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Peripatê

Peripatê
Goiânia, 2020
Apresentação

A antologia Peripatê é composta por tex-


tos em prosa e poesia, produzidos pelos
participantes da Oficina Peripatética de
Escrita Criativa, atividade formativa con-
duzida por Cássia Fernandes, durante a
feira e-cêntrica 2020.
Cássia Fernandes é escritora, jorna-
lista e professora. Publicou o romance
Cartas que não te escrevi, o livro de poe-
mas Almofariz do tempo e o audiolivro e
e-book Abracadabras: crio enquanto falo,
estes dois últimos pela Nega Lilu Editora.
Escreve crônicas para o jornal O Popular
(GO) e é, atualmente, professora de Por-
tuguês na Vila de Jericoacoara (CE).
A cidade das coisas invisíveis
Tobias Bueno

Naquela manhã cinzenta em que as pes-


soas haviam perdido o brilho do olhar
e, consequentemente, a capacidade de
enxergar pequenezas, outras se esfor-
çavam para treinar o olhar. Caminharam,
observando atentamente tudo e todos.
Ao passar pelo Louvre, o edifício, viram
um homem, preso. O homem-obra-de-arte
também observava atentamente, com um
olhar de estranheza, pois talvez não fosse
comum ver tantas pessoas soltas.
E nessa cidade de coisas invisíveis,
tudo é invisibilizado. O invisível entre-
gador de comida que transita pela cal-
çada de bicicleta; um cidadão comum,
“um rapaz latino-americano sem dinheiro
no banco e sem parentes importantes”,
atrapalha o fluxo das pessoas pela

[7]
calçada. Há muitos sujeitos sem sorte
nessa cidade que sempre pensam:
“ano passado eu morri, mas esse ano
eu não morro”. No final, acabam mor-
rendo. A esperança de jovens segue não
acontecendo.
De repente, um cego legítimo tem a
capacidade de enxergar mais que qual-
quer um que cruze seu caminho. Como
faz isso? Com as mãos. Tateia o chão e
assim segue seu caminho. Mas é mais
um sujeito invisível. Na cidade das coi-
sas invisíveis, poucos se atrevem a olhar.
Quais serão os medos que as pessoas
tanto têm, para não quererem enxergar?

[8]
Ibasho antigo
Clarice Lima

O Centro que era dos meus pais e hoje


não lhes pertence mais. Sua juventude
coberta por camadas de sujeira que
pregam nos meus sapatos. O sol que
me escalda a cabeça e antes banhava
suas peles. Suas pegadas substituídas
por cacos de vidro de noites passadas.
Suas risadas que se perderam e são
agora fumaça, amigos que sumiram no
interior de lojas, os sebos de meu pai que
hoje guardam a poeira do que um dia foi
um despertar, o frenesi do novo enterrado
nas crateras dessas construções. Dias
que apenas voltam por suas bocas em
agitações brilhantes.
Meus passos me guiam por ruas e
ruas e todas se tornam iguais. Mil prédios
espelhados me refletem até me apagar.

[9]
Das coisas que herdei milhares se dete-
rioram. As janelas me engolem e carros
disparam sobre mim no lugar que carrega
as memórias do que me formou. Meus
olhos percorrem o horizonte congestio-
nado e tudo que está atrás dele pode
apenas ser imaginado. No meio disso,
contudo, encontro o céu, e os hibiscos
explodindo em cor, e as paredes pintadas
desses becos. Nada é completamente
apagado e meus pais aqui permanecem
de outras formas.

[10]
Círculos
Gabi Domiciano

Não consigo precisar quando começou,


imagino que se tratou de um processo à
minha revelia, desatenta que sou. Insta-
lou-se sorrateiramente e de repente eu
já não via o que antes chamava cores.
Não me alarmei, não procurei médicos,
pareceu-me natural, mais uma das tan-
tas coisas perdidas no percurso da vida.
Acostumei-me.
Se tal fato não me foi estranho, o que
se seguiu foi no mínimo curioso. Estava
saindo para o trabalho, nessa época
morava em uma casa que havia sido uma
escola infantil. O portão possuía círculos,
outrora coloridos, de metal. Deixei dessa
forma, achava bonito.
Como dizia, estava saindo para o tra-
balho e um odor me acertou. Lavanda,

[11]
aquele cheiro agudo, como uma flecha.
Perfume de tempos passados, misturado
a suor e pele. Vinha do portão, me aproxi-
mei, especificamente de um dos círculos.
Colei o nariz, aspirei. Era novamente uma
jovem com o mundo por desbravar. Mas
percebi outra fragrância, do círculo ao
lado. Fui até ele. Estrada de roça, terra,
mato, poeira e frescor de chuva. Ale-
crim da horta, que minha avó punha nas
panelas e inundava a cozinha. Não resisti,
minha boca salivava e em um impulso
estava lambendo o portão.
“Mãe!?” - O grito atônito do meu filho
me interrompeu.

[12]
Ecce homo, esse medo
Rico Lopes

Há selva nas sacadas


do edifício Evergreen
E Maria Guilhermina resiste em pé 
no painel vermelho azul preto
com os espetos da Avenida 85
Mas a demolição das construtoras 
que querem erguer prédios 
ou achatar estacionamentos  
até que não restem
de nossas pernas nem nossos pés
vicejam vigoram e fincam 
Os prédios sempre velhos
lá longe das vistas
numa vertigem vertical
suja e cortante
ceifam a linha horizontal
cinza esfumaçada
do que um dia já foi céu 

[13]
Hoje é vento vácuo baldio
Porque até as casas amáveis 
desapareceram levando consigo 
suas cores de enxoval
de recém-nascido 
e seus azulejos graciosos 
Na frente das garagens
apesar das placas proibido estacionar
craveiros e roseiras se estancam
se demoram a brigar
pra que seja mais saborosa 
a infame reconciliação 
Há bichos geográficos 
nas gastas e abatidas
lápides dos arranha-céus 
Que aquela matéria cítrica 
viçosa e macia chamada vida
perdeu todo espaço
estão todos eles ocupados 
com a outra matéria gélida
cocha e áspera dos concretos 
E Magnólia e Antonieta
não são mais nomes de flores 

[14]
ou de senhoras 
mas dos residenciais erguidos  
pra encaixotar humanos 
Melhor que as placas 
sinalizando tudo
que não se pode fazer
são os adesivos 
nas costas das placas 
desviando o caminho 
da moral vigente 
Pinturas rupestres
nas paredes do Lyceu
e uma placa de saída 
apontando para a entrada 
Vi as nódoas das bananas
e as raízes decepadas do cajueiro 
encrustadas no muro
Enquanto os cartazes de protesto
foram todos silenciados
restando apenas
as vísceras da celulose 
“Que diabo é isso?”
pergunta um velho ambulante

[15]
e a cigana responde:
um inventário das coisas
que nunca se erguem
porque já nascem ruínas
as quais não conhecemos 
nem chegaremos a conhecer  
Que os ínfimos detalhes 
não mais percebemos 
tamanha são as grandezas 
com que nos distraímos 
feito crianças privadas de doce
ao ver uma bala
Até mesmo porque 
na idade das cavernas modernas
a bala parece ser 
a única língua falada
pelos novos nativos neandertais

[16]
Descompassado
Mel Gonçalves

Buganvílias laranjas
debruçadas pelos muros
Estendendo seus braços para
os corações transeuntes.
Arte em meio ao urbano.
Luz em meio ao caos.
Olhar presente, mas bem cego.
Corre todo dia
Perde o abraço,
Perde o beijo do hibisco laranja.
Tropeça no bagaço
Cacos do chão.
Corre, perde tempo.
Então, pare, respire, olhe ...
Enxergue

[17]
Coisas bonitas
Lethycia Dias

Os tons de rosa e alaranjado no


céu durante o fim da tarde
A luz do sol de manhã bem cedo
tocando as flores de uma árvore
Olhar para o céu e ver um casal
de araras atravessá-lo
O cheiro das frutas vendidas
por ambulantes no centro
Uma criança no colo da mãe dentro
do ônibus olhar para mim e sorrir
Sacar dinheiro e a cédula
ainda estar durinha
Um gato de rua roçar nas
minhas pernas
O vento agitar o vestido
longo de uma mulher
O chão completamente rosado
embaixo de um pé de jambo florido

[19]
Ver duas pessoas do mesmo
gênero andando de mãos dadas
Tomar sol numa manhã de inverno
Conseguir ler um lambe-
lambe numa parede do centro
enquanto ando com pressa
Me encantar com uma música e
querer apenas fechar os olhos e me
deixar levar para outra atmosfera
Ver uma pessoa fazendo
aquilo que ama.

[20]
Bloco de notas
Zandélli Lira Cruvinel

Fios expostos de energia elétrica


como são expostas as veias
abertas do meu ser latino

Placa de alerta sobre um cão


bravo, na casa onde não havia
cão nenhum, só o vazio
Como placas de alerta sobre alguma
aspereza em pessoas macias

As ruínas da arte, da expressão,


no estacionamento parado da
cidade moderna que corre

Pena no chão
Fumar no beco
Café na escada

[21]
Sem trocados para a arte que é
café da manhã dos outros
Sem tempo para troca com
a arte dos outros

Cabe aos lábios dos loucos denunciar


a loucura dos nossos automatismos

Poças de água que servem de


espelho para amantes fotógrafos
Como poças de lágrima que servem
de espelho para ex-amantes

Não durável
Obsolescência
O mundo carregado e exuberante
que apodrece nos desobjetos

Procurando o ordinário
somente na exceção

[22]
Ainda queremos o extraordinário
Século do presentismo,
novidade e juventude
Ser sempre agora

Me desgasta a vista enxergar


a existência de tudo
Poderia passar a vida em uma única rua
Me deixando atravessar
por ideias poéticas
No infinito das coisas em
poucos metros quadrados

Funk que flerta minha atenção


porque me lembra você
Beijei outras bocas enquanto
não pude te dar a minha

[23]
A propaganda era de jeans,
mas os dentes tão brancos
Me lembrei dos nossos dentes
amarelos roçando as línguas atrás
dos prédios de comunicadores
Todo prédio me lembra da
língua que não era a sua

Abelhas sugando néctar das Éricas


Meu nome poderia ser
Érica e o seu, Abelha

Na procissão dos poetas que


abriram os olhos para a cidade

Desesperados para ver, abrimos


caminho para um cego em seu
próprio processo de enxergar

Sobre não querer morrer


Sou o edifício que perpetua meus pais
Sou legado, sua garantia de não
morrerem engolidos pelo tempo

[24]
Desconhecidos me conhecem
mais que meus arquitetos

Inveterada, as vozes que me


atraem são de outras donas

Só por um dia, diz que me ama


Porque o humano precisa mais da
mentira que da verdade para sobreviver

Há pessoas feridas dentro


de prédios antigos
Há prédios feridos dentro
de pessoas antigas

Me sinto mais viva quando a dor me


lembra que os tons pastéis não existem

[25]
Coração transeunte
Lígia Carvalho Libâneo

Natureza acolhe as ruínas


Ruínas
Natureza
Acolhe

Painel de azulejo acolhe


estacionamento
Estacionamento
Painel de azulejo
Acolhe

Jardim de cogumelo
acolhe árvore velha
Árvore velha
Jardim de cogumelo
Acolhe

[27]
Cacos de vidro acolhem calçada
Calçada
Cacos de vidro
Acolhem

Parede de mansão acolhe lambe-lambe


Lambe-lambe
Parede de mansão
Acolhe

A rua acolhe meu medo


Meu medo
A rua
Acolhe

[28]
Gentes
Leo Tibúrcio 

Pela janela vejo pessoas


passando na avenida todos os dias 
O homem da mercearia 
A puta do 101
A freira dona de bordel

O padre pedófilo 
O judeu desgovernado
O índio roubado
O preto ainda na corrente 
O político honesto
A fome
A fatura 
Afinal, quem é gente de verdade?

[29]
Invisível
Mel Gonçalves

Por quantas ruas rachadas


Ficaram sua fumaça e suas cores?
Quantas histórias transportou?
Almas vivas ou mortas?
Beijo, sossego, calor
Brigas, corpos, despudor.
Até tentaram curá-lo:
Cola, adesivo, parafuso, resina,
Du-re-po-xi.
Indestrutível?
Não.
Ele morreu!
Mas passa muito mal
Estacionado em uma rua qualquer,
No centro da cidade onde ninguém vê.
O furgão morreu, com restos de
histórias trancados dentro de si.
Sepultado por um manto de

[31]
folhas velhas e musgos.
Com seu azul e laranja outrora
majestosos, hoje corroídos.
Abandonado por alguém que
não o amou o bastante.
Dividindo espaço com uma
fétida lixeira negligenciada
Lotada de restos moribundos de vidas.
Invisível ...
Em meio às ruas rachadas

[32]
Contemplação greco-nipônica
dos agoras da cidade (em
18 passos de gueixa)
Kamilly Barros

o operário opera
a cidade
(:) abre uma veia

O espelho do trânsito
reflete
o que passa

em corpo de flor
o ínfimo sobrevive
(entre pedras)

na ruína resta
o sonho
do eterno

[33]
a cidade obra
dobras no solo
rios de gente
margens

de repente
na esquina
o vermelho salta do cinza

da rua
o silêncio
é exil(h)ado

o mapa
traçado na cabeça
imita
os pés

das entranhas
pás de segredos
desenterrados

[34]
encavalados
os versos revelam
o que o olho
estranha

na poça mora
o invertido
da paisagem

debaixo da pérgola
demora
o relento

em caixas de metal
encontram-se
correspondentes

distraído o transeunte
taca a cara
no muro

[35]
é questão de mood
o espanto na travessia

o que flana
atravessa o tempo
no passeio

para a estátua de gesso


(na calçada)
o olho inventa
um gesto

arranhando o céu
o pássaro cumpre
sua jornada

[36]
Acássia
Lara Carvalho

Não dá pra fugir do que emociona


li num poema
Os cacos de um espelho
quebrado na poça
me lembram o espelho de bolsa
redondo pousado na minha coxa
refletindo o céu da ilha feita de mel
E mais cedo o limpador de janelas
fazia seu trabalho com precisão
Um senhor passa por nós
tateando a calçada
Fazemos pausas apesar do
alerta "não estacione"
Alguém pergunta o que havia
ali antes da demolição
A casinha azul com amarelo
atrai a atenção do grupo
Eu me pergunto por que Jericoacoara

[37]
Talvez devesse perguntar por que não
Ela diz que é importante polir a palavra
Eu penso que é importante
falar por meio da imagem
A chuva nos interrompe
Compro um guarda-chuva e no
percurso de volta concluo
não havendo fuga
ela foi limpar os olhos

[38]
ficha técnica

Autoras e autores:
Tobias Bueno
Clarice Lima
Gabi Domiciano
Rico Lopes
Mel Gonçalves
Lethycia Dias
Zandélli Lira Cruvinel
Lígia Carvalho Libâneo
Leo Tibúrcio
Mel Gonçalves
Kamilly Barros
Lara Carvalho

oficina peripatética de escrita


criativa: Cássia Fernandes
oficina de encadernação: Telma Camargo
revisão: autoras e autores
edição de texto: Cássia Fernandes
projeto gráfico e diagramação: Bia Menezes
publicação com miolo impresso em
pólen 80g e encadernado manualmente
durante a feira e-cêntrica 2020.

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