Você está na página 1de 133

ISSN 1809-1814

IUPERJ
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro

Cadernos de Sociologia
e Política
8

Fórum dos Alunos do IUPERJ


IUPERJ
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro

Cadernos de Sociologia
e Política
8

Novembro de 2005
ISSN 1809-1814

CADERNOS DE
SOCIOLOGIA E POLÍTICA

Fórum dos Alunos do IUPERJ

Editora de texto: Márcia Rinaldi de Mattos


Mônica Farias

Editoração eletrônica: Claudia Boccia

Projeto gráfico: Dataforma

IUPERJ
Rua da Matriz, 82 - Botafogo
CEP 22.260-100 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: (21) 2537-8020
Fax: (21) 2286-7146
E-mail: iuperj@iuperj.br

Os conceitos emitidos são de absoluta e exclusiva


responsabilidade de seus autores.
Sumário

APRESENTAÇÃO
5

CASSIO CUNHA SOARES


Uma Pequeno-Burguesia Folk? Ou do Papel da
Cultura Popular no Imaginário Urbano Juvenil de
Classe Média Carioca
7

FLAVIO GAITÁN
Gramsci y las Lecciones de la Historia.
Reflexiones sobre el Volumen 5 de los
Cuadernos de la Cárcel
27

FREDERICO CARLOS DE SÁ COSTA


Oliveira Vianna e o Problema Institucional
Brasileiro
37

HENRI CARRIÈRES
Uma Apresentação Concisa da História
Conceitual
55

MARCIAL A. GARCIA SUAREZ


A Crueldade, a Técnica Moderna e as Faces do
Terrorismo
71
MAURÍCIO SANTORO
Crise na Aliança Atlântica: EUA e Europa diante
das Novas Ameaças à Segurança Internacional
91

PAULO HENRIQUE SETTE FERREIRA PIRES GRANAFEI


Max Weber e Karl Mannheim: Duas Perspecti-
vas Sociológicas do Problema do Conhecimento
105

TATIANA GOMES ROTONDARO


Reflexões acerca do Conceito de Dominação da
Nautreza na Escola de Frankfurt
127
Apresentação

O oitavo volume da revista Cadernos de Sociologia e Política do


Fórum dos Alunos do IUPERJ prossegue no avanço de mais um
número. Todos os artigos publicados foram recomendados por
pareceristas de instituições de ensino superior do país. Neste volume,
trazemos ainda a novidade da indexação, o que consolida uma nova
fase da revista.

O objetivo é trazer para os leitores discussões teóricas, resenhas e


análises empíricas em Sociologia, Ciência Política e outras áreas
conexas, mantendo sempre a diversidade da produção intelectual.

Agradecemos aos alunos que contribuíram com artigos, ao Bruno


Carvalho pela participação no início dos nossos trabalhos, aos
pareceristas, à Diretoria de Divulgação Científica do IUPERJ e à equipe
de publicações.

Comissão Editorial
Cristina Buarque de Hollanda
Luzia Costa
Tatiana Bukowitz

Fórum dos Alunos do IUPERJ 5


Uma Pequeno-Burguesia Folk?
Ou do Papel da Cultura Popular no
Imaginário Urbano Juvenil
de Classe Média Carioca

CASSIO CUNHA SOARES*

Resumo

O presente trabalho pretende realizar uma modesta reflexão sociológica


a partir do impulso de uma inferência empírica, mediado por
constructos teóricos elaborados por Pierre Bourdieu. O fenômeno
urbano de apropriação cultural de elementos constitutivos do universo
da assim chamada cultura popular, por parte de um determinado
segmento juvenil da classe média carioca, é o recorte de objeto desta
pequena investigação. Busca-se explicar a formação desse circuito
cultural juvenil alternativo como um processo de constituição de um
campo produtor de sentido e identidade, desdobrado em uma certa
estilização de modos de vida.

Palavras-chave: ressignificação cultural; juventude urbana; Pierre


Bourdieu

* Bacharel em antropologia, aluno do mestrado em sociologia do IUPERJ e bolsista


do CNPq. E-mail: cassiosoares@iuperj.br.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 7


“Ser é ser percebido”.
Georg Berkeley

I. Preâmbulo

A sociologia exercitada por Pierre Bourdieu, quer a consideremos


esporte de combate ou não, a negativa a contragosto do autor, além de
oferecer instrumentos teóricos suficientemente fundamentados para
compreender a organização do mundo social, vai além: estimula a
tomar contato com a realidade concreta para fazê-lo. Desde Marx, a
filosofia da práxis parecia não ter encontrado tão sólido baluarte em
um pensador de prestígio acadêmico.

Motivado e mobilizado pela herança sociológica de Bourdieu, crítico


mordaz dos “audazes sem rigor” e dos “rigorosos sem imaginação” –
ensaístas e empiristas autocentrados –, deixei-me guiar pelo desafio
de unir teoria e prática neste trabalho, sem pretensão alguma de atingir
qualquer ponto ideal desse provável continuum, desafiando os conselhos
aristotélicos, mas preservando com isso as boas regras da modéstia.

Este artigo, portanto, procura realizar uma breve reflexão sociológica


a partir do impulso de uma inferência empírica, balizando-se em uma
perspectiva bourdieusiana. O fenômeno urbano de apropriação cultural
de elementos constitutivos do universo da assim chamada cultura
popular, por parte de um determinado segmento juvenil da classe média
carioca, é o recorte do objeto desta pequena investigação. Munida dos
referenciais conceituais próprios a Bourdieu, a pesquisa perscrutou
duas veredas, fazendo uma opção metodológica qualitativa: partiu de
uma fase de incursões ao meio de encontro e reunião desses jovens,
com visitas participantes aos eventos e festividades por eles organizados;
e culminou com a realização de entrevistas entre alguns membros
selecionados posteriormente, através de contatos firmados de início.

O conjunto de entrevistas foi realizado entre quatro pessoas, cada qual


basicamente ligada a uma ou mais entidades1 de estudos e/ou divulgação
de cultura popular, mas pertencentes em última instância ao que tomei

8 Cadernos de Sociologia e Política


como campo ou circuito juvenil cultural alternativo – o universo de
indivíduos e associações majoritariamente juvenis urbanas que
interagem de algum modo com narrativas, artes performáticas2 e
artefatos populares, folclóricos ou regionais. As entrevistas foram
abertas e semi-estruturadas, e tiveram como meta central captar, através
da análise e reconstrução da trajetória de vida dos pesquisados, os
pontos de apoio e as características desse universo, considerando-os
como matérias primas centrais para a identificação do habitus e da
illusio próprios desse campo.

II. Sobre o Método e o Objeto

Este trabalho não cultiva nenhuma ilusão generalizante em relação ao


fenômeno focado. Pelo contrário, busca sobretudo recolher pistas para
possíveis incursões futuras, sendo mais um exercício interpretativo e
experimental, objetivando investigar um fenômeno social com o auxílio
de “instrumentos conceituais bourdieusianos”, se assim se pode dizer.
A reflexão, não obstante, intenta atingir algum grau de profundidade
dentro do limite de suas fronteiras.

Tentei acessar o campo da cultura juvenil popular alternativa


inicialmente movido por uma curiosidade de transitar pelos espaços
culturais do Rio de Janeiro, dada minha condição de recém-chegado à
cidade no ano de 2004. A princípio, fi-lo apenas como um curioso
qualquer. Meu primeiro contato se deu na condição de observador
“desinteressado” da “Festa da Lua” de abril, organizada tradicional-
mente em Santa Teresa pelo grupo “Céu na Terra”, e a encaro como o
começo dessa história. Logo após algumas semanas, freqüentei duas
festas particulares de pessoas que participavam diretamente desse
campo, e também uma apresentação pública de Tambor de Crioula
realizada em uma praça na região do Leme por um coletivo de amigos
que transitam entre os grupos. Sobre esse campo, vale ressaltar, é natural
a circulação de indivíduos entre os diferentes grupos, não rara a
participação em outros simultaneamente. Nessas últimas
oportunidades, enfim, já havia direcionado o “olhar” de pesquisador.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 9


Assim pude estabelecer os primeiros contatos com os participantes,
bem como perceber um pouco das particularidades “litúrgicas” do
campo, o modo como apropriavam e res-significavam as cantigas, danças
e instrumentos musicais populares, além da forma de utilização de
adereços e indumentárias correlatos. Pude observar como o corpo possui
um papel fundamental nessas “brincadeiras” (como gostam de se referir
aos jogos e apresentações), não só como depositário dos adornos e
enfeites populares, mas porque é basicamente através da performance
corporal que se exerce a prática das danças e particularmente da
percussão. O treino em uma “ginga” característica e as habilidades em
instrumentos musicais me parecem elementos basilares para o ingresso
nesse campo.

Os trajes, de modo geral, são vestimentas de uso tradicional dos setores


populares e regionais: camisões, sandálias de couro, saias compridas e
coloridas, brincos com imagens sagradas e colares rústicos, coexistindo
com sofisticados relógios de pulso, correntes, tatuagens e piercings.
Há uma combinação natural de adereços tidos como populares com
outros mais típicos da juventude underground urbana. Em suma, visual
que comumente é considerado alternativo.

Os participantes deste universo eram, em sua grande maioria,


constituídos por jovens brancos provavelmente entre seus 20 e 30 anos,
universitários, oriundos das classes média e alta, moradores da zona
sul do Rio de Janeiro, onde as mulheres parecem predominantes. Tal
inferência baseia-se exclusivamente na observação realizada em campo
e na opinião emitida por algumas das pessoas entrevistadas.

Foram realizadas quatro entrevistas3, e por feliz coincidência em pelo


menos três dos casos, ocorridas nas dependências das residências das
entrevistadas. Nessas condições me foi possível também somar à
investigação a observação do habitat doméstico, cujo poder de inferência
é muito relevante na opinião de Bourdieu. Todas as entrevistas me
foram concedidas por mulheres, entre seus 26 e 27 anos. Três eram
brancas e uma negra. Eram de um modo geral lideranças ou pessoas
de referência entre seus grupos. Todas de classe média, as entrevistadas
tinham origem em famílias com pais de nível superior e possuíam

10 Cadernos de Sociologia e Política


graduação universitária (duas inclusive cursando mestrado em ciências
sociais). Residem sozinhas ou com seus maridos/companheiros/
namorados em bairros nobres da cidade.

Em suas residências notei que boa parte da decoração interior foi


organizada a partir de objetos que mantinham alguma ligação com o
universo da cultura popular, como quadros, painéis, estatuetas, imagens
de santos e divindades populares, não raramente junto a entidades
hindus ou referência míticas de outras culturas, e principalmente, claro,
instrumentos musicais rústicos de percussão. Pude observar também a
existência de muitos discos de canções populares/regionais.

Através da conversa travada com minhas entrevistadas, tentei obter


mais informações sobre esse universo e acessar um pouco o tipo de
percepção que tinham do campo do qual faziam parte, para então
buscar uma compreensão da lógica de apropriação desses elementos
populares de certo modo “estranhos” ao seu meio social tradicional.
Os argumentos presentes em seus discursos eram de um modo geral
marcados por um forte veio intelectualizado, demonstrativo de um
elevado grau de instrução escolar, até mesmo pelo teor das críticas
feitas ao meio acadêmico (que só poderiam ser feitas pelos próprios
acadêmicos), revelador de um capital cultural próprio às camadas
médias universitárias urbanas. São de algum modo intelectuais, apesar
de se colocarem acima de tudo enquanto artistas.

Ora, para Bourdieu, os artistas e intelectuais são considerados, em


última instância, a fração dominada da classe dominante, pois
participam, ainda que econômica, social e politicamente de forma
subordinada, do modo de socialização e logo, por decorrência, do
modo de constituição dos instrumentos de apropriação simbólica do
mundo típico desta classe4. Esta é a raiz de sua condição estruturalmente
ambígua. Bourdieu constata que:

“A disposição estética se constitui numa experiência do mundo


liberada da urgência e na prática de atividades que tenham nelas
mesmas sua finalidade, como os exercícios de escola ou de
contemplação das obras de arte. Dito de outro modo, ela supõe a
distância com o mundo [...] que está no princípio da experiência
burguesa do mundo” (1983:87).

Fórum dos Alunos do IUPERJ 11


Claro que Bourdieu considera o fato de que os agentes do campo
intelectual, ainda que dependam de uma condição de percepção do
mundo e de afastamento das pressões ordinárias de sobrevivência – o
que justamente permite a canalização de energias para as esferas da
abstração conceitual ou estética, possuem sua própria margem de ação
dentro das regras de seu campo. E o próprio intelectual pode ter clareza
disto, e é muitas vezes sob esta clareza que pode justificar sua
independência. No entanto, o intelectual e o artista são, por assim
dizer, demandados para as funções de produção e reprodução simbólica
da ordem dominante, e operam nesse âmbito consciente ou
inconscientemente. O mais importante dessa observação está no fato
de que a estilização da vida, do modo como a conhecemos hoje, exige
certas condições que são possibilitadas pelas condições de posição de
classe. E é assim que devem ser entendidas, em uma leitura
bourdieusiana, a apropriação e a utilização de elementos de distinção
por estes agentes.

III. Grupos Sociais, Distinção e Estilos de Vida em Bourdieu

“As diferenças nas atitudes, tal como as diferenças de


posição (às quais elas se acham freqüentemente
associadas) estão na origem de diferenças de percepção
e de apreciação e, por isso, de divisões bem reais”
Pierre Bourdieu (1989:98)

A sociedade brasileira moderna, urbana e capitalista, é cenário de


configurações e articulações dos mais variados círculos de sociabilidade,
estruturados desde a base da ação mobilizadora tradicional do poder
da simbolização da territorialidade e da consangüinidade, como nos
esquemas de um Tönnies, até os fluidos e “horizontais” vínculos de
afinidades típicos dos padrões de sociabilidade metropolitanos,
traduzidos de modo mais clássico na versão de tribo urbana mafesoliana.
Os vínculos de afinidade mobilizados por convergências de ordem
estética são os que interessam para o tipo de reflexão que aqui proponho.

Para Bourdieu, os grupos sociais organizam-se em torno de interesses


e afinidades estruturadas simbólica e socialmente segundo a posição

12 Cadernos de Sociologia e Política


que ocupam em determinado lugar do espaço social. Tais “lugares
sociais”, quando configurados como espaços capazes de se manter pelas
dinâmicas de suas regras e normas próprias, autonomizadas, produtores
de determinados habitus, são denominados campos: estruturas
estruturadas e estruturantes. Sendo tautológicos os campos, têm a si
próprio e sua reprodução como fins últimos. Daí pode-se pensar o
campo econômico, político, artístico, burocrático, religioso etc., como
igualmente os “sub-campos” possíveis no interior destes ou em
interseção com outros demais. Os campos não são, nem poderiam ser,
espaços herméticos. E apesar de serem universos sociais que adquiriram
historicamente autonomia enquanto tais, são por outro lado, enquanto
realidade concreta, também atitude metodológica do pesquisador:

“Lembrar que o campo [...] como um sistema autônomo ou


pretendente à autonomia é o produto de um processo histórico de
autonomização e de diferenciação interna é legitimar a
autonomização metodológica, autorizando a pesquisa da lógica
específica das relações que se instauram no interior desse sistema e
o constituem enquanto tal” (1968:113).

O conceito bourdieusiano de campo está intrinsecamente ligado à idéia


que elabora de habitus. Em outras palavras, em uma antinomia heurística
cara às ciências sociais, o campo está para a estrutura assim como o
habitus está para a agência. Tal noção, apropriada e remodelada por
Bourdieu, foi originalmente usada por Erwin Panofsky, ao analisar as
relações existentes entre as práticas e percepções de arquitetos góticos
e monges escolásticos a partir do estudo da estrutura das catedrais
medievais (Bourdieu, 1992:339). O habitus deve ser entendido como
um conjunto de disposições que orientam a percepção e a prática do
agente no mundo social. Está de certa forma inscrito até na hexis
corporal, sendo o próprio corpo socializado, estruturado e condicionado
a sentir e agir na realidade social segundo essas condições. Cada campo
engendra determinado(s) tipo(s) de habitus, que é(são) internalizado(s)
pelos indivíduos em processos de apropriação e enculturação de saberes
e práticas. Operam nos agentes como uma segunda natureza, sendo,
aliás, uma força social naturalizada. Nele está muitas vezes o
“impensado que nos pensa”, o que não significa que seja refratário à
reflexão5.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 13


O habitus, entretanto, é mobilizado e muitas vezes até mesmo posto
em ação pelo poder de uma crença na validade das normas sociais
mais fundamentais que dirigem determinado campo, de uma noção
axiomática, e por decorrência, não objeto de dúvidas. É necessário um
sentido para o jogo social6, e o jogo deve fazer sentido para poder ser
jogado. O cimento que garante esta adesão às regras do jogo social, a
manutenção da ordem gnosiológica e a garantia do sentido mais imediato
do mundo é o que Bourdieu denomina illusio:

“Se você tiver um espírito estruturado de acordo com as estruturas


do mundo no qual você está jogando, tudo lhe parecerá evidente e
a própria questão de saber se o jogo vale a pena não é nem colocada.
Dito de outro modo, os jogos sociais são jogos que se fazem esquecer
como jogos e a illusio é essa relação encantada com um jogo que é
o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as
estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social”
(1996:139-140).

Através do conceito de illusio, incorpora as idéias de investimento e


libido, enquanto móbiles da ação, colocando em outros termos a
preponderância do velho interesse utilitarista. Ela, pois, é tanto condição
de funcionamento quanto produto do campo.

Os agentes reunidos enquanto grupos de afinidade e sociabilidade, em


seus respectivos campos, agem segundo a posição que ocupam neste
mesmo campo, muitas vezes através da luta e de alianças para aquisição
de posições de honra, prestígio, poder ou aumento de seu capital
econômico. É na relação propensa do habitus sintonizado às
predisposições do campo que o agente pode ser levado a ser
recompensado com méritos e alcançar melhores posições (idem:153).

Todo habitus apresenta uma gama própria possível de valores e estilos


a serem adotados pelos agentes. O que se entende por estilo de vida,
assim, é o conjunto das opções éticas e estéticas, do gosto ao julgamento
do gosto, elemento sobre o qual se alicerça toda forma de distinção
social, dado que é materializado pelas escolhas esportivas, alimentares,
indumentárias, sexuais, corporais, intelectuais etc.

O corte de classe não é de modo algum abandonado, apesar da visão


crítica e neokantiana que Bourdieu (1992) tem sobre as classes sociais.
Classes são para ele categorias lógicas, mais que reais, apesar de nada

14 Cadernos de Sociologia e Política


impedir que as localizemos no espaço social e que elas possam vir a
ter mesmo existência concreta, ainda que também por algum tipo de
eficácia simbólica – como através do trabalho de intelectuais engajados
ou de uma vanguarda revolucionária. O mais fundamental é focar na
posição ocupada pelos agentes no espaço social. A posição que
determinado agente ocupa em seu campo se articula também de algum
modo com a posição que ocupa no campo da produção da vida material,
no campo da produção econômica, atuando solidária ou
antagonicamente na condição de sua posição nos campos em que integra.

IV. Do Sentido da Apropriação Cultural e seus Desdobramentos

“E agora que a gente tem a elite fazendo cultura popular?”7

Todas as entrevistadas tinham lucidez de que lidavam, de uma forma


ou de outra, com aquilo que de um modo geral é conhecido como
cultura popular. No entanto, quando questionadas sobre o que
consideravam ser cultura popular, mantinham uma grande reserva em
lançar qualquer definição. Considero basicamente dois fatos. Primeiro
o receio de fazê-lo na presença de um pesquisador sociólogo, portador
de credenciais acadêmicas que por si só atribuem status de agente
“versado sobre o assunto”. Segundo, o fato de três delas participarem
do universo acadêmico das ciências sociais e terem noção das dimensões
da crise dos conceitos de cultura popular e folclore. As antinomias
cultura popular versus cultura erudita, ou cultura popular versus cultura
de massa, foram enfaticamente rejeitadas.

De todo modo, consegui extrair de todas uma concepção particular de


cultura popular, as quais associavam ao suporte social da tradição e
dos saberes tradicionais. Em uma postura relativista, também típica
do nosso campo acadêmico, tal concepção era incrementada pela defesa
e compreensão da alteridade, da cultura do outro.

Mas a grande questão que intrigava era: por que jovens brancos
universitários de classe média queriam se aproximar desses saberes
tradicionais? Por que tocar tambores raros e artefatos até certo ponto
rústicos e exóticos, e não instrumentos elétricos e eletrônicos? Por

Fórum dos Alunos do IUPERJ 15


que organizar eventos onde se exaltam cantigas regionais ou populares,
muitas de coloração infantis e/ou religiosas, e não festas juvenis urbanas
regadas às típicas canções pop, rock ou techno8? E se isso está ocorrendo,
o que há propriamente de moderno nisso?

Em uma grande cidade é regra que grupos de sociabilidade se organizem


em torno de afinidades compartilhadas. Tais grupos, apesar de surgirem
de modo quase aleatório, são aproximados por dadas condições sociais
e materiais que refletem em certa medida a posição que ocupam no
espaço social. Neste caso, o círculo juvenil universitário é a base da
teia que montei. A diferenciação estética necessita de certas condições
de apropriação simbólica que, como foi visto, é desdobramento de um
tipo específico de socialização e de constituição de um padrão de
sensibilidade correspondente. O extremo grau de diferenciação
possibilitado pela metrópole, por outro lado, que reúne territorialmente
grupos procedentes dos mais diversos meios, permite o contato com
elementos a partir do qual tais disposições estéticas podem conformar
pólos de convergências sociais.

A apropriação da cultura popular, nesse sentido, caminha na direção


da produção de sentido e de padrões distintivos próprios ao estilo de
vida desses jovens. Vejamos o que dizem nossas entrevistadas:

“[...] o que a gente faz é buscar a cultura do outro, que tem uma
outra forma de vida, que não é a que a gente está inserida, nesse
meio que a gente vive. A gente não está vivendo aquilo, mas aos
nossos olhos nos agrada, nos fascina, e a gente quer conhecer, quer
vivenciar, acha bom, acha gostoso. É assim esta questão, mas enfim,
interior mesmo. Então, acho que tem essa busca do diferente, não
que isso seja popular ou não [...]” (A).

“[...] a gente nunca quis fazer o Maracatu como o de lá (Recife),


nunca quis reproduzir a coisa de lá. Isso é uma coisa legal, porque
não foi de uma forma consciente, ninguém decidiu assim
teoricamente antes de qualquer coisa: - ‘Nós não podemos, porque
não é correto!’. Não é isso. É uma coisa que o grupo sempre fez [...]
até porque a gente sempre quis misturar com o funk, quer misturar
com isso, quer misturar com aquilo [...] a gente não carrega esta
tradição, não nos pertence. A gente é só um canal para isso [...]”
(D).

16 Cadernos de Sociologia e Política


“[...] a cultura popular tem essa força de se diferenciar, de não ser
mais um [...] e eu estou vivendo muito isso, de querer ter o meu
grupo no Rio de Janeiro e não copiar o que tem no Maranhão. Não
quero fazer uma cópia, nem um pouco [...]” (B).

“[...] a possibilidade de ver alguma coisa diferente do que eu estava


acostumada a ver: acho que isso me despertou [...]” (C).

A várzea principal por onde corre este rio é a da busca. Buscar substratos
concretos e simbólicos que pudessem dar vazão à constituição de
padrões de sociabilidade distintivos concreta e simbolicamente.

Nessa mesma direção, essa era também uma busca por produção de
sentido. Em uma sociedade urbana, moderna e secularizada, as grandes
instituições tradicionalmente produtoras de sentido (as religiões) foram
de algum modo esvaziadas, atingidas pela crítica racional sobre as
dimensões do espaço moral que ocupava na vida das pessoas. O que
não significou que os modernos abandonaram qualquer idéia geral
sobre a espiritualidade, pelo contrário, apontaram-na para outros
caminhos, mobilizada prioritariamente para satisfação das
idiossincrasias individuais 9. Assim em certos setores sociais a
construção de sentido passa pela busca dessa satisfação, e para tanto se
assume a possibilidade de remodelagens a partir de enxertos oriundos
de várias crenças e filosofias de vida. A cultura popular, através de sua
dimensão espiritual ligada aos cultos afro-brasileiros e ao catolicismo
popular, oferece assim também matéria-prima para a edificação de
uma visão de mundo, e principalmente está conectada às aspirações
distintivas desses agentes. Este aporte de sentido que esses jovens
encontram na cultura popular, muitas vezes aprofundado pela utilização
de elementos religiosos para algum tipo de upgrade espiritual, constitui-
se em um dos elementos primários para a constituição da illusio nesse
campo.

Esses agentes descobrem na cultura popular também valores que


assimilam e re-significam aos seus, nesse complexo processo de
bricolagem, conformando um habitus que tenta articular
comportamento individualista com concepção holista do mundo.
Relatou-me a entrevistada B: “[...] a cultura popular me ensina, no
meu cotidiano, a olhar no olho, a ter mais paciência, a ver que a

Fórum dos Alunos do IUPERJ 17


natureza muda. Isso mexe com o meu trabalho e com a minha vida
[...] eu lembro do Maranhão para não deixar o Rio de Janeiro me
sufocar, a cidade grande sufocar [...]”.

É muito curioso observar que todas as entrevistadas possuíam relativa


clareza do papel que essa cultura estava jogando dentro de seu universo
pessoal, e, por mais que a tivessem como fonte inspiradora, radial e
matriz, esperavam criar algo próprio a partir de seus elementos passíveis
de assimilação. Logo, algo que lhes fosse legítimo para sua “condição
ilegítima”. A legitimidade é uma questão cara a esse campo. O
sentimento de que há algo fora do lugar às vezes assombra algumas das
entrevistadas. Há verdadeiramente um conflito interno, mais
precisamente entre as duas pessoas que mantêm um dos dois pés mais
firmes nas ciências sociais, quanto à natureza desse mergulho na cultura
popular, na assimetria passível da troca que se estabelece entre dois
mundos distintos. Mas sua illusio fornece os pontos de apoio para a
estabilidade e manutenção dos agentes nesse campo. Para tanto, lançam
mão do argumento do canal, da necessidade de se estabelecer uma
ponte entre as duas culturas como atitude fundamental dos agentes:

“[...] eu estou nesse conflito [...] mas acredito que pode-se fazer
uma ponte entre estes dois universos através das relações pessoais
[...] ter uma relação mesmo de intimidade, de troca, em que você
pode ajudar ele [o artista popular] e ele pode te ajudar, até de
maneiras diferentes. Principalmente de maneiras diferentes [...]”
(C).

“[...] através do Maracatu que a gente faz aqui, que não é o Maracatu
de Recife, que é branqueado sim — porque são as pessoas brancas
que o fazem, e daí? [...] mas esse Maracatu do jeito que é ele está
construindo uma ponte. Ele está fazendo que essas pessoas brancas
vão para lá, e sentem no mesmo bar, e tomem cerveja com o carinha
da comunidade, troquem idéias e se gostem, e se falem o ano inteiro
[...]” (D).

Para tanto, valem-se de uma concepção antropológica de cultura


enquanto estrutura dinâmica, fluxo mutável e vivo. Dessa forma, não
há problemas entre os intercâmbios que se processam entre as culturas,
ainda porque ambas participam de uma dimensão maior, que é a de
integrantes da sociedade nacional. Esta ponte, ainda, é o que pode
permitir aos portadores dos saberes tradicionais acessarem as outras

18 Cadernos de Sociologia e Política


formas de saberes, urbanos e modernos, que lhe são socialmente negados
por uma estrutura socioeconômica excludente.

A questão maior seria a de compreender as condições de edificação


dessa ponte, dessa permuta cultural que naturalmente tende a se
estabelecer. A própria condição de agentes socioeconomicamente
excluídos, privados do mínimo aporte de capital econômico e, por sua
vez, de capital cultural, inviabiliza que esta troca se dê de maneira
minimamente simétrica, satisfazendo potencialmente apenas uma das
partes. Diria Bourdieu: que meios culturais e econômicos podem os
agentes populares mobilizar para realizar os elementos dessa troca?

O ponto da assimetria de condições é, além de ambíguo, delicado,


mas também reconhecido, e é mais um peso no dilema interno destes
agentes: “[...] infelizmente não mexe com a estrutura, não mexe [...]
quem vai ser mais contratado agora, os grupos que re-significam ou os
grupos tradicionais? Isto é complicado. Mas a gente não pode fazer
esta leitura tão [...] quase que sei lá [...] marxista ortodoxa da parada!”
(D).

V. A Espetacularização do Popular e a Indústria do Entreteni-


mento

Se de um modo esses agentes encontram na cultura elementos para a


sua organização na qualidade de um universo identitário de artistas
performáticos, assumindo um habitus baseado em uma hexis corporal
característica, ressemantizando expressões próprias do vocabulário das
populações tradicionais e regionais, utilizando-se de um código interno
de valores que se mesclam com uma visão de mundo e uma sensibilidade
espiritual afastados no tempo e no espaço, mobilizados por uma illusio
que garante o sentido da ação dentro e fora do campo, de outro precisam
garantir as condições materiais e simbólicas de sua reprodução enquanto
próprio campo. E ainda que em sua maioria esses artistas não
sobrevivam unicamente dessa atividade cultural, e se a tomaram
inicialmente como tal foi por motivações outras que não utilitárias, a
profissionalização parece caminho natural dos grupos:

Fórum dos Alunos do IUPERJ 19


“[...] os grupos surgiram não para virar mercado de trabalho, meio
de vida, para vender. Não, eles surgiram por uma necessidade de
tocar junto, de estar junto, era um momento de reunir. Isso é muito
legal: surgiram porque queriam estar juntos. Aí a conseqüência,
claro, as pessoas tem que ganhar dinheiro, vão e começam a tornar
aquilo profissional. E eu vejo que agora está na moda [...]” (B).

Como produtores de bens simbólicos, hoje os grupos comercializam


espetáculos na cidade. Realizam em geral oficinas de dança, música e
teatro. Um deles até mesmo chegou a participar de uma gravação de
novela da Rede Globo. Para Carvalho (2004), as sociedades urbanas
demandam entretenimento como um dos seus modos típicos de consumo
cultural. E a espetacularização das artes populares, sua formatação em
eventos de consumo cultural, com a compressão do tempo para atender
o ritmo e a dinâmica da intercalação de apresentações variadas, culmina
fatalmente em necessário empobrecimento e mutilação.

A indústria do entretenimento nas sociedades modernas alimenta-se


da possibilidade de construção e reconstrução de produtos e produções
fugazes que são convertidos em espetáculos para um mercado de bens
culturais cuja dinâmica demanda a constante apresentação de novidades.
É dentro desse estado de coisas que devemos entender a inserção da
arte popular re-significada, como elemento igualmente partícipe da
estrutura do mercado cultural. O bom êxito de artistas e literatos,
geralmente, está então associado às suas capacidades em responder
aos apelos demandados pelos setores da sociedade consumidores de
bens culturais ao seu campo.

De outro lado, a força de atração que a indústria do entretenimento


exerce aos demais campos e agentes é tão significativa que hoje mais
do que nunca o próprio poder público entra substancialmente nesse
jogo, seja através de seus departamentos de publicidade e turismo,
contratando diretamente produtores e organizadores de festas/
espetáculos populares e tradicionais, seja através de legislação e
incentivos fiscais que tornem atrativos a execução dos mesmos pela
iniciativa privada.

20 Cadernos de Sociologia e Política


O caso maranhense é paradigmático do que anda ocorrendo pelo país:
a transformação de artes e tradições populares em objeto de política
cultural dos governos, na perspectiva de geração de lucros para a
iniciativa privada e atração de recursos para investimentos públicos.
No estado do Maranhão foi criado há pouco tempo, ainda no governo
de Roseana Sarney, o circuito de São João, com uma rede de espetáculos
e atividades culturais típicas da região tendo em vista o seu potencial
turístico10. Este fenômeno envolvendo o poder público, objeto de
inúmeros trabalhos densos e pesquisas originais nestes últimos anos,
ficou diagnosticado na literatura especializada por um termo que traduz
bem o sentido mais geral desse processo: a city marketing 11.

VI. À Guisa de Conclusão

A análise da trajetória de vida das quatro entrevistadas reúne algumas


peças instigadoras para a montagem desse quebra-cabeça. Nos casos
estudados, pode-se compreender como foi fundamental o contato que
tiveram na academia com elementos do universo da chamada cultura
popular para incorporarem-se nesse campo. Em todos os casos a família
não teve qualquer participação direta nesse processo, mesmo no caso
de B, cujo pai antropólogo morou um período em São Luís/MA, onde
inclusive ela veio a nascer, e nesse período chegou a estar envolvido
por lá em um estudo sobre a cultura negra. Mas a própria entrevistada
revela que, ainda tendo algum tipo de contato com esse universo pela
influência paterna, saiu da cidade sem se importar muito com o assunto,
e foi justamente ao vir morar no Rio (os pais eram cariocas) que a
cultura maranhense ganhou um significado especial:

“[...] eu saí do Maranhão porque não agüentava a cultura popular


do Maranhão. Eu precisei vir para o Rio para conhecer outras coisas,
sair e esquecer aquela coisa do Maranhão, para depois de um tempo
retornar a essa força e essa magia que é a cultura popular do
Maranhão [...]” (B).

Pelos depoimentos pude perceber que há verdadeiramente um grande


número de pessoas nas universidades do Rio que transitam de alguma
forma por esse circuito, que envolve, incorpora e absorve de maneira
diferenciada muitos desses jovens estudantes que ingressam na academia.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 21


Esse campo juvenil cultural alternativo participa como um dos braços
fortes do circuito cultural universitário carioca. E mais: o que se produz
com o nome de cultura popular nesse sentido é na verdade um tipo de
cultura universitária alternativa, e alternativa não por carregar alguma
aura de contracultura, pelo contrário, desta reserva apenas seus apelos
estéticos. O que se busca é a legitimidade da originalidade de se estar
criando algo novo, ressemantizado, a partir das tradições populares e
regionais, em um campo de produção cultural e artístico onde toda
montagem, re-ordenamento e apropriação são legítimos para o projeto
criador desses agentes.

Em uma ótica bourdieusiana, esse processo só pode ser possível se


entendido como um movimento desencadeado e possibilitado pela
posição ocupada por esses agentes no campo de um espaço social
determinado, desaguando portanto em um modo típico desse esforço
de constituir sentido e de se distinguir.

As apropriações realizadas por esses agentes nessa “troca” que operam


e estabelecem com os setores populares, suas “fontes” de inspiração e
matéria-prima, são sim desiguais, e não poderia ser diferente, pelo
menos nos marcos estruturais que são dados. Não chega a ser exatamente
um jogo de soma zero, pois há elementos em uma relação entre dois
universos culturais distintos que efetivamente irão circular. O trágico,
se assim se pode falar, é que as condições de realização potencial
desses elementos nesses universos não são as mesmas para ambos, e o
pior, para um dos lados é perversamente desigual.

A utilização comercial dos saberes tradicionais pode vir a ser um


problema quando produz um esvaziamento de significado, mais
precisamente em seu processo de adaptação às condições de
apresentabilidade próprias das dinâmicas dos espetáculos, enquanto
produtos de consumo cultural. No entanto, considerando que essas
manifestações culturais re-significadas já não são mais cultura popular,
e nem no discurso de sua produção existe qualquer pretensão de sê-la,
todo o sentido é recriado. E como tal pode legitimamente servir
duplamente a necessidade de distinguir, produzir sentido existencial
por um lado, e por outro atender as necessidades de acumular capital

22 Cadernos de Sociologia e Política


social e econômico, sem gerar constrangimentos nas consciências dos
agentes. Quanto ao último ponto, ressalte-se ainda que esses artistas
são produto de uma sociedade que demanda tais bens culturais, e é
para isso que foram socializados enquanto o que são.

Não existe de modo algum uma visão da cultura popular como resistência
cultural, não havendo assim claramente nenhum projeto político em
jogo. A música, a dança, as artes populares performáticas, enfim, são
diretivas apenas paras as dimensões estética e lúdica desse campo. A
apropriação não se resume também aos seus aspectos instrumentais.
Esses jovens urbanos são performes modernos que querem exibir o
que fazem e recriam, e derivar desses processos âncoras de sentido
para a vida que escolheram.

(Recebido para publicação em outubro de 2005)

Notas

1. Os grupos em questão foram: Rio Maracatu, Céu na Terra e Três Marias.

2. Utilizo essencialmente o conceito de artes performáticas, a partir da leitu-


ra de artigo de Carvalho (2004).

3. As entrevistas, quando citadas no corpo do texto, estarão indicadas através


de uma letra do alfabeto entre A e D, associada às mesmas de maneira
aleatória, preservando assim o anonimato das pessoas envolvidas nesse
estudo.

4. O campo intelectual é um dos principais responsáveis pela produção de


bens simbólicos, que por sua vez só podem ser devidamente “consumidos”
mediante a utilização de instrumentos cognitivos que forneçam os códigos
necessários para decifrá-los (Bourdieu, 1992:192).

5. É curioso para Bourdieu (1968) como as ciências sociais podem contribuir


para a elucidação desses determinantes, não sua supressão. Assim, seriam
estes sentidos não mais como movimentos naturais involuntários, mas
como violência.

6. Bourdieu (1996:139) extrai a noção de jogo de Johan Huizinga em seu


livro Homo Luden.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 23


7. Indagação lançada pela entrevistada D, quando argüida a respeito do
que considerava “cultura popular”.

8. Afirmo que utilizo a palavra infantil não com intenção depreciativa,


unicamente para expressar que algumas canções foram elaboradas para
serem apresentadas junto às crianças, apesar de haver também outras
que assim parecem e são “jogadas” apenas pelos adultos. Por outro lado,
como constatei também, a participação nesses tipos de eventos não é de
modo algum impeditiva do envolvimento com outras atividades culturais
típicas da cidade moderna.

9. Não se pode deixar de considerar que tais modos de vivência religiosa


preenchem de forma mais coerente os hábitos de vida das classes médias
urbanas intelectualizadas, ainda que possua elementos mais ou menos
difusos entre outros segmentos sociais (Amaral, 2000).

10. Estas informações foram inicialmente coletadas através de informações


da entrevistada B, que visita anualmente São Luís e mantém contatos
constantes com pessoas do universo cultural do Maranhão.

11. Para mais informações sobre os movimentos estruturais que estão por
trás de fenômenos como este, ver Sanchez (2002).

24 Cadernos de Sociologia e Política


Referências Bibliográficas

AMARAL, Leila. (2000), Carnavais da Alma. Petrópolis, RJ, Vozes.

BOURDIEU, Pierre. (1968), “Campo Intelectual e Projeto Criador”,


in M. Godolier et alii (orgs.), Problemas do Estruturalismo. Rio de
Janeiro, Zahar.

___. (1983), “Gostos de Classe e Estilos de Vida”, in R. Ortiz (org.),


Pierre Bourdieu. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo, Ática.

___. (1989), O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

___. (1992), A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo, Perspectiva.

___. (1996), Razões Práticas. Campinas, Papirus.

___. (2000), La Distinción (2ª ed.). Madrid, Taurus.

CARVALHO, José Jorge de. (2004), “Metamorfoses das Tradições


Performáticas Afro-Brasileiras: De Patrimônio Cultural a Indústria
de Entretenimento”. Série Antropologia, nº 354. Brasília, UnB.

NUNES, Edson de Oliveira (org.). (1978), A Aventura Sociológica:


Objetividade, Paixão, Improviso e Método na Pesquisa Social. Rio de
Janeiro, Zahar.

SANCHEZ, Fernanda. (2002), A Reinvenção das Cidades: Para um


Mercado Mundial. São Paulo, Argos.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 25


Gramsci y las Lecciones de la
Historia. Reflexiones sobre el
Volumen 5 de los
Cuadernos de la Cárcel *

FLAVIO GAITÁN**

Resumo
El presente artículo es una reformulación de la reseña del Volumen V
de los Cuadernos de la Cárcel. A partir del estudio de Gramsci sobre
el resurgimiento italiano, se analizan los conceptos de hegemonía y
dirección política, el papel que los intelectuales están llamados a
cumplir en un proyecto político y los fenómenos de voluntariado,
transformismo y revolución pasiva. Asimismo se presta fundamental
importancia a la centralidad de la historia para un estudio fructífero
de las Ciencias Sociales.

Palabras Clave: hegemonía; revolución; Ciencias Sociales

* El artículo es una readaptación de la reseña presentada a la profesora Maria Alize


Rezende de Carvalho, para la disciplina Estudios Ejemplares en Ciencias Sociales
durante el año de 2004.
** Doutorando em ciência política do IUPERJ, bolsista CAPES. E-mail:
fgaitan@iuperj.br.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 27


L a obra de Antonio Gramsci, intelectual, militante apasionado, sin
ningún lugar a dudas la mayor contribución a la teoría marxista del
siglo XX en una serie de conceptos de su autoría, puede ser analizada
en los escritos que el autor hiciera sobre el Resurgimiento Italiano, el
movimiento que, a mediados del siglo XIX tendió a la unificación de
Italia y la formación de un Estado nacional, situación que se daría en
los hechos con la proclamación del Reino de Italia, bajo la Casa Saboya,
en el año 1861.

Fundador del Partido Comunista en los tiempos de ascenso y


consolidación de Mussolini y condenado a veinte años de prisión por
el régimen fascista, Gramsci es considerado, aun por aquellos que no
comparten sus ideas, una de las mentes más brillantes del siglo pasado,
siendo los Cuadernos, escritos en el perído intermedio de la prisión,
su contribución más significativa. A pesar de haber sido publicados
en forma de libro (Los intelectuales y la formación de la cultura o
Notas sobre Maquiavelo son los más conocidos) los 33 cuadernos que
Gramsci escribió en la prisión no constituyen obras conclusas; son
apuntes, fragmentos, críticas de libros que va elaborando sobre
diversos temas que considera centrales. Cuatro de ellos son
traducciones de Goethe, Fink y Marx y el resto han sido clasificados
en cuadernos misceláneos, esto es, sobre generalidades, y cuadernos
especiales (o temáticos), en los que desarrolla un tema central a lo
largo del mismo.

Los escritos sobre el Resurgimiento italiano, si bien no fueron


nominados por Gramsci (sólo lo hace indirectamente por referencias
en otro cuaderno), pertenecen, en su mayor parte, al cuaderno
temático número 19, aunque también existen sobre el particular notas
misceláneas dispersas, previas al cuaderno temático. En estas
reflexiones el autor busca analizar el proceso italiano de la época que
vive, tratando de remontar sus orígenes al Resurgimiento. En principio
le interesa estudiar cómo se dieron los hechos, cuál ha sido la historia
precedente, tanto italiana como europea en general. En la obra,
Gramsci demuestra un gran conocimiento no sólo de la historia sino
también de la historiografía, sobre la cual se basa a menudo para

28 Cadernos de Sociologia e Política


llegar a conclusiones, siendo la crítica el camino elegido para elaborar
un análisis claro y minucioso de la temática y apelando a las más
diversas fuentes bibliográficas: artículos periodísticos, libros, notas.

Ya desde el inicio, Gramsci (2002:17) aclara que


“As origens do movimento do Risorgimento [...] não devem ser
buscadas neste ou naquele evento concreto registrado numa ou noutra
data, mas precisamente no mesmo processo histórico pelo qual o
conjunto do sistema europeu se tranforma [processo que] não e
independente dos eventos internos da península e das forças que
nele se localizam”.

Así, analiza una amplia variedad de temas como la función de los


partidos políticos, del Piemonte, el papel de la Iglesia y del movimiento
modernista, el rol de los Estados circundantes (especialmente Austria,
Inglaterra y Francia), la relación campo – ciudad y norte – sur, la falta
de participación de las masas en relación con la cuestión agraria, el
papel de la revolución española de 1812 (que reconocía la soberanía
popular y que fuera adoptada por los liberales italianos), el
antisemitismo, la dirección militar, entre otros.

De particular importancia es la revisión que hace el autor de las


visiones más populares sobre el Resurgimiento y la crítica que realiza
por tener éstas un carácter parcial, ideológico; por ser una expresión
de la lucha política, siendo que “o defeito máximo de todas estas
interpretações ideológicas do Risorgimento consiste no fato de que
elas foram meramente ideológicas, isto é, não se orientavam no sentido
de suscitar forças políticas efetivas” (idem:37). Y en ese sentido, critica
tanto las interpretaciones liberales (Omodeo, Croce) como las
antitradicionales (Oriani, Gobetti). Cree que esta forma de ver la
historia, a la que denomina biografía nacional, se vuelve “um
instrumento político para coordenar e fortalecer nas grandes massas
os elementos que, precisamente, constituem o sentimento nacional”
(idem:119).

Las notas sobre el Resurgimiento pueden ser vistas, básicamente, como


una serie de agudas reflexiones sobre política e historia y la íntima
relación que encontraba entre ambas; postura que se ve claramente
cuando afirma: “e se escrever história significa fazer história do

Fórum dos Alunos do IUPERJ 29


presente, é grande livro de historia aquele que, no presente, ajuda as
forças em desenvolvimento a se tornarem mais conscientes de si
mesmas e, portanto, mais concretamente ativas e operosas” (idem:
37).

Preocupado por la realidad del fascismo y la falta de identidad histórica


de los partidos políticos, realiza una aguda presentación de la
problemática italiana en un profundo enfoque histórico, con la
deliberada intención de lograr una guía de acción para la Italia de la
época. Su visión es que el Resurgimiento italiano fue una revolución
sin revolución, revolución pasiva que generó un Estado moderno
asentado sobre el transformismo. En ese proceso faltó el
involucramiento de las masas y, principalmente, el interés de los
protagonistas políticos por lograrlo; en especial, critica el descuido
por la cuestión agraria, que hubiera posibilitado una movilización
popular. Y quizá en esta importancia de la historia en relación a la
política para encontrar una solución a los tiempos actuales podemos
encontrar similitudes con un pensador que Gramsci cita a menudo y
a quien conoce bien: Nicolás Maquiavelo, pionero en analizar el
presente desde la historia, buscando a partir de la crítica llegar a
conclusiones. Gramsci, como Maquiavelo, no es un intelectual
abstraído de la realidad; por el contrario, es un hombre de acción que
toma partido, despreciando la indiferencia.

Como transfondo de la presentación histórica del Resurgimiento


italiano, aparece la cuestión de la dirección política. En sus palabras:
“[...] a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos,
como ‘domínio’ e como ‘direção intelectual e moral’. Um grupo
social domina os grupos adversários [...] e dirige os grupos afins e
aliados. Um grupo social pode, e aliás, deve ser dirigente já antes de
conquistar o poder governamental [...]” (Gramsci, 2002:62).

Su visión es clara: para conquistar el poder cualquier grupo debe ser


previamente dirigente, lo que equivale a decir que debe lograr una
posición hegemónica intelectual, moral y política. La dirección política
es, inexorablemente, un aspecto de la función del dominio y en el
proceso de generar esa posición es central el rol de los intelectuales y
los partidos políticos. Por ello, realiza un recorrido por la situación

30 Cadernos de Sociologia e Política


italiana y se ocupa, a nivel interno, de los partidos y los dirigentes
que los componen; y en lo que podríamos llamar externo, de la
realidad europea y del Vaticano. De modo particular, se aboca a una
minuciosa crítica de los dos partidos políticos más importantes de la
época: el Partido Moderado (liderado por Cavour, a quien Gramsci
reconoce como político extraordinario, con visión y capacidad de
acción suficientes para influir sobre la acción de los contrarios) pro
monárquico, ubicado a la derecha del espectro político y el Partido
de la Acción, liderado por Mazzini y Garibaldi, pro republicano y
que puede ser definido como la izquierda del momento. Y siempre
teniendo en mente la política como necesidad de proyecto
hegemónico, analiza no sólo la capacidad de los moderados para
involucrar en su proyecto a la burguesía y neutralizar a las fuerzas
reaccionarias, sino también la incapacidad de los democráticos (el
Partido de la Acción) para movilizar a las masas, sean proletarias o
campesinas, con vistas a la acción en el mezzogiorno italiano. En su
análisis es claro que los moderados lograron una actividad hegemónica,
por medios liberales, apelando a la iniciativa individual y con un
programa de partido elaborado con base en una acción organizativa.
De ese modo, este grupo social llegó a digitar, incluso, la acción de
sus oponentes. Y su posición dominante fue posible por la estrecha
relación con los intelectuales, dadas las ventajas que podía otorgarles
a estos en tanto grupo sobre la base de una filosofía que les brindaba
dignidad intelectual y la posibilidad de desarrollo en el campo más
amplio de los intelectuales del momento: la escuela.

En relación con esta incapacidad de los democráticos, que explica en


parte las diferencias entre la Italia del Resurgimiento y la Francia
Revolucionaria, realiza un intersante análisis sobre la cuestión
jacobina,
“[...] único partido da revolução em ato [...] [partidários que]
representavam o movimento revolucionário em seu conjunto, como
desenvolvimento histórico integral [como] também as necessidades
futuras [...] realistas à Maquiavel e não seguidores de abstrações”
(Gramsci, 2002:80).

Compara el éxito que tuvieron los jacobinos en el proceso


revolucionario francés para conquistar a las masas campesinas, a pesar

Fórum dos Alunos do IUPERJ 31


de tener su centro en los sectores urbanos de París, combinando
política agraria con revolución democrático burguesa, con el fracaso
en ese sentido de los democráticos italianos. Del análisis sobre los
jacobinos podemos rescatar uno de sus legados más importantes: la
necesidad de tomar partido, de adaptar los cursos de acción a la realidad
de los tiempos, de movilizar las fuerzas por la acción y la consecución
de los fines buscados.

Teniendo en cuenta que estos escritos están atravesados por el interés


de Antonio Gramsci por la acción política, o la necesidad de involucar
a las masas, quizá la mayor riqueza del análisis es haber dado cuenta
de las estrategias de la clase dominante y su constante apelación a
una estrategia del proletariado. Se puede decir que ese es el núcleo de
toda la obra gramsciana: cómo hacer posible, frente a la Revolución
pasiva y el transformismo, un proyecto desde abajo, con el compromiso
de las masas. El término Revolución pasiva, a pesar de ser una creación
de Vicente Cuoco, aparece como uno de los conceptos más difundidos
de la obra de Gramsci (2002:209), para quien “o conceito de revolução
passiva [é] exato não só para a Itália, mas para os outros países que
modernizaram o Estado através de uma série de reformas ou de guerras
nacionais, sem passar pela revolução política do tipo radical-jacobino”.
La revolución pasiva es uma “revolución-restauración”, o sea, una
tranformación desde arriba por la cual los poderosos modifican
lentamente las relaciones de fuerza para neutralizar a sus enemigos
de abajo. Mediante la revolución pasiva los segmentos políticamente
hegemónicos de la clase dominante y dirigente intentan cooptar a sus
adversarios y opositores políticos incorporando parte de sus reclamos,
pero despojados de todo peligro revolucionario.

Una revolución pasiva designa, así, la forma en la que un Estado, un


gobierno, introducen reformas en la economía y en la estructura social
de un país, sin recurrir para ello ni a la opinión ni a la participación
de los gobernados, sino manipulándolos para administrar los efectos
sociales de esas reformas económicas. Este proceso se asienta en lo
que el autor llama el transformismo, entendido “como ‘documento
histórico real’ da real natureza dos partidos que se apresentavam como
extremistas no período de ação militante [...]” (Gramsci, 2002:286),

32 Cadernos de Sociologia e Política


en referencia a la política de acuerdos y compromisos de la izquierda
con la derecha, adoptando así una posición crecientemente moderada.
Y la necesidad de una verdadera revolución se relaciona, también,
con la crítica que hace del voluntariado que,
“[...] apesar de seu mérito histórico [...] foi um sucedâneo da
intervenção popular e, neste sentido, é uma solução de compromisso
com a passividade das massas nacionais. Voluntariado-passividade
caminham juntos [...]. A solução do voluntariado é uma solução
autoritária, de cima para baixo [...]” (idem:51).

El problema sigue siendo la falta de participación de las masas, porque


la invocación al voluntariado es “legitimada formalmente pelo
consenso, como se costuma dizer, dos ‘melhores’. Mas, para construir
história duradoura não bastam os melhores, são necessárias as energias
nacional-populares mais amplas e numerosas” (idem:51-52)

Como hemos dicho, de particular importancia en estos escritos es el


papel que juegan los intelectuales en el proceso político italiano. Por
eso es fácil de entender que Gramsci asocie el concepto de revolución
pasiva, la revolucion desde arriba, con la cooptación de los
intelectuales por parte de las clases dominantes que buscan evitar,
por su parte, que la clase subalterna cuente con sus propios
intelectuales “uma vez que a absorção das elites dos grupos inimigos
leva à decapitação destes e a sua aniquilação por um período
freqüentemente muito longo” (Gramsci, 2002:63). En el pensamiento
gramsciano, todo hombre es un intelectual, dado que cualquier tarea
física implica el uso del intelecto, pero cada clase social destaca una
elite entre los intelectuales y es así que debe entenderse por
intelectuales “não só aquelas camadas comumente compreendidas
nesta denominação, mas, em geral, todo o estrato social que exerce
funções organizativas em sentido lato, seja no campo da produção,
seja no da cultura, e no político-administrativo [...]” (idem:93).

Dada la íntima relación dominación – hegemonía y la importancia de


los intelectuales en este proceso, el análisis gramsciano nos fuerza a
preguntarnos por su actitud al frente del poder, si
“[...] sua atitude psicológica em relação às classes fundamentais...têm
uma atitude paternalista para com as classes instrumentais ou se

Fórum dos Alunos do IUPERJ 33


consideram uma expressão orgânica destas classes? O si têm uma
atitude ‘servil’ para com as classes dirigentes ou se consideram, eles
próprios, dirigentes, parte integrante das classes dirigentes?”
(Gramsci, 2002:93).

Revelar que cada clase social posee sus intelectuales que cumplen una
función organizativa y proclamar que también el proletariado debe
tener la suya es otro aporte significativo que se vuelve hoy
absolutamente actual. De este modo, Gramsci nos hace reflexionar
sobre el papel de los intelectuales, en especial de aquellos que buscan
(buscamos) ser hombres de ciencia social. Esta cuestión es central,
siendo que, en nuestros días, bajo el manto del fín de la historia, cada
vez más los intelectuales son cooptados y dirigidos por las grandes
corporaciones (ya Gramsci había advertido que los intelectuales
“exercem muitas vezes uma direção de segundo grau, uma vez que
eles propios estão sob a influência dos grandes propietários da terra
[...] dirigidos pela grande burguesia, especialmente financeira”)
(2002:205), volviendo el pensamiento crítico, acallado, silenciado.

En definitiva, Gramsci escribe preocupado por el poder, por develar


las estrategias dominantes del capitalismo y lo hace de manera
brillante, dando cuenta de un poder que reside en las relaciones
sociales y que se expresa en la hegemonía, en tanto proceso que
expresa la conciencia y los valores organizados prácticamente de un
grupo social dominante. Pero, en virtud de esa preocupación por el
poder, no agota su trabajo en presentar los hechos (algo que, de por
sí, ya constituye un aporte teórico invalorable) sino en explorar
caminos para la acción: la necesidad de una contrahegemonía, una
revolución de las clases subalternas en que el Partido Comunista y los
sindicatos (su eterna apelación a las masas) estaban llamados a cumplir
un rol trascendental. Y es aquí donde adquiere vital importancia la
guerra de posiciones, entendida como una estrategia de asedio y no
de asalto, no como una ofensiva frontal sino como una estrategia que
demanda una concentración sin precedente de hegemonía pero que,
una vez ganada, lo es en términos definitivos. En otras palabras, la
necesidad de un bloque histórico asentado sobre las fuerzas del
proletariado, un momento en que la hegemonía logra realizarse.

34 Cadernos de Sociologia e Política


Pero la importancia del análisis gramsciano sobre el Resurgimiento
(y los cuadernos en general) va más allá, porque no sólo ha sido
conciente de las transformaciones del pasado, sino que también supo
dar cuenta de los cambios venideros, en sus críticas al capital
financiero, en la inexorabilidad de la unificación europea (creo, dice,
que “o processo histórico tende para esta união e que existem muitas
forças materiais que só com esta união poderão se desenvolver” (:249),
en la necesidad de ganar la batalla cultural, en los peligros del
transformismo (téngase en cuenta que Gramsi escribe unos quince
años antes del auge socialdemócrata).

En definitiva, el análisis sobre el Resurgimiento italiano, que, en línea


con toda su obra, se propone encauzar al proletariado hacia la acción,
sobre la base del marxismo-leninismo, constituye un ejemplo de
intelectualidad viva, un reto a las Ciencias Sociales que pretenden la
avaloración, el mero academicismo. Y es por eso que el análisis de
Gramsci es hoy, más que nunca, actual. En un momento en que el
avance del capitalismo y los sectores reaccionarios aparece como
irreversible, en tiempos de confusión, cuando el cambio parece
imposible, la obra de Antonio Gramsci, magnificada por su coherencia
de vida, es un bálsamo a explorar. Porque, aún hoy, a más de medio
siglo de su muerte, sigue siendo una deuda pendiente generar un
“[...] método da liberdade [...] uma nova construção de baixo para
cima, na medida que todo um estrato nacional, o mais baixo
econômica e culturalmente, participe de um fato histórico radical
que envolve toda a vida do povo e ponha cada qual, brutalmente,
diante das próprias responsabilidades inderrogáveis” (Gramsci,
2002:268).

(Recebido para publicação em outubro de 2005)

Referencia Bibliográfica

GRAMSCI, Antonio. (2002), “O Risorgimento” (vol. 5). Cadernos


do Cárcere, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 35


Oliveira Vianna e o Problema
Institucional Brasileiro

FREDERICO CARLOS DE SÁ COSTA*

Resumo
Este artigo aborda a visão de umdos mais importantes autores do
começo do século XX, Francisco José de Oliveira Vianna, a respeito
das instituições políticas brasileiras. O autor em questão critica a
fundação da então incipiente república brasileira, apontando o abismo
existente entre direito-lei e direito-costume.

Palavras-chave: instituições; costumes; idealismo

*Aluno do programa de doutorado do IUPERJ. E-mail: fsacosta@uol.com.br.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 37


Introdução
Um conjunto de autores e obras de cunho histórico-sociológico
formou-se nos primeiros trinta anos do século XX no Brasil, conjunto
este caracterizado por uma postura crítica quanto ao modelo liberal
da Constituição Republicana de 1891 e responsável pela construção
de uma tradição de pensamento político autoritário. Nesta tradição
destacam-se Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e
Francisco Campos1. Um dos pontos que une estes autores é o desejo
de efetivamente influenciar a ação política de seu tempo, partindo de
um diagnóstico do país – que surge da análise histórica da formação
brasileira – e da proposição de linhas alternativas de ação, que
remodelariam a estrutura político-institucional do Brasil.

Inserido nesse contexto, Francisco José de Oliveira Vianna produziu


uma obra – de 1920, com Populações Meridionais do Brasil, até 1949,
com Instituições Políticas Brasileiras, e mesmo depois de 1951, ano
de sua morte, com a publicação de suas obras póstumas – cuja visão
de sociedade e de modelo político paga o tributo de seu tempo2,
enredada que está em uma armadilha autoritária, por um lado, mas
que, por outro lado, também apresenta pontos que ainda hoje são
pertinentes e centrais à vida político-institucional do Brasil.

O escopo deste trabalho, com o recurso da visão de Oliveira Vianna


da questão racial e da formação do homem brasileiro, privilegia o
problema institucional do Brasil, o idealismo de suas elites (e o que o
autor entende por este idealismo), o particularismo que impede a
formação de uma mentalidade pública e a dupla antinomia: país legal
versus país real e direito-lei versus direito-costume.

Sempre que se pensa em Oliveira Vianna, surge a crítica aos seus


primeiros trabalhos, que propunham a tarefa de arianizar o Brasil.
Apesar de ocupar um espaço importante no pensamento do autor em
pauta – com implicações em suas formulações políticas –, o tratamento
da questão racial vai se alterando e perdendo valor heurístico ao longo
de sua obra, o que não quer dizer que a questão racial desapareça
completamente em Oliveira Vianna, mesmo em seus trabalhos tardios.
A ênfase no problema institucional justifica-se, aqui, pelo anacronismo

38 Cadernos de Sociologia e Política


de qualquer interpretação arianista do Brasil depois do impacto de
Casa Grande & Senzala, pela pertinência contemporânea e por
motivos de adequação a este espaço.

Antes da abordagem dos tópicos aqui apontados, cumpre ressaltar a


atualidade da postura teórico-metodológica de Oliveira Vianna. O
autor buscava respostas e alternativas sempre segundo a especificidade
da História do Brasil, sempre condenando a insistência com que as
elites nacionais teimavam em adaptar, canhestramente, modelos
europeus, nascidos da história e dos costumes da Europa, a uma
realidade brasileira totalmente diversa àquela, seja cultural, geográfica
ou sociopoliticamente considerada.

Somente pelo estudo do Brasil e de suas condições poder-se-ia


vislumbrar um conjunto de propostas adequadas à sua realidade, pois,
segundo nosso autor, se “nós somos um dos povos que menos se
estudam a si mesmo: quasi tudo ignoramos em relação á nossa terra,
á nossa raça, ás nossas regiões, ás nossas tradições, á nossa vida, emfim,
como aggregado humano independente” (Oliveira Vianna3, 1938),
só poderíamos tentar imitar modelos estrangeiros, ao passo que, se
fosse produzido um conhecimento do Brasil, pelos brasileiros, novas
e viáveis propostas surgiriam.

Problema Institucional Brasileiro


“A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”,
dizia Sérgio Buarque de Hollanda (1981:119). O problema da
conformação institucional brasileira – aliás, da conformação
institucional de qualquer país – passa necessariamente pelo modo
como se constrói o homem da nação e, com esta nação, o Estado que
delimita suas fronteiras e lhe submete ao império da lei.

É ponto comum de convergência histórico-analítica o fato de, no


Brasil, o Estado ter se formado antes da nação e construído um modo
de ocupação da terra baseado em latifúndios com grande grau de
autonomia. O tipo humano brasileiro teria se formado, então, no
meio rural como um “amante da solidão e do deserto, rústico e anti-
urbano, fragueiro e dendrófilo, que evita a cidade e tem o gosto do
campo e da floresta” (Oliveira Vianna, 1974:118).

Fórum dos Alunos do IUPERJ 39


O homem personalista e particularista assim formado não possuiria
os elementos necessários à formação dos laços de solidariedade
necessários ao surgimento de uma vida política tal qual idealizada
pelas elites ao tempo de Oliveira Vianna. A vida antiurbana e isolada
dentro do mundo rural teria impedido que as “estruturas de
solidariedade social e os complexos culturais correspondentes
[pudessem] ter ambiente para se formar, e se desenvolver, e se
cristalizar em usos, costumes e tradições” (idem, 1974:124), enfim,
“no ponto de vista culturalístico, o nosso povo é, por isso, sob o
aspecto de solidariedade social, absolutamente negativo” (idem:125).
Esse diagnóstico que nosso autor faz do homem brasileiro é decisivo
para o entendimento de todo o seu pensamento político-institucional,
pois, ainda segundo o autor, uma institucionalidade não deve fugir à
realidade de seu povo. Nesse ponto, as definições de idealismo utópico
e idealismo orgânico, dentro do pensamento de Oliveira Vianna,
fazem-se necessárias para o perfeito enfrentamento do abismo
apontado pelo autor entre o povo e as elites marginais, ou entre direito-
costume e direito-lei.

Segundo Oliveira Vianna, o abismo dicotômico anteriormente


apontado devia-se ao abandono devotado pelas elites políticas de então
às especificidades do Brasil, à desconsideração de suas realidades
íntimas. Essa elite estaria imbuída de um idealismo utópico, que seria
“todo e qualquer systema doutrinario, todo e qualquer conjuncto de
aspirações politicas em intimo desaccôrdo com as condições reaes e
organicas da sociedade que pretende reger e dirigir” (Oliveira Vianna,
1939:10). Por outro lado, a postura realista e correta das elites deveria
fundar-se no rico manancial de experiências que a história de um
povo (brasileiro) fornece, revestindo-se de um idealismo orgânico,
nascido da “propria evolução organica da sociedade, e não são outra
cousa sinão visões antecipadas de uma evolução futura” (idem:11).
Oliveira Vianna acusa o fato de nunca termos praticado o idealismo
orgânico, o que seria a grande fonte de todos os tropeços e revezes de
nossas experiências institucionais.

Esta é uma questão pertinente e atual: sob que condições (ou substrato
histórico) pode ser arquitetado um arranjo institucional otimizador

40 Cadernos de Sociologia e Política


de procedimentos democráticos? Oliveira Vianna, entre tantos outros
autores, diz que a formação do povo brasileiro “se processou dentro
do mais extremado individualismo familiar” (1974:127), sendo o
brasileiro “fundamentalmente individualista, mais mesmo, muito mais
do que os outros povos latino-americanos. [...] No Brasil, só o
indivíduo vale e, o que é pior, vale sem precisar da sociedade – da
comunidade” (idem:126).

Ora, a democracia liberal, alvo das elites políticas idealistas do começo


do século XX, exigiria uma grande vivência prévia de laços
comunitários de solidariedade para que suas instituições não
operassem no vazio sociológico já apontado por Joaquim Nabuco:
“uma pura arte de construcção no vácuo: a base são as theses – e não
os factos; o material idéas – e não homens; a situação o mundo – e
não o paiz; os habitantes, as gerações futuras – e não as actuaes”
(apud Vianna, 1939). A arquitetura institucional do Brasil, então,
deveria levar em consideração a história social do povo brasileiro, e
isso significaria – em Oliveira Vianna – ter em conta tipos sociais
brasileiros como o oligarca, o coronel, o afilhado, o genro, o juiz
nosso e o eleitor de cabresto.

Essa complexa teia de vida social teria formado uma


“trama densa e viva de fatos sociais que se anastomosaram em
costumes, instituições, tipos, praxes, usos, [...] formando um sistema
puramente costumeiro de motivações e atitudes e determinando, por
fim, a conduta real, efetiva, dos homens e dos cidadãos” (Oliveira
Vianna, 1974:181).

Oliveira Vianna é um autor que não vê ou admite possibilidades reais


para uma ação político-social popular, quer seja por determinações
biológicas advindas da miséria do contato com as “raças inferiores”,
quer seja extrapolando essas determinações para uma visão vertical,
determinista, evolucionária da História.

No debate relativo à construção das estruturas institucionais adequadas


às condições brasileiras, a História aparece como um deus ex machina
revelador do porquê de nosso fracasso político, econômico e social e
indicador do caminho futuro a seguir, que jamais contrariaria a

Fórum dos Alunos do IUPERJ 41


autoridade da experiência passada. Muitos dos descompassos
apontados pelo autor vêm desta visão do homem brasileiro na História,
preso a seu passado rural e antiurbano que teria conformado uma
“população destituida do sentimento dos interesses communs e
desafeita, por motivo da sua formação historica, á pratica da
solidariedade e da cooperação” (Oliveira Vianna, 1939:62).

Esta formação histórica foi desprezada, segundo Oliveira Vianna, por


todos aqueles que montaram as instituições políticas liberais da
República Velha – alvo por excelência das críticas do autor – pois a
maneira como foram idealizadas partia de pressupostos comunitários
e culturais ingleses, e não brasileiros. Os construtores da República,
nessa linha de raciocínio, mergulhados em um idealismo utópico,
poderiam “ter-nos dado um bello edificio, solido e perfeito, construido
com a mais pura alvenaria nacional – [ao invés disso] deram-nos um
formidavel barracão federativo, feito de improviso e a martelo, com
sarrafos de philosophia positiva e vigamentos de pinho americano”
(idem:58).

Sempre na análise histórica de nosso autor, o mundo rural brasileiro


teria produzido dois tipos de solidariedade, os clãs feudal (ou rural) e
parental, expressões do caráter particularista do homem nacional.
Com a República, sobre este chão rural de particularismo e
personalismo, pretendeu-se plantar – ou melhor, transplantar a árvore
adulta – o sufrágio universal. O resultado disto, segundo Oliveira
Vianna, foi a formação dos clãs eleitorais, “organizações constituídas
para fins exclusivamente eleitorais [...] verdadeiras células originárias
do nosso direito público costumeiro” (Oliveira Vianna, 1974:182).

Estes clãs eleitorais seriam nada mais que a expressão pública de


interesses privados, expressão essa formada pela ação do senhor local
unindo os clãs feudal e parental em uma única organização
representante do
“velho elemento aristocrático com o novo elemento democrático.
[...] O princípio ou força de agregação era a autoridade do senhor
de engenho – o que equivale dizer que o clã eleitoral não tinha
nenhuma origem democrática, não provinha da vontade do povo;
derivava, sim, da propriedade da terra” (idem:255).

42 Cadernos de Sociologia e Política


A vida política brasileira veria perpetuada a carência de motivações
coletivas na ação pública, constituindo um jogo cujos resultados eram
sempre conhecidos ex ante. Oliveira Vianna, pois, olha para o país
real e identifica um homem que não pode tornar-se cidadão apenas
pela força de um decreto e uma elite que não pode tornar-se
democrática pelo motivo acima, agravado pelo vazio sociológico (a
“arte de construção no vácuo” apontada por Nabuco) verificado no
espaço público. Olhando para o país legal, nosso autor identifica uma
elite que “combate com sombras” – ainda relembrando Nabuco – e
que não consegue entender os motivos da ruína de sua engenharia
institucional.

Mas então qual a saída? Segundo Oliveira Vianna, precisar-se-ia


“[...] organisar um conjunto de instituições específicas, um systema
de freios e contra-freios que, além dos fins essenciaes a toda
organisação politica, tenha tambem por objectivo: a) neutralisar a
acção nociva das toxinas do espirito de clan no nosso organismo
politico-administrativo; b) quando não seja possivel neutralisal-as,
reduzir-lher ao minimo a sua influencia e nocividade” (Oliveira
Vianna, 1939:71).

A atuação positiva deste sistema de freios e contra-freios deveria


eliminar as mazelas dos complexos de clã, daí advindo a democracia.
Impõe-se, então, a tarefa da mudança institucional, mas resta também
saber quem é o agente dessa mudança e como ela se processaria.

Oliveira Vianna nunca reputou ao povo-massa a capacidade de ação


política construtiva, por esse povo-massa ser prisioneiro de sua
história. O papel da construção virtuosa da esfera pública brasileira
seria sempre, segundo o autor, reservado à elite, ressaltando que o
critério de recrutamento dessa elite exclui todos aqueles que, por
decreto, teriam sido alçados à condição de cidadãos, apesar de
oriundos de um extrato populacional composto por trabalhadores
braçais, homens de cor e mercadores, justamente o tipo de homem
antiurbano e fragueiro apontado por Oliveira Vianna. Esses homens,
subitamente cidadãos, teriam sido os responsáveis pelo fim do aspecto
grave e solene das reuniões políticas, iniciando uma tradição de
tumultos e arruaças eleitorais: esta era a “patuléia”, toda a “peonagem

Fórum dos Alunos do IUPERJ 43


das cidades. Toda a peonagem dos campos. Toda esta incoerente
populaça de pardos, cafuzos e mamelucos infixos” (Oliveira Vianna,
1974:260).

A imagem que melhor ilustra a idéia de elite política em Oliveira


Vianna – este tipo de homem fora da História – é a por ele construída
a respeito da elite do Império, os “homens de 1000”4. Estes homens
estavam fora da História porque não os animava na vida pública o
instinto individualista e privatista típico do povo-massa, além de serem
recrutados pela atitude conscientemente seletiva do Imperador, “estes
homens, assim tão grandes, não eram grandes porque inspirados no
povo-massa, na sua ‘cultura’ e em seus complexos respectivos”
(idem:314), mas antes por seu carisma e, repito, por suas qualidades
excepcionais, identificadas e aproveitadas pelo Imperador.

Sendo também uma variável importante no problema institucional


brasileiro, o fenecimento desta “elite de 1000” teria deixado o país
órfão de homens capazes de dirigi-lo com espírito público. Ao invés
do Senado e do Conselho de Estado do Império – vitalícios ambos e
assim garantindo ao Estado que os “homens de 1000” a ele se
dedicassem durante toda sua carreira –, agora teríamos homens eleitos
por
“[...] párias sem terra, sem lar, sem justiça e sem direitos, todos
dependentes inteiramente dos grandes senhores territoriaes; de modo
que, mesmo quando tivessem consciencia dos seus direitos politicos
(e, realmente, não tem...) e quizessem exercel-o de um modo
autonomo – não poderiam fazel-o. E isto porque qualquer velleidade
de independencia da parte desses párias seria punida com a expulsão
ou despejo immediato pelos grandes senhores de terras” (Oliveira
Vianna, 1939:112).

Contesta-se claramente a competência do eleitorado e aponta-se um


ponto até hoje polêmico para qualquer sociedade que se pretenda
democrática: procedimentos democráticos não garantem qualidade
democrática ou, em outras palavras, a excelência de um líder político
não está, necessariamente, ligada à quantidade de cidadãos que nele
votaram, podendo estar, inclusive, inversamente proporcional ao
número de votos, se levarmos ao limite as restrições de Oliveira Vianna
ao voto de um povo dependente dos senhores locais e do sistema de

44 Cadernos de Sociologia e Política


partidos – também expressão do particularismo e da libido dominandi
dos mandões locais.

Como então produzir um sistema de freios e contra-freios que leve


em conta as mazelas da formação histórico-social brasileira e construa
instituições capazes de engendrar progresso político em condições
adversas? A chave seria neutralizar o voto popular – ou, no mínimo,
o voto popular naquilo que ele contém de expressão de particularismos
e de solidariedades familiares e afetivas – favorecendo o surgimento
de oligarquias esclarecidas.

O papel outrora exercido por D. Pedro II deveria ser assumido pelo


Estado, mas não um Estado como o que se apresentou de 1889 a
1930, mas sim espelhado no que a partir daí, com Getulio Vargas, se
verificou. A obra política de Oliveira Vianna concentra-se na
postulação de um governo forte e intervencionista, lúcido como o
Poder Moderador, em oposição ao poder local e latifundiário,
representado então no Parlamento, que havia se

“[...] tornado um óbice á efficiencia da administração publica; a)


pelo espirito faccioso que animava as suas atitudes; b) pela esterilidade
de sua acção legislativa; c) pela nenhuma preoccupação de interesse
collectivo ou nacional da parte dos grupos (partidos) que se agitavam
em seu seio” (idem:122).

Pela história do brasileiro, mudar esse estado de coisas pela via liberal
seria insensato e impossível, justamente pela utopia desse idealismo
despregado de nossa realidade. Assim sendo, alguma coação seria
necessária, assumindo a idéia de “autoridade”, um valor superior ao
de “liberdade”: a liberdade representada pelo liberalismo seria
desagregadora da sociedade e do território brasileiros, fortalecendo
os poderes dos mandões locais, enquanto o princípio da autoridade
manteria unidos país e sociedade, povo e nação. O Estado Autoritário5
seria o agente de uma política nacional que eliminaria qualquer tipo
de dispersão ou fragmentação que pudesse dissolver o país.

A ênfase na autoridade integra-se em um raciocínio que pensa a


sociedade a partir do todo e não das partes. Foi a observação do povo
brasileiro que gestou em Oliveira Vianna esse posicionamento político-
ideológico. A respeito da Constituinte de 1934 dizia que

Fórum dos Alunos do IUPERJ 45


“[...] differiam [Oliveira Vianna era membro desta assembléia] apenas
nisto: é que para elles [os idealistas utópicos] o objectivo da reforma
era a organisação da liberdade e para mim este objectivo devia ser a
organisação da autoridade, principalmente da autoridade central.
Elles viam a nação, mas do ponto de vista do indivíduo; eu, sem
dúvida, também via o indivíduo e os seus direitos inalienáveis, mas
o via, e o vejo, do ponto de vista da Nação” (Oliveira Vianna,
1939:157).

Essa nação deveria expressar sua autoridade na figura do Presidente


– eleito indiretamente – e de sua legitimidade. A essa figura caberia o
papel de organizar o povo e lhe fazer crescer a maturidade política
pela eliminação progressiva dos complexos particularistas de clã. A
organização corporativa da sociedade seria o meio adequado para
isto, pois somente o homem sindicalizado ou associado teria o treino
e a cultura próprios para pensar e deliberar sobre algo exterior a si
mesmo.

Leis inadequadas de nada valiam, mas leis afeitas às condições do


Brasil teriam o poder de coagir os homens à organização política.
Legisladores e executores presos ao idealismo utópico são acusados
por Oliveira Vianna de, com seu liberalismo, produzir e executar não
leis, mas sugestões morais, ao passo que aqueles afeitos organicamente
às condições reais brasileiras lançariam mão da “técnica autoritária”,
acrescentando sanções ao corpo das leis, sejam elas administrativas,
civis ou penais. A autoridade da lei produziria um caldo cultural
propício à criação entre os brasileiros de um tipo humano livre dos
complexos de clã.

Como temos visto, o sistema de partidos e o Parlamento daí resultante


seriam apenas o reflexo do poder local e particularista dos senhores
rurais. Como os partidos políticos não representariam, segundo
Oliveira Vianna, nem interesses coletivos, nem ideologias políticas,
“[...] nada mais absurdo, pois, do que se dar preferência de
representação no governo a estes grupos improductivos e, mesmo,
nocivos e deixar-se de lado os grupos que significam interesses reaes,
que fazem com a sua actividade a grandeza e a riqueza do Paiz. [...]
É tempo de corrigir este erro secular – e o meio único para isto será
conferir esta funcção, essencial á vida das democracias, ás corporações
econômicas, ás corporações de cultura, ás corporações religiosas e,

46 Cadernos de Sociologia e Política


especialmente, ás associações de classes; em summa, a todas as
organisações que exprimam uma funcção social util ou um interesse
collectivo positivo” (Oliveira Vianna, 1939:193-194).

Leis adequadas às condições brasileiras, com poder de mudança


gradativo e dotadas de dispositivos coercitivos, tudo isto sob a
liderança de um poder central forte e autoritário (ao revés da frouxidão
liberal), deveriam, então, no jogo de freios e contrafreios, produzir
uma sociedade neste molde, em que a organização corporativa surgiria
como meio para eliminar nossos complexos de clã. Oliveira Vianna
toma esse posicionamento ao seu limite, considerando os sindicatos
de classe e as associações como as únicas escolas cívicas possíveis em
nosso povo, que assim aprenderia, pela vivência de solidariedade
comunitária, a “manejar esta pequenina arma delicada, uma cédula
de eleitor” (Oliveira Vianna, 1974, vol. 2:160).

Temos então a função-guia da elite, seu recrutamento, leis orgânicas


e afeitas à nossa peculiaridade histórica, um Estado com autoridade
indiscutível e a organização corporativa da sociedade. Falta um último
elemento a este conjunto, tendo em vista a ênfase de Oliveira Vianna
na autoridade sobre a liberdade e na ordem sobre a participação
popular indiscriminada: este elemento é o constrangimento legal sobre
os eleitores e sobre os elegíveis.

Para nosso autor, a quantidade de votos não implica necessariamente


na escolha da melhor liderança, mas antes deve imperar a qualidade
e independência do eleitor, pois não se pode dar “a mesma capacidade
eleitoral ao sertanejo da Cachoeira do Roberto (cujo nível de vida e
de cultura é o mais miserável do mundo, segundo Luetzellburg) e ao
cidadão do Rio ou da Paulicéia, instruído, lido em jornais, socializado
pelo sindicato de classe” (idem:158).

Somente a escola democrática poderia fazer progredir a qualidade


do eleitor e as instâncias em que seu voto seria válido. Mirando no
Estado Novo, Oliveira Vianna aponta as regras eleitorais da
Constituição de 1937 como indicativas do acerto de seu prognóstico
sobre a capacidade eleitoral dos cidadãos, pois estabelece pleitos
indiretos nos âmbitos Legislativo estadual, federal e presidencial. O

Fórum dos Alunos do IUPERJ 47


presidente da República seria eleito por delegados das câmaras
municipais (aqui estaria o elemento popular) e do Conselho Federal,
e por eleitores indicados pelo Conselho Nacional de Economia, pela
Câmara dos Deputados e pelo Conselho Federal (além de seus
delegados).

O sistema de freios e contrafreios deveria, por todos estes mecanismos,


educar para a democracia e nos livrar dos vícios dos complexos de
clã, a fim de que a democracia entre nós não mais fosse “um lamentável
mal-entendido”. Considero instrumental a ênfase que Oliveira Vianna
dá à autoridade, um meio para se atingir uma democracia que, apesar
das críticas aos idealistas utópicos, nunca deixou de ter o mundo
anglo-saxão como paradigma, apenas dever-se-ia, para atingir tal
padrão, seguir o caminho adequado às condições brasileiras. A idéia
de uma democracia autoritária não se sustenta hoje, mas a preocupação
com a autoridade da democracia e com um arranjo institucional eficaz
permanece viva e ainda sem uma resposta clara no campo político.

Conclusão

Ao cabo deste estudo, emerge a constatação de que há algumas tarefas


inconclusas no Brasil. O conhecimento de nossa realidade histórico-
social, sem mitos, devaneios ou preconceitos de raça; a construção
de uma identidade nacional que consiga de uma vez por todas inserir
o homem brasileiro no mundo, e isso sem sentimentos de
inferioridade, sem nostalgia do passado rural e com um sentimento
genuíno de orgulho nacional; e a articulação virtuosa de um conjunto
de instituições políticas afeitas às nossas condições histórico-sociais,
articulação esta que permita ao direito-costume moldar as instituições,
mas que também delegue às instituições o poder de conformar, e
também coagir, comportamentos politicamente adequados a um
mundo em constante movimento.

A obra de Oliveira Vianna preocupa-se do começo ao fim com essas


questões. Seu diagnóstico da realidade social e política do Brasil possui
importantes pontos em comum com outros autores, suas propostas
de ação, porém, nem tanto, por pecarem pelo demasiado apego ao
momento histórico de então, dominado por um forte sentimento
antidemocrático.

48 Cadernos de Sociologia e Política


Apenas como indicação, para que não se fuja aos limites desse espaço,
indico o posicionamento de alguns autores brasileiros também
envolvidos na tarefa de construção e análise do Brasil, do brasileiro e
sua institucionalidade.

Com Oliveira Vianna, temos uma ênfase no papel condutor das elites
esclarecidas, na incapacidade do povo-massa de exercer esse papel e
na necessidade da construção de um sistema de freios e contrafreios
que aprimorasse uns e contivesse outros. Ao longo da leitura de Casa
Grande & Senzala, observei que Gilberto Freyre trabalha com uma
perspectiva bem distinta, partindo do princípio que, apesar de
institucionalmente o poder político estar nas mãos de uma elite
empedernida, o dia-a-dia das relações sociais brasileiras constituiu
um mundo no qual os costumes e usos da senzala – símbolo de
submissão – teriam invadido e conquistado, sutilmente, o mundo da
Casa Grande – símbolo de domínio. Segundo Gilberto Freyre, a família
colonial formada na Casa Grande foi o centro por excelência da coesão
social e o símbolo de todo um sistema político e econômico, assumindo
funções que chegaram ao Estado.

Sérgio Buarque de Holanda e Oliveira Vianna aproximam-se em um


ponto importante a respeito da institucionalidade brasileira, qual seja
a distinção entre família e Estado, entre homem cordial e homem
civil. Oliveira Vianna acusa a promiscuidade dessas esferas de
causadora da inexistência entre nós de qualquer espírito de
solidariedade social – à exceção dos complexos de clã, que são
expressões do particularismo), e Sérgio Buarque de Holanda, nesta
mesma linha, faz questão de separar as esferas pública e privada, o
civil do sentimental. A amargura da constatação de que a democracia
é, no Brasil, “um lamentável mal-entendido” parte também, como
Oliveira Vianna, do diagnóstico sobre a formação do homem
brasileiro, este “homem cordial” que quer bastar-se a si mesmo,
independente da sociedade que o acolhe, dotado de uma
“personalidade individual [que] dificilmente suporta ser comandada
por um sistema exigente e disciplinador” (Hollanda, 1981:113).

Outro autor que realizou, anos depois, uma análise da formação do


Brasil e do brasileiro, tendo em vista a herança ibérica, mas agora

Fórum dos Alunos do IUPERJ 49


segundo as categorias analíticas do pensamento weberiano, foi
Raymundo Faoro, que viu o ritmo da colonização brasileira e da
formação do ambiente nacional determinado pelo fato de que “o
mundo português foi patrimonial, e não feudal. [...] Ao
patrimonialismo se atrelava uma ordem burocrática, que superpunha
o soberano ao cidadão numa relação semelhante à existente entre o
chefe e o funcionário” (Souza, 1999:337). Segundo Raymundo Faoro
a formação do Brasil foi marcada pelo estigma de nossa ancestralidade
ibérica, antiliberal e patrimonialista.

O começo do século XX foi o momento quando floresceu o


pensamento de Oliveira Vianna e, depois dele, de outros autores que
pensaram a institucionalidade brasileira. Penso que não é descabido,
neste limiar do século XXI, repensar o Brasil e suas instituições a
partir dessas obras fundadoras. Questões como a educação para a
cidadania, o papel e recrutamento das elites, a estruturação do
“barracão federativo”, do homem não associativo e que quer bastar-
se a si mesmo, da boa coordenação entre nossas condições históricas
e nosso complexo integrado de comportamento político, permanecem
em aberto.

Penso que a desdenhosa expressão “barracão federativo” sintetiza e


indica as tarefas por fazer. Ainda está por vir o melhor equilíbrio
entre as esferas federal, estadual e municipal em seus respectivos
limites de autonomia política e arrecadação e distribuição de impostos,
para falar o mínimo; o desequilíbrio representativo encontrado nas
relações entre Senado e Câmara dos Deputados e mesmo encontrado
dentro da própria Câmara, entre Estados mais e menos populosos, se
mantém; como garantir que os melhores candidatos sejam eleitos, e
não os piores e mais ricos; como promover cultura cívica; como lidar
com o cidadão amorfo e despreparado, evitando o diagnóstico de
Ernesto Geisel, que acusava a inconveniência do sufrágio universal
em um “país de analfabetos”; enfim, garantir legitimidade ao
Congresso, não permitindo que esta casa confirme os vaticínios de
Oliveira Vianna, que a via como mero reflexos de nossos “complexos
de clã” e fonte de eterna instabilidade. As tarefas estão presentes e
comportam o desafio adicional de encontrar soluções democráticas

50 Cadernos de Sociologia e Política


para resolver problemas democráticos, escapando das duas trilhas da
armadilha autoritária de Oliveira Vianna, que pretendia resolver os
problemas de nosso liberalismo e nossa democracia com menos
liberalismo e menos democracia, justificando tais propostas com o
concurso da História: a formação do brasileiro, homem fragueiro e
dendrófilo, determinaria a necessidade de um regime político que
lhe fosse afim, um regime que restringisse as liberdades liberais e as
exigências democráticas.

(Recebido para publicação em novembro de 2005)

Notas

1. Os autores citados representam “autoritarismos” diferentes. O que inte-


ressa a este trabalho, porém, é a percepção de que no começo do século
XX no Brasil, a opção por práticas políticas autoritárias era predominante
em relação a quaisquer outras.

2. Nas palavras de Jarbas Medeiros (1978:155), temos que “a leitura de sua


obra [...] revela-nos um só bloco de idéias, cimentado no decurso dos
anos 10 do nosso século, do qual Oliveira Vianna foi prisioneiro até o
fim”.

3. Nas citações retiradas de edições da década de 1930 será mantida a


grafia original.

4. Metáfora retirada da Bíblia, transcrita em Instituições Políticas Brasileiras


(1974:314): “E tu, dentre todo povo, procura homens capazes, tementes
a Deus, homens de verdade, que aborrecem a avareza; e põe-nos sobre
ele por maiorias de mil, por maiorias de cento, por maiorias de cinqüenta
e por maiorias de dez. E Moisés escolheu homens capazes de todo Israel
e os pôs por cabeças sobre o povo: maiorias de mil, maiorias de cento,
maiorias de cinqüenta e maiorias de dez. E eles julgaram o povo em todo
o tempo; o negócio árduo trouxeram a Moisés e todo negócio pequeno
julgaram eles” (Êxodo, cap. 18, versículos 21, 25, 26).

5. Segundo Oliveira Vianna (1939:149), a expressão “Estado Autoritário”


é pleonástica.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 51


Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. (1999), “Oliveira Vianna”,


in L. D. Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um Banquete no Trópico.
São Paulo, Senac.

BASTOS, Élide Rugai. (1999), “Gilberto Freyre”, in L. D. Mota (org.),


Introdução ao Brasil. Um Banquete no Trópico. São Paulo, Senac.

BONFIM, Manoel. (1930), O Brazil na História. Rio de Janeiro,


Livraria Francisco Alves.

COHN, Gabriel. (1999), “Florestan Fernandes”, in L. D. Mota (org.),


Introdução ao Brasil. Um Banquete no Trópico. São Paulo, Senac.

FAORO, Raymundo. (2000), Os Donos do Poder. São Paulo, Globo/


Publifolha.

FERREIRA, Gabriela Nunes. (1996), “A Formação Nacional em


Buarque, Freyre e Vianna”. Lua Nova, nº 37.

FREYRE, Gilberto. (1969), Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro,


Livraria José Olympio Editora.

HOLLANDA, Sérgio Buarque. (1981), Raízes do Brasil. Rio de


Janeiro, Livraria José Olympio Editora.

LAMOUNIER, Bolívar. (1977), “Formação de um Pensamento Político


Autoritário na Primeira República. Uma Interpretação”, in B. Fausto
(org.), História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo, Difel,
Tomo III, 2º vol.

LIMA, Maria Regina Soares de e CERQUEIRA, Eli Diniz. (1971),


“O Modelo Político de Oliveira Vianna”. Revista Brasileira de
Estudos Políticos, nº 30.

MEDEIROS, Jarbas. (1978), Ideologia Autoritária no Brasil 1930-


1945. Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas Editora.

MOTA, Carlos Guilherme. (1977), Ideologia da Cultura Brasileira.


São Paulo, Ática.

52 Cadernos de Sociologia e Política


OLIVEIRA VIANNA, Francisco José. (1938), Evolução do Povo
Brasileiro. São Paulo, Cia. Ed. Nacional.

___. (1939), O Idealismo da Constituição. São Paulo, Cia. Ed.


Nacional.

___. (1974), Instituições Políticas Brasileiras. Rio de Janeiro, Record.

REIS, José Carlos. (1999), As Identidades do Brasil. De Varnhagen a


FHC. Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas Editora.

SALLUM Jr., Brasílio. (1999), “Sérgio Buarque de Hollanda”, in L.


D. Mota (org.), Introdução ao Brasil. Um Banquete no Trópico. São
Paulo, Senac.

SOMARRIBA, Valentina Gomes. (1998), “O Pensamento Político de


Francisco Campos nos Anos 40: Uma Revisão do Período
Autoritário”. Cadernos de Filosofia e Ciências Humanas, Ano VI,
nº 11.

SOUZA, Laura de Mello e. (1999), Raymundo Faoro, in L. D. Mota


(org.), Introdução ao Brasil. Um Banquete no Trópico. São Paulo,
Senac.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 53


Uma Apresentação Concisa da
História Conceitual*

HENRI CARRIÈRES* *

Resumo
Metodologia voltada para o estudo em perspectiva histórica dos conceitos
políticos e sociais, a Begriffsgeschichte, ou história conceitual, nasceu na Ale-
manha na primeira metade do século passado. Além de comentar resumida-
mente a trajetória intelectual de seus fundadores, o presente artigo faz uma
breve exposição do programa dessa corrente historiográfica e a compara ao
contextualismo lingüístico. A conclusão indica algumas linhas de pesquisa em
que a história conceitual pode mostrar-se particularmente útil.
Palavras-chave: história conceitual; contextualismo lingüístico; historiografia
das idéias

*
Versão preliminar deste artigo foi apresentada como trabalho final no curso “His-
tória Intelectual e História dos Conceitos Políticos e Sociais”, ministrado pelo prof.
Marcelo Gantus Jasmin no 1º semestre de 2004. Agradeço a ele e aos pareceristas
anônimos pelos úteis comentários. As imperfeições ficam exclusivamente por conta
do autor.
**
Mestrando em ciência política do Iuperj e bolsista da Capes. E-mail:
hcarrieres@gmail.com.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 55


Os Pioneiros: Koselleck, Brunner e Conze

Tratarei neste artigo de um método historiográfico de grande fascínio e


que vem se tornando conhecido em nosso meio acadêmico, a história
conceitual (ou Begriffsgeschichte, em alemão). Elaborada especialmen-
te para servir aos que se dedicam ao estudo das idéias políticas, ela tem
na obra Geschichtliche Grundbegriffe (GG) sua realização talvez a mais
imponente. Com oito volumes (e mais outro de índice), essa obra to-
mou um quarto de século (1972-1997) para ser concluída. No entanto,
as raízes da proposta teórica de que é uma das materializações máxi-
mas nasceu bem antes, nos anos 30 do século passado, em um cenário
de aguda conturbação política.

Dos três idealizadores da GG, todos eles historiadores, apenas um con-


tinua vivo, Reinhart Koselleck, já octagenário1 . Otto Brunner morreu
em 1982, e Werner Conze, em 1986. Ambos participaram ativamente
do regime nazista, conciliando suas pesquisas com o cumprimento das
exigências da ideologia hitlerista. Brunner, renomado medievalista, é
autor de Land und Herrschaft (1939), obra em que tenta uma
reinterpretação da história da Baixa Idade Média germânica a partir
dos próprios conceitos do período, especialmente os de Land (terra) e
Herrschaft (domínio), e não de concepções do constitucionalismo mo-
derno. Projetar a oposição política-sociedade (ou res publicas e societas
civilis) na Idade Média foi, para Brunner, o anacronismo fatal em que
incorreram historiadores do século XIX. A fusão de Estado e sociedade
em uma terceira entidade (Volksgemeinschaft), superior aos dois, re-
presenta, de acordo com ele, o traço distintivo da história germânica,
sem o qual não há como interpretá-la corretamente. O livro de Brunner,
conquanto tratasse de um tema aparentemente distante da política dos
anos 30, representou um ataque à democracia liberal e suas categorias.
No plano político, em aparente conformidade com as conclusões de
seu trabalho, Brunner aderiu ao nacional-socialismo, que o acolheu de
braços abertos, favorecendo-lhe a carreira universitária2 .

Quanto a Werner Conze, sofreu influência de Günther Ipsen, colabora-


dor de Hans Freyer, sociólogo que pôs sua grande inteligência a serviço
do regime nacional-socialista. Ipsen estudava, não por acaso, a história

56 Cadernos de Sociologia e Política


dos camponeses germanos, que considerava os últimos depositários da
vitalidade do povo alemão. Daí sua aversão à modernidade, que os
condenava à extinção. Conze, que nunca fez segredo do quanto devia
ao mestre, serviu como oficial na Wehrmacht durante a guerra. Nas
décadas que se seguiram ao término do conflito, reconheceu o caráter
maligno do movimento em que se envolvera, e adotou um
conservadorismo compatível com os valores da democracia liberal.

Koselleck é o mais jovem dos editores da GG3 . A ele coube a iniciativa


da empreitada. Só veio a ingressar na vida adulta com a guerra já em
curso. Foi orientando de Conze em Heidelberg e, admirador de Carl
Schmitt, absorveu a idéia de que a política é palco de rivalidades inso-
lúveis. Martin Heidegger, que conheceu pessoalmente, também nele
deixou forte impressão, dando-lhe demonstrações de como rastrear os
sentidos de um conceito até suas raízes, a fim de encontrar diferentes
“estratos” semânticos. Já em 1963, o projeto do dicionário conceitual
amadurecera na mente de Koselleck: tanto foi assim que, nesse ano,
em uma reunião com Conze, Brunner e outros pesquisadores, come-
çou a trabalhar para concretizá-lo, sem que tivesse ainda a mais pálida
idéia do quanto de tempo e de trabalho a GG consumiria.

Em seus estudos, desde o princípio manifestou interesse pelo fenôme-


no da modernidade e de como rompeu dramaticamente com o passa-
do4 . Em Crítica e Crise, livro de 1954, Koselleck analisou a derrocada
da antiga ordem, fazendo remontar as origens ideológicas da então
nascente Guerra Fria ao Iluminismo: “O século XVIII é a antecâmara
da época atual, cuja tensão se acentuou progressivamente desde a Revo-
lução Francesa, que afetou o mundo inteiro, extensivamente, e todos
os homens, intensivamente” (Koselleck, 1999:10)5 .

A GG, com efeito, é uma obra que investiga fraturas, e seus autores,
pessoas que provaram do sentimento de viver momentos em que a
história parece atingir níveis máximos de tensão. A colaboração de
Brunner e Conze com o nazismo é, por mais que se queira deplorá-la,
insuficiente para impugnar a contribuição dos dois à ciência
historiográfica. Se houve menção a esses fatos de sua biografia, é por-
que ajudam a mostrar que a Begriffsgeschichte decorre, em parte apre-

Fórum dos Alunos do IUPERJ 57


ciável, de preocupações políticas características do século XX. Para
seus fundadores, talvez tenha exercido algum efeito de caráter
terapêutico; difícil saber com exatidão. Mas uma coisa, pelo menos, é
certa: a história conceitual representa notável esforço para tornar inte-
ligíveis as transformações que revolucionaram os conceitos com que
interpretamos a realidade. Pode, assim, contribuir à preservação do
próprio equilíbrio do homem moderno.

Do Conceito à História e Vice-Versa

Tratar a GG como simples obra de referência, ainda que excepcional-


mente bem documentada, seria, como observou Melvin Richter, faltar-
lhe com a justiça. É verdade que o cuidado com a reconstituição se-
mântica de conceitos sociopolíticos vai ao encontro da sólida tradição
germanófona nas áreas da filologia e do direito. Mas os fundamentos
teóricos que norteiam tanto a seleção dos conceitos como a maneira de
escrever-lhes a história fazem com que a GG seja algo bem diferente de
uma coleção de registros e definições. Na próxima seção, veremos
com mais detalhe em que, metodologicamente, a Begriffsgeschichte
rompe com a Geistesgeschichte de um Meinecke ou a history of ideas
de um Lovejoy. Por agora, é importante entender melhor a própria
Begriffsgeschichte, olhando com atenção para a obra que reúne seus
resultados.

A tese da GG consiste em dizer que houve, entre 1750 e 1850, uma


transformação radical no sentido dos conceitos sociopolíticos então
existentes, além do surgimento de outros conceitos até aí inconcebí-
veis. Esse intervalo no qual se deu a gestação da modernidade recebe a
designação de Sattelzeit. A GG examina o comportamento de 115 con-
ceitos antes, durante e depois do Sattelzeit, dando prioridade à cultura
germânica6 . Mas suas conclusões têm amplo alcance, uma vez que a
transição histórica em questão ocorreu um pouco por toda parte, na
esteira do Iluminismo, da Revolução Industrial e da Revolução France-
sa. Observo, todavia, que historiadores adeptos da história conceitual
na Holanda e na Espanha têm proposto em seus países marcos cronoló-
gicos diferentes para o Sattelzeit, que só coincidem parcialmente ou
não coincidem de todo com aqueles adotados na GG7 .

58 Cadernos de Sociologia e Política


Como estabelecer critérios para definir o que vem a ser um conceito,
de modo que este não se confunda com uma mera palavra? Segundo
Koselleck, um conceito é sempre mais substancial, em termos semân-
ticos, do que uma palavra. Ele encerra ambigüidades que denunciam a
presença de vários sentidos, uns disputando com os outros. E tal dispu-
ta jamais pode ser apaziguada, ao contrário do que ocorre com a pala-
vra que não é conceito: um indivíduo com domínio razoável das técni-
cas de expressão escrita em sua língua é capaz, quando assim o deseja,
de empregar uma palavra sem deixar margem para dúvidas semânticas.
Por outro lado, um conceito sociopolítico, de acordo com Koselleck,
nunca se encontra livre de ambigüidades. Mesmo o teórico mais rigo-
roso fracassará na tentativa de eliminá-las. Como exemplo da riqueza
semântica que caracteriza um conceito, Koselleck (1985:82) lista a “va-
riedade de objetos” que compõem o conceito de Estado: domínio, bur-
guesia, legislação, jurisdição, administração, tributação, exército etc.
Diante de uma simples palavra, é possível pensar isoladamente no objeto
a que ela se refere. Com o conceito, não: ele sempre condensa uma
multidão de objetos.

A Begriffsgeschichte distingue três famílias de conceitos, segundo o


grau de mudança que sofreram ao longo do tempo. Em primeiro lugar,
temos os conceitos originados da Antigüidade Clássica que mantive-
ram seu sentido mais ou menos constante desde então, apresentando
ainda hoje correspondência com a realidade. Koselleck fala, por exem-
plo, dos conceitos do pensamento constitucional de Aristóteles (creio
que tem em mente a teoria das formas de governo, exposta em diferen-
tes passagens da Política). Em segundo lugar, estão os conceitos que
atravessaram várias e profundas mutações no decorrer da história (soci-
edade civil, Estado etc.). Em terceiro, aqueles que surgiram só em
tempos recentes (comunismo, fascismo etc.). Um mesmo conceito, como
democracia, pode pertencer simultaneamente a essas três famílias
(ibidem).

Para cada um de seus conceitos no período do Sattelzeit, a GG tenta


provar pelo menos uma de quatro hipóteses, todas de fácil apelo à
intuição de quem lida com questões de filosofia política. Cada uma
dessas hipóteses, se confirmada, pode servir tanto à crítica como ao

Fórum dos Alunos do IUPERJ 59


elogio da modernidade. Mas em Koselleck não parece haver nem uma
coisa nem outra, pelo menos não na forma mais vulgar que as tomadas
de partido costumam assumir. É um ponto a favor da GG e que atesta
sua independência em relação à conjuntura histórica sombria em que
nasceu. É importante que as iniciativas inspiradas na Begriffsgeschichte
que começam a surgir fora das fronteiras do mundo alemão sigam o
exemplo e preservem esse distanciamento. A Begriffsgeschichte perde-
rá muito de seu interesse original, caso se queira transformá-la em
instrumento para intervir no sentido que devem ou não possuir os con-
ceitos do léxico social e político contemporâneo. Melhor seria mantê-
la assim, como um método sofisticado para a descrição dessas inter-
venções ao longo do tempo.

Agora, voltemos nossa atenção para as quatro hipóteses, seguindo de


perto a exposição de Richter (1995:37-38).

A primeira delas é a da temporalização (Verzeitlichung), e afirma que,


no período do Sattelzeit, os conceitos sociopolíticos foram incorpora-
dos por filosofias diversas da história, ganhando, com isso, uma di-
mensão teleológica. Sua validade passou a estar vinculada às diferentes
etapas de um suposta evolução da história nesta ou naquela direção.
Em vez de pairar acima do tempo, os conceitos no Sattelzeit expressa-
vam uma tensão entre um presente fadado à superação e um futuro
para o qual convergiria a sociedade.

A segunda hipótese é a da democratização (Demokratisierung), que,


como já diz o nome, tem por fim traduzir um quadro de ampla disse-
minação pela sociedade de conceitos até então restritos ao manuseio de
uma reduzida elite. Essa ampliação do círculo de contestação e debate
guarda relação com o fortalecimento de novos canais de comunicação
(os jornais, por exemplo) e a conseqüente expansão das audiências.

Em terceiro lugar, temos a ideologização (Ideologiesierbarkeit). Tal


hipótese supõe que os conceitos sociopolíticos adquiriram, durante o
Sattelzeit, um caráter mais universal e menos particular. Uma sutileza
gramatical ajuda a compreender melhor do que se trata. Conceitos que
antes eram expressos no plural sofrem uma transição para sua forma

60 Cadernos de Sociologia e Política


singular. As “liberdades” de um dado povo, por exemplo, cedem lugar
à “liberdade” de um sujeito que pode variar segundo as conveniências
do momento. Uma conseqüência vocabular dessa mudança reside no
aparecimento dos vários “ismos” que veiculam mensagens abstratas,
desligadas de situações concretas.

Por fim, a GG submete seus conceitos à hipótese da politização


(Politisierung), ou, como escreve Richter, do emprego de conceitos à
maneira de “armas entre classes adversárias”. Sem a metáfora, isso
equivale a dizer que muitos conceitos gestados no Sattelzeit ou por ele
reformulados encerravam conteúdo propagandístico, podendo facilmen-
te converter-se em slogans.

O teste dessas quatro hipóteses obrigou os colaboradores da GG a


compulsar uma gama extensa e variada de fontes, que não poderia
esgotar-se nos textos “canônicos” da filosofia política. O interesse pe-
los substratos culturais silenciosos, que não sobrevivem a seu tempo
mas que nele imprimem marca característica, é uma importante seme-
lhança entre a Begriffsgeschichte e o chamado contextualismo lingüístico.
Além do que de melhor se escreveu na filosofia e na teoria política, no
direito e na teologia, sem excluir a literatura, a GG também aproveita
fontes documentais originadas dos mais diversos grupos sociais e cir-
cunstâncias de redação: jornais, revistas, diários, panfletos, discursos
parlamentares, documentos oficiais, memórias, cartas e, dada a preo-
cupação com as palavras, dicionários de época, enciclopédias, tesauros
e livros de consulta em geral (idem:39).

Como se pode ver, são estreitos os laços que unem a história conceitual
ao contextualismo – ou pelo menos assim pensam os praticantes da
primeira. Na GG, a atenção dispensada às idéias não ocorre em detri-
mento do relevo histórico. A relação entre o conceito e a configuração
social em que foi gerado é objeto de estudo cuidadoso, sem que se
precise cair na armadilha marxista de reduzir o mundo do espírito a
simples emanação de uma infra-estrutura. Se o mundo age sobre a
idéia, esta, por sua vez, reage sobre o mundo, sem que nenhum dos
dois pólos tenha prioridade. Talvez limitadas em um primeiro momen-
to, por causa de condicionantes socioeconômicos, as idéias podem, na

Fórum dos Alunos do IUPERJ 61


medida em que abrem um leque até então ignorado de possibilidades
de ação, suplantar a lógica das relações sociais.

Mas antes de avançar mais na análise do intercâmbio entre a


Begriffsgeschichte e o contextualismo, acredito que seja importante
entender melhor aquilo que as separa de outras formas prestigiosas de
fazer a história das idéias políticas. Será o assunto da próxima seção.

A Crítica à History of Ideas e à Geistesgeschichte

É difícil mencionar uma só nova proposta historiográfica que não reti-


re boa parte de sua inspiração da crítica às metodologias que a antece-
deram. Pois assim ocorre com a Begriffsgeschichte e o contextualismo.
Os principais nomes associados a cada uma delas defendem-nas ata-
cando certas formas de escrever a história do pensamento político muito
em voga na primeira metade do século passado, as quais, apesar de
suas particularidades, têm em comum o fato de atribuir pouco peso às
características próprias de cada época.

Tome-se, para começar, a history of ideas de Arthur Lovejoy. No pri-


meiro capítulo de seu The Great Chain of Being (1936), Lovejoy bus-
cou consolidar aquilo que, segundo pensava, devem ser os fundamen-
tos da história das idéias políticas. Para esse autor, uma das principais
tarefas do especialista nesse campo consiste em decompor as grandes
doutrinas até que restem apenas suas unit-ideas, ou idéias básicas à
disposição do filósofo, como tijolos nas mãos de um construtor: “A
aparência de novidade – acreditava ele – de muitos sistemas se deve
unicamente à originalidade com que utilizam ou dispõem os velhos
elementos de que se aproveitam”. Mas as ambigüidades ou mesmo a
incompreensão em torno dessas unit-ideas deram ensejo às maiores
mixórdias, pensava Lovejoy. Por isso, propôs uma linha de investigação
chamada “semântica filosófica”, que recuperasse o sentido supostamente
genuíno das unit-ideas.

Uma crítica a Lovejoy partiu de Quentin Skinner, em artigo que publi-


cou em 1969 na revista History and Theory. Nessas páginas, Skinner
acusou a history of ideas de incorrer naquilo que chamou de “mitolo-

62 Cadernos de Sociologia e Política


gia das doutrinas”, isto é, a propensão de projetar sobre idéias passadas
uma coerência interna ou uma atualidade que simplesmente não possu-
em:

“O perigo dessa abordagem é que a doutrina a ser investigada logo é


hipostasiada numa entidade. [...] O resultado é que a história (story)
prontamente assume o tipo de linguagem adequada à descrição de
um organismo em desenvolvimento. O fato de que idéias pressupõem
agentes desaparece tão logo aquelas se preparam para falar em nome
de si mesmas” (Skinner, 2002:62).

Em outras palavras, fazer a história do pensamento político do modo


como queria Lovejoy implica desconsiderar todo contexto, seja ele
lingüístico ou social, rompendo com os laços que ligam uma doutrina
ao seu tempo e meio. E, segundo Skinner,

“[...] se quisermos entender uma determinada idéia, mesmo que num


tempo e lugar definidos, não podemos simplesmente nos concentrar,
à la Lovejoy, no estudo dos termos com que foi expressa. O mais
provável é que eles tenham sido empregados [...] com intenções vari-
adas e incompatíveis” (idem:84).

Existe ainda uma segunda visão historiográfica com a qual se bate,


mais particularmente, a Begriffsgeschichte. Refiro-me à
Geistesgeschichte, que tem em Hegel seu grande inspirador. Não cabe
entrar aqui em uma exposição sobre a filosofia da história de Hegel.
Para tanto, remeto ao livro cristalino de Jean Hypollite. Retenhamos
apenas esta citação, relativa aos anos que antecedem a publicação de A
Fenomenologia do Espírito (1807): “O que interessa ao nosso filósofo é
descobrir o espírito de uma religião, ou o espírito de um povo, é forjar
conceitos novos aptos a traduzir a vida histórica do homem, sua exis-
tência em um povo ou na história” (Hypollite, 1983:13). Essa intenção
se fará perceber na obra de Meinecke e Cassirer, para falar apenas de
dois nomes bastante conhecidos. O terreno em que pisam não é vizi-
nho ao da history of ideas. Sua ambição consistiu em apreender a uni-
dade das épocas que se sucedem umas às outras, e não de idéias toma-
das isoladamente. Mas como? Dedicando-se à compreensão da filoso-
fia dos maiores representantes da inteligência de cada uma dessas épo-
cas. Ou, nas palavras de Meinecke, considerando “as idéias que perso-
nalidades individuais advogam e elaboram como o retrato da história
viva” (apud Chabod, 1973).

Fórum dos Alunos do IUPERJ 63


Nas décadas de 50 e 60, essa abordagem hegeliana sofrerá os ataques
da Begriffsgechichte precisamente por não “relacionar as mudanças
conceituais à posição social dos filósofos ou de outros pensadores ou às
mudanças estruturais no Estado, na sociedade e na economia” (Richter,
1987). Ironicamente, crítica semelhante seria endereçada à
Begriffsgeschichte algumas décadas depois. Vejamos como foi isso.

O Diálogo entre a Begriffesgeschichte e o Contextualismo

É possível uma síntese dos métodos dessas duas escolas, por assim
dizer? A pergunta tem dado margem a muitos debates. A semelhança
das críticas que ambas dispararam contra suas rivais faz crer que con-
vergem naturalmente para o mesmo ponto, e que seria espontâneo o
entendimento mútuo entre elas. No entanto, quando deixadas a sós, a
Begriffsgeschichte e o contextualismo não se põem automaticamente
de acordo. A resistência, pelo que posso entender, é maior por parte
desta. Há mais de uma razão para explicar o porquê disso. De acordo
com Pocock, sempre cético no que diz respeito à possibilidade de uma
história dos conceitos, pode ser que a Begriffsgeschichte alemã e o
contextualismo representem, no fundo, fórmulas adequadas a diferen-
tes “culturas históricas”, sem que faça sentido promover a união das
duas:

“[o]s dois métodos de estudo são, cada um deles, destinados a reali-


dades históricas, culturais e nacionais específicas; [...] não se pode-
mos propor sua extensão às demais culturas históricas da Europa sem
termos conhecimento de que não se trata de uma panacéia, e de que
cada cultura tem, em verdade, seu próprio passado e seus próprios
modos de compreendê-lo [...]” (apud Koselleck, 2004).

A observação é inteligente, mas penso que não basta para encerrar o


assunto. O interesse que a Begriffsgeschichte tem suscitado em países
de tradição distante da alemã (Espanha, Finlândia, Itália, Brasil...) cons-
titui um primeiro indício de que é capaz de cruzar com sucesso frontei-
ras culturais. Prossigamos, pois, na análise da disputa.

O principal ataque feito à Begriffsgeschichte parte do princípio de que,


para acompanhar os diversos sentidos de um conceito através do tem-
po, é preciso idealizá-lo, isto é, de uma forma ou de outra arrancá-lo

64 Cadernos de Sociologia e Política


de seu universo próprio. Priorizar o conceito, e não o discurso, é tor-
nar relativa a importância dos jogos de linguagem, aos quais o
contextualismo atribui importância central. O problema é que, segun-
do José Ferrater Mora (1971), a teoria dos jogos de linguagem exige
alguns reparos. Para começar, explica o filósofo que

“[l]a expresíon ‘juegos de lenguage’ (o ‘juegos lingüísticos’) -


Sprachspielen, language-games – fue introducida por Wittgenstein en
sus cursos y recogida en sus Investigaciones filosóficas (Philosophische
Untersuchungen [1943]). En sustancia, consiste en afirmar que lo
más primario en el lenguaje no es la significación, sino el uso. [...]
Ahora bien, el lenguaje puede ser comparado a un juego; hay tantos
lenguajes como juegos de lenguaje. Por tanto, entender una palabra
en un lenguaje no es primariamente comprender su significación,
sino saber cómo funciona, o cómo se usa, dentro de uno de esos
“juegos”. [...] Como las palabras que usamos tienen una apariencia
uniforme cuando las leemos, tendemos a pensar que tiene una
significación uniforme. Pero con ello caemos en la trampa que nos
tiende la idea de la significación en cuanto supuesto elemento ideal
invariable en todo término. Cuando nos desprendemos de la citada
niebla, podemos comprender [...] la multiplicidad (para Wittgenstein,
prácticamente infinita) de los lenguajes – o juegos de lenguaje”.

Agora, atente-se para a crítica sutil de Ferrater Mora à teoria dos jogos
de linguagem:

“La noción wittgensteiniana de juego de lenguaje parece contradecir


una de las ideas-clave de dicho autor: la de que lo primario en un
término no es su significación, sino su uso. En efecto, a menos que
‘juego’ tenga un significado, parece que no haya posibilidad de rela-
cionar unos juegos de lenguaje con otros [...]” (Ferrater Mora, 1971).

O mais provável é que Koselleck subscrevesse integralmente as pala-


vras de Ferrater Mora, porque é exatamente por essa aparente brecha
no raciocínio de Wittgenstein que a Begriffsgechichte articula sua reação
às críticas do contextualismo, como fica claro quando Koselleck (2004)
diz que “o que é novo só pode ser compreendido pela primeira vez por
causa de algum traço recorrente, alguma referência a um significado
aceito, não questionado anteriormente”. É certo que nenhuma garantia
temos de que um indivíduo, quando emprega um conceito já em circu-
lação em seu meio, se preocupará com a preservação de seu sentido
original. O que se verifica é geralmente algo bem diferente: essa apro-

Fórum dos Alunos do IUPERJ 65


priação conceitual resulta, no mais das vezes, em mudança no conteú-
do do conceito. E precisamente isso interessa à Begriffsgeschichte, con-
tinua Koselleck(idem):

“A história dos conceitos pode ser reconstruída por meio do estudo


da recepção ou, mais radicalmente, da tradução dos conceitos que,
usados pela primeira vez no passado, são postos em uso pelas gera-
ções posteriores. Portanto, a singularidade história dos atos de fala,
que parecia tornar qualquer história dos conceitos impossível, na
verdade cria a necessidade de se reciclar as conceituações passadas. O
registro de como os seus usos foram subseqüentemente mantidos,
alterados ou transformados, pode ser chamado, apropriadamente, de
história dos conceitos”.

Outro importante fator que, além das divergências de ordem teórica,


tem contribuído para alargar o fosso entre a Begriffsgeschichte e o
contextualismo são os diferentes períodos históricos em que ambas até
aqui concentraram seus esforços. Os trabalhos mais conhecidos de
Skinner e Pocock – restrinjo-me aos dois por saber pouco sobre outros
autores que apliquem suas técnicas – privilegiam o princípio da histó-
ria moderna. A GG, como expliquei, preferiu eleger os anos entre
1750 e 1850, de modo que é impossível confrontar diretamente os
resultados de uma e outra escola. Mas sou levado a acreditar que a
Begriffsgeschichte pode iluminar de forma única épocas de comoção
histórica, e particularmente a do Sattelzeit. É dificil, por isso, pôr-se de
acordo com Pocock, o qual acredita que a utilidade de uma obra como
a GG é, no máximo, secundária. Melhor seria, entendo eu, questionar
um outro ponto, a saber: a validade de aplicar os métodos da história
conceitual a qualquer outro período que não seja o do Sattelzeit. Se a
Begriffsgeschichte tem um objeto definido, este parece ser menos a
cultura germânica do que um certo intervalo histórico.

***

Quanto às restrições geográficas e culturais da GG, de maneira nenhu-


ma elas fazem do trabalho realizado apenas uma curiosidade para pes-
quisadores de outros países. Os verbetes da GG que até o momento
foram traduzidos para o inglês (ainda que em versão abreviada) forne-
cem valiosos painéis da história dos conceitos sociopolíticos, úteis a
quem quer que transite pela civilização ocidental. E, dentro de pouco
tempo, talvez a Begriffsgeschichte alcance também outras civilizações.

66 Cadernos de Sociologia e Política


Afinal, de dois ou três séculos para cá praticamente todas as regiões do
planeta absorveram intensamente os conceitos sociopolíticos que, de
início, cruzaram apenas o Atlântico. Acompanhar como foram recebi-
dos em outras partes do mundo é uma tarefa que pode revestir-se de
enorme importância para a compreensão de fenômenos presentes –
meta que está na ordem do dia para a história conceitual desde seus
primórdios, como assinalei na primeira seção. Um caso promissor a
ser estudado é o chinês, como lembrou Melvin Richter em sua fala de
abertura na VII Conferência Internacional sobre a História dos Concei-
tos. Para ilustrar sua proposta, Richter leu trechos de um artigo de
jornal que tentava, na China do final do século XIX, traduzir para seus
leitores o sentido do conceito ocidental de liberdade, que buscava en-
tão aclimatar-se por lá. Richter lembrou também que a grande inspira-
ção de Sun Yat-sen, um dos fundadores da China moderna, foi Rousseau.

Resta-me concluir dizendo que se torna crescente, pelo mundo afora, o


número de pesquisadores mobilizados em torno da história conceitual.
É sinal de que em poucos anos haverá pesquisas que permitam avaliar
se, de fato, é possível aplicar com êxito a história conceitual no âmbito
de outras culturas nacionais ou civilizações.

(Recebido para publicação em outubro de 2005)

Fórum dos Alunos do IUPERJ 67


Notas

1. Extraí algumas das informações biográficas dos parágrafos seguintes de


Richter (1995). Devo dizer que não tive acesso direto à GG, apenas a
versões abreviadas de seus artigos, publicadas em inglês.

2. Sobre a tese de Brunner e as relações deste com o regime e a ideologia


nazistas, é imprescindível recorrer à equilibrada análise de seus tradutores
para o inglês, Howard Kaminsky e James Van Horn Melton (Brunner,
1984:XIII-LXII).

3. Para este sucinto retrato intelectual de Koselleck, baseio-me na introdução


de um de seus tradutores para o inglês, Keith Tribe, acrescida a Futures Past
(1985).

4. Koselleck (2002:154-169) situa a modernidade (Neuzeit) no século XVIII.


É só aí, diz ele, que percebemos com nitidez uma plena tomada de consciência
das características do conceito de modernidade, como a convicção de que
o futuro é um campo aberto à ação do homem.

5. É significativo que Koselleck cite, ainda na introdução, o estudioso das


religiões Ferdinand Christian Baur. Ele foi um inspirador dos filósofos que,
no século XX, interpretaram as ideologias modernas como sintoma de
profunda desordem espiritual. Eric Voegelin, importante pesquisador nesse
campo, destaca o nome de Baur em sua autobiografia intelectual: “I should
like to mention the great work by Ferdinand Christian Baur on Die christliche
Gnosis; oder, die christliche Religionsphilosophie in ihrer geschictlichen
Entwicklung of 1835. Baur unfolded the history of Gnosticism from the
original Gnosis of antiquity, through the Middle Ages, right into the
philosophy of religion of Jakob Böhme, Schelling, Schleiermacher, and
Hegel” (Voegelin, 1989:66).

6. Richter (1987) lista todos os 115 conceitos, tal como aparecem na GG, em
ordem alfabética. Há um quê de irônico nisto, que uma obra concebida
para examinar criticamente o Século das Luzes se aproveite desta subversiva
inovação do enciclopedismo, a ordenação alfabética dos assuntos.

7. Ver as comunicações ainda não publicadas que apresentaram Wyger Velema


(Universidade de Amsterdã) e Javier Fernández Sebastián (Universidad del
País Vasco) à VII Conferência Internacional sobre a História dos Conceitos,
em julho passado, no Rio de Janeiro.

68 Cadernos de Sociologia e Política


Referências Bibliográficas
BRUNNER, Otto. (1984), Land and Lordship. Structures of Governance
in Medieval Austria. Philadelphia, University of Pennsylvania Press.

CHABOD, Federico. (1941), “Notice sur Friedrich Meinecke”, in


Friedrich Meinecke, L’Histoire de la Raison d’État dans les Temps
Modernes. Genève, Droz.

FERRATER MORA, José. (1971), Diccionario de Filosofia. Buenos


Aires, Editorial Sudamericana.

HYPOLLITE, Jean. (1983), La Philosophie de l’Histoire de Hegel.


Paris, Éditions du Seuil.

KOSELLECK, Reinhart. (1985), Futures Past. London, MIT Press.

___. (1999) [1954], Crítica e Crise. Rio de Janeiro, UERJ/Contraponto.

___. (2002), The Practice of Conceptual History. Stanford, Stanford


University Press.

___ et alii. (2004), Debate em torno da História Conceitual. Tradução,


ainda provisória, de Otavio Leonídio e Janaína Oliveira, que circulou
internamente em curso ministrado pelo prof. Marcelo Gantus Jas-
min no Iuperj.

LOVEJOY, Arthur. (1964) [1936], The Great Chain of Being. Cam-


bridge/London, Harvard University Press.

RICHTER, Melvin. (1987), “Begriffsgeschichte and the History of Ideas”.


Journal of the History of Ideas, vol. 48, pp. 247-263.

___. (1995), The History of Political and Social Concepts. New York/
Oxford, Oxford University Press.

SKINNER, Quentin. (2002), “Meaning and Understanding in the His-


tory of Ideas”, in Visions of Politics. Cambridge/New York, Cam-
bridge University Press, vol. 1.

VOEGELIN, Eric. (1989), Autobiographical Reflections. Baton Rouge,


Louisiana University Press.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 69


A Crueldade, a Técnica Moderna
e as faces do Terrorismo

MARCIAL A. GARCIA SUAREZ*

Resumo

A crueldade, a técnica moderna e o terrorismo adquiriram contornos


expressivos em nossos dias. Entenderei a crueldade de forma a que
esta se apresente como uma ação que ultrapassa o mero exercício da
dor sobre o outro; ficarei, assim, sob os cuidados de Montaigne para
quem “pareceria cruéis todos os atos que vão além da simples morte”.
A técnica moderna, sendo compreendida por alguns pensadores
emblemáticos do século XX, como Martin Heidegger e mais
recentemente Paul Virilio, permite uma aproximação aos elementos
mais íntimos desta. Sobre o terrorismo e de como este pode variar de
acordo com as circunstâncias e o período de tempo, proponho uma
análise da idéia acerca do mesmo e de suas possíveis definições,
tentando encontrar uma linha única que as una, neste caso, à crueldade.
Tentarei propor um percurso através da crueldade, do terrorismo e
da técnica moderna com o intuito de alcançar nossos dias e pensar
sobre a relação desses conceitos.

Palavras-chave: terrorismo; técnica moderna; crueldade

* Doutorando em ciência política do IUPERJ. Email: msuarez@iuperj.br.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 71


[...] Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia;
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncepes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu é que é vil e errôneo nesta terra?(...)
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
(Poema em linha reta, Fernando Pessoa)

Da Crueldade e da Política –A Morte Violenta


Um pensador para nos guiar na questão do pensamento sobre a
possibilidade da morte violenta e o medo que esta causa é Tomas
Hobbes (1558-1679). Para o autor, tal fim deveria ser evitado a
qualquer custo, chegando mesmo a imaginar a criação de um Ser
superior capaz de reger as forças descontroladas e violentas dos
homens.

Hobbes no seu estudo De Cive (1642) parte da premissa teórica que


questiona a posição do teórico clássico Aristóteles, na medida em
que considera a falibilidade da proposição que estima o Homem como
Zoon Politikon, para Hobbes, este axioma, “[...] embora acolhido
pela maior parte, é contudo sem dúvida falso – um erro que procede
de considerarmos a natureza humana muito superficialmente”
(Hobbes, 1998:26).

O homem possuiria uma propensão à violência, dada pela condição


peculiar em que se encontra no mundo. O homem hobbesiano tem
como uma de suas características principais a necessidade inexorável
de maximizar a satisfação de suas necessidades. Deve-se considerar o
fato de Hobbes considerar que o homem está em igualdade de
condições perante os outros e que esta igualdade se justifica pela
proposição de que todo o homem possui o artifício da violência, ou
seja, “A causa do medo recíproco consiste, em parte, na igualdade
natural dos homens, em parte na sua mútua vontade de se ferirem –

72 Cadernos de Sociologia e Política


que decorre que nem podemos esperar dos outros, nem prometer a
nós mesmos, a menor segurança” (idem:29).

Além de estar vivo, o homem tem como desejo imanente manter-se


vivo e, partindo desse pressuposto, quaisquer meios que este use para
manter-se vivo são considerados legítimos e justos, “pois todo homem
é desejoso do que é bom para ele, e foge do que é mau, mas acima de
tudo do maior entre os males naturais, que é a morte; e isso ele faz
por um certo impulso da natureza, com tanta certeza como uma pedra
cai” (idem:31).

Hobbes considera o homem em seu estado de natureza, estado esse


no qual o homem possui juízo sobre as suas ações e liberdade para
executá-las. Entretanto, se cada homem possui propriedade de justiça,
isto representa um paradoxo à manutenção da própria existência
humana, “pois, embora qualquer homem possa dizer, de qualquer
coisa, isto é meu”, não poderá porém desfrutar dela, porque seu
vizinho, tendo igual direito e igual poder, irá pretender que é dele
essa mesma coisa” (idem:33). A partir deste ponto, Hobbes propõe a
necessária negociação entre os indivíduos para que através da reta
razão seja possível estimar uma condição ideal, na qual todos sejam
capazes de ao mesmo tempo em que buscam a satisfação de suas
necessidades não entrem em conflito com outros indivíduos, este
projeto racional é o fundamento do contrato social em Hobbes.

Cabe salientar que esse racionalismo hobbesiano já traz consigo as


premissas fundamentais da razão moderna;
“Razão, nesse sentido, nada mais é do que cálculo, isto é, adição e
subtração, das conseqüências de nomes gerais estabelecidos para
marcar e significar nossos pensamentos. Afirmo marcar quando
calculamos para nós próprios, e significar quando demonstramos ou
aprovamos nossos cálculos para outros homens” (idem:39).

Para que exista a possibilidade de uma sociedade sobreviver, deve-se


antes de tudo encontrar um meio de disciplinar a violência, deve-se
criar uma instância na qual a violência ou o poder de execução de
atos violentos seja tornado impessoal. Digo impessoal, seguindo a
argumentação de Hobbes sobre os atos justos e injustos, em que o
autor afirma que é injusto um súdito se voltar contra o soberano,

Fórum dos Alunos do IUPERJ 73


porque este tem em seu fundamento a própria concessão do súdito;
isto equivaleria a dizer que o súdito estaria indo contra uma das leis
naturais, qual seja a de não causar mal a si próprio. Por força dessa
argumentação, constato que o poder se torna impessoal, na medida
em que não se pode reconhecer todos os súditos um a um olhando
apenas para o soberano. Este representa a unidade do poder instituído
e detentor dos meios de violência, mas a vontade individual dos súditos
não penetra nessa instância.

Através dessa análise, podemos considerar que Hobbes, ao propor


essa ordenação política, propõe também um exercício racional da
violência, ou seja, a intervenção racional sobre os meios de violência.
A separação da vontade individual em relação à força necessária para
atos violentos. Poderíamos contra-argumentar que o soberano possui
uma vontade pessoal, contudo, cabe deixar claro que nos referimos
às relações de força, se nos detivéssemos na pessoalidade de cada
soberano, pouca coisa nos traria de útil tal raciocínio.

O pressuposto de uma racionalização sobre a violência, analisada a


partir da teoria de Hobbes, permite-nos considerar que não existe
uma real preocupação na abolição da violência, e sim na manutenção
desta de forma privilegiada e direcionada através da reta razão a um
fim proposto como objetivo primordial do contrato entre os
indivíduos, a saber – a paz.

Essa paz, resultante da apropriação dos meios de violência pelo


soberano, torna as relações entre os homens mais seguras, porque
cada um sabe que o braço do Estado pode alcançar qualquer um.
Então pode-se dizer que o medo continua sendo o elemento que
mantém a ordem social estável, seguindo os pressupostos de Hobbes.
O quanto é necessário de violência para alcançar esse estado de coisas?
Toda a que for possível para que não haja dúvidas sobre a capacidade
de execução das ações por parte do soberano.

Pode-se a partir do que foi exposto até o momento analisar em Hobbes


dois pontos específicos: a) a violência é um pressuposto que permanece
próximo ao homem; b) que esta deve ser controlada e direcionada.

74 Cadernos de Sociologia e Política


Através desta breve incursão ao pensador inglês percebe-se como a
crueldade pode revestir-se de formas mais civilizadas, o que representa
a economia da violência1 senão a crueldade travestida de civilidade.
Não se hesita em usar a violência até o limite do necessário para
manter-se a ordem e impedir que os homens retornem ao estado de
natureza. A violência acompanha a humanidade, e esta premissa é
basilar para que a crueldade encontre seus espaços. Este parágrafo já
é suficiente para que se ponha tudo a perder, afirmo: o uso da violência
até o limite do necessário. Qual limite é esse? Quando parar? Aqui,
começo a penetrar o campo da crueldade. Não existe regra para o
uso da violência, como afirmar que em determinado ponto a violência
não é mais necessária e que o objeto sobre o qual a violência se abate
encontrará seu estado de equilíbrio novamente (uma ação é violenta
quando rompe o equilíbrio entre coisas).

Na teoria política hobbesiana, a violência e a capacidade de exercício


desta pelos homens são ultrapassadas por um ser maior, que pode
exerce-la na forma da crueldade, pois um ser de tal magnitude
(Soberano) nunca terá a razão e a medida individual, e sim condizente
à sua envergadura. Como analisar a violência perpetrada pelos Estados,
senão apenas pela luz da crueldade?

A Amplitude da Escala como Referência para a Crueldade


Tomei impulso em Hobbes para compreender a violência
inerentemente humana e como a crueldade pode ser extraída do
pressuposto hobbesiano do Soberano, este fato se impõe simplesmente
porque esbarramos na incapacidade de equalizar as escalas de
violência, no que tange ao indivíduo e ao Soberano. O quantum de
violência gerado pelo Soberano (irei me referir de agora em diante à
idéia do Estado-Nação Moderno) que é para nós a referência principal
que fundamenta a noção de crueldade que desejei tratar inicialmente.

A condição de Guerra entre Estados Modernos2 talvez nos permita


ter uma visão clara do disparate de violência que pode ser gerado por
estes em relação aos indivíduos singulares. Recorri a textos que tratam
de impressões e relatos realizados sobre a Alemanha derrotada na
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), imagens de cidades devastadas

Fórum dos Alunos do IUPERJ 75


por ataques aéreos, comuns ao fim da guerra quando a Luftwaffe já
não mais era capaz de oferecer resistência contra as investidas aliadas.
Textos como os de Dagerman (1998), Winter (1998) ou ainda Sebald
(2004) imprimem e tornam quase impensável uma relativização dos
eventos ocorridos e da ferocidade da destruição ocorrida durante os
anos de guerra.

Existem duas passagens muito interessantes do texto de Sebald, que


se tornam pertinentes ao nosso intento. A primeira diz respeito ao
comandante-em-chefe do Comando de Bombardeio, Sir Arthur Harris,
o qual defendia e implementava uma estratégia de ataque
indiscriminado sobre a população civil bem como os alvos militares,
ou de outra maneira, a população civil passou a ser considerada um
alvo militar. A violência neste sentido não era uma questão de ordem
moral, mas sim uma de se efetivar e se alcançar um objetivo, que era
o de reduzir ao mínimo possível a moral da população.

A outra imagem do texto de Sebald refere-se ao relato feito pela


rádio BBC de um dos primeiros ataques aéreos transmitidos ao vivo,
direto dos aviões que sobrevoavam Berlim. Os relatos apresentados
por Sebald fazem menção de uma tripulação que realiza sua tarefa de
soltar sua carga, e aprecia o espetáculo pirotécnico desencadeado
pela realização de sua tarefa. A crueldade aqui aparece de forma sutil,
quase imperceptível, pois novamente devemos retornar ao pressuposto
de que a crueldade como um exercício de violência, elevada a potências
impensáveis, escapa da apreciação moral singular de um indivíduo, e
aqui talvez encontremos o silêncio. Mas sobre qual silêncio estou me
referindo, talvez aquele de que se trata quando qualquer linguagem
se torna incapaz de exprimir a realidade empírica.

Estendendo a análise sobre tal silêncio, poderíamos abordar o capítulo


5 intitulado The Art of Sinking, de Stig Dagerman, no qual temos a
descrição de como a noção de moralidade se torna relativa quando
os parâmetros se dissolvem ante a agonia da morte. Deprecie-se um
pouco e vá-se além. A crueldade novamente aqui pode ser pensada
como a dissolução do ponto em que não existe retorno ou mesmo a
ausência deste ponto que em algum momento foi perdido. A
sobrevivência para as populações do pós-segunda guerra, para aqueles

76 Cadernos de Sociologia e Política


países que foram mais devastados amplia ou de outra maneira
poderíamos dizer, relativiza as margens do permitido, do aceitável e
nesta esteira encontramos a crueldade.

Ao encerrar este pequeno percurso sobre esses autores encontramos


em Jay Winter uma interessante passagem que retorna a Primeira
Grande Guerra (1914-1918). Tal interesse, se expressa pelo momento
histórico no qual os mortos de guerra franceses chegavam ao país e
isto havia criado um sério problema logístico de espaço físico para os
sepultamentos (caso chegassem ao país de origem). Novamente
gostaria de retomar que a crueldade aqui não se permite analisar por
uma avaliação pura e simples, o que dizer de um fato como este? Do
que realmente tratamos ao nos referir a um exemplo desses?
Simplesmente tratamos de uma questão técnica, e não valorativa.
Parece que, quando a violência aumenta sua escala ao impensável
através da técnica moderna o silêncio também aumenta.

Violência e Técnica Moderna


Martin Heidegger retorna a cena intelectual na década de 1950
apresentando um texto singular, dirigido à Academia Bávara de Belas
Artes, pretendemos aqui apenas tangenciar o texto em alguns pontos
que tornarão claras a nossa perspectiva sobre a técnica moderna3.

Por onde nos perdemos? Pergunta Heidegger em seu texto “A Questão


da Técnica” (1953). Se a busca é pela essência da técnica, o que o
princípio da causalidade pode trazer a compreensão daquilo desejado?
Ao passar pelo princípio das causalidades, adentramos a um dos modos
da técnica. Aquilo que a define como tal, o produzir, a forma pela
qual a técnica traz à luz tudo que reside em potência; “o produzir
leva do ocultamento para o descobrimento. O trazer à frente somente
se dá na medida em que algo oculto chega ao desocultamento. Este
surgir repousa e vibra naquilo que denominamos o desabrigar
‘Entbergen’” (Heidegger, 1997:53).

Retorna-se àquilo que possibilita questionar a essência da técnica, ou


seja, o modo pelo qual o desocultamento se realiza. A visão do des-
abrigar não é apenas a técnica meramente como um meio, mas sim

Fórum dos Alunos do IUPERJ 77


traz consigo as possibilidades deste desocultamento que passam pela
técnica.

Ao abandonar a idéia de uma técnica orientada a fins, começa-se a


desocultar o modo pelo qual a técnica moderna se apresenta. “Diz-se
que a Técnica Moderna é algo totalmente incomparável com todas
as outras técnicas anteriores, porque ela repousa sobre a moderna
ciência exata da natureza” (idem:57).

Se essa definição de técnica moderna respondesse a questão sobre a


essência da técnica, o erro subtrairia a possibilidade de análise. A
razão pela qual Heidegger aponta esse perigo está no fato de que, ao
levar-se em consideração essa noção de técnica moderna, penetra-se
em uma relação causal, e não se analisa o modo pelo qual o saber
empírico, que é base das ciências exatas, possibilita sua aproximação
ao mundo. “O que é a Técnica Moderna? Também ela é um desabrigar.
Somente quando deixamos repousar o olhar sobre este traço
fundamental, mostrar-se-á a nós a novidade ‘Neuartige’ da Técnica
Moderna” (ibidem).

Aquilo que é característico da técnica moderna aparece como sendo


a forma pela qual esta requer a natureza. O desabrigar técnico traz
para seu domínio a capacidade de desdobrar as forças em diversos
elementos, abstrair das condições naturais toda a capacidade de
armazenamento. Segundo o autor: “O desabrigar imperante na
Técnica Moderna é um desafiar ‘Herausfordern’ que estabelece para
a natureza a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e
armazenada enquanto tal” (ibidem).

O desabrigar desafiante toma para si as possibilidades de exploração,


de transformação, de armazenamento e de distribuição das forças
que potencialmente jaziam na natureza.

O homem em seus modos de relação com a técnica toma parte nesse


desabrigar, a partir do homem a técnica toma movimento. Deve-se,
entretanto, compreender o modo pelo qual esta representação se dá:
o homem também é requerido para o domínio da técnica, ou seja, a
técnica moderna toma movimento, e este movimento se desdobra
sobre o homem.

78 Cadernos de Sociologia e Política


Ao considerar-se a armação como a definição para o modo reinante
na essência da técnica, deve-se colocar que esta não possui em si nada
de técnico, mais uma vez aqui a distinção da análise instrumental
deve ser lembrada. “Na armação acontece o descobrimento, segundo
o qual o trabalho da Técnica Moderna desabriga o real enquanto
subsistência. Ela não é, por isso, nem um fazer humano nem um mero
meio no seio de tal fazer” (idem:67).

O pensar técnico antes de se condensar em realização traz em si o


espaço das possibilidades. A emergência4 pressupõe os “modos de ser
técnicos; A moderna teoria física da natureza é a preparação, não da
técnica, mas da essência da Técnica Moderna. Pois o recolher que
desafia no desabrigar requerente já impera na física, embora
propriamente ainda não se manifeste nela” (idem:69).

O dominar que pretensamente o homem se outorga não tem em si


apenas a força de requerer a natureza como subsistência neste
caminho. O desabrigar técnico ordena-se através da armação
requerendo a natureza como o espaço onde se pode extrair
possibilidades de realização para a própria técnica moderna, e neste
ponto Heidegger olha e avisa sobre o perigo da técnica:
“A ameaça aos homens não vem primeiramente das máquinas e
aparelhos da técnica cujo efeito pode causar a morte. A autêntica
ameaça já atacou o homem em sua essência. O domínio da armação
ameaça com a possibilidade de que a entrada num desabrigar mais
originário possa estar impedida para o homem, como também o
homem poderá estar impedido de perceber o apelo de uma verdade
mais originária” (idem:81).

Heidegger penetra a questão da técnica e nos permite considerar que


a mesma não deve ser pensada apenas voltando nosso questionamento
em uma única direção. Não devemos apenas perguntar sobre os
instrumentos, se não compreendemos aquilo que está inserido no
princípio que fundamenta a técnica moderna. O domínio da natureza
e a disposição desta como outra em relação ao homem torna-se, para
a técnica moderna, seu modo principal de propor as formas de relações
e de exploração do ambiente sobre a qual se desdobra.

A técnica moderna explorou no século XX as potencialidades na


tentativa da humanidade em desenvolver seu domínio sobre o seu

Fórum dos Alunos do IUPERJ 79


ambiente, e a violência de maneira imanente entra nesse projeto, talvez
não como o elemento principal, mas sem dúvida alguma que a
associação entre técnica moderna e violência explorou novos limites
para a definição do que é crueldade. Pode-se pensar sobre os campos
de concentração nazistas, que traduziam em si a ausência de uma
regra moral específica, corporificavam a inexorável realização de um
projeto amparado e realizado tecnicamente. Registro, cálculo,
procedimento, domínio são características da técnica moderna, mas
ela não se mostra por estes fatos, mas tais acontecimentos somente
são possíveis através dela. Bombardeios aéreos nos quais os pilotos
encontravam-se a 10.000 pés de altitude largando bombas de 500
kg, não permitem a experimentação do impacto, da destruição mais
feroz. A técnica moderna introduz uma distância que torna a crueldade
insípida, inodora, incolor. Talvez espetacular como pudemos ver nos
relatos dos pilotos da Real Força Aérea Britânica durante um dos
bombardeios sobre Berlim.

Entre alguns autores que poderíamos trazer à discussão está Paul


Virilio5, que promove, até de certa forma iconoclasta, uma análise da
técnica na contemporaneidade. Virilio tem como substrato de seu
pensamento a sua própria experiência de vida, que foi marcada
fortemente pela Segunda Guerra Mundial. Algumas descrições de
suas visões de infância dão mensagens daquilo que se traduz neste
estudo como técnica moderna. Virilio cita uma sociedade dromológica,
ou seja, uma sociedade da velocidade, do deslocamento, do
movimento. Fala também de uma esthétique de la disparition, ou seja,
uma estética do desaparecimento que emerge como resultado do
extremo potencial da implementação técnico-bélica utilizada no
período da guerra. A velocidade e o impacto desta racionalidade
técnica que se realiza conjuntamente com a violência intrínseca aos
conflitos exercem sobre Virilio uma impressão indelével que o autor
parece carregar consigo em suas análises sobre a tecnologia.

O autor fala de que a realidade desaparece ante o impacto da técnica


bélica, vidas, bairros, tudo aquilo que se encontra em um instante, no
próximo não está mais. A técnica moderna oferece-nos esse tipo de
espetáculo, a velocidade das ações e o grau elevado das transformações

80 Cadernos de Sociologia e Política


que pode inserir no ambiente, não possuem paralelo na história
humana. Em seu estudo Velocidade e Política (1977), Virilio apresenta
algumas características da emergência de uma sociedade pautada na
velocidade e no deslocamento. Para tanto, discute através de sua
dromologia de que forma a sociedade ocidental se estruturou sob
esse pressuposto. A Inglaterra é para Virilio uma das representantes
dessa nova lógica, que na modernidade têm seu maior alcance.
Segundo ele:
“Com a fleet in being, a Inglaterra concentra seus esforços na inovação
técnica no campo dos transportes e, mais precisamente, na fábricação
de engenhos rápidos. É disso que ela tira diretamente sua
superioridade econômica e, sobretudo, a orientação que fez dela a
primeira grande nação industrial, modelo para todas as outras,
criando ‘este sentimento de superioridade técnica confundindo-se
com o sentimento de uma superioridade geral’” (Virilio, 1996:56).

A presença não vista que caracteriza a lógica de mobilização da frota


marítima inglesa, a partir do século XVII e que se manteve durante a
revolução industrial, representa para Virilio justamente a
contraposição do pressuposto de uma revolução industrial, o autor
sugere que o que ocorreu foi uma revolução dromológica.
“O homem ocidental pareceu superior e dominante apesar de uma
demografia pouco numerosa porque pareceu mais rápido. No
genocídio colonial ou no etnocídio, ele é o sobrevivente porque é
efetivamente o sobre-vivo – VIF, a palavra francesa para vivo
concentra pelo menos três significados: prontidão, velocidade
(vitesse, em francês) equiparada à Violência (que vem de força viva,
aresta viva, etc.), à própria vida (estar vivo é estar em vida!)”
(idem:57).

A velocidade surge para o autor como um elemento central,


principalmente quando é considerada a Primeira Guerra Mundial
(1914-1918). A velocidade e a amplitude dos confrontos ocorridos
nesse conflito apresentaram ao mundo pela primeira vez a
possibilidade do alcance das implementações técnicas atingidas nesse
período. O volume de gastos de material bélico consumido no conflito
não tinha precedente ao longo da história das guerras.

“A guerra de desgaste voluntária era, simultaneamente, a primeira


guerra de desaparecimento e consumo. Desaparecimento, no local,
dos homens, dos materiais, das cidades, das paisagens; e consumo

Fórum dos Alunos do IUPERJ 81


desenfreado de munições, de material, de mão-de-obra. Pouco a
pouco, os elegantes planos de engajamento ou as ordens de ataque
cedem lugar a novas considerações: consumo de obuses por metro
corrido de trincheira, programa de produção, orçamento e avalização
de estoques” (ibidem).

Paul Virilio apresenta-se como uma criança da guerra, que viu o que
ela pode fazer e qual o seu alcance. O autor fala da Blitz Krieg6 alemã
utilizada durante a Segunda Guerra Mundial e nos diz de forma clara
como essa experiência representou para ele a forma pela qual a guerra
entrou em seu quintal. A guerra da surpresa, da mídia, no mesmo
período as informações não possuíam fronteiras e nem tampouco
limites. De maneira fragmentada, muitas vezes Virilio apresenta suas
análises sobre a técnica moderna. “O avião toca o solo, o solo abre o
avião em quatro, mais delicadamente que o gourmet descasca seu
figo [...]. Com essa lentidão de câmera lenta, o choque mais violento,
o acidente mais mortífero nos parecem tão suaves quanto uma sucessão
de carícias”, assim o autor cita Paul Morand7 e expõe a ambigüidade
da técnica cinematográfica, que é capaz de decompor um desastre
em uma série de movimentos suaves. A questão que desperta o
interesse acerca deste exemplo é que a noção de desastre fica ligada a
velocidade da ação. Pode-se considerar o mesmo exemplo ao
imaginarmos uma carícia e um tapa no rosto; excluída a intenção, o
que resta é a velocidade.
“PASSADO, PRESENTE, FUTURO – essa antiga tripartição da
duração cede lugar a imediatez de uma telepresença que se assemelha
a um novo tipo de RELEVO [...]. Relevo do acontecimento e não de
uma coisa, em que a quarta dimensão temporal muitas vezes toma o
lugar da terceira dimensão: esse volume material que perde, assim,
seu valor geométrico de ‘presença efetiva’ em proveito de um volume
audiovisual cuja evidente ‘telepresença’ leva de vencida a natureza
dos fatos” (Virilio, 1999:115).

Da Crueldade, da Técnica Moderna e as Faces do Terrorismo


Quando pensamos na definição de terror ou terrorismo, devemos
dar atenção aos dois elementos que constituem as duas definições: o
primeiro pode ser entendido como uma condição de vida ou da
precariedade sob a qual esta vida se encontra, o sentimento de ameaça;
o segundo, por outro lado, pode ser compreendido como uma tática,

82 Cadernos de Sociologia e Política


um conjunto de métodos – violentos na maioria dos casos – que
pretende impor uma certa condição de terror à um certo grupo de
indivíduos. Veja-se que, ao nos aproximarmos desses conceitos a partir
de um olhar técnico, podemos abordá-los como referência para
diversos agentes, ou seja, terror e terrorismo podem ser promovidos
por Estados contra sua própria população, contra populações
estrangeiras, por grupos nacionalistas que desejam o poder político,
grupos messiânicos que desejam a reestruturação de um Estado
religioso, e outras tantas formas que se pode imaginar.

A eficiência do terrorismo contemporâneo, e nesse sentido gostaria


de focar principalmente nos grupos que utilizam essa tática, que não
é nova no Oriente Médio, desde a morte do profeta em 632 atos de
auto-sacrifício, foi perpetrada por ambos os lados do islamismo –
xiitas e sunitas8. Ao nos inscrevermos em uma abordagem histórica
sobre essas organizações, somos levados a penetrar em suas raízes
religiosas e políticas. Bernard Lewis (2003) trata pontualmente dessa
origem. Essa contenda entre Ocidente e Oriente tem longas raízes
que podem ser encontradas desde a primeira Cruzada no século XI.
Entretanto, começarei a trajetória no século XIV.

No ano de 1332, Filipe VI da França preparava uma nova cruzada


para retomar os lugares santos da cristandade, quando um padre
alemão chamado Brocardo escreveu um tratado intitulado Directorium
ad Passagium Faciendum, oferecendo ao rei um alerta aos perigos do
Oriente. Através dessa descrição, Lewis oferece-nos uma primeira
aproximação aos assassinos10. Segundo Brocardo, e a partir de Lewis,
os assassinos são homicidas secretos e contratados de um tipo
especialmente hábil e perigoso. Sobre essa designação, a palavra
espalha-se na Europa do século XIV. Entretanto, perde seu alcance e
sua especificidade original. Segundo Lewis, a palavra aparece
primeiramente nas crônicas das cruzadas, indicando o nome de um
estranho grupo de sectários muçulmanos, coordenados por uma figura
misteriosa conhecido como Velho da Montanha. É interessante expor
uma mensagem que um emissário traz para Frederico Barba-Roxa
em 1175: “Observe que nos confins de Damasco, da Antioquia e
Alepo, há certa raça de sarracenos nas montanhas, que em seu próprio

Fórum dos Alunos do IUPERJ 83


vocabulário são chamados Heyssessini e em romano signors de
montana” (Lewis, 2003:12).

Lewis propõe quatro pontos principais acerca do lugar dos assassinos


na história do islã: a sua existência foi encarada com uma forte ameaça
à ordem, política social e religiosa do período – séculos VIII ao XII,
principalmente. O segundo ponto diz respeito que aqueles não foram
parte de um fenômeno isolado, mas, sim, constituíram-se como uma
longa série de movimentos messiânicos impelidos por angústias
profundamente enraizadas. Como terceiro ponto, Lewis afirma que
Hasã-i Sabá foi bem-sucedido em reformar e dar um novo sentido
aos vagos desejos, às crenças rebeldes e à raiva sem objetivo dos
descontentes. A conseqüência final talvez não tenha sido a imaginada
pelos assassinos, pois não conseguiram derrubar a ordem religiosa
dominante. Entretanto, um elemento significativo permaneceu
presente em torno de uma imagem messiânica da religião e de seus
devotos bem como os métodos de auto-sacrifício, ou seja, o terror
como forma de atingir objetivos religiosos.
“‘Irmãos’, diz um poeta ismaelita, quando chegar o tempo do triunfo,
com a boa sorte dos dois mundos como nossa companheira, então,
perto de um único guerreiro a pé um rei poderá ser tomado pelo
terror, embora conte com mais de cem mil cavaleiros” (Lewis,
2003:146).

A História remete-nos a um passado de violência, mas a questão mais


intrincada a qual desejo fazer menção neste tópico diz respeito à
relação entre a expansão da técnica moderna, a amplificação da
violência e a impalpabilidade da crueldade. Poderia pontuar minhas
imagens nas cenas de execuções sumárias de civis televisionadas para
o mundo por grupos terroristas de resistência atuantes no Iraque, ou
de outra forma poderia discutir sobre os ataques aéreos aliados e as
luzes e imagens verdes que foram televisionadas também para o mundo
todo. Mas o que torna interessante discutir é que os grupos não passam
de pequenos grupos – se comparados com a figura do Estado – com
uma câmera na mão, dispostos a realizar atos de extrema violência e
torná-los públicos, assumindo a autoria. Isto somente é capaz porque,
através da técnica moderna o espectro de sua violência amplia-se e
reverbera no mundo.

84 Cadernos de Sociologia e Política


Para Mary Kaldor (2003), esses grupos fariam parte de uma
globalização regressiva, que consiste basicamente em uma reação ao
processo de absorção de determinadas culturas por um movimento
mais amplo. Os grupos terroristas seriam caracterizados por uma
inadequação, um desencaixe, em relação aos princípios políticos,
sociais e econômicos ocidentais, mas por outro lado utiliza parte da
estrutura (principalmente informação e armamentos) colocada a
disposição pelo processo de globalização. Para Gearson (2002) e
Freedman (2002), a própria definição de terrorismo e grupos
terroristas adquirem contornos pouco claros e podem levar a
equívocos em uma simplificação analítica. Compreendo o terrorismo
bem como os grupos terroristas contemporâneos sob um olhar técnico,
ou seja, ambas definições podem residir no âmbito da técnica, como
um conjunto de métodos que são postos em determinada ordem para
atingir um objetivo.

O que se pode dizer ao ver uma cena na qual um indivíduo é


decapitado com uma pequena faca de cozinha e agoniza em sua morte
ante uma pequena câmera (made in Taiwan, provavelmente)? O que
parece nos escapar dessa imagem? Afirmo que aquilo que nos escapa
é a impalpabilidade que a crueldade adquire. Esta violência não é
palpável, não se dá em nosso entorno, se dá através dos meios
midiáticos. Logo, a questão que surge é: qual relação podemos ter
com esta crueldade. A técnica moderna insere um hiato, dilui e ao
mesmo tempo amplia. Dilui a experiência da dor no sentido anímico
e amplia o sentido da experiência do terror. Existe, logo, um caráter
ambíguo na crueldade elevada a potência n pela técnica moderna.

Note-se que não afirmo que haja uma alteração na violência e na


crueldade como uma característica humana, mas sim que ambas
entrelaçadas por uma condição técnica elevada podem explorar novos
limites de percepção dos indivíduos que são tocados por essas imagens.
O que se pode esperar para o futuro, a paz perpétua imaginada por
Kant no século XVIII, ou talvez que caminhos inexoravelmente para
mais violência e mais crueldade. A técnica moderna amplia-se, e nas
palavras de Heidegger o homem é também um instrumento dela, não
existe o domínio sobre a técnica, existe a relação do homem com a

Fórum dos Alunos do IUPERJ 85


técnica moderna. Até o momento esta ampliou o espectro de violência
possível, e em um momento histórico no qual o domínio por um
número cada vez maior de países sobre artefatos nucleares se torna
cada vez mais comum e as clivagens emergem na política internacional.
O que podemos esperar? Talvez já vivamos em uma cena na qual o
terror e o terrorismo são singulares em relação ao que foram no
passado, apenas em alguns casos ainda não percebamos ou não
desejamos perceber.

(Recebido para publicação em outubro de 2005)

Notas

1. Sheldon Wolin (1974) aborda este conceito em sua análise sobre


Maquiavel.

2. Autores na área das Relações Internacionais fornecem-nos


fundamento para a análise, entre eles: Carl von Clausewitz (século
XVIII) (1996), contemporaneamente, John Keegan (1996).

3. Estudos sobre modernidade técnica são desenvolvidos por Franz


Josef Bruseke (2001).

4. O princípio da causalidade que Heidegger analisa compõe o próprio


modo do ocasionar, ou seja, não apenas na causa material, eficiente,
formal e a final. Na composição entre as possibilidades, a técnica
não é o meio, mas sim a condição de surgimento.

5. Aquilo que surge; que em potência pode vir a se realizar em


determinado momento.

6. Tratarei basicamente de dois estudos: Velocidade e Política (1996)


e A bomba Informática (1999).

7. Blitz Krieg, era uma das táticas de combate alemãs mais eficazes
durante a Segunda Guerra Mundial.

8. A primeira crise no islã, segundo Lewis, ocorre com a morte do


profeta em 632. Fica estabelecido um vácuo de poder, que é

86 Cadernos de Sociologia e Política


resolvido pela elevação ao poder de Abu Bacr, um dos primeiros
conversos e um dos mais respeitados. Intitulado Khalifa
(representante do profeta). Evidentemente que, como toda
transição de poder, existiam grupos rivais que não concordaram
com a elevação de Abu Bacr. Estes descontentes acreditavam que
por direito quem deveria assumir a liderança era Ali, sobrinho e
genro de Maomé. Este grupo veio a ser conhecido como Xi’ atu’
Ali (partido de Ali) e depois apenas como Xi’ a, originando dessa
forma o conflito mais significativo no interior do Islã.

9. Lewis (2003) Os Assassinos. Os Primórdios do Terrorismo no Islã.

10. Ao usar a palavra “assassinos”, não estou de forma alguma


indicando uma terminologia pueril ou depreciativa, mas sim
concordando com a designação de Lewis.

Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. (2002), Reconnaissance Wars of the Planetary
Frontierland. Theory, Culture & Society, vol. 19, nº 4, p. 81-90.

BRUSEKE, Franz. J. (2001), A Técnica e os Riscos da Modernidade.


Florianópolis, Ed. da UFSC.

CLAUSEWITZ, Carl von. (1996), Da Guerra. São Paulo, Martins


Fontes.

DAGERMAN, Stig. (1998), German Autumn. London, Quarter


Books.

FREEDMAN, Lawrence. (2003), War. Foreign Policy, nº 137.

___. (2002), The Comming War on Terrorism, in Superterrorism –


Policy Reponses. Massachusetts, Blackwell Publishing, pp. 40-57.

GEARSON, John. (2002), The Nature of Modern Terrorism, in


Superterrorism – Policy Reponses. Massachusetts, Blackwell
Publishing, pp. 7-25.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 87


HALLIDAY, Fred. (2004), “Terror in Historical Perspective”.
Disponível no site <www.opendemocracy.net>, abril.

___. (2004), “The Crisis of Universalism: America and Radical Islam


after 9/11”. Disponível no site <www.opendemocracy.net>,
setembro.

HEIDEGGER, Martin. (1997) [1953], “O Conceito de Tempo” e “A


Questão da Técnica”. Cadernos de Tradução. São Paulo, Edusp.

HELD, David. (2002), “Violence, Law and Justice in a Global Age”.


Constellations, vol. 9, nº 1, pp. 74-88.

HOBBES, Thomas. (1998) [1642], Do Cidadão. São Paulo, Martins


Fontes.

___. (2001), Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado


Eclesiástico e Civil. São Paulo, Ed. Martin Claret.

KAGAN, Robert. (2003), O Paraíso e o Poder. Rio de Janeiro, Editora


Rocco.

KALDOR, Mary. (2003), “Terrorism as Regressive Globalization”.


Disponível no site <www.opendemocracy.net>, setembro.

KANT, Immanuel. (1943), La Paz Perpetua. Buenos Aires, La Barca.

___. (1986), Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista


Cosmopolita. Rio de Janeiro, Brasiliense.

KEEGAN, John. (1996), Uma História da Guerra. São Paulo,


Companhia das Letras.

LAQUEUR, Walter. (1998), “The New Face of Terrorism”. Washington


Quarterly, vol. 21, nº 4, pp. 169-178.

LEWIS, Bernard. (1993), Islam and Liberal Democracy. Journal of


Democracy, vol. 7, nº 2.

___. (2003), Os Assassinos – Os Primórdios do Terrorismo no Islã.


Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.

88 Cadernos de Sociologia e Política


MONTAIGNE, Michel de. (1998) [1972], Da Crueldade, in Ensaios.
São Paulo, Nova Cultural.

PARET, Peter. (2001), Construtores da Estratégia Moderna. Rio de


Janeiro, Biblioteca do Exército Editora, vols. I e II.

PESSOA, Fernando. (1996), Poesias/Fernando Antônio Nogueira


Pessoa (organização de Sueli Tomazini Cassal). Porto Alegre, LP&M.

SEBALD, William. (2004), On The Natural History of Desctruction.


London, Penguin Books.

VIRILIO, Paul. (1996) [1977], Velocidade e Política. São Paulo, Estação


Liberdade.

___. (1999), A Bomba Informática. São Paulo, Estação Liberdade.

WALZER, Michael. (2001), Guerras Justas e Injustas. Barcelona,


Paidós.

WINTER, Jay. (1998), Sites of Memory, Sites of Morning: The Great


War in European Cultural History. Cambrige, Cambridge University
Press.

WOLIN, Sheldon S. (1974), Política y Perspectiva – Continuidad y


Cambio en el Pensamiento Político Occidental. Buenos Aires,
Amorrortu Editores.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 89


Crise na Aliança Atlântica:
EUA e Europa diante das Novas
Ameaças à Segurança Internacional*

MAURÍCIO SANTORO**

Resumo

Este artigo examina a crise nas relações entre os EUA e a Europa,


tomando como ponto central da discussão as funções assumidas pela
OTAN no pós-Guerra Fria e as controvérsias trazidas pelas novas
ameaças à segurança internacional, como o terrorismo.

Palavras-chave: EUA; Europa; OTAN

* O artigo é uma adaptação do terceiro capítulo de minha dissertação de mestrado


“O 11 de Setembro e a Doutrina Bush”, defendida em novembro de 2003. A
dissertação foi orientada por Cesar Guimarães e financiada com bolsa da CAPES.
**Doutorando em ciência política pelo IUPERJ, pesquisador do Instituto Brasileiro
de Análises Sociais e Econômicas e professor da pós-graduação em relações
internacionais da Universidade Candido Mendes.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 91


O objetivo deste artigo é discutir a crise na mais poderosa aliança
político-militar do mundo, a Organização do Tratado do Atlântico
Norte – OTAN que reúne os Estados Unidos, a maioria dos países da
Europa e o Canadá. A OTAN foi criada para combater a União
Soviética, e desde o fim dessa superpotência o futuro da aliança vem
sendo tema de muitas controvérsias, com a organização passando
por grandes mudanças, tanto nas funções que desempenha quanto
nos países que a compõem.

A primeira parte do artigo examina a expansão da OTAN para o


Leste, incorporando os países que faziam parte da esfera de influência
soviética na Europa Oriental. Além do aumento no número de
membros, esse movimento também provocou uma mudança nas
funções da aliança.

A segunda parte trata do dilema europeu de segurança: a necessidade


do envolvimento dos EUA para manter o equilíbrio de poder no
continente e estabelecer a ordem em sua turbulenta periferia (os
Bálcãs). Mas existem, simultaneamente, os receios que os países da
Europa sentem das ações unilaterais dos Estados Unidos.

O artigo é concluído com uma análise das divisões entre Europa e


EUA diante das novas ameaças à segurança internacional, como o
terrorismo, e as crises provocadas pela invasão do Afeganistão e do
Iraque.

1) A Expansão para Leste


Durante a Guerra Fria, a aliança entre EUA e Europa foi o principal
contraponto ao poderio soviético, institucionalizado no Pacto de
Varsóvia. Após a queda da URSS, surgiram várias divergências entre
os aliados, e muitos previram o fim da OTAN, a qual seria sepultada
pelas rivalidades econômicas emergentes, ou simplesmente
desmantelada com o término da ameaça comunista. A análise do
cientista político Kenneth Waltz é talvez o exemplo mais conhecido
dessa posição:

92 Cadernos de Sociologia e Política


“Alianças são organizadas contra um inimigo reconhecido. Sabemos
tanto através da teoria do equilíbrio de poder quanto pela história
que coalizões que ganharam guerras entram em colapso em seguida
à vitória, com ainda mais certeza se esta foi decisiva [...]. Os dias da
OTAN não estão contados, mas seus anos, sim” (Waltz, 1995:73-
74).

Como tantas outras profecias sobre o pós-Guerra Fria, essa também


se mostrou errada. A Aliança Atlântica não terminou. Ao contrário, a
partir de fins dos anos 90, iniciou uma expansão para o Leste,
incorporando os países da Europa Oriental, que haviam feito parte
do bloco soviético – “o Ocidente seqüestrado”, na expressão do
escritor tcheco Milan Kundera. Entender as razões desse movimento
ajuda na compreensão do papel que os Estados Unidos vêm
desempenhando na Europa e dos pontos de divergência na OTAN
que se agravaram após o 11 de setembro e a invasão do Iraque.

A expansão da OTAN atende a objetivos militares e políticos. Na


famosa frase do general inglês Lord Ismay, a aliança foi criada para
“deixar os americanos dentro, os russos de fora e os alemães por
baixo”, isto é, conter os soviéticos e ao mesmo tempo impedir a
Alemanha (e em menor medida, os europeus) de exercer uma política
externa independente dos EUA no Velho Continente. Essas razões
continuam presentes no pós-Guerra Fria.

O expansionismo russo na Europa Oriental não foi inventado pela


Revolução de 1917. Era, ao contrário, uma característica marcante
da diplomacia dos czares desde o século XVII. Nesse sentido, o colapso
soviético foi visto por analistas como o ex-assessor de segurança
nacional do presidente Carter, Zbiegniew Brzezinski (1992:49), como
uma oportunidade cuja essência é “garantir que a desintegração da
União Soviética se torne o fim pacífico e permanente do império
russo”. Ou seja, os EUA, além de ter certeza da extinção do regime
socialista, devem forçar a Rússia a abandonar suas zonas de influência
tradicionais, na Europa Oriental e no Báltico.

O alargamento da OTAN também é uma maneira de conter as


ambições de uma Alemanha reunificada, e extremamente poderosa,
com a maior população da Europa (80 milhões de habitantes) e 35%

Fórum dos Alunos do IUPERJ 93


do PIB da União Européia – UE. Com os antigos rivais russos
enfraquecidos, e uma enorme turbulência política em sua antiga área
de influência, o que impedira os alemães de retomarem seu antigo
padrão de poder?
“Os franceses em particular temeram que a multiplicação do que
Mitterand se referiu como as ‘tribos’ da Europa Oriental iria tentar
ou talvez mesmo compelir a Alemanha a aumentar seu papel
diplomático e militar na região, levando à reconstrução de uma
‘Mittleeuropa’ que iria reforçar o peso hegemônico da Alemanha na
Europa e conduzir suas prioridades rumo a leste” (Loriaux,
1999:368).

No entanto, os mecanismos institucionais da OTAN funcionam como


uma garantia de que a Alemanha submeterá sua política externa ao
debate com os aliados. Ainda mais importante é um compromisso de
que os EUA continuarão vigilantes diante de qualquer aspiração alemã
de retomar o projeto de hegemonia continental que levou a duas
guerras mundiais durante o século XX. O temor não é tanto uma
visão apocalíptica de divisões panzer ocupando Paris e Varsóvia, mas
o receio concreto de uma “germanização” da UE.

O duplo padrão de contenção – aos russos e aos alemães – fica claro


quando se percebe que os primeiros novos membros da Aliança,
incorporados em 1999, foram países como Polônia e República Tcheca,
que no passado foram vítimas de agressões de ambas as potências –
às vezes simultaneamente, como no caso das partilhas polonesas do
século XVIII e de 1939.

O cronograma de expansão da OTAN prosseguirá até 2007,


abrangendo toda a Europa Oriental, Chipre, Malta e, de maneira
ainda mais humilhante para os russos, os países bálticos – Letônia,
Lituânia e Estônia. Essas pequenas nações ocupam uma posição
estratégica, a poucos quilômetros da importante cidade de São
Petersburgo, e contém entre sua população um significativo percentual
de minorias étnicas russas. Foram tradicionalmente vistas por Moscou
como vitais à segurança nacional, e sua entrada na OTAN provocou
protestos, sendo um dos fatores para a crise no Kosovo (Trenin,
2002:380-384).

94 Cadernos de Sociologia e Política


O cerco aos russos foi completado com o estabelecimento de
“parcerias estratégicas” da OTAN com 27 países, incluindo as quinze
ex-repúblicas soviéticas, muitas das quais envolvidas em disputas com
Moscou. Por conta desses acordos, a Aliança estabeleceu bases em
quatro nações fronteiriças à China. Além disso, foi criado o Diálogo
Atlântico com os países do norte da África, uma tentativa de inserir o
mundo árabe nas instituições de segurança cooperativa da Europa
(Talbott, 2002).

Strobe Talbott, que foi secretário-assistente de Estado de Clinton,


deixa claro que, além das questões de segurança, a expansão da OTAN
também envolve temas políticos e econômicos. Os países que desejam
se juntar à Aliança precisam se submeter a reformas estruturais, além
de reequipar suas Forças Armadas de acordo com os padrões
ocidentais: segurança, estabilidade política e abertura de mercados.
Nas palavras da secretária de Estado do presidente democrata,
Madaleine Albright:

“O objetivo da expansão é fazer pelo leste da Europa aquilo que a


OTAN fez há cinqüenta anos pelo oeste: integrar as novas
democracias, conter os ódios ancestrais, dar confiança à recuperação
econômica e dissuadir os conflitos” (apud Asmus, 2002:361).

Esses objetivos também são atendidos pela expansão da União


Européia, que corre simultânea à da OTAN. A assinatura do Tratado
de Maastricht, em 1992 (que criou a UE), provocou especulações
nos Estados Unidos a respeito de uma possível “fortaleza Europa”,
um bloco econômico que rivalizaria com a América pelo domínio da
economia global. Desse ponto de vista, o alargamento da UE seria
mais um passo no fortalecimento europeu e no crescimento de sua
influência mundial.

A realidade, no entanto, é mais complexa. A expansão da União


Européia incorpora muitos países ex-comunistas que dependem em
grande medida dos EUA, tanto para sua segurança quanto para receber
ajuda financeira. Esses Estados foram aceitos na UE na cúpula de
Copenhagen, em dezembro de 2002, apenas três semanas após sua
entrada na OTAN, formalizada na conferência de Praga. Em 2007,
quando o processo de expansão em ambas as organizações estiver

Fórum dos Alunos do IUPERJ 95


completo, 23 dos 27 membros da União serão também membros da
Aliança Atlântica. Os únicos países europeus que não fazem parte da
OTAN são Áustria, Finlândia, Irlanda, e Suécia. Os membros da OTAN
que não integram a UE são EUA, Canadá e Turquia, embora esta
última negocie sua inclusão.

Diante desse quadro, analistas como o jornalista Bernard Cassen


(2003) vêem a Europa se definindo “mais e mais como simples espaço
que marcha inscrito na estratégia imperial dos Estados Unidos”,
considerando a incorporação dos países pró-EUA da Europa Oriental
como a garantia para Washington de que a UE não irá se opor a seus
projetos políticos.

2) O Dilema da Segurança Européia

Nesse caso, por que a Europa aceita a hegemonia americana? Por que
a UE não se utiliza de seus vastos recursos econômicos para construir
o poder militar necessário para se tornar uma superpotência e exercer
maior influência internacional? Essa possibilidade foi levantada por
diversos analistas e chegou a figurar como discurso oficial da
diplomacia francesa. O ex-chanceler Hubert Védrine, crítico constante
do que chamava de “hiperpotência americana”, afirmou que o objetivo
da política externa da França era o estabelecimento de um mundo
multipolar.

A multipolaridade, no entanto, não pode ser criada por decreto e


envolve custos muito altos. Robert Kagan duvida que os europeus
tenham disposição para aceitar um aumento de gastos militares nessa
escala e diz que a União Européia atingiu uma espécie de paz kantiana,
baseada na cooperação internacional, ao passo que os EUA
“[...] continuam chafurdando na história, exercendo o poder num
mundo hobbesiano anárquico, onde as leis e as diretrizes
internacionais não são dignas de confiança, a verdadeira segurança,
a defesa e a promoção da ordem liberal, ainda dependem da posse e
do uso do poderio militar. É por isso que, nas principais questões
estratégicas e internacionais da atualidade, os norte-americanos são
de Marte e os europeus são de Vênus. Têm poucos pontos em comum
e seu entendimento é cada vez menor”. (Kagan, 2003:7)

96 Cadernos de Sociologia e Política


Na abordagem de Kagan, o poder dos Estados Unidos solucionou o
dilema de segurança europeu, permitindo que as nações do continente
abandonassem seus ódios seculares e construíssem o “milagre
geopolítico” de sua integração regional. A nova situação faria dos
europeus entusiastas do Direito Internacional e da negociação
diplomática, relutantes em apoiar as ações americanas, baseadas muitas
vezes no uso da força militar. O autor afirma que o unilateralismo
dos EUA só tende a aumentar, pois não é fruto da ideologia de
democratas ou republicanos, mas uma conseqüência do mundo sem
superpotências rivais do pós-Guerra Fria.

A ênfase nas diferenças culturais entre americanos e europeus foi


bastante destacada ao longo dos anos 90, tanto entre acadêmicos
quanto na imprensa. Fatores como pena de morte, posse de armas de
fogo e a natureza do Estado de Bem-Estar Social eram vistos como
fontes de divergências cada vez maiores entre os aliados. No entanto,
essa é uma explicação falha, pois tudo isso já era parte do cenário da
Guerra Fria sem que houvesse provocado maiores problemas na
OTAN.

As raízes das dificuldades entre Europa e Estados Unidos estão nos


problemas que surgiram após o colapso soviético, como a turbulência
nos Bálcãs, as novas ameaças dos “Estados-Bandidos” e do terrorismo
e, principalmente, a falta de um freio às ações americanas.

A fragmentação da Iugoslávia trouxe de volta à Europa o pesadelo


das guerras étnicas que haviam dilacerado os Bálcãs no início do século
XX e sido o estopim para a Primeira Guerra Mundial. O risco foi
aumentado diante da incapacidade da UE em agir, mesmo diante dos
massacres cada vez maiores. A crise da Bósnia só foi solucionada
quando os Estados Unidos concordaram em intervir, liderando a
missão da ONU na região. Mais tarde, o mesmo ocorreu no Kosovo.
Para Kissinger (2001), é a repetição dos padrões tradicionais, com os
EUA estabelecendo protetorados entre os grupos étnicos em guerra,
como os impérios otomanos e austro-húngaro haviam feito antes deles.

Em outras palavras, a fragilidade militar da Europa é tão grande que


se faz necessária a presença do poder hegemônico americano para

Fórum dos Alunos do IUPERJ 97


manter a ordem e a estabilidade política em sua própria periferia
continental. Na Bósnia, essa situação ainda foi de certo modo
mascarada pela intervenção da ONU. Mas no Kosovo, as Nações
Unidas ficaram de fora – a proteção russa à Sérvia significaria um
veto à ação militar no Conselho de Segurança. O resultado foi um
ataque da OTAN, o primeiro realizado pela Aliança em seus cinqüenta
anos de existência.

As operações militares limitaram-se a bombardeios aéreos, com o


objetivo de convencer a Sérvia a chegar a um acordo com os rebeldes
albaneses. A maior parte do armamento e das informações estratégicas
veio dos americanos, cujos generais reclamavam constantemente das
táticas européias (ataques limitados a alvos militares) e de sua
insistência em obter o aval da ONU para agir. Na avaliação de Kagan
(2003:51-53), as tensões entre os aliados durante a guerra resultaram
na decisão de Washington em agir unilateralmente em um conflito
futuro, sobretudo se interesses nacionais importantes estivessem
envolvidos.

Qualquer aliança envolve concessões feitas pelos membros, de modo


a permitir o trabalho conjunto. Quando era preciso enfrentar a URSS,
os EUA submetiam-se a essas limitações. A questão é que, no cenário
do pós-Guerra Fria, os Estados Unidos consideram as restrições como
incômodos desnecessários, preferindo agir sozinhos ou com grupos
de países reunidos ad hoc – coalizões dos dispostos (coalitions of
the willing). Nesse sentido, a experiência do Kosovo serviu de
prenúncio para o comportamento americano após o 11 de setembro,
em suas guerras contra o Afeganistão e o Iraque.

Mas Kosovo também é importante por outras razões. Primeiro, porque


marcou o primeiro ataque conduzido pela OTAN, e em uma missão
– preservar a estabilidade em uma região periférica turbulenta –
bastante diversa da contenção à URSS, para a qual foi criada: “de
aliança defensiva, a OTAN foi transformada em uma organização
dita “de segurança”, isto é, intervencionista” (Achcar, 2003). A guerra
deu origem a um debate sobre a possibilidade de a aliança
desempenhar um papel semelhante fora da Europa, em missões de
ataque ou de estabilização pós-conflito.

98 Cadernos de Sociologia e Política


Kosovo também foi importante por ter reafirmado uma divisão de
tarefas que já havia ocorrido na Bósnia: os EUA entraram com o
poder militar maciço e a UE, com os esforços de longo prazo de
manutenção de paz e reconstrução nacional.

A tentativa de formular uma política de defesa comum européia tem,


no entanto, esbarrado em diversos problemas e avançado muito
lentamente. Defesa comum contra o quê? A que custos? Para muitos
dos países da UE, sobretudo os novos membros do Leste, a maior
ameaça seria o ressurgimento do expansionismo russo e alemão – e,
para impedir isso, contam com a hegemonia americana.

Simultaneamente ao conflito no Kosovo, as cúpulas européias em


Colônia e Helsinque levaram à proposta da criação de uma “força de
reação rápida” da Europa um conjunto de tropas bem treinadas e
equipadas, prontas para agir e independentes da OTAN. Esse
contingente teria, a princípio, 60 mil homens – o núcleo de um possível
exército europeu.

No entanto, se os europeus precisam dos americanos para resolver os


dilemas da segurança do Velho Continente, essa convivência está longe
de ser pacífica e consensual. Os conflitos nos Bálcãs já haviam
demonstrado a insatisfação com a divisão de tarefas do pós-Guerra
Fria. E as divergências só se acentuaram com a ênfase dos EUA nas
novas ameaças, em especial após Bush decretar “guerra ao terror”.

3) A OTAN diante das Novas Ameaças


Na década de 1990, as duas regiões de maior instabilidade na política
internacional foram os Bálcãs e o Oriente Médio. Na primeira delas,
EUA e Europa conseguiram agir em conjunto, apesar das muitas
divergências. Na segunda, as diferenças foram ainda maiores e
agravaram-se após o 11 de setembro.

Analistas franceses como Gilles Andreani e Fréderic Bozo destacaram


o conflito árabe-israelense como sendo a linha de fissura entre os
aliados ocidentais. Os europeus rejeitam a política pró-Israel dos
americanos e pressionam pela criação de um Estado palestino como

Fórum dos Alunos do IUPERJ 99


a única maneira de garantir a paz. Evidentemente, questões
domésticas, como a população judaica dos Estados Unidos e os
imigrantes muçulmanos na EU, são fatores determinantes dessas linhas
diplomáticas.

Os acordos de Oslo (1994), intermediados por Clinton, haviam


despertado esperanças de conciliação entre israelenses e palestinos,
mas uma série de desdobramentos, como o assassinato do premiê
Isaac Rabin, o fracasso da implantação do plano paz, a segunda Intifada
e a eleição do linha-dura Ariel Sharon para primeiro-ministro de Israel,
levaram ao retorno do conflito.

O segundo ponto de ruptura é a relutância da Europa em aceitar a


gravidade das novas ameaças, tais como o que os EUA chamam de
“Estados Bandidos” (Iraque, Irã, Coréia do Norte, Síria) e o
terrorismo, preferindo ressaltar problemas políticos e econômicos,
como subdesenvolvimento, desemprego e degradação ambiental. As
pesquisas de opinião mostram que “os europeus não apenas se sentem
mais seguros e menos ameaçados que os americanos, eles também
sentem que os Estados Unidos são em parte culpados por sua
vulnerabilidade atual” (Kennedy e Bouton, 2002).

Esse é o cerne da divisão da Aliança. Enquanto os EUA se concentram


nas novas ameaças, a Europa vê como maior risco à ordem mundial a
ação unilateral da superpotência sem rivais. Esse conflito já estava
presente nos anos 90, mas se intensificou no governo Bush devido à
decretação da guerra contra o terror e, ao mesmo tempo, pela postura
ainda mais unilateral dos republicanos, em comparação com Clinton.

O dilema europeu após o 11 de setembro foi resumido por Fréderic


Bozo (2002: 343) em uma pergunta: “como conceder aos americanos
um apoio a curto prazo, sem um mínimo de visibilidade sobre sua
estratégia a longo prazo?”. Dito de outro modo, era preciso dar uma
resposta aos crimes de Bin Laden, mas como fazer isso sem assinar
um cheque em branco que permitisse aos Estados Unidos utilizar a
OTAN para impor sua própria agenda de expansão no Oriente Médio
e na Ásia Central?

100 Cadernos de Sociologia e Política


A reação imediata aos atentados foi de solidariedade na Aliança. O
Le Monde assinalou em manchete histórica no dia 12 de setembro de
2001: “Somos todos americanos”. A OTAN traduziu esse sentimento
invocando, pela primeira vez, o artigo V de seu tratado – os ataques
a Nova York e ao Pentágono eram considerados um ato de guerra aos
EUA, e o princípio de defesa mútua colocava à disposição de
Washington as tropas aliadas.

No entanto, os Estados Unidos rejeitaram o apoio e foram à guerra


no Afeganistão com base em uma coalizão dos dispostos. Quando os
interesses nacionais vitais da superpotência entraram em jogo,
Washington preferiu agir sozinho, sem as limitações impostas pela
OTAN. As lições do Kosovo entravam em prática.

À medida que a Doutrina Bush ganhava corpo, os europeus foram se


mostrando mais apreensivos com a guerra contra o terror. Diversos
intelectuais manifestaram apreensão com o risco de o espírito de
cruzada americano provocar uma onda de extremismo político entre
(ou contra) os 20 milhões de muçulmanos que vivem na UE. O
historiador inglês Timothy Ash destacou esse perigo:
“O jornaleiro de quem comprei os jornais de hoje é muçulmano. O
farmacêutico local é muçulmano. A jovem trabalhando na faxina é
muçulmana. Eles todos são pessoas corteses, amigáveis, altamente
competentes, falando um inglês perfeito e, até onde posso ver,
aceitando e sendo totalmente aceitos na sociedade britânica. Até o
11 de setembro, nunca teria me ocorrido descrevê-los como
’muçulmanos’, não mais de como eu descreveria o gerente dos
correios ou o vendedor de computadores como ‘cristãos’” (2001).

A realidade é mais sombria do que o sonho de integração étnico-


religiosa. O próprio fato de os muçulmanos mencionados por Ash só
exercerem profissões subalternas demonstra isso. Violências e
agressões contra os imigrantes islâmicos já existiam em grandes
números antes do 11 de setembro. Após os atentados, a ascensão da
extrema-direita em diversos países europeus comprovou o potencial
eleitoral do ódio.

A crise detonada pela guerra ao Iraque, que teve seu ponto alto nas
disputas do Conselho de Segurança da ONU, repetiu o padrão de

Fórum dos Alunos do IUPERJ 101


disputas anteriores – os EUA tiveram o apoio britânico e enfrentaram
oposição dos franceses. Bush também contou com os aliados da “nova
Europa” dos países ex-comunistas e das nações ibéricas – em suma, a
periferia da União Européia.

A rápida acomodação obtida após o conflito dá alguma razão a


Kissinger, para quem as atitudes britânicas e francesas são menos
antagônicas do que parecem à primeira vista, tratando-se, no fundo,
de duas faces da mesma moeda – a necessidade de lidar com um
poder hegemônico muito maior:
“A Grã-Bretanha persegue seus interesses tornando a si mesma uma
parte tão presente do processo decisório que desconsiderar suas
opiniões é quase constrangedor. A França tem perseguido seus
interesses fazendo com que seja muito doloroso ignorá-los” (Kissinger,
2001:50).

A urgência de se chegar a um entendimento com os EUA aumentou


na mesma proporção dos gastos militares da superpotência. É muito
difícil criar um mundo multipolar quando o orçamento de defesa
americano pula de US$280 bilhões para US$400 bilhões, e a nova
estratégia prevê lutar quatro guerras simultâneas, ao redor do mundo
– quando os europeus sequer conseguem agir nos Bálcãs.

Os atentados contra Madri (11 de março de 2004) e Londres (7 de


julho de 2005) mostraram que a Europa também está vulnerável diante
do terror. A Al-Qaeda atacou os membros europeus da coalizão de
apoio aos EUA. Tanto na Espanha quanto na Inglaterra ocorreram
grandes manifestações contrárias à guerra do Iraque, que contribuíram
para enfraquecer os governos. A tentativa do primeiro-ministro
espanhol em atribuir os atentados ao ETA foi desmascarada pela
imprensa e levou à sua derrota eleitoral. O novo premier, o socialista
Zapatero, retirou as tropas espanholas do Iraque.

Os ataques a Londres chocaram a opinião pública por terem


envolvidos terroristas que eram cidadãos britânicos. A reação trágica
da polícia britânica, que assassinou no metrô um brasileiro inocente
ao ser confundido com um terrorista, contribuiu para o clima de
insegurança e medo de que o combate ao terrorismo enfraquecesse

102 Cadernos de Sociologia e Política


os direitos civis e as liberdades democráticas dos países europeus. O
impacto das guerras travadas no Oriente Médio e na Ásia Central
chegou à Europa.

4) Conclusões
O fim da URSS e da Guerra Fria não acabou com a OTAN, mas
provocou grandes transformações na aliança, que incorporou os países
da Europa Oriental e, em lugar de uma coalizão defensiva contra o
Pacto de Varsóvia, se tornou uma força intervencionista, entrando
em ação na guerra do Kosovo. Contudo, alguns de seus objetivos
foram mantidos, como a contenção à Alemanha e à Rússia, impedindo
que esses países desenvolvessem políticas externas expansionistas na
Europa.

Na última década aumentou o fosso entre os EUA e seus aliados


europeus. As linhas de fissuras da Aliança nos anos 90 foram agravadas
pelo 11 de setembro e pela guerra ao Iraque. O Oriente Médio
permanece uma zona de turbulência, tanto pelo conflito árabe-
israelense, quanto pela ocupação anglo-americana de um dos maiores
países da região.

O unilateralismo da superpotência ganhou força com as rápidas


vitórias militares. E a UE e a OTAN, após sua expansão para leste,
ficaram mais divididas do que nunca em relação aos Estados Unidos.

A situação na Aliança é, em resumo, de instabilidade. Os ataques


terroristas contra Inglaterra e Espanha mostraram que os EUA não
são mais capazes de garantir a segurança da Europa, ao contrário do
que havia ocorrido durante a Guerra Fria. Pode-se inclusive
argumentar que o apoio ao expansionismo militar dos Estados Unidos
apenas gerou mais ameaças e preocupações aos aliados europeus.
Como superar as divisões da OTAN e formular uma agenda de
segurança cooperativa? Eis o desafio que se coloca para a diplomacia
dos países da Aliança Atlântica na primeira década do século XXI.

(Recebido para publicação em novembro de 2005)

Fórum dos Alunos do IUPERJ 103


Referências Bibliográficas

ACHCAR, G. (2003), “L’OTAN à la Conquête de l’Est”. Le Monde


Diplomatique, janeiro.

ASH, T. G. (2001), “Europe at War”. New York Review of Books, vol.


48, nº 20.

ASMUS, R. (2002), “L’Elargissement de l’OTAN: Passé, Present,


Futur”. Politique Étrangère, nº 2.

BOZO, F. (2002), “La Relation Transatlantique et la ‘Longue’ Guerre


contre le Terrorismo”. Politique Étrangère, nº 2.

BRZEZINSKI, Z. (1992), “The Cold War and Its Aftermath”. Foreign


Affairs, vol. 71, nº 4.

CASSEN, B. (2003), “Une Europe de Moins en Moins Européene”.


Le Monde Diplomatique, janeiro.

KAGAN. R. (2003), Do Paraíso e do Poder. Rio de Janeiro, Rocco.

KENNEDY, C. e BOUTON, M. (2002), “The Real Trans-Atlantic


Gap”. Foreign Policy, nº 133.

KISSINGER, H. (2001), Does America Needs a Foreign Policy?. New


York, Simon & Schuster.

LORIAUX, M. (1999), “Realism and Reconciliation”, in E. Kapstein


e M. Mastanduno (orgs.), Unipolar Politics. Cambridge, Cambridge
University Press.

TALBOTT, S. (2002), “From Prague to Bagdad: NATO at Risk”.


Foreign Affairs, vol. 81, nº 6.

TRENIN, D. (2002), “L’Elargissement de l’OTAN Vu de Moscou”.


Politique Étrangère, nº 2.

WALTZ, K. (1995), “The Emerging Structure of International


Politics”, in M. E. Brown (org.), The Perils of Anarchy. Cambridge,
MIT Press.

104 Cadernos de Sociologia e Política


Max Weber e Karl Mannheim:
Duas Perspectivas Sociológicas do
Problema do Conhecimento

PAULO HENRIQUE S. FERREIRA PIRES GRANAFEI*

Resumo

O artigo compara as abordagens de Max Weber e Karl Mannheim ao


problema do conhecimento. Para ambos, a questão central é a relação
entre visão de mundo e estratificação social, com ênfase na relação
entre ciência e política. Weber não vê diferenças de posicionamento
como estritamente determinadas por interesses de classe, remetendo-
as primordialmente a valores. O conhecimento, neste caso, conservaria
sua validade universal. Mannheim explica as diferenças intelectuais
por interesses de classe, atribuindo-lhes uma dimensão conceitual,
que relativiza a validade do conhecimento.

Palavras-chave: conhecimento; interesses; valores

* Bacharel e Licenciado em História pela PUC-Rio, mestrando em sociologia pelo


IUPERJ, bolsista FAPERJ. E-mail: pgranafei@iuperj.br.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 105


E m seu alvorecer no século XIX, as ciências sociais depositaram
uma fé ilimitada no poder da razão de atingir verdades absolutas.
Percebia-se pela primeira vez, naquele momento, que o conhecimento
relativo à vida social tinha um caráter socialmente determinado,
principalmente no que dizia respeito à política. Mas pretendia-se
superar esta falha através de uma ciência livre de pressuposições.
Predominava, então, a crença na possibilidade de verdades
universalmente válidas, aceitáveis em quaisquer circunstâncias
histórico-sociais, independente de posicionamentos políticos. Na
virada do século XIX para o XX, esta postura estritamente objetivista
recua, quando se reconhece como impossível um conhecimento livre
de condicionamentos sociais. O que se aponta, pelo contrário, é que
todo e qualquer conhecimento não apenas está sujeito à influência de
condições sociais como também que estas são imprescindíveis para o
seu surgimento. Nesta linha, o presente trabalho pretende examinar
comparativamente duas contribuições seminais para a constituição
da sociologia do conhecimento: as de Max Weber e Karl Mannheim.

Max Weber
No caso de Max Weber, não se pode falar de uma sociologia do
conhecimento em sentido estrito. O que existe em sua obra são
reflexões dispersas sobre a determinação social do conhecimento em
escritos metodológicos e sobre religião, que não constituem um corpo
unificado e sistemático de teoria acerca do assunto. A reconstituição
que se segue busca construir artificialmente este corpo a partir de seis
textos clássicos: “A Psicologia Social das Religiões Universais”,
“Rejeições Religiosas do Mundo e suas Direções”, “A Ciência como
Vocação”, “A ‘Objetividade’ do Conhecimento na Ciência Social e na
Ciência Política” e “O Sentido da ‘Neutralidade Axiológica’ nas
Ciências Sociais e Econômicas”.

Segundo Weber, explicar o conteúdo doutrinário de uma religião pela


determinação exclusiva dos interesses ideais e materiais de um estrato
social é perder de vista a complexidade do jogo de forças que definem
sua conformação. É inegável a importância da adesão de certos grupos

106 Cadernos de Sociologia e Política


na propagação de um credo religioso e a influência de seu estilo de
vida sobre as formas que a religião assume. Mas independente de tal
influência, as doutrinas também conquistam adeptos em outras
camadas sociais.

Assim, a relação entre condições de vida e confissão religiosa, para


Weber, não é exclusiva, sem contudo deixar de ser relevante. As
teodicéias do sofrimento, neste esquema, não são simplesmente formas
de os dominadores justificarem seu favorecimento, como também
não são pura expressão do ressentimento dos dominados. Seriam um
modo de conferir inteligibilidade à injustiça do mundo, tanto para
uns quanto para outros. Mas, ao mesmo tempo, verificar-se-ia uma
disseminação maior destas entre os oprimidos, devido à sua posição
social. No grupo dominante, a situação privilegiada justifica-se por
uma superioridade intrínseca do seu ser, enquanto os dominados
aceitam sua inferioridade dando-lhe o sentido de uma missão divina.

As teodicéias confeririam à experiência do sofrimento – seja a fome,


a morte, a seca, a doença, a guerra etc. – uma explicação racional,
um “sentido”, prometendo a salvação para os injustiçados, cujo
conteúdo varia de acordo com os grupos aos quais se dirigem. Weber
o afirma para, mais uma vez, tornar mais complexas as relações de
determinação. Se as religiões conquistam preferencialmente certos
grupos sociais, não significa que surjam no seu seio. As aspirações de
um dado estrato só se traduzem em doutrinas religiosas, sistematizadas
e racionalizadas em uma “imagem de mundo” coerente, trabalho
realizado por um estrato social particular: os intelectuais. No entender
de Weber, os interesses têm um papel decisivo no sucesso de uma
religião, mas não produzem idéias por si mesmos, conseguem justificar-
se e legitimar-se apenas dentro dos “limites do pensável” – para utilizar
a expressão de um historiador –, que são demarcados pelos
intelectuais. Os grupos sociais escolheriam os caminhos que seguem,
mas as opções de que dispõem seriam dadas pelos construtores de
“imagens de mundo”.

Estes diriam “de que”, “para que” e “como se pode” ser salvo. Ditariam
uma “metodização racional da vida” que parte de pressupostos
irracionais tomados como dados. A determinação de tais pressupostos

Fórum dos Alunos do IUPERJ 107


dependeria de interesses, social e psicologicamente condicionados,
de cada estrato representativo de um modo de vida. Portanto, a
variabilidade dos bens de salvação seria devida às diferenças de grupo
dominante em cada religião. Onde houvesse o predomínio de
intelectuais, a contemplação ocuparia este lugar. A hierocracia
preocupar-se-ia em preservar seu monopólio administrativo sobre os
bens de salvação, sendo hostil a qualquer tentativa de obtê-los
isoladamente. O funcionário político veria com receio toda a busca
de bens de salvação, por seu caráter pouco prático. Sua tendência
seria para uma religiosidade utilitária, que estipularia deveres rituais
e oficiais. O guerreiro tenderia a enfatizar a cegueira do destino e a se
voltar para interesses mundanos, pela extrema incerteza a que submete
sua vida no combate. Os camponeses, pelo seu vínculo econômico
direto com os ciclos naturais, teriam propensão a uma religiosidade
mágica, com o fim de dominar as forças da natureza. Os estratos
urbanos, compostos pela burguesia ocidental e seus equivalentes
funcionais – artesãos, comerciantes, empresários domésticos etc. –,
apresentariam a maior maleabilidade de opção religiosa, mas não
deixariam de possuir suas afinidades eletivas com idéias específicas.
Habituados por força de ofício ao cálculo econômico e técnico,
poderiam desenvolver uma ética racional da conduta. Seu modo de
vida, sem relação direta com os ritmos da natureza, abriria espaço
para o abandono de procedimentos mágicos tradicionais.

Sob toda esta diversidade, permaneceria, no entanto, um elemento


comum a todas as religiões “proféticas”: uma hierarquia de valores.
As várias esferas de valor entrariam em conflito, exigindo uma
racionalização das doutrinas religiosas. A impessoalidade do amor
universal chocar-se-ia com o mesmo princípio na esfera econômica.
Relações impessoais, se baseadas no amor, impõem solidariedade
incondicional. Se baseadas na troca econômica, produzem o efeito
inverso, com a busca do ganho individual. Em razão disso, as religiões
de irmandade universal condenavam a posse de bens materiais, criando
um impasse para seus praticantes. A solução poderia vir, por exemplo,
no abrandamento desse imperativo, concedendo o direito à posse de
bens indispensáveis, ou pela permissão de recolher donativos. De
modo análogo, o amor universal excluiria a possibilidade da guerra,

108 Cadernos de Sociologia e Política


contrariando as obrigações de lealdade política. A contradição poderia
ser superada por um espírito cruzadista, que apregoasse a guerra santa
aos infiéis. Ou poderia ser retirada do fiel qualquer responsabilidade
por suas ações sob ordem do Estado, permitindo-lhe também resistir
passivamente. Uma solução alternativa seria a “ética orgânica”, que
atribuiria um caráter santo ao desempenho funcional de cada estrato
social. A hierarquia social seria preservada por seu imbricamento com
uma hierarquia religiosa. Algo semelhante poderia suceder em relação
à esfera erótica: como válvula de escape aos impulsos da libido, a
cópula passava por uma santificação quando submetida a certas
restrições, como o casamento e finalidades procriativas.

Portanto, em cada instante de sua vida, o indivíduo age sem ter de


refletir para ponderar sobre os critérios de suas escolhas. Tudo o que
tem a fazer é ponderar a respeito do rumo mais adequado para a
consecução de dados fins, que para ele já estão estabelecidos. O
domínio da ciência teria acabado com este estado de coisas; teria
feito o conflito entre as esferas de valor adquirir uma nova dimensão.
O longo processo de intelectualização, por que vem passando a
humanidade há milênios, atingiria com a ciência o seu ápice. O homem
moderno não estaria muito acima do homem “primitivo” em termos
da compreensão da realidade à sua volta. Mas lhe seria
indiscutivelmente mais fácil obter esclarecimento sobre qualquer
aspecto particular, dada a quantidade de conhecimento acessível na
sociedade em que vive. O mundo moderno teria a seu dispor meios
técnicos em uma escala sem precedentes. Não é mais preciso lidar
com forças mágicas, cercadas de mistério, para dominar a natureza.
Nos dias de hoje, isto seria alcançável por cálculos racionais: o mundo
foi desencantado pela ciência.

Pondo de lado, junto com a magia, o milagre e a revelação, a ciência


retiraria do mundo seu sentido racional, sem ser capaz de lhe oferecer
um substituto à altura. Dados empíricos, por si mesmos, jamais
forneceriam valores segundo os quais orientar a existência. As ciências
sociais poderiam explicar o funcionamento da sociedade, mas nunca
justificá-lo moralmente. Assim, a ciência tornaria inviável qualquer
hierarquia de valores, seu domínio acarretando uma experiência de

Fórum dos Alunos do IUPERJ 109


“perda de sentido”. Os antigos deuses, adorados pelo politeísmo,
teriam retornado sob a forma impessoal de esferas de valor em
conflito, que a todo momento reivindicariam para si a lealdade dos
indivíduos.

Por sua incapacidade de gerar valores, a ciência não estaria apta a


dizer aos homens que orientação política seguir – tal decisão seria
feita de acordo com valores, aceitos ou rejeitados em uma base
irracional. Não caberia ao cientista apontar o que é certo ou errado,
o que é, ou não, justo. Ainda que se lhe oferecesse uma definição
formal de justiça, estaria além de seu alcance estabelecer sua aplicação
correta. A título de ilustração, o imperativo da igualdade de
oportunidades não diz por si o que é ou deixa de ser igual; não revela
o conteúdo da idéia de igualdade. Com base unicamente neste
princípio, não seria possível decidir se os mais talentosos mereceriam
as mesmas chances dos menos dotados, ou se o talento natural deve
ser interpretado como fator de desigualdade, a ser corrigido por uma
oferta maior de oportunidades ao fraco.

Quando toma por objeto o normativamente válido, a ciência não o


tem por norma, mas por um fato: “certos homens consideram correto
agir de determinado modo”. Não interessaria à investigação se a
referida cultura seguia normas corretas ou não, mas em que medida
conseguia fazê-las valer. A operação do cientista consistiria em
penetrar, empaticamente, formas de pensar e sentir que têm por
incorretas, de modo a compreender sua lógica interna. Sem esta
suspensão do juízo, permitindo-se atribuir as diferenças entre os seus
padrões e os de seu objeto a falhas ou decadência, corre o risco de
fracassar em sua tarefa. Muitas vezes, o que se exige de seu trabalho
é perceber o sentido daquilo que soa absurdo em nossa cultura como
produto de uma orientação diversa, de uma diferença qualitativa de
valores, não de uma diferença quantitativa de capacidade.

Porém, mesmo neutra axiologicamente, a ciência não poderia


prescindir de valores para existir. Juízos avaliativos podem ser
cientificamente válidos, constituindo, inclusive, um dos elementos
que definem o caráter deste tipo de conhecimento. Não seria possível

110 Cadernos de Sociologia e Política


extrair princípios normativos da pesquisa empírica, mas a sua presença
é o que orienta todo o trabalho neste campo.

As ciências da cultura não estariam aptas a emitir juízos baseados em


normas extraídas das leis de funcionamento social. Para Weber, deduzir
a realidade a partir de um conjunto sistemático de proposições causais
seria um ideal irrealizável. Primeiramente, supondo o conhecimento
destas leis, restaria ainda o problema de identificar os fatores históricos
que nelas se enquadrariam e a sua combinação específica em dada
situação. Mas verificar-se-ia, na prática, que o mais simples fenômeno
sofreria a determinação de infinitas causas. Nenhuma descrição da
realidade seria capaz de esgotar a sua complexidade. Nenhum estudo
científico escapa à necessidade de selecionar aquilo que considera
relevante para sua explicação. Porém, apesar da impossibilidade de
estabelecer leis, regularidades e generalizações continuariam tendo a
sua importância. A diferença estaria no fato de serem os meios da
pesquisa, ao invés de seu fim. A teoria deveria servir à pesquisa
empírica, e não o contrário, como se tende a pensar.

É o que fica claro na definição que Weber dá para o “tipo ideal”, a


ferramenta conceitual que preconiza como adequada às ciências da
cultura. O pesquisador jamais estaria em posição de levar a cabo uma
reprodução exata da realidade histórica. Neste âmbito, os fenômenos
manifestar-se-iam de modo vago e difuso, com freqüência variável,
resistindo a qualquer generalização rígida. Restaria ao pesquisador
isolar, dentre este emaranhado de dados, certos traços específicos
para construir uma imagem conceitual coerente de seu objeto. Esta
seria uma idéia “utópica”, que não corresponderia ao mundo concreto,
servindo apenas para torná-lo inteligível. Se a sociologia deveria operar
com um processo dessa ordem, seria inevitável que emitisse juízos de
valor. A seleção dos elementos causalmente relevantes suporia uma
posição valorativa, que atribuísse um determinado sentido aos
acontecimentos. A valoração aqui não diria respeito ao caráter
preferível ou não de uma ação, mas aos efeitos que lhe são atribuídos,
à sua relevância dentro de um encadeamento causal. O indivíduo só
é capaz de compreender um objeto a partir de uma posição em face
do mundo, que deriva de sua inserção em uma cultura. Quando um

Fórum dos Alunos do IUPERJ 111


aspecto da realidade é selecionado como digno de ser conhecido,
não deve isso à sua natureza intrínseca, mas ao ponto de vista do
sujeito – o que significa um interesse relativo do conhecimento
científico, sem que isso implique relativizar sua validade.

Uma demonstração científica, portanto, não perde seu caráter


universal por sua orientação segundo valores. E agua. seja ambsegunda
altern gue a alternativa. demonstração de inconsistências lógicas em
um sistema de proposições valorativas não constituiria exceção à regra.
A avaliação crítica de posições axiológicas seria justamente a função
principal das ciências da cultura. Pelo confronto teórico de diferentes
ideais, seria possível tornar mais claro seu conteúdo, suas motivações
e suas implicações, permitindo posicionamentos mais coerentes. O
debate passaria a se travar dentro de termos comuns, o que seria algo
muito distante de um consenso, de uma síntese dos pontos de vista
ou de uma posição intermediária. O exame da realidade empírica
pode provar que uma ação prática motivada por certa posição de
valor pode ter efeitos indesejáveis de seu ponto de vista; pode mostrar
sua inexeqüibilidade por falta de meios suficientes; ou ainda a
necessidade ou conveniência de se optar por certos meios, em lugar
de outros, para a consecução de determinado fim.

Em face de repercussões imprevisíveis, o ideal pode ser abandonado


ou adaptado, decisão a ser tomada com base exclusiva em valores,
mas motivada por uma constatação empírica. Na opinião de Weber,
muitas controvérsias políticas não teriam sentido, por resultarem de
uma incompreensão de que certos valores não são partilhados, de
modo que não haveria um fim unívoco desejado por todas as partes.

A ciência prestaria inestimável serviço à política, nesta matéria,


esclarecendo as diferenças de posicionamento e os constrangimentos
a que a realidade submete a consecução de seus objetivos. Mas não
poderia oferecer mais do que isso, não se devendo esperar dos grandes
cientistas que fossem líderes políticos.

Karl Mannheim
Minha exposição baseia-se na obra mais famosa de Mannheim (1956),
Ideologia e Utopia. De acordo com Mannheim, o homem só pensa

112 Cadernos de Sociologia e Política


enquanto membro de um grupo, sem pretender com isso que houvesse
uma mente coletiva. O conhecimento não é o produto da apreensão
da realidade por um indivíduo com capacidades inatas e comuns;
origina-se, antes, de interações sociais, na cooperação para solucionar
problemas trazidos pela vida em certo grupo, cuja atenção prioriza
determinados aspectos em detrimento de outros.

Como corolário de tal concepção, temos que, a diferentes grupos


sociais, estão associados distintos modos de pensamento, que divergem
não apenas em seu conteúdo, mas até mesmo em suas bases
categóricas. Diferenças dessa ordem seriam verificáveis não só entre
nações ou etnias, como também entre estratos sociais, podendo
coexistir em proximidade física por séculos. O abalo das tradições só
se dá quando a democratização produz ascensão social em escala
suficiente para que formas de pensamento e experiência incompatíveis
cheguem a coexistir em uma mesma consciência individual. Em toda
sociedade complexa, um grupo especial tem a tarefa de produzir uma
interpretação do mundo – são as camadas intelectuais, também
conhecidas como intelligentsia. No mundo medieval, a função era
desempenhada pela Igreja, composta por um grupo de posição estável,
bastante organizado e de acesso restrito, que detinha o monopólio da
transmissão e produção de verdades. A estabilidade de sua condição
era refletida na estabilidade de sua visão de mundo, que possuía um
caráter dogmático. Os tempos modernos são marcados pela abertura
desta “casta” a intelectuais livres, de origens sociais as mais diversas,
ensejando confrontos entre visões de mundo. Em meio aos conflitos
de classe, o novo tipo de pensador vai disputar com seus pares a
simpatia dos grandes contendores sociais, levando a uma
intelectualização da política e a uma politização da vida intelectual.
No debate político, passa-se a buscar a vitória sobre o adversário pela
refutação de seus pontos de vista em termos científicos, visando
eliminar as bases tanto sociais quanto intelectuais de sua existência.
Os contestadores da ordem estabelecida introduzem o conceito de
ideologia: a visão dos grupos dominantes é desqualificada por
escamotear interesses inconscientes na preservação do status quo. Os
agredidos, em contrapartida, respondem lançando a mesma acusação
sobre os agressores. O resultado é que, a partir de então, as crises da
ciência e da política se confundem.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 113


O esforço permanente de desmascarar as verdadeiras intenções do
oponente acabou por solapar a confiança do homem no potencial de
seu conhecimento. O que a sociologia do conhecimento tem a oferecer
é a explicitação dos conteúdos inconscientes que informam o
pensamento, abrindo a possibilidade de um maior controle destes
pela autocrítica. Mannheim aponta para o paradoxo da situação: o
maior conhecimento das leis de determinação social traz maiores
chances de escapar ao seu jugo.

Para atingir seu propósito, reelabora o conceito de ideologia, ao qual


opõe um novo, o de utopia1. Distingue quatro modalidades possíveis
do daquele. Primeiramente, o conceito particular de ideologia: seriam
idéias e representações como disfarce para interesses, conscientes em
maior ou menor grau. Teria por objeto apenas estas idéias específicas,
operando no âmbito psicológico e supondo a possibilidade de uma
refutação com base em critérios de validade objetiva comuns aos dois
partidos. Em oposição a este conceito tem-se o conceito total de
ideologia: o conjunto de idéias e estruturas mentais próprios a um
grupo ou uma época. Refere-se à totalidade de seus sistemas
conceituais, e não tanto ao seu conteúdo, limitando-se a relacioná-
los com uma dada situação social, sem remetê-los a um interesse
específico ou intenção deliberada de enganar. Em ambas as
formulações, é manifesta a desconfiança na capacidade do adversário
de dizer o que de fato pensa, com a diferença de que o conceito total
trata não do indivíduo, mas do grupo, do sistema de pensamento na
sua totalidade, que não é formado pela média aritmética ou pelo
somatório das idéias individuais, as quais são objeto do conceito
particular. Mannheim distingue ainda dois outros conceitos opostos.
O conceito especial de ideologia restringe a análise de determinantes
sociais apenas ao adversário, não incluindo a si mesmo, ou apenas a
um grupo específico e não a todos, tal como o faz a concepção geral
total de ideologia. Esta última marca a passagem da teoria da ideologia
para a sociologia do conhecimento.

Um resultado possível é a adoção de uma postura relativista, que


rejeita qualquer forma de conhecimento dependente de condições
sociais. Mas haveria ainda outra opção: o relacionismo, que também

114 Cadernos de Sociologia e Política


considera impossível, em certos setores, um conhecimento absoluto,
independente da posição ou dos valores do sujeito, sem contudo tomar
por inválido todo o saber socialmente determinado. Não lhe interessa
saber qual partido tem razão, mas obter, por via indireta, uma verdade
aproximativa, mais fértil que uma verdade lógica diretamente
acessível. É preciso sair dos limites estreitos de um ponto de vista
específico, para reconhecer os significados parciais de cada grupo em
suas referências mútuas, de modo a alcançar a totalidade significativa
do período ou cultura.

Mannheim coloca o problema da falsa consciência em uma nova


chave: não se trata mais de incapacidade absoluta de compreender a
realidade, mas de incapacidade de se adequar às mudanças ocorridas
na realidade que a originara, de captar os elementos causalmente
significativos em uma estrutura histórica. Segundo Mannheim, uma
teoria errônea seria aquela cujos conceitos e categorias impedem a
adaptação do homem, que lhe ocultam o verdadeiro sentido dos
acontecimentos e da conduta. Surge, então, o problema de saber
quando um modo de pensamento tradicional já não é mais adequado
a certo campo de experiência. Assim como acontece nas ciências
naturais, fatos novos levam à revisão teórica das ciências sociais. A
visão da totalidade não seria uma verdade eternamente válida, mas
sim uma assimilação de pontos de vista particulares em um horizonte
intelectual ampliado, que, com o passar do tempo, também tenderia
a ser superada.

Uma visão totalizante viria a suprir aquilo que, para Mannheim, seria
a maior deficiência intelectual da época: a falta de uma Ciência da
Política. Disciplinas como a História, a Estatística, a Teoria Política, a
Sociologia, a Psicologia Social teriam utilidade para o político, mas
seriam insuficientes para orientá-lo na ação, porque tratam a sociedade
e o Estado como produtos acabados, ao passo que a vida política lida
com eles em desenvolvimento, exige que se saiba agir de acordo com
a situação única do momento. Mannheim recoloca a distinção em
termos mais teóricos: toda situação social abrigaria uma esfera
racionalizada, com processos estabelecidos e rotineiros para a solução
de problemas que se repetem ordenados, havendo também uma esfera

Fórum dos Alunos do IUPERJ 115


irracional que a circunscreve. A conduta, para ele, só existe no domínio
ainda não racionalizado, no qual as situações forçam a decisões não
sujeitas à regulação, trazendo à baila o problema das relações entre
teoria e prática. As duas fontes maiores de irracionalismo na estrutura
social seriam a competição sem controle e a dominação pela força,
em torno das quais se acumulariam os elementos irracionais mais
profundos que denominamos emoções.

Sob esta perspectiva, Mannheim procede a uma análise das formas


de pensamento segundo cinco tipos ideais: o conservantismo
burocrático, o historicismo conservador, o pensamento liberal-
democrático burguês, o socialismo-comunismo e o fascismo. A marca
do conservantismo burocrático seria sua tendência a reduzir todo
problema político a um problema administrativo, por sua esfera de
atividade só existir dentro de leis já estabelecidas, cuja validade o
burocrata toma por axiomática. Esquece, contudo, que toda norma
legal corresponde aos valores de um grupo social específico, que nada
têm de universais. O conservantismo histórico, ao contrário, confere
extrema importância à esfera irracional, imprevisível e não organizada,
resistente a qualquer tipo de planejamento ou controle, que acredita
ser a política. Para se mover nesse ambiente, considera necessário um
instinto inato, que só seria adquirível ao custo de muita experiência,
e constituiria atributo próprio de uma classe aristocrática, que o cultiva
por gerações. O traço distintivo do pensamento liberal-democático
burguês seria seu intelectualismo. Esse pensamento não perceberia
os elementos fundados na vontade, no interesse e na emoção como
irredutíveis à razão. Propõe uma política científica, que se resumiria
a alcançar a única série de fins que reconhece como legítimos,
condenando como juízos de valor a expressão de quaisquer objetivos
que não os seus próprios. Dentro desse espírito, cria com a livre
concorrência uma esfera irracional de conflito. Julga-a solucionada
no parlamento, quando, na verdade, o máximo que consegue é
submetê-la a racionalização formal – o que jamais constituiria uma
solução por si só. O socialismo-comunismo é a primeira forma de
pensamento a reconhecer que não existe “teoria pura”, que toda teoria
tem um enraizamento social, sem que isto implique necessariamente
uma fonte de erros; o ponto de vista coletivo é muitas vezes a única

116 Cadernos de Sociologia e Política


via de acesso possível a certos conhecimentos. Considera impossível
qualquer cálculo apriorístico de como será ou deverá ser o futuro,
operando dentro de um horizonte de previsibilidade muito limitado.
No seu entendimento, a teoria e a prática mantêm uma relação
dialética, os desenvolvimentos teóricos acompanham o desenrolar
da história: em um primeiro momento, em função da realidade,
produz-se uma teorização, que conduz a uma ação, cujo sucesso ou
fracasso em transformar o mundo exige uma revisão da teoria. O
marxismo retira sua força da compreensão da relação determinante
da estrutura econômica com a social e desta com a ideologia. Seu
modo de conceber a ação política no processo histórico sintetiza o
intuicionismo conservador e o racionalismo liberal. Foi capaz de
produzir uma teoria racional sobre aquilo que o historicismo
conservador tinha por puramente irracional, mas sem ignorar os
elementos de irracionalidade e impulsividade, justo dos quais tenta
tomar partido. Se os liberais vêem a história como progresso, os
marxistas como dialética e os conservadores como intuição, os fascistas
rejeitam qualquer interpretação da história por terem-na como
absolutamente privada de sentido. Para o fascismo, o que faz a história
é a ação do momento por iniciativa de uma elite, o conhecimento
racional só tendo valor como meio de despertar a paixão da massa
guiada por um líder. Fora o conhecimento da psicologia das massas,
a única forma de orientação possível na política é a intuição. Essa
exaltação do ativismo e do irracionalismo seria uma ideologia própria
de grupos golpistas, estranhos à camada de líderes liberais burgueses
ou socialistas, que aguardam a chance em meio à crise para a
instauração de uma ditadura. O esquema líder/massas seria próprio
de elites ascendentes, preocupadas apenas em tomar o lugar das velhas
elites, sem qualquer alteração no sistema. Sua visão confunde com
uma condição permanente a circunstância específica de
embaralhamento das relações e da consciência de classes que produz
a massa, composta de indivíduos sem orientação de classe, que abre
caminho para a ditadura. A crise da estrutura de classes de fato existe,
mas estas não deixam de existir, o que muda é sua composição. O
espírito anti-histórico do fascismo corresponde a uma posição da
burguesia já consolidada, que perdeu a capacidade de apreender o
sentido do processo histórico porque este já não lhe interessa mais.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 117


De acordo com Mannheim, as divergências entre esses modos de
pensamento são devidas a mais do que diferenças nos fatos
selecionados, atingindo o nível das categorias e modos de organização
da experiência. Conseqüentemente, uma síntese verdadeira só seria
alcançável operando além dos conteúdos sobre as próprias bases do
pensamento. Se toda visão de mundo é produto de uma posição social,
a síntese não constituiria exceção à regra, mas seu caráter peculiar
exigiria um grupo em condições inteiramente diversas dos demais.
Seria necessário um estrato relativamente livre, sem classe e de posição
pouco definida: na expressão que Mannheim toma de empréstimo a
Alfred Weber, uma “camada intelectual sem laços sociais”. Este grupo
teria uma composição heterogênea, incluindo membros de todas as
classes sociais que, unificados pela instrução comum, formariam um
espaço homogêneo para o embate de idéias. A indefinição de sua
condição lhes permitiria fazer escolhas políticas pautadas por critérios
intelectuais, independente de sua posição de classe, produzindo uma
síntese sem que haja um partido integrado. Não lhes caberia ditar à
sociedade que rumo tomar, mas antes preparar o caminho para uma
tal decisão, que jamais poderia ser ensinada. Tudo o que poderiam
fazer seria orientar a escolha, pela compreensão das relações entre
certas posições sociais e políticas – o que já é de muita valia.

Em oposição à ideologia, Mannheim introduz um novo conceito, a


utopia. Por utopia estaria entendida uma orientação que transcende
a realidade rompendo com a ordem vigente, enquanto a ideologia
transcenderia sem rupturas. Todo período histórico conteria idéias
transcendentes, mas que estariam de acordo com sua concepção de
mundo, sendo muito raras idéias congruentes com a realidade. Na
maioria dos casos, os homens agiriam orientados por idéias que seriam
desvirtuadas pela prática, nunca se realizando de fato, como, por
exemplo, o amor cristão. Esse comportamento ideológico seria
explicável pela força de certos axiomas em uma cultura, os quais
impediriam o indivíduo de perceber a inconsistência de suas ações
com suas idéias; pelo auto-engano, em uma situação na qual o
despertar para a contradição fosse possível, ou ainda, pela intenção
deliberada de enganar os outros, mesmo tendo consciência do erro.
O que distingue a utopia da ideologia é seu poder transformador, que

118 Cadernos de Sociologia e Política


produz ações efetivamente de acordo com as idéias que as motivam.
Todavia, essa distinção não é absoluta, pois o enquadramento dentro
do conceito de utopia ou ideologia dependerá do estágio de
desenvolvimento histórico. Os inimigos da utopia haverão de atacá-
la como irrealizável em princípio, independente das circunstâncias,
quando, muitas vezes, acontece de sua irrealidade ser relativa à ordem
vigente. Uma dificuldade adicional para a análise deriva do fato de,
na prática, utopia e ideologia nunca aparecerem isoladas em estado
puro. A distinção poderia ficar mais clara adotando-se o critério da
realização; seriam utópicas todas as idéias que depois vieram a se
realizar, demonstrando não serem representações deformadas de uma
ordem passada ou somente potencial. Só cabe falar em utopia de
fato, a partir do momento quando as idéias impregnam a mentalidade
da época como um todo, atingindo, mais do que seus conteúdos, as
próprias formas de experiência, ação e perspectiva. Mesmo dentro
da utopia, existem configurações e estágios diferentes. Uma
compreensão profunda desse ponto é possível pela análise da
concepção de tempo resultante de suas esperanças, aspirações e
propósitos, que conferem sentido tanto ao passado quanto ao futuro,
integrando-os em uma totalidade significativa.

O primeiro estágio da mentalidade utópica teria sido o quiliasmo


orgiástico dos anabatistas. Em decorrência da opressão das classes
baixas, a política sofre uma espiritualização, com a transferência de
aspirações extramundanas para o mundo. Nesse sentido, o quiliasmo
dá início à política moderna, em que todas as classes lutam por
objetivos seculares, sem aceitarem a ordem vigente de modo fatalista.
Desde então, as classes baixas foram se tornando cada vez mais o
motor do processo social, em um progressivo despertar de sua
autoconsciência. Mesmo seus opositores tiveram de levar em conta
suas idéias, nem que fosse para atacá-las – não é outra a origem do
pensamento conservador. Contudo, foram energias psíquicas de
enraizamento muito mais profundo que as idéias que lhe deram seu
impulso. Ao quiliasta interessa o presente, que oferece a brecha para
a irrupção no mundo exterior das forças interiores que o
transformarão. Para ele, a experiência espiritual confunde-se com a
sensitiva e a revolução não é meramente um meio, é um valor em si.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 119


O estágio seguinte de desenvolvimento da utopia é o humanitarismo
liberal, que contrapõe a idéia à ordem existente. Na visão liberal, a
idéia não é o conceito platônico, que explica a realidade, é uma norma
ideal, um objetivo formal para orientar o movimento de progresso
infinito. Seu ideal supremo é o desenvolvimento de uma
individualidade absolutamente livre de determinações e
condicionamentos, conquistada pela participação na vida econômica,
política e intelectual, garantido por uma ordem que se baseia em
fundamentos institucionais. Essa preocupação com normas ideais
acaba fazendo com que se desligue da realidade concreta e material,
de modo que o liberalismo peca por não reconhecer ao poder e à
violência sua devida importância, deixando de compreender o real
problema da vida em sociedade. À primeira disposição qualitativa da
história pelo quiliasmo, o liberalismo contrapõe outra, de sentido
inverso, sem imediatismo, que pensa em um processo evolutivo. Cada
estrutura de consciência expressa uma estrutura histórico-social
própria: ao quiliasmo corresponde a convulsão do fim da Idade Média,
quando, em meio ao acirrado conflito de classes, era difícil às idéias
se cristalizarem. Ao liberalismo corresponde uma classe média
educada, que põe a base da experiência no cultivo do espírito. A
mentalidade conservadora, por princípio, não produz teoria
espontaneamente. Seu conhecimento consiste em orientações
costumeiras para lidar com situações práticas. O que torna conscientes
as concepções que emprestavam sentido à ação de modo inconsciente
é o ataque das classes baixas em ascensão, forçando a uma defesa
explícita e racional desses valores. Mannheim considera um traço
fundamental do desenvolvimento intelectual o fato de os termos do
debate serem ditados pelo antagonista mais recente, obrigando o mais
antigo a se adaptar. Este é o sentido do esforço dos intelectuais
conservadores, em especial o de Hegel, ao explicitar, no âmbito das
idéias, o significado de atitudes há muito já firmadas na prática. A
idéia hegeliana é algo completamente diferente do que fora a idéia
liberal: a norma coincide com a realidade existente, não sendo um
ideal formal, mas tendo um conteúdo claro nas leis vigentes do Estado.
Não deixa de haver, porém, uma tensão entre idéia e existência, graças
à necessidade de discernir o essencial a ser preservado na resposta
aos problemas do presente, que guardam sempre algo de novo e

120 Cadernos de Sociologia e Política


inesperado. O mesmo espírito que modelara as normas no passado
serviria como guia adequado para a ação no presente, sendo suas
orientações perceptíveis apenas subjetivamente, por um método
morfológico e nunca por cálculos racionais. Nessa concepção, o
passado adquire importância capital como formador de valores, cuja
existência, por si mesma, os legitimaria, dado ao fato de serem o
fruto de um processo longo e gradual de amadurecimento. O último
estágio da utopia seria o socialismo-comunismo, no qual estariam
sintetizados todos os anteriores. Compartilha com o liberalismo e a
crença na realização da igualdade e liberdade em um futuro remoto,
com a diferença de situá-la em um momento definido do tempo, o
colapso do capitalismo. O que significa dizer que esses princípios não
haverão de vigorar após uma evolução progressiva, orientada pela
idéia normativa; mas sim após uma ação orientada por uma idéia
produto de investigação da realidade prática, que apontaria as
condições favoráveis à efetivação da mudança pela ruptura. O senso
de determinismo conservador é posto ao serviço da ação
revolucionária, indicando os limites estruturais com os quais deve
lidar. Neste particular, os processos produzem as idéias mais do que
são produzidos por elas. O marxismo teria sido a primeira forma de
utopia dotada de um verdadeiro sentido temporal, não limitado ao
passado como o conservadorismo, nem ao presente como o quiliasmo,
nem ao futuro como o liberalismo. Captaria melhor que seus
predecessores as relações entre estas dimensões temporais, sabendo
diferenciar o futuro remoto do imediato. Identifica os determinantes
histórico-sociais do passado, que reduzem a sua margem de liberdade,
mas na prática a aumentam, quando reconhece suas limitações e as
condições realmente propícias para a ação no presente.

Mas para a sociologia do conhecimento, Mannheim acha preferível


abandonar a teoria da ideologia. O conceito particular de ideologia
denuncia a falsidade do pensamento, quando o objetivo da sociologia
é estabelecer relações entre estruturas sociais e estruturas mentais,
apontando de que meio social um modo de conhecer é produto e não
a sua incorreção. A sociologia do conhecimento opera no âmbito do
conceito total de ideologia, para o qual Mannheim propõe o nome
alternativo de “perspectiva”, despido de conotações pejorativas.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 121


Caberia falar em determinação social de uma perspectiva, em que
fosse constatável a influência de fatores independentes da natureza
do objeto e de caráter não estritamente lógico, situação na qual certo
modo de apreender a realidade só seria explicável em função de
determinadas experiências coletivas. Se a validade de uma idéia não
dependesse de circunstâncias histórico-sociais, poder-se-ia dizer que
existe sempre um progresso do conhecimento, que iria se tornando
cada vez mais completo, de modo a corrigir seus erros com o passar
do tempo. Um esquema desse tipo talvez seja aplicável em alguma
medida às ciências naturais; mas, definitivamente, este não é o caso
das ciências sociais: a inovação não resulta tanto da superação pura e
simples de erros, quanto de mudanças de perspectiva, que passam a
captar elementos diferentes de um mesmo objeto. As perspectivas
diferem umas das outras em seus conceitos, categorias e modelos de
conhecimento, por razões mais profundas que uma simples
superioridade cognitiva. Sua construção é motivada por interesses e
posições valorativas, sem as quais não seriam sequer levantadas as
questões a que dão respostas. Mas, estabelecer relações entre a validade
do conhecimento e a estrutura social que o gera não constitui uma
refutação, isto apenas demonstra suas limitações. A sociologia do
conhecimento de Mannheim não se propõe a substituir a reflexão
sobre a realidade em si, mas uma outra tarefa: estabelecer um patamar
comum para o debate teórico e político. A indicação das determinantes
sociais do pensamento permitiria escolhas mais conscientes e livres
de sua influência, de modo a alcançar, por via indireta e aproximativa,
uma visão mais objetiva da realidade.

Conclusão
Apesar do papel central da “perspectiva” para ambos, persistiriam
diferenças significativas entre os autores: em Weber o matiz diferente
das idéias diz respeito a valores, ao passo que, para Mannheim, toca
mais aos quadros conceituais e categóricos. As “visões de mundo”
que Weber analisa são religiões, cujo surgimento não seria estritamente
determinado por interesses. Sua seleção e conformação estariam
sujeitos a tal influência, mas também seriam verificáveis movimentos
no sentido inverso. Os intelectuais constituiriam uma camada à parte

122 Cadernos de Sociologia e Política


na sociedade, sem um vínculo de origem com qualquer classe a lhe
determinar as posições. A estratificação social guardaria relação com
a religião sob a forma de afinidades eletivas, que não ditariam uma
concomitância necessária entre classe e opção religiosa. O sentido
das teodicéias seria o de conferir inteligibilidade ao mundo do ponto
de vista moral, atribuindo um sentido positivo à experiência do
sofrimento. Sua marca estaria em produzir hierarquias de valores,
que se adequariam, com medida variável, às experiências de
sofrimento de cada estrato social.

Na sua construção teórica de ideologias e utopias, Mannheim


preocupa-se fundamentalmente com a adequação das idéias à
realidade. As diferenças de visão de mundo entre os grupos sociais
seriam devidas à diversidade de interesses que orientam sua apreensão
da realidade. Cada grupo, movido por interesses práticos diferentes,
estaria em uma posição mais favorável a perceber certos aspectos do
mundo concreto, ao invés de outros, enfatizando de modo unilateral
a sua compreensão parcial. Disso resultariam estruturas mentais muito
distintas, que não seriam de todo inválidas, apesar de seu caráter
socialmente determinado. Mas sofreriam de uma limitação natural,
por só captarem na realidade aquilo que justificasse o modo de
experiência de um grupo e a posição social que o embasa. Caberia à
ciência sintetizar os diferentes aparatos conceituais e categóricos em
uma visão totalizante, que ampliasse os horizontes da humanidade.
Essa seria a missão de uma camada de intelectuais sem vínculos sociais,
que segundo Mannheim estaria em processo de formação. Sua
atividade como membros das classes em conflito teria produzido a
sucessão de ideologias e utopias ao longo do processo histórico. Cada
visão de mundo, por sua relação estreita com uma posição social,
teria uma validade relativa ao seu contexto de origem. Com uma
camada de intelectuais autônoma, seria possível reduzir drasticamente
os efeitos de determinação social, oferecendo visões cada vez mais
imparciais da realidade, ainda que válidas apenas relativamente.

Nisso haveria uma diferença crucial entre Weber e Mannheim. O


primeiro duvidaria da possibilidade de uma visão sintética, na medida
em que a divergência partidária estaria mais nos valores e não tanto

Fórum dos Alunos do IUPERJ 123


nos conceitos que ordenam a realidade. A ciência seria capaz de
produzir verdades universais, pois consistiria no ordenamento
conceitual da realidade empírica. As diferenças de valores e interesses
redundariam na tentativa de explicar aspectos diferentes, mas não
necessariamente em explicar toda a realidade de modos distintos.
Interesses diversos levantariam questões diversas, mas de respostas
universais. Na sucessão de sistemas de idéias, não haveria um
progresso, uma aproximação gradativa da verdade, mas mudança de
valores. A função principal da ciência seria explicitá-los. Assim, em
contraste com Mannheim, Weber recusa a idéia de uma totalidade
passível de ser conhecida. O que não surpreende, se consideramos as
referências filosóficas de que partem os autores: o mundo da perda
de sentido de Nietzsche, no caso de Weber, contra o desvelar da razão
na história, de Hegel, no caso de Mannheim. A despeito da forte
influência weberiana, “Ideologia e Utopia” continua dentro dos marcos
do marxismo. Aceitando o caráter socialmente relativo do
conhecimento, sem, como antes, fazer do marxismo uma exceção à
regra, Mannheim não abandona a determinação de classe como fator
explicativo último. Como alternativa à “afinidade eletiva”, oferece o
velho argumento da “prática” como origem e sentido de todo o
pensamento: cada classe, tendo a sua prática específica, teria também
seu aparato analítico próprio. Reconhece a contribuição de Weber à
sociologia do conhecimento, mas suaviza suas conclusões; acredita,
com isso, tê-lo depurado das incompatibilidades com Marx. Tenta
salvar, no marxismo, justo aquilo que toda a ciência social posterior
iria descartar: o determinismo de classe como causa geral em qualquer
sociedade, mesmo para além do mundo capitalista – nisso consistiria
seu maior equívoco.

(Recebido para publicação em outubro de 2005)

124 Cadernos de Sociologia e Política


Nota

1. É importante frisar que uma ideologia não é o oposto de uma


utopia. Como ficará claro mais adiante, é possível aplicar a um
único sistema de idéias os dois conceitos. A oposição que de fato
existe é entre os conceitos, não necessariamente – para dizer a
verdade, quase nunca – entre os objetos a que se aplicam. Dentro
do quadro analítico de Mannheim, seria perfeitamente cabível falar
de uma ideologia e de uma utopia conservadoras presentes em um
mesmo sistema de pensamento.

Referências Bibliográficas

GERTH, Hans. WRIGHT MILLS, C. (orgs.). (1947), From Max


Weber: Essays in Sociology. London, Kegan Paul, Trench, Trubner
&Co..

MANNHEIM, Karl. (1956), Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro, Ed.


Globo.

WEBER, Max. (1993), Metodologia das Ciências Sociais. Campinas,


Cortez, Ed. Unicamp, parte 1 e 2.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 125


Reflexões acerca do Conceito de Do-
minação da Natureza
na Escola de Frankfurt

TATIANA GOMES ROTONDARO*

Resumo

Este trabalho tem como objetivo analisar o conceito de dominação da nature-


za conforme formulado por Theodor Adorno e Max Horkheimer em
Dialética do Esclarecimento enquanto ferramenta analítica para compreen-
são da relação homem-natureza. Para tanto, tomarei como eixo da análise as
influências de Karl Marx sobre esses autores da Escola de Frankfurt, buscan-
do compreender suas apropriações e rupturas. Paralelamente a este traba-
lho de revisão bibliográfica, busco acrescentar algumas reflexões acerca dos
limites analíticos presentes nesta leitura quando se deseja lidar com algumas
variáveis contemporâneas.

Palavras-chave: Teoria Social; Escola de Frankfurt; dominação da natureza

*
Aluna do curso de doutorado em sociologia do Iuperj. E-mails: trotondaro@iuperj.br;
tagoro@uol.com.br.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 127


Introdução
No seio do debate sociológico acerca das relações entre ambiente e
sociedade, surge freqüentemente o seguinte questionamento: teriam os
clássicos – Marx, Weber e Durkheim – se dedicado a analisar a forma
como os homens se relacionam com a natureza? Em resposta a esta
pergunta, encontram-se tanto vozes afirmando que os clássicos, sobre-
tudo Marx, já haviam se preocupado em enunciar a relevância desta
relação, quanto aqueles que argumentam que esta temática teria sido
negligenciada pelos autores.

De fato, reflexões aprofundadas, e muito menos vastas, sobre este tema


não serão encontradas nas obras desses autores, mas existem alguns
elementos interessantes que foram posteriormente resgatados e desen-
volvidos. Por este motivo, recuperarei alguns argumentos trabalhados
por Marx para que possamos compreender a gênese dessa temática no
desenvolvimento de uma determinada matriz sociológica1.

Antecedentes Marxistas
De acordo com bibliografia, entre os três sociólogos estruturadores da
disciplina, Marx foi o que mais se dedicou ao estudo da relação ho-
mem-natureza.

Dentre aqueles autores2 que atribuem à obra de Marx a presença de


subsídios analíticos relevantes para analisar as relações que o homem
desenvolveu com a natureza, alguns aspectos são constantemente resga-
tados, como por exemplo a referência que Marx faz a esse tipo especí-
fico de relação em sua análise de como o trabalho se torna valor de uso
e de como a maquinaria é incorporada ao processo de trabalho.

No primeiro volume de O Capital, logo no início do capítulo 5, Marx


(1975) afirma que o trabalho é, antes de tudo, um processo do qual
participam homem e natureza, sendo que o o primeiro se defronta com
o segundo – como uma de suas forças, ou seja, enquanto parte constitu-
inte da natureza – ao colocar em movimento as forças naturais de seu
próprio corpo, com o intuito de apropriar-se dos recursos naturais,
imprimindo-lhes forma útil à vida humana (idem:202). Marx aponta:

128 Cadernos de Sociologia e Política


“Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, [o homem]
ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as
potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das
forças naturais” (ibidem).

Ainda nesse capítulo, Marx enumera três elementos que julga serem
constituintes do processo de trabalho, são eles: i) a atividade adequada
a um fim, isto é o próprio trabalho; ii) a matéria a que se aplica o
trabalho, ou seja, o objeto de trabalho; iii) os meios de trabalho, o
instrumento de trabalho (ibidem). Assim, recorrendo à afirmação ini-
cial de Marx de que o trabalho seria um processo entre o homem e a
natureza, pode-se identificar pelo menos esses três momentos nos quais
encontramos essa relação.

Quanto ao primeiro elemento, nos diz Marx que, apesar da atividade


humana se distinguir das formas primárias, animais e instintivas do
trabalho – uma vez que preexiste na mente do trabalhador, antes de ser
executada –, esta é, no fundo, expressão de suas forças naturais perten-
centes à corporeidade – isto é, braços e pernas, cabeça e mãos – que o
trabalhador põe em movimento, “a fim de se apropriar da matéria
natural na forma utilizável para sua própria vida” (ibidem).

No segundo, a natureza como sendo o objeto sobre o qual o trabalho é


direcionado, tem-se a idéia da terra, da água como objetos genéricos a
serem trabalhados pelo homem, uma vez que no passado remoto estes
o proveram com os meios de vida acabados. Mas já naquele período o
caso mais comum era que algo só se tornasse objeto de trabalho à
medida que sua conexão imediata com a totalidade da terra fosse inter-
rompida, como, por exemplo, um peixe puxado para fora d’água, uma
árvore derrubada de uma floresta virgem e o minério retirado, dentre
outros. O objeto sobre o qual o trabalho incide (neste caso a natureza)
é, freqüentemente, “filtrado” ou “refinado”, passando a ser denomina-
do matéria-prima. “O objeto de trabalho só é matéria-prima depois de
ter experenciado uma modificação efetuada pelo trabalho” (Marx,
1975:203).

E finalmente, o terceiro elemento constituinte do processo de trabalho


é aquele que possibilita que a atividade do trabalhador sobre o objeto

Fórum dos Alunos do IUPERJ 129


possa se efetivar, isto é, o meio (o instrumento) de trabalho. “O meio
de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador
insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua
atividade sobre este objeto” (ibidem).

Posteriormente, após atingir um determinado nível de desenvolvimen-


to, a necessidade de meios de trabalho mais elaborados impõe-se quase
que automaticamente. A tentativa de captar as leis da natureza através
da reprodução das propriedades químicas, físicas e mecânicas para
utilizá-las como meio de poder sobre outras coisas, de acordo com
seus propósitos, torna mais claro, progressivamente, o papel que a na-
tureza assume nos meios de trabalho. A importância da natureza no
âmbito dos meios de trabalho torna-se ainda mais evidente, quando se
constata que, abstraindo-se dos produtos inorgânicos como pedra, ma-
deira (orgânica, mas morta), ossos e conchas, dos quais nossos ances-
trais fizeram seus instrumentos, também os animais desde os primórdios
da história foram usados como meio de trabalho (Marx, 1975:204).

Esse terceiro ponto tornar-se-ia ainda mais complexo com o desdobra-


mento do raciocínio que irá atribuir valor de uso às mercadorias, visto
que “o resultado do processo de trabalho é um valor de uso” (idem:205)3 ,
que, por sua vez, ao invés de ser simples produto para ser consumido,
pode ser novamente matéria-prima ou mesmo meio de trabalho para
um processo de trabalho ulterior. Nesse sentido, a idéia do domínio da
natureza em Marx somente estará completa a partir de suas reflexões a
respeito do emprego da maquinaria. Para Duarte, por exemplo, “so-
mente com o surgimento da grande indústria, supera-se todo e qual-
quer vestígio das formas científicas anteriores e o ideal do domínio
total da natureza externa se encontra plenamente realizado” (Duarte,
1993:50).

Na opinião de Duarte (idem:52), Marx não se limita à condenação do


capitalismo por seus efeitos deletérios sobre o humano, mas também
sobre sua fonte de vida, isto é, a natureza externa a ele. Uma afirmação
a esse respeito encontra-se ao final do capítulo sobre a maquinaria,
onde constata que: “Com a preponderância cada vez maior da popula-
ção urbana que se amontoa nos grandes centros, a produção capitalista

130 Cadernos de Sociologia e Política


de um lado concentra a força motriz histórica da sociedade, e, do ou-
tro, perturba o intercâmbio material entre o homem e a terra” (Marx,
1975:578).

Adiante, prossegue Marx afirmando que: “A produção capitalista, por-


tanto, só desenvolve a técnica e a combinação do processo social de
produção, exaurindo as fontes originárias de toda riqueza: a terra e o
trabalhador” (idem:579).

Mas, se para Marx a questão da natureza realmente tinha alguma im-


portância, então por que importantes autores como Anthony Giddens
(1991), Alfred Schmidt (1971), Klaus Eder (1996) o acusam de ter
negligenciado ou de ter sido hostil a esta temática?

O debate entre Alfred Schmidt e Wolfdietrich Schmied-Kowarzik, re-


cuperado por Duarte (1993:53-54), revela-nos as nuances dessa discus-
são. Os autores partem de um polêmico trecho dos Grundrisse:

“A natureza se torna, então, puro objeto para o homem, pura coisa de


utilidade; deixa de ser conhecida como potência em si; e o próprio
conhecimento teórico de suas autônomas aparece apenas enquanto
ardil para subordiná-la – seja como objeto de consumo ou como
meio de produção – às necessidades humanas” (apud Duarte,
1993:53).

Essa citação é utilizada por Schmidt para afirmar que Marx considera
que o mundo só é cognoscível na medida em que se torna artefato
humano. Schmidt afirma que somente podemos saber o que uma coisa
natural é na medida em que conhecemos a totalidade dos procedimen-
tos industriais e científico-experimentais que permitiram fabricá-la. A
esta afirmação contrapõe-se Schmied-Kowarzik, apontando para o fato
de que Marx reconhece a situação presente na qual a natureza se tor-
nou inteiramente objeto para o homem, porém não a exalta; ao contrá-
rio, Marx deixaria indícios de como a natureza viva também é subjugada
pela ciência natural e técnica enquanto agente das forças produtivas4.

Talvez não seja justo tentar atribuir ao pensamento marxista um peso


tão grande à relação homem-natureza. Ainda assim, pela breve exposi-
ção feita acima, acredito que seja possível reconhecer uma contribui-

Fórum dos Alunos do IUPERJ 131


ção relevante, que viria a ter papel fundamental para reflexões posteri-
ores acerca do tema. Entretanto, não se pode perder de vista que a
compreensão de que as teorias de Marx, Durkheim e Weber estavam
visivelmente se opondo às posições de destaque que teorias sociais re-
lacionadas à biologia possuíam, acabou por marcar uma “barreira”
implícita quanto à incorporação de variáveis ecológicas às suas análi-
ses. Da mesma forma, a cultura da profissão sociológica moderna, em
grande parte herdada dos teóricos clássicos, implica uma reação quase
que espontânea contra muitas formas de biologismo, em especial aque-
las como a sociobiologia, que despertam imagens das doutrinas de
Spencer e Darwin. Além disso, a partir do século XIX, a história inte-
lectual acadêmica – em função do desenvolvimento de um processo de
divisão do trabalho científico – foi fortemente marcada por um proces-
so de disciplinarização e profissionalização do conhecimento. Dentro
desse contexto, a sociologia descreveu-se a si mesma como uma ciên-
cia que estuda as relações sociais na sociedade moderna, o que contri-
buiu para que a questão da natureza – mesmo se pensada a partir das
inter-relações desta com os homens – não merecesse a devida atenção
do olhar humanista. Também não podemos negligenciar o fato de que
as tradições do pensamento sociológico clássico de Marx – assim como
de Weber e Durkheim – foram bastante influenciadas pelo contexto
social no qual a disciplina se desenvolvia; desta forma, a preocupação
com a relação ambiente (natural) e sociedade era praticamente
inexistente, uma vez que vigorava um clima de crescente urbanização
permeada por uma ideologia caracterizada pela fé no progresso, na
prosperidade sem precedentes e na racionalidade humana – típicas do
Iluminismo –, acreditando-se que os recursos e o progresso social,
tecnológico, industrial seriam ilimitados e que portanto a vida humana
estava se tornando cada vez mais independente do mundo físico (Buttel,
1992; Dunlap, 1997; Goldblatt, 1996).

Posteriormente, a partir da crítica ao espírito Iluminista e ao progresso


sem limites, alguns aspectos das reflexões de Marx são retomados, em
especial com os desenvolvimentos da Escola de Frankfurt.

132 Cadernos de Sociologia e Política


A Escola de Frankfurt

A partir da crítica ao espírito Iluminista e ao progresso sem limites,


alguns aspectos das reflexões de Marx são retomadas, pela Escola de
Frankfurt. Ainda sobre a temática da dominação da natureza, pode-se
dizer que o livro Dialética do Esclarecimento de Max Horkheimer e
Theodor W. Adorno (1986), iniciado em 1944 mas que foi publicado
apenas em 1947, introduziu uma mudança de paradigma, rica em con-
seqüências para a forma como a teoria social tratou esta questão até
então.

O primeiro ponto diz respeito ao fato de que o pensamento do Esclare-


cimento, da forma como se desenvolvera no século XVIII, era tomado
como o legado positivo comum da modernidade. Nesse sentido, libe-
rais e marxistas reportavam-se igualmente às conquistas desse período,
uma vez que ambos assentavam raízes na filosofia do Esclarecimento
anglo-escocês, francês e alemão.

Em um amplo sentido, pode-se dizer que as ideologias concorrentes no


século XIX e XX giravam em torno da interpretação e evolução do
pensamento do Esclarecimento. O próprio marxismo queria executar
a “missão histórica” do Esclarecimento a partir da crítica das relações
sociais e econômicas. Uma posição contrária aos fundamentos do Es-
clarecimento só parecia possível nos horizontes do pensamento
reacionário que supria ideologicamente o regime fascista.

Na Dialética do Esclarecimento, ao contrário, colocava-se em julga-


mento a perspectiva emancipatória do Iluminismo. O desenvolvimento
de Adorno e Horkheimer nos mostra que o fascismo, por exemplo, é
uma conseqüência legítima, descendente do próprio Esclarecimento;
ao dizer que “o Esclarecimento é totalitário” (1986:22), os autores dão
contornos ao programa de uma crítica social nova e diversa, que até
hoje aguarda seu cumprimento.

Mas como explicar esse momento totalitário comum à modernidade


esclarecida, no qual o fascismo representava uma forma irracional, o
stalinismo em uma forma historicamente tardia e a democracia ociden-

Fórum dos Alunos do IUPERJ 133


tal em uma forma madura?Não era tarefa simples para Adorno e
Horkheimer formular, em 1944, o problema que percebiam. Eles uti-
lizaram o conceito de “dominação da natureza” para descrever o tota-
litarismo da modernidade; tal dominação transforma-se na “domina-
ção sobre os homens”, sua forma social. Enquanto se trata natureza
como “mera objetividade”, objeto isolado como “exemplar” de uma
espécie (e, portanto, uma abstração), gera-se um sujeito onipotente para
o qual o mundo deve ser dominado, manipulado, submetido: este su-
jeito torna-se “mero possuir, mera identidade abstrata”.

Esse sujeito onipotente deve ainda manter um distanciamento diante da


natureza (a fim de torná-la presente – enquanto conceito – de modo a
dominá-la); para tanto, deve surgir na sociedade humana uma classe
dominante, que intercala entre si e a natureza “os trabalhadores” en-
quanto dominados sociais: A distância entre sujeito e objeto, pressu-
posto da abstração, radica na distância com relação à matéria que o
senhor ganha por meio dos dominados (Adorno e Horkheimer, 1986).

Ao se realizar através dessa diferenciação social, a dominação da natu-


reza tem como conseqüência a identificação do próprio homem como
um objeto da natureza, também a ser dominado: a separação entre
sujeito e objeto (presente já no homem pré-histórico, através do mito,
da mimese) leva ao reconhecimento do poder como princípio de todas
as relações. Por este motivo, a própria subjetividade tem que ser torna-
da objeto – e esta lição aparece no mito de Ulisses, tratado pelos auto-
res como arquétipo do sujeito burguês, abstrato e objetivante – visando
à natureza e aos outros homens por meio da dominação.

No desenvolvimento desse processo, o Esclarecimento submete natu-


reza e sociedade mediante a quantificação, a formalização, a
matematização: “a lógica formal era a grande escola da unificação, [...]
o número tornou-se o cânon do Esclarecimento” (idem:22). Nessa ca-
racterística reside o caráter totalitário do Esclarecimento, já que forne-
ceu o esquema de calculabilidade do mundo à modernidade esclarecida,
herdeira da história ocidental e suspeita de tudo que não pode ser redu-
zido a esse esquema.

134 Cadernos de Sociologia e Política


Há, entretanto, uma contradição insanável característica à modernidade
esclarecida. Por um lado, o Esclarecimento prometeu a emancipação
humana através do “desencantamento do mundo”; por outro, ele man-
teve e agravou a dominação objetivante da natureza (e, com ela, dos
homens). Mais ainda, por meio do mercado, da equivalência abstrata
da troca mercantil, consumou-se de maneira mais completa a redução
do mundo a grandezas abstratas.

Assim, Adorno e Horkheimer vêem o Esclarecimento moderno conde-


nado à autodestruição, já que suas próprias bases, seu próprio conceito
teórico – como qualquer conceito universal – é atingido pelo processo
de desmitologização. Quando a metafísica é – para usar uma expressão
de Robert Kurz – consumida até a última gota, e se põe de lado “a
exigência clássica de pensar o pensamento”, este “reifica-se num pro-
cesso automático, de curso independente, que imita a máquina”; mas,
como “a neutralidade é mais metafísica do que a metafísica”, o Escla-
recimento transforma-se em mito, a ciência reduz-se a “mero expedi-
ente de aparato econômico” e a promessa de emancipação converte-se
em “total mistificação das massas” (idem:35, 37, 51 e 52).

Finalmente, quase meio século depois de sua primeira edição, A


Dialética do Esclarecimento pode ser percebida de maneira ambígua.
Por maiores que sejam os acertos do texto – por exemplo, sua idéia
fundamental de que o próprio Esclarecimento contém o germe e se
transforma em barbárie continua atual – hoje ele tem eficácia limitada.
A despeito de sua mudança paradigmática, Adorno e Horkheimer con-
tinuaram sendo filhos do Esclarecimento, uma vez que pretendem fa-
zer a crítica do Iluminismo dentro dos parâmetros iluministas ao mes-
mo tempo em que reconhecem que esses já não são mais suficientes
para uma análise crítica da realidade. Assim, embora o caminho tenha
sido indicado, a porta por eles entreaberta não foi cruzada.

Ainda que tenhamos sempre em mente as diferenças fundamentais en-


tre o projeto normativo-teleológico de Marx para a emancipação hu-
mana e a inexorabilidade do movimento de dominação presente na
Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, pode-se dizer
que a dominação da natureza e do próprio homem – como constituinte

Fórum dos Alunos do IUPERJ 135


de um processo de alienação – é apresentada por estes autores como
um desenvolvimento em direção ao mais alto ponto de subjugação hu-
mana. Estes autores acreditavam que a técnica acoplada ao trabalho
atingira a capacidade de englobar os homens sob a forma de natureza,
isto é, como se fossem objetos destituídos de subjetividade.

Desde o início o trabalho, através da técnica, separou progressivamen-


te homens e natureza inventando modos de manipulação novos e muito
sutis, pelos quais a manipulação exercida sobre as coisas implica a
subjugação dos homens pelas técnicas de manipulação. Entretanto, a
partir da tese frankfurtiana, no seu máximo desenvolvimento este mes-
ma técnica os reuniu novamente: fazem-se máquinas a serviço do ho-
mem e põem-se homens a serviço das máquinas; assim temos, ao invés
de uma “humanização da natureza”, a ocorrência de uma “naturaliza-
ção da humanidade”. Finalmente, vê-se muito bem como o homem
torna-se dominado pela máquina, enquanto esta manipula as coisas a
fim de libertá-lo; neste processo, temos a emergência de uma totalida-
de à disposição de um único sujeito, o capital.

Em sua origem, a ciência ocidental tinha um caráter essencialmente


experimental; para que esta experimentação pudesse ser efetuada sobre
bases consistentes, foi necessário desenvolver cada vez mais seus pode-
res de manipulação, em um processo que poderia ser descrito por “ma-
nipular para conhecer”. Entretanto, com a crescente inter-relação entre
ciência e indústria e – seguindo a ideologia racionalista-humanista,
fundada no Iluminismo – com a busca pela emancipação humana atra-
vés da manipulação e dominação dos objetos naturais, verifica-se uma
inversão de finalidade, ou seja, cada vez mais se deseja “conhecer para
manipular”.

Atualmente, conhecimento, instrumentos de manipulação, fragmenta-


ção e dominação, capital são elementos de um circuito que nos leva à
impossibilidade cada vez maior de distinguir com clareza as linhas
limítrofes entre ciência e técnica. A complexidade destas inter-relações
nos impele a utilizar o termo tecnociência, deixando de isolar termos
que são cada vez mais incompreensíveis se tomados em separado.

136 Cadernos de Sociologia e Política


Além disso, pode-se dizer que a infiltração da técnica, ou melhor da
tecnociência, acontece também em um outro nível: na epistemologia
de nossa sociedade e civilização, uma vez que a lógica das máquinas
artificiais é progressivamente incorporada em nossas práticas e hábitos
cotidianos. Em outras palavras, não mais aplicamos os esquemas e a
lógica contida na tecnociência apenas ao trabalho manual ou mesmo à
máquina artificial, mas também às nossas próprias concepções de soci-
edade, vida e homem.

Nesse sentido, a idéia de “dominação da natureza” passa


contemporaneamente a conquistar um outro nível diferente daqueles
preconizados por Marx, Adorno e Horkheimer. Tanto a tese clássica
enunciada por Marx de que os homens modificam a natureza, ao mes-
mo tempo em que se automodificam quanto a dos frankfurtianos de
que o esforço humano para controlar a natureza voltou-se contra o
próprio humano – teses que acompanham até hoje o imaginário canônico
sociológico – apresentam agora um ponto de inflexão.

Em função da crescente especialização engendrada no âmbito acadêmi-


co a partir do século XIX, a sociologia colocou-se a tarefa de explicar
as relações sociais das sociedades modernas; visando alcançar esta meta,
buscou-se delimitar o social da forma mais abrangente possível (Co-
missão Gulbenkian, 1996), afirmando-se, por exemplo, que nas socie-
dades modernas só é possível pensar na existência de uma natureza
socializada. Há uma idéia implícita nesta afirmação: a tese de que a
ação humana teria alcançado todos os ambientes naturais5 . Um corolário
óbvio dessa idéia é que não há mais espaços nos quais seria possível
intervir socialmente: o homem já teria conquistado a totalidade da na-
tureza.

Mas talvez ainda haja espaços naturais a serem subjugados, manipula-


dos e conquistados. Pensemos, como um exemplo simples, em um
jardim planejado. Ainda que as plantas sejam naturais, está claro que
para o sociólogo o jardim é um objeto social, uma natureza não mais
natural: trata-se de um trabalho humano e, portanto, social. Isto por-
que, até este momento, não faziam parte de nosso imaginário
questionamentos acerca da natureza das plantas utilizadas para a con-

Fórum dos Alunos do IUPERJ 137


fecção do jardim; entretanto, com a possibilidade de intervenção na
estrutura genética dos seres vivos pode-se perguntar se as plantas eram
de espécies encontradas no ambiente ou se foram “engenheiradas” em
laboratório. Isto nos mostra que havia fronteiras ainda não ultrapassa-
das e territórios ainda não colonizados pelo social; no entanto, com os
novos desenvolvimentos tecnológicos, provavelmente em breve (talvez
já hoje) nos questionaremos sobre qual foi o processo de formação de
cada planta que compõe aquele jardim construído artificialmente.

A história recente mostra-nos que ainda era possível levar a cabo uma
maior e mais significativa dominação da natureza para além do que
Adorno e Horkheimer haviam imaginado.

(Recebido para publicação em outubro de 2005)

Notas

1. Estou aqui recuperando apenas um ramo através do qual este tema foi
desenvolvido. Além disso, é importante ter em mente que os aspectos que
estão presentes na obra de Marx já são produto da incorporação e
reelaboração de uma linha de discussão que se inicia com Aristóteles e
Platão chegando até Hegel – passando por Bacon, Descartes, Schelling,
dentre outros.

2. Dentre alguns é possível citar: Frederick Buttel, Allan Schnaiberg, Ted


Benton, Paul Burkett etc.

3. Embora o processo que foi até agora descrito em O Capital ainda não
tenha chegado à extração de mais-valia, é interessante notarmos que já
seu princípio se baseia na exploração da natureza.

4. Esta é uma discussão bastante complexa e multifacetada. Desta forma, e


devido aos objetivos deste texto, a discussão não será aqui aprofundada;
entretanto, a dificuldade de abordar este debate revela, em si, a própria
dificuldade que a sociologia tem em reconhecer a importância do tema
para a disciplina.

5. Esta concepção está presente, por exemplo, em Giddens (1991).

138 Cadernos de Sociologia e Política


Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. (1986) [1947], Dialética


do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar.

BUTTEL, Frederick. (1992), “A Sociologia e o Meio Ambiente: Um


Caminho Tortuoso Rumo à Ecologia Humana”. Perspectiva. Revista
de Ciências Sociais, vol. 15. São Paulo.

COMISSÃO GULBENKIAN. (1996), Para Abrir as Ciências Sociais.


São Paulo, Cortez Editora.

DUARTE, Rodrigo. (1993), Mímesis e Racionalidade. A Concepção de


Domínio da Natureza em Theodor W. Adorno. São Paulo, Edições
Loyola.

DUNLAP, R. (1997), “The Evolution of Environmental Sociology: A


Brief History and Assesment of American Experience”, in M. Redclift
e G. Woodgate (eds.), The International Handbook of the
Environmental Sociology. Northampton, Madison.

EDER, Klaus. (1996), The Social Construction of Nature. London, Sage.

GIDDENS, Anthony. (1991), As Conseqüências da Modernidade. São


Paulo, Editora da Universidade Estadual Paulista.

GOLDBLATT, David. (1996), Teoria Social e Ambiente. Lisboa, Ed.


Instituto Piaget.

MARX, Karl. (1975), O Capital: Crítica da Economia Política (3ª ed.),


Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira S.A., vol. 1.

SCHMIDT, Alfred. (1971), The Concept of Nature in Marx. London,


NLB Ed.

Fórum dos Alunos do IUPERJ 139

Você também pode gostar