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Peripatê
Goiânia, 2020
Apresentação
[7]
calçada. Há muitos sujeitos sem sorte
nessa cidade que sempre pensam:
“ano passado eu morri, mas esse ano
eu não morro”. No final, acabam mor-
rendo. A esperança de jovens segue não
acontecendo.
De repente, um cego legítimo tem a
capacidade de enxergar mais que qual-
quer um que cruze seu caminho. Como
faz isso? Com as mãos. Tateia o chão e
assim segue seu caminho. Mas é mais
um sujeito invisível. Na cidade das coi-
sas invisíveis, poucos se atrevem a olhar.
Quais serão os medos que as pessoas
tanto têm, para não quererem enxergar?
[8]
Ibasho antigo
Clarice Lima
[9]
Das coisas que herdei milhares se dete-
rioram. As janelas me engolem e carros
disparam sobre mim no lugar que carrega
as memórias do que me formou. Meus
olhos percorrem o horizonte congestio-
nado e tudo que está atrás dele pode
apenas ser imaginado. No meio disso,
contudo, encontro o céu, e os hibiscos
explodindo em cor, e as paredes pintadas
desses becos. Nada é completamente
apagado e meus pais aqui permanecem
de outras formas.
[10]
Círculos
Gabi Domiciano
[11]
aquele cheiro agudo, como uma flecha.
Perfume de tempos passados, misturado
a suor e pele. Vinha do portão, me aproxi-
mei, especificamente de um dos círculos.
Colei o nariz, aspirei. Era novamente uma
jovem com o mundo por desbravar. Mas
percebi outra fragrância, do círculo ao
lado. Fui até ele. Estrada de roça, terra,
mato, poeira e frescor de chuva. Ale-
crim da horta, que minha avó punha nas
panelas e inundava a cozinha. Não resisti,
minha boca salivava e em um impulso
estava lambendo o portão.
“Mãe!?” - O grito atônito do meu filho
me interrompeu.
[12]
Ecce homo, esse medo
Rico Lopes
[13]
Hoje é vento vácuo baldio
Porque até as casas amáveis
desapareceram levando consigo
suas cores de enxoval
de recém-nascido
e seus azulejos graciosos
Na frente das garagens
apesar das placas proibido estacionar
craveiros e roseiras se estancam
se demoram a brigar
pra que seja mais saborosa
a infame reconciliação
Há bichos geográficos
nas gastas e abatidas
lápides dos arranha-céus
Que aquela matéria cítrica
viçosa e macia chamada vida
perdeu todo espaço
estão todos eles ocupados
com a outra matéria gélida
cocha e áspera dos concretos
E Magnólia e Antonieta
não são mais nomes de flores
[14]
ou de senhoras
mas dos residenciais erguidos
pra encaixotar humanos
Melhor que as placas
sinalizando tudo
que não se pode fazer
são os adesivos
nas costas das placas
desviando o caminho
da moral vigente
Pinturas rupestres
nas paredes do Lyceu
e uma placa de saída
apontando para a entrada
Vi as nódoas das bananas
e as raízes decepadas do cajueiro
encrustadas no muro
Enquanto os cartazes de protesto
foram todos silenciados
restando apenas
as vísceras da celulose
“Que diabo é isso?”
pergunta um velho ambulante
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e a cigana responde:
um inventário das coisas
que nunca se erguem
porque já nascem ruínas
as quais não conhecemos
nem chegaremos a conhecer
Que os ínfimos detalhes
não mais percebemos
tamanha são as grandezas
com que nos distraímos
feito crianças privadas de doce
ao ver uma bala
Até mesmo porque
na idade das cavernas modernas
a bala parece ser
a única língua falada
pelos novos nativos neandertais
[16]
Descompassado
Mel Gonçalves
Buganvílias laranjas
debruçadas pelos muros
Estendendo seus braços para
os corações transeuntes.
Arte em meio ao urbano.
Luz em meio ao caos.
Olhar presente, mas bem cego.
Corre todo dia
Perde o abraço,
Perde o beijo do hibisco laranja.
Tropeça no bagaço
Cacos do chão.
Corre, perde tempo.
Então, pare, respire, olhe ...
Enxergue
[17]
Coisas bonitas
Lethycia Dias
[19]
Ver duas pessoas do mesmo
gênero andando de mãos dadas
Tomar sol numa manhã de inverno
Conseguir ler um lambe-
lambe numa parede do centro
enquanto ando com pressa
Me encantar com uma música e
querer apenas fechar os olhos e me
deixar levar para outra atmosfera
Ver uma pessoa fazendo
aquilo que ama.
[20]
Bloco de notas
Zandélli Lira Cruvinel
Pena no chão
Fumar no beco
Café na escada
[21]
Sem trocados para a arte que é
café da manhã dos outros
Sem tempo para troca com
a arte dos outros
Não durável
Obsolescência
O mundo carregado e exuberante
que apodrece nos desobjetos
Procurando o ordinário
somente na exceção
[22]
Ainda queremos o extraordinário
Século do presentismo,
novidade e juventude
Ser sempre agora
[23]
A propaganda era de jeans,
mas os dentes tão brancos
Me lembrei dos nossos dentes
amarelos roçando as línguas atrás
dos prédios de comunicadores
Todo prédio me lembra da
língua que não era a sua
[24]
Desconhecidos me conhecem
mais que meus arquitetos
[25]
Coração transeunte
Lígia Carvalho Libâneo
Jardim de cogumelo
acolhe árvore velha
Árvore velha
Jardim de cogumelo
Acolhe
[27]
Cacos de vidro acolhem calçada
Calçada
Cacos de vidro
Acolhem
[28]
Gentes
Leo Tibúrcio
O padre pedófilo
O judeu desgovernado
O índio roubado
O preto ainda na corrente
O político honesto
A fome
A fatura
Afinal, quem é gente de verdade?
[29]
Invisível
Mel Gonçalves
[31]
folhas velhas e musgos.
Com seu azul e laranja outrora
majestosos, hoje corroídos.
Abandonado por alguém que
não o amou o bastante.
Dividindo espaço com uma
fétida lixeira negligenciada
Lotada de restos moribundos de vidas.
Invisível ...
Em meio às ruas rachadas
[32]
Contemplação greco-nipônica
dos agoras da cidade (em
18 passos de gueixa)
Kamilly Barros
o operário opera
a cidade
(:) abre uma veia
O espelho do trânsito
reflete
o que passa
em corpo de flor
o ínfimo sobrevive
(entre pedras)
na ruína resta
o sonho
do eterno
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a cidade obra
dobras no solo
rios de gente
margens
de repente
na esquina
o vermelho salta do cinza
da rua
o silêncio
é exil(h)ado
o mapa
traçado na cabeça
imita
os pés
das entranhas
pás de segredos
desenterrados
[34]
encavalados
os versos revelam
o que o olho
estranha
na poça mora
o invertido
da paisagem
debaixo da pérgola
demora
o relento
em caixas de metal
encontram-se
correspondentes
distraído o transeunte
taca a cara
no muro
[35]
é questão de mood
o espanto na travessia
o que flana
atravessa o tempo
no passeio
arranhando o céu
o pássaro cumpre
sua jornada
[36]
Acássia
Lara Carvalho
[37]
Talvez devesse perguntar por que não
Ela diz que é importante polir a palavra
Eu penso que é importante
falar por meio da imagem
A chuva nos interrompe
Compro um guarda-chuva e no
percurso de volta concluo
não havendo fuga
ela foi limpar os olhos
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ficha técnica
Autoras e autores:
Tobias Bueno
Clarice Lima
Gabi Domiciano
Rico Lopes
Mel Gonçalves
Lethycia Dias
Zandélli Lira Cruvinel
Lígia Carvalho Libâneo
Leo Tibúrcio
Mel Gonçalves
Kamilly Barros
Lara Carvalho