.
Roncari (1995, p.477-479) observa que esse período é marcado por um mundo plenamente
mercantilista, no qual todas as coisas se transformam em mercadoria, fato que foi desencadeado
pela Revolução Industrial e pela implantação do capitalismo, no qual o próprio homem acaba
por tornar-se uma mercadoria de uso, um objeto para o patrão. Pensemos em um homem de
origem rural e rústica, que conhecemos em outros períodos literários, que sai do campo para
a cidade em busca de uma vida melhor e se depara com uma realidade totalmente atípica
a que pertencia: o trabalho unido à máquina e ao salário. Para compor esse cenário, essa
nova visão de mundo moderno, apresentamos o advento das tecnologias, a construção de
fábricas têxteis, a eletricidade, a vida urbanizada e o capitalismo que orienta e rege a vida de
todos os indivíduos que pertençam ao grupo social. Logo, os sentimentos e os afetos deixam
de prevalecer e oferecem lugar a materialidade plena que se torna fonte de poder, riqueza e
posição social. Nesse contexto, o homem é medido pelos bens materiais que conquista. Sendo
assim, os seus valores interiores são sufocados por essa materialidade selvagem.

7
Unidade: A representação da morte na poesia de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira

Você, que pertence ao século XXI, identificou-se com essa reflexão? Interessante que esse
pensamento prevalece até nos dias de hoje.
O exposto nos apoia para entendermos melhor e conscientemente os poetas ultrarromânticos
que descobrem na morte um meio de libertação desse mundo materialista. E st a m o s
diante de uma sociedade estranha, desprovida de sentimentos, individualista e num processo
de desumanização.
Conforme Antonio Candido (1993, p.30), neste novo mundo, o poeta liberta-se da literatura
clássica e das encomendas poéticas. Em consequência dessa ruptura, perde a proteção e
posição social de escritor que ocupava na sociedade burguesa. Tal poeta, entregue a si mesmo,
mostra-se inconformado e cada vez mais disposto a expressar na poesia o eu interior do homem
moderno: pessimista, individualista, inconformado que toma consciência de sua posição no
mundo: um ser solitário, triste e sozinho: “individualismo e consciência de solidão entrecortados
pelo desejo de solidariedade; pessimismo enlaçado à utopia social e a crença no progresso;
aumentam a complexidade desse patético dourado”, na expressão de Victor Hugo.
Segundo Roncari (1995, p.419) Victor Hugo em Prefácio de Cromwell, interpreta a “nova
poesia” da seguinte maneira:

O cristianismo conduz a poesia à verdade. Como ele, a musa moderna


verá as coisas com um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que
tudo na criação não é humanamente ´belo´, que o feio existe ao lado
do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime,
o mal com o bem, a sombra com a luz.(..). É então que, com olhar fixo
nos acontecimentos ao mesmo tempo risíveis e formidáveis, e sob a
influência deste espírito de melancolia cristã e de crítica filosófica que
notávamos há pouco, a poesia dará um grande passo (...) mudará toda a
face do mundo intelectual. Ela se porá a fazer como a natureza, a misturar
nas suas criações, sem entretanto confundi-las, a sombra com a luz, o
grotesco com o sublime, em outros termos, o corpo com a alma, o animal
com o espírito, pois o ponto de partida da religião é sempre o ponto de
partida da poesia. Tudo é perfeitamente coeso (…) E aqui, permitam-nos
insistir,(...) a diferença fundamental que separa,(...) a arte moderna da
arte antiga,(...) a literatura romântica da literatura clássica (…)como meio
de contraste, o grotesco é, segundo nossa opinião, a mais rica fonte que a
natureza pode abrir à arte.

Victor Hugo declara a importância do mundo, da dualidade na criação literária. Essa nova
realidade e verdade permeiam a poesia romântica, o belo e o feio juntamente com a alma e
o espírito se misturam e contribuem na forma e no conteúdo poético em relação à verdadeira
face da descrição e sentimento do mundo real. Como podemos perceber após a leitura do
fragmento, o escritor Victor Hugo elabora uma comparação entre o belo/sublime e o grotesco/
feio e manifesta que o primeiro representa a beleza e a pureza com todos seus encantos e
graças. O segundo representa o ridículo, o impuro, as enfermidades e todas as feiuras e defeitos
do mundo. No feio/grotesco encontramos os vícios, as paixões, as luxurias, os crimes, o pérfido,
o enredador, o hipócrita, ou seja, tudo aquilo que o homem nega, mas tece na vida. Em suma, o
feio é um grande conjunto de coisas negativas que tentamos reprimir, porém é parte integrante
da realidade exterior, e o belo representa a organização, a pureza, a harmonia, o afeto e a
simplicidade da vida.

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Pensem que para o poeta romântico, o feio torna-se parte integrante da poesia, pois através
dele revela ao público leitor os conflitos interiores do homem. Nesse processo de solidão,
inadequação, pessimismo, a morte torna-se o caminho para libertação. O poeta Álvares de
Azevedo compartilha esse pensamento, conforme veremos adiante.

A morte na Visão do Romântico


Vamos, agora, conhecer o significado e importância da MORTE para o poeta romântico como
símbolo de libertação do mundo exterior. Para esse estudo, vamos conhecer o pensamento de
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo alemão que desenvolveu um estudo sobre a estética
romântica. Não iremos nos aprofundar nas leituras do sistema hegeliano, mas leia com atenção
o fragmento selecionado, que o norteará no entendimento do Romantismo:

Na arte romântica , (...) a morte (...)proporciona ao espírito a libertação


da sua finitude e ruptura, bem como a reconciliação espiritual do sujeito
com o Absoluto.(...) na concepção de mundo romântico, a morte tem
significado (...) da negação da negação e (...) transforma-se numa
afirmativa (...) a dor e morte da subjetividade agonizante convertem-se
em regresso a si, (...) nessa existência afirmativa (...) o espírito somente
pode atingir mediante a cessação da sua existência negativa, na qual ele
está isolado da sua verdade e da sua vida real.
(In:GOMES, A.Cardoso,1992,p.138).

Segundo Hegel, a morte é vista como algo positivo que liberta o homem da sua vida real
e o transporta para o Absoluto. O poeta retorna para seu interior, verdadeiro eu, liberta-se da
negatividade do mundo exterior e garante sua independência para viver na plenitude, mas,
para alcançar essa busca pela libertação das imposições do mundo terreno, necessita separar-
se do corpo, matéria, e libertar o espírito. Percebam que no Romantismo o espírito conhece e
reconhece o mundo real, mas procura retornar para si mesmo, ou seja, a realidade que observa
não está de acordo com sua vontade e por isso refugia-se em seu interior.
Conforme Hegel, a ascensão espiritual e o encontro com o Divino acontecem somente
quando o homem ultrapassa o mundo da finitude, o reino do mal, o mundo em que vivemos.
Para esse momento de transcendência, Hegel destaca que a dor e a morte da subjetivação é o
único caminho de reconciliação do homem com o divino.
O Romantismo é a representação do conteúdo absoluto da verdade e, para explorar essa
realidade, o poeta procura, através dos devaneios, fantasias e sonhos desprender-se do mundo
terreno no sentido de alcançar o mundo espiritual do divino. Nesse processo de refletir suas
reminiscências, encontra a si mesmo na sua própria subjetividade e conforta-se consigo mesmo.
Notem que a poesia romântica deve dar conta de expressar essa complexidade do homem entre
dois mundos, o da matéria e do espírito, o finito e o infinito, o efêmero e o eterno, por meio
de uma transcendência espiritual, uma interiorização profunda do ser que deseja libertar-se do
corpo através dos sonhos e devaneios.
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Unidade: A representação da morte na poesia de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira

Álvares de Azevedo é o poeta que mais explora a temática da morte, inclusive seus poemas
registram uma atração e fascínio pela ideia de morrer e estar nos braços da virgem pálida. Essa
idealização absoluta e o interesse pelo amor e morte classificam sua obra como temas baixos.
Antonio Candido (1993, p.167-169) declara que o fascínio pelas leituras de Byron, Victor
Hugo, Musset, Shakespeare, Hoffman foi uma sobrecarga nas criações poéticas de Álvares de
Azevedo, que revela, algumas vezes, um exagero artístico. Para o crítico, a influência do poeta
inglês Lord Byron foi avassaladora ao adolescente de dezesseis anos que, como leitor precoce
e assíduo dos textos de Byron, assimilou e cultivou as mesmas tendências. A obra byroniana
caracteriza-se pelo culto excessivo do eu, sentimentalismo acentuado, sentimento spleen, termo
que se associa ao tédio e à agonia de viver definida como “mal do século”. Na temática amorosa,
o amor é apresentado com pessimismo, sofrimento e dor. Nessa acepção, a solução para tantos
conflitos existenciais do homem está na morte. A essa temática, o poeta também associa o
satanismo e a necrofilia que encontramos na construção das imagens poéticas.
No prefácio que Álvares de Azevedo escreve para a Segunda Parte do livro Lira dos vinte
anos, o poeta procura justificar os temas amor e morte:

Cuidado, leitor, ao voltar esta página! Aqui dissipa-se o mundo visionário


e platônico. (...) poetas do tempo, isto aqui é um tema, senão mais novo,
menos esgotado ao menos que o sentimentalismo tão fasbionable desde
Werther até René. Por um espírito de contradição, quando os homens se
veem inundados de páginas amorosas preferem um conto de Bocaccio,
uma caricatura de Rabelais, (...)Há uma crise nos séculos como nos
homens. É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar-se no misticismo e
caiu do céu sentindo exaustas as suas asas de oiro.O poeta acorda na terra.
Demais, o poeta é homem: Homo sum, como dizia o célebre Romano.
Vê, ouve, sente e, o que é mais, sonha de noite as belas visões palpáveis
de acordado. Tem nervos, tem fibra e tem artérias — isto é, antes e depois
de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo (...)Depois a doença
da vida, que não dá ao mundo objetivo cores tão azuladas como o nome
britânico de blue devils, descarna e injeta de fel cada vez mais o coração.
Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que
morde.É assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema
irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois de Parisina e o
Giaour de Byron vem o Cain e Don Juan — Don Juan que começa como
Cain pelo amor e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica.
Agora basta.
Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não lesses essas páginas,
destinadas a não serem lidas. Deus me perdoe! assim é tudo!... até prefácios!

Você deve se perguntar: qual a razão para esta citação?


Entenda que Victor Hugo e Álvares de Azevedo possuem uma visão de poesia bastante
próxima. Os poetas ressaltam que o homem está cansado de poesias clássicas que refletem
sentimentos amorosos, o belo, o sublime, calma e tranquilidade. Lembremo-nos da poesia
árcade e da poesia romântica da primeira geração do Romantismo. Elas não apresentam o
reconhecimento e exposição verdadeiros da vida humana. Para eles, é por meio dos temas

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baixos que implicam um profundo conhecimento e exposição da natureza humana, a poesia
consegue revelar o eu interior. Assim, o amor erótico, os vícios, os crimes, as paixões sem limites,
o amor sublime, a pureza, a bondade são elementos da vida cotidiana do homem e, por isso,
devem estar presentes nas criações artísticas.
O poeta, por meio de seus sonhos e devaneios, deseja fugir do tédio que, para ele, é a própria
vida. Por meio de idealizações românticas que se misturam com o desejo da morte, consegue
retirar-se do mundo terreno e transcender para outras esferas. Leia a estrofe a seguir, que mostra
a presença do real, do feio e grotesco no poema Poeta Moribundo:

Poetas! amanhã ao meu cadáver


Minha tripa cortai mais sonorosa!
Façam dela uma corda, e cantem nela
Os amores da vida esperançosa!
(...)
Coração, por que tremes? Se esta lira
Nas minhas mãos sem força desafina,
Enquanto ao cemitério não te levam
Casa no marimbau a alma divina!

Se é verdade que os homens gozadores,


Amigos de no vinho ter consolos,
Foram com Satanás fazer colônia,
Antes lá que no Céu sofrer os tolos!-
(...)
Ora! e forcem um’alma qual a minha,
Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça,
A cantar ladainha eternamente
E por mil anos ajudar a Missa!

(Disponível em <http://www.casadobruxo.com.
br/poesia/a/alvares19.htm, acesso em 15 de
novembro de 2013)

De acordo com Roncari (1995, p.422) Álvares de Azevedo capta elementos da experiência
corriqueira e cotidiana para contrastá-los com os anseios românticos. Nessa poesia, a obsessão
pela morte acontece, o poeta evoca imagens pavorosas e seleciona palavras que criam um
cenário de horror e morbidez. No começo do poema, o eu-lírico cadáver, em uma espécie de
testamento, comunica aos poetas que profanem seu cadáver e lhe retirem as tripas. Nesses
versos é introduzida a realidade da morte do corpo, matéria viva, que causa um efeito de
estranhamento porque, para ele, a morte torna-se valor máximo. Nos próximos versos, conversa

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Unidade: A representação da morte na poesia de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira

com o próprio coração, que representa seu eu interior, e elabora uma profunda reflexão a respeito
do verdadeiro sentido de morrer e ao mesmo tempo procura consolo e alívio apresentando
as qualidades da morte e o bem que pode consentir a um morto. Nos versos finais, o poeta
acrescenta a opção pelo Inferno aos boêmios e ressalta que o Céu são para os tolos, lugar de
rezar e cantar ladainha. O poema remete ao satanismo de Byron e, nesse caso, distancia o eu-
lírico do divino. O poeta Álvares de Azevedo faz uma crítica irônica à igreja e à sociedade.
Para Alfredo Bosi (1994, p.111-112), Álvares de Azevedo, poeta juvenil, morto antes de tocar
sua plena juventude, aos vinte anos, foi o escritor que mais representou o Romantismo da Segunda
Geração Ultrarromântica no Brasil. Uma poesia subjetiva, de uma interioridade absoluta, e que por
isso serve como documento e que, atualmente, pode também ser estudada pelo viés da psicologia e
da psicanálise, tão ligada está à condição do sujeito. Um estilo novo e surpreendente, que se constrói
por meio do elemento fantástico e associado aos devaneios e sonhos.
A princípio, esse método de construção causa certo estranhamento ao leitor, contudo,
para compor o eu-lírico melancólico, depressivo, solitário, com transposições de entusiasmos
misturadas ao tédio da vida e que sente repulsa pelas moléstias físicas e morais de uma sociedade
degradada e corrupta, o poeta Álvares de Azevedo recorre ao sobrenatural, ao desconhecido
e capta na morte o caminho para libertação. Quanto ao transcender, podemos dizer que é
uma espécie de fuga do real e que acontece através do sonho e devaneio. Álvares de Azevedo
transcende elementos da natureza, elevando-os à condição espiritual e procurando a satisfação
d’alma no infinito do universo.
Antonio Candido (1993, p.161) declara que as dissipações imaginárias de Álvares de
Azevedo são tão fortes quanto ao mundo da realidade. A fantasia, para o poeta, torna-se uma
experiência mais viva que a própria realidade. Logo, pode causar tanto sofrimento quanto ela.
No poema “Um cadáver poeta”, o poeta demonstra a repulsa da vida e o desejo da morte
como libertação:

Um cadáver de poeta

Levem ao túmulo aquele que parece um cadáver!


Tu não pesaste sobre a terra: a terra te seja leve!
L. UHLAND.
De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!
(...)

O mundo tem razão, sisudo pensa,


E a turba tem um cérebro sublime!
De que vale um poeta — um pobre louco
Que leva os dias a sonhar — insano
Amante de utopias e virtudes
E, num tempo sem Deus, ainda crente?

12
(...)
A poesia é de certo uma loucura,
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro.. Que doidos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer lhes bravo! à inspiração divina,
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar lhes um leito no hospital dos loucos...
Quando é gelada a fronte sonhadora,
Por que há de o vivo que despreza rimas
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?
A bolsa esvazia por um misérrimo
Quando a emprega melhor em lodo e vício!
E que venham aí falar me em Tasso!
Culpar Afonso d’Est—um soberano!—
Por que não lhe dar a mão da irmã fidalga!
Um poeta é um poeta—apenas isso:
(...)

(Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/avz10.
html, acesso em 17 de novembro de 2013).

No poema, Álvares de Azevedo, com lucidez, tematiza a vida de poeta e a condição que
ocupa no mundo burguês. Temos a presença da frustração e do desencanto misturados a um
fundo de ironia e de crítica tanto à sociedade quanto ao próprio comportamento do poeta.
Percebemos a presença de um caráter de projeção interior no qual avalia sua condição e
posição no mundo da mercadoria. A presença de um julgamento negativo a respeito de seu
próprio eu, qualificando-se como louco, insano e desprezado pelo meio social, que tem como
caminho a morte e o esquecimento do poeta.

Acredita-se que essa tendência do poeta pelo tema da morte pode ter sido fruto das leituras
da poesia de Byron, que teve grande influência na Europa. No Brasil, influenciou os jovens da
Faculdade São Francisco e principalmente Álvares de Azevedo. O poema Lembrança de morrer
expressa todas as características e definições estudadas:

No more O never more!


Shelley

Quando em meu peito rebentar-se a obra


Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.

13
Unidade: A representação da morte na poesia de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira

E nem desfolhem na matéria impura


A flor do vale que adormece ao vento;
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro
__ Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade – é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade – é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas . . .
De ti, ó minha mãe pobre coitada
Que por minha tristeza te definhas!

De meu pai . . . de meus únicos amigos,


Poucos – bem poucos – e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoidecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.

Se uma lágrima as pálpebras me imunda,


Se um suspiro nos seios treme ainda
É pela virgem que sonhei . . . que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores . . .
Se viveu, foi por ti! E de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,


Verei cristalizar-se o sonho antigo . . .
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário


Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta – sonhou – e amou na vida. –

Sombras do vale, noites da montanha


Que minh’alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe um canto!

14
Mas quando prelúdia ave d’aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos . . .
Deixai a lua pratear-me a lousa!

(Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/avz10.
html, acesso em 17 de novembro de 2013)

Neste poema, Álvares de Azevedo traduz bem parte da poesia romântica brasileira.
“Lembrança de morrer” é um poema com características que marcam a segunda geração do
Romantismo. O próprio título remete o leitor à temática da morte e causa certo estranhamento
no momento da leitura. Sendo uma poesia também reflexiva, notamos um eu-lírico bastante
emotivo e, no conteúdo de cada verso, sentimos sua agonia, desesperança, melancolia e
insatisfação perante o mundo real e burguês em fase de estagnação, como se observa nos
versos: “Não quero que uma nota de alegria /Se cale por meu triste passamento./ Eu deixo a
vida como deixa o tédio/(...)Como as horas de um longo pesadelo”. Perceba que o eu-lírico
constitui o poema afirmando e reafirmando sua insatisfação e inadequação com a realidade e
revela que na morte pode libertar-se do tédio e restabelecer o equilíbrio e a harmonia interiores.
Essa manifestação altamente evocativa e de caráter ilusório percorre o eu interior do poeta. A
passagem do consciente para o inconsciente aparece na própria visão da natureza, que elege
simbolicamente os estados do corpo e do espírito do eu-lírico, como se observa nos versos:
“Descansem o meu leito solitário/Na floresta dos homens esquecida/ Sombras do vale, noites
da montanha/ Que minh’alma cantou e amava tanto/ Protegei o meu corpo abandonado,/E no
silêncio derramai-lhe um canto!”. Em meio a essa ingênua reflexão de lembranças vividas e não
vividas, o eu-lírico, nos versos: “Como as horas de um longo pesadelo/ Que se desfaz ao dobre
de um sineiro/; Como o desterro de minh’alma errante/ Onde fogo insensato a consumia: / Só
levo uma saudade – é desses tempos /Que amorosa ilusão embelecia”, confessa que sua alma
está carregada de culpas que o consomem como fogo e pouquíssimas coisas levará com ele
após a morte do corpo. Aqui, podemos refletir que nesse devaneio o eu-lírico reconhece seus
erros e lembra racionalmente das pessoas que tanto o amavam: o amor da mãe, do pai e de
poucos amigos. Note que esses versos expressam um eu solitário que aos poucos se conscientiza
de sua condição no mundo. Aos poucos, o poeta o encaminha à cerimônia de passagem da
matéria para o espírito. O poema segue num tom fúnebre de despedida e melancolia. Em
seguida, lembra-se, com dor e lágrima, da mulher pura que tanto desejou, mas da qual jamais
se aproximou:

Se um suspiro nos seios treme ainda


É pela virgem que sonhei . . . que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

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Unidade: A representação da morte na poesia de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores . . .
Se viveu, foi por ti! E de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,


Verei cristalizar-se o sonho antigo . . .
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Uma característica presente na poesia romântica azevediana é a figura da mulher idealizada


e distante do eu-lírico. Uma mulher virgem, bela, de carne e osso, mas impossível de ser tocada
ou beijada pelo poeta. Vejam que, na evasão dos sonhos e nos seus delírios, o eu-lírico acredita
encontrá-la em outro plano, por isso procura transcender nos sonhos: “Beijarei a verdade santa
e nua/ Verei cristalizar-se o sonho antigo . . ./Ó minha virgem dos errantes sonhos/ Filha do céu,
eu vou amar contigo!”
Na estrofe seguinte, despede-se da vida, não com sentimento de um pesar negativo, mas com
tom de libertação e agradecimento à morte. No Romantismo, para o homem atingir o divino e
harmonizar-se com o Absoluto, deve se deparar com o feio, com a matéria impura, com a dor
e sofrimento. A palidez, palavra recorrente na poesia de Álvares de Azevedo, marca a passagem
dos estados emotivos e de certo modo oferece uma tonalidade afetiva e até nebulizadora da
paisagem na qual se encontra: “Só tu à mocidade sonhadora/Do pálido poeta deste flores.../Se
viveu, foi por ti! E de esperança/De na vida gozar de teus amores.”
Nas últimas estrofes, para consagrar o seu desterro terreno, apresenta o epitáfio: “À sombra
de uma cruz, e escrevam nela:/ Foi poeta – sonhou – e amou na vida.” Em sequência, recorre
à Natureza para velar a solidão do seu corpo no sepulcro. Lembremos que a Natureza, no
Romantismo, representa o estado de espírito do eu-lírico.
Procure entender a complexidade e profundidade da obra do jovem Álvares de Azevedo, que
para Alfredo Bosi (1994, p.110) contempla a poética dos domínios obscuros do inconsciente.
O poeta define esse novo estilo, essa nova inflexão de seu egotismo. E, para encerrarmos essa
trajetória a respeito do poeta romântico Álvares de Azevedo, vale mencionar um fragmento do
romance epistolar Obermann do filósofo francês Étienne-Jean-Baptiste-Pierre-Ignace Pivert de
Senancour, citado por Alfredo Bosi:

“Eu sinto: eis a única palavra do homem que exige verdades. Eu sinto,
eu existo para me consumir em desejos indomáveis, para me embeber
na sedução de um mundo fantástico, para viver aterrado com o seu
voluptuoso engano.”Ora, a oclusão do sujeito em si próprio é detectável
por uma fenomenologia bem conhecida: o devaneio, o erotismo difuso
ou obsessivo, a melancolia, o tédio, o namoro com a imagem da morte,
a depressão, a auto-ironia masoquista: desfigurações todas de um desejo
de viver que não logrou sair do labirinto onde se aliena o jovem crescido
em um meio romântico-burguês em fase de estagnação.” (1994, p.110)

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Continuaremos a analisar poemas de outros poetas que tematizam a morte como meio de
libertação do homem. Podemos até refletir a respeito: muitas vezes ouvimos essa expressão:
Fulano morreu, agora ele vai descansar e vai para um lugar melhor. Então será que transcender
não é encontrarmos a paz que tanto buscamos na vida terrena?
O poeta simbolista Cruz e Sousa, como o romântico Álvares de Azevedo, busca na temática
da morte traduzir suas inquietações em relação à vida. Ambos concebem que a morte do corpo
é a única forma de libertação do homem.
Cruz e Sousa teve uma vida marcada pelo preconceito racial de que fora vítima desde a
infância, contrário a Álvares de Azevedo, que nasceu de uma família importante e cresceu
cercado de carinho. Quando nomeado Promotor em Laguna, Cruz e Souza foi impedido de
assumir o cargo devido a sua cor negra. Parte para o Rio de Janeiro e casa-se com uma mulher
negra, que revelou ter problemas mentais e depois de algum tempo morre num hospício. Dessa
união nascem quatro filhos, dos quais dois morrem de tuberculose. Cruz e Sousa alimenta sua
alma de poeta com perdas, angústias, sofrimentos e preconceito racial. Morre aos trinta e seis
anos de tuberculose.
Foi considerado o maior poeta simbolista brasileiro. Cruz e Sousa, na sua poesia, revela
influência parnasiana e apoia-se no domínio da forma. Assim como os poetas ultrarromânticos,
os simbolistas sofrem a inadequação e rejeição à ordem da sociedade burguesa e, por isso, não
se adaptam aos padrões e imposições do mundo exterior. O desejo do poeta simbolista é de
transcender e libertar seu espírito da matéria. Assim como os românticos, os simbolistas também
buscam solucionar seus conflitos existenciais através da morte. Para o simbolista, a felicidade
virá na imortalidade, pois não a usufruiu em vida. E a dor representa um instrumento de
redenção e salvação do homem, uma espécie de purificação da alma.
Diferente de Álvares de Azevedo, que perseguia a morte, para Cruz e Sousa a morte foi uma
sombra que o acompanhou durante toda trajetória de vida. Segundo Bosi (1994, p.270-271), o
ponto mais alto de sua poesia está entre estar preso a um mundo terreno que nega e rejeita sua
cor negra e o desejo de transcendência para outra vida. Sua poesia revela marcas do movimento
parnasiano, que preza a forma e não o conteúdo, explora a subjetividade, o impreciso, o espiritual
e o sinestésico. Estas últimas características são uma representação estética simbolista. Um fazer
poético reflexivo e de profundo caráter psicológico, que aponta a condição trágica do homem
moderno. Durante a análise dos poemas, tais questões ficarão mais claras.
Da mesma forma que Álvares de Azevedo expõe para o leitor a complexidade de seu universo
interior, o subjetivismo, o inconformismo, o pessimismo e o desejo de alcançar o divino, Cruz e
Sousa também o faz, mas em outra linha de pensamento.
Quando observamos e analisamos com atenção o conteúdo poético de Álvares de Azevedo e
Cruz e Sousa, notamos uma forte relação com os poetas europeus. O primeiro, com as leituras do
poeta Lord Byron, Musset e o segundo, com as obras dos franceses Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud
e Verlaine. Por essa forte influência, distanciam-se da realidade da vida provinciana do Brasil da
época e estabelecem uma aproximação com os costumes e influências da cultura europeia.
Alfredo Bosi (1994, p.272) elabora um estudo a respeito do fazer poético de Cruz e Sousa
e declara que a palavra é portadora de todo um universo de dor, sofrimento, humilhação,
preconceito, isolamento, doença, loucura da mulher e a morte prematura dos filhos. No poema
Clamando, de Cruz e Sousa, a sublimação da dor e do sofrimento do poeta se manifesta no
eu-lírico:
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Unidade: A representação da morte na poesia de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira

Bárbaros vãos, dementes e terríveis


Bonzos tremendos de ferrenho aspecto,
Ah! deste ser todo o clarão secreto
Jamais ponde infiammar-vos, Impassíveis!

Tantas guerras bizarras e incoercíveis


No tempo e tanto, tanto immenso affecto,
São para vós menos que um verme e êxito
Na corrente vital pouco sensíveis.

No entanto nessas guerras mais bizarras


De sol, clarins e rútilas fanfarras,
Nessas radiantes e profundas guerras...

As minhas carnes se dilaceraram


E vão, das ilusões que flamejaram,
Com o próprio sangue fecundando as terras...

(Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.
br/csousa.html, acesso em 16 de novembro de
2013)

Após a leitura do poema, notamos que as palavras do poeta reproduzem todo um sentimento
de desilusão, frustração, humilhação e profunda tristeza. Cruz e Sousa apresenta, com clareza,
a sua condição de poeta condenado pela cor e pobreza. Nesses versos, o eu-lírico declara
sua impotência perante a rejeição da sociedade pela qual tanto lutou, mas não alcançou
reconhecimento. A escolha dos adjetivos “dementes”, “bizarros”, “incoercíveis” (incontroláveis)
e dos substantivos “guerras”, “bárbaros”, “verme” e “inseto” assinalam o desabafo do poeta.
Na última estrofe, Cruz e Sousa reproduz sua própria tensão marcada pela morte dos filhos e
declara com pesar profundo sua impotência perante o destino.

Conforme Bosi (1994, p.274), o uso do substantivo abstrato no plural sugere uma dimensão sensível
no universo das ideias do poeta: transparência, melancolia, cegueira, purificação e quintessência.

As minhas carnes se dilaceraram


E vão, das Ilusões que flamejaram,
Com o próprio sangue fecundando as terras.

Acrescenta-se que, nessa estrofe destacada, o verbo “dilacerar” reforça a ideia do tom
confessional do poeta, que expressa, no verso “As minhas carnes se dilaceraram”, a dor e
sofrimento da perda dos filhos. Por isso, vive entre dois mundos: o da matéria e do espírito,
os quais, no seu fazer literário, manifestam a plena expressão de si mesmo. Nestor Vitor (Bosi,
1994, p.275), na obra de Cruz e Sousa, observa a presença vigorosa do tratamento biográfico.
Observe os fragmentos do poema “Sem Esperança”, de Faróis:

18
Ó cândidos fantasmas da Esperança
Meigos espectros do meu vão Destino,
Volvei a mim nas leves ondas do Hino
Sacramental de Bem-Aventurança.

Nas veredas da vida a alma não cansa


De vos buscar pelo Vergel divino
Do céu sempre estrelado e diamantino
Onde toda a alma do Perdão descansa.

Na volúpia da dor que me transporta,


Que este meu ser transfunde nos Espaços,
Sinto-te longe, ó Esperança morta.

E em vão alongo os vacilantes passos


À procura febril de tua porta,
Da ventura celeste dos teus braços.

(Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.
br/csousa.html, acesso em 16 de novembro de
2013)

A atmosfera criada no poema “Sem Esperança” sustenta a ideia e o desejo do eu-lírico


de transcender. Para dar valor absoluto aos versos, algumas palavras são escritas com letras
maiúsculas (Bem-Aventurança, Esperança, Espaços, Perdão, Vergel, Destino, Sacramento).
Logo no início do poema, o eu-lírico já evidencia a questão da morte como libertação da vida
terrena. Do léxico empregado, notamos que algumas palavras recebem uma nova significação
quando são adicionados a elas locuções e adjetivos de efeito (“Esperança morta”, “volúpia da
dor”). Entenda que os recursos linguísticos selecionados revelam o desejo de transcendência
e está expresso no poema por meio de palavras luminosas e translúcidas: “onda”, “céu”,
“estrelado”, “diamantino” e “celeste”. A escolha dos substantivos “fantasma” e “espectro”, que
significam medo e terror, na poesia de Cruz e Sousa, na transmutação de significado, expressam
a esperança e o conforto do poeta. “Ó cândidos fantasmas da Esperança /Meigos espectros do
meu vão Destino/ De vos buscar pelo Vergel divino/Do céu sempre estrelado e diamantino /
Onde toda a alma do Perdão descansa”.
Nos versos seguintes, com calma e serenidade, o poeta profere que a dor corpórea representa
purificação do espírito para posterior transcendência. “Na volúpia da dor que me transporta, /
Que este meu ser transfunde nos Espaços, /Sinto-te longe, ó Esperança morta. E em vão alongo
os vacilantes passos /À procura febril de tua porta,/ Da ventura celeste dos teus /braços.”
Note que os poemas de Cruz e Sousa, a cada verso, ganham musicalidade, por isso o cuidado
do poeta na escolha de um léxico que possibilite a concretização da significação da sonoridade.
Outra característica é a presença do recurso estilístico sinestesia, que associa dois ou mais
sentidos sensoriais (visão, tato, audição, olfato e paladar). Observe como esse recurso permeia
o conteúdo do poema “Cristais”, de Cruz e Sousa:

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Unidade: A representação da morte na poesia de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira

Mais claro e fino do que as finas pratas


o som da tua voz deliciava…
Na dolência velada das sonatas
como um perfume a tudo perfumava.

Era um som feito luz, eram volatas


em lânguida espiral que iluminava,
brancas sonoridades de cascatas…
Tanta harmonia melancolizava.
(...)
Como que anseios invisíveis, mudos,
da brancura das sedas e veludos,
das virgindades, dos pudores vivos.

(Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/
csousa.html, acesso em 16 de novembro de 2013)

O poema se constrói através da sinestesia: “Mais claro e fino do que as finas pratas/o som da
tua voz deliciava…(...)/ como um perfume a tudo perfumava/.” Nesses versos, o eu-lírico busca,
nos sentidos sensoriais audição e olfato, expressar a significação e beleza da voz no poema.
“Era um som feito luz, eram volatas/(..)brancas sonoridades de cascatas….(...)/ da brancura
das sedas e veludos.” Observe que os versos retirados do poema se misturam e dialogam com
os sentidos visão e audição. Outra característica da poesia simbolista refere-se a cor branca, que
representa a pureza e o caminho para o plano transcendental.
Das análises construídas, vimos em Álvares de Azevedo uma contemplação poética com
forte tendência para evasão através dos sonhos e devaneios. Um fazer poético marcado pela
fuga da realidade, profunda depressão, desencanto com a vida traduzido em temas mórbidos,
impuros, fúnebres e melancólicos, que anunciam o desejo de morrer do poeta, que aos vinte
anos morre de tuberculose.
Em sequência, apresentamos o simbolista Cruz e Sousa que, ao longo da vida ,convive com
a morte e a rejeição da sociedade por ser negro. Homem e poeta que busca, na transcendência,
libertar seu espírito da matéria. Uma poesia que cultiva a temática da morte e contempla os
sentimentos do poeta.
Confrontados, entendemos que a morte representa o meio de libertação desses poetas. Uma
poesia de caráter psicológico que explora e revela a interioridade e problemática do ser.
Avançando nessa linha da temática da morte, encontramos o pré- modernista Augusto dos
Anjos, que apresenta, em sua obra, um critério estético cientifico, adicionado a um vocabulário
rebuscado e de mal gosto para expressar a angústia e degradação do homem moderno. Através
de traços expressionistas, Augusto dos Anjos produz imagens, na sua poesia, que revelam um
interior humano caótico e irracional, que mostra o individualismo do homem.
Conforme Alfredo Bosi (1994, p.288-289), a poesia de A. dos Anjos se caracteriza por uma
profunda angústia diante da fatalidade da morte que leva à decomposição e à putrefação da
carne. O destino da vida é ao final fabricar vermes de uma matéria morta, como se observa no
poema a seguir, Psicologia de um vencido:

20
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,

A influência má dos signos do zodíaco.


Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia

Que se escapa da boca de um cardíaco.


Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e á vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,


E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

(Disponível em http://www.jornaldepoesia.
jor.br/augusto.html, acesso em 16 de
novembro de 2013)

Veja que a expressividade do poema está na utilização de um vocabulário científico que


envolve química e biologia com termos técnicos que traduzem a podridão do mundo,
de um cosmo em dissolução. Nas duas primeiras estrofes, o eu-lírico rejeita a vida moderna e
afirma que esse ambiente lhe causa repugnância.

Eu, filho do carbono e do amoníaco,


(...)
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
(...)

O poeta assiste e descreve a destruição implacável do corpo e o verme será o símbolo desse
processo de degeneração. A escolha de expressões referentes às realidades cósmicas e vitais
estão vinculadas à morte e representam a profunda depressão do poeta. Perceba que o poeta
mostra a trajetória do homem a caminho da dissolução da matéria corporal. De acordo com
Bosi (1994, p.289), Augusto dos Anjos produz uma poesia violenta, canta a miséria da carne
que culmina na destruição do homem através da putrefação do corpo. Para ele, as forças da
matéria conduzem o homem ao Mal e ao Nada e, como espectador, divulga ao leitor esse
processo de destruição. Ao final, na última estrofe, o corpo não tem outro destino senão fabricar
miasmas que causam fedor e putrefação.

21
Unidade: A representação da morte na poesia de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira

A opção de agregar elementos estranhos no discurso poético fez do poeta Augusto dos Anjos
um moderno para a época. A visão negativa da existência é tecida por imagens que chocam o
público leitor e mostram a realidade do ser, em vida, seguir rumo ao nada. Muito por conta disso
sua poesia foi criticada e rejeitada.

Contudo, Augusto dos Anjos foi um poeta mensurado por uma estética aberta na qual o
objetivo é conhecer a espécie humana. O poeta cria uma poesia com dimensão cósmica para
decifrar os mistérios do eu. A teoria do Evolucionismo de Darwin a respeito da concepção da
origem humana ligada à ciência influenciou sua poesia.

Como os simbolistas e os românticos, o poeta modernista Manuel Bandeira também


desenvolve a temática da morte na poesia. Sua obra também é de fruto psicológico, de um
lirismo confidencial, auto-irônico que preserva alguns ecos do Romantismo.

Na adolescência, Manuel Bandeira contraiu tuberculose e a sombra da doença continuou a


persegui-lo na vida adulta. Podemos, aqui, lembrar Cruz e Sousa, que também conviveu com a
morte durante sua vida. Manuel Bandeira foi um poeta solitário, que observou o mundo em seus
detalhes e continuamente, retirando-lhe a matéria para o seu fazer poético. Essa observação distante
é fruto da saúde frágil do poeta, que o afasta das multidões, mas não o impede de observá-la.

Segundo Bosi (1994, p.361), Manuel Bandeira foi considerado um dos melhores poetas
brasileiros do verso livre, principalmente pelo esforço em romper com a dicção entre simbolismo
e parnasianismo, mas não se libertou da esfera romântica ou de ecos neoclássicos, pois sua
poesia exige essa delicadeza e trato.

No poema Maçã, de Manuel Bandeira, observa-se que, com muita maestria e delicadeza, a
fruta representa o processo e trajetória da vida.

Por um lado te vejo como um seio murcho


Pelo outro como um ventre de cujo umbigo
pende ainda o cordão placentário
És vermelha como o amor divino
Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente
E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel.

(Disponível em http://www.mackenzie.br/
fileadmin/Graduacao/CCH/primus_vitam/
primus_4/bahia_resenha_humildade.pdf,
acesso em 17 de novembro de 2013).

22
David Arrigucci, com sensibilidade, analisa esse poema que, a partir da observação, mapeia
arquétipos de vida, morte e do divino. Acrescenta que remete às várias maçãs pintadas por Cézane,
que se chamou “natureza morta” e se caracterizou pela contemplação e impressão do objeto.
Apresentamos aqui uma poesia visual e técnica na qual o poeta fornece à maçã a possibilidade
de transcender a realidade, evocando um leque de significações. Pense em uma maçã completa,
vermelha, perfeita. Siga cada verso e vislumbre as imagens que se formam: primeiramente, o
eu-lírico a compara com um seio murcho. Lembre que a maçã, no seu estado de decomposição,
murcha, de tal forma que realmente remete o leitor à imagem de um seio, possivelmente de
uma mulher idosa, que perde todo o seu frescor no processo natural de envelhecimento do
corpo. Em oposição, o poeta observa a maçã e lembra o quão misterioso é a origem da vida.
Concebe-a como um “ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão placentário”: “És vermelha
como o amor divino/Dentro de ti em pequenas pevides/ Palpita a vida prodigiosa/Infinitamente”.

O alcance desses versos se traduze em uma beleza que transcende, pois descreve o segredo
da vida. A maçã, na sua simplicidade, agora, representa o ventre da mulher. As sementes, o
embrião. A haste, o cordão umbilical. Nesse poema, Manuel Bandeira explicita a origem da vida
e o momento da morte.

No poema Não sei dançar, Manuel Bandeira confidencia momentos de alegria e solidão
em um lirismo biográfico e com um fundo de melancolia. Uma poesia menos agressiva , com
momentos de alegria que se misturam com uma tristeza. Leia com atenção um trecho do poema:

(...)
tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...
(...)
Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso que sinto como ninguém o ritmo do
jazz band.
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-
feira gorda.

(Disponível em http://www.jornaldepoesia.
jor.br/manuelbandeira.html, acesso em 17 de
novembro de 2013).

Entenda que o poeta começa seus versos relembrando as perdas familiares e a própria
saúde. E, em sequência, com humor irônico, demonstra indiferença em relação à morte, pois
através dela encontra a vontade e a satisfação de viver.

23
Unidade: A representação da morte na poesia de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira

No poema Momento num café, a morte é vista como um fim. Observe:

Quando o enterro passou


Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e
demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem
finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

(Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/
manuelbandeira.html, acesso em 17 de novembro
de 2013)

Neste poema, Manuel Bandeira descreve uma cena cotidiana, a passagem de um enterro:
“Quando o enterro passou/Os homens que se achavam no café/ tiraram seus chapéus
maquinalmente.” Perceba que o poeta Manuel Bandeira escolhe como ambiente a rua e um
bar. Na época, os bares eram locais sociais onde os homens se reuniam para conversar e tomar
aperitivos, um lugar de respeito. Note que os frequentadores do bar, ao verem o esquife passar,
retiram o chapéu como sinal de respeito e educação, uma regra de etiqueta, sem preocupação
com aquele que partiu dessa vida. Por isso, o eu-lírico, no verso, utiliza o termo “maquinalmente”.
“Saudavam o morto distraídos/Estavam todos voltados para a vida/Absortos na vida/Confiantes
na vida”. Esses homens, que não temos as descrições, estão envolvidos naquele momento de
lazer, na sua vida comum, e por isso, talvez, a impossibilidade de refletirem sobre o fim da vida.
Porém, somente um homem interioriza a cena, “Um no entanto se descobriu num gesto largo
e demorado/Olhando o esquife longamente”, num tempo psicológico que se difere dos outros
homens, reflete e conclui que a vida é passageira e de nada adianta essa agitação constante
em que vivemos no cotidiano. Percebemos, no eu-lírico, uma tomada de consciência a respeito
da vida e da morte. Para finalizar, o poema nos causa certo estranhamento, pois destaca que
o homem saúda a matéria – corpo – liberta de uma alma agora extinta. Para ele, não é a alma
que necessita libertar-se do corpo mas sim o corpo deve libertar-se da alma.
Por fim, a temática da morte, em Manuel Bandeira, expressa a condição humana, carnal,
finita e presa a um doloroso anseio de transcendência, mas que talvez não exista, já que a alma
é extinta. Constrói-se, também, por meio das observações da vida simples e cotidiana, e cria
uma poesia com temáticas universais, cujo cenário revela certo desencanto em relação à vida e
uma profunda tristeza associados à melancolia. Na temática da morte, vislumbramos a presença
desse eu em desencanto, que acaba por atribuir a Manuel Bandeira ecos do Romantismo,
mesmo se tratando de um poeta modernista.

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Finalizamos mais uma parte de nossos estudos. Mergulhamos no Romantismo e dialogamos
com outros períodos literários para entendermos a importância do Romantismo na Literatura.
Devemos perceber que os poetas estudados e analisados demonstram, por meio da temática
da morte, um assunto universal: apresentar as insatisfações, os conflitos e os desajustes da
humanidade. Revelar que o homem empobreceu em sua humanidade, tornando-se frio,
individual e materialista em sua natureza moderna. Para libertar-se desse contexto alienado,
deixa-se levar pela dor e sofrimento que culminam na morte e separação entre espírito e matéria.

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Literatura Brasileira
Poética
UNIDADE: A poesia modernista: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto

• Manifesto Antropofágico
• Ruptura com os modelos estéticos antigos
• Assimila a vanguarda futurista
• Crítica social e linguagem coloquial
Oswald de Andrade • Valorização da pátria brasileira.
Futurismo
• Parodia – reconta a historia do Brasil
• Poema-piada
Cubismo • Versos livres (diferentes tamanhos)
Modernismo
Surrealismo
Vanguardas europeias
Expressionismo
• Pauliceia Desvairada
• Surrealismo e futurismo
Dadaísmo • Escrita automática
• Critica à língua culta do país.
Mário de Andrade • Descrição fragmentada da cidade de São Paulo
• Versos livres (diferentes tamanhos)
• Humor, ironia, irreverência
• Crítica social e linguagem coloquial

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Material Teórico
A poesia modernista: Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto

Responsável pelo Conteúdo:


Profa. Ms. Helba Carvalho

Revisão Textual:
Prof. Ms Malu Rangel
A poesia modernista: Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Carlos Drummond de
Andrade e João Cabral de Melo Neto

• Um pouco do contexto da época (século XX)

• Vamos conhecer a vanguarda futurista?

• Conclusão

·· Nessa unidade, conheceremos o projeto artístico das


vanguardas europeias, cuja proposta era criar novas formas de
expressão artística para a pintura, literatura, música e escultura.
No Brasil, o Modernismo (em sua 1ª fase) foi articulado
diretamente a esse fenômeno das vanguardas europeias. Para
analisar esse movimento efervescente da literatura brasileira,
vamos conhecer, analisar e sentir a especificidade da poesia
dos primeiros modernistas: Oswald de Andrade, Mário de
Andrade, Carlos Drummond e João Cabral de Melo Neto.

Recomendamos que siga o seguinte roteiro para que tenha um melhor aproveitamento
da unidade:

1 - Leia o conteúdo teórico da disciplina;


2 - Leia o mapa mental do conteúdo teórico;
3 - Assista à apresentação narrada;
4 - Faça a atividade de sistematização;
5 - Faça a atividade de aprofundamento;
6 - Leia o material complementar;
7 - Formule suas dúvidas ao tutor da disciplina por meio do módulo Mensagens do
Blackboard ou ainda por meio do fórum de dúvidas da disciplina;
8 - Procure ler as obras indicadas na bibliografia, principalmente aquelas que estão
disponíveis na biblioteca eletrônica da Universidade, isso irá colocar você em contato
com diferentes visões sobre o problema além de fornecer a você um repertório maior de
conceitos sobre os poetas estudados e as características de suas obras.

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Unidade: A poesia modernista: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto

Contextualização

Leia atentamente o poema a seguir, de Carlos Drummond de Andrade:

Os Ombos Suportam o Mundo

Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.


Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.


Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?


Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(Disponível em http://www.releituras.com/drummond_osombros.asp)

O poema que acabou de ler é um exemplo da fase social da poesia de Carlos Drummond
de Andrade, na qual o eu-lírico apresenta a dificuldade de se viver em um tempo de guerra:
Segunda Grande Guerra Mundial. Como o poema não menciona a qual guerra se refere, é
possível apresentar para os seus futuros alunos como esses versos são atemporais, ou seja,
podem ultrapassar o tempo. Apesar de contextualizar a década de 40 do século XX, é possível
mostrar que a sensação de falta de amor e de qualquer tipo de crença na vida pode estar
presente em qualquer situação de guerra, ou seja, é possível ler este poema em uma situação
de guerra atual, na Síria, por exemplo, ou em qualquer país que passe por disputas violentas.

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Um pouco do contexto da época (século XX)

Fonte: Abaporu (1928), Tarsila do Amaral, óleo sobre tela / Capa da revista Klaxon (ed. agosto, 1922) / Cartaz da Semana de Arte
Moderna de 1922

No Brasil da chamada República Velha (1894-1930), os estados de Minas Gerais e São Paulo, com
a política do café com leite, comandam a política e a economia do país. São Paulo, com a pecuária,
com a indústria, com a burguesia que conta com um respeitável grupo intersticial: o Exército que
exercia um papel político de relevo. Minas, com as lavouras de café. (BOSI, 1994, p.304).
A isso podemos somar a urbanização da cidade e a chegada dos imigrantes europeus para
trabalharem nas lavouras do centro sul. Com a industrialização, damos início a novas classes
sociais, mesmo que atrasadas em relação à Europa, surge a classe operária, o subproletariado
e a classe média. Não se deve esquecer que os escravos recém-libertos, sem perspectiva de
trabalho, rejeitados e excluídos da sociedade, marginalizam-se em todo o país.
No Nordeste, a cana de açúcar, não podendo acompanhar a política do café com leite, entra
em declínio. Os movimentos operários em São Paulo, 1914-18, demonstra o aparecimento com
força de uma classe de proletariados que exigem mudanças no governo. Em 1925, os militares,
revoltados com a elite agrária e com governo de Arthur Bernardes, incentivam a população a
sair às ruas para exigir modificações na postura dos políticos, em relação às injustiças sociais, à
concentração do poder nas mãos da elite agrária, fraudes nas eleições e exploração dos pobres.
É preciso lembrar da classe média e operária tratada com descaso pela elite agrária. Na
época, a consciência do Brasil funciona através de interesses locais diversos. Por isso, a missão
da literatura é testemunhar o estado geral dessa nação jovem, chamada Brasil, que cresce em
desequilíbrio e desarmonia. Os artistas necessitam transmitir aos leitores esses ritmos diversos e
revelar as várias faces do Brasil para a população brasileira.
Antonio Candido observa (2006, p.127) que somos um povo latino, de herança cultural
europeia, mas etnicamente mestiço e influenciado pela cultura dos negros africanos e indígenas.
Esse primitivismo, a terra tropical e a forte influência dos colonizadores portugueses “brancos”,
instituíram um certo constrangimento em relação à nossa identidade de raça e, para mascarar
essa realidade, nossos poetas e escritores idealizam os eu líricos, as personagens literárias e a
paisagem tropical, dando-lhes um toque europeizado: criam índios com virtudes e beleza ao
estilo europeu, o negro em posição de inferioridade e a paisagem é descrita de maneira também
idealizada. Se você quiser confirmar isso, retorne ao Arcadismo e Romantismo, às idealizações
e à cópia do modelo literário europeu, que encontram-se bastante presentes.

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Unidade: A poesia modernista: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto

Os modernistas pretendem libertar o Brasil desse sentimento de inferioridade, dos estereótipos


e recalques históricos, étnicos e sociais e incorporá-los à literatura sem idealizações e revelar a
rusticidade do negro , do mulato, a paisagem selvagem e todo primitivismo como fonte de
elaboração da arte brasileira.
Conforme Bosi (1994, p.305), os artistas têm um grande desafio: olhar para cada região do
Brasil, onde lugares de prosperidade e riqueza convivem com extensões marcadas pela pobreza
e marginalização. Acrescenta que Rio de Janeiro e São Paulo, nos anos 20, eram os dois centros
nos quais se encontravam os intelectuais brasileiros que mantinham uma forte relação com os
intelectuais europeus. Não podemos esquecer que a base da educação dos poetas e escritores
têm como alicerce os moldes da cultura europeia.
Nossos poetas, escritores, pintores, músicos e escultores começam a assimilar um novo
modelo intelectual europeu: o das Vanguardas Europeias.
“Começam a ser lidos os futuristas italianos, os dadaístas e os surrealistas franceses (...) conhece-
se o cubismo de Picasso, (...) o expressionismo alemão (...). Já se fala da psicanálise de Freud,
o relativismo de Einstein (...). Falando de um modo genérico, é a sedução do irracionalismo,
como atitude existencial e estética, que dá tom aos novos grupos, ditos modernistas, e lhes
infunde aquele tom agressivo (...) para demolir as colunas parnasianas.” (BOSI,1994, p.305).
Nesse período, marcado por mudanças, observamos o advento da industrialização, das
tecnologias, a criação de indústrias automotivas, a construção de ferrovias e o crescimento dos
centros urbanos. Além disso, a aproximação do Brasil com o Ocidente se estreita depois da
Primeira Guerra Mundial.
Antes da Semana de 22, nossos artistas serviram-se do empréstimo das vanguardas europeias,
da assimilação das correntes anteriores e do estudo da psicanálise de Freud. Todos esses
elementos formaram um grande laboratório de estudo e pesquisa para os intelectuais da época.
Encontramos, no movimento, a assimilação e o hibridismo dessas leituras e, principalmente, a
das vanguardas francesa e italiana no fazer literário dos poetas e escritores brasileiros. Apesar
de todos esses elementos passadistas, os modernistas apresentam publicamente a nova estética
e, nessa situação da procura por uma arte genuinamente brasileira, as vanguardas apresentam
um papel decisivo e a corrente futurista foi a principal delas.

Vamos conhecer a vanguarda futurista?


Na Europa, nasce o Futurismo de Marinetti, inspirado na Revolução Industrial, nos avanços
tecnológicos e industriais. O poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti escreve o Manifesto
Futurista, que contém os ideais do movimento: valorização e exaltação às máquinas e incluía as
tecnologias como tema central.
Para revelar esse momento, os poetas elaboram uma poesia fragmentada, dando a ideia
de velocidade e dinamismo, e as onomatopeias marcam a construção poética. Esse momento
de inovação exige que os poetas rompam com as regras da gramática normativa, com o
academicismo literário e permitam a si mesmos uma maior liberdade de expressão.

8
O poeta Oswald de Andrade divulga esses novos valores em manifestos e crônicas, escritos
para jornais e revistas. O seu talento jornalístico difunde a nova tendência da década e um forte
desejo de libertação intelectual. Antonio Candido observa:

Os nossos modernistas se informaram pois rapidamente da arte


europeia de vanguarda, aprenderam a psicanálise e plasmaram um
tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão, reencontrando
a influencia europeia por um mergulho no detalhe brasileiro (...)
deixa de lado o patriotismo ornamental de Bilac (...) para amar com
veemência o exótico descoberto no próprio país(...) escritores se
aplicam a mostrar como somos diferentes da Europa (...) em todos
eles encontramos latente o sentimento de que a expressão livre (...)
na poesia, é a grande possibilidade que tem para manifestar-se com
autenticidade um país de contrastes, onde tudo se mistura e as formas
regulares não correspondem a realidade. (CANDIDO, 2006, p.129).

A obra de Oswald de Andrade reúne todas as características que marcam o exposto. O


poeta, jornalista, crítico, romancista e teatrólogo transgride e quebra expectativas, além de
criar polêmica. Nos poemas-piada, consegue retratar o Brasil e, através do humor e da ironia,
representa a sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, critica os poetas de períodos anteriores,
que idealizavam o país e bebiam na fonte dos moldelos europeus.
Ao escrever o “Manifesto Antropofágico”, uma metáfora do que deveria ser assimilado e
eliminado das influências da cultura europeia, o poeta cria uma postura nacionalista crítica,
uma proposta diferente dos períodos anteriores que elimine tudo o que fosse estrangeiro e exalte
tudo o que represente como símbolo da nacionalidade e identidade brasileira. No manifesto, os
intelectuais brasileiros se tornam “canibais” que devoram as influências estrangeiras.
A poesia, com os modernistas, recebeu uma nova forma: versos livres de todos os tamanhos,
com rimas e sem rimas; estrofes com diferentes números de versos; linguagem coloquial e
simples; palavras são pronunciadas de acordo com a fala da região do poeta; aproximação
entre a fala e a linguagem da região; a paráfrase, a paródia e a mimese.
No poema “Vícios na fala”, o poeta aproxima a linguagem falada da escrita, observe:

Vício na fala (Oswald de Andrade)

Para dizerem milho dizem mio


Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados
(Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/oswal.html, acesso em 24/12/2013)

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Unidade: A poesia modernista: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto

Na poesia modernista, a paródia é um gênero bastante utilizado pelos poetas, principalmente


para representar textos e documentos que contam a história da descoberta e colonização do
Brasil. O poeta modernista, Oswald de Andrade, parodia os textos dos cronistas portugueses
para a realidade brasileira com muita irreverência e humor. Nos poemas do livro Pau Brasil,
Oswald de Andrade, com ironia, reproduz a historia do Brasil desde o descobrimento até a
colonização. Observe o poema abaixo:

A descoberta
Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
os selvagens
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam por a mão
E depois a tomaram como espantados
primeiro chá
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real
as meninas da gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha.
(Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/oswal.html, acesso em 24/12/2013)

Podemos constatar que o poeta, a partir de um documento histórico, a Carta de Pero Vaz
Caminha, extrai um recorte da carta e elabora uma releitura do texto; reconta a história do Brasil
adaptando-a à realidade brasileira com visão crítica do século XX. Por meio da intertextualidade
e construção de uma paródia, altera a semântica do texto e, no lugar da expressão “moças
gentis” da carta original, modifica por “meninas da gare”, que pode ser interpretado como as
prostitutas da estrada de ferro. Leia o trecho da carta: “Ali andavam entre eles três ou quatro
moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e
suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem
olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.” (Disponível em: http://www.historiadobrasil.net/
documentos/carta_caminha.htm, acesso em 24/12/2013).

Ideias-chave
Observe que a poesia oswaldiana acontece principalmente através do humor e
irreverência com que o poeta traça o perfil da sociedade brasileira. Na recitação do
poema clássico romântico e saudosista Canção de Exílio, de Gonçalves Dias, Oswald
de Andrade faz uma poesia satírica e, de forma redundante, elabora uma exaltação
à terra sem idealizações. Leia o poema parodiado por Oswald de Andrade.

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Canto de Regresso à Pátria

Minha terra tem palmares


Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase tem mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que eu veja a rua 15
E o progresso de São Paulo
(In Pau-Brasil, 1925)
(Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/oswal.html, acesso em 24/12/2013)

Note que o poeta desconstrói a fonética do poema e procura, por meio da paródia, elaborar
uma crítica ao Romantismo idealizado de Gonçalves Dias. No lugar de minha terra tem palmeiras,
o poeta troca por minha terra tem palmares, que remete o leitor ao símbolo da abolição, o zumbi
dos palmares, e também à escravidão no Brasil. Também exaltar a riqueza da terra, a fauna,
a flora e o amor. Perceba que o poeta, de maneira redundante, afirma e reafirma seu amor à
terra natal: “Minha terra tem mais rosas/E quase tem mais amores/Minha terra tem mais ouro/
Minha terra tem mais terra/Ouro terra amor e rosas.” O interessante é que, nos últimos versos, o
poeta não se refere a voltar ao Brasil, como em Canção de Exílio de Gonçalves Dias, mas sim,
retornar para a cidade de São Paulo, na rua 15, destacando o progresso da cidade, bem como
colocando-a em destaque como o centro artístico-cultural do país na época.
Nos poemas analisados, percebemos a habilidade de Oswald de Andrade em criar efeito
de sentido através de uma linguagem coloquial, simples, que inovou a literatura brasileira. Os
poemas selecionados tiveram como propósito reescrever a realidade nacional por meio de textos
poéticos considerados clássicos de outros períodos e adaptá-los em paródias para explicitar a
realidade nacional presente da época.
Agora vamos conhecer o poeta e escritor Mário de Andrade, um dos líderes da primeira
geração modernista e que, juntamente com Oswald de Andrade, construíram uma poesia
autêntica e brasileira. Enquanto Oswald de Andrade capta elementos das vanguardas europeias
e os têm como base para a construção da poesia modernista brasileira, Mário de Andrade as
rejeita e, nesse turbilhão de ismos: Futurismo, Cubismo, Expressionismo, Dadaísmo, Surrealismo,
os poetas não conseguem distinguir a consciência estética que se formou entre os artistas
brasileiros. A princípio, sabe-se que o Futurismo de Marinetti foi a corrente que mais se adequou
aos moldes literários, emaranhando-se ao primitivismo que se refere às raízes brasileiras. Na
obra oswaldiana, essa relação é uma constante. Mesmo negando as vanguardas, observa-se, na
obra de Mário de Andrade, fortes traços de futurismo e surrealismo.

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Unidade: A poesia modernista: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto

São visíveis algumas aproximações com as vanguardas europeias (Dadaísmo, Cubismo,


Surrealismo, Futurismo e Expressionismo). No poema Pauliceia Desvairada, Mário de
Andrade declara ter lançado o desvairismo. Nessa poética, a teoria da escrita automática
dos surrealistas fica evidente. Segundo os surrealistas, essa escrita está ligada ao fluxo da
consciência que se permite derramar sobre a obra literária, ou seja, a atividade criativa do
poeta é guiada pelo inconsciente.
A leitura do Prefácio Interessantíssimo, escrito por Mário de Andrade, confirma a presença da
corrente surrealista. Vamos à leitura.

Prefácio Interessantíssimo
Leitor:
Está fundado o Desvairismo.
Este prefácio, apesar de interessante, inútil.
(...)
Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo que meu inconsciente me grita. Penso
depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão desse prefácio
interessantíssimo (...) E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais.
Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu;
e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda
não compreende bem. (...)Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos
de contacto com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. (...)Um
pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento
claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com
acentuação determinada. (...)O passado é lição para se meditar, não para reproduzir. (...)
Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de
exterior: automóveis, cinema, asfalto. Se estas palavras frequentam-me o livro não é porque
pense com elas escrever moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele razão
de ser.(...) Não quis também tentar tentar primitivismo vesgo insincero. Somos na realidade os
primitivos duma era nova.
(In: ANDRADE, Mário de. “Prefácio interessantíssimo”. Paulicéia desvairada. Caixa
Modernista. Edusp/Editora UFMG/Imprensa Oficial, São Paulo, 2003. Arquivo Mário de
Andrade, IEB-USP, p. 7-39).

O excerto nos mostra que os artistas viviam um momento de adequações e negações. Bosi
refere-se ao texto de Mário de Andrade como sendo uma teorização eclética. Temos a teoria da
parole in liberta do Futurismo italiano, a escrita automática do Surrealismo e a deformação do
abstrato do Cubismo. De acordo com Alfredo Bosi (1994, p.348), Mário de Andrade aprecia e
aceita as vanguardas, porém não as utiliza como alicerce do seu fazer literário, mas como um
auxiliar poderosíssimo.
Leia o fragmento a seguir e perceba que Mário de Andrade, ao descrever o progresso da
cidade de São Paulo, revela o lado perverso que aliena e destrói. O poeta elabora uma crítica
em relação ao processo da reificação humana e, por meio da observação da cidade e da escrita
automática, amplia o campo de visão e libera seus sentimentos de observação. O uso da
polifonia poética, a superposição de ideias, sem ligação entre os versos, expressam o sentimento
de insatisfação diante daquilo que observa

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O cortejo

(...)
Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia - a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção...
Giram homens fracos, baixos, magros...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Estes homens de São Paulo,
Todos iguais e desiguais,
Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
Parecem-me uns macacos, uns macacos.
(Disponível em http://tvcultura.cmais.com.br/aloescola/literatura/poesias/mariodeandrade-ocortejo.htm,
acesso em 25/12/2013)

Nesse excerto, podemos observar que o poeta Mário de Andrade procura expor ao público
leitor como a pacata e provinciana cidade de São Paulo e o povo brasileiro mudaram de
fisionomia com o progresso. “Vaidades e mais vaidades.../Nada de asas! Nada de poesia! Nada
de alegria!” Os versos arredondados propõem um ritmo acelerado e de transformação da vida
cotidiana, que acabam por afetar as relações humanas. Já sentimos a frieza, a alienação humana
e o abandono da arte. Tendo como auxiliar a corrente surrealista, o poeta compara a metrópole
a um monstro com mil dentes: “Paulicéia - a grande boca de mil dentes;/e os jorros dentre a
língua trissulca/de pus e de mais pus de distinção...Giram homens fracos, baixos, magros...” que
destrói aqueles que são considerados fracos e não se adequam ao ritmo da cidade grande.
E continua: “Estes homens de São Paulo/Todos iguais e desiguais/parecem-me uns macacos,
uns macacos”. Nesses versos, Mário de Andrade anuncia a degeneração e a decadência da
sociedade modernizada. O homem, na visão do poeta, é um ser dependente da materialidade,
considerado igual na alienação, porém desigual na pirâmide social: classe rica, média, pobre
e abaixo da pobreza. A representação do macaco é justificada pela aceitação da realidade
imposta e perda da identidade humana. Classifica a cidade como desvairada que recebe a todos
numa desordem sem distinção: “Paulicéia - a grande boca de mil dentes;/e os jorros dentre a
língua trissulca/de pus e de mais pus de distinção...”, depois abandona os seus a própria sorte.
No poema analisado, podemos constatar a presença das correntes de algumas vanguardas europeias:
• Futurismo (velocidade e ritmo alucinante da Pauliceia desvairada): “Horríveis as cidades!
/Vaidades e mais vaidades.../Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria! /Oh! Os
tumultuários das ausências!” Surrealismo (escrita automática e fascínio pelo inconsciente):
“Paulicéia - a grande boca de mil dentes;/e os jorros dentre a língua trissulca/de pus e de
mais pus de distinção.../ /Giram homens fracos, baixos, magros...”
• Dadaísmo (espontaneidade total e falta de lógica que representa o espelho crítico de
uma sociedade aborrecida): em todo o poema percebemos essa característica.
• Cubismo (relação entre o ilógico, o simultâneo e o instantaneísmo aliados ao humor
poético): “Estes homens de São Paulo/Todos iguais e desiguais/Quando vivem dentro dos
meus olhos tão ricos/Parecem-me uns macacos, uns macacos.”

13
Após a leitura, notamos que o poema de Mário de Andrade apresenta um conjunto de
características modernistas. Perceba que a linguagem coloquial, os versos livres e as estrofes
heterogêneas anulam a estrutura formal da poesia. A esses elementos acrescenta-se a caricatura
do burguês e o conteúdo crítico cuja postura é radicalizar e ridicularizar os burgueses. O uso
dos substantivos adjetivados “burguês-níquel, burguês-burguês, homem-curva, homem-
nádegas, burguês-mensal! burguês-cinema! Ao burguês-tilburi,” reforça o tom de agressividade
e rejeição do poeta para com a elite. Alguns substantivos sustentam a ideia do burguês como
sendo um homem guloso, com o corpo deformado pelo excesso de gordura e que retarda o
cérebro impedindo-o de pensar: “Morte à gordura!/Morte às adiposidades cerebrais!”. Além
de representar a burguesia bem alimentada num país com fome e miséria. Ao chamá-lo de
“burguês-níquel”, ressalta o apego ao dinheiro e o egoísmo em relação ao outro que, para
ele, não importa, principalmente os necessitados. Cabe ressaltar que a figura caricaturada
do burguês remete o leitor ao Expressionismo: que na Literatura representa o viver humano
de forma negativa e, por isso, cria imagens distorcidas que alteram essa realidade. Os poetas
expressionistas abordam o mundo grotesco deformado pelo progresso e denuncia o homem
burguês preso à materialidade, vivendo num mundo em crise: Morte à gordura! Morte às
adiposidades cerebrais! / Come! Come-te a ti mesmo, oh! Gelatina pasma! / Oh! Puré e de e de
batatas morais! /Oh! Cabelos na ventas! Oh! Carecas! / (...)homem nádegas /homem curva.
Repare que o eu lírico, para declarar a decadência da elite brasileira, vincula aos títulos de
nobreza nomes comuns para reforçar a mediocridade dos homens burgueses que se consideram
superiores e, por isso, isolam-se da sociedade: “Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques
zurros! Que vivem dentro de muros sem pulos”, porém mostra que são homens comuns. Acrescenta
o termo “zurro” (a expressão sonora que o burro emite como voz) com a intenção de compará-los
aos burros que ficam dando pulos enclausurados no seu mundo de mediocridade e mesquinhez.
Toda a construção poética é elaborada com um caráter que pode nos indicar a corrente dadaísta,
pois apresenta um humor sarcástico, cruel, que contraria todas as convenções burguesas.
Estamos encerrando a primeira fase do Modernismo, considerado uma fase heroíca e
ponta de lança para a literatura moderna brasileira. Conhecemos um pouco das vanguardas
europeias, Futurismo, Cubismo, Surrealismo e Dadaísmo. Essas correntes se misturaram ao
grupo dos modernistas e foram adaptadas ao contexto nacional. Estudamos os escritores
mentores do modernismo no Brasil. O principal, Oswald de Andrade, que, através da corrente
Futurista, apresentou uma nova forma de se fazer poesia. O poeta elabora uma releitura de
textos dos cronistas portugueses e de poemas clássicos brasileiros e os adapta para a realidade
nacional. As parodias são uma forma de recontar a história do Brasil sem idealizações. Tanto
Oswald de Andrade quanto Mário de Andrade buscavam “reconstruir” a literatura brasileira
sem sentimentos de inferioridade e aceitar que somos diferentes, uma raça mestiça, que vive
em em país exótico, selvagem e tropical. Nossos poetas lutam para criar uma literatura brasileira
atualizada com as vanguardas europeias.

Vamos agora conhecer a segunda fase do Modernismo


Brasileiro (1930-1945)
Na segunda fase modernista, décadas de 30 e 40, alguns escritores assumem o compromisso de
questionar o lugar do homem no mundo diante da guerra e de demais acontecimentos da época.
Alfredo Bosi (1994, p.384) diz que o papel do escritor é com a realidade social e os fatos históricos
do momento. Essas duas décadas refletem um momento de tensão, crise e angústia mundial.

15
Unidade: A poesia modernista: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto

No Brasil, após a Revolução de 30 Getúlio Vargas assume o poder e os paulistas,


inconformados, promovem a Revolução Constitucionalista de 1932, mas são derrotados pelas
forças do governo. Legitimado no poder, Getulio Vargas persegue os comunistas e intelectuais.
Em 1937, o Congresso Nacional é fechado e Getúlio Vargas declara O Estado Novo, um regime
no qual exerce o poder de forma centralizada e autoritária. Esses momentos trazem conflitos,
perseguições e mortes.
Em 1939, Hitler invade a Polônia dando início à Segunda Guerra Mundial e, nessa barbárie,
milhares de judeus morrem injustamente nos campos de concentração. O mundo se divide e
esse cenário de terror reflete diretamente na vida do homem.
A poesia de Carlos Drummond de Andrade expressa esse sentimento do mundo entre coisa-
razão. Vamos entender esse sentimento. Conforme Bosi (1994, p.441), esse sentir do poeta
torna-se negativo à medida que mergulha num estado de melancolia, misturado ao desprezo e
solidão da existência. Por meio do distanciamento, o poeta ora remete o leitor para um arsenal
concretíssimo de coisas, ora à atividade lúdica da razão, entregue a si mesma, armando e
desarmando dúvidas, por mais próxima de negar que de construir: “e a poesia mais rica/ é um
sinal de menos.”
Se compararmos as poesias de Mário de Andrade e de Carlos Drummond de Andrade,
perceberemos que Drummond atingiu o ponto de fazer poesia que Mario de Andrade
buscava alcançar.
O poeta Mario de Andrade, como vimos, descreve e sente a cidade expondo-a concreta: a
confusão, a agitação, o caminhão, carros, postes, fumaça, bonde, a Pauliceia Desvairada. Já,
Carlos Drummond, o poeta mais maduro, observa o tempo presente vivido, mas descreve as
pessoas, as classes sociais no ritmo da “Pauliceia Desvairada”. Observe essa mudança no trecho
do poema Nosso Tempo.

(...) Escuta a hora formidável do almoço


na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.
Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa,
evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.
(Disponível em http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond25.htm, acesso em 25/12/2013)

Note que o poeta deseja, numa visão caleidoscópica, na hora do almoço, mostrar as disparidades
e diferenças de se viver na grande metrópole. O alimento revela as classes sociais, o qual uns comem
bem, outros se alimentam dos restos e a esse cenário temos também a imagem de seres humanos,

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como cachorros famintos, que observam as pessoas se alimentando através dos vidros dos
restaurantes: “Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos! /Os subterrâneos da fome
choram caldo de sopa / olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.” Veja que a
questão de classe se revela nesse trecho: “peixes argênteos/ choram caldo de sopa.” Nos dois
últimos versos, a corrosão que se refere ao momento presente e a degradação do homem
encerram o poema: “Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,/
mais tarde será o de amor.” Nessa sociedade mecanizada, o homem tornou-se uma máquina
e por isso não tem consciência de sua condição no mundo. Carlos Drummond mostra essa
realidade, essa corrosão que desgasta coisas e seres. É esse progresso histórico que conduz à
angustia, ao asco e ao desgosto que Drummond partilha na sua observação de mundo, como o
monstro de mil dentes tão bem elaborado no poema O cortejo, de Mário de Andrade.
No livro Sentimento do Mundo (1940), Drummond busca, como tema central, a Segunda
Guerra Mundial, os problemas sociais relacionados às angústias e sofrimento do homem em
relação a existência em um mundo de conflitos. Nesse processo, se vê diante de uma sociedade
neocapitalista, tecnocrata, e um regime ditatorial que controla a todos. Por isso, nessa fase,
percebemos a sequidade e o ceticismo do poeta.
No livro A Rosa do Povo, temos uma insatisfação do eu-lírico com a Segunda Guerra
Mundial (1939-1945).

Áporo
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
(Disponível em http://www.cpflcultura.com.br/2012/07/06/aporo-e-elefante-de-drummond/ acesso em
25/12/2013)

A palavra Áporo nos traz um certo estranhamento e podemos defini-la de três maneiras:
“Problema de difícil resolução. Bot. Planta da família das orquidáceas. Zool. Inseto himenóptero.”
Vamos conhecer o poema Áporo, essa escavação do inseto perfurando a terra, que é o
mergulhar do poeta na história: “Um inseto cava;/cava sem alarme/perfurando a terra/sem
achar escape.” Veja que até esse verso o poeta não tem esperanças em relação ao mundo que
assiste. “Que fazer, exausto,/em país bloqueado.” Representa o momento político do país, a
Ditadura. Em sequência, nessa busca, o labirinto se desata para que irrompa a absurda flor:
“Eis que o labirinto/(oh razão, mistério)/presto se desata:/ em verde, sozinha,antieuclidiana,/
uma orquídea forma-se.” Perceba que a terra é neutra e nela tudo pode se realizar e acontecer.

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Unidade: A poesia modernista: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto

Pode-se dizer que o aparecimento da orquídea seja uma tentativa do poeta ter esperança de
um mundo melhor ou uma forte representação de renovação.
Na obra de Carlos Drummond, uma indagação se mantém em todos os poemas. Há a
necessidade do poeta em compreender o mundo. Para ele, a vida é apresentada em meio aos
obstáculos que devemos transpor e retirar do caminho sabiamente. No poema No meio do
Caminho, percebemos esses desafios:

No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
(Disponível em http://www.horizonte.unam.mx/brasil/drumm3.html, acesso em 03/01/2014)

A poesia universal de Carlos Drummond de Andrade se estabelece na relação da História do


Brasil e do Mundo. Ao escavar essa história, descobre que o ser está em processo continuo de
desumanização com a modernidade.
Agora vamos conhecer um pouco da poesia de João Cabral de Melo Neto, poeta
contemporâneo, da Geração de 45. O poeta acompanha o fim da Segunda Guerra Mundial e a
reconstrução da Europa. Assiste à Guerra-Fria, que divide o mundo em dois blocos, o capitalista
(Estados Unidos) e o socialista (União Soviética). Em 1946, testemunha o golpe militar que
destitui Getúlio Vargas do poder.
Nesse contexto, nasce a poesia de João Cabral de Melo Neto, que retoma os modelos clássicos
de composição rejeitados pelos modernistas das gerações anteriores. Sua poesia é calculada
para apreendermos as coisas do mundo, sem sublimação, como observamos no poema a seguir:

É mineral o papel
É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.
(...)
É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza
da palavra escrita.
(Disponível em http://escrevereprolongarotempo.blogspot.com.br/2010/08/e-mineral-o-papel-joao-cabral-de-
melo.html, acesso em 05/01/2014)

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Nesse poema, o eu lírico qualifica o papel e a palavra como minerais e esses são instrumentos
de produção do poeta. Por isso, a subjetividade do poema também é mineral, tornando a
palavra escrita pétrea e fria.
Uma poesia que se estende de 1942 a 1999 e é um desafio à inteligência de um leitor
acostumado a poemas com expressão intimista. O poeta pernambucano busca uma nova poesia:
objetiva, realista, visual e concreta. Da “nova objetividade”, João Cabral pretende aplainar o
máximo possível de resíduos sentimentais e pitorescos e preocupar-se com a descrição das
formas no poema. O poeta deseja libertar seus versos dos contextos culturais, morais, estéticos
e políticos, pois esses afetam diretamente as formas. A rigor, sua poesia é assinalada por uma
intensa reflexão a respeito da condição de ser poeta e a própria poesia. A fixação pela palavra
produz uma tensão constante entre poeta e poesia, pois ele não consegue atingi-la na plenitude.
O poema a seguir traduz o trabalho de João Cabral de Melo Neto com a linguagem na poesia.

Meus olhos têm telescópios


espiando a rua,
espiando minha alma
longe de mim mil metros.
(...)
Há vinte anos não digo a palavra
que sempre espero de mim.
Ficarei indefinidamente contemplando
meu retrato eu morto.
(Disponível em https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero48/joaocabral.html)

No livro Pedra do Sono (1942), o poeta encontra-se numa fase de indefinição estética.
Inspirado em Murilo Mendes, valoriza a imagem e o inconsciente. A pedra representa a
objetividade do poeta e o sono representa o inconsciente.

Noturno
O mar soprava sinos
os sinos secavam as flores
as flores eram cabeças de santos
Minha memória cheia de palavras
meus pensamentos procurando fantasmas
”meus pesadelos atrasados de muitas noites
De madrugada, meus pensamentos soltos
”voaram como telegramas
e nas janelas acesas toda a noite
o retrato da morta
fez esforços desesperados para fugir.
(Disponível em http://www.galeon.com/poetasbrasil/joaocmneto.htm, acesso em 03/01/2014)

Note que a racionalidade, no trato da linguagem, impede que o poeta mergulhe totalmente
no inconsciente, ao contrário dos surrealistas, que através da escrita automática, expressam
seus pensamentos. Enxergamos, em João Cabral, um poeta consciente e lógico. Cabe ressaltar
a presença do cubismo no poema: as imagens construídas se contrapõem em cada verso.
Num primeiro momento, o Surrealismo e o Cubismo permeiam sua obra, mas sua preocupação
é com a forma poética.

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Unidade: A poesia modernista: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto

Na composição poética de João Cabral, a sensação aguda dos objetos delimita o espaço do
homem moderno e as imagens são peças fundamentais, pois oferecem uma maior resistência
às sensações e emoções contidas na memória. Inspirado na poética de Mallarmé, o poema
deve estar limitado à forma para represar tudo que existe de exterior a ele, inclusive a própria
experiência que se tem de haver do poeta. Existem dois traços fundamentais na poesia de
João Cabral: para explorar elementos de crítica social e histórica, utiliza a ironia e o humor que
são extraídos da própria leitura do objeto do poema. Outro ponto refere-se à subjetividade no
poema que está diretamente ligada a representação do objetivo.
Você pode estar confuso a respeito do fazer poético de João Cabral, mas não desista, pois
tudo irá clarear. Pense: ao contrário do sentimento do mundo que permeava todo o fazer poético
de Carlos Drummond João Cabral pretende aparar o máximo possível dos sentimentos, das
experiências pessoais e existenciais. A preocupação de João Cabral está relacionada com a
precisão da linguagem, pois deve escolher as palavras exatas que produzam a rigidez da forma
e revelem a imagem no poema.
Observe que João Cabral, a todo o momento, desvia o leitor da reflexão crítica e sentimental
para a imagem e a forma do poema. O poeta procura esconder o lirismo: a expressão da
subjetividade e o sentimento.

(...) Entre a consciência poética o tumulto das experiências (...) entre


o desregramento das sensações e o desejo de um controle por meio
das construções verbais, a relação entre o poeta e a poesia ganha(...)
uma enorme dramaticidade que é intensificada pelo esvaziamento da
própria experiência, a mediada que esta não se submete à vontade da
formalização do poeta.
(In: Cadernos de Literatura Brasileira. João Cabral de Melo Neto. São
Paulo, Instituto Moreira Salles, 1996, p.64)

Segundo João Alexandre Barbosa (1996, p.66), está claro, no segundo livro de João Cabral,
Os três mal-amados, inspirado no texto Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, o poeta
busca um espaço de compromisso com a poesia, construído com lucidez e solidez. Encontramos,
aqui, o elemento fundamental na poesia de João Cabral: a vinculação entre o projeto poético
e o ético. Em A Bailarina, o poeta estabelece com o leitor um roteiro de aprendizagem para a
construção poética. Observe:
A bailarina feita
de borracha e pássaro
dança no pavimento
anterior do sonho.
A três horas de sono,
mais além dos sonhos,
nas secretas câmaras
que a morte revela.
Entre monstros feitos
a tinta de escrever,
a bailarina feita
de borracha e pássaro.
Da diária e lenta
borracha que mastigo.
do inseto ou pássaro
que não sei caçar.
(Disponível em www.seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/download/5093/290, acesso em 03/01/2014)

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Conforme João Alexandre Barbosa, os poemas de João Cabral se estabelecem na precisão
de gestos, de paisagens ou de figuras. No poema, a figura da bailarina representa, através
da dança, o longo processo para se arquitetar um poema. Observamos dois processos: o
textual e o coreográfico que, comparados, revelam-se voltados para as artes e exigem muita
precisão e lucidez a cada passo e a cada verso. Os obstáculos, no poema, são representados,
na terceira estrofe, na figura de “monstros”: “Entre monstros feitos/a tinta de escrever, /a
bailarina feita/de borracha e pássaro”. João Cabral expõe a dura caminhada do poeta
representado pela figura da bailarina.
Segundo Alfredo Bosi (1994, p.470), com os livros O Engenheiro e Psicologia da
composição, o poeta cria uma nova estética: o rigor semântico, pedra de toque de sua
radical modernidade, e firma uma nova dimensão no discurso lírico. O poeta, utilizando
uma linguagem autoconcentrada, fala da terra e do povo de Recife. Não esquecendo que a
imagem do Rio Capibaribe permeia seus poemas.

O Engenheiro
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
Superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(...)
A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.
(Disponível em https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero36/sevilha.html, acesso em 03/01/2014)

Observe que o poema se concentra na nova estética: “A luz, o sol, o ar livre envolvem o
sonho do engenheiro./ O engenheiro sonha coisas claras: /Superfícies, tênis, um copo de água.”
Como vimos, o poeta procura a apreensão profunda nos objetos, nas figuras: “O lápis, o
esquadro, o papel; /o desenho, o projeto, o número://o engenheiro pensa o mundo justo, /mundo
que nenhum véu encobre.” Paisagens: a luz, o sol, o vento, a água, a claridade e as nuvens que
o poeta aplica como substâncias naturais para nortear o seu universo, que Alfredo Bosi (1994,
p.470) classifica como claro e vítreo, com um certo maneirismo, cuja necessidade afirma uma
nova dimensão no discurso lírico.

Pense
Até o momento, gostaria que você refletisse sobre os textos analisados de João Cabral de Melo Neto.
Perceba que cada poema revela uma maneira de lermos a realidade: a maneira do poeta, como ser
social participante, e o da própria linguagem, enquanto definição daquele ser.

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Unidade: A poesia modernista: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto

Para encerrarmos, vamos analisar o poema–título do livro A Educação pela Pedra:

Uma educação pela pedra: por lições;


para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
(Disponível em http://www.revistabula.com/449-os-10-melhores-poemas-de-joao-cabral-de-melo-neto/)

Com uma linguagem seca, João Cabral de Melo apreende o objeto pedra pelo eu lírico, que o
interioriza e reflete. Na segunda estrofe, a pedra não pode aprender, pois ela é o próprio sertão.
Porém, para o poeta, o objeto pedra do poema, mediado pela linguagem, busca apreendê-la e
com ela aprender. A esta nova poética, a ideia de pedra, na última estrofe, remete à secura da
região nordestina.
Ao completarmos a leitura do poema, podemos afirmar que o recurso metalinguístico
empregado torna carregada a maneira de se praticar a arte da poesia entre o dizer e o fazer.
Através de mecanismos secretos de linguagem, João Cabral de Melo Neto não possibilita ao
leitor uma fácil leitura poética, por ser hermética e, a cada obra o poeta, empenha-se mais no
seu projeto de apreensão do objeto. (BARBOSA, 1996, p.85-86).
É com essa engenharia e racionalidade que João Cabral realiza uma das mais importantes
obras da literatura brasileira, que recusa o sentimentalismo lírico e, através de uma estilística
elaborada, marcada por uma rigidez verbal. A imagem da pedra representa para João Cabral
de Melo Neto a secura e aspereza do Nordeste e uma observação seca da vida.

Conclusão
Nessa unidade, conhecemos os modernistas Oswald de Andrade e Mario de Andrade. Os
dois poetas apresentaram, para o grupo modernista, as vanguardas europeias. Conhecemos
o Futurismo, o Dadaísmo, o Surrealismo, o Expressionismo e o Cubismo. Descobrimos que
a assimilação da cultura europeia orientou nossos poetas a produzir uma poesia com raízes
nacionais. Os modernistas valorizavam a cultura e os costumes do Brasil e apresentaram a
verdadeira face miscigenada do país, unida à natureza selvagem. Nossos poetas romperam com
as idealizações de períodos anteriores. Soma-se a isso o progresso, o capitalismo, as tecnologias,

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implantação de fábricas, automóveis, que tornam o homem um ser materialista. A poesia
de Mário de Andrade e Oswald de Andrade mostram essa nova visão de Brasil. Os poetas
apaixonados por São Paulo não se cansam de descrevê-la e revelar esse espaço que cresce de
maneira desordenada. Conhecemos o poeta Carlos Drummond de Andrade, que revela um
sentimento de rancor e tristeza ao observar o Brasil frente à Ditadura e o mundo diante da
Segunda Guerra Mundial. O poeta não descreve a cidade, o eu lírico revela a insatisfação do
poeta em viver num mundo degradado, onde coisas e seres estão em estado de corrosão.
Saindo da poesia ainda subjetiva de Carlos Drummond de Andrade, apreciamos a poesia
de João Cabral de Melo, caracterizada pela visualidade, concretude e objetividade. Para
o poeta, a sublimação deve ser abolida do poema. O engenheiro da poesia preocupa-se
com a precisão das palavras, e os objetos, figuras e imagens são temas do poema. Através
da observação e reflexão, o poeta apreende com o objeto e, para isso, a poesia deve ser
objetiva, direta, lúcida e sólida. Encontramos em João Cabral de Melo Neto uma poesia
antilírica, hermética e metalinguística, que requer do leitor uma escavação para decifrar a
mensagem do objeto por ele representado.

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